Representações do feminino no cinema brasileiro - livro

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Organizadora Helcira Lima Representações do feminino no cinema brasileiro

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Livro sobre a representação de personagens femininas no cinema brasileiro

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  • Organizadora

    Helcira Lima

    Representaes do feminino no cinema brasileiro

  • Organizadora

    Helcira Lima

    Representaes do femininono cinema brasileiro

    FALE/UFMG

    Belo Horizonte

    2013

  • Sumrio

    5 Apresentao

    11 Ecos de passionalidade e a herana materna:

    uma breve anlise da construo de imagens do

    feminino em LavourArcaicaAllana Mtar de Figueiredo

    45 Marias a partir de Maria:

    representaes da

    mulher negra em Bendito frutoJuliana Silva Santos

    71 A possvel quebra da expectativa em Linha de

    passeJssica Rejane Silva Albergaria

    99 Baixio das bestas: uma abordagem

    argumentativaBruno Reis de Oliveira

    125 O cu de Suely:

    contornos do femininoHelcira Lima

    Diretor da Faculdade de LetrasLuiz Francisco Dias

    Vice-DiretoraSandra Maria Gualberto Braga Bianchet

    Comisso editorialEliana Loureno de Lima Reis Elisa Amorim Vieira Fbio Bonfim Duarte Lucia Castello Branco Maria Cndida Trindade Costa de Seabra Maria Ins de Almeida Snia Queiroz

    Capa e projeto grficoGlria Campos Mang Ilustrao e Design Grfico

    Preparao de originaisPriscila Monteiro

    DiagramaoEduardo Siqueira

    Reviso de provasEduardo Siqueira Ana Raposo

    ISBN978-85-7758-164-1 (impresso) 978-85-7758-165-8 (digital)

    Endereo para correspondnciaFALE/UFMG Laboratrio de EdioAv. Antnio Carlos, 6627 sala 408131270-901 Belo Horizonte/MGTelefax: (31) 3409-6072e-mail: [email protected]

  • As pesquisas que resultaram neste livro visaram refletir sobre a constru-

    o de imagens do feminino no cinema brasileiro, da denominada fase

    da retomada, com destaque para produes voltadas ao sculo XXI. Os

    textos aqui reunidos so fruto de investigao realizada por um grupo de

    pesquisadores, formado por quatro alunos de Iniciao Cientfica e por

    mim, professora-orientadora e tambm pesquisadora do grupo.

    O projeto de pesquisa que deu origem investigao, ainda em

    desenvolvimento,1 objetivou permitir o acesso dos alunos a diferentes

    domnios de saber Lingustica, Cinema, Literatura, Sociologia e Histria

    , bem como a seus desdobramentos na pesquisa acadmica. Alm dis-

    so, e sobretudo, o projeto teve como eixo o estabelecimento de relaes

    entre a pesquisa e a vida social, uma vez que se buscou um olhar crtico

    sobre as relaes de poder que perpassam os contornos do feminino na

    sociedade brasileira. Isto porque, nas trilhas de Foucault, entendo que as

    prticas sociais podem chegar a engendrar domnios de saber que no

    somente fazem aparecer novos objetos, novos conceitos, novas tcnicas,

    mas tambm fazem nascer formas totalmente novas de sujeitos e de

    sujeitos de conhecimento.2

    1 As alunas Juliana Silva Santos (atualmente bolsista do CNPq em outra pesquisa de Iniciao Cientfica) e Allana Mtar continuam a estudar o gnero social a partir de outros enfoques. Alm delas, outras duas pesquisadoras Tatiana Affonso e Luana Santos, alunas do curso de ps-graduao em Estudos Lingusticos se uniram ao grupo, ao lado de Tereza Alves (bolsista Fapemig em uma pesquisa de Iniciao Cientfica).

    2 FOUCAULT. A verdade e as formas jurdicas, p. 9.

    Apresentao

  • 8 Apresentao 9

    importante discusso sobre o silenciamento da mulher negra na socieda-

    de brasileira. Ela toma como ponto de partida o fato de que os produtos

    veiculados pelas mdias possuem um determinado grau de especularidade

    com as relaes cotidianas dos sujeitos, a fim de justificar a escolha por

    uma produo que tida como sendo, aparentemente, simples. Todavia,

    segundo a autora, o filme denota modos como a populao percebe a

    mulher negra, a partir da figura da protagonista.

    Em Imagens de passionalidade em LavourArcaica: uma anlise de

    representaes do feminino, a pesquisadora Allana Mtar de Figueiredo

    procurou desenvolver uma reflexo sobre as estratgias argumentativas

    utilizadas na construo das figuras femininas, no filme LavourArcaica

    (2001), transcriado e produzido por Luiz Fernando Carvalho, a partir da

    obra literria Lavoura Arcaica (1975), de Raduan Nassar. O olhar de Mtar

    volta-se, sobretudo, para a construo da figura da matriarca do cl, a

    partir do discurso do protagonista Andr, bem como para as representaes

    associadas, de maneira genrica, ao mbito do dito feminino. Ela confere

    relevo aproximao entre Andr e tais representaes do feminino, com

    vistas a verificar quais seriam as estratgias usadas pelo protagonista na

    construo da figura feminina na obra.

    Jssica Albergaria, por sua vez, no artigo A representao do fe-

    minino no cinema brasileiro: a construo da figura feminina enquanto

    autoridade no seio familiar em Linha de passe focaliza a personagem

    Cleuza, da produo Linha de passe (2008), dirigida por Walter Salles e

    Daniela Thomas. Seu intuito, a partir da constatao de que a obra se pro-

    pe a destacar sua mxima aproximao com o real, proceder leitura

    dos esteretipos resgatados na construo da figura de Cleuza. Atravs

    de uma leitura voltada para mudanas ocorridas na estrutura de nossa

    sociedade, a autora entende que a personagem em destaque pode ser

    lida como representante de uma nova ordem que se instaura no apenas

    nas camadas mais desprivilegiadas.

    No artigo As representaes do feminino em Baixio das bestas:

    uma abordagem argumentativa, Bruno Reis de Oliveira elege como eixo a

    violncia e as questes relativas ao gnero social, no intuito de trabalhar

    com problemas muitas vezes pouco aprofundados nas produes artsti-

    cas ou, com o enfoque aqui dado, at mesmo nas reflexes da prpria

    Nessa esteira, a partir da constatao de que no possvel mais

    pensar em identidade como algo original ou acabado e estabelecido de

    uma vez por todas, verifica-se, nas produes flmicas estudadas, iden-

    tidades que se esboam em filigranas, subjetividades entrelaadas que

    nos levam a pensar na impossibilidade de falar sobre um sujeito feminino.

    A leitura das personagens dos longas-metragens nos conduziu a outras

    vias de leitura, pois nos levou a colocar em xeque os lugares predetermi-

    nados para homens e mulheres em nossa sociedade. exatamente essa

    identidade em processo que nos interessou para uma leitura acerca das

    representaes sobre o feminino.

    Ao longo do projeto desenvolvido, em encontros semanais, foram

    discutidos textos tericos, a fim de suscitar reflexes sobre o assunto,

    tendo como destaque as contribuies de autores como Michelle Perrot,

    Jean-Jacques Courtine, Pierre Bourdieu, entre outros. Todos os alunos

    demonstraram envolvimento e comprometimento singular com a pesquisa,

    no poupando esforos na produo das monografias que deram origem

    aos artigos.3 Vale destacar que uma das pesquisadoras, a aluna Juliana

    Silva Santos, teve seu trabalho agraciado no prmio Construindo a igual-

    dade de gnero, edio 2010. Ela foi premiada na Categoria Graduao com

    o artigo A legitimao do silncio no cotidiano da mulher negra brasileira

    a partir do filme Bendito fruto.

    O Prmio Construindo a igualdade de gnero integra o programa

    Mulher e Cincia e uma iniciativa da Secretaria de Polticas para as

    Mulheres (SPM), do Ministrio da Cincia e Tecnologia (MCT), do Conselho

    Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq), do Ministrio

    da Educao (MEC) e do Fundo de Desenvolvimento das Naes Unidas

    para a Mulher (UNIFEM). Ele visa ao estmulo da produo cientfica e da

    reflexo acerca das relaes de gnero, mulheres e feminismo no Brasil.

    Alm disso, visa promoo da participao das mulheres no campo das

    cincias e carreira acadmicas.

    O artigo de Juliana Silva Santos chama baila, atravs da leitura do

    longa-metragem Bendito fruto (2005), dirigido por Srgio Goldenberg, uma

    3 Alguns dos artigos j foram publicados e a ideia de dar-lhes segunda vida editorial responde ao desejo de apresentar, em seu conjunto, o resultado de reflexes realizadas pelo grupo e expectativa de que eles possam suscitar novos dilogos com os leitores.

  • 10 Apresentao 11

    RefernciasBOURDIEU, Pierre. A dominao masculina. Traduo de Maria Helena Khner. 2. ed. Rio de Janeiro:

    Bertrand Brasil, 1999.

    BUTLER, Judith. Problemas de gnero feminismo e subverso da identidade. Traduo de Renato

    Aguiar. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2010.

    FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurdicas. Traduo de Roberto Machado e Eduardo

    Jardim. Rio de Janeiro: NAU Editora, 1999.

    PERROT, Michelle. Minha histria de mulheres. Traduo de Angela M. S. Corra. So Paulo:

    Contexto, 2007.

    sociedade, como ele mesmo afirma no artigo. A pesquisa sobre o filme

    Baixio das bestas (2007), de Cludio Assis, destaca o perfil da personagem

    Auxiliadora, figura representativa, na obra, da naturalizao da diferena

    entre homens e mulheres, tal como prope o socilogo Pierre Bourdieu.4

    Atravs de Auxiliadora e de algumas outras personagens da trama,

    possvel verificar a condio qual as mulheres ainda so relegadas em

    nosso pas. A aceitao da diferena atesta, nesse caso, a dificuldade de

    se transpor a barreira que separa homens e mulheres.

    Por fim, no artigo O cu de Suely: contornos do feminino, a autora

    se debruou sobre a anlise do filme de Karim Anouz, O cu de Suely

    (2001), a fim de destacar nas nuanas da errncia da protagonista, Hermila-

    Suely, pistas para uma leitura mais abrangente acerca das mulheres. Isto

    porque, segundo a autora, Hermila-Suely atravessou o muro, saiu dos

    buracos negros. Alcanou uma espcie de desterritorializao absoluta.

    Ela passageira clandestina de uma viagem imvel, embora o movimento

    se faa tambm em suas mudanas de cidade.

    Por fim, vale dizer que, nessa empreitada, nosso olhar voltou-se para

    o corpo feminino em sua relao com as foras de poder a fim de encon-

    trar marcas importantes da herana sociocultural reservada s mulheres,

    bem como a fim de verificar como se d a construo ou desconstruo

    de identidades femininas. O que nos moveu nesse caminho no foi o

    corpo imvel com suas propriedades eternas, mas o corpo na histria,

    em confronto com as mudanas do tempo, pois o corpo tem uma hist-

    ria, fsica, esttica, poltica, ideal e material, como nos lembra Perrot.5

    Evidentemente, no desconsideramos a importncia das formaes sociais

    e da histria, haja vista a necessidade de ser preciso recolocar a questo

    sob a tica do papel exercido pelos imaginrios sociais nesse processo de

    representao das mulheres.

