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RÉU REVEL, VÍCIO DE CITAÇÃO E QUERELA NULLITATIS INSANABILIS EDUARDO JOSÉ DA FONSECA COSTA Juiz Federal Substituto em Franca – SP Bacharel em Direito pela USP Especialista, Mestre e Doutorando em Direito Processual Civil pela PUC-SP Membro do IBDP e da ABDPC Membro do Conselho Editorial da Revista Brasileira de Direito Processual SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. O termo “processo” e sua indefinição semântica – 3. Processo como “procedimento” – 4. Processo como “complexo de situações jurídicas – 5. O processo-procedimento e os vícios da citação – 6. O processo-situação e os vícios da citação – 7. Sentença nula e sentença inexistente – 8. Sentença nula e sentença rescindível – 9. Conclusão. Resumo: Sentença proferida em processo de réu revel não-citado ou mal-citado padece de nulidade. Não se há de reputá-la inexistente sob a alegação de que o processo não existe. Sendo a citação válida um “pressuposto processual de validade”, o vício de citação implica nulidade de todos os atos processuais (inclusive da sentença). No plano da existência, o processo é seqüência de atos [= “processo-procedimento”]; no plano da eficácia, é sucessão de situações jurídicas [= “processo-situação”]. Logo, ante um vício de citação, nulifica-se o processo-procedimento. Daí por que o processo-situação sequer nasce: o nulo não gera efeitos. Uma vez que a sentença se coloca no plano da existência, não no da eficácia, não deixa de existir em caso de vício insanável de citação. Contudo, existe nulamente. Por tal razão, é ela impugnável por meio da ação de nulidade prevista no art. 486 do CPC, não por meio de uma imprescritível ação declarativa de inexistência de sentença. Quando muito se pode tolerar, por razões práticas, o uso da ação rescisória.

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RÉU REVEL, VÍCIO DE CITAÇÃO E QUERELA NULLITATIS

INSANABILIS

EDUARDO JOSÉ DA FONSECA COSTA

Juiz Federal Substituto em Franca – SP

Bacharel em Direito pela USP

Especialista, Mestre e Doutorando em Direito Processual Civil pela PUC-SP

Membro do IBDP e da ABDPC

Membro do Conselho Editorial da Revista Brasileira de Direito Processual

SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. O termo “processo” e sua indefinição semântica – 3.

Processo como “procedimento” – 4. Processo como “complexo de situações jurídicas –

5. O processo-procedimento e os vícios da citação – 6. O processo-situação e os vícios

da citação – 7. Sentença nula e sentença inexistente – 8. Sentença nula e sentença

rescindível – 9. Conclusão.

Resumo: Sentença proferida em processo de réu revel não-citado ou mal-citado

padece de nulidade. Não se há de reputá-la inexistente sob a alegação de que o processo

não existe. Sendo a citação válida um “pressuposto processual de validade”, o vício de

citação implica nulidade de todos os atos processuais (inclusive da sentença). No plano

da existência, o processo é seqüência de atos [= “processo-procedimento”]; no plano da

eficácia, é sucessão de situações jurídicas [= “processo-situação”]. Logo, ante um vício

de citação, nulifica-se o processo-procedimento. Daí por que o processo-situação sequer

nasce: o nulo não gera efeitos. Uma vez que a sentença se coloca no plano da existência,

não no da eficácia, não deixa de existir em caso de vício insanável de citação. Contudo,

existe nulamente. Por tal razão, é ela impugnável por meio da ação de nulidade prevista

no art. 486 do CPC, não por meio de uma imprescritível ação declarativa de inexistência

de sentença. Quando muito se pode tolerar, por razões práticas, o uso da ação rescisória.

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Palavras-chave: Processo – Procedimento – Sentença – Nulidades processuais –

Querela nullitatis insanabilis – Ação anulatória – Ação rescisória – Vícios da citação –

Plano da existência – Plano da validade – Plano da eficácia.

Riassunto: È viziata di nullità la sentenza proferita in processo senza

comunicazione della domanda al convenuto. L’inesistenza del rapporto processuale non

provoca l’inesistenza della sentenza. Se la citazione valida è un “pressuposto di validità

del processo”, allora il vizio di citazione implica la nullità di tutti gli atti processuali

(specialmente della sentenza). Nel piano della esistenza, il processo è una seguenza di

atti [= “processo-procedimento”]; nel piano dell’efficacia, è una successione di

situazioni giuridiche [= “processo-situazione”]. Quindi il vizio della citazione determina

la nullità del processo-procedimento. Così il processo-situazione non nasce, perchè il

nullo non produce effetti giuridici. Contuttochè sia insanabile il vizio della citazione, la

sentenza esiste, visto che lei abita al piano della esistenza, non al piano dell’efficacia.

Tuttavia la sentenza esiste nullamente. Quindi lei è impugnabile per mezzo della azione

di nullità prevista all’articolo 486 del Code di Procedura Civile Brasiliano, non per

mezzo della imprescrititibile azione dichiarativa di inesistenza di sentenza. Però, per

raggioni pratiche, si può tolerare l’uso della azione rescissoria.

Paroli-chiave: Processo – Procedimento – Sentença – Nullità processuali –

Querela nullitatis insanabilis – Azione annullatoria – Azione rescissoria – Vizi della

citazione – Piano dell’esistenza – Piano della validità – Piano dell’efficacia.

1. Introdução

As proposições da Ciência Moderna não são revelações divinas que se agregam

harmoniosamente umas às outras à medida que a Humanidade se torna digna de recebê-

las. Via de regra, o labor científico é produto de uma divisão social de trabalho, em que

comunidades autônomas se dedicam a fatias da realidade sob a égide da especialização.

Daí por que o cientista se tornou um “ignorante especializado” (Boaventura de Sousa

Santos). Por isto, em um certo sentido, todo conhecimento científico nasce heterogêneo,

carente de uma elaboração unificante e unificadora, só ao longo dos anos conquistada a

duras penas. Assim, não há ramo científico que não lute por uma “teoria-total”, capaz de

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enfeixar numa estrutura única todos os seus modelos esparsos até então incomunicáveis.

Hoje, o Santo Gral da Física é o alcance de uma teoria quântica do campo gravitacional,

que una a Relatividade Geral de Albert Einstein e a Mecânica Quântica de Max Planck,

Niels Bohr e tantos outros; na Biologia, ainda não findou o trabalho de síntese moderna

entre a teoria da evolução de Charles Darwin e a biologia molecular; a Matemática tenta

ainda unificar, em uma linguagem-dicionário, a Topologia, a Álgebra, a Geometria, etc.

Na Ciência Jurídico-Dogmática, por exemplo, um dos mais difíceis problemas é

o desenvolvimento de uma teoria una das nulidades, comum a todo e qualquer do ramo

do Direito. Por algum tempo, a comunidade dos juristas acreditou que o Civilismo seria

a plataforma de lançamento de uma “doutrina geral” das nulidades. Afinal de contas, a

Ciência do Direito Civil sempre foi o mais evoluído ramo dogmático em razão do seu

processo de aprimoramento deflagrado desde a civilização antiga. Porém, a vida prática

foi corroendo todos os modelos de inspiração privatista e demonstrando que uma teoria-

M das nulidades ainda é um sonho distante. O Direito Civil, o Direito Processual Civil,

o Direito Processual Penal e o Direito Administrativo ainda possuem teorias de nulidade

com relativo grau de insulamento. Portanto, no atual estágio da evolução social, ainda é

mais conveniente que cada ramo dogmático produza a sua própria teoria.

No que diz especificamente com a Ciência do Processo, essa teoria ainda está em

construção. Nem se há de exigir celeridade nesse trabalho. Quando se trata de processo

civil, as dificuldades são tormentosas. O próprio Código de Processo Civil de 1973, ao

invés de introduzir um modelo definitivo e redentor sobre o tema, nada mais fez do que

ser um espelho de todas essas perplexidades. Daí por que há discordâncias entre o que

diz o CPC e o que dizem doutrina e jurisprudência. Onde o CPC escreve “inexistência”,

por vezes se lê nulidade; onde o CPC escreve “nulidade”, por vezes se lê ineficácia. E,

por vezes, onde o Código escreve “nulidade”, não se sabe se essa nulidade é absoluta ou

relativa. Aliás, a própria Processualística diverge quanto a essas noções. O que para

alguns é inexistência para outros é invalidade. O que para uns é invalidade para outros é

ineficácia. Há quem faça distinção entre nulidade absoluta e nulidade relativa. Há quem

veja diferenças entre a nulidade relativa e a anulabilidade. Há quem só fale em nulidade,

dividindo-a em nulidade sanável e nulidade insanável. Há ainda aqueles que classificam

a rescindibilidade como mais uma das espécies de vício, ao lado das nulidades absoluta

e relativa. Isso sem falar daqueles que, nesse amontoado de vícios, despejam a figura da

irregularidade. Há até mesmo os que divisam uma gradação contínua de reprovabilidade

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entre irregularidade, nulidade e inexistência. Nem mesmo a noção de inexistência ainda

é pacífica, já que há quem entenda ser ela uma espécie de “supernulidade”1.

Pois bem, diante desse cipoal de teorias, modelos e opiniões, os processualistas

têm sido desafiados a afirmar qual é o vício que contamina a sentença quando proferida

num processo em que o réu, revel, não foi citado, ou citado foi de forma nula.

As respostas a essa questão têm sido assaz divergentes (como não poderia deixar

de ser).

Porém, a mais intrigante delas diz que, nesses casos, a sentença seria inexistente.

