Resenha História Cultural da Imprensa 1800-1900_ Marialva Barbosa

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  • Navegaes v. 5, n. 1, p. 112-114, jan./jun. 2012

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    BARBOSA, Marialva. Histria cultural da imprensa. Brasil 1800-1900. Rio de Janeiro: Mauad X, 2010. 266 p.

    Em Histria Cultural da Imprensa, Marialva Bar- bosa prope uma narrativa entre tantas possveis, frag- mentada, de acordo com os preceitos da nova histria francesa. Sugere, atravs do adjetivo cultural, uma proposta de historicizao do sculo XIX no qual a imprensa no objeto de estudo, mas ponto de partida para uma reconstruo do perodo mais ampla do que a mera cronologia e descrio dos fatos. Barbosa almeja tanto retratar o desenvolvimento da imprensa no Brasil como, baseada no conceito de sistemas de comunicao de Robert Darnton, remontar s aes narrativas daqueles que viveram este perodo. Nesse sentido, a histria construda tem por objetivo o estudo no apenas das publicaes nos jornais, mas tambm dos agentes e do pblico-alvo envolvidos.

    Barbosa parte da ideia de que, para existir a imprensa e atribuir-lhe um valor de transmissora de opinio e informao, preciso que se desenvolva a mentalidade abstrata das mltiplas interpretaes dos jornais, o que possvel atravs do estudo de suas narrativas e prticas. No caso brasileiro, foi preciso algumas dcadas aps a chegada da famlia real, em 1808, para que o valor abstrato da imprensa se difundisse e se enraizasse de modo a criar um pblico sedento por informao.

    Em um mundo em que a impressa recente, no faz sentido separar a forma impressa dos modos de comunicao oral. Logo, mesmo que as notcias que deram incio imprensa no Rio de Janeiro tenham atingido um pblico restrito, a partir das formas de vida e sociabilidade existentes na cidade, podemos pensar numa mescla de pblicos que se cruzam. Ou seja, para obter as informaes de um jornal, no h a necessidade de l-lo, um vez que as notcias vm e vo, de boca em boca, nos encontros do cotidiano carioca do sculo XIX.

    A questo da oralidade ganha nova dimenso quando se compara a imprensa no Brasil da primeira metade do sculo XIX e a na Frana, especialmente a do final sculo XVIII. Percebe-se, nestes dois contextos, que os jornais constituem-se de redes de informao em acordo com o universo cultural no qual esto imersos, fugindo do controle e das determinaes mais diretas; que a palavra imprensa torna-se possibilidade de distino e

    de reconhecimento; e que os temas que mais ganham o gosto popular so os que ferem a ordem estabelecida, os que apelam para os valores mais infames e os que se se fundamentam na lgica do conflito.

    A polmica, to cara nas primeiras dcadas do sculo XIX, faz parte dessa lgica conflitiva que atrai o pblico leitor. O tom polemista de um texto possibilita aos jovens (e/ou esquecidos) escritores ingressarem no mundo dos nomes reconhecidos. Alm disso, a polmica tem por base uma lgica discursiva advinda da oralidade; logo, plena de jogos retricos e de entonaes, ideal para leituras em voz alta, para terceiros, o que expande o seu alcance.

    Atravs de uma anlise detalhada dos textos pu- blicados na imprensa, com as suas marcas de oralidade e as suas abreviaturas, Barbosa sugere que a publicao de jornais implica, necessariamente, uma pluralidade de atores sociais, lugares e dispositivos, tcnicas e gestos. Tanto a produo do texto como a construo de seus significados dependem de momentos diferentes de sua transmisso. Prlogos, advertncias, ttulos, subttulos e divises, negritos, itlicos, letras maisculas no meio de frases e exclamaes indicam essa natureza ambgua do destinatrio e a dupla circulao dos textos.

    A partir de 1821, multiplicam-se, por todo o pas, impressos que polemizam os debates pblicos sobretudo, em novos espaos de sociabilidade, como cafs, livrarias, academias e sociedades. Dentre os vinte peridicos que aparecem no Rio de Janeiro entre 1821-1822, todos so, a sua maneira, representantes de correntes polticas do perodo. O Correio do Rio de Janeiro, por exemplo, faz da polmica a sua principal estratgia narrativa. O mesmo ocorre nas provncias. Deste modo, Barbosa percebe que as letras impressas so utilizadas com fins, por vezes, polticos, como o fazem proprietrios (rurais e/ou de escravos), comerciantes, magistrados e funcionrios pblicos, os quais legitimam o espao da imprensa diante da iminncia de um confronto de interesses com Portugal.

