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ESTUDOS URBANOS E REGIONAIS REVISTA BRASILEIRA DE publicação da associação nacional de pós-graduação e pesquisa em planejamento urbano e regional ISSN 1517-4115

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ESTUDOS URBANOSE REGIONAISREVISTA BRASILEIRA DEpublicao da associao nacional de ps-graduaoe pes quis aempl anej amentourbanoeregionalISSN 1517-4115REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS URBANOS E REGIONAISPublicao semestral da ANPURVolume 8, nmero 2, novembro de 2006EDITOR RESPONSVELHenri Acselrad (UFRJ)COMISSO EDITORIALGeraldo Magela Costa (UFMG), Leila Christina Duarte Dias (UFSC), Lilian Fessler Vaz (UFRJ), Maria Flora Gonalves (Unicamp)CONSELHO EDITORIALAna Clara Torres Ribeiro (UFRJ), ngela Lcia de Arajo Ferreira (UFRN), Brasilmar Ferreira Nunes (UnB), Carlos AntonioBrando (Unicamp), Ermnia Maricato (USP), Heloisa Soares de Moura Costa (UFMG), Joo Farias Rovatti (UFRGS), LiaOsorio Machado (UFRJ), Linda Maria de Pontes Gondim (UFC), Marco Aurlio A. de F. Gomes (UFBA), Margareth Pereira(UFRJ), Maria Cristina da Silva Leme (USP), Nadia Somekh (Mackenzie), Norma Lacerda Gonalves (UFPE), Wrana MariaPanizzi (UFRGS), Paola Berenstein Jacques (UFBA), Ricardo Cesar Pereira Lira (UERJ), Roberto Lus de Melo Monte-Mr(UFMG), Rosa Acevedo (UFPA), Sandra Lencioni (USP), Sarah Feldman (USP), Wrana Maria Panizzi (UFRGS)COLABORADORESAndra Zhouri (UFMG), Antonio Ioris (Aberdeen), Carlos Antonio Brando (Unicamp), Celso Bredariol (Jardim Botnico), Cristvo Duarte (UFRJ), Ester Limonad (UFF), Fernanda Furtado (UFF), Flavio Villaa (USP), Frederico Neiburg (UFRJ), Jalcione Almeida (UFRGS), Luciana Corra do Lago (UFRJ), Monica Arroyo (USP), Selene Herculano (UFF), Severino Agra Filho (UFBA), Sonia Oliveira (IBGE), Virgnia Elizabeta Etges (UNISC)PROJETO GRFICOJoo Baptista da Costa AguiarCAPA, COORDENAO E EDITORAO Ana Basaglia REVISOFernanda SpinelliIMPRESSO CTPAssahi Grfica e EditoraIndexada na Library of Congress (EUA)Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais v.8, n.2,2006. : Associao Nacional de Ps-Graduao ePesquisa em Planejamento Urbano e Regional; editor responsvel Henri Acselrad : A Associao, 2005.v.Semestral.ISSN 1517-4115O n 1 foi publicado em maio de 1999.1. Estudos Urbanos e Regionais. I. ANPUR (Associao Nacional de Ps-Graduao e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional). II. Acselrad, Henri711.4(05) CDU (2.Ed.) UFBA711.405 CDD (21.Ed.) BC-2001-0983 R. B. ESTUDOSURBANOSEREGI ONAI SV. 8, N. 2/ NOVEMBRO2006ARTIGOS9 LUGAR, REGIO, NAO, MUNDO EXPLO-RAES HISTRICAS DO DEBATE ACERCA DAS ES-CALAS DA AO POLTICA Carlos B. Vainer31 REBELIO NAS PERIFERIAS O CASO FRAN-CS Jean-Pierre Garnier41 UMA REGIO EM MOVIMENTO AS LUTASPOR TERRA E A TRANSFORMAO DAS ESTRUTU-RAS DE PODER E SIGNIFICAO SOCIAL NA MATAPERNAMBUCANA Marcelo Rosa59 A CIDADE DOS CATADORES OS PAPIS E O ES-PAO DOS CATADORES DE PAPEL NA CIDADE DE BELOHORIZONTE Rodolfo Nazareth Junqueira Fonseca75 UMA REFLEXO SOBRE O PADRO MNIMODE MORADIA DIGNA NO MEIO URBANO BRASI-LEIRO ESTUDO DOS MTODOS DE CLCULO DAFUNDAO JOO PINHEIRO E DA FUNDAOSEADE AndrRorizdeCastroBarboeIoshiaquiShimboRESENHAS97 La Invencin de Futuros Urbanos, de Peter Brand eFernando Prada por Simone Polli98 A idia de cidade Antropologia e forma urbana emRoma,Itliaenomundoantigo, deJosephRykwertpor Fernando Diniz MoreiraESTUDOS URBANOSE REGIONAISREVISTA BRASILEIRA DEpublicao da associao