Uma primeira corrente – à qual poucos processualistas aderiram – afirma que a

sentença é inexistente em face do grau de radicalismo da sua nulidade. Segundo esses

juristas, a situação do réu revel em um processo de citação nula ou sem citação é tão

repugnante para a consciência jurídica atual que a sentença nele proferida ultrapassa as

fronteiras da nulidade e alcança as raias da inexistência2. Nesse sentido, haveria uma

relação de gradação entre a nulidade e a inexistência, como se a nulidade fosse uma pré-

inexistência e a inexistência uma pós-nulidade. Essa linha de pensamento, entretanto,

foi cedendo passo à medida que a dogmática sedimentou a teoria do mundo jurídico e a

1 Um interessante painel doutrinário acerca das diversas teorias sobre as invalidades processuais

pode ser visto em DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil. v. 1, pp. 242-246. 2 Segundo Enrico Tullio Liebman, “os defeitos do processo e da sentença são em regra sanados

pela coisa julgada; os poucos que lhe sobrevivem podem servir de fundamento à ação rescisória,

valendo entretanto a sentença enquanto não for rescindida. A lei prevê, porém, caso de nulidade

absoluta que é o da falta ou nulidade da citação inicial do processo em que a sentença se

proferiu, se o processo houver corrido à revelia do condenado (CPC, art. 1.010, I [art. 741, I]);

nesta hipótese o processo deve considerar-se radicalmente nulo e a sentença que nele se proferiu

é juridicamente inexistente, de tal forma que qualquer juiz e, portanto, também o da execução,

pode declarar este fato e recusar os efeitos da sentença proferida em tais condições” (Processo

de execução, pp. 217-218). Em outra oportunidade, o mesmo processualista italiano defende que

a falta de citação “ofende tão profundamente o direito reconhecido a todo cidadão de defender-

se perante o juiz que vai julgá-lo, que torna radicalmente nulo, juridicamente inexistente o

processo, igualmente nula e inexistente a sentença proferida” (“Nulidade da sentença proferida

sem citação do réu”, p. 183). Neste mesmo sentido, ainda: GAJARDONI, Fernando da Fonseca.

“Sentenças inexistentes e querela nullitatis”, p. 99; VIDIGAL, Luís Eulálio de Bueno. Da ação

rescisória dos julgados, p. 33.

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distinção que nele se faz entre o plano da existência e o plano da validade (não obstante

o próprio texto do Código de Processo Civil de 1973 faça essa confusão).

Já uma segunda corrente – essa sim enfileirada por um contingente numeroso de

juristas – diz que é inexistente a sentença proferida no processo em que o réu revel não

haja sido citado ou tenha sido citado nulamente, visto que a própria relação processual é

inexistente3. Tudo seria um “processo aparente”, i.é., um amontoado de autos dotado de

simples faticidade, sem qualquer significação jurídica. Logo, contra réu revel não-citado

ou mal-citado não são oponíveis os efeitos da coisa julgada: o manto da res iudicata não

pode recair sobre aquilo que não existe.

Para chegar-se a essas conclusões, parte-se de um raciocínio bastante perspicaz:

se o processo é uma relação jurídica triangular composta por autor, réu e Estado-juiz, e

se essa triangulação só é completada por meio da citação válida do réu, então a nulidade

ou a inexistência da citação importará na falta de aperfeiçoamento da relação processual

(já que o nulo não produz efeito algum) e, por conseguinte, na inexistência do processo

(razão pela qual a sentença nele proferida seria mera “aparência de sentença”). Portanto,

se nos autos processuais sobreviesse o carimbo de trânsito em julgado dessa “sentença”,

ela não seria propriamente uma decisão rescindível (CPC, art. 485) – visto que não há o

que rescindir –, ou nulificável (CPC, art. 486) – visto que não há o que nulificar –, mas

simplesmente inexistente. Essa “sentença” seria um nada, ou seja, uma ilusão incômoda

cuja existência precisa ser desmistificada.

Para conseguir-se a certificação dessa inexistência, bastaria a propositura de uma

ação declaratória negativa de sentença (a que alguns dão a alcunha de querela nullitatis

insanabilis). Ou seja, cravando os olhos no mundo jurídico e procurando pela sentença

produzida no processo de citação nula ou sem citação, o juiz vasculharia os planos da

existência, validade e eficácia, mas nada encontraria, senão um grande vazio. Bastaria

atestar-lhe a inexistência, portanto, não desfazê-la. Se a sentença inexiste, não há o que

3 Nesse sentido, e.g.: ARAÚJO. José Henrique Mouta. “Meios de defesa do litisconsorte passivo

necessário não citado”, pp. 517 e ss.; FREIRE, Rodrigo da Cunha Lima. Condições da ação:

enfoque sobre o interesse de agir, pp. 45 e ss.; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Nulidades do

processo e da sentença, p. 365; idem. O dogma da coisa julgada, p. 215. Entendendo que a

inexistência e a nulidade da citação são causas de existência e de nulidade, respectivamente, do

processo: GAJARDONI, Fernando da Fonseca. “Sentenças inexistentes e querela nullitatis”, pp.

99-119; SILVA, Ricardo Perlingeiro Mendes da. Teoria da existência no direito processual

civil, p. 55.

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ser desconstituído. Daí por que, segundo essa corrente de entendimento, a sentença aqui

seria um mero “bruto fático”, que não ingressa no mundo jurídico sequer pelo plano da

existência e que, por via de conseqüência, não tem suficiência ontológica para alcançar

os planos da validade e da eficácia. Quando muito essa sentença teria relevância para o

mundo sociológico, não para o mundo jurídico. Nesse sentido, a Processualística traria

uma contribuição para o sistema jurídico positivo vigente, visto que Código de Processo

Civil só traz em sua textualidade duas espécies de “ação impugnativa de sentença” – a

ação rescisória (artigo 485) e a ação anulatória (artigo 486) –, não obstante o sistema

comportasse mais uma hipótese – a querela nullitatis insanabilis.

Não se pode concordar com essas afirmações, porém.

Daí o objetivo do presente trabalho: revelar os equívocos da corrente doutrinária

que sustenta a inexistência da sentença em caso de réu revel não-citado ou mal-citado.

Decididamente, vícios de citação não importam em inexistência de sentença. Em

outras palavras: o ingresso do ato citatório no plano da existência ou da validade não é

condição para o ingresso do ato sentencial no plano da existência. A sentença não deixa

de existir pelo simples fato de haver sido proferida em processo de citação nula ou sem

citação em que o réu seja revel. Inegavelmente, poderá conter outros vícios. Mas não o

da inexistência (devendo-se registrar desde já, porém, que a inexistência não é um vício

propriamente dito, como se verá melhor adiante). Não vige, atualmente, qualquer norma

de direito positivo que respalde esse entendimento, senão uma compreensão errônea da

teoria dos três planos do mundo jurídico.

2. O termo “processo” e sua indefinição semântica

Tem sido equivocada a ressurreição da querela nullitatis insanabilis como uma

ação declaratória de inexistência de sentença. Como se demonstrará adiante, a sentença

proferida contra réu revel mal-citado ou não-citado é nula4. Portanto, tem de ser retirada

4 No mesmo sentido, e.g., ASSIS, Araken de. Manual da execução, p. 1041; BEDAQUE, José

Roberto dos Santos. Efetividade do processo e técnica processual, pp. 460 e ss.; BARBOSA

MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil. v. V, p. 102; DIDIER JR.,

Fredie. Curso de direito processual civil. v. 1, p. 423; FABRÍCIO, Adroaldo Furtado. “Réu

revel não citado, querela nullitatis e ação rescisória”, p. 265; LUCON, Paulo Henrique dos

Santos. Embargos à execução, pp. 163-168; NEVES, Celso. Comentários ao Código de

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do mundo jurídico por meio de sentença desconstitutiva de nulidade, e não reconhecida

como um nada por meio de sentença declaratória de inexistência.

Uma parte desse equívoco tem raízes na história da categoria do processo. Como

é cediço, desde a segunda metade do séc. XIX o estudo dogmático do processo tem sido

monopolizado pelas ciências do processo civil e do processo penal. Todavia, a dinâmica

hodierna do Estado tem demonstrado que o processo não é um instrumento exclusivo da

jurisdição, mas também das atividades administrativa e legislativa. Com isto, o estudo

do fenômeno processual passou a ser encampado por outros ramos do saber jurídico,

como o Direito Administrativo, o Direito Constitucional e o Direito Parlamentar. Ficou

patente, portanto, que o processo, antes de ser uma categoria da Processualística, é uma

categoria da Teoria Geral do Direito. No entanto, a própria Teoria Geral do Direito tem

falhado no propósito de instituir um conceito genérico de processo e de desvencilhar-se

das especificidades materiais que condicionaram a sua elaboração no âmbito da Ciência

Processual Civil. Aliás, na medida em que a noção de processo nem mesmo se encontra

pacificada entre os processualistas, fica difícil imaginar a sua sedimentação rápida nos

quadros de uma Teoria Geral do Direito. Em verdade, tudo indica que a sua estruturação

semântica definitiva esteja longe de acontecer.

