Resenha. encruzilhadas da liberdade

5
No capítulo 7 do livro Encruzilhado da Liberdade, Walter Fraga descreve a trajetória de ex-escravos nos engenhos do Recôncavo baiano após a abolição da escravidão em 1888, analisando os motivos que os levaram a permanecer na região onde foram submetidos aos terríveis intempéries do período da escravidão. Observando os nomes de moradores de engenhos internados no Hospital da Santa Casa de Santo Amaro, entre os anos de 1906 e 1913, o autor chegou a conclusão que 80,6% dos negros e mestiços internados no hospital residam nos engenhos em que nasceram, indicando baixo número de emigração de ex-escravos para outras regiões. Segundo Fraga Filho, inúmeros motivos fizeram com que os libertos recorressem a alternativa de permanecer na região ou mesmo, na propriedade do seu antigo senhor. Dentre elas estavam as condições climáticas adversas na Bahia entre os anos de 1888 e 1890, responsáveis pelo desemprego, a carestia e a fome. O medo da repressão policial aumentada com o fim da escravidão, que poderia facilmente prender um simples forasteiro como “suspeito” ou vagabundo. No entanto, o autor salienta “que nem sempre o desejo de quebrar os laços de dependência com os antigos senhores estava associado à migração para outras localidades”. Muitos viam na permanência na propriedade do antigo senhor, alternativas concretas da ampliação dos seus espaços de sobrevivências e possibilidade de continuar a ter acesso à terra. A mudança, por esse ponto de vista significava um novo e penoso recomeço. O autor explica que a questão religiosa não pode ser negligenciada ao analisar os motivos responsáveis pela permanência dos libertos nas propriedades de seu antigo senhor. O engenho guardava, além da memória da vida sofrida como escravo, a memória da luta por espaços e do culto aos seus deuses. Wagner Aragão Teles dos Santos Pós-graduando em História social e Econômica do Brasil pela faculdade São Bento da Bahia. FRAGA FILHO, Walter. Encruzilhadas da Liberdade: histórias de escravos e libertos na Bahia (1870-1910). Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2006, p.245- 282. 1

Transcript of Resenha. encruzilhadas da liberdade

Page 1: Resenha. encruzilhadas da liberdade

No capítulo 7 do livro Encruzilhado da Liberdade, Walter Fraga descreve a

trajetória de ex-escravos nos engenhos do Recôncavo baiano após a abolição da

escravidão em 1888, analisando os motivos que os levaram a permanecer na região onde

foram submetidos aos terríveis intempéries do período da escravidão.

Observando os nomes de moradores de engenhos internados no Hospital da

Santa Casa de Santo Amaro, entre os anos de 1906 e 1913, o autor chegou a conclusão

que 80,6% dos negros e mestiços internados no hospital residam nos engenhos em que

nasceram, indicando baixo número de emigração de ex-escravos para outras regiões.

Segundo Fraga Filho, inúmeros motivos fizeram com que os libertos

recorressem a alternativa de permanecer na região ou mesmo, na propriedade do seu

antigo senhor. Dentre elas estavam as condições climáticas adversas na Bahia entre os

anos de 1888 e 1890, responsáveis pelo desemprego, a carestia e a fome. O medo da

repressão policial aumentada com o fim da escravidão, que poderia facilmente prender

um simples forasteiro como “suspeito” ou vagabundo.

No entanto, o autor salienta “que nem sempre o desejo de quebrar os laços de

dependência com os antigos senhores estava associado à migração para outras

localidades”. Muitos viam na permanência na propriedade do antigo senhor, alternativas

concretas da ampliação dos seus espaços de sobrevivências e possibilidade de continuar

a ter acesso à terra. A mudança, por esse ponto de vista significava um novo e penoso

recomeço.

O autor explica que a questão religiosa não pode ser negligenciada ao analisar os

motivos responsáveis pela permanência dos libertos nas propriedades de seu antigo

senhor. O engenho guardava, além da memória da vida sofrida como escravo, a

memória da luta por espaços e do culto aos seus deuses.

Wagner Aragão Teles dos Santos

Pós-graduando em História social e Econômica do Brasil pela faculdade São Bento da Bahia.

FRAGA FILHO, Walter.

Encruzilhadas da Liberdade: histórias de escravos e libertos na Bahia (1870-1910). Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2006, p.245-282.

1

Page 2: Resenha. encruzilhadas da liberdade

Durante esse período, os ex-senhores de escravo se empenharam para manter o

controle da força de trabalho em sua região. Como não eram mais proprietários de

escravos, redefiniu-se as estratégias de manutenção dessa força de trabalho.

Faziam-se da imagem de “protetores” dos antigos escravos para prolongar

alguns elementos da simbologia do poder e da autoridade senhorial nesse mundo pós-

abolição, perpetuando-se assim, o domínio dos seus poderes por mais algum tempo

sobre os moradores do engenho.

Porém, para Fraga Filho, a população liberta aprendeu ao longo de três séculos a

lidar com a autoridade do poder paternalista do senhor de engenho.

Aceitava-se a “proteção” do senhor, em troca de respeito à condição de homem

livre, não sendo mais tolerado castigo, trabalho excessivo ou sem remuneração. Para o

autor, essa estratégia de se deixar ser um protegido do seu ex-senhor, era de

fundamental importância para movimentar-se no mundo dos brancos, se protegendo de

abusos de outros poderosos.

No entanto, ao analisar processos-crimes de cidades do recôncavo baiano, o

autor percebe que, para se afastar da interferência, e mesmo, do racismo e da submissão,

muitos libertos resolveram se afastar dos engenhos, pois, apesar da abolição da

escravidão, no imaginário senhorial as práticas escravistas tendiam a se perpetuar.

