resenha seduzidos pela memória

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Passados presentes. Da sedução pela memória à análise de nós mesmos. Resenha de HUYSSEN, Andreas * monumentos, mídia. Tradução de Sergio Alcides. Seleção de . Seduzidos pela Memória: arquitetura, Heloisa Buarque de Hollanda. 2ª. Ed. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000 . Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Fo 1 . De volta para o passado. Assim posso definir o mote geral dos escritos de Andreas Huyssen nesta obra de refinada carpintaria. O autor procura identificar, nas últimas décadas do século XX, dentre outras coisas, fenômenos associados às atuais práticas de memória, como a musealização, a volta do retrô e a obsolescência. Entendo que, se estes assuntos são de nosso presente, são evidentemente, parte de nossas vidas. Identificar estas questões que nos cercam é colocar a nós mesmos em análise, é possibilitar o entendimento de nossa própria construção identitária dentro do presente como espessura de duração. 1 Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Fo., brasileiro, é mestrando do Programa de Pós-graduação em História da UDESC – Universidade do Estado de Santa Catarina, na área de concentração História do Tempo Presente e na linha de pesquisa Linguagens e Identificações. É bolsista-monitor da PROMOP/UDESC.

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Passados presentes. Da sedução pela memória à análise de nós mesmos.

Resenha de HUYSSEN, Andreas*

monumentos, mídia. Tradução de Sergio Alcides. Seleção de

. Seduzidos pela Memória: arquitetura,

Heloisa Buarque de Hollanda. 2ª. Ed. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000.

Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Fo1

.

De volta para o passado. Assim posso definir o mote geral dos escritos de Andreas

Huyssen nesta obra de refinada carpintaria. O autor procura identificar, nas últimas décadas do

século XX, dentre outras coisas, fenômenos associados às atuais práticas de memória, como a

musealização, a volta do retrô e a obsolescência. Entendo que, se estes assuntos são de nosso

presente, são evidentemente, parte de nossas vidas. Identificar estas questões que nos cercam é

colocar a nós mesmos em análise, é possibilitar o entendimento de nossa própria construção

identitária dentro do presente como espessura de duração.

1 Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Fo., brasileiro, é mestrando do Programa de Pós-graduação em História da UDESC – Universidade do Estado de Santa Catarina, na área de concentração História do Tempo Presente e na linha de pesquisa Linguagens e Identificações. É bolsista-monitor da PROMOP/UDESC.

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Assim, é com regozijo que tenho em mãos Seduzidos pela Memória: arquitetura,

monumentos, mídia, de Huyssen. Este livro é fruto da seleção de textos diversos de Huyssen,

recolhidos por Heloisa Buarque de Hollanda e passados para o nosso idioma pelo tradutor Sergio

Alcides.

Huyssen inicia sua obra mostrando que a partir da década de 1980 um foco onde o

futuro se fazia predominante se trasladou para o crescente interesse pelos dias que já se passaram:

seria a transição dos “futuros presentes” em direção a certos “passados presentes2

Huyssen relata haver uma espécie de fenomenologia do passado presente, iniciada

nos 1970, com a restauração historicizante de velhos centros urbanos, de cidades-museus, com a

explosão das modas retrô e dos utensílios reprô, com o comércio da nostalgia e da automusealização

através das vídeo-cams. Huyssen comenta que o passado tem vendido mais que o futuro,

exemplificando com a chamada de uma propaganda falsa posta na rede mundial: “O Departamento

de Retrô dos US alerta: poderá haver uma escassez de passado”. Deste anúncio, se destaca a oração

que diz que se está “comercializando passados que nunca existiram”. Do mesmo modo, ele salienta

que voltaram a ser moda os “remakes originais”, e que há hoje uma obsessão com a “re-

representação, repetição, replicação e com a cultura da cópia, com ou sem o original”. Mas afinal,

por que teria ocorrido esta “volta ao passado”?

”. O autor declara

ter ocorrido, a esta mesma época, a intensificação de discursos mnemônicos sobre adventos como o

Holocausto. Em seguida, dá alguns exemplos sobre rememorações associadas a este evento, como a

série de TV homônima e os cinqüentenários relacionados a eventos como a ascensão hitlerista ao

poder em 1933 e o término da Segunda Guerra em 1945. Relata ainda que, a partir da década de

1990, políticas “genocidas” (se é que este termo seja corretamente aplicado) como nos casos das

guerras de Kossovo, Bósnia e Ruanda, tem acrescentado seguidas associações com o fenômeno do

Holocausto nazista. É interessante comentar que, tal como em relação ao termo genocídio, a

expressão holocausto (originalmente “sacrifício”, do grego holókauston), vai adquirindo novas

colorações de significado, e se torna de uso corrente, passando a se aplicar em situações

aparentemente distantes das suas apropriações originais. Segundo Huyssen, a guerra em Kossovo,

por exemplo, confirmaria o crescente poder da cultura da memória no final da década de 1990,

trazendo a difícil questão sobre o uso do Holocausto como uma espécie de “lugar-comum”, de

metáfora universal para traumas históricos diferentes.