O problema agrava-se quando se constata que a noção de procedimento – com a

qual a noção de processo é sempre confundida – também padece de indefinições. Trata-

se de mais uma categoria que, embora apropriada pela Ciência Dogmática do Processo,

há muito deveria ter sido burilada à luz de uma teoria geral. Se possível é que se fale em

“processo judicial”, “processo legislativo” e “processo administrativo”, é possível falar-

se também em “procedimento judicial”, “procedimento legislativo” e “procedimento

administrativo”. Todavia, como não se sabe bem o que são o processo e o procedimento

no âmbito da Processualística, essas duas noções sempre ficam mal-acomodadas quando

transplantadas para outros âmbitos do Direito. Ou seja, as questões irresolutas da ciência

processual civil acabam contaminando outros ramos jurídicos nos quais o fenômeno da

processualidade também se faz presente.

Em verdade, o processo e o procedimento são aspectos diferentes de uma mesma

coisa. Essa “mesma coisa” exibe uma espécie de dualidade, pois. Quando a enxergamos

no mundo jurídico pelo plano da existência, chamamo-la de “procedimento”; entretanto,

Processo Civil. v. VII, p. 214; PONTES DE MIRANDA. Comentários ao Código de Processo

Civil. t. XI, pp. 92 e ss.

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quando a vemos pelo plano da eficácia, damos-lhe o nome de “processo”. Procedimento

é um conceito do plano da existência, que nela convive com as noções de “fato jurídico”,

“ato-fato jurídico”, “ato jurídico”, “negócio jurídico”, “atividade jurídica”. Já processo é

conceito do plano da eficácia, que nela vive junto com as noções de “situação jurídica”,

“relação jurídica”, “qualificação jurídica”. Logo, assim como não pode existir confusão

entre o contrato [plano da existência] e a obrigação contratual [plano da eficácia], não

se confundem o procedimento e o processo. Não há nascimento de obrigação contratual

sem que exista contrato (se o contrato for válido); porém, pode ser que exista o contrato,

mas não a respectiva obrigação (caso inválido o contrato). Da mesma forma, se houve o

desenrolar de um processo, é porque um procedimento foi desenrolado; todavia, se esse

procedimento estiver inquinado de nulidade, processo não haverá. À medida que os atos

que integram o procedimento são praticados sem qualquer vício, eles penetram o mundo

jurídico pelo plano da existência, transpõem o plano da validade e alcançam o plano da

eficácia para nele irradiarem as situações jurídicas que conformam o processo5.

Entretanto, muitos são os autores que ainda tomam um conceito pelo outro, ora

interpenetrando-os, ora tornando-os sinônimos.

Há autores que vêem o processo como “procedimento em contraditório”6. Nesse

sentido, as duas categorias vagariam pelo plano da existência, não obstante o “processo”

traga consigo alguns atributos diferenciadores. Trata-se de uma concepção que bastante

tem influenciado a ciência do direito administrativo, conquanto aqui ainda se vacile nos

usos das expressões “processo administrativo” e “procedimento administrativo”. Seria

caso de “procedimento administrativo”, p. ex., o itinerário formal mensalmente seguido

para que se pague o vencimento de um servidor público; por sua vez, seria um exemplo

de “processo administrativo” o trâmite formal obedecido na licitação, na punição de um

5 Em sentido similar, p. ex.: YARSHELL, Flávio Luiz. Tutela jurisdicional, pp. 181-182: “[...] o

ato processual é, em última análise, o resultado do exercício de uma dada posição jurídica ativa

que emerge da relação processual – ou o resultado do exercício do contraditório. Dessa maneira,

cada vez que se exercita um poder, direito, ônus ou faculdade, pratica-se um ato processual que,

por sua vez, faz nascer uma nova posição jurídica cujo exercício desembocará na prática de um

novo ato processual e assim sucessivamente, até o atingimento do objetivo final do processo”. 6 Assim, p. ex., DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo, p. 67;

FAZZALARI, Elio. Istituzioni di diritto processuale, p. 29.

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servidor público ou no julgamento de uma impugnação ou de um recurso administrativo

interposto contra auto de infração7.

Já no plano da ciência processual, as conseqüências teóricas dessa concepção são

interessantes. É comum dizer-se nos compêndios e manuais que na chamada “jurisdição

voluntária” não há um “processo”, mas um mero “procedimento”, uma vez que nela não

há atividade jurisdicional propriamente dita, mas “administração pública de interesses

individuais” pelo Poder Judiciário. Mas não se pode negar que os ditos “procedimentos

graciosos de jurisdição voluntária” estão também estruturados sob os sãos influxos do

contraditório e da ampla defesa, motivo pelo qual se poderia afirmar que na “jurisdição

voluntária” há decididamente “processo”, não simples “procedimento”.

De qualquer maneira, tanto a dogmática processual civil quanto a dogmática do

direito administrativo têm tradicionalmente encarado a diferenciação entre “processo” e

“procedimento” colocando-os no mesmo plano de considerações: o plano da existência.

Com isto, continuam gravitando em torno das mesmas premissas equivocadas, ao redor

das quais gravitaram os primeiros processualistas. Daí por que construíram para si um

círculo vicioso do qual estão impossibilitados de sair, reproduzindo a mesma baralhada

semântica que sempre caracterizou o tema. Não se nega, aqui, a importância de partir-se

da doutrina clássica sempre que se quer rediscutir um velho problema sob termos atuais.

No entanto, Nietzsche sempre nos advertiu que ser “herdeiro” é condição perigosa, pois

não só a sabedoria do passado é legada: com ela também vêm as veleidades (“Nicht nur

der Vernunft von Jahrtausenden – auch ihr Wahsinn bricht an uns aus. Gefährlich ist es,

Erbe zu sein”). Por esse motivo, deve-se buscar a solução dos impasses a partir de bases

analíticas renovadas.

7 Cf. FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de direito administrativo, pp. 410-416. Referindo-se à

aludida administrativista, Iuri Mattos de Carvalho assim se posiciona: “Processos em sentido

estrito seriam aqueles em que houve litigantes ou acusados em geral. Para estes processos

aplicam-se integralmente as exigências do contraditório e da ampla defesa, por incidência do

art. 5º, LV da Constituição Federal [...]. Entendemos, conforme a autora, que nem todos os

processos de criação do ato administrativo são processos em sentido estrito, portanto, tendo

exigências diversas. Existem processos administrativos onde não há litigantes ou acusados em

geral, mas tão-somente o mero cumprimento da função administrativa. Estes últimos poderiam

ser denominados de procedimentos” (Comentários à lei federal de processo administrativo –

Lei nº 9.784/99, p. 122).

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3. Processo como “procedimento”

Como já dito acima, o processo e o procedimento são aspectos diferentes de um

mesmo fenômeno. Esse fenômeno é chamado de “procedimento” quando é olhado pelo

plano da existência; por sua vez, recebe o nome de “processo” quando fitado pelo plano

da eficácia. Mas qual é o termo de que os juristas se utilizam para designar o fenômeno

em si? Eis um grande problema. Tradicionalmente, a teoria jurídica dá a esse fenômeno

o nome de processo. Ou seja, quando o fenômeno processual é observado pelo plano da

existência, a tradição jurídica confere-lhe o rótulo de procedimento; entretanto, quando

enxergado pelo plano da eficácia, na falta de um nome melhor, a mesma tradição lhe dá

o apelido de processo. Infortunadamente, portanto, o mesmo termo (“processo”) cumpre

a função de designar, a um só tempo, o fenômeno como um todo e um dos seus variados

aspectos.

Contudo, esse estorvo terminológico não é propriamente “culpa” dos juristas do

processo. Na história da dogmática jurídica, o aparato conceitual nem sempre esteve à

altura da complexidade do fenômeno processual. Por esta razão, séculos de imprecisão

científica acabaram gerando séculos de imprecisão terminológica. Não por outro motivo

a palavra “processo” acabou tornando-se designativa de coisas diferentes. Assim, para o

desespero do rigor científico, todo um cipoal de confusões passou a ser instalado. E até

hoje a Processualística paga um alto preço por esse descuido.

Daí por que não se podem reproduzir aqui as mesmas armadilhas terminológicas

do passado. Logo, para desfazer-se o intrincado novelo semântico que acomete o termo

“processo”, fazem-se necessárias algumas redefinições.

Daqui por diante, o fenômeno processual será aqui chamado, simplesmente, de

processo.

Já o seu aspecto existencial receberá o nome de processo-procedimento.

Por fim, seu aspecto eficacial será chamado de processo-situação (abandonando-

se, portanto, o uso inconveniente da palavra que designa o fenômeno in totum).

Pois bem, quando os juristas empregam o vocábulo “processo”, por vezes estão

eles a enxergar o fenômeno através do plano da existência. Não se referem à famigerada

e velha teoria do processo uma “relação jurídica de três pólos” (“actio est actum trium

personarum”). Não. Referem-se sim ao processo como uma seqüência de fatos jurídicos,

atos jurídicos stricto sensu, atos-fatos jurídicos e negócios jurídicos efetuados pelo autor

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(distribuição da petição inicial, réplica, desistência da ação, etc.), pelo réu (contestação,

reconvenção, impugnação ao valor da causa, argüição de exceção de impedimento, etc.),

pelo juiz (ordem de citação, nomeação de perito, saneamento do processo, prolação de

sentença, etc.) e pelos auxiliares da Justiça (elaboração de laudo pericial, administração

judicial, cumprimento de mandado, tradução de documentos, etc.). Aqui também se liga

o processo à idéia de seqüência. Entretanto, cuida-se de uma seqüência que é observada

no plano da existência, ou seja, de uma continuidade procedimental.

