Resenha Sobre o Fio Das Missangas

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297 Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Letras e cognição n o 41, p. 297-301, 2010 UM COLAR DE EXPERIÊNCIAS: O OLHAR COTIDIANO DE MIA COUTO EM O FIO DAS MISSANGAS Otavio Henrique Meloni 1 RESUMO O escritor moçambicano Mia Couto apresenta em O fio das missangas sua vertente mais perspicaz: a de contista. Porém, os anos sem publicar nesse gênero nos fazem perceber a evolução temática e a lapidação vocabular – marcas do autor – de maneira renovada e mais aguçada. Buscaremos aqui analisar tais evoluções e suas conse- quências na escrita rápida deste respeitado escritor afri- cano de língua portuguesa. PALAVRAS-CHAVE: Mia Couto - Literatura Mo- çambicana - Contos africanos D esde os anos oitenta nos acostumamos a um nome que logo se trans- formaria em um dos mais representativos escritores das literaturas africanas de língua portuguesa. Falamos do moçambicano Mia Couto e de sua escrita sempre laçada entre o fantástico e o real, desde a construção morfológica do texto até seus sentidos últimos e edificantes. Tal combinação fez com que o autor de Terra Sonâmbula (1992) se tornasse recordista de vendas em todo o mundo e fosse traduzido para diversas línguas. Autor de poesias, contos e romances, Mia Couto, também biólogo, sempre buscou em sua escrita uma parcela que fosse de sentido para a existência humana diante das catástro- fes e ruínas espirituais e sociais, muitas vezes expondo opiniões e convicções 1 Ex-professor Substituto de literaturas africanas de língua portuguesa na UFRJ e Aluno de doutorado em estudos literários da UFF.

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resenha sobre o livro de contos de Mia Couto "O fio das missangas"

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297Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Letras e cognição no 41, p. 297-301, 2010

um CoLAr DE EXPEriÊNCiAS: o oLHAr CoTiDiANo DE miA CouTo Em

o Fio DAS miSSANGAS

Otavio Henrique Meloni1

RESUMO

O escritor moçambicano Mia Couto apresenta em O fio das missangas sua vertente mais perspicaz: a de contista. Porém, os anos sem publicar nesse gênero nos fazem perceber a evolução temática e a lapidação vocabular – marcas do autor – de maneira renovada e mais aguçada. Buscaremos aqui analisar tais evoluções e suas conse-quências na escrita rápida deste respeitado escritor afri-cano de língua portuguesa.

PALAVRAS-CHAVE: Mia Couto - Literatura Mo-çambicana - Contos africanos

Desde os anos oitenta nos acostumamos a um nome que logo se trans-formaria em um dos mais representativos escritores das literaturas africanas de língua portuguesa. Falamos do moçambicano Mia Couto

e de sua escrita sempre laçada entre o fantástico e o real, desde a construção morfológica do texto até seus sentidos últimos e edificantes. Tal combinação fez com que o autor de Terra Sonâmbula (1992) se tornasse recordista de vendas em todo o mundo e fosse traduzido para diversas línguas. Autor de poesias, contos e romances, Mia Couto, também biólogo, sempre buscou em sua escrita uma parcela que fosse de sentido para a existência humana diante das catástro-fes e ruínas espirituais e sociais, muitas vezes expondo opiniões e convicções

1 Ex-professor Substituto de literaturas africanas de língua portuguesa na UFRJ e Aluno de doutorado em estudos literários da UFF.

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298Meloni, Otavio Henrique. Um colar de experiências:

O olhar cotidiano de Mia Couto em O fio das missangas

políticas disseminadas em meio ao discurso do fantástico e na nomeação dos personagens, por exemplos.

Essa fórmula parece se repetir em seu mais recente livro de contos O fio das missangas, publicado originalmente no ano de 2003 em Portugal, mas só chegado ao público brasileiro, pela editora Companhia das Letras, no ano de 2009. Nele Mia Couto retorna à sua escrita embrionária, a mesma que permeou os predecessores Cada homem é uma raça (1990) e Estórias abenssonhadas (1994), seus mais representativos e conhecidos títulos na área dos contos. Sim, em O fio das missangas, reencontramos o moçambicano dando a voz do texto aos mais simples personagens que, como corriqueiro em sua escrita, acabam por transmitir as mensagens mais profundas e as reflexões mais densas em seus textos. Porém, o que o título de 2009 tem de diferente em relação aos outros já publicados pelo autor? Há uma inversão de proporcionalidade do binômio sonho (lido muitas vezes como fantásti-co)/ realidade (quase sempre representando a miséria humana), o que acaba propondo uma revisão/evolução do olhar crítico e suas formas de represen-tação ao longo desses mais de vinte anos. Com isso, a realidade passa a ser a base fundadora das estórias (pelo menos da maioria delas), trazendo temá-ticas cotidianas, quase crônicas diárias de pessoas comuns em uma cidade qualquer do mundo que, frente aos seus conflitos, confrontam aspectos da modernidade e da tradição em situações típicas do século XXI; e as temáti-cas do sonho, do fantástico e do irreal passam a permear tal realidade como forma de adensar os aspectos humanos e sociais contidos em cada episódio narrado. Tal inversão de proporção traz para esse recente título de Mia Cou-to um toque diferenciado dos anteriores e nos convoca a uma reflexão como leitores atentos que somos – ou deveríamos ser... – tanto da realidade que nos cerca, como do universo literário do autor.

