Resenha Mana

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MANA 20(3): 621-636, 2014 RESENHAS HITA, Maria Gabriela. 2014. A casa das mu- lheres n’outro terreiro: famílias matriarcais em Salvador-Ba. Salvador: Edufba. 513pp. Andressa de Freitas Ribeiro Doutoranda, bolsista Fapesb Universidade Federal da Bahia Maria Gabriela Hita é graduada em sociologia pela Universidade Federal da Bahia, possui doutorado em Ciências Sociais pela Unicamp e é pós-doutora pela Universidade de Manchester – Grã- -Bretanha (2008). Hita tem uma vasta produção acadêmica sobre mulheres, gênero e feminismo, assim como sobre pobreza urbana, família, saúde e raça. É em torno destes temas que seu livro A casa das mulheres n’outro terreiro: famílias matriarcais em Salvador-Ba gira. O livro versa sobre a existência de duas famílias matriarcais extensas que se enquadram no conceito que a autora desenvolveu de matriarcalidade. A ma- triarcalidade para Hita não se resume à matrifocalidade e nem coincide com ela ou com o conceito comumente usado de matriarcado. A matriarcalidade engloba tanto a ideia de matrifocalidade – quando a descendência permanece na linhagem materna – quanto a de matriarcado, na medida em que a autoridade, a herança e a descendência têm como centro a figura da mãe-avó. Assim, Maria Gabriela Hita recupera o conceito de matriarcado, não buscando uma realidade trans-histórica ou a-histó- rica como fizeram muitas feministas, mas fundamentando tal conceito na experi- ência vivida de mulheres no contexto de pobreza, em um bairro popular de Salva- dor denominado Nordeste de Amaralina. Através de um olhar minucioso e deta- lhista, o livro vai desvelando a realidade de duas famílias extensas e negras que habitam o Nordeste de Amaralina: a de D. Cida e a de Mãe Dialunda. Ambas as famílias se enquadram no conceito que Hita desenvolveu de matriarcalidade. As duas mulheres, tanto Cida quanto Dialunda, ocupam a posição de ma- triarcas, chefes de família e, com raras exceções, os novos núcleos familiares que se formaram no decorrer dos anos e suas descendências permaneceram sob a tutela da linhagem materna. Essas mulheres são as principais prove- doras da família e elas possuem o bem mais precioso nesse contexto, o que lhes permite concentrar um enorme poder e autoridade. Esse bem é a casa, sendo ela também uma categoria central no pensamento de Hita. A casa, além de permitir uma perspectiva mais ampla e completa do que a ideia de família nuclear, pois possibilita uma maior maleabilidade na incorporação de relações de afinidade, consanguinidade e conside- ração, também torna possível visualizar a materialização do poder da matriarca.

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  • MANA 20(3): 621-636, 2014

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    HITA, Maria Gabriela. 2014. A casa das mulheres noutro terreiro: famlias matriarcais em SalvadorBa. Salvador: Edufba. 513pp.

    Andressa de Freitas RibeiroDoutoranda, bolsista Fapesb

    Universidade Federal da Bahia

    Maria Gabriela Hita graduada em sociologia pela Universidade Federal da Bahia, possui doutorado em Cincias Sociais pela Unicamp e ps-doutora pela Universidade de Manchester Gr--Bretanha (2008). Hita tem uma vasta produo acadmica sobre mulheres, gnero e feminismo, assim como sobre pobreza urbana, famlia, sade e raa. em torno destes temas que seu livro A casa das mulheres noutro terreiro: famlias matriarcais em Salvador-Ba gira.

    O livro versa sobre a existncia de duas famlias matriarcais extensas que se enquadram no conceito que a autora desenvolveu de matriarcalidade. A ma-triarcalidade para Hita no se resume matrifocalidade e nem coincide com ela ou com o conceito comumente usado de matriarcado. A matriarcalidade engloba tanto a ideia de matrifocalidade quando a descendncia permanece na linhagem materna quanto a de matriarcado, na medida em que a autoridade, a herana e a descendncia tm como centro a figura da me-av.