    Conclumos, assim, nas trilhas de Butler, que os problemas so

    inevitveis e nossa incumbncia descobrir a melhor maneira de cri-los,

    a melhor maneira de t-los.6

    Helcira Lima

    4 BOURDIEU. A dominao masculina.5 PERROT. Minha histria de mulheres, p. 41.6 BUTLER. Problemas de gnero feminismo e subverso da identidade, p. 7.

  • (Re)direcionando os olhares: feminino, cinema brasileiro e discurso

    Nas ltimas dcadas, tem-se assistido, nos mais diversos campos cien-

    tficos, a um crescimento notrio dos estudos que tangem a temtica do

    feminino. Segundo Michelle Perrot, historiadora francesa, tal fenmeno

    se deve ao fato de que o real advento da histria das mulheres ou a

    emergncia de atenes para o objeto mulher somente se deu a partir

    da dcada de 1960, na Gr-Bretanha e nos Estados Unidos, e na Frana,

    uma dcada depois,1 o que possibilitou quebrar, pouco a pouco, um longo

    jejum de silenciamento feminino nos mais diversos relatos sociais em

    todo o mundo:

    As mulheres ficaram muito tempo fora desses relatos, como se, destinadas obscuridade de uma inenarrvel reproduo, estives-sem fora do tempo, ou, pelo menos, fora de um acontecimento. Confinadas no silncio de um mar abissal.2

    Exemplo de como o feminino passou a ganhar notoriedade nas ci-

    ncias ps-dcada de 1950 so os prprios estudos da Anlise do Discurso

    (de agora em diante, AD). Tendo sua gnese no fim da dcada de 1960 e

    no comeo da dcada de 1970, inicialmente com os trabalhos de Pcheux,

    a AD, tais como outras reas afins, a exemplo da Sociologia, da Histria 1 Por motivos de extenso, no nos deteremos, neste trabalho, no detalhamento dos diversos fatores

    cientficos, sociolgicos, polticos que colaboraram para esse fenmeno de interesse pelo feminino. (PERROT. Minha histria das mulheres, p. 19-20).

    2 PERROT. Minha histria das mulheres, p. 16.

    Ecos de passionalidade e a herana materna: uma breve anlise da construo de imagens do feminino em LavourArcaica

    Allana Mtar de Figueiredo

  • 14 Representaes do feminino no cinema brasileiro Ecos de passionalidade e herana materna 15

    e da Psicologia, tem colaborado para a expanso desse interesse pela

    figura feminina, dando-lhe voz das mais diversas formas, especialmente

    na contemporaneidade. Tambm pode ser destacada, nessa interface

    estudos da linguagem/feminino, a prpria ascenso e disseminao dos

    Estudos Culturais.3

    Nas ltimas dcadas, observa-se que a sensvel abordagem dos

    papis da mulher tem alcanado tambm, como era de se esperar, a am-

    bincia artstica, como o teatro, as artes plsticas e o cinema. No contexto

    nacional, assistiu-se especialmente, nos ltimos anos, ao crescimento da

    stima arte e da produo de inmeros longas-metragens de relevncia. A

    essa recente fase, d-se o nome de cinema de retomada brasileiro, poca

    de produo de inmeros filmes que nos possibilitaram, dentre outras

    temticas, interessantes e mltiplas abordagens da figura feminina. Mais

    adiante, retornaremos caracterizao dessa fase da stima arte brasileira.

    nesse contexto de valorizao do feminino em diversos campos

    cientficos especialmente nas cincias humanas e artsticos, de forma

    ampla, que se enquadra o presente artigo. Inserido nas atividades do Grupo

    de Estudos Representaes do Feminino no Cinema Brasileiro, coordenado

    pela Profa. Dra. Helcira Lima durante o ano de 2009 na Faculdade de Letras

    da UFMG, o trabalho em questo coloca-se como produto final de um pro-

    jeto de Iniciao Cientfica feito a partir do longa-metragem LavourArcaica

    (2001), de Luiz Fernando Carvalho, filme a ser analisado neste artigo.

    Objetivando estudar as representaes femininas nesse filme nacio-

    nal, optou-se por focalizar, em especial, a figura da me, em sua relao

    sui generis com o protagonista Andr e em sua insero no seio familiar.

    A partir de perspectivas da AD centradas na reviso da trade retrica

    ethos, pathos e logos por meio de autores como Patrick Charaudeau,

    Ruth Amossy e Helcira Lima e em teorias sociolgicas interessadas na

    questo feminina como certos trabalhos de Pierre Bourdieu e de Michelle

    3 Segundo Praxedes, os Estudos Culturais so estudos sobre a diversidade dentro de cada cultura e sobre as diferentes culturas, sua multiplicidade e complexidade. So, tambm, estudos orientados pela hiptese de que entre as diferentes culturas existem relaes de poder e dominao que devem ser questionadas. Tais Estudos caracterizam-se por sua dimenso multidisciplinar, fomentada em um processo de renovao das cincias sociais, e tiveram seu boom com Stuart Hall (terico cultural jamaicano, radicado no Reino Unido), que incentivou estudos etnogrficos, anlises de mdia e anlises de prticas de resistncia em subculturas e subgrupos sociais. PRAXEDES. Estudos culturais e ao educativa, no paginado.

    Perrot , efetuar-se-, especialmente, uma breve abordagem de algumas

    imagens construdas no discurso de Andr, para si e para sua me, assim

    como de certos recursos utilizados por ele para suscitar emoes que o

    auxiliem nessa construo. Alm disso, buscaremos verificar alguns ima-

    ginrios sociodiscursivos que esto envolvidos na representao dessa

    matriarca e do feminino, a partir do discurso de Andr e dos discursos que

    circulam em nossa sociedade sobre as mulheres, de um modo geral. Por

    fim, procuraremos confirmar a hiptese de que haveria a partir das pos-

    sveis correspondncias na construo de me e filho certa aproximao

    de Andr a representaes do mbito do feminino no filme em questo.

    Certamente, no temos a iluso de encontrar certezas na anlise

    proposta, assim como no temos a pretenso irreal de esgot-la neste

    nico artigo. Tal impossibilidade d-se no s por motivos de extenso,

    como tambm por julgarmos que o objeto flmico escolhido no dos mais

    simples. LavourArcaica, como veremos a seguir, marca-se, em suas quase

    trs horas de durao, como um dos filmes mais hermticos e densos do

    cinema brasileiro.

    Antes de procedermos a um breve percurso pela fase do cinema de

    retomada e pelas caractersticas principais de LavourArcaica, importante

    destacar que no desprezamos os variados e importantes estudos literrio-

    psicanalticos j efetuados acerca desse longa-metragem, o que poderia

    ser questionado pelo fato de praticamente no utilizarmos pressupostos

    tericos dessas reas do saber no presente artigo. Pelo contrrio: temos

    conscincia de que muitas questes presentes no filme so valiosamente

    elucidadas somente pela Psicanlise e pela teoria literria. Todavia, nestas

    pginas, apenas almejamos, arriscadamente, esboar algumas linhas sobre

    o filme em questo a partir de um vis diferenciado que o da AD ,

    mas no menos rico, por contemplar diversas questes scio-histricas,

    culturais e discursivas.

    A retomada: entre o cinema comercial e uma identidade nacionalSegundo Pedro Butcher,4 retomada designa o processo, ainda

    4 BUTCHER. Cinema brasileiro hoje.

  • 16 Representaes do feminino no cinema brasileiro Ecos de passionalidade e herana materna 17

    contemporneo,5 de recuperao da produo cinematogrfica no Brasil

    depois de uma de suas mais graves crises, dada entre a dcada de 1980

    e o comeo da dcada de 1990. Tal crise da stima arte brasileira teve

    seu pice no governo Collor, quando o governo do presidente extinguiu a

    Embrafilme, o Concine e a Fundao de Cinema Brasileiro, rgos susten-

    tadores do ento j debilitado cinema brasileiro (aps as fases de fora

    do Cinema Novo e do Cinema Marginal). Segundo Oricchio, tais rgos

    j estavam bastante deteriorados, mas o ato de extingui-los e no criar

    outros fomentadores foi o que fez a produo de filmes no pas reduzir-se

    de forma significativa.6

    com a Lei de Incentivo Cultura (Lei Rouanet), aprovada em 1991,

    e com a Lei do Audiovisual, aprovada em 1993 ambas efetivamente con-

    solidadas no governo de Fernando Henrique Cardoso , que o cenrio da

    crise cinematogrfica comea a dar indcios de mudana. Mas somente

    em 1995, ainda segundo Oricchio, que os efeitos da promulgao dessas

    leis comearam a aparecer. Nesse ano, a produo de filmes foi retomada

    definitivamente, sendo que Carlota Joaquina, princesa do Brazil con-

    siderado como o marco zero da retomada do cinema nacional, no pelas

    qualidades estticas, mas pela repercusso e debates que incentivou sobre

    a situao cinematogrfica nacional.7

    A partir da, o cinema brasileiro passou a produzir, pelo menos, de

    vinte a trinta ttulos por ano entre eles, os vendveis O quatrilho (1995),

    Central do Brasil (1998), Cidade de Deus (2002), Carandiru (2003)8, Dois

    filhos de Francisco (2005), Se eu fosse voc (2006) e Tropa de elite (2007)

    , alm de inmeros documentrios de sucesso, como Notcias de uma

    5 Na contramo de Butcher, autores como Lcia Nagib, em seu livro Cinema da retomada: 90 depoimentos de 90 cineastas dos anos 90 (2002), e Zanin Luiz Oricchio em sua obra Cinema de Novo um balano crtico da retomada (2003), defendem que a fase do cinema de retomada brasileiro j se encerrou, respectivamente em 1998 e 2003. Por uma escolha metodolgica, entretanto uma vez que LavourArcaica foi lanado em 2001 , optamos por adotar a delimitao temporal proposta por Butcher, de que o processo do Cinema de Retomada ainda continuaria em vigor, mas com uma faceta mais madura e consistente.

    6 ORICCHIO citado por MACIEL. LavourArcaica: um olhar sobre a famlia, p. 14.7 ORICCHIO citado por MACIEL. LavourArcaica: um olhar sobre a famlia, p. 14.8 Ainda segundo Butcher, Carandiru marca o ano histrico do cinema de retomada nacional: foram

    4,6 milhes de telespectadores, durante mais de 30 semanas consecutivas em cartaz, nmeros esses que contriburam para a casa de 100 milhes de espectadores nos cinemas dos pas (sendo 22 milhes deles espectadores de filmes nacionais). No se atingia, desde 1989, um pblico to impressionante nos cinemas brasileiros.

    Guerra particular (1999) e nibus 174 (2002), sendo indicado vrias vezes

    a inmeros prmios internacionais. Desde ento, percebe-se que o cinema

    nacional de retomada, pouco a pouco, ao menos mercadologicamente,

    vem se consolidando.

    Entretanto, um obstculo se coloca nesse caminho rumo consoli-

    dao definitiva de nosso cinema: como construir uma efetiva identidade

    cinematogrfica brasileira? Como fugir de um cinema extremamente

    comercial, vendvel, preso aos padres televisivos e pouco preocupado

    com uma esttica prpria? Segundo Butcher, todos os filmes para cinema

    feitos no Brasil a partir da dcada de 90 [...] podem ser observados como

    adeses ou reaes nova hegemonia que se formou no campo audiovisual

    brasileiro, o padro Globo de qualidade.9

    Nesse sentido, enquanto alguns longas se mostram filiados a esse

    padro televisivo pr-definido, uma espcie de Hollywood brasileira, usu-

    almente ligada a temticas prosaicas ou crtica social nua e crua (o to

    polmico cinema da pobreza, cujo melhor exemplar Cidade de Deus),

    outros tentam subverter, ainda que a sua maneira, a esttica televisiva

    facilmente palatvel pelo grande pblico. neste segundo grupo que

    se encaixa LavourArcaica, ainda que de maneira ambgua, paradoxal.