nacional de ps-graduaoe pes quis aempl anej amentourbanoeregionalS U M R I OASSOCIAO NACIONAL DE PS-GRADUAO E PESQUISAEM PLANEJAMENTO URBANO E REGIONAL ANPURGESTO 2005-2007PRESIDENTEAna Fernandes (UFBA)SECRETARIA EXECUTIVATnia Fischer (UFBA)SECRETARIA ADJUNTAMarco Aurlio A. de F. Gomes (UFBA)DIRETORESEdna Maria Ramos de Castro (UFPA)Llian Fessler Vaz (UFRJ)Nabil Georges Bonduki (USP)CONSELHO FISCALFrederico Rosas B. de Holanda (UnB)Leila Christina Duarte Dias (UFSC)Rodrigo Ferreira Simes (UFMG)Apoio5 R. B. ESTUDOSURBANOSEREGI ONAI SV. 8, N. 2/ NOVEMBRO2006EDI TOR I A LRepresentaes sobre o capitalismo contemporneo recorrem com freqncia anoes como as de fluxo, deslocamento e reescalonamento. Estes movimentos so orade sujeitos, de objetos ou de recursos monetrios que atravessam o espao entre pon-tos distintos. Designam tambm movimentos de transformao de prticas, de rela-es, de dinmicas escalares, de esquemas de representao e justificao. As escalas deoperao das redes e dos fluxos econmicos, assim como das aes governativas, soobjeto de constante redefinio enquanto arenas da luta social, configurando o que al-guns chamam de polticas de escala. Atravs, pois, de geometrias sociais mutantes,a poltica espacializada, alianas so realizadas e a espacialidade dos fluxos redese-nhada. Esta a problemtica que articula artigos do presente fascculo da Revista, se-ja propriamente na discusso das escalas da ao poltica, seja da relao entre as cida-des e o territrio social mais amplo cujas contradies alimentam a questo urbanaou dos impactos de movimentos sociais de mbito nacional nas relaes de poder con-figuradas em pequenos municpios do interior do pas. Em sua discusso sobre a escala pertinente da anlise e do planejamento, CarlosVainer interpela criticamente modelos e projetos que remetem seja a localismos, a na-cionalismos, regionalismos ou globalismos, mostrando como as escalas so socialmen-te construdas, estando permanentemente em questo como campo de disputas entreagentes que propem diferentes escalas e, ao mesmo tempo, em diferentes escalas sedispem. Aps uma reviso do debate sobre nacionalismo e internacionalismo na tra-diodopensamentomarxistadasegundametadedosculoXIX e inciodosculoXX, Vainer sustenta que o poder, mais do que nunca, no est hoje situado no local,nem no regional, nem no nacional, nem no global, mas na capacidade de se articularescalas, de se analisar e intervir de modo transescalar.Jean-Pierre Garnier discute as rebelies que se multiplicaram nas periferias dascidades francesas no ano de 2005, posicionando-se na contracorrente dos modos depensar, tratar ou eludir a chamada nova questo social que ele acredita prevaleceremna Frana de hoje. Para o autor, ao privilegiar os aspectos urbanos, locais, ou mes-motnicos,amaiorpartedasinterpretaespropostasnodebatequeseseguiuqueles eventos teve por efeito, seno por objetivo, negar-lhes seu carter poltico. Adestituiodosbairrosdehabitaosocial,perguntaele,porventuranadadeveriadecomposio social, poltica e ideolgica da classe operria sob o efeito, entre outros,das novas modalidades da explorao da fora de trabalho? Tal pergunta se coloca tan-tomaisque,paraGarnier,asexperinciasmaisdramticasverificadasrecentementenos subrbios franceses poderiam, por certo, encontrar seu princpio explicativo emoutro lugar ou escala que no os da ecloso concreta da convulso social. O artigo de Marcelo Rosa, por sua vez, procura destacar a crescente importnciasocial que as