    Assim, Maria Gabriela Hita recupera o conceito de matriarcado, no buscando uma realidade trans-histrica ou a-hist-rica como fizeram muitas feministas, mas fundamentando tal conceito na experi-ncia vivida de mulheres no contexto de pobreza, em um bairro popular de Salva-dor denominado Nordeste de Amaralina.

    Atravs de um olhar minucioso e deta-lhista, o livro vai desvelando a realidade de duas famlias extensas e negras que habitam o Nordeste de Amaralina: a de D. Cida e a de Me Dialunda. Ambas as famlias se enquadram no conceito que Hita desenvolveu de matriarcalidade. As duas mulheres, tanto Cida quanto Dialunda, ocupam a posio de ma-triarcas, chefes de famlia e, com raras excees, os novos ncleos familiares que se formaram no decorrer dos anos e suas descendncias permaneceram sob a tutela da linhagem materna.

    Essas mulheres so as principais prove-doras da famlia e elas possuem o bem mais precioso nesse contexto, o que lhes permite concentrar um enorme poder e autoridade. Esse bem a casa, sendo ela tambm uma categoria central no pensamento de Hita. A casa, alm de permitir uma perspectiva mais ampla e completa do que a ideia de famlia nuclear, pois possibilita uma maior maleabilidade na incorporao de relaes de afinidade, consanguinidade e conside-rao, tambm torna possvel visualizar a materializao do poder da matriarca.

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    atravs da casa que a matriarca encarna o Mana e inicia uma intricada rede de trocas dar, receber e retribuir na qual todo indivduo que desfruta de um pedao de cho embaixo desse teto se v enredado nessa obrigao de dar, receber e posteriormente/obrigatoriamen-te retribuir. Essa rede de trocas implica no s bens materiais, mas tambm bens espirituais, afetivos e simblicos; isto caracteriza o que Hita chama de FSC, ou seja, fora simblica circulante uma fora que provm do fato de D. Cida e Me Dialunda serem as donas da casa.

    Esse ethos de troca e circularidade se d no s atravs de coisas, mas igual-mente de pessoas. Estas circulam pelas casas, principalmente as crianas, que so vistas como verdadeiras ddivas e, por isso, a autora prefere usar o termo configurao de casas ao invs de casas. Se, por um lado, a ideia de casa possibi-lita um manejo melhor das relaes que esto em jogo em um grupo familiar, por outro, a ideia de configurao de casas permite dar conta da circularidade e da movimentao de pessoas por sua rede de parentesco.

    muito comum a circulao de crianas e a existncia de filhos de con-siderao. A considerao coloca em evidncia o eixo social das relaes de parentesco, capaz de aproximar o dis-tante e distanciar o prximo, flexibiliza as relaes determinsticas colocadas pelo critrio da consanguinidade. Um filho de considerao quebra a ideia de determinismo biolgico e mostra como as relaes humanas so movidas por outras variveis que no s a biologia.

    Esse carter social da considerao coerente com a prpria noo de cir-culao de crianas, na medida em que essa circulao evidencia o carter social da maternidade. Me no s aquela que gera, mas sim aquela que capaz de prover, de vestir, de alimentar. Hita

    mostrou que muito comum em Nordeste de Amaralina as mes darem seus filhos para outra pessoa da parentela criar. Essa criana, no decorrer da sua vida, pode circular pela casa de vrias pessoas sem necessariamente perder o contato com a me. Tal atitude no vista com maus olhos ou ressentimento pelos filhos ou pela parentela, isto porque mais impor-tante do que o lao de sangue da me com o filho a possibilidade de sobrevivncia desse filho.

