Resenha Marisa Peirano

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1 “Entre o uno e o múltiplo”, resenha de Uma Antropologia no Plural: três experiências contemporâneas, de Mariza Peirano, no Caderno Idéias do Jornal do Brasil, edição de 27/03/1993 Luiz Fernando D. Duarte (antropólogo do Museu Nacional/UFRJ) Há algo de radical na proposta de Mariza Peirano em Uma Antropologia no Plural: transformar em objeto antropológico a estruturação dos próprios saberes da Antropologia contemporânea e observá-los do ângulo de sua relação com a configuração das nacionalidades, os “espíritos nacionais” que ordenam e dividem o mundo ocidental moderno. Um ou outro dos projetos já seria estimulante. A maneira como são ar- ticulados entre si na série de trabalhos que compõem este livro é, mais do que um estímulo, uma séria provocação. Tanto mais quanto se apresenta de modo tão discreto, sob um título deliberadamente vago e a forma algo des- gastada no Brasil de uma coletânea de republicações. O livro enfeixa real- mente dez artigos publicados em diversas revistas científicas ao longo da dé- cada de 80 (o mais recente é de 1990) sobre assuntos aparentemente muito díspares. Com que agradável surpresa vamos descobrindo porém - conduzidos por um estilo fluente - a rigorosa coerência da argumentação. Do Brasil aos Estados Unidos e daí à Índia (as três experiências do sub-título), passando por Antonio Candido ou Florestan Fernandes, Geertz ou Crapanzano e Srinivas ou Appadurai, vamos imperceptivelmente nos convencendo de que não é ba- nal a constatação de que “nas sociedades modernas contemporâneas a idéia de nação funciona como modelo ideológico privilegiado para representar o ‘todo social’, e[…]se não determina, pelo menos fornece importantes parâme- tros para a aceitação ou rejeição de teorias sociais em diferentes momentos”. O que a autora permite reconhecer de um modo forte e sistemático é a conveniência e a urgência de que “as ciências sociais [passem] a nos interessar menos por sua relativa validade científica e mais pela natureza social de suas idéias como sistemas de conhecimento e representações sociais” (p. 53).

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    Entre o uno e o mltiplo, resenha de Uma Antropologia no Plural: trs

    experincias contemporneas, de Mariza Peirano, no Caderno Idias do

    Jornal do Brasil, edio de 27/03/1993

    Luiz Fernando D. Duarte (antroplogo do Museu Nacional/UFRJ)

    H algo de radical na proposta de Mariza Peirano em Uma Antropologia no

    Plural: transformar em objeto antropolgico a estruturao dos prprios

    saberes da Antropologia contempornea e observ-los do ngulo de sua

    relao com a configurao das nacionalidades, os espritos nacionais que

    ordenam e dividem o mundo ocidental moderno.

    Um ou outro dos projetos j seria estimulante. A maneira como so ar-

    ticulados entre si na srie de trabalhos que compem este livro , mais do

    que um estmulo, uma sria provocao. Tanto mais quanto se apresenta de

    modo to discreto, sob um ttulo deliberadamente vago e a forma algo des-

    gastada no Brasil de uma coletnea de republicaes. O livro enfeixa real-

    mente dez artigos publicados em diversas revistas cientficas ao longo da d-

    cada de 80 (o mais recente de 1990) sobre assuntos aparentemente muito

    dspares.

    Com que agradvel surpresa vamos descobrindo porm - conduzidos por um

    estilo fluente - a rigorosa coerncia da argumentao. Do Brasil aos Estados

    Unidos e da ndia (as trs experincias do sub-ttulo), passando por

    Antonio Candido ou Florestan Fernandes, Geertz ou Crapanzano e Srinivas

    ou Appadurai, vamos imperceptivelmente nos convencendo de que no ba-

    nal a constatao de que nas sociedades modernas contemporneas a idia

    de nao funciona como modelo ideolgico privilegiado para representar o

    todo social, e[]se no determina, pelo menos fornece importantes parme-

    tros para a aceitao ou rejeio de teorias sociais em diferentes momentos.

    O que a autora permite reconhecer de um modo forte e sistemtico a

    convenincia e a urgncia de que as cincias sociais [passem] a nos

    interessar menos por sua relativa validade cientfica e mais pela natureza

    social de suas idias como sistemas de conhecimento e representaes

    sociais (p. 53).