Não se trata, obviamente, de uma seqüência sem foco teleológico. Está-se diante

de uma série de fatos, atos, atos-fatos e negócios jurídicos coordenados em razão de um

escopo a ser atingido. Cuida-se, enfim, de uma sucessão accional preordenada de forma

lógico-cronológica para consecução de um fim: a realização do ato máximo do processo,

que é o ato final de entrega da tutela jurisdicional pelo Estado-jurisdição. Nesse sentido,

o processo pode ser visto, verdadeiramente, como uma atividade (que é um conceito de

teoria geral, que foi desenvolvido originariamente pelos ícones do direito comercial na

Itália para designar o aspecto funcional do fenômeno da empresa8). A atividade jurídica

é uma noção complexa, a qual não se confunde com a noção singular de ato jurídico.

Todavia, quando se está diante de atividade jurídica preordenada, não-espontânea, cuja

seqüência de atos já é predefinida em norma jurídica, dá-se-lhe o nome de procedimento.

Logo, no mundo do direito, pode haver: (a) atividades procedimentais (p. ex., atividade

técnico-legislativa, atividade jurisdicional); (b) atividades não-procedimentais (p. ex.,

atividade empresarial); (c) atividades quase-procedimentais (p. ex., atividade policial-

investigativa, atividade estatal regulatória).

É necessária, porém, uma diferenciação entre “procedimento in abstrato” (se o

que se menciona é o desenho legal da seqüência de atos processuais) e “procedimento in

concreto” (se o que se refere é a seqüência de atos processuais efetivamente praticados).

Quando o § 1º do artigo 171 da Resolução 22.154/2006 do TSE, por exemplo, prescreve

que “a ação de impugnação de mandato eletivo observará o procedimento previsto na

Lei Complementar 64/90 [...]” (d.n.), toma ele o termo “procedimento” em seu sentido

abstrato. Em contrapartida, quando se diz, num caso específico, que “o procedimento de

deportação levado a termo pela Polícia Federal esteve em perfeita conformidade com a

Lei 6.815/80”, o termo “procedimento” acabou tomando aqui um sentido mais concreto.

8 Sobre o conceito de atividade, p. ex.: BULGARELLI, Waldírio. A teoria jurídica da empresa,

pp. 402 e ss.

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Daí por que, no contexto significativo da ciência processual civil, o termo ora pode ser

utilizado como o desenvolvimento do fenômeno processual no plano da existência, ora

como o conjunto de normas que regulam a seqüência espaço-temporal e a compleição

formal-material dos atos processuais.

Pois bem, partindo-se dessas premissas, não há qualquer heresia jurídica quando

se fala em “processo legislativo”, por exemplo: aqui também há uma seqüência de atos

formais concatenados, lógico-temporalmente, para produção de decisões legislativas. O

mesmo vale para a expressão “processo administrativo” no que diz respeito às decisões

administrativas. Conseguintemente, só é possível que se fale numa teoria constitucional

dos processos decisórios estatais se o termo “processo” for tomado aqui com o sentido

de “procedimento”: processo de criação de normas jurídicas (conceito mais amplo que o

de “processo legislativo”); processo de aplicação por provocação das normas jurídicas

(conceito mais amplo que o de “processo judicial”); processo de aplicação ex officio das

normas jurídicas (conceito bem mais amplo que o de “processo administrativo”). Daí se

vê que o conceito de “processo-procedimento” extrapola os quadrantes da dogmática do

direito processual. Trata-se, na verdade, de um conceito da teoria geral do direito, que se

presta a inúmeros flancos dogmáticos, especialmente à ciência do direito constitucional.

Mais: o potencial heurístico do conceito de “processo-procedimento” é de tal monta que

ele pode ser reformulado no âmbito de uma teoria pragmático-imaginativa das decisões

(jurídicas e não-jurídicas)9.

É interessante perceber que tal reformulação conceitual não atrela, em momento

algum, as idéias de processo e de lide. Isto tem possibilitado que o estudo dos chamados

“processos objetivos” também seja objeto da Processualística. Nesses processos, não se

impõe a necessidade de demonstração da existência de um direito subjetivo individual e

concreto. Aqui o juiz não se debruça sobre uma relação de direito material controvertida.

Uma vez que o processo objetivo haja sido deflagrado por um dos possíveis legitimados

(que é parte em sentido meramente formal), o juiz não cuida de reconhecer e satisfazer

uma pretensão de direito material, mas sim de tutelar o ordenamento jurídico-normativo

vigente. Daí a razão pela qual nesse tipo de processo não há réu. É bem verdade que, ao

proteger a ordem jurídica como um todo, as decisões proferidas em processos objetivos

9 Para uma tentativa de teorização do processo como “disciplina do exercício do poder estatal”,

p. ex.: MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. “Ensaio sobre o processo como disciplina do

exercício da atividade estatal”, pp. 261-285.

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repercutem, inevitavelmente, sobre as esferas jurídico-individuais. No entanto, isto não

desnatura a autonomia conceitual do processo objetivo para torná-lo simples capítulo do

Direito Processual Coletivo: nos processos coletivos, o proponente da ação tem o ônus

de comprovar a existência de uma situação jurídica ativa supra-individual aviltada pelo

réu (um interesse difuso, um interesse coletivo stricto sensu ou um interesse individual

homogêneo), o que não se verifica nos processos objetivos10. É o caso, por exemplo, das

ações de controle abstrato de constitucionalidade (ação direta de inconstitucionalidade –

ADIN, ação declaratória de constitucionalidade – ADC e argüição de descumprimento

de preceito fundamental – ADPF).

Assim sendo, perde razão de ser um dos problemas-chave acerca da “jurisdição

voluntária”: o de saber se nela existe um processo ou um mero procedimento. Olhando-

se o plano da existência, pode-se falar tanto num “processo-procedimento de jurisdição

contenciosa” quanto num “processo-procedimento de jurisdição voluntária”. Com isto,

o fato de a “jurisdição voluntária” ser jurisdicional ou administrativa não guarda relação

com o fato de ela ter um processo ou um procedimento. Aliás, a dicotomia maniqueísta

“processo versus procedimento” (que tanto tempo inútil tem tomado dos processualistas)

torna-se aqui um non sense. Nada de proveitoso se retira dessa dicotomia – tal como ela

tem sido trabalhada até hoje –, a não ser que seja redimensionada em outros parâmetros.

Tudo que ela conseguiu ao longo dos anos foi entreter a comunidade dos processualistas

com discussões livrescas e pedantes e embaralhar a cabeça dos alunos das faculdades de

direito. Nada mais.

4. Processo como “complexo de situações jurídicas”

Há momentos, entretanto, que os juristas se referem ao “processo” com os olhos

voltados para o plano da eficácia. Aqui também a noção de processo está ligada à idéia

de seqüência, ou seja, a uma série finita de ocorrências. Contudo, está-se diante de uma

seqüência de situações jurídicas [que são um posterius], e não de fatos, atos, atos-fatos

e negócios jurídicos [que são um prius]. Esse fluxo contínuo de situações jurídicas se vê

projetado no plano da eficácia à medida que são realizados os respectivos fatos jurídicos

10 Inserindo, entretanto, o sistema de controle concentrado de constitucionalidade no âmbito das

tutelas coletivas, v.g.: ZAVASCKI, Teori Albino. Processo coletivo: tutela de direitos coletivos

e tutela coletiva de direitos, pp. 249 e ss.

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no plano da existência (caso, obviamente, esses fatos tenham logrado transpor o plano

da validade). Portanto, aqui, o “processo” nada tem a ver com a noção de procedimento.

O ponto de observação é outro.

Como cediço, a palavra “eficácia” expressa situação jurídica em sentido lato, ou

seja, toda e qualquer conseqüência que se produz no mundo jurídico em decorrência de

nele ter havido o ingresso de um fato jurídico. Se o fato jurídico transpuser os planos da

existência e da validade, ingressará ele no plano da eficácia e ali irradiará os seus efeitos,

dando ensejo ao nascimento de uma situação jurídica.

Tome-se o exemplo do contrato: havendo sido suficientemente preenchido, seu

suporte fático dará entrada no plano da existência; para que ele se adentre pelo plano da

validade, entretanto, haverá de preencher requisitos específicos; se o contrato for válido,

ingressará no plano da eficácia e fará ali nascer a ansiada relação jurídica obrigacional

(que é espécie de situação jurídica). Veja-se ainda o exemplo do registro imobiliário do

título aquisitivo de domínio: se preenchidos os pressupostos de existência e os requisitos

de validade desse específico ato, ingressará o ato no plano da eficácia para ali proceder

à transferência da propriedade do alienante para o adquirente do bem imóvel.

Deve-se ressaltar, todavia, que há fatos jurídicos que não passam pelo plano da

validade, saltando diretamente do plano da existência para o plano da eficácia: ocorrido

o fato gerador [plano da existência], despontará instantaneamente a obrigação tributária

[plano da eficácia], não havendo sentido em falar-se em fato gerador válido ou inválido;

havendo prova da materialidade do crime e indícios de sua autoria [plano da existência],

surge para o Estado o poder-dever de efetuar a persecução criminal [plano da eficácia],

sem afirmar-se que o suporte fático dessa justa causa é válido ou inválido; tendo havido

o nascimento com vida [plano da existência], o homem adquirirá personalidade jurídica

[plano da eficácia], sem que se fale em nascimento com vida válido ou inválido.

No caso específico do processo, há inúmeros fatos que podem passar pelo plano

da validade e outros que não se submetem a juízos de validação. No primeiro caso, tem-

se o exemplo da citação: se ela existir nulamente, não produzirá os efeitos definidos no

artigo 219 do CPC. Já no segundo caso, tem-se o exemplo do motivo de força maior: a

sua ocorrência pura e simples ensejará a suspensão do processo, que é efeito definido no

artigo 265, inciso V, do CPC.