    Assim, instaura-se uma espcie de maternidade social. Nesse ponto, os dados levantados no livro tambm nos levam a questionar uma das relaes que por muito tempo foi considerada como a mais natural na humanidade, qual seja, a relao ou dade me-filho. Esses da-dos, conseguidos atravs da etnografia, mostram o quanto a maternidade nesses contextos movida e orientada pelo vetor social. nesse sentido que Me Dialunda e D. Cida so consideradas mes de to-dos, j que so elas as responsveis pelo provimento da maior parte das suas redes de parentescos.

    Alm de as pessoas se moverem, o espao tambm se move e se modifica concomitantemente com a transforma-o da configurao familiar. Quando as posies, as relaes de poder e as hierar-quias se modificam dentro de um grupo domstico, a configurao do espao tambm se transforma. Do mesmo modo, a alterao do espao tambm altera as relaes. Assim, espao e relaes huma-nas se retroalimentam. Se, por um lado, o espao materializa as relaes de poder, por outro, as relaes de poder tambm so vivenciadas atravs do espao.

    A etnografia mostra que a casa de Me Dialunda sofreu poucas mudanas e manteve de certa forma o seu modelo inicial a rede de parentesco construiu novas casas e novos espaos em outros terrenos doados por Me Dialunda.

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    J a casa de D. Cida sofreu transforma-es espaciais bem evidentes, que se devem, principalmente, aos projetos e s ambies de sua filha mais nova Dina. Ela ganha a cena na narrativa da traje-tria da rede de parentesco de D. Cida.

    Filha mais nova e que inicialmente no contava com a preferncia de D. Cida, Dina quebra todos os esteretipos da mulher enquanto vtima e passiva diante da fora fsica do homem. Apre-sentando uma fora e uma persistncia incrveis, Dina, aos poucos e com a ajuda de amigos e vizinhos, constri sua prpria casa na laje de D. Cida. Carrega bloco, bate laje, sobe parede, carrega peso, enfim, ela questiona a assertiva que talvez mais identifique a diferena entre um homem e uma mulher: a de que a fora fsica um atributo do homem e no da mulher.

    A fora fsica tambm se manifesta na violncia sob a qual se do as relaes naquele contexto. A violncia ali no vista como uma patologia, como um ato de incivilidade, ou como um recurso a ser acessado em caso de extrema neces-sidade, mas, ao contrrio, permeia a vida das pessoas, faz parte do ethos daquele contexto, marca as prticas, os compor-tamentos e as relaes cotidianas. Essa violncia, que muitas vezes se expressa atravs da fora fsica, no segue um ni-co vetor do homem para a mulher mas permeia a totalidade das relaes, seja da mulher para o homem, seja do homem para a mulher, da me para o filho, do fi-lho para a me e para o pai, entre irmos, vizinhos e amigos. A violncia constitui as relaes ali existentes. E a mulher, assim como a criana, so sujeitos que fazem uso da fora e da violncia.

    A mulher-me-av concentra um imenso poder. Dentre outros motivos, isso se deve s prprias trajetrias dessas mulheres que comearam a trabalhar muito cedo e, por esta razo, so dotadas

    de uma fora e de uma perseverana ca-ractersticas. Aqui cabe perguntar: qual mesmo o papel do homem nesse contex-to? Para Hita, o homem no um jogado fora, como outras etnografias feitas no contexto do Recncavo baiano afirmaram, tambm no um galo que no canta no terreiro; ele tambm dotado de certo poder, que se expressa principalmente na figura do protetor da casa, daquele que faz o elo entre a casa e a sociedade mais ampla.

    Esse poder, no entanto, est subordi-nado quele da matriarca, que quem concentra maior poder na casa. Alm disso, a posio de poder do homem est muito mais ligada ao vnculo consangu-neo, ou seja, sua posio como filho da matriarca, resultado mais de um poder que vem da mulher do que do vnculo de afinidade que afirmaria a autoridade do homem, autonomamente, como um provedor. Nesse contexto, o homem no o provedor, a provedora a matriarca e, por isso, seu poder emana dela e no de uma condio autnoma.