organizaes ou movimentos de lutas por terras e seus dirigentes adqui-riram nas pequenas cidades do Nordeste na ltima dcada. Atravs da reconstituiode histrias de vida de militantes das diversas unidades de mobilizao que organizamocupaes de terra na Zona da Mata pernambucana, o autor procura caracterizar oslugaresque,emboranointencionalmentedesignadospelosprpriossujeitoscomo6 R. B. ESTUDOSURBANOSEREGI ONAI SV. 8, N. 2/ NOVEMBRO2006objeto de sua ao, so afetados substancialmente pelas transformaes sociais que taismovimentos provocam. A pesquisa procura revelar, assim, o modo como tais organi-zaes criaram condies inditas para a transformao dos seus lderes em figuras dedestaque nas instncias polticas dos pequenos municpios da regio, contribuindo pa-ra a modificao das estruturas tradicionais de poder no territrio em que operam.EmartigopremiadonoConcursoInternacionalFURS-2006promovidopelaFoundation for Urban and Regional Studies e o International Journal of Urban andRegional Research, Rodolfo Fonseca faz uma leitura da relao dos catadores de papelde Belo Horizonte com a cidade, interpretando o espao urbano a partir das prticasdos catadores e, simultaneamente, caracterizando o modo como a cidade entende opapel por eles desempenhado na vida urbana. O trabalho destaca representaes so-ciais dos catadores como marginais cidade, assimilados como so a catadores de li-xo ou moradores de rua, atribuindo-lhes um estigma social associado idia de con-taminao que derivaria de seu objeto e local de trabalho, o lixo e a rua. Mas umasegundarepresentaoestarassociadaaoprocessodeformalizaodotrabalhodoscatadores de papel, representando-os como trabalhadores integrados cidade a partirde uma funo social ou de utilidade pblica. Em articulao com tais representaes,a prticadestesatoresimplicaformasdeapropriaodoespaourbanocapazesdecriar uma sociabilidade prpria na relao com a cidade, entre eles mesmos, e com osoutros atores do espao compartilhado da rua.Em sua reflexo sobre os critrios de construo do que se entende socialmentepor padro mnimo de moradia digna no meio urbano brasileiro, Andr Roriz de Cas-tro Barbo e Ioshiaqui Shimbo discutem os mtodos de clculo que tm sido adotadospor dois rgos associados s atividades de planejamento a Fundao Joo Pinheiroe a FundaoSeade.Atravsdodebatemetodolgicosobreumanoocalcadanaidentificao de carncias habitacionais semelhantes, embora dando lugar a indicado-res diferentes, os autores destacam como o conceito de moradia adequada no umconsenso nem entre os especialistas, nem entre moradores. O trabalho sugere que ca-rnciasrelevantesnosocontempladaspornenhumdosdoismtodosdeclculoanalisados, tais como os domiclios depreciados, os domiclios irregulares e a insegu-rana de posse, de cujo registro depende o monitoramento dos assentamentos prec-rios. O presente fascculo se completa com as resenhas dos livros A idia de cidade antropologia e forma urbana em Roma, Itlia e no mundo antigo, de Joseph Rykwert, eLa Invencin de Futuros Urbanos, de Peter Brand e Fernando Prada.HENRI ACSELRADEditor responsvel ARTIGOSLUGAR, REGIO, NAO, MUNDOEXPLORAES HISTRICAS DO DEBATEACERCA DAS ESCALAS DA AO POLTICACA R L O S B . VA I N E RR E S U M O A partir de uma reviso terica da noo de escala e de uma recuperaodo debate socialista no sculo XIX a respeito de nacionalismo e internacionalismo, o artigo pre-tende lanar um novo olhar sobre a discusso contempornea acerca da escala pertinente daao poltica e do planejamento. Rejeitando