De maneira estrutural, O fio das missangas, como o próprio título já aponta, é uma reunião de contos curtos, aparentemente esparsos, mas que conjugados se tornam em um imenso colar. Ao leitor passa a caber o pa-pel de artesão que organiza as missangas narrativas deixadas pelo escritor, formando seu entendimento maior ao final do volume. E o resultado não poderia ser outro: um colar de emoções humanas que ultrapassam os limites do social com extrema sensibilidade poética. A poesia, já visitada pelo es-critor em títulos como Raiz de orvalho (1983) e Idades Cidades Divindades

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(2007), retorna neste volume de contos de maneira incisiva, disseminada em meio à prosa sempre tão criativa e inovadora deste moçambicano. À maneira como se costuram os textos, sempre enlaçados por temáticas ou vozes que se alinham em um sentido maior, cabe ao poético abrir as portas da “realidade” para o tratamento do fantástico pelo verossímil, como podemos ver muito bem no conto “O homem cadente”, que narra a estória de um homem que se atira da janela do seu apartamento, mas demora muito tempo para che-gar até o chão. Tal fato provoca uma série de reflexões do narrador até seu desfecho um tanto quanto surpreendente, que preferimos não adiantar aqui para preservar a surpresa.

Desse modo, os contos giram em torno de um personagem central que pode ser compreendido como uma das missangas desse colar narrativo, já que norteiam as reflexões filosóficas, políticas e literárias de cada estória. Cabe ainda ressaltar que as mulheres assumem um protagonismo vital em grande parte dos textos o que, se não é tão surpreendente na obra do autor, apresenta uma escolha interessante para o universo totalizador do volume, que pode ser exemplificado pelo conto que dá nome (ou mais se aproxima disso) à reunião de contos. Nesse texto, encontramos o personagem mascu-lino JMC que diz guiar/compor sua vida pelas mulheres que “visita”: “A vida é um colar. Eu dou o fio, as mulheres dão as missangas. São sempre tantas as missangas...” (p. 66).

De tais personagens e de sua realidade circundante irradiará a força gravitacional das pequenas narrativas (algumas quase crônicas) e, posterior-mente, entrelaçadas pelos temas e tratos apresentados como possibilidades de vida durante os contos, comporão o místico-cotidiano colar. Como en-contramos, por exemplo, no conto “O cesto”, em que a protagonista vive às voltas com o marido internado em situação de quase-morte, em antecipado/adiado luto que, por vezes, a faz desejar sua morte como símbolo de liberta-ção. É através desta situação que conhecemos o emocional de uma mulher que fora subjugada e “aprisionada” numa condição que já não combina com os avanços e as conquistas femininas contemporâneas e que, ao ser “liber-tada” dos compromissos matrimoniais pelo falecimento do esposo, acaba se deparando com uma nova prisão, agora particular e muito mais difícil de lidar. Portanto seja por um caminho voltado para o lado emocional, como nos contos “As três irmãs” e “O adiado avô”, ou pelo lado mais social

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O olhar cotidiano de Mia Couto em O fio das missangas

e político, como no caso de “O mendigo sexta-feira jogando no Mundial” – citando apenas alguns exemplos –, Mia Couto encaminha seu leitor a um universo cotidiano, que intercala o urbano e o rural, repleto de conflitos pessoais típicos do século XXI, ainda que atravessados pelos raios de crenças e mitos que o autor trabalha/cria tão bem.

A sensibilidade do autor, portanto, nos leva a estórias possíveis em qual-quer parte do mundo, mas compreensíveis de maneira mais reflexiva apenas em seu universo. O leitor familiarizado com a obra de Mia Couto irá en-contrar nesta reunião – proposital – de contos arestas dos principais motes do autor, mas se surpreenderá com a maneira como essas farpas de ilusão furam os seus olhos e demoram a sair, tamanha sua ligação com a realidade. Por outro lado, os leitores de primeira viagem no universo do moçambicano encontrarão, sem dúvidas, um prazeroso caminho de leitura em cada conto e uma unidade temática progressiva ao final do volume que os levará a buscar outros títulos do autor.

Leitura obrigatória para os fãs do escritor moçambicano e profunda-mente recomendável aos que gostam da boa literatura, O fio das missangas é uma ótima oportunidade para revermos nosso olhar sobre determinados conceitos sociais e humanos de maneira sensível e mais flexível. Como diz o provérbio Munhava que serve de epígrafe ao conto “A carta de Ronaldinho”: “O problema não é ser mentira. É ser mentira desqualificada”. Essa parece ser a mensagem mais contundente do colar narrativo tecido pelo artesão vocabular Mia Couto: precisamos questionar nossas verdades e certezas mais antigas para voltar a nos sensibilizar com as pequenas/grandes mazelas hu-manas que nos assolam nestes novos tempos. Com o fio e as missangas em mãos, basta ao leitor formar seu colar de experiências e emoções costuradas pelas palavras invisíveis que todos os dias, em cada pequena atitude ou mo-mento, esquecemos de ler.

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COUTO, Mia. O fio das missangas. São Paulo: Cia das letras, 2009. 147 páginas.

The Mozambican writer, Mia Couto, presents in O fio das Missangas his outstanding characteristic of being a storyteller. In his work, it can be perceived both the the-matic evolution and vocabulary improvement. We aim to analyze these developments and their influences in the work of this respected African writer of Portuguese language.

KEYWORDS: Mia Couto - Mozambican Literature - African Tales

Recebido em: 28/03/2010Aprovado em: 17/06/2010