    Voltaremos nesse paradoxo a seguir, no prximo tpico.

    Entre tantas incertezas, o principal consenso sobre a fase da retoma-

    da o de que tal gerao de cineastas brasileiros no guarda um projeto

    comum, uma esttica prpria.10 Isso faz com que tenhamos, nessa poca,

    talentos singulares expressando-se em sua diversidade, vez por outra

    atravessando, em diagonal, temas similares, como o caso do prprio Luiz

    Fernando Carvalho, diretor de LavourArcaica. Assim, no existiria [ainda]

    o cinema brasileiro, mas cineastas brasileiros.11 De qualquer maneira,

    nosso prognstico positivo:

    Sem deixar de se referir s grandes transformaes e colaboraes cinematogrficas, o cinema nacional hoje caminha para evoluir mais e, mesmo que permeado por influncias internacionais, est consolidando uma identidade prpria, o que comprovado pelo reconhecimento mundial boas crticas e indicaes a prmios

    9 BUTCHER. Cinema brasileiro hoje, p. 69.10 BUTCHER. Cinema brasileiro hoje, p. 42.11 BUTCHER. Cinema brasileiro hoje, p. 10.

  • 18 Representaes do feminino no cinema brasileiro Ecos de passionalidade e herana materna 19

    importantes de muitos dos grandes diretores do perodo da Re-tomada e da ps-Retomada.12

    LavourArcaica: a experincia esttica completa

    LavourArcaica (2001),13 filme escolhido como objeto desta pesquisa, tem

    direo, montagem, edio de som e roteiro de Luiz Fernando Carvalho,

    que transcriou o texto literrio original de Raduan Nassar, Lavoura Arcaica

    (1975), para a ambincia cinematogrfica. Este filme o primeiro longa-

    metragem do diretor, que faz participaes na Rede Globo de Televiso,

    na maioria das vezes inspiradas em releituras de obras literrias. Luiz

    Fernando Carvalho estreou no cinema com o curta A espera, inspirado em

    Fragmentos de um discurso amoroso, de Roland Barthes. Na televiso,

    dirigiu a minissrie Grande serto: veredas e O tempo e o vento. Adaptou

    tambm trs obras de Ariano Suassuna (A farsa da boa preguia, Uma

    mulher vestida ao sol e A pedra do reino), alm de Os Maias, de Ea de

    Queirs, e a recente minissrie Capitu, a partir de Dom Casmurro, de Ma-

    chado de Assis. Alm disso, produziu as sries Hoje dia de Maria e Hoje

    dia de Maria segunda jornada, mundialmente premiadas.

    A vinculao de LavourArcaica Rede Globo de Televiso no se

    restringe aos laos profissionais de Carvalho. A prpria distribuidora do

    longa, Europa Filmes, afiliada da Globo Filmes. Nasce da o paradoxo em

    que se insere Lavoura: apesar de alguma maneira vinculado ao padro

    Globo de qualidade, o longa, sem dvida, vai na contramo esttica da

    maioria dos filmes da retomada filiados a esse padro, fato que pode ser

    considerado, em seu caso, um ponto positivo. Butcher, nesse sentido,

    aponta-nos que LavourArcaica enquadra-se na lista de filmes de fico

    realizados contra a corrente da hegemonia audiovisual brasileira e , para

    muitos crticos, o filme mais importante da retomada, em sua leitura ao

    mesmo tempo fiel e particular do livro homnimo de Raduan Nassar.14

    A respeito da releitura audiovisual feita no longa a partir da obra de

    Nassar, Luiz Fernando Carvalho considera que o filme uma resposta ao

    12 NAGIB citado por MACIEL. LavourArcaica: um olhar sobre a famlia, p. 15.13 Optamos por, neste trabalho, referirmo-nos ao longa-metragem como LavourArcaica, com a elipse

    que marca a grafia do DVD em sua embalagem e crditos, a fim de o diferenciarmos da obra literria de Nassar, grafada como Lavoura Arcaica, sem a fuso entre os nomes.

    14 BUTCHER. Cinema brasileiro hoje, p. 84.

    livro, uma reao, mas que jamais nega a sua fonte ao contrrio, avizi-

    nha-se dela, porm o mais invisvel possvel.15 Para Sabrina Sedlmayer,

    estudiosa de Lavoura Arcaica conhecida por sua obra Ao lado esquerdo

    do pai, no h como admitir, no filme, tal invisibilidade da transcriao,

    uma vez que mesmo apostando em uma fidelidade extrema ao texto

    escrito, sabemos que o corpo, a voz, o gesto so capazes de efetuar uma

    mudana radical no texto base. 16

    A despeito de tais julgamentos, o que nos interessa, por ora,

    efetuar uma breve investigao das peculiaridades do objeto flmico es-

    colhido. LavourArcaica no se destaca apenas por sua qualidade tcnica

    o que o levou a ser um dos filmes brasileiros mais premiados, nacional

    e internacionalmente , como tambm por sua aprecivel dico potica

    e imagtica, rara no contexto realista e objetivo da retomada, marcado

    por filmes produzidos a fim de atingir o pblico de massa. Segundo Joel

    Birman, psicanalista e professor da UERJ:

    o filme ultrapassa a dimenso de ser um mero passatempo, tal como tem se transformado grande parte das produes cinema-togrficas recentes, trazendo de volta a dimenso do sagrado que est nas origens da arte. [...] Constitui-se assim uma outra obra, original, como a melhor tradio do cinema brasileiro que se valeu da literatura tais como nos filmes Vidas Secas e Memrias do Crcere, de Nelson Pereira dos Santos, e So Bernardo, de Leon Hirszman, baseados todos em obras de Graciliano Ramos.17

    Alm dele, o crtico de cinema Daniel Piza, em resenha publicada no

    jornal Estado de So Paulo em novembro de 2001, tambm destaca o fato

    de LavourArcaica no se homogeneizar em meio maioria das produes

    nacionais recentes, graas sua complexidade: O filme tem, enfim, a

    saudvel ambio at agora invisvel na retomada do cinema brasileiro

    da experincia esttica completa, com as imagens, as falas e os sons

    em mtua potenciao.18

    essa singularidade de LavourArcaica que nos fez eleg-lo como

    objeto de estudo, porquanto entendamos que tal complexidade (e herme-

    ticidade) do longa que faz com que as representaes femininas construdas 15 MACIEL. LavourArcaica: um olhar sobre a famlia, p. 17.16 SEDLMAYER. Ao lado esquerdo do pai, p. 115.17 BIRMAN. [Comentrio 1 em encarte anexo ao DVD].18 PIZA. [Comentrio 2 em encarte anexo ao DVD].

  • 20 Representaes do feminino no cinema brasileiro Ecos de passionalidade e herana materna 21

    nele tornem-se mais instigantes e multifacetadas. Alm disso, o filme de

    Carvalho tambm nos proporciona uma interessante abordagem do femi-

    nino por colocar a figura da mulher em destaque sem necessariamente

    dar-lhe voz e notoriedade aparentes o que ser claramente perceptvel,

    por exemplo, no significativo silenciamento da personagem da matriarca

    do longa. Nas poucas falas das personagens femininas, h muito a ser dito:

    O silncio uma outra forma de expresso. O silncio fala.19

    Por fim, antes de procedermos a uma releitura das bases tericas

    em que se firmar este trabalho, faz-se relevante efetuarmos um breve

    percurso pela diegese de LavourArcaica. Este filme retrata a trgica histria

    de Andr (Selton Mello), o filho desgarrado de uma tradicional famlia

    rural de origem libanesa, que foge de casa por sentir-se sufocado pela lei

    de ordem e rigidez do pai Yohana (Raul Cortez). Esta lei ope-se a todo o

    afeto recebido de sua me (Juliana Carneiro da Cunha) e paixo inces-

    tuosa por sua irm Ana (Simone Spoladore). Pedro (Leonardo Medeiros),

    o irmo mais velho, recebe, ento, da me, a tarefa de trazer o irmo de

    volta ao lar, aps visit-lo em um solitrio quarto de penso interiorana.

    No momento em que os irmos se reencontram, tem-se conhecimento

    das lembranas de Andr e dos densos motivos de sua fuga, alm de seus

    intensos impulsos e vivncias, guiados pelo desejo, fora das terras do cl.

    Cedendo aos apelos da me e do irmo, Andr retorna sua casa, falido

    em seus projetos de ruptura e afirmao. Segundo o diretor Luiz Fernando

    Carvalho, na sinopse do filme escrita por ele, Lavoura Arcaica a verso

    ao avesso da parbola do Filho Prdigo.20 Para Sedlmayer, h uma dupla

    ruptura com a parbola bblica nesta densa e lrica narrativa singular no

    contexto flmico brasileiro:

    a do enunciado, que se desvia da parbola e, contrariando a verso do evangelista, no retrata o castigo que o personagem prdigo recebeu o de destituir-se da subjetividade, saciar-se apenas de alfarrobas, igualando-se aos porcos e retornar cabisbaixo casa e a da enunciao, que, diferentemente do relato bblico (que se inte-ressa exclusivamente pela ao, desconsiderando alguns recursos narrativos, tais como descrio dos personagens, seus pensamentos e sentimentos, ou um tratamento tempo-espacial mais elaborado), oferece-nos uma linguagem tensionada, sem conteno de flego,

    19 MELLO. O silncio faz sentido, p. 2590.20 CARVALHO. [Comentrio 3 em encarte anexo ao DVD].

    para nos contar a histria de um filho que, ao partir, contaminou os alicerces da casa e adoeceu os laos de parentesco.21

    Referenciais tericos

    O presente trabalho, como j mencionado, firmar suas bases de anlise

    sobre a releitura, pela AD, da trade aristotlica ethos, pathos e logos,

    focando, especialmente, os dois primeiros componentes desta. Antes de

    chegarmos a algumas vises contemporneas da AD sobre a revalorizao

    de tais provas do discurso e, consequentemente, da argumentao, pre-

    ciso retornarmos brevemente origem de tal trade: Retrica Clssica.

    A trade ethos, pathos e logos: a origem clssica dos estudos sobre a argumentaoSegundo Patrick Charaudeau e Dominique Maingueneau, a argumentao

    est no centro da concepo antiga da Retrica.22 Foram os preceitos

    desenvolvidos e sistematizados por Aristteles, a respeito da utilidade

    da disciplina Retrica, que serviram de base para o desenvolvimento de

    todas as teorias da argumentao que surgiram depois dele, segundo

    Lima. Dentre esses preceitos, h que se destacar, especialmente, as trs

    provas inerentes ao discurso: ethos, pathos e logos. Carrilho assim rel

    as definies aristotlicas sobre a trade:

    O sucesso de qualquer argumentao depende sempre do modo segundo o qual o discurso do orador (logos) leva em conta as dis-posies e as caractersticas do auditrio (pathos) e tem xito ao interferir com eles, considerando a maneira com que o orador revela ou coloca em evidncia seus traos de carter pertinentes (ethos).23

    Dessa maneira, enquanto o logos representaria, grosso modo, a argu-

    mentao em si (eixo, de certa maneira, mais racional, sobre o qual

    Aristteles privilegiou suas abordagens sobre a persuaso), o pathos se

    vincularia relao com os ouvintes e o ethos estaria ligado a uma pos-

    tura a ser seguida pelo orador para tornar seu discurso eficaz frente a

    esses ouvintes.