a possibilidade de que qualquer estratgia efeti-vamente transformadora se inscreva numa nica e privilegiada escala local, regional, nacio-nal ou global , a concluso sugere que o poder, mais do que nunca, no est nem no localnem no regional, nem no nacional nem no global mas na capacidade de articular escalas,de analisar e intervir de modo transescalar.P A L A V R A S - C H A V E Escala; planejamento; ao poltica.INTRODUO1A questoquesepretendeexplorarnestetrabalhoemergiulentamenteapartirdeumconjuntodepesquisasereflexes,e,porassimdizer,temvriospontosdepartida.Penso ser necessrio esclarecer que pontos de partida so esses, de maneira a deixar clarodo que se fala e a partir de onde se fala.PRIMEIRO PONTO DE PARTIDA Um primeiro ponto de partida se instaura na simples observao da produo cien-tfica na rea dos estudos urbanos e regionais, de incio, mas tambm nas vrias discipli-nas que contribuem para a constituio dessa rea: Economia, Cincia Poltica, Geogra-fia, Sociologia, Antropologia. A todo tempo o tema das escalas comparece nos discursostericos que buscam dar conta do que constituiria a essncia da contemporaneidade, ou,se preferir, das formas contemporneas do capitalismo. Se verdade que, salvo raras exce-es, a palavra escala somente figura na produo dos gegrafos, o fato que a questo sefaz presente por uma srie de outras expresses na produo atual das Cincias Sociais emgeral. Globalizao, blocos regionais (Nafta, Unio Europia, Mercosul), desenvolvimen-to local, poder local, dissoluo das fronteiras nacionais e enfraquecimento do Estado-na-o,patriotismodecidade,competioentre lugaresecidades,atmesmoimprio(Hardt&Negri,2001),essas,entreoutras,soexpressesquetmfreqentadocomgrande intensidade os trabalhos e os encontros acadmicos. Um levantamento nos curr-culos dos cursos de Planejamento Urbano e Regional, assim como dos trabalhos apresen-tados, mesas e conferncias nos encontros cientficos, daria uma boa indicao da onipre-sena da questo no campo intelectual em referncia.9 R. B. ESTUDOSURBANOSEREGI ONAI SV. 8, N. 2/ NOVEMBRO20061 Uma primeira verso des-tetrabalhofoiapresentada,comoconferncia,noCon-cursoPblicodeProvaseTtulosparaProfessorTitu-lar em Planejamento Urbanoe Regional,noIPPUR/UFRJ,em junho de 2005.Essas categorias e expresses aparecem recorrentemente tambm no discurso pol-tico,sugerindofortementequetantoodebatesobreascaractersticasdocapitalismocontemporneo e suas implicaes societrias como a discusso acerca de caminhos e/oualternativas vm-se desenrolando, em boa medida, sob a gide de categorias e problem-ticas escalares.Finalmente, como que a consagrar a sua atualidade, cabe lembrar que o tema e seuvocabulrioconexocomparecemcomigualintensidadenamdia,mostrandoquejtranscenderam de muito o universo dos especialistas, cientistas e polticos, analistas e pra-ticantes da ao poltica. Para matar a curiosidade, fiz uma rpida e despretensiosa pes-quisa nas edies do jornal Folha de S.Paulo do ms de setembro (2005): a palavra glo-balizao apareceu 32 vezes, assim distribudas nas diversas sees: Dinheiro, dez vezes;Ilustrada,dezvezes(gastronomia,livros,assuntosgerais);Mundo,cincovezes;-Mais!, duas vezes; Cadernos Especiais, duas vezes; Brasil, uma vez; Esportes, umavez; Empregos, uma vez. No jornal O Globo, no mesmo perodo, o termo globaliza-o apareceu 26 vezes, igualmente distribudos da editoria de Economia at a editoriado Caderno Elas. Certamente no h como pr em dvida a fora da presena do te-ma da escala