    O livro A casa das mulheres noutro terreiro: famlias matriarcais em Salva-dor-Ba traz muitas contribuies para o feminismo e para se pensar em temas de gnero, famlia e raa. Hita questiona o modelo clssico de famlia nuclear e patriarcal ao apresentar de forma minu-ciosa a realidade vivida de duas famlias extensas no Nordeste de Amaralina. Ela recupera a ideia de matriarcado, atravs do conceito de matriarcalidade, sem precisar recorrer a realidades trans--histricas. Hita questiona a consangui-nidade como o principal pilar da relao familiar e de parentesco e atenta para a fora da considerao na trajetria parental dessas duas famlias. Por fim, a autora ressignifica o papel do homem e da mulher nesses contextos ao refletir, primeiro, sobre a maternidade como um vnculo social, descentrando o carter

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    biolgico dessa relao e, depois, ao perceber a posio de agncia daquelas mulheres.

    Alm disso, apesar de Hita tratar do papel do homem apenas na concluso do livro, diferentemente de outras etnogra-fias realizadas em contextos semelhantes, ela reconhece o seu poder nesses arranjos familiares, mas atrela-o ao poder central da matriarca. Assim, torna-se evidente o vasto leque de contribuies que o livro A casa das mulheres noutro terreiro: fam-lias matriarcais em Salvador-Ba traz para os estudos de gnero, famlia, parentesco e raa e, de um modo mais amplo, para o prprio feminismo.

    HULL, Matthew. 2012. Government of paper: the materiality of bureaucracy in urban Pakistan. Berkeley: University of California Press. 301 pp.

    Laura LowenkronNcleo de Estudos de Gnero Pagu/ Unicamp

    Government of paper analisa as din-micas e os efeitos da circulao de do-cumentos dentro e fora das reparties burocrticas de Islamabad, capital do Paquisto. Tendo seu projeto idealizado em 1960 por um arquiteto modernista grego, a cidade foi altamente planejada e construda como sede do novo gover-no nacional no contexto ps-colonial. Baseado em uma pesquisa etnogrfica conduzida por Matthew Hull no final dos anos 1990 e complementada em 2007, o principal argumento do livro o de que os diferentes gneros documentais, reunidos pelo autor sob a rubrica de artefatos grficos, moldam o governo da cidade. Dito de maneira simples, gover-nar os papis central para governar a cidade (:1).

    Nesta resenha, chamo a ateno para o que considero ser a principal contri-buio desta etnografia que focaliza a materialidade das prticas de governo: ao examinar a centralidade do governo dos papis para a construo, a admi-nistrao e o funcionamento da cidade de Islamabad, o livro apresenta uma pers-pectiva terico-metodolgica inovadora que oferece insights interessantes para todos aqueles interessados em etnografia de documentos e, particularmente, de documentos burocrticos. No toa, o autor publicou no mesmo ano de lan-amento de seu livro um artigo sobre o tema na Annual Review of Anthropology (n 41:251-267).

    Como salienta o autor na introduo, documentos burocrticos foram um dos objetos historicamente mais negligen-ciados por antroplogos. Um dos motivos para isso, segundo Hull, deve-se ao fato de que fcil v-los apenas como algo que oferece acesso mediado quilo que documentam, negando o papel da me-diao. Restaurar a visibilidade dos do-cumentos como mediadores o principal objetivo de Government of paper. Isto im-plica olhar para eles e no atravs deles.

    Este empreendimento tributrio da reabilitao mais geral da materialidade nas cincias humanas, que mostrou que as representaes so materiais. Nos ter-mos do autor, antroplogos reconhecem h muito tempo que coisas so signos, mas at recentemente ignoraram com frequncia que os signos so coisas (:13). Um dos argumentos centrais do livro justamente o de que no se pode abstrair ou separar analiticamente as representa-es de seus suportes materiais, visto que estes moldam os discursos que medeiam.

    Hull sugere ainda que a qualidade material destes artefatos grficos molda no apenas processos semiticos (o que eles significam para seus usurios), mas tambm processos sociomateriais: no