De qualquer maneira, uma vez que no mundo jurídico alcem o plano da eficácia,

os fatos processualmente relevantes irradiarão nele suas respectivas situações jurídicas.

No âmbito específico do processo, essas situações jurídicas podem classificar-se em: (a)

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unissubjetivas (e.g., capacidade processual, capacidade postulatória, capacidade de ser

parte); (b) intersubjetivas: (b.1) unilaterais (e.g., vinculação do juiz aos termos em que

proposta a demanda; ônus processuais); (b.2) bilaterais: (b.2.1) ativas (e.g., imunidade

de jurisdição, direito de ação, poderes instrutórios do juiz); (b.2.2) passivas (e.g., dever

de lealdade; dever de boa-fé; dever de veracidade). Por conseguinte, à medida que autor,

juiz e réu concretizam os atos até então previstos in abstrato na lei [plano da existência],

essas situações jurídicas despontam, extinguem-se, modificam-se e enfileiram-se numa

cadeia protéica dinâmica e complexa [plano da eficácia], até que o Estado-juiz se ponha

na situação derradeira de entregar a tutela jurisdicional.

Daí por que não há muita precisão na assertiva de que, à luz do plano da eficácia,

o processo é uma “relação jurídica”. Em verdade, é mais do que isto. É inegável que no

processo se vêem relações jurídicas. Existem relações que são travadas entre as partes e

o juiz (tanto o autor quanto o réu têm a pretensão a que o juiz profira uma sentença). Há

outras que interligam autor e réu (um tem dever de lealdade para com o outro). Contudo,

quando se analisa o processo pelo plano da eficácia, nota-se que nele existe mais do que

mera superposição de relações jurídicas (= situações jurídicas intersubjetivas bilaterais).

Há situações jurídicas intersubjetivas unilaterais, sem que o seu titular esteja em relação

com a outra parte (e.g., o ônus do réu de contestar a demanda). Além do mais, no plano

da eficácia podem nascer situações jurídicas fugazes (e.g., ônus de recorrer) e situações

jurídicas mais duráveis, que se conservam ao longo de todo o desenrolar procedimental

(e.g., dever de veracidade)11. Assim, quem sustenta que o processo é simplesmente uma

“relação jurídica tripolar”, prende-se a um dado estático, a um trecho episódico do fluxo

de situações que se lançam no plano da eficácia12. Se processo é movimento, a imagem

da relação jurídica de três pólos ou triádica não se mostra apropriada13. Decididamente,

11 Cf., e.g., COSTA E SILVA, Paula. “O processo e as situações jurídicas processuais”, p. 771:

“[...] detecta-se imediatamente uma distinção entre, por um lado, as faculdades e os ónus, e, por

outro lado, os deveres processuais. Enquanto aqueles se apresentam como efémeros, estes

impedem sobre os sujeitos adjectivos ao longo de todo o processo”. 12 Cf., e.g., COSTA E SILVA, Paula. “O processo e as situações jurídicas processuais”, p. 770:

“[...] o processo não é uma relação; pode, quando muito, determinar a constituição de situações

jurídicas relativas”. 13 Para uma crítica ao conceito de “relação jurídica processual”: MARINONI, Luiz Guilherme.

“Da teoria da relação jurídica processual ao processo civil do Estado constitucional”, pp. 541 e

ss.

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o modelo explicativo que melhor representa a desenvolução processual civil no plano da

eficácia é o do “complexo protéico de situações jurídicas”.

Daí já se vê que o “processo-situação” é uma categoria da teoria geral do direito,

não uma propriedade exclusiva da teoria geral do processo. Inúmeros outros fenômenos

da experiência jurídica podem ser explicados à luz do processo-situação.

Ora, quando na esteira de Clóvis V. do Couto e Silva se afirma que a obrigação

contratual é um processo, diz-se que ela não se explica só como uma “relação jurídico-

obrigacional”, mas como complexo dinâmico de situações jurídicas bilaterais passivas –

i.é., como um complexo de deveres pré-contratuais, contratuais e pós-contratuais –, que

se sucedem num fluxo contínuo de surgimentos, transformações e supressões. A própria

obrigação tributária apresenta uma compleição proteiforme de alta complexidade, uma

vez que, hodiernamente, um turbilhão de situações jurídicas interliga o contribuinte e o

Fisco, desde a ocorrência do fato gerador (e muitas vezes antes mesmo que ele aconteça)

até a extinção do crédito tributário.

De tudo, portanto, fica a ressalva: quando os juristas falam em “processo”, deve-

se extrair do contexto da fala qual o significado mencionado: “processo-procedimento”

(plano existencial)14 ou “processo-situação” (plano eficacial)15? Em verdade, a Ciência

Processual Civil está a exigir um maior rigor terminológico por parte de seus estudiosos.

Não só porque esse tipo de exatidão é uma das principais condições de cientificidade de

todo e qualquer ramo das ciências humanas, mas especialmente porque alguns dos seus

problemas fundamentais decorrem de imprecisões de linguagem: na maioria das vezes,

quando se referem ao “processo-procedimento”, os juristas usam o termo procedimento;

já quando falam em “processo-situação”, simplesmente lançam mão do termo processo.

A partir daí, toda uma seqüência de perturbações é implantada, as quais têm corrompido

a precisão do vocabulário técnico-processual e atirado os processualistas a empreitadas

teóricas inconsistentes.

5. O processo-procedimento e os vícios da citação

14 Utilizando o termo processo como “processo-procedimento”, p. ex.: CPC, art. 214, caput; art.

246, caput e parágrafo único. 15 Utilizando o termo processo como “processo-situação”, p. ex.: CPC, art. 77, caput.

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Traçada uma diferenciação entre o processo-procedimento e o processo-situação,

já se pode investigar de qual vício padece a sentença proferida em processo de réu revel

não-citado ou mal-citado.

Ora, dentro da teoria dos atos processuais, a citação assume um lugar destacado.

De certo, é o ato processual que atrai para si o maior grau de regulamentação normativa.

Nem poderia ser diferente. Processos à revelia sempre feriram a consciência ética liberal

do mundo ocidental civilizado. Daí por que o formalismo que cerca a citação nada mais

é do que reflexo das preocupações que infundiram a instituição do devido processo legal.

Pode-se afirmar que existe uma doutrina jusnaturalista da citação, como se houvesse um

“direito natural ou divino de ser citado” (“nemo inauditus debet damnari”)16. De qualquer

modo, não pode ser justo um processo sem que nele tenha havido citação válida. Assim

sendo, coube ao legislador erigir a citação válida à condição de “pressuposto processual

de validade” (ou, com palavras mais precisas, requisito de validade de todo o processo).

É o que deflui do caput do artigo 214 do Código vigente (“para a validade do processo é

indispensável a citação inicial do réu”)17 18.

16 Cf., e.g., REZENDE FILHO, Gabriel José Rodrigues de. Curso de direito processual civil. v.

II, p. 70. 17 Tal dispositivo – assim nos parece – afasta a tese de que a sentença proferida em processo de

réu revel não-citado ou mal-citado não é inexistente ou inválida, mas simplesmente “ineficaz em

relação ao réu ausente”. No Brasil, a mencionada tese é sustentada, v.g., por Ernane Fidélis dos

Santos (“Nulidades dos atos processuais”, pp. 98-99). 18 Sobre a nulidade do processo por falta de citação inicial na tradição luso-brasileira, convém a

reprodução de parte do voto do Ministro Alfredo Buzaid proferido no Recurso Extraordinário nº

96.696-0-RJ: “Um processo não se constitui nem se desenvolve validamente sem a citação do

réu, para que lhe seja assegurada a possibilidade de aduzir as razões que tem. Esta norma,

enunciada no art. 214 do Código de Processo Civil, corresponde a um requisito fundamental

para a existência do processo (LIEBMAN, Estudos sobre o processo civil, Bushaski, Ed., 1976,

com notas da Prof. Ada Pelegrini Grinover, p. 179). Esta lição vem do direito tradicional (cf.

ALEXANDRE GOMES, Manual prático judicial civil e criminal, p. 1 e segs.). MENDES DE

CASTRO, sustenta também que nulo é o processo que se fizer sem a citação da parte: ad

iudicium inchoandum omnio necessaria est citatio sine qua processus et sententia sunt nullae

(MENDES DE CASTRO, Practica lusitana, Lib. III, capit. I, n. 1). Esse entendimento foi

sufragado pelos doutores em Portugal e no Brasil, os quais asseveraram que a nulidade do

processo, por falta de citação inicial, obstava a que a sentença passasse em julgado, ou, como

dizia a linguagem das Ordenações Filipinas (Liv. III, tit. 87, § 1º), ‘em todo tempo se pode opor

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Não se pode tirar de mente, porém, que o termo “processo” está aí no sentido de

processo-procedimento. Portanto, quando se diz que a citação válida é um “pressuposto

processual de validade”, está-se a asseverar que os atos do processo-procedimento serão

válidos tão apenas se a própria citação tiver sido existente e válida. Noutras palavras: a

existência e validade de um único ato específico – a citação – são requisitos de validade

de todos os demais atos do processo-procedimento. É o que se pode chamar de principio

da transcendência dos vícios da citação. Os vícios dos demais atos jurídico-processuais

não inquinam a citação19; no entanto, os vícios da citação maculam todos os demais atos

processuais. Eles saltam para fora da citação e contaminam tudo o que lhes rodeia, sem

contra ela que é nenhuma’ (cf. MANUEL DE ALMEIDA E SOUSA, Segundas linhas sobre o

processo civil, vol. I, nota 578; MENDES DE CASTRO, ob. Cit., lib. III, cap. 21, nº 43;

SILVA, Commentaria ad ordinationes regni portugaliae, vol. III, p. 130; PEREIRA E SOUSA,

Primeiras linhas sobre processo civil, nota 578; Repertório das ordenações e leis do Reino, vol.