e das categorias escalares nos dias que correm.SEGUNDO PONTO DE PARTIDA O segundo ponto de partida vem das pesquisas que tenho desenvolvido nos ltimosanos, seja na rea das polticas energticas e impactos de grandes projetos hidreltricos, se-ja na rea dos modelos de planejamento urbano ou dos movimentos sociais comparados.Estudando grandes projetos hidreltricos ou grandes projetos urbanos, buscando compa-rar movimentos sociais, em cada projeto de pesquisa temos estado confrontados neces-sidade de examinar como se articulam dinmicas e tendncias, agncias e estruturas, con-junturasesujeitosqueoperameinteragememdiferentesescalas. Comoidentificarsingularidadesegeneralidades?Quaisaspotencialidadesheursticasdeestudosdecaso?Estaro eles condenados a perder o sentido em virtude da homogeneizao imposta pelaglobalizao? Ou estaro submetidos mesma condenao, mas pela razo inversa de quetodacomparaoegeneralizaoimpossvelnummundofeitodesingularidades,realfragmentado insuscetvel de qualquer narrativa abrangente? Estaremos condenados a so-frer o vaticnio de Milton Santos: Quem no entende tudo, no entende nada?. Mas,nesse caso, de que totalidade se trata? E qual a contribuio dos estudos comparados? Ser que o mximo a que se podealmejar o reducionismo do comparatismo globalizado das agncias multilaterais, feito deindicadores que s indicam o que j se sabe e escamoteiam exatamente o que necess-rio desvelar? Estaro os planejadores condenados misria empobrecedora dos concursi-nhos de best practices? Ou algo de promissor e frtil poder resultar da multiplicao derelaesacadmicasinternacionaispropiciadapelasredeseassociaesqueconformamuma comunidade acadmico-cientfica global? Podero os estudos comparados nos ensi-nar alguma coisa, numa contemporaneidade que a tudo homogeneiza, ao mesmo tempoque, segundo alguns, favorece, como ps-modernidade vitoriosa, todas as fragmentaese tribalizaes, para usar uma expresso cara a Castells?Em particular, quando me engajei em um ambicioso projeto de pesquisa sobre Mo-vimentosSociaisComparados Brasil, frica do Sul, ndia e Tailndia , colocvamosL U G A R , R E G I O , N A O , M U N D O10 R. B. ESTUDOSURBANOSEREGI ONAI SV. 8, N. 2/ NOVEMBRO2006algumas perguntas que atualizam, de outra forma, a mesma questo da escala. Como res-pondem aos processos contemporneos de globalizao os diferentes movimentos sociaise organizaes no-governamentais, herdeiros de tradies e culturas polticas diversifica-das,enraizadosemrealidadeslocaisenacionaistodiversas?Serocapazesdeelaboraragendas,canaisdecomunicaoeformasdeorganizaoquecombinemdiversidadeeunidade? Dito em outros termos: sero capazes de articular prticas nas escalas local, re-gional, nacional e internacional/global? Estaro aptos a conceber e levar adiante, como su-geriu Bourdieu (1998), um novo internacionalismo?Ou tero razo autores anglo-saxes, muitos dos quais se reivindicam pesquisadores-ativistas ou ativistas-pesquisadores, e tambm alguns brasileiros, como o saudoso OctavioIanni, ao afirmarem que esse novo internacionalismo j se est instaurando por meio dasredes transnacionais de defesa de direitos humanos, ambientais, de gnero, etnia etc., queprenunciam a constituio de uma autntica sociedade civil global e a afirmao de umacidadania global?Em sntese, por vrios caminhos e de vrias maneiras, a questo da escala da agn-cia, e particularmente a escala da ao poltica, parece ser crucial tanto para aqueles quequerem compreender o mundo contemporneo quanto