    21 SEDLMAYER. Ao lado esquerdo do pai, p. 42.22 CHARAUDEAU; MAINGUENEAU. Dicionrio de anlise do discurso, p. 52.23 CARRILHO citado por LIMA. Na tessitura do processo penal: a argumentao no tribunal do jri, p. 92.

  • 22 Representaes do feminino no cinema brasileiro Ecos de passionalidade e herana materna 23

    Posteriormente, tambm os romanos, especialmente Ccero, reto-

    mam a trade aristotlica, proporcionando novas leituras sobre ela. Adiante,

    ao abordarmos com mais detalhamento ethos e pathos, apresentaremos

    algumas diferenas entre as concepes gregas e romanas a respeito

    desses eixos da argumentao.

    Declnio e retomada dos estudos da argumentao: do renascimento aos dias de hojeAcabado o perodo clssico, em que a Retrica assistiu a seu apogeu, tem-

    se um outro momento dessa disciplina. Segundo Lima, aps um perodo de

    ostracismo na Idade Mdia, durante o qual a Igreja tomou para si tudo que

    era referente Retrica para impedir o fortalecimento do discurso de seus

    opositores, foram efetivamente as ideias renascentistas e cientificistas dos

    sculos posteriores que contriburam fortemente para o descrdito dessa

    disciplina. Passando a ser vista, ento, somente como sinnimo de engodo

    ou como tcnica de embelezamento do texto por meio de uma lista de

    figuras de expresso do discurso , a Retrica caiu no esquecimento e at

    mesmo sofreu preconceito. A disciplina foi esvaziada, uma vez que seu

    objetivo inicial, a argumentao, foi colocado de lado.

    Depois do longo perodo de desconfiana em relao aos estudos

    retricos, apenas nos anos 1960 o interesse pela argumentao ressurgiu.

    Conforme aponta Lima, aps o auge da lgica formal,

    vem o que Plantin denomina de perodo das cincias humanas (lgico-lingustico), momento em que a argumentao foi estuda-da em outra perspectiva e que compreendeu o perodo de 1960 a 1990, momento marcado por obras como as de Perelman, Ducrot, Toulmin e Grize.24

    Especialmente Perelman, junto a Olbrechts-Tyteca, marcaram a

    retomada dos estudos da argumentao, com sua obra Tratado da argu-

    mentao: a nova retrica. Essa obra foi lanada em 1958, mas estudada

    somente a partir da dcada de 1980, devido certa desconfiana ainda

    reinante em relao aos estudos retricos e ao surgimento, na AD, de abor-

    dagens argumentativas como as de Patrick Charaudeau e Christian Plantin.

    A partir das heranas aristotlicas, os autores pretendiam apresentar 24 LIMA. Na tessitura do processo penal: a argumentao no tribunal do jri, p. 98.

    efetivamente uma Nova Retrica, ao se voltarem para as estratgias do

    discurso visando persuaso [...], desejando verificar quais seriam os

    elementos responsveis por gerar um efeito sobre o auditrio.25 Apesar

    de tal empreitada positiva, Perelman e Olbrechts-Tyteca, assim como

    Aristteles e outros pesquisadores das dcadas de 1960, 1970 e 1980,

    concentraram-se em uma viso argumentativa do logos, desprezando,

    muitas vezes, aspectos referentes ordem do sujeito, da emoo e do

    contexto nos discursos persuasivos.

    Tambm Oswald Ducrot, em sua Teoria da argumentao na lngua,

    na dcada de 1980, refunda os estudos argumentativos ao voltar-se, de

    forma indita, para a argumentatividade dos enunciados (e no para o

    carter social da argumentao, como faz a Retrica). Junto a ele, po-

    deramos destacar uma srie de outros pesquisadores da poca, cada

    qual com sua contribuio, como colaboradores da retomada dos estudos

    argumentativos, o que no nos interessa por ora.

    Todavia, foi mesmo nos anos 1990 que os estudos da argumentao

    retomaram sua efetiva fora, seja graas (re)descoberta da safra dos

    trabalhos de 1960 a 1980, seja graas s novas ideias de pesquisadores da

    rea de linguagens, especialmente da AD de linha francesa em sua segunda

    gerao destacando-se, por exemplo, Christian Plantin, Ruth Amossy e

    Patrick Charaudeau. Tais analistas do discurso, aliados a contribuies da

    Pragmtica, da Lingustica Textual e de outras reas afins, tiveram seus

    mritos na retomada dos estudos retricos especialmente por revaloriza-

    rem as influncias decisivas das emoes e da construo de imagens, at

    ento postas em segundo plano, no jogo da argumentao. Apesar de mais

    adiante nos valermos de algumas das contribuies desses pesquisadores,

    por ora nos limitamos a apontar o inegvel a partir deles: os estudos da

    argumentao tm crescido em importncia, pois reencontram a Retrica

    em sua faceta de arte da persuaso e so cada vez mais plurais.

    A argumentao continua a interessar e mesmo a seduzir um nmero cada vez maior de pesquisadores [e] a diversidade de abordagens, na verdade, no se restringe a formas especficas de tratamento de objetos nem s diferentes reas de estudo,

    25 LIMA. Na tessitura do processo penal: a argumentao no tribunal do jri, p. 101.

  • 24 Representaes do feminino no cinema brasileiro Ecos de passionalidade e herana materna 25

    ela se refere, sobretudo, a diferentes modos de tratamento da argumentao.26

    Passemos, ento, a nos deter em nosso foco: vejamos com ethos

    e pathos so entendidos em algumas de suas especificidades, desde a

    Retrica Clssica at os estudos da AD contempornea.

    A construo das imagens de si e do outro: um breve olhar sobre ethos e suas releituras

    Eu sou o que desejo ser, sendo efetivamente o que digo que sou.

    Barthes

    Para a retrica aristotlica, o ethos refere-se ao carter do orador, ao

    comportamento/postura que ele deve assumir para inspirar confiana no

    auditrio.

    [O ethos] adquire em Aristteles um duplo sentido: por um lado, designa as virtudes morais que garantem credibilidade ao orador, tais quais a prudncia, a virtude e a benevolncia; por outro, com-porta uma dimenso social, na medida em que o orador convence ao se exprimir de modo apropriado a seu carter e a seu tipo social.27

    Vale ressaltar que, sob essa viso grega, trata-se da imagem de

    si que o orador produz em sua fala, e no de sua pessoa real, de carne e

    osso, podendo o ethos ser considerado como uma prova discursiva. Alm

    disso, na viso de Aristteles, assim como na de outros filsofos anteriores

    e posteriores a ele, o ethos consiste na mais eficaz das provas: as pessoas

    de bem inspiram confiana mais eficazmente e mais rapidamente em todos

    os assuntos [...]; o carter moral deste constitui, por assim dizer, a prova

    determinante por excelncia.28

    Se para os gregos, baseados em Aristteles, o ethos seria construdo

    discursivamente, j para os latinos, baseados mais em Iscrates, haveria

    um ethos prvio ao discurso, como um dado preexistente fundado na au-

    toridade individual e institucional do orador sua reputao, seu estatuto

    social, sua posio na hierarquia de bens econmicos e morais , o que 26 LIMA. Na tessitura do processo penal: a argumentao no tribunal do jri, p. 113.27 CHARAUDEAU; MAINGUENEAU. Dicionrio de anlise do discurso, p. 220.28 ARISTTELES citado por LIMA. Na tessitura do processo penal: a argumentao no tribunal do jri, p.

    144.

    faria com que o auditrio formulasse conceitos sobre aquele que fala no

    s por sua enunciao, mas por sua interao e insero social.

    A partir de gregos e latinos, duas heranas podem ser percebidas

    nos muitos estudos posteriores sobre o ethos: uma, defensora de que a

    construo da imagem de si s existiria no e pelo discurso; outra, mais

    equilibrada, defensora de dois tipos de ethos, o prvio e o discursivo. Neste

    trabalho, por uma opo terico-metodolgica, adotaremos o segundo

    ponto de vista, filiando-nos a pesquisadores como Patrick Charaudeau,

    Ruth Amossy e Helcira Lima. So essas vises especficas da AD que, neste

    momento, nos interessaro.29

    Para Charaudeau, por exemplo, para quem o ethos estaria re-

    lacionado ao cruzamento de olhares: olhar do outro sobre aquele que

    fala, olhar daquele que fala sobre a maneira que ele pensa que o outro o

    v,30 tal prova retrica referiria-se tanto ao locutor quanto ao enunciador,

    compondo-se de uma instncia pr-discursiva e de outra propriamente

    discursiva. Dessa maneira, o sentido que veiculam nossas falas depende

    ao mesmo tempo do que somos e do que dizemos. O ethos resulta dessa

    dupla identidade, a qual acaba por se fundir em apenas uma.31

    Tambm Ruth Amossy corrobora essa opinio, uma vez que acredita

    que a construo da imagem do sujeito d-se tanto por meio de traos

    lingusticos quanto pelos situacionais, o que faz com que se fundam iden-

    tidades discursivas e sociais: Parece, portanto, que a eficcia da palavra

    no nem puramente exterior (institucional) nem puramente interna

    29 Julgamos importante, neste trabalho, inserir um breve comentrio acerca da releitura sociolgica de Pierre Bourdieu sobre a questo da construo de imagens, apesar deste no se filiar ao ponto de vista que adotamos. Bourdieu, segundo Amossy (2005, p. 26), props uma reinterpretao da noo de ethos a partir do conceito de habitus, o conjunto de disposies durveis adquiridas pelo indivduos durante o processo de socializao. Nesse sentido, poderamos pensar que a construo de imagens no discurso estaria ligada a um conjunto de princpios interiorizados que guiariam nossa conduta de forma inconsciente. De alguma maneira, portanto, as ideias de Bourdieu se filiariam somente tradio romana do ethos prvio, j que entrariam em jogo, na concepo da imagem de si construda pelo orador, dados relativos ao papel social e institucional deste. Em nossa viso, porm, no h como se restringir somente s imagens prvias do orador, uma vez que, dessa maneira, estaramos sempre condicionados a v-lo do mesmo modo, o que faria com que a anlise da argumentao fosse desnecessria. Posteriormente, entretanto, algumas contribuies de Bourdieu especialmente de sua obra A dominao masculina sero importantes em nossa anlise e, ento, o retomaremos.

    30 CHARAUDEAU citado por LIMA. Na tessitura do processo penal: a argumentao no tribunal do jri, p. 146.

    31 CHARAUDEAU citado por LIMA. Na tessitura do processo penal: a argumentao no tribunal do jri, p. 147.

  • 26 Representaes do feminino no cinema brasileiro Ecos de passionalidade e herana materna 27

    (linguageira).32 A autora tambm nos conduz a uma certeza inabalvel

    dos estudos contemporneos sobre o ethos: Todo ato de tomar a palavra

    implica a construo de uma imagem de si,33 ou seja, deliberadamente

    ou no, a todo instante, nos deparamos com essa necessidade discursiva.