    Essas ideias, entretanto, ao sair do mundo da ora- lidade para o mundo do letramento (via jornais, folhetos e panfletos) tornam-se discusses mais duradouras, agrupando pessoas que tm pensamentos similares e

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    constituindo grupos de discusso. Cria-se, assim, um simbolismo para a palavra impressa que s cresce ao longo do sculo XIX, fazendo do jornalismo um caminho para promoo social e poltica. Nesse sentido, as discusses infindveis entre jornais, no incio do Imprio, evidenciam o fato de um jornal constituir-se em referncia a outro, opondo-se a este. Em ltima instncia, as palavras impressas em um determinado peridico entre a dcada de 1820 e a de 1830 so destinadas a outros jornalistas, criando uma caracterstica que perdurar: a auto-referencialidade. Um exemplo o jornalismo apelativo, em panfletos de pequena tiragem e curta durao, que conclama o pblico determinada causa, fazendo do ataque pessoal a mola propulsora da sua produo o que destaca mais os envolvidos no contenda do que a informao em si.

    As polmicas com as quais se faz o contedo dos jornais do Primeiro Reinado tambm nos ajudam na construo da histria do Brasil. Nas ruas das cidades, em reunies pblicas ou privadas, debates travados na imprensa so temas para conversas. J durante o Perodo Regencial e o Segundo Reinado, a imprensa, por no poupar crticas aos governantes, repetidas vezes caracterizada como violenta.

    O fato de a poltica assumir a cena pblica motiva o aparecimento dos jornais, lugar privilegiado para a discusso das ideias que circulam pelas ruas. H, ento, a ampliao de uma cultura poltica para alm dos grupos dominantes, incluindo o pblico dos peridicos militares, profissionais diversos, funcionrios pblicos, membros do clero. No entanto, a adeso do pblico a determinados jornais deve-se tambm s respectivas escolhas narrativas. Mais especificamente, o leitor vai ficar preso querela dependendo de como as opinies virulentas esto dispostas em relao aos acontecimentos cotidianos, resposta da populao demanda por informao.

    Outro tpico importante associado oralidade a presena da escravido na histria cultural da imprensa brasileira. Partindo do princpio que, neste perodo, a oralidade coexiste com o letramento, Barbosa prope a ampliao da noo de pblico leitor, no o restringindo apenas aos alfabetizados, mas tambm aqueles que escutam as notcias pelas ruas, praas e casas grandes. Nesse sentido, no h motivo para no compreender os escravos como possveis leitores.

    De outro modo, ao analisar os anncios dos jornais, Barbosa aponta que os escravos podem ser entendidos como agentes intermedirios na vendagem de peridicos, j que so expostos em anncios de fugas, de venda e de aluguel de servios.

    Em terceiro lugar, os escravos podem ter lido eles mesmos os jornais, tendo em vista que eram sujeitos que podem ter sido alfabetizados, direta ou indiretamente. Segundo Barbosa, prova disso o fato de que muitos

    escravos desenvolveram capacidades de letramento, alguns deles at trabalhando no mundo das letras impressas, transformando-se, assim, em pblico potencial (e no alvo) dos jornais.

    Sobre a imprensa abolicionista, a historiadora afirma que na dcada de 1880, tanto no Rio de Janeiro como em So Paulo, cresce consideravelmente o nmero de tipografias. A cidade se constitui num lugar de formao de opinio. Temas abolicionistas e republicanos, debatidos ao longo das dcadas de 1870 e 1880, aumentaram, intensificaram e polarizaram as polmicas, forma tra- dicional do jornalismo do sculo XIX.

    No mesmo momento em que os debates polticos e ideolgicos se intensificam por meio da imprensa, no final do sculo XIX, surge outra caracterstica desse jornalismo que ser determinante para a sua constituio: a ideia de imparcialidade. Ao editar com destaque, sob uma capa de neutralidade, as noticias policiais e reportagens e ao introduzir a entrevista nas primeiras pginas, os jornais procuram construir uma representao ideal da sociedade. A opinio isola-se no artigo de fundo, sendo reforada pela ilustrao, publicada ao lado do texto. Numa sociedade com significativos ndices de analfabetismo, o jornalista-o homem de letras-reprter tem seu capital simblico valorizado.

    A capa da neutralidade, todavia, cobre inmeras modificaes. Um novo tempo apresentado nos peri- dicos, programado, dividido. Manipulam-se as camadas letradas e unificam-se os discursos da nova ordem. Esse processo de industrializao e profissionalizao da imprensa representa o fim da era das polmicas tal como entendidas na primeira metade do sculo XIX. Agora, atravs das duras campanhas que promovem, os donos de jornais podem demolir reputaes, derrubar ministros e nomear polticos.