III, p. 752)”. 19 Via de regra, o vício de um ato processual está nele próprio. Daí por que não se pode aceitar a

afirmação de que “coisa julgada”, “litispendência” e “compromisso arbitral” são “pressupostos

processuais negativos de validade”, isto é, elementos que não devem existir para o processo ser

validamente constituído. Ora, a “coisa julgada”, a “litispendência”, o “compromisso arbitral” e a

“perempção” não dizem com a intimidade do ato processual, com a sua formação defeituosa.

Trata-se de meras “condições negativas de apreciabilidade do pedido”, isto é, de elementos que

não devem existir para o processo poder ser extinto com resolução do mérito. Noutros termos:

trata-se de “condições da ação”, embora condições negativas. Logo, “legitimidade”, “interesse

processual” e “possibilidade jurídica do pedido” seriam “condições positivas da ação”, enquanto

“coisa julgada” e “litispendência” seriam exemplos de “condições negativas”. Nesse mesmo

sentido: BARBOSA MOREIRA, José Carlos. “Sobre os pressupostos processuais”, p. 85, nota

10; GRINOVER, Ada Pellegrini. As condições da ação penal (uma tentativa de revisão), p. 24;

GUIMARÃES, Luiz Machado. “Carência de ação”, p. 102. Na verdade, o problema torna-se de

difícil compreensão, já que tanto a falta de pressupostos processuais quanto a de “condições da

ação” implicam a mesma conseqüência jurídica: a extinção do processo sem o julgamento do

mérito (CPC, art. 267). Isto turva a apreensão do fenômeno: a falta de pressuposto de existência

deveria importar na declaração de inexistência do processo-procedimento; a falta de requisito de

validade, na nulificação do processo-procedimento; a falta de “condição da ação”, na extinção

do processo sem resolução de mérito. No entanto, por questões de política processual, o sistema

positivo vigente teve por bem emprestar efeito jurídico idêntico a essas três hipóteses distintas,

fazendo com que todas elas fossem impeditivas à análise do mérito da causa.

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cogitar-se da existência ou não de prejuízo ao réu revel não-citado ou mal-citado: não há

pós-validação de processos adoentados por esse vício. Nesse sentido, um estudo isolado

dos vícios da citação propicia melhor compreensão sobre o que sejam os “pressupostos

processuais de validade”: trata-se de requisitos para que sejam válidos todos os atos do

processo-procedimento.

Por essa razão, não pode haver confusão entre o que seja requisito de validade de

um ato processual específico e o que seja requisito de validade genérica de todos os atos

processuais.

Para que seja válida, a sentença deve ser fundamentada. Todavia, a ausência de

fundamentação nem sempre vicia um despacho. Daí a razão pela qual a fundamentação

não é propriamente um pressuposto processual de validade. O mesmo não se pode dizer

a respeito da capacidade postulatória: sem ela, todos os atos do processo-procedimento

se tornam anuláveis. O mesmo se passa com a citação: se for nula, nulos também serão,

por via reflexa, a contestação, a audiência de tentativa de conciliação, os depoimentos

pessoais, a produção da prova pericial, a sentença, etc. Daí se percebe a transcendência

da repercussão dos vícios da citação, que não se limitam a inquinar esse específico ato

processual e que acabam por macular todos os demais. No entanto, existe uma diferença

jurídico-etiológica entre a nulidade processual causada por vício de citação e a nulidade

oriunda da falta dos demais requisitos processuais positivos de validade: quando um ato

praticado pela parte é anulável em razão da sua falta de capacidade processual, p. ex., o

vício que o inquina é endógeno, i.é., ele habita originariamente o interior do próprio ato

viciado; por sua vez, se um ato processual é nulo por ter sido infectado pela nulidade ou

pela inexistência da citação, dir-se-á que o seu vício é exógeno, visto que a sua origem é

exterior ao ato contagiado.

Portanto, quem fala em “pressuposto de validade do processo”, fala no processo

como um procedimento, não como um complexo de situações jurídicas. Mesmo porque

situações jurídicas não são válidas ou inválidas. Validade, nulidade e anulabilidade são

atributos de categorias existenciais (ato jurídico stricto sensu e negócio jurídico), não de

categorias eficaciais (situações jurídicas, relações jurídicas, qualificações jurídicas, etc.).

Não há sentido que se fale em “direito subjetivo absolutamente nulo”, “dever anulável”,

“relação jurídica relativamente nula”, por exemplo. Logo, quem fala num processo nulo,

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diz que nulo é o processo-procedimento, visto que não há o menor sentido em falar-se

na nulidade do processo-situação, i.é., da mal-chamada “relação jurídica processual”20.

Antes de concluir-se, contudo, deve-se insistir que os vícios da citação afetam os

demais atos processuais pelo plano da validade, não pelo plano da existência. Não há

qualquer embasamento normativo para que a nulidade de um ato processual torne outro

inexistente. Se o suporte fático de um ato processual está completo, i.é., tem suficiência

jurídico-ontológica, ele simplesmente é: nada o impede de ingressar no mundo jurídico

pelo plano da existência. Nesse sentido, não há razão para alegar-se que vício de citação

implica inexistência de sentença. Uma sentença é desde o momento em que nela estejam

presentes todos os seus elementos categoriais. Ela não deixa de ser uma sentença tão-só

porque por não houve citação válida no processo. Isto quando muito ensejará a nulidade

da sentença, não a sua inexistência. Ela só seria inexistente se vigesse uma norma que a

definisse como “ato de decisão proferida em processo de citação válida”. Porém, o ser

da sentença não se define em função da citação. A sentença e a citação não se interligam

por qualquer liame ontológico: cada qual parte de pressupostos de existência que lhe são

próprios e que não se comunicam entre si. O ser da sentença não depende da existência

anterior de uma citação, assim como o ser da citação não depende da superveniência de

uma sentença. Enfim, trata-se de realidades linearmente independentes.

6. O processo-situação e os vícios da citação

Se todos os atos que integram o processo-procedimento estiverem contaminados

pelo vício da nulidade, não nascerá, com obviedade, o processo-situação. À medida que

os atos do processo-procedimento vão ingressando nulamente no mundo jurídico através

do plano da existência, o plano da eficácia continua impassivelmente vazio, desabitado.

Nem poderia ser diferente: o ato nulo não produz efeito jurídico algum (quod nullum est

nullum producit effectum). No plano da existência, assiste-se a um alvoroço de atos em

sucessão; no plano da eficácia, a um profundo silêncio. Enfim, quando todos os atos do

20 Sem razão: GOMES, Fábio. Teoria geral do processo civil, p. 238: “a nulidade pode atingir

um só determinado ato e os subseqüentes que dele dependerem, ou toda a relação processual”

(d.n.). Nem mesmo Pontes de Miranda, sempre tão cioso do rigor de linguagem, escapou a essa

confusão: “[...] Mas o art. 214 estabelece a pena de nulidade; portanto, a sentença é, posto que

nula a relação processual” (Comentários ao Código de Processo Civil. t. XI, p. 94) (d.n.).

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processo-procedimento são nulos, invadem o mundo do direito pelo plano da existência,

mas não alcançam o plano da validade e, por esta razão, não podem irradiar seus efeitos

típicos no plano da eficácia.

Não há a formação do processo-situação, em última análise.

Inexiste a mal-chamada “relação jurídica processual”.

Exemplo 1: procedimento válido

Plano da Eficácia ☼ → ☼ → ☼ → ... → ☼

↑ ↑ ↑ ↑

Plano da Validade ● ● ● ... ●

↑ ↑ ↑ ↑

Plano da Existência ○ → ○ → ○ → ... → ○

Exemplo 2: procedimento inválido

Plano da Eficácia

Plano da Validade × × × ... ×

↑ ↑ ↑ ↑

Plano da Existência ○ → ○ → ○ → ... → ○

○ = Ato existente

● = Ato válido

× = Ato inválido

☼ = Eficácia

Assim, se estiverem reunidos os pressupostos existenciais da citação, mas não os

seus requisitos de validade, ela será, ou seja, terá autonomia ontológica. Porém, existirá

nulamente, incapaz de produzir os seus efeitos. O mesmo acontecerá com a sentença de

mérito não mais sujeita a recurso: se ela for nula – por força de haver sido nula a citação

que a antecedeu –, ainda assim existirá, muito embora sem suficiência necessária para a

produção de todos os seus efeitos (entre eles o efeito da coisa julgada). Como será visto

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melhor adiante, o nulo não é um nada: ele existe, mas sua existência é doentia e, por via

de conseqüência, sem forças para causar qualquer impacto no mundo jurídico.

Daí já se percebe que, em um processo nulo por vício de citação, não se fala em

sentença inexistente. Ela existe, mas de uma maneira inválida e ineficaz. Quem fala em

inexistência de sentença por força de citação nula, confunde grosseiramente o plano da

existência com o plano da eficácia, visto que toma o processo-procedimento (que existe,

ainda que nulamente e sem irradiar efeitos) pelo processo-situação (que sequer nasceu).