    As contribuies de Amossy vo alm no momento em que ela

    aponta o conceito de esteretipo como determinante para a construo do

    ethos de quem fala. Dessa maneira, a estereotipagem, como operao que

    consiste em pensar o real por meio de uma representao cultural preexis-

    tente, um esquema coletivo cristalizado,34 no pode ser entendida somente

    como uma prtica negativa do pronto-para-pensar, que encarnaria uma

    das formas da doxa35 e da naturalizao dos pressupostos ideolgicos.

    Ao contrrio disso, para a autora, o locutor no pode se comunicar com

    os seus alocutrios, e agir sobre eles, sem se apoiar em esteretipos,

    representaes coletivas familiares e crenas partilhadas.36 Assim sendo,

    para que a ideia prvia que se faz do locutor e a imagem que ele constri

    de si em seu discurso paream legtimas, preciso que elas pertenam a

    essas representaes partilhadas por uma dada comunidade sociocultural.

    A partir disso, os esteretipos poderiam nos levar a pensar em um ethos

    coletivo, segundo a releitura de Charaudeau por Lima, conforme o qual se

    teriam, por exemplo, homens como indivduos mais racionais e srios, e

    mulheres como pessoas mais passionais e emotivas. 37 Entende-se, por-

    tanto, que a estereotipia, ao mesmo tempo em que proporcionaria maior

    facilidade na leitura de uma sociedade, tambm poderia ser prejudicial

    devido a seu carter taxativo e generalizante.

    Helcira Lima, pesquisadora brasileira que tambm tem dado privi-

    lgio aos estudos sobre a argumentao, apresenta-nos importante con-

    tribuio para elucidarmos certa escolha metodolgica de nosso trabalho.

    Como pde ser visto at aqui, mencionamos, a todo tempo, nossa inteno

    32 AMOSSY. Imagens de si no discurso: a construo do ethos, p. 136.33 AMOSSY. Imagens de si no discurso: a construo do ethos, p. 9.34 AMOSSY. Imagens de si no discurso: a construo do ethos, p. 125.35 Doxa um conceito grego, originalmente referente crena comum, opinio popular, bastante

    utilizado e ampliado pelas cincias humanas modernas. Para Plato, a doxa se opunha ao saber verdadeiro, ao conhecimento, o que acabou por associar o termo, historicamente, a representaes, em certa medida, desvalorizadas, como veremos neste artigo.

    36 CHARAUDEAU; MAINGUENEAU. Dicionrio de anlise do discurso, p. 216.37 LIMA. Na tessitura do processo penal: a argumentao no tribunal do jri, p. 148.

    de investigar a construo das imagens (e no os eth) da matriarca

    de LavourArcaica por Andr, assim como a construo das imagens do

    protagonista por ele prprio. Isso s possvel porque entendemos que

    a opo fiel pelo termo ethos restringiria nossa anlise investigao da

    construo de imagens de si (ou seja, de Andr por ele mesmo) no dis-

    curso, tal como a tradio retrica apregoava. De maneira mais ampla, a

    opo pela anlise da construo de imagens de si e do outro, adotada

    por Lima em sua tese de doutorado Na tessitura do processo penal: a

    argumentao no tribunal do jri, torna-nos possvel observar como se

    d a presena do outro no discurso do enunciador.38

    Em sua tese, Lima prope que a argumentao, caracterstica ine-

    rente de qualquer discurso, seria constituda de trs dimenses que se

    interpenetram, mas que possuem tambm vida independente: a dimenso

    da construo das imagens, a dimenso patmica e a dimenso demons-

    trativa fundadas e relidas a partir da trade retrica ethos, pathos e

    logos. Voltando-nos especificamente primeira delas, Lima prope que

    A dimenso da construo de imagens (de si e do outro), por sua vez, relaciona-se idia do ethos retrico, embora no se restrinja construo da imagem de si no discurso. O outro e a imagem que se constri acerca dele no se faz presente apenas como um destinatrio ideal, mas, tambm, e, sobretudo, como um sujeito construdo no discurso pelo enunciador. Atravs dessa construo o enunciador pode melhor erigir sua prpria imagem e melhor persuadir seu auditrio.39

    A partir dessa colocao, Helcira Lima nos refora no s a ideia da

    argumentao como algo que pressupe a adeso intelectual de algum

    que se mobiliza para uma determinada ao,40 mas tambm sinaliza a

    importncia de se pensar de maneira dialgica na construo de imagens.

    Dessa maneira, entendemos, portanto, que a construo da imagem do

    outro no discurso do enunciador de fundamental importncia para que

    38 Outros linguistas importantes, como Michel Pcheux e Kerbrat-Orecchioni, tambm abordam a construo da imagem do outro no discurso, entendendo-a como um processo simultneo ao da construo da imagem de si. Por motivos de extenso, todavia, no os analisaremos neste trabalho.

    39 LIMA. Na tessitura do processo penal: a argumentao no tribunal do jri, p. 118.40 LIMA. Na tessitura do processo penal: a argumentao no tribunal do jri, p. 118. A propsito de

    tal conceito de argumentao, lembremo-nos da expresso palavra poltica, usada por Patrick Charaudeau (2006, p. 16), como componente de um ato de linguagem escrito em um quadro de ao, em uma praxiologia do agir sobre o outro.

  • 28 Representaes do feminino no cinema brasileiro Ecos de passionalidade e herana materna 29

    compreendamos mais a fundo algumas nuances decisivas da construo

    da imagem de si mesmo que o que pretenderemos confirmar mais

    adiante, ao analisarmos o discurso de Andr sobre sua me.

    Sigamos, agora, para uma breve releitura de algumas noes sobre

    o papel das emoes na argumentao, partindo do pathos aristotlico e

    chegando a alguns estudos contemporneos da AD.

    Do pathos aristotlico mobilizao das emoes pelo discurso

    [...] no se pode desconsiderar que a emergncia da subjetividade

    no discurso , em ltima anlise, uma forma de colocar a emoo em

    ao atravs da atividade da linguagem.

    Hugo Mari e Paulo Henrique A. Mendes

    Desde os gregos, o pathos, sendo considerado a prova do discurso rela-

    cionada s disposies persuasivas dos ouvintes e inspirao de suas

    paixes para o convencimento, entendido como parte fundamental do

    processo de argumentao. Segundo Charaudeau, na obra de Aristteles,

    persuadir um auditrio consiste em produzir nele sentimentos que o pre-

    dispe a partilhar o ponto de vista do orador.41

    Tambm outra viso das emoes persistiu (e ainda parece persistir)

    durante os sculos, a partir dos princpios retricos gregos e latinos: a de

    que os afetos, embora parte da natureza humana, devem ser controla-

    dos, uma vez que a sensatez do homem est vinculada conteno das

    paixes estas vistas como sinnimo de fraqueza e de instabilidade e

    sobreposio do logos, da racionalidade. Tal premissa, por conferir des-

    crdito ao pathos, prejudicou por um bom tempo os estudos das emoes

    na argumentao. Segundo Lima, a prpria tendncia mais racionalista

    das principais correntes do advento da Lingustica Moderna (como o es-

    truturalismo, o transformacionalismo e o funcionalismo) comprovaria tal

    descrdito persistente das emoes dentro dos estudos da linguagem.

    Como j sugerimos, foi somente na dcada de 1990 que os es-

    tudos da AD, aliados aos de outras reas afins, revalorizaram efetiva-

    mente os princpios retricos e comearam a desenvolver pesquisas que 41 CHARAUDEAU citado por MACHADO et al. As emoes no discurso, p. 242.

    privilegiavam o ethos e o pathos, o que fez com que se investigasse mais

    a fundo a relao, at ento marginalizada, entre emoo e linguagem.

    bvio que tais pesquisas da AD no prescindiram das inmeras e valiosas

    contribuies sobre a emoo fornecidas por reas como a Sociologia, a

    Histria e at mesmo a Biologia; entretanto, por motivos de extenso,

    neste artigo, optaremos por fazer um brevssimo recorte do entendimento

    da patemizao especificamente por alguns analistas do discurso, como

    Patrick Charaudeau, Ruth Amossy e Helcira Lima.42

    Para Helcira Lima j mencionada anteriormente em sua proposta

    sobre as trs dimenses da argumentao , a instncia patmica da

    argumentao diz respeito mobilizao das emoes dos sujeitos com

    fins persuasivos. Essas emoes seriam, nesse sentido, movidas por uma

    vise, por um objetivo o que as vincularia a uma perspectiva, de certa

    maneira, racional.

    Tal pesquisadora compartilha, em certa medida, das ideias de

    Charaudeau em Les emotions dans les interactions,43 para quem as emo-

    es se originam de uma racionalidade subjetiva porque emanam de um

    sujeito do qual se supe ser fundado de intencionalidade.44 Dessa manei-

    ra, elas teriam certa base cognitiva que ultrapassaria o nvel da pura sen-

    sao e se orientariam para um outro objeto ou um outro sujeito. Todavia,

    para Charaudeau, o fato de as emoes se filiarem a certa racionalidade/

    intencionalidade no o suficiente para analis-las satisfatoriamente. Para

    o autor, as emoes tambm estariam ligadas a um sistema de valores

    prprio do sujeito, aos seus saberes de crenas, assim como tambm

    seriam inscritas numa problemtica de representao psicossocial.45

    42 vlido tambm mencionarmos que optamos por no participar das discusses de outras reas do saber a respeito da nomenclatura adequada a este assunto. Nesse sentido, sentimento, emoo, paixo, afetos, dentre outros termos, quando usados, o sero indistintamente. Procuraremos, entretanto, na linha de Charaudeau e Lima, privilegiar o uso de pathos, patheme ou patemizao, a fim de nos aproximarmos com mais fidelidade das razes retricas e de uma anlise propriamente discursiva.

    43 CHARAUDEAU citado por MACHADO et al. As emoes no discurso, p. 274-275.44 Tambm Ruth Amossy (citada por MACHADO et al., 2007, p. 67) filia-se a essa viso peculiar das

    emoes. Para a autora, o pensamento seria passional e a racionalidade seria necessariamente afetiva, falando-se, assim, na existncia da razo das emoes.

    45 Melliandro Galinari, em seu artigo As emoes no processo argumentativo (MACHADO et al., 2007, p. 231), prope, a respeito dos saberes socioculturais, certa relao entre a doxa que ser mencionada em nossa anlise posterior e as emoes, mencionando que a amplitude dos elementos dxicos poderia ser caracterizada como informaes lingustico-discursivas da ordem do pathos. Adiante,

  • 30 Representaes do feminino no cinema brasileiro Ecos de passionalidade e herana materna 31

    Nesse sentido, no s as representaes do sujeito sobre si mesmo e o

    mundo seriam determinantes para sua relao com as emoes, como

    haveria representaes sociais consideradas patmicas ou seja, haveria

    comportamentos e reaes emocionais razoavelmente previsveis em

    cada comunidade cultural.