para aqueles que querem trans-form-lo... na suposio, j criticada por Marx, de que seja possvel compreender o mun-do sem o compromisso de transform-lo (Teses sobre Feuerbach), e na suposio, j desmo-ralizada por Lenin, de que seja possvel transformar o mundo sem compreend-lo (Noh prtica revolucionria sem teoria revolucionria).TERCEIRO PONTO DE PARTIDA A RELEVNCIADO TEMA PARA OS PLANEJADORES Paraosplanejadoresurbanoseregionais,aquestosecolocadeformainescapvel:qual a escala adequada de planejamento? Faz sentido insistir no planejamento regional oulocal quando os processos de deciso que determinam a estruturao, a reproduo ou atransformao do espao ocorrem em nvel nacional e, mesmo, cada vez mais, em mbitoglobal/internacional? Em caso negativo, o que fazer? Ou, ser que, pelo contrrio, justa-mente em virtude da impossibilidade de interferir nos processos decisrios monopolizadospor um punhado de global players, a ao local constitui, hoje, a trincheira ltima da de-mocracia, da cidadania e da sociedade, como j sugeriu Castells (1990)? Como pensar econfrontar (se for o caso) as teorias e prticas do planejamento quando o Banco Mundial,o PNUD, o BID e outras agncias multilaterais, que escapam ao controle da maioria dos Es-tados nacionais (no de todos, sabemos), constituem, de fato, os principais ncleos de con-cepo, elaborao, difuso e implementao (por meio de crditos condicionados) de con-ceitos, modelos, procedimentos? Idias fora de lugar? Mas de que lugar se est falando?Uma reflexo sobre a escala do planejamento faz-se mais que necessria, se no quere-mos sucumbir a uma atitude passiva, reativa, que transforma a teoria e a prtica do Plane-jamento em mero mecanismo de traduo dos modelos, de vernaculizao de procedimen-tos e prticas. E, como notrio, mesmo essa vernaculizao parece incapaz de realizar-seplenamente, como se constata at mesmo nas linguagens adotadas: empoderamento, parce-rias, governana, entre outros termos, imposio da lngua franca da globalizao aos vern-culos perifricos. Sem pretender reviver Policarpo Quaresma em defesa da lngua ptria epropor o banimento das expresses estrangeiras de nosso convvio vocabular, evidentementeC A R L O S B . V A I N E R11 R. B. ESTUDOSURBANOSEREGI ONAI SV. 8, N. 2/ NOVEMBRO2006h que reconhecer que o uso e abuso dos anglicismos constitui prova da rapidez com que sedifundem os modelos e concepes que essas linguagens redesenham e ancoram.SeoPlanejamento,comojsugeriuFranciscodeOliveira,parafraseandoClause-witz, a poltica por outros meios, perguntar-se sobre as relaes entre escalas de ao pla-nejadora perguntar-se, ipso facto, sobre as relaes entre escalas da ao poltica.VELHAS NOVIDADES? A questo para a qual despertei, e que pretendo explorar, pode ser formulada de ma-neira bastante simples. Apesar de o discurso sobre a contemporaneidade, em particular odiscurso que opera de maneira recorrente com categorias escalares, insistir que a relevn-cia do tema uma das caractersticas centrais de nosso tempo, defendo a idia de que emoutros momentos da histria as escalas ocuparam lugar to ou mais relevante no debateterico e poltico. Em outros termos: no a primeira vez que as categorias escalares e asescalas da ao poltica alcanam centralidade do debate terico e poltico. Tomando o sculo XIX como referncia, penso ser possvel mostrar quo ricas foramas elaboraes e acaloradas discusses, entre militantes e intelectuais progressistas e revo-lucionrios, sobre o local, o nacional, o