Huyssen iça a hipótese de que tentamos combater o medo e o perigo do esquecimento

com estratégias de sobrevivência de rememoração pública e privada. E explica:

2 O termo “futuros presentes”, segundo Huyssen, teria sido cunhado por Rainhart Koseleck, enquanto “passados presentes”, pelo próprio Huyssen.

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o enfoque sobre a memória é energizado subliminarmente pelo desejo de nos ancorar em um mundo caracterizado por uma crescente instabilidade do tempo e pelo fraturamento do espaço vivido (HUYSSEN, 2000, 20).

Huyssen argumenta que, diante de uma mnemo-história, se necessita da

memória e da musealização juntas para construir uma proteção contra a obsolescência e o desaparecimento, para combater a nossa profunda ansiedade com a velocidade de mudança e o contínuo encolhimento dos horizontes de tempo e de espaço (HUYSSEN, 2000, 28).

E prossegue:

quanto mais o capitalismo de consumo avançado prevalece sobre o passado e o futuro, sugando-os num espaço sincrônico em expansão, menor a estabilidade ou a identidade que proporciona aos assuntos contemporâneos (HUYSSEN, 2000, 29).

E por fim, reforça dizendo que a cultura da memória viria a “atirar salva-vidas ao

passado e contrabalançar a notória tendência de nossa cultura à amnésia, sob o signo do lucro

imediato e da política de curto prazo3

Para Huyssen, a olhada para o passado viria para compensar a perda de estabilidade

que o indivíduo tem com seu presente, sendo, portanto, um modo de neutralizar os efeitos de uma

inserção excessivamente fluida do indivíduo na sociedade. Assim, vemos que as práticas de

memória expressam, para Huyssen, a necessidade de uma ancoragem espacial e temporal em um

mundo moldado por redes cada vez mais densas de espaço e tempos comprimidos.

”.

Aqui penso haver um liame com a História do Tempo Presente, signatária de uma

forte associação com a mnemo-história, e que guarda relação umbilical com o entendimento de nós

mesmos, onde o historiador é também ator do tempo que estuda.

Huyssen também colabora para a percepção de que a memória é sempre transitória,

não confiável e passível de esquecimento; ou seja, humana e social. Entendo que esta seja, para o

historiador do presente, uma ferramenta metodológica relevante: colocar no crivo da crítica a

verdade dos depoimentos, e dos depoentes como fontes possíveis. Entendo igualmente que a seleção

de fatos, grandeza metodológica clássica do historiador, também deve se fazer presente no trabalho

do historiador do tempo próximo e imediato, conforme identifico na assertiva de Huyssen de que,

em um mundo onde há excesso de memória, deve-se partir para a distinção dos “passados usáveis

3 HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela Memória: arquitetura, monumentos, mídia. Tradução de Sergio Alcides. Seleção de Heloisa Buarque de Hollanda. 2ª. Ed. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000. P. 76.

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dos passados dispensáveis4

Outras questões relevantes são verticalizadas por Huyssen em Os Vazios de

Berlim. Huyssen trata das mudanças ocorridas após a queda do muro, em 1989. Para ele, na

reconstrução da cidade pós-muro, existiu um choque discursivo entre a proposta de se edificar uma

urbe voltada para o futuro, globalizada, e a idéia de se restaurar uma cidade que existiu antes dos

eventos trazidos pelo nazismo. Assim, é plausível perceber que a reconstrução de um espaço urbano

possa ser empreendida em diferentes sentidos, e de acordo com interesses diversos.

”, ou seja, de se empreender uma seleção produtiva em relação às

informações de memória.

Outra contribuição relevante de Huyssen está em identificar em cidades como Berlim

sua introjeção à uma sociedade que midiatiza a quase tudo, inclusive o próprio espaço urbano.

Assim, a cidade se traslada em imagem e espetáculo, como mostra Huyssen: “central para este novo

tipo de política urbana são os espaços estéticos para consumo cultural megastores e megavenetos

museicos, festivais e espetáculos de todo tipo, todos tentando atrair novos tipos de turista5

Concluindo, e como já esbocei no início desta resenha, uma das linhas de força da

coletânea está na identificação e entendimento de nosso tempo. A História do Tempo Presente,

tendo o objetivo de conhecer e identificar os processos de construção das identidades que se inserem

em uma sociedade midiática, espetacular e consumista, serviria assim para isto: fazer com que

entendamos o mundo ao nosso redor, auxiliando a que conheçamos melhor a nós mesmos.

”.

Endereço eletrônico para correspondência:

[email protected].

* Andreas Huyssen, nascido em 1942, se doutorou em 1969 na Universidade de Zurique e foi docente desta data até 1986 na Universidade de Wisconsin-Milwaukee, Estados Unidos. Desde 1986 ensina Literatura Comparada e Alemã na Universidade de Columbia, também neste país. Nesta, fundou o Centro de Literatura Comparada e Sociedade e encabeça o Conselho Editorial do New German Critique, periódico de estudos germânicos.

4 HUYSSEN, 2000. P. 37. 5 HUYSSEN, 2000, 91.

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