    A popularidade no depende mais da intensidade dos debates, mas est relacionada participao do leitor. Vendo sua fala ou identificando-se com os personagens cotidianos dos peridicos, este se sente mais prximo da imprensa. Tal movimento correspondido pelos jornais, que procuram a incluso do pblico-alvo e a publicao de personagens atrativamente populares.

    O desejo de conquistar audincia e de participar do jogo poltico leva os peridicos, ainda que ocupando o mesmo campo de atuao, a se colocarem em lados opostos. Disputas, rivalidades e lutas explcitas entre eles so, na verdade, o embate pelo papel de porta-voz dos grupos dominantes. Desse modo, as crticas, desavenas e campanhas devem ser consideradas sob dois aspectos: como legitimao de uma auto-identidade construda e como efetiva disputa pelo papel primordial de divulgador, estruturador e centralizador das vises dominantes. O locutor no se dirige apenas ao adversrio. O objetivo

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    atingir o leitor. Por conseguinte, o jornalista , na verdade, o intermedirio de um processo de comunicao que envolve o interlocutor e o pblico, cuja adeso disputada com todas as armas. Procura-se reduzir a distncia dos leitores, criar uma identidade prpria para o peridico. Num mercado de bens culturais ainda no plenamente constitudos, fundamental dispor de uma nova verso de folhetim. Como nos publicados em captulos, campanhas, denncias e crticas so apresentadas em srie, em forma de trama.

    medida que a palavra escrita adquire valor de verdade e autoridade em relao oralidade, cresce a importncia dos letrados e dos especialistas. As regras e as normas se tornam explcitas e fixas, sob a forma de cdigos e leis, de estruturas normativas genricas. A expanso, ainda que restrita, da escrita contribui para dar ao jornalismo uma nova misso como os prprios jornalistas, com frequncia, apregoam. Ao jornalista cabe difundir ideias, vises de mundo e representaes da sociedade. A sua funo comunicativa ganha fora ao lado de seu papel poltico.

    Nesse novo contexto socioeconmico, no h mais espao para o amadorismo. Transformados em grandes empresas, importando modernos equipamentos, aumentando o nmero de pginas e a tiragem dos exemplares, passam a depender no apenas do pequeno anncio e da publicidade particular, mas, sobretudo, da verba oficial. Alm disso, sob a lgica do mercado, a auto-referenciao muda de tonalidade. Nos anos derradeiros do sculo XIX, um dos principais acontecimentos para o jornal continua sendo ele mesmo. Multiplicam-se notcias sobre o desempenho dos reprteres, sobre sua posio poltica e sobre as aes na justia movidas contra seus adversrios. Tal como o advogado, o jornalista procurava agir como arbitro das questes polticas. ele quem

    denuncia. A sua tribuna o jornal; a audincia, o leitor. O habitus do jornalista, porm, estimula o conflito. Mesmo assim, define-se como defensor da verdade, da imparcialidade e das causas nacionais.

    O livro de Barbosa nos permite traar, dentre outras narrativas possveis, uma histria da cultura do Brasil atravs da imprensa e pela imprensa, da monarquia repblica, da presena da oralidade ao culto do jornalista-especialista, da centralidade das polmicas aos conflitos e campanhas de difamao, das participaes do pblico-alvo s do pblico que no era alvo. As referncias tericas, abrangendo campos como sociologia, histria e crtica literria, entre outros, apenas evidenciam uma construo narrativa do perodo no centralizada em eventos e personalidades, mas que joga constantemente com dados quantitativos (como o aumento no nmero de tipografias) e qualitativos (como a anlise dos anncios). Ao serem narradas de forma fragmentada, coerente com a perspectiva da nova histria, esses diversos elementos proporcionam uma reconstruo densa das representaes dos diferentes homens e mulheres do sculo XIX e uma importante reconstituio do perodo como um todo. Alm de ser uma contribuio importantssima para o estudo da passagem da monarquia para a repblica no Brasil (e no somente da imprensa), Histria cultura da imprensa tem mritos pela escolha das fontes e, principalmente, pelo modo como lida com este material. Trata-se de um terreno frtil (e pouco explorado) para os estudos de histria e, por que no, de literatura.

    Vincius GonalVes carneiroDoutorando PUCRS/CNPq

    Recebido: 05 de dezembro de 2011Aprovado: 19 de dezembro de 2011