Resumo de artigo
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Apontar a ingenuidade e o desconhecimento científico sobre a “verdadeira
natureza” da doença mental é um antigo caminho para desqualificar a argumentação de
quem questiona o modelo manicomial, reduzindo-a a amadora. Não é nenhuma
novidade contemporânea a abordagem desumanizada dos pacientes, à busca de uma
“cura” a qualquer preço ou método, e a redução do ser humano à condição de
encarnação viva de uma categoria nosográfica.
A psiquiatria foi a primeira medicina especial, o primeiro campo de
especialidade, tendo como primeira tarefa dotar a loucura de um estatuto de
inteligibilidade, de uma tradução científica que permita sua adequação ao olhar e à
intervenção do modelo médico. A psiquiatria retira a loucura da indiferenciação em que
se encontrava nas grandes casas de internamento e, sob um discurso humanitário,
pregou a necessidade de uma forma de tratamento para os loucos, e não meramente sua
prisão. Assim, a exigência de cura é imposta a psiquiatria.
A prática asilar e o tratamento moral passam a sofrer um questionamento
médico, sobretudo acerca de suas concepções espontâneas da loucura, frutos de uma
perspectiva moral e social. Surge a ideia de um dano cerebral subjacente à loucura, que
ganha mais peso. Irrompem teorias da degenerescência e, mais tarde, uma querela entre
os psiquiker (causalidade psicológica) e os somatiker (causalidade biológica), que se
torna base do pensamento psiquiátrico tradicional. A contribuição da visão biológica
sobre a loucura é reforçada com o início da utilização de medicação antipsicótica. Para
os fisicalistas radicais, é como se a psiquiatria estivesse próxima de cumprir seu ideal,
tornando-se medicina como todas as outras.
Com Freud, são formuladas conceitualizações e intervenções que dispõem a
loucura num universo simbólico; no século XX, o projeto moderno de intervenção e
conceitualização social da loucura; e, finalmente, nos anos 60-70, eclodem movimentos
de matriz marxista, como a psiquiatria democrática italiana, que encara a loucura a
partir de determinantes político-sociais, colocando num plano de equivalência a
intervenção sobre o socius e a ação terapêutica. Temos o dilema hamletiano bem
colocado: biogênese, psicogênese ou sociogênese?
O que está em jogo é a permanente ideia de uma causalidade única subjacente à
loucura. É a ideia de que, algum dia, de algum modo, encontraremos a causa, o fato ou
fenômeno determinante do enlouquecimento. Considerando-se que um discurso contém
a verdade absoluta sobre a problemática da loucura, passa-se de imediato a postulação
de um tipo de tratamento único para todos os casos. A ação terapêutica torna-se, então,
uma desesperada tentativa de tornar o psicótico algo que ele não é, porque não quer, ou
porque não pode ser. Se há algo em comum entre as diversas formulações terapêuticas
ao longo da história, talvez seja sua pretensão a univocidade. Os reducionismos
comportam arrogância.
A visão de causalidade única, de determinismo oculto, essencializa a ideia de
doença. Nesse paradigma, a cura corresponde a extirpação de algo, à modificação de
alguma natureza secreta errônea (...) um jogo de forças onde parecem perfeitamente
justificáveis a exclusão, a sujeição, a imposição de soluções institucionais rígidas, o
querer que o delírio se cale, a esterilização, o extermínio eugênico de populações, etc.
O que é a natureza da psicose e qual a verdadeira maneira de curá-la são
perguntas irrelevantes. Porém, isso não quer dizer que as contribuições de cada uma
dessas possibilidades de entendimento da loucura não tenham utilidade. O problema é
que isoladamente, nenhuma delas irá dar conta da totalidade de questões que envolvem
o exercício terapêutico e prática assistencial com sujeitos psicóticos. Nenhuma delas
implica em uma cura unidirecional. São úteis, na medida que nos fornecem recursos que
podem, pontualmente, dar conta de uma certa ordem de problemas, aliviando o
sofrimento e dando melhores condições de existência singular para alguém.
Assim, usar medicamento, fazer terapia e frequentar espaços institucionais,
construindo laços de sociabilidade são instrumentos dos quais podemos dispor na
condução da estratégia terapêutica, desde que não se perca de vista o objetivo: que o
sujeito deve, interagindo com os recursos de assistência, ganhar autonomia, respeitando
a si e ao outro, construindo o melhor percurso singular de existência possível. Escapa-se
do dilema hamletiano: não é preciso reduzir o sujeito aos determinantes do bio-psico-
social. Trata-se de definir qual recurso pode ser mais salutar para um homem em sua
circunstância.
O sentido médico corriqueiro de cura implica na restituição a um estado
hipotético inicial de normalidade, e não deve ser aplicado a uma situação que envolve
sujeitos em sua existência. Por outro lado, a cura pode ser pensada como um trajeto de
tratamento, onde existe maleabilidade em relação aos sujeitos envolvidos, onde cada
momento tem um valor, onde uma norma de recuperação final não se impõe a todo
instante.