Sujeição e liberdade em um engenho do Recôncavo

Ao fazer um estudo de caso, investigando e analisando o inventário dos bens de

Inácio Rodrigues Pereira Dutra, senhor do Engenho da Cruz, na freguesia do Iguape,

Walter Fraga Filho, percebeu que o engenho, em sua primeira safra após a abolição

produziu menos do que anteriormente, além de não ter conseguido cumprir com

obrigações contratuais no fornecimento de cana para a Bahia Central Factories Limited.

Atribuindo-se à perda da mão de obra escrava o declínio da produção e impedimento do

cumprimento das obrigações contratuais.

Através do cruzamento do inventário com os registros de batismo da freguesia

do Iguape, o autor constatou que boa parte dos trabalhadores nascidos na freguesia, era

de propriedade do barão de Iguape, e estes, permaneceram na propriedade para dar

continuidade aos serviços, após a abolição da escravidão. No entanto, segundo o autor

“Rodrigues Dutra teve que remunerá-los por toda atividade realizada no engenho”.

2

Page 3: Resenha. encruzilhadas da liberdade

Ao analisar as relações de trabalho no contexto pós-abolicionismo, percebe-se a

luta dos libertos por autonomia nas horas trabalhadas no engenho. Verifica-se que

houve uma diminuição das horas de trabalho empregadas no engenho em troca de

atividades autônomas nas roças ou em outras propriedades.

Ao investigar os registros de nascimento, casamento e óbitos da freguesia do

Iguape, Fraga Filho descobre que a maioria dos ex-escravos, além de terem nascidos no

Engenho da Cruz, eram também, “filhos de ex-escravos que estavam sob domínio da

família Dutra desde a metade do século XIX”.

Descobriu-se que muitos dos ex-escravos do Engenho da Cruz, utilizavam o

sobrenome do antigo senhor. O autor nos explica que utilizar o nome Dutra era

provavelmente, uma estratégia utilizada pelos libertos, para transitar num mundo onde

as relações sociais eram fundamentais para sobrevivência do individuo.

Através da análise dos livros de registros de nascimento e óbito guardados no

Cartório Civil do Iguape, o autor identifica o quanto foi difícil esse período para os

libertos. Tempos em que muitos viram os últimos africanos, crianças e jovens serem

enterrados.

Os documentos revelaram ao autor e pesquisador Walter Fraga Filho, vários

incidentes envolvendo os libertos durantes esses primeiros anos após o fim da

escravidão. Dentre eles, estavam incidentes relacionados aos limites de dependência

impostos pelos ex-escravos, como no caso de desavença entre Luís Rodrigues Dutra e

Firmino Bulcão.

Luís Rodrigues Dutra, sabendo da origem escrava de Firmino Bulcão; ex-

escravo do Engenho Acutinga, acreditava que Firmino lhe devia obediência ao ser

advertido por estar armado na propriedade de sua família. Algo inadmissível para

Firmino em sua nova condição de liberto.

Outra forma de conflito encontrada nos documentos foi a relacionada às

transformações sociais que estavam na última década do século XIX e no início do

século XX.

Analisando os processos-crimes entre os anos de 1889 e 1894, Walter Fraga

chegou à conclusão de que a composição da população de trabalhadores do Engenho da

Cruz estava sofrendo algumas modificações importantes. Num levantamento feito com

17 trabalhadores do engenho citados em processos-crimes, apenas cinco pertenciam à

lista de pagamentos de trabalhadores do engenho, investigados pelo autor no inventário

de Inácio Rodrigues Pereira Dutra de 1888.

3

Page 4: Resenha. encruzilhadas da liberdade

Essa movimentação de indivíduos na região intensificou as tensões e os

conflitos, como no caso do assassinato de Isabel Bulcão, morta às margens do rio Açu,

em terras do Engenho da Cruz, pelo amásio Possidônio Bulcão, ao lavar roupa com

outras mulheres. Possidônio teria matado por ter sido trocado por uma tal Fortunato, que

segundo o autor não consta na lista dos trabalhadores de 1888.

Memórias do pós-abolição

No fim deste capítulo do livro, Walter Fraga Filho expõe o emocionante

depoimento de Manoel Araújo Ferreira, imigrante natural de Tanquinho de Feira, que

chegou no Engenho da Cruz com a família em 1907 em busca de estadia provisória,

mas, que se tornou moradia permanente para sua família.

Walter se demonstra emocionado ao ver “Manoelzinho” falar sobre pessoas que

ele apenas conhecia por documentos. Seu depoimento revelou a frustração do casal Luís

Rodrigues Dutra e “dona Amélia, com o fim da escravidão. Demonstrando o quanto foi

traumático para os senhores de escravo o 13 de maio de 1888.

O depoimento de Manoelzinho deixou mais claro para o autor como as relações

de trabalho ficaram ajustadas a partir do fim da escravidão. Habitando em casas

simples, ainda chamadas de senzalas muitos libertos plantavam suas roças. Pagavam-se

aos Dutra para beneficiar a mandioca nas casas de farinha. Segundo Manoelzinho,

plantavam-se também roças nas terras dos seus antigos senhores em troca de prestação

de serviços em dias pré-determinados.

Concluindo, o autor deixa claro que a permanência de alguns libertos no

Engenho da Cruz, significou a possibilidade de terem acesso à terra, garantindo a

sobrevivência da família e preservação de valores culturais próprios. Outros porém,

possivelmente migraram para outras localidades, estabelecendo-se em outras regiões do

Recôncavo baiano em busca de novas perspectivas.

4

Page 5: Resenha. encruzilhadas da liberdade

5