Não se confundem a inexistência da sentença e a inexistência dos efeitos da sentença: a

inexistência de sentença sempre implica a inexistência de efeitos sentenciais (pois sem a

causa não há o efeito); todavia, a inexistência de efeitos sentenciais nem sempre decorre

da inexistência de sentença (já que isto pode se dar em razão de uma sentença existente,

mas nula).

7. Sentença nula e sentença inexistente

Não se há de defender que sentença nula é sentença inexistente, pois não se pode

confundir o nulo com o nada. Sentença sem relatório ou sem fundamentação não deixa

de ser sentença, embora inválida. Insista-se: não se confundem o plano da existência e o

plano da validade. Em verdade, esta confusão tem raízes no positivismo de Hans Kelsen.

Para o jurista austríaco, o nulo é aquilo que não existe no mundo jurídico, razão por que

não há diferença entre a norma inválida e a norma inexistente21. Logo, uma vez que para

Kelsen a sentença é também uma norma jurídica – norma individual e concreta22–, não

pode haver, igualmente, diferença entre a sentença nula e a sentença inexistente.

21 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, pp. 10-11: “Com a palavra ‘vigência’ designamos a

existência específica de uma norma. Quando descrevemos o sentido e o significado de um ato

normativo dizemos que, com o ato em questão, qualquer conduta humana é preceituada,

ordenada, prescrita, exigida, proibida; ou então consentida, permitida ou facultada. Se, como

acima propusemos, empregarmos a palavra ‘dever-ser’ num sentido que abranja todas essas

significações, podemos exprimir a vigência (validade) de uma norma dizendo que certa coisa

deve ou não deve ser, deve ou não ser feita. Se designarmos a existência específica da norma

como a sua ‘vigência’, damos desta forma expressão à maneira particular pela qual a norma –

diferentemente do ser dos fatos naturais – nos é dada ou se nos apresenta”. 22 Cf. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, pp. 254 e ss.

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Enfim, para os kelsenianos, a inexistência específica no mundo jurídico chama-

se invalidade ou nulidade (i.é., nulidade = inexistência).

Porém, a teoria jurídica moderna tem se apercebido de que o modelo kelseniano

é assaz impreciso. Essa percepção agudizou-se após os juristas haverem se aprofundado

nas diferenças entre o nulo e o anulável. O ato anulável produz efeitos, conquanto sejam

eles interinos, provisórios ou prodrômicos (Pontes de Miranda chamava-os de “efeitos

interimísticos”23). Isto significa que o ato, para deflagrar as suas irradiações próprias no

plano da eficácia, teve de atravessar o plano da existência e ser “tolerado” no plano da

validade. Diz-se “tolerado” porque ele aí permanece até que seja retirado. Daí por que o

ato anulável, se bem que exista nulamente, é eficaz. Também o ato nulo sofre “reservas”

para ingressar no plano da validade; contudo, não chega a ser “tolerado”, razão por que

não produz efeito algum. De toda maneira, antes de ser “barrado” no plano da validade,

o ato nulo teve antes de passar pelo plano da existência.

Fitando-se o fenômeno por um outro ângulo, pode-se asseverar que a nulidade é

a conseqüência jurídica da incidência de uma norma invalidante, que desjuridiciza o ato

inquinado. Segundo classificação fincada por Marcos Bernardes de Mello (inspirada no

pensamento de Pontes de Miranda), as normas jurídicas podem ser: (a) juridicizantes; (b)

desjuridicizantes; (c) pré-excludentes de juridicidade24. Como exemplo de (a), tem-se a

norma cuja incidência deflagra o nascimento de situações jurídicas (e.g., regra-matriz de

incidência tributária); como exemplo de (b), tem-se a norma cuja incidência desconstitui

situações jurídicas preexistentes (e.g., regra sobre perda de pátrio poder); como exemplo

de (c), tem-se a norma que incide para imunizar seu destinatário contra a constituição, a

modificação ou a extinção de situações jurídicas (e.g., regra concessiva de imunidade ou

isenção fiscal). Assim sendo, fica fácil entender a nulidade como resultado da incidência

de uma norma desjuridicizante.

Já com relação à inexistência, não se pode sustentar que ela deflua da incidência

de uma norma desse tipo. Em verdade, ela não decorre de qualquer tipo de incidência. A

inexistência não é uma conseqüência jurídico-normativa. Enfim, ela não é o resultado de

uma desjuridicização, pois não se pode desjuridicizar o que sequer existe juridicamente.

É o caso de um contrato de venda e compra sem preço: trata-se de um nada negocial, de

23 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. t. IV, pp. 35 e

ss. 24 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência, pp. 74 e ss.

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um não-contrato, de um fato bruto que ainda não foi carimbado pela incidência de uma

norma de existência e que ainda bateu às portas do mundo jurídico.

Isso demonstra não haver gradação entre nulidade e inexistência. Decididamente,

a inexistência não é uma “supernulidade” ou uma “nulidade de grau superior”25.

Em face dessas considerações, insista-se: a sentença nula, embora não produza

qualquer efeito, consegue adentrar ao mundo jurídico, lá ficando sem transpor-se para o

plano da validade. Assim, por mais que o suporte fático da sentença nula seja deficiente,

ela tem existência, não obstante ocupe as dependências do mundo jurídico sem o devido

“bilhete de ingresso”: é intrusa que ali está invalidamente. Logo, a sentença nula não é

um vácuo sentencial: o nada é a inexistência; o nulo, a não-validade. O nulo é a negação

da validade, não a negação da existência. Somente as sentenças existentes juridicamente

podem ser nulas, pois, para ingressarem no plano da validade, necessário que elas antes

tenham entrado no plano da existência. A sentença nula não é ato que se circunscreve a

uma mera faticidade, pois. Ela já é ato jurídico, chancelado por uma regra de existência;

porém, não logrou reunir os requisitos necessários para que pudesse transpassar o plano

da validade e irradiar os seus efeitos no plano da eficácia. Sendo assim, tem a sentença

nula de ser extraída do mundo jurídico, ou seja, tem de ser desconstituída. E isto se faz

por meio de uma ação constitutiva negativa, e não de uma ação declaratória26. Não basta

que seja reconhecida a sentença nula; é mister pronunciá-la e desfazê-la.

25 Cf., e.g., AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Negócio jurídico: existência, validade e eficácia,

p. 61: “Não é lógico que se continue a colocar, ao lado do nulo e do anulável, o negócio dito

inexistente, como se se tratasse de um tertium genus de invalidade. Não há gradação de

invalidade entre o ato inexistente, o nulo e o anulável. Ao negócio inexistente opõe-se o negócio

existente (este é que pode ser nulo, anulável, ou inválido). A dicotomia ‘negócio existente –

negócio inexistente’, de um lado, e a tricotomia ‘negócio válido – negócio nulo – negócio

anulável’, de outro, estão em planos diferentes”. E mais adiante: “O negócio aparente, chamado

de negócio inexistente, uma vez que não chegou a se projetar no plano da validade, não é nem

válido, nem anulável, nem nulo; não representa ‘um grau a mais’, em relação a qualquer um

destes, não se aproxima mais do nulo, nem se afasta mais do válido; seu plano é diverso” (p.

63). 26 Cf., e.g., LOPES, João Batista. Ação declaratória, p. 93: “[...] a ação declaratória situa-se no

plano da existência, e não da validade, razão por que seria impróprio falar em declaração de

nulidade”. Não é com boa técnica que se redigiu, pois, a Súmula 346 do STF (“a administração

pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos”). Falando, entretanto, em “declaração

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Imagine-se o mundo do direito como uma fábrica de autopeças. Se o maquinário

for eficiente, a maioria das peças confeccionadas será de boa qualidade [= será válida] e,

portanto, estará apta a prestar-se para os fins mecânicos a que se destina [= será eficaz].

No entanto, da linha de produção poderão despontar alguns componentes defeituosos [=

inválidos]. Peças desse tipo não funcionarão, ou funcionarão mal [= serão ineficazes].

Até os funcionários do setor de controle de qualidade [= órgãos de aplicação do direito]

tomarem conhecimento delas, elas estarão repousando nos estoques da empresa [= serão

existentes]. Entretanto, à medida que forem sendo descobertas, terão de ser retiradas de

circulação [= desconstituídas do mundo jurídico]. Seria contraproducente mantê-las em

circulação [= conservá-las no mundo jurídico] e limitar-se o controle de qualidade a pô-

las num invólucro que as rotule como “imprestáveis” [= que as declare inválidas]. Elas

precisam ser eliminadas [= desconstituídas], sendo irrelevante o destino que se lhes dará

(derretimento para o reaproveitamento do material, dispensa em lixo inorgânico, doação,

abandono, etc.).

Logo, a sentença inválida proferida contra o réu revel não-citado ou mal-citado é

impugnável por meio de ação constitutiva negativa de nulidade (CPC, artigo 486)27, não

por meio de ação meramente declaratória (CPC, artigo 4º).

8. Sentença nula e sentença rescindível

Nesse caso, não cabe ação rescisória contra a coisa julgada formada por sentença

proferida em processo-procedimento sem citação ou com citação nula. Vício de citação

não é causa de rescindibilidade sentencial. Trata-se de hipótese que não se enquadra em

de nulidade”: STJ, 6ª Turma, RESP 194.029-SP, rel. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, j.