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    A conscincia regular da desigualdade das relaes entre as cincias sociais

    metropolitanas e perifricas, que frequentemente parece ser apenas o

    resultado de m vontade poltica ou desorganizao administrativa, ganha o

    estatuto de uma reflexo sobre o sentido do pensamento social no corpo da

    cultura ocidental moderna. Fazer uma antropologia dos saberes antropolgi-

    cos contemporneos e da configurao nacional que estrutura o mundo mo-

    derno impe apresentar sob nova forma o paradoxo conhecido da disciplina:

    como esse brao da ideologia universalista, racionalista e igualitarista que

    a Antropologia lida com a diferena. A forma habitual do problema a da

    diferena externa, diferena dos outros ou do Outro, em cujo enfrentamento

    se constitui mesmo o empreendimento antropolgico. Mariza Peirano nos

    prope algo mais: como esquecer essa outra diferena to fundamental para

    o Ocidente que a das ideologias nacionais (no sentido tanto de idia ou

    categoria geral da nacionalidade quanto no das representaes de tal ou

    qual nao ou tipo de nao). O conceito mesmo de cultura ocidental mo-

    derna (que a autora ilumina sobretudo atravs de sua discusso da quali-

    dade heurstica da categoria sociedades complexas) sai enriquecido da dis-

    cusso, quando se v que o universalismo tanto pode ser visto como pro-

    priedade geral dessa civilizao, quanto propriedade mais especfica desse

    seu segmento constitutivo que a sociedade ou a cultura francesa.

    O uso comparado de N. Elias e L. Dumont feito pela autora uma novidade

    preciosa: as importantes contribuies de suas obras no so utilizadas

    apenas como instrumentos diretos de anlise dos fenmenos sociais, mas

    so elas prprias observadas enquanto categorias nativas, fenmenos

    sociais expressivos das posies nacionais onde se sustentam (no caso as

    culturas alem e francesa). Levando a srio a proposta de discutir a relao

    entre perspectivas tericas e o meio histrico e sociocultural no qual se de-

    senvolvem (235), as marcas culturais da Grande Tradio so confrontadas

    com dois casos perifricos paradigmticos porque opostos entre si: o Brasil,

    envolvido em sua permanente e explcita inquietao sobre o ser nao no

    seio de uma civilizao ocidental de que se sente meio externo (e nao

    moderna; atravs de uma obsessiva recusa de toda tradio), e a India,

    imersa em sua indefinio de ser civilizao face ao desafio de um

    Ocidente j sofrido como interno (numa ansiosa relao com o ser moderno).

    Antroploga brasileira, a autora traz de seu doutorado em Harvard e de uma

    rara expedio ao mundo acadmico indiano a experincia etnogrfica pes-

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    soal e direta com que fazer de todos - ns e eles - nativos, loquazes infor-

    mantes.

    A histria da Antropologia ganha um novo brilho observada sob esse ngulo

    e a arbitrariedade dos recortes nacionais (certamente uma das fronteiras do

    sagrado no mundo desencantado moderno) se revela um foco promissor de

    reflexo sistemtica. Seria um filo ulterior explorar, entre o universalismo e

    os estilos nacionais, a questo dos grandes paradigmas epistemolgicos que

    dividem a tradio metropolitana em linhagens meio nacionais e

    atravessam a construo dos campos perifricos em cruzamentos inespera-

    dos. No Brasil, afinal, acusaes como a de racionalista francs ou

    empirista ingls interagem com o diktat de explicar o pas, to bem exami-

    nado pela autora.

    Para todos os que acreditam que uma antropologia s pode ser universalista

    (apesar ou por causa mesmo das dificuldades e problemas que essa posio

    epistemolgica levanta no trato da multivocidade da coisa humana) a

    proposta de Mariza Peirano soa afinadssima, por trazer ao centro do palco a

    ambio maior desse projeto: produzir um universalismo modificado (cf. L.

    Dumont) ou mais genuno (p. 22), aquele em que a sua prpria existncia

    social possa ser observada em perspectiva. Um estimulante paradoxo para

    cuja compreenso a frmula de um saber no plural certamente faz avanar.