internacional. E penso tambm que muitas dasperguntas ento enfrentadas, e no totalmente resolvidas, continuam a interpelar analis-tas e militantes acerca do que proponho chamar de escala pertinente de anlise e de escalapertinente de ao poltica. Esse o sentido destas exploraes histricas.Assim, o que fiz foi selecionar alguns momentos particularmente crticos da elabo-rao do pensamento acerca da questo do nacionalismo e do internacionalismo na tradi-o do pensamento marxista na segunda metade do sculo XIX e no incio do sculo XX.Antes, porm, de apresentar os resultados iniciais de minhas exploraes histricas quenos remetero, para comear, a 1848, peo a pacincia do leitor para alguns comentriospreliminares, o mais sintticos que possvel, sobre a noo de escala e sobre a possibilida-de e sentido de realizar a leitura histrica dessa categoria que , essencialmente, geogrfi-ca. Vamos, pois, iniciar com algumas exploraes conceituais.AS ESCALAS EXPLORAES CONCEITUAISComojassinalei,odebateestritamenteacercadoconceito escala praticamenteum debate entre gegrafos. O que nos dizem os gegrafos?ESCALA CARTOGRFICA E ESCALA COMO PERSPECTIVASeguindoCastro (2005,p.117),podemosinicialmentereconhecerdoisgrandescampos. O primeiro campo seria constitudo por todos aqueles que acionam a noo car-togrfica de escala: uma frao que indica a relao entre as medidas do real e aquelas desua representao grfica. O outro campo remeteria a diferentes modos de concepo epercepodoreal(ibidem,p.118).Nessecaso,emvezdeumameramedida,aescalacompe, ou integra, uma estratgia de aproximao do real (ibidem) ou de apreensoda realidade (ibidem, p.120), uma maneira de contemplar o mundo e de torn-lo vis-vel (ibidem, p.127). L U G A R , R E G I O , N A O , M U N D O12 R. B. ESTUDOSURBANOSEREGI ONAI SV. 8, N. 2/ NOVEMBRO2006Nessa segunda concepo, instrumento operacional disposio do pesquisador, decuja sensibilidade e competncia depende a capacidade de adotar a escala pertinente paraobservar o fenmeno ou processo estudados, lidamos com a escolha de uma forma de di-vidiroespao,definindoumarealidadeconcebida/percebida,umaformadedar-lheuma figurao, uma representao, um ponto de vista (ibidem, p.136). Estamos, pois, diante de um perspectivismo no qual a escala conota ou define umponto de vista (ibidem, p.136). Em texto posterior, apoiada em Merleau-Ponty, Castro(1997, p.36) vai construir uma relao entre escala e fenmeno estudado bem menos li-near. Superando a viso empirista de que para cada fenmeno h uma escala adequada,vai dar-se conta de que a escala de observao [tambm] define o fenmeno.Lacoste(1976,p.63),emseuclssicotexto-manifesto,adotaamesmaconcepoperspectivista, embora destaque com grande nfase que entre mapas de escalas desiguais no h apenas diferenas quantitativas, segundo o tamanho do es-pao representado, mas tambm diferenas qualitativas, pois um fenmeno no pode ser re-presentado seno em uma determinada escala ... em outras escalas ou bem ele no represen-tvel, ou seu significado modificado ... Eis um problema essencial, mas difcil. O que parece mais importante no manifesto lacostiano, porm, a enftica denn-cia da ingnua iluso da geografia dos professores de que opes escalares possam resul-tar de operaes asspticas e neutras. Ao contrrio, dizia ele: No plano no mais do co-nhecimento,masdaao(urbansticaoumilitar)existemnveisdeanlisequecabeprivilegiar, pois eles correspondem a espaos operacionais, em razo das estratgias e tti-cas acionadas (ibidem, p.67).Em