01.03.2007, DJU de 02.04.2007, p. 310; STJ, 3ª Turma, RESP 125.586-SP, rel. Ministro

Waldemar Zveiter, j. 08.10.1991, DJU de 04.11.1991, p. 15.684; STJ, 3ª Turma, RESP 459.351-

SP, rel. Ministro Castro Filho, j. 22.05.2003, DJU de 16.06.2003, p. 338; STJ, 3ª Turma, RESP

979.928-RJ, rel. Ministro Eduardo Ribeiro, j. 13.08.1996, DJU de 29.10.1996, p. 41.645; STJ,

3ª Turma, RESP 26.041-SP, rel. Ministro Nilson Naves, j. 09.11.1993, DJU de 13.12.1993, p.

27.452. 27 Contra a utilização da ação anulatória prevista no artigo 486 do CPC, entendendo-a restrita à

invalidação de atos da parte: DIDIER JR., Fredie e CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso

de direito processual civil. v. 3, p. 371.

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qualquer dos incisos do art. 485 do Código de Processo Civil28. Além do mais, se fosse

admitido o ajuizamento de ação rescisória para a desconstituição de sentença inquinada

por vício de citação, o Direito acabaria infundindo assimetrias, pois reclamaria remédios

distintos para a erradicação de atos viciados pela mesma doença: (a) ação rescisória para

nulificação de sentença (CPC, art. 485), submetida a prazo decadencial de 2 (dois) anos

(CPC, art. 495), e (b) ação anulatória para a nulificação dos demais atos procedimentais

(CPC, art. 486), submetida a um prazo decadencial de 4 (quatro) anos (Código Civil, art.

178).

Daí o motivo pelo qual a interpretação extensiva do art. 485 do CPC não parece

ser a solução correta29. Mesmo porque nulidade e rescindibilidade são vícios diferentes.

Nem toda sentença nula é rescindível (p. ex., sentença sem relatório); nem toda sentença

rescindível é nula (p. ex., sentença dada por corrupção do juiz). No primeiro caso, o ato

sentencial será existente, inválido e ineficaz; no segundo, será existente, válido e eficaz30.

Portanto, para desconstituir sentença nula não-rescindível, o juiz limita-se a ingressar no

plano da existência e de lá retirar o ato; contudo, para desconstituir sentença rescindível

válida, o juiz tem de percorrer os três planos do mundo jurídico, desconstituindo tudo o

que neles há. Como se vê, o trabalho de “raspagem” é mais profundo na ação rescisória 28 Assim também, p. ex., TJDF, 2ª Câmara Cível, Ação Rescisória 2004.00.2.004480-3-DF, rel.

Desembargador Getúlio Moraes de Oliveira, j. 09.03.2005, DJU de 30.06.05, p. 29: “A ação

rescisória é uma necessária, mas grave exceção à estabilidade dos julgados. Os casos que a

possibilitam são numerados em caráter taxativo, não se enquadrando a hipótese de nulidade de

citação. A parte prejudicada deve alegar o vício de citação em ação declaratória de nulidade, sob

pena de ser julgada carecedora de ação ao ajuizar ação rescisória”. 29 Cf. e.g. STJ, 3ª Turma, RESP 7.556-RO, rel. Ministro Eduardo Ribeiro, j. 13.08.1991, DJU de

02.09.1991, p. 11.811, in RSTJ 25/439: “Nula a citação, não se constitui a relação processual e a

sentença não transita em julgado podendo, a qualquer tempo, ser declarada nula, em ação com

esse objetivo, ou em embargos à execução, se o caso (CPC, art. 741, I). Intentada a rescisória,

não será possível julgá-la procedente, por não ser o caso de rescisão. Deverá ser, não obstante,

declarada a nulidade do processo, a partir do momento em que se verificou o vício”. 30 Cf. PONTES DE MIRANDA. Tratado da ação rescisória das sentenças e outras decisões, p.

251: “A sentença que se vai rescindir, se por outra razão não é nula, é sentença válida mas

rescindível”. E mais adiante: “é da mais alta importância saber-se que a rescindibilidade nada

tem com a não-existência (portanto com a declarabilidade de não-existência), nem com a não-

eficácia (portanto com a declarabilidade de não-eficácia), nem com as decretações de invalidade

(decretações de nulidade ou de anulação)” (p. 259).

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do que na ação anulatória de sentença. Logo, não se rescinde, propriamente, a sentença

nula por vicio de citação31.

Tampouco se pode dispor da imprescritível ação declaratória de inexistência de

sentença: como já visto, a citação nula ou a não-citação do réu revel implica a nulidade

da sentença, não a sua inexistência32.

Em verdade, só resta a ação de nulidade de sentença, que é uma versão possível

da ação de nulidade de ato jurídico-processual in genere prevista no artigo 486 do CPC.

Ação rescisória ataca o vício da rescindibilidade; ação anulatória, o vício da nulidade.

A rescindibilidade é um vício exclusivo de sentenças; a nulidade, de todo e qualquer ato

processual. Assim, só cabe ação rescisória contra sentenças rescindíveis. Por outro lado,

cabe ação de nulidade contra todo e qualquer ato processual (inclusive a sentença), dês

que nulo. O ato rescindível é desfeito por meio de ação rescisória; o ato nulo, por meio

de ação de nulidade. Logo, tem sede no artigo 486 do CPC a ação para a desconstituição

de sentença proferida em processo sem citação ou com citação nula no qual o réu seja

revel33.

31 Igualmente, p. ex., STF, Pleno, RE 97.589-SC, rel. Ministro Moreira Alves, j. 17.11.1982, DJ

de 03.06.1983, p. 7.883; STF, 2ª Turma, RE 96.374-GO, rel. Ministro Moreira Alves, j.

30.08.1983, DJ de 11.11.1983, p. 7.542: “Ação de nulidade. Alegação de negativa de vigência

dos artigos 485, 467, 468, 471 e 474 do CPC. Para a hipótese prevista no art. 741, I, do atual

Código de Processo Civil – que é a falta ou nulidade de citação, havendo revelia –, persiste, no

direito positivo brasileiro, a querela nullitatis, o que implica dizer que a nulidade da sentença,

nesse caso, pode ser declarada em ação declaratória de nulidade, independentemente do prazo

para a propositura da ação rescisória, que, em rigor, não é a cabível. Recurso extraordinário não

conhecido”. No mesmo sentido, e.g.: STJ, 2ª Turma, RESP 445664-AC, rel. Ministra Eliana

Calmon , j. 15.04.2004, DJ de 07.03.05, p. 194; STJ, 4ª Turma, RESP 62.853-GO, rel. Ministro

Fernando Gonçalves, j. 19.02.2004, DJU de 01.08.2005, p. 460: “Se o móvel da ação rescisória

é a falta de citação de confrontante (ora autor), em ação de usucapião, a hipótese é de ação

anulatória (querella nulitatis) e não de pedido rescisório, porquanto falta a este último

pressuposto lógico, vale dizer, sentença com trânsito em julgado em relação a ele”. 32 José Maria Tesheiner diz que essa nulidade da sentença consubstancia vício “transrescisório”

(Pressupostos processuais e nulidades no processo civil, p. 283). 33 Por razões práticas, a jurisprudência tem admitido também a ação rescisória contra sentenças

proferidas em processos de citação viciada. Assim, p. ex.: STJ, 3ª Turma, RESP 113.091-MG,

rel. Ministro Ari Pargendler, j. 10.04.2000, DJU de 22.05.2000, p. 105; STJ, 4ª Turma, RESP

54.132-8-GO, rel. Ministro Ruy Rosado, j. 06.06.1995, DJU de 16.10.1885, p. 34.668; STJ, 4ª

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9. Conclusão

Assim sendo, a querela nullitatis insanabilis ainda persevera no sistema jurídico

vigente como remédio processual adequado para a impugnação das sentenças proferidas

em processos de citação viciada. Porém, não se trata de ação declaratória de inexistência

de sentença, mas de ação constitutiva negativa de sentença nula. Só por razões práticas é

possível tolerar-se o uso da ação rescisória. Sob o ponto de vista analítico-dogmático, a

ação de decretação de nulidade é “a” via adequada para a desconstituição das sentenças

contaminadas por vícios de citação. Não obstante, as controvérsias científicas a respeito

do tema têm compelido a jurisprudência a fazer da ação de nulidade “um” dos remédios

jurídico-processuais possíveis. E com razão: pressionados pela necessidade cotidiana de

decidir conflitos, os juízes não podem ser contagiados pela hesitação dos processualistas

e pelas rudezas de um tema tão difícil. O dia-a-dia forense cobra-lhes uma postura mais

pragmática. No entanto, os caminhos da razão teórica levam-nos a uma outra conclusão:

o uso da ação rescisória se tolera, mas não se referenda.

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15.09.2004, DJU de 25.08.2005, p. 115. Referendando essa postura pragmática dos Tribunais,

v.g.: DINAMARCO, Cândido Rangel. Litisconsórcio, pp. 236 e ss; NEGRÃO, Theotônio e

GOUVÊA, José Roberto Ferreira. Código de Processo Civil e legislação processual em vigor,

p. 615, nota 5 ao art. 486 do CPC. De qualquer forma, além da ação rescisória, é incontestável a

possibilidade de uso da impugnação quando do cumprimento da sentença (CPC, art. 475-L, I).

Não obstante, a despeito de o executado ter à sua disposição a impugnação (CPC, art. 475-L, I),

a ação anulatória (CPC, art. 486) e a ação rescisória (CPC, art. 485, V), a escolha de uma dessas

vias fecha o acesso às demais (electa una via, non datur regressus ad alteram) (cf. ASSIS,

Araken de. Cumprimento da sentença, p. 319; FABRÍCIO, Adroaldo Furtado. Ob. cit., pp. 263-

264).

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