    Charaudeau, por fim, tambm nos chama a ateno para as pos-

    sibilidades e restries dos estudos da AD acerca das emoes. As ferra-

    mentas dessa disciplina no nos possibilitariam verificar, por exemplo, as

    emoes efetivamente produzidas ou sentidas nos sujeitos, mas somente

    as possveis emoes a serem suscitadas por meio do discurso e seus

    provveis efeitos sobre os indivduos:

    A anlise do discurso no pode se interessar pela emoo enquanto realidade psicofisiolgica experimentada por um sujeito, por no dispor de procedimentos metodolgicos para isso. Por outro lado, ela pode tentar estudar o processo discursivo pelo qual a emoo pode ser encenada enunciativamente, buscando analis-la na dimenso das estratgias utilizadas em uma determinada situao de intera-o verbal, em funo de um efeito de sentido visado, sem jamais ter garantia sobre o efeito de sentido produzido efetivamente.46

    Representaes de passionalidade: imagem do filho, a me

    Que culpa temos ns dessa planta da infncia, de sua seduo,

    seu vio e constncia? Que culpa temos ns se fomos duramente

    atingidos pelo vrus fatal dos afagos desmedidos?

    Raduan Nassar

    A epgrafe anterior, trecho de uma fala de Andr no livro Lavoura Arcaica,47

    fornece-nos um interessante ponto de partida para efetivarmos algumas

    linhas de anlise sobre o filme homnimo. Ser justamente a partir da

    relao de afagos desmedidos estabelecida entre o protagonista e sua

    me que verificaremos algumas imagens construdas por Andr para ela e

    para si mesmo em seu discurso, assim com as possveis emoes a serem

    tambm nos referiremos a outras teses relevantes de Galinari, como a que funde ethos e pathos.46 CHARAUDEAU citado por MACHADO et al. As emoes no discurso, p. 274.47 A ttulo de curiosidade, importante se destacar que tal trecho uma recriao intertextual de Nassar

    a partir de versos do poeta Jorge de Lima (ver SEDLMAYER, 1997).

    suscitadas pela fala do filho prdigo.

    Antes de tudo, interessante observarmos quem essa voz que fala

    como Andr em LavourArcaica. Segundo Sabrina Sedlmayer,48 o protago-

    nista Andr, no longa-metragem, recebe voz por meio de dois mecanismos

    principais: ora o prprio personagem (representado pelo ator Selton

    Mello) que fala diretamente, por exemplo, em seu tenso dilogo com o

    irmo ou com o pai, ora temos uma voz em off na pelcula, executada

    pelo diretor Luiz Fernando Carvalho, mas representando o prprio Andr-

    narrador. Todavia, ambas as vozes, em nossa anlise, sero entendidas,

    por motivos metodolgicos, como provenientes de um mesmo discurso:

    o do enunciador Andr, jovem imerso na angstia e no conflito, contador

    de sua prpria histria e de sua relao de ruptura e filiao com sua fa-

    mlia. Dessa maneira, seja por dilogos ou pela narrao em si mesma,49

    a voz de Andr que reger a construo da diegese frente aos olhos do

    espectador, assim como boa parte das percepes e emoes deste. Sendo

    assim, o pblico tem acesso, na maior parte do filme, quase que somente

    (precria) verdade de Andr, pois o que predomina sua verso dos

    fatos, a sua necessidade de se justificar/revelar como o filho prdigo e

    incompreendido, as imagens construdas por ele e suas percepes afetivas

    dos acontecimentos.50

    Tal condio essencial para entendermos o discurso claramente

    argumentativo de Andr, em sua difcil defesa de si mesmo e de seus ideais

    de ruptura e insatisfao, o que contaminar sobremaneira as represen-

    taes femininas nas quais, de alguma maneira, procuraremos mostrar

    que ele se enquadra construdas pelo protagonista durante o longa-

    -metragem. Seguindo preceitos bsicos da AD, no acreditamos, entretan-

    to, que o sujeito Andr seja completamente dono de suas construes e

    representaes; pelo contrrio, como veremos a seguir, ele reverbera em 48 SEDLMAYER. Para alm das imagens tempo: LavourArcaica.49 Julgamos vlido pontuar que este recurso da narrao em off parece fornecer a impresso de que

    quem narra um enunciador externo diegese, que comanda a apresentao e o foco dado aos fatos olhando de fora. Isso acaba por no s reforar o discurso de verdade, quase onisciente do narrador Andr, como tambm por intensificar a tenso e o distanciamento que envolvem essa locuo, especialmente.

    50 claro que no se desconsidera, nesta anlise, o peso do discurso da tradio e da ordem, oposto ao de Andr e representado principalmente pelo irmo mais velho Pedro e pelo pai, Yohana. Todavia, pretendemos mostrar que, quantitativa e qualitativamente, a voz de Andr, por meio de seu discurso extremamente patmico, que predominar aos olhos do espectador.

  • 32 Representaes do feminino no cinema brasileiro Ecos de passionalidade e herana materna 33

    sua fala inmeros imaginrios sociodiscursivos51 acerca da mulher e do

    feminino presentes em nossa sociedade (muitas vezes ligados a estereti-

    pos), uma vez que, mesmo inserido em referncias espaotemporais pouco

    precisas,52 o personagem, como qualquer indivduo, espelha a cultura e o

    pensamento social e familiar em que est inserido. Assim, nos filiamos s

    ideias de Charaudeau, segundo as quais a construo do discurso e dos

    eth no se d de forma totalmente consciente ou voluntria, j que

    o indivduo transparece, em sua fala, os imaginrios sociodiscursivos de

    que compartilha e possui, portanto, um discurso simultaneamente livre

    e assujeitado.

    Sigamos, portanto, para a anlise de algumas cenas do filme, a

    fim de abordarmos o primeiro grande grupo de imagens construdas por

    Andr, baseadas em representaes sociais relativas ao feminino bastan-

    te caras ao senso comum. Logo no incio do longa, aps vermos Andr

    receber a visita de seu irmo Pedro no quarto de penso em que aquele

    se refugiava, temos acesso, simultaneamente, a uma srie de flashes de

    momentos da infncia e juventude do protagonista nas terras da famlia.

    Uma das primeiras recordaes que o narrador-Andr nos apresenta a

    respeito da configurao da mesa das refeies do cl:

    Eram esses nossos lugares mesa na hora das refeies ou na hora dos sermes: o pai cabeceira; sua direita, por ordem de idade, vinha primeiro Pedro, seguido de Rosa, Zuleika e Huda. sua esquerda, vinha a me. Em seguida eu, Ana e Lula, o caula. O galho da direita era um desenvolvimento espontneo do tronco desde as suas razes. J o da esquerda trazia o estigma de uma cicatriz, como se a me, por onde comeava o segundo galho, fosse uma anomalia, uma protuberncia mrbida, pela carga de afeto.53

    Esta cena d-se em meio penumbra, em uma grande sala clare-

    ada somente por um candeeiro tremulante que se situa em frente ao pai,

    51 CHARAUDEAU citado por LIMA (2006, p. 141) prope que os imaginrios sociodiscursivos se referem ao conjunto de representaes discursivas de um sujeito inscrito em uma coletividade, as quais se ligam s crenas e ao conhecimento e, consequentemente, capacidade de ele avaliar o mundo ao seu redor.

    52 Segundo Sedlmayer (1997), a ausncia de referncias explcitas de tempo e lugar nos quais se desenrolaria a diegese (consegue-se inferir, somente, que o cl uma famlia de origem libanesa radicada em alguma zona rural brasileira, em meados do sculo XX) acabaria por dar lugar, em LavourArcaica, supervalorizao dos afetos dos personagens, como poder ser percebido em nossa anlise.

    53 LAVOURARCAICA, 2001.

    iluminando-o como a algum digno de nota e respeito.54 Tal descrio feita

    por Andr ser de fundamental importncia para entendermos a ligao

    entre ele e sua me: desde pequeno, Andr situava-se no galho esquerdo

    da mesa, ao lado esquerdo do pai. Essa posio de gauche, iniciada pela

    me e passada ao filho, assumir, durante todo o filme, de acordo com as

    palavras de verdade do pai das quais Andr discordava veementemente

    , um carter negativo e prejudicial. O lado esquerdo, que trazia o estigma

    de uma cicatriz, de uma anomalia, de uma protuberncia mrbida,

    assim o era graas carga de afeto, passionalidade que o distinguia. A

    matriarca daquela famlia ao contrrio do pai, Yohana, que era a repre-

    sentao clara e rgida da ordem e da austeridade, traos culturalmente

    atribudos ao masculino era marcada pelo transbordamento de afeto,

    pela emoo, traos to desvalorizados pelos ideais do cl. E mais: ela,

    como o comeo daquele galho esquerdo, tinha maculado tambm todo o

    restante dos integrantes simbolicamente pertencentes a ele: o protago-

    nista Andr, transbordante de passionalidade como a me, assim como a

    irm Ana e o caula Lula, todos marcados pela ndoa do afeto. O lado

    esquerdo, como se ver no filme, ser o distinto pela transgresso, de uma

    forma ou outra, ordem do pai; segundo Sabrina Sedlmayer, este lado

    que marca a procura por uma pre version, uma outra verso da palavra

    paterna.55 O galho esquerdo, suscetvel s paixes, ao desequilbrio e

    ruptura oriundos da me, representaria as trevas, a perdio, enquanto o

    direito, em seu controle e racionalidade, seria a luz,56 segundo o prprio

    discurso do patriarca Yohana:

    54 A esse respeito, ver Aumont (2002), que pontua a dimenso simblica das imagens-luz, as quais possuem uma fonte localizvel e apresentam-se sobre uma superfcie, de forma mais ou menos fugidia.

    55 SEDLMAYER. Ao lado esquerdo do pai, p. 46.56 Esta oposio metafrica trevas/luz possvel de ser percebida em vrios traos do longa, at mesmo

    em sua fotografia. Momentos em que Andr est imerso na penumbra ou cenas de tons amarronzados parecem refletir o conflito interno do personagem, marcado pela passionalidade e pelo desejo (veja- -se, por exemplo, a prpria escurido do quarto de penso). J momentos de claridade, como muitas das cenas da fazenda ou da infncia do protagonista, refletem a submisso dos personagens ordem paterna, clareza das ideias e dos sentimentos que o pai pretendia instaurar. O prprio irmo Pedro, quando chega ao quarto escuro de penso em que estava Andr, questiona-o, marcando sua filiao ao discurso do pai, ao discurso da luz: Por que as venezianas esto fechadas?, pouco antes de abri-las e deixar o quarto ser invadido pela claridade. A oposio claro/escuro pode ser percebida at mesmo por meio da trilha sonora do filme, que contrasta fundos musicais angustiantes e conflituosos, como os de Bach, com melodias leves e unssonas.

  • 34 Representaes do feminino no cinema brasileiro Ecos de passionalidade e herana materna 35

    O mundo das paixes o mundo dos desequilbrios: preciso impedir que as trevas de um lado invadam e contaminem a luz do outro. [...] A pacincia a virtude das virtudes: no sbio quem se desespera, nem sensato quem no se submete.57

    Essa cena da mesa de refeies nos leva a certos imaginrios so-

    ciais e discursivos bastante comuns acerca do feminino. Segundo Pierre

    Bourdieu, em sua obra A dominao masculina, haveria se constitudo

    durante os sculos, nas mais diversas sociedades, uma naturalizao

    das oposies entre homem e mulher, como se uma diviso arbitrria e

    sexualizante do mundo regesse o que deveria ser prprio do masculino,

    do dominante, e do lado rigidamente contrrio, o que deveria ser caro ao

    feminino, ao dominado:

    Arbitrria em estado isolado, a diviso das coisas e das atividades (sexuais e outras) segundo a oposio entre o masculino e o femi-nino recebe sua necessidade objetiva e subjetiva de sua insero em um sistema de oposies homlogas, alto/baixo, em cima/embaixo, na frente/atrs, direita/esquerda, reto/curvo (e falso), seco/mido, duro/mole, temperado/insosso, claro/escuro, fora (pblico)/dentro (privado) etc.58

    Dessa maneira, segundo o socilogo, esses esquemas de pen-

    samento, de aplicao universal, registrariam como que diferenas da

    natureza que estariam inscritas na ordem das coisas, sendo natura-

    lizadas socialmente na doxa. A famlia, inclusive (instituio social em

    foco em LavourArcaica), teria papel fundamental na naturalizao desses

    esquemas, criando como diferentes, desde cedo, meninos e meninas, e

    ensinando-lhes uma lgica de mundo oposta, na qual as mulheres acaba-

    riam, de forma ou outra, relegadas a um papel inferior e submisso frente

    ao homem apesar de estas acabarem por enquadrar-se na mentalidade

    de naturalizao dos dominadores e no se aperceberem dominadas.

    Sob esse ponto de vista, conforme Bourdieu, s mulheres seria re-

    servado o esquerdo (a visto em sua poro pejorativa, gauche, transviada,

    ruptora, desequilibrada) e aos homens, o direito, como o lado do certo e da

    ordem. As mulheres seriam marcadas pela passionalidade, pelo transborda-

    mento dos afetos (e, por isso, pela fraqueza), pela sensualidade, enquanto

    57 LAVOURARCAICA, 2001.58 BOURDIEU. A dominao masculina, p. 16. (Grifos nossos)

    os homens seriam afeitos racionalidade, austeridade, conteno de-

    vida e necessria das emoes.59 s mulheres, seria concedido o torto, o

    incerto, o desviado; aos homens, o reto, o certo, a verdade. s mulheres,

    a obscuridade e a confuso; aos homens, a clareza e o equilbrio. Ao polo

    feminino, o podre, o excesso, o complexo, o dionsico; ao polo masculino,

    o saudvel, o comedimento, o simples, o apolneo. Aos homens, o mundo

    pblico, o poder, o externo, a voz; s mulheres, a vergonha, a recluso,

    o ambiente domstico, o interno, o silenciamento. mulher feiticeira e

    enigmtica, a perdio, o desejo e as pulses sexuais;60 mulher dominada,

    a submisso, a servido e a passividade.

    especificamente nesse esquema de oposies homlogas que

    se insere a viso sobre o galho esquerdo que vimos h pouco. O lado

    materno ser marcado, no longa, por grande parte dos traos femininos

    descritos acima. Dessa maneira, poderemos encontrar correspondncias

    no s entre Andr e sua me, mas entre Andr e o feminino, de forma

    genrica. Voltemos, agora, a mais algumas cenas de LavourArcaica que

    podem nos ajudar na elucidao de tais caractersticas supostamente

    condenveis do galho esquerdo, oriundo do feminino.

    Ainda em meio grande sequncia de cenas que marcam a che-

    gada de Pedro ao quarto de penso em que estava Andr, destaca-se

    uma lembrana do narrador-protagonista sobre o momento em que a

    me o acordava, quando era menino. Este flash da infncia vem para

    ilustrar uma resposta de Andr a seu irmo Pedro: A desunio da famlia

    comeou bem antes do que voc imagina, meu irmo. Nesse instante,

    temos conhecimento de como se dera a ligao entre Andr e sua me na

    infncia, possibilitada pelo vrus fatal dos afagos desmedidos, fato que,

    59 A esse respeito, Lima nos aponta uma considerao interessante: [...] como as mulheres representariam, de acordo com algumas correntes filosficas e para nossa sociedade conservadora, seres humanos menores e por isso mesmo mais susceptveis a aes irracionais, elas seriam o lado humano ideal para a manifestao de toda espcie de emoes. Nesse sentido, apenas o homem fraco se sujeitaria s emoes e essa fraqueza parece no estar relacionada a questes psicolgicas e neurofisiolgicas, mas, sobretudo, a questes sociais e culturais, a valores e crenas compartilhados por uma comunidade. O sujeito considerado emotivo est longe de ser considerado dos mais equilibrados. Assim, a ideia de que a emoo no provada em estados de tranquilidade est presente nessas concepes do senso comum. (LIMA. Na tessitura do processo penal: a argumentao no tribunal do jri, p. 126).

    60 A respeito desse imaginrio de sensualidade, enigma, desejo e perdio secularmente associado mulher, ver artigo de FERREIRA, A outra arte das soldadeiras.

  • 36 Representaes do feminino no cinema brasileiro Ecos de passionalidade e herana materna 37

    segundo Andr, teria sido o incio da desunio da famlia, da runa do cl,

    de sua discordncia pessoal da lei paterna. Nessa cena, a matriarca vai

    at a cama de Andr menino e, de forma transbordante de afeto, acorda-

    o, deslizando suas mos sobre o pequeno corpo do filho, enquanto canta

    versos em libans. As mos da me, neste instante, focalizadas em cut

    up (close em detalhe) para favorecer os efeitos pulsionais sobre o espec-

    tador, assim como em outras cenas do filme, conseguem simbolizar com

    exatido o afeto transmitido ao filho, a mcula das paixes daqueles

    que pertencem ao lado esquerdo.61 Essas mos, de certa forma sensuais

    pois sugerem um deslizar quase sexual pelo corpo do filho, como se ali

    estivesse sendo passado a ele o desejo to rechaado pela fria ordem do

    pai , so acompanhadas pelas doces palavras Acorda, corao e Meu

    corao, meus olhos, meu cordeiro, dirigidas ao menino. Todavia, Maciel

    (2008) faz importante considerao acerca desta cena: apesar de sugerir

    toda a passionalidade e quebra da ordem verificada na figura da me,

    o toque das mos da matriarca tambm d indcios de sua conteno, de

    seu controle e, de certa forma, de sua submisso ordem paterna; afinal,

    a palavra paterna, a palavra masculina do poder, apregoa que as emoes

    devem ser controladas, assim como o toque e o afeto passado aos filhos.

    essa atitude tambm chega a reprimir [...]. Nesse momento, a cmera lentamente acompanha em detalhe as mos da me, que percorrem todo o corpo de Andr e, ao mesmo tempo, segurando as mos do menino, a me o controla. A partir dessa cena, pode- -se dizer que a me constri a imagem de si como sensual, mas controlada, aquela que exprime o toque vedado pela lei paterna e, por outro lado, tambm reprime o mesmo toque que incentivou. Na cena, o filho ri cada vez mais alto, dando gargalhadas e, ento, a me tampa a boca de Andr, reprimindo sua expresso. [...] No filme, o controle da expresso das emoes de si mesma e dos filhos feito tanto para os momentos ligados sexualidade quanto para qualquer manifestao mais aprofundada de sentimento qualquer. Ela se mostra adequada aos padres da famlia.62

    Neste exato instante, tem-se, no longa, a definitiva prova da ligao entre

    me e filho: suas imagens passariam a ser espelhadas, ao menos pelo

    61 Para efeitos pulsionais produzidos pelo close, o efeito de focalizao, o efeito de vertigem, ver AUMONT, 2002.

    62 MACIEL. LavourArcaica: um olhar sobre a famlia, p. 35.

    olhar de Andr, desde a infncia do protagonista.

    E a culpa que Andr imprime me na transmisso da passiona-

    lidade a ele no se esgota nessa sequncia em que ela acorda o filho. Em

    meio a seu intenso monlogo na capela, aps sentir a recusa da irm Ana

    prtica do incesto, Andr vocifera: Se o pai no seu gesto austero quis

    fazer da casa um templo, a me, transbordando no seu afeto, s conseguiu

    fazer dela uma casa de perdio. Mais uma vez, matriarca e ao feminino

    creditada a runa familiar, dada pela sobreposio dos desejos.63 Tambm

    no momento em que conta a Pedro como pensou em se despedir de sua

    me antes de abandonar a casa, Andr menciona a filiao materna do

    desejo e das paixes:

    Antes de sair, eu poderia ter dito me: Nada mais aconteceu que eu ter sido aninhado na palha do teu tero por nove meses e ter recebido por muitos anos o toque doce da tua mo e da tua boca. por isso que deixo a casa. por isso que parto. [...] Eu e a senhora comeamos a demolir esta casa. [...] Mas tudo que eu pude ouvir, sem que ela dissesse nada, foram as trincas da loua antiga do seu ventre. Ouvi de seus olhos um dilacerado grito de me no parto.64

    Dessa maneira, Andr acaba por construir, para sua me, um ethos

    de passionalidade, de humanidade daquela que no se resguarda do

    desejo , e, consequentemente, a distancia do ethos de austeridade do

    pai. Ao mesmo tempo, coloca-se como herdeiro direto desses eth vistos

    como negativos por Yohana (imagens, como vimos, oriundas do feminino

    na viso dxica de mundo). Assim, o enunciador Andr acaba por filiar

    ambos, sua me e ele mesmo, de alguma maneira, a uma imagem de sub-

    verso da ordem paterna: a me, por meio de seus afagos desmedidos,

    mas ainda discreta e parcialmente submissa, em um ethos de moderao;

    j ele, pela via da radicalidade, de maneira mais corajosa e ruptora, pela

    fuga de casa e pelo embate travado frente a frente com a ordem paterna.

    Todas essas imagens construdas por Andr frente a seu irmo (ou

    indiretamente aos olhos do telespectador), de alguma maneira, visariam

    suscitar representaes patmicas tais como um efeito de compaixo, por 63 Sobre isso, Sedlmayer pondera que a linguagem de Andr seria pontuada pelo idiomaterno, voz de

    me sedutora que conseguiu infundir no filho a iluso de que o desejo podia ser inteiro, sem cortes, pura realizao (SEDLMAYER, 1997, p. 66), ao contrrio do que aconteceria no cotidiano da famlia.

    64 LAVOURARCAICA, 2001.

  • 38 Representaes do feminino no cinema brasileiro Ecos de passionalidade e herana materna 39

    meio da adeso emocional e tambm racional de outrem ao discurso

    do narrador, este vtima de tamanha represso e incompreenso, junto a

    sua me (e graas a ela), do duro jugo de ordem paterno. Dessa forma,

    seria possvel que o interlocutor se sentisse reprimido, interditado como

    Andr, compreendendo seu sofrimento.65 A esse respeito, Mendes e Mendes

    pontuam que, de forma similar ao que acontece no cinema, na Literatura:

    [o] leitor [...] no apenas frequentemente interpelado como narratrio inserido no mundo possvel da obra, mas tambm con-vidado a se colocar no lugar de uma personagem e a sentir uma emoo semelhante que esse personagem esteja vivenciando na narrativa.66

    De acordo com Emlia Mendes, portanto, a ficcionalidade permite

    um percurso de sentido capaz de demonstrar a construo da emoo.67

    Suscitadas tais pathemes, a fraqueza de Andr ao ceder ao apelo das

    paixes (como no caso da relao incestuosa com Ana), assim como sua

    vontade de romper com a ordem paterna e assumir seu lugar mesa da

    famlia seriam, em ltimo caso, justificveis e at plausveis, frente ao

    ouvinte, dadas as condies prprias da criao materna e seus traos

    afetivo-comportamentais. Tal tentativa de mobilizao das emoes do

    interlocutor , a nosso ver, mais notria especificamente na fala seguinte

    de Andr, aps sua conscincia da impossibilidade de lutar contra a rgida

    ordem paterna. como se a interdio imposta queles pertencentes ao

    lado esquerdo, neste momento, fosse patente, e Andr criasse para si um

    ethos de excluso, de interdio: Perteno agora como nunca famlia

    dos enjeitados, dos proibidos, dos sem-afeto, dos sem-sossego, dos in-

    tranquilos, afirma no longa.68

    Todavia, Carolina Assuno e Alves, em seu artigo Efeitos de

    65 A respeito dessa emoo compartilhada, ver Aumont (2002, p. 111), que menciona o conceito de efeito de realidade. Este designaria o efeito como uma reao psicolgica produzido no espectador a partir da ideia de que existiria um catlogo de regras representativas que permitiriam evocar, ao imit-la, a percepo natural.

    66 Simone Santos Mendes e Paulo Henrique A. Mendes citados por Emlia Mendes, no prefcio de MACHADO et al., 2007, p. 16.

    67 MENDES no prefcio de MACHADO et al. As emoes no discurso, p. 16.68 interessante perceber como Andr, mesmo se assumindo na maior parte de seu discurso como

    aquele marcado pelo excesso de afeto materno, apresenta-se, paradoxalmente, como o sem-afeto neste momento de clera frente a Ana. Tal trao no deixa de confirmar o conflito e a intranquilidade que permeiam a construo do personagem.

    patemizao no discurso flmico, nos aponta algo fundamental perti-

    nncia de nossa anlise: a maneira como o pblico responder s possveis

    emoes a serem suscitadas apenas uma hiptese, como j nos afirmava

    Charaudeau, citado nas pginas anteriores.

    Falar de emoes no cinema parece bvio. Trata-se de um dispo-sitivo de comunicao (e arte) que, ao contar histrias, desperta e lida com uma srie de sentimentos do espectador. medida que o filme se revela, o pblico responde das mais diversas maneiras, motivado pelas emoes que lhe so sugeridas. Mas essas emoes no so necessariamente aquelas propostas pela equipe que pro-duziu a obra [...]. A cena que faria com que uma pessoa sentisse medo poderia, inesperadamente, instigar risos em outro algum. Um dilogo dramtico, a representao de uma tragdia, poderia levar s lgrimas ou causar repulsa.69

    Andr tambm se aproxima da figura de sua me por meio de outras

    imagens construdas. O ethos de sofrimento uma delas. Em quase todas

    as cenas que mostram a fase adulta de Andr aps sua partida, sua me,

    assim como o protagonista, so retratados progressivamente como seres

    angustiados e de certa forma reprimidos, como se a matriarca pudesse

    compartilhar das insatisfaes e tristezas de seu filho, marcado tambm

    pela chaga do galho esquerdo.70 No caso da me, tal sofrimento pode

    ser percebido nos inmeros closes em seu olhar perdido e marejado de

    lgrimas, especialmente aps a fuga do filho prdigo. O prprio Pedro

    descreve o sofrimento da me aps a partida de Andr, ao tentar convencer

    o protagonista a retornar ao lar da famlia:

    A me j no consegue esconder de ningum os seus gemidos, Andr. [Enquanto isso, a cena de fundo apresenta a me a tocar, tristemente, as roupas dobradas de Andr sobre sua cama vazia. O close focaliza, como de costume, o toque doce de suas mos, mas tambm seu olhar vago]. Ao sair, ela me disse: Traga ele de volta, Pedro. E ela me disse tudo isso me apertando como se te apertasse, Andr.71

    69 ALVES citada por MACHADO et al. As emoes no discurso, p. 63.70 Maciel (2008) pontua que, medida que Andr constri a imagem daquele que mergulha em si

    mesmo, que intensifica seu conflito interno, as outras personagens, principalmente a me e as irms, tambm aparentam tornar-se mais desequilibradas e instveis mais cientes, mesmo que em seu silncio, de sua condio reprimida e de suas insatisfaes.

    71 LAVOURARCAICA, 2001. Tal fala reafirma, mais uma vez, a intensa proximidade entre a me e o filho Andr, o que no parece acontecer em igual medida com os outros filhos. Tambm a cena em que a matriarca alimenta o pequeno Andr diretamente na boca, dando-lhe comida com a prpria mo ( assim que se alimenta um cordeiro), parece marcar tal predileo. Deve-se notar, especialmente,

  • 40 Representaes do feminino no cinema brasileiro Ecos de passionalidade e herana materna 41

    Mas mesmo a seguinte cena, numa mistura entre sonho, passa-

    do e presente (pois quem a imagina e narra o Andr adulto, apesar do

    rostinho do protagonista criana ser o que aparece atravs da vidraa), a

    mais emblemtica do sofrimento materno espera do filho. interessante

    observar como a matriarca pode ser relacionada Penlope grega, paciente

    e apaixonada figura feminina que tece e destece a renda de sua prpria

    esperana, enquanto aguarda o retorno de seu Ulisses.

    Pedro continua sua fala: E pude v-la sentada na cadeira de balan-

    o, absolutamente s e perdida em seus devaneios cinzentos, destecendo

    desde cedo a renda trabalhada a vida inteira em torno do amor e da unio

    da famlia. Enquanto narra esta cena, a cmera se desloca lentamente,

    para acompanhar o ritmo da cadeira de balano onde a me chora, sentada,

    a partida do filho. Ao fundo, atravessa o quintal uma famlia de patinhos,

    talvez simbolizando os ideais de unio e amor que a me via desfazer-se

    frente a seus olhos, paradoxalmente graas ao excesso de amor confe-

    rido por ela a Andr. A fora patmica da cena impressionante. O amor

    materno havia dado a perene iluso ao protagonista de que havia espao,

    naquele lar, para instaurar-se uma nova ordem: a ordem da passionalidade

    (ou, talvez, uma ordem prpria de Andr, que o teria como centro de poder

    e destronaria o pai). Tendo conscincia dessa impossibilidade, Andr parte.

    Me e filho tambm se aproximam pelo pertencimento ao ambiente

    domstico, pelo gosto pelas intimidades da famlia algo, como vimos,

    tambm prximo de imaginrios sociodiscursivos atribudos ao feminino.

    Diferentemente dos outros homens exceto Lula, o caula, que, ao fim do

    filme, parece ter sempre tido dentro de si o desejo de repetir a trajetria

    de transgresso do irmo , Andr aparece, em todo o filme, como algum

    que aprecia a vida interna da casa, o trabalho das mulheres, os ofcios

    mais delicados e prprios do feminino, como a me. Prova disso est no

    s em sua averso ao trabalho braal, na lavoura, como tambm em seu

    apreo (s vezes manifesto de forma escondida), na poca da infncia,

    pelo artesanato, pela culinria e pela costura, tarefas prprias de sua me

    e irms. Todavia, mesmo o prazer de Andr pela proibida experincia

    a rica simbologia que cerca essa imagem do cordeiro em diferentes fontes textuais, como a prpria Bblia. Nesta, o cordeiro no somente sinal de libertao e aliana eterna, como tambm simboliza o prprio Cristo mais uma aluso que pode ser feita, no longa, a partir da imagem de Andr.

    sensorial de tocar, tirando do cesto, as roupas sujas e ntimas da famlia,

    principalmente das mulheres, que confirma emblematicamente tal per-

    tencimento a esse ethos de intimidade e recolhimento.72

    Veja a fala de Andr-personagem que permeia tal cena: Ningum

    ouviu melhor o grito de cada um, Pedro. Eu conheci todos os humores da

    famlia. [...] Ningum afundou mais as mos ali. Ningum sentiu mais as

    manchas da solido, [...] nossos projetos surdos de homicdio. Segundo

    Maciel, tal cena do mergulho nas intimidades da famlia tambm nos

    possibilitaria fazer a leitura de que Andr cria o ethos de nico a mergulhar

    nos seus prprios desejos, numa tentativa de trazer tona os impulsos e

    as paixes de todos: tudo o que havia de mais interno, interdito, repri-

    mido e escondido em cada membro da famlia manifesta-se nele.

    Todo esse processo de construo de imagens de Andr para si

    mesmo e para sua me, como pudemos perceber, no se desvincula, em

    momento algum, dos efeitos intencionados de patemizao, brevemente

    analisados. A partir dessa possibilidade de vinculao entre as dimenses

    da argumentao, por fim, Galinari nos aponta uma interessante correla-

    o entre ethos e pathos possvel de ser aplicada postura de enunciador

    passional de Andr:

    A princpio, as paixes demonstradas pelo enunciador no so da ordem do pathos, mas sim de um ethos emocionado. [...] se o orador inflamado contamina/contagia o seu auditrio (ou propenso a tal), fazendo-o compartilhar as sensaes veiculadas, esse carter emocionado poderia muito bem ser encarado como um recurso do pathos, mas sem deixar de ser ethos.73

    Cabe-nos ressaltar, todavia, que a postura de Andr frente ordem

    paterna no to simples e homognea como parece. O filho prdigo nem

    sempre parece romper com a ordem paterna e filiar-se lgica materna

    do feminino. Pelo contrrio: at mesmo por seu carter agnico e confli-

    tuoso, o protagonista, por vezes, assume o discurso do masculino. Isso

    perceptvel, por exemplo, nos prprios momentos em que Andr culpa

    a me prottipo da mulher responsvel pela desgraa familiar por seu

    desassossego e pela desunio do cl, ou mesmo quando o protagonista 72 A esse respeito, Perrot (2007), em dilogo indireto com Bourdieu, aponta-nos que h uma grande

    diviso material e simblica do mundo: o duro para os homens (como a enxada, a madeira e o metal) est como o mole para as mulheres (a famlia, a comida, os tecidos).

    73 GALINARI citado por MACHADO et al. As emoes no discurso, p. 63.

  • 42 Representaes do feminino no cinema brasileiro Ecos de passionalidade e herana materna 43

    parece querer tomar o lugar de poder do pai mesa, na acirrada cena da

    discusso final entre os dois. Dessa maneira, importante ponderar que,

    diante de um personagem to dilacerado e ambguo como Andr, arris-

    cado buscar tranquilidade e certezas absolutas em seu jogo de filiao

    ao feminino e/ou ao masculino.

    Ensaiando (in)concluses: me e filho, entre a ruptura e a submisso

    [...] ah! grande pecado maior de no ousar o supremo pecado, para

    se constituir humano e s, e divisar a Face una e resplandescente,

    no abismo oposto, que feito de luz e de perdo! Que dizer a esses

    melanclicos guardies de uma virtude sem frutos, que dizer a esses

    estetas do bem, a esses guerreiros sem violncia, sem corao e sem

    imaginao para a luta?

    Lcio Cardoso

    Em LavourArcaica, a matriarca, apesar de ser vista pelo protagonista co-

    mo uma figura de certa maneira subversiva, pela transmisso a Andr de

    seu transbordamento passional e sensual contrrio austeridade da lei

    paterna , aparece extremamente limitada em sua transgresso. Tendo

    conscincia da necessidade de submeter-se, e as seus filhos, ordem de

    Yohana, o pai, a me da famlia, apesar de no estar alheia aos aconte-

    cimentos e represso em que vivia, acaba por no conseguir romper

    efetivamente com a palavra do marido. Vrios so os momentos em que

    isso perceptvel, como durante os sermes do pai, mesa de jantar,

    quando a me, tristemente, apenas abaixa a cabea e v-se impelida a

    dar a mo ao marido, em um gesto de submisso e concordncia. H um

    impedimento, uma interdio mulher de questionar a voz da tradio,

    da legitimidade, da r