Lacoste, porm, a escala ainda permanece associada problemtica da represen-tao e da extenso. E, nesse sentido, continua sendo uma forma de recortar extenses.AS ESCALAS DO CAPITALA chamada Geografia crtica, de que Lacoste pode ser considerado um dos fundado-res, foi mais longe na discusso terica, ultrapassando largamente as duas correntes nu-mrica/cartogrfica e perspectivista/geogrfica reconhecidas por Castro. Seria impossvelpercorrer toda a abundante produo a respeito. Tomarei Neil Smith como referncia, pe-lo lugar central que ocupa na discusso especfica sobre o conceito de escala no campo dosgegrafos marxistas em sua grande maioria de lngua inglesa ou escrevendo nessa lngua.A primeira grande ruptura instaurada diz respeito qualificao mesma do espao edas escalas espaciais de que se fala. Trata-se agora, sem dvida, do espao sob capital, doespao da acumulao do capital, e das escalas em que esse processo ocorre e as escalas queengendra. O espao, assim como as escalas, nesse caso, deixa de ser uma opo ou instru-mento operacional do pesquisador, do planejador ou do chefe de Estado maior, para serreconhecido como socialmente construdo e, pour cause, historicamente determinado:para se compreender completamente o desenvolvimento desigual do capitalismo, seria neces-srio entender-se a origem das escalas geogrficas. Geralmente tendemos [a] considerar co-mo questo indiscutvel a diviso do mundo em alguma combinao de escalas urbana, re-gional,nacionaleinternacional,masraramenteexplicamoscomoelassurgiram.(Smith,1988, p.195.)C A R L O S B . V A I N E R13 R. B. ESTUDOSURBANOSEREGI ONAI SV. 8, N. 2/ NOVEMBRO2006E, para Smith, de onde surgem as escalas? Quais as suas origens? Como marxista res-peitador dos cnones, Smith vai encontrar as origens das escalas do capital na lgica mes-ma da acumulao do capital e sua tendncia imanente para o desenvolvimento desigual.Eu diria que sua abordagem histrica somente em certa medida: verdade que as esca-las so histricas no sentido de que se instauram quando, e somente quando, emerge ocapital como relao social dominante. Mas tambm verdade que, a partir da, a hist-riacomoquesubsumidapelalgicadocapital.omovimentolgico-estruturalquemove o espao e suas escalas.Em outras palavras: o espao e as escalas sob o capital no so seno o espao e as es-calas do capital, de seu movimento incessante de acumulao:O capital herda um mundo geogrfico ... medida que a paisagem fica sob o dom-nio do capital (e se torna cada vez mais funcional para ele ...), estes padres so agrupadosem uma hierarquia cada vez mais sistemtica de escalas espaciais. (Ibidem, p.196.)Ou ainda, no mesmo sentido: a criao de um espao-economia integrado e or-ganizado nessas escalas (Ibidem, p.197).Assim constitudas, as escalas no seriam apenas condicionadas ou determinadas pe-la lgica do capital; mais que isto, sua coerncia interna e sua diferenciao j estocontidas na estrutura do capital (ibidem, p.197). Nessas condies, a historicidade dasescalas estinscrita,exante, nalgicaestruturaldocapital. Escalas, assim,nosomaisque epifenmenos do movimento do capital.Nomovimentodesuaacumulao,quenecessariamentedesenvolvimentodesi-gual, o capital, segundo Smith (1988, p.197), engendra trs escalas: o espao urbano, a es-cala da Nao-Estado e o espao global.O espao e/ou a escala urbana so vistos como expresso necessria da centralizaodo capital produtivo (ibidem, p.197), o lugar em que se atualiza e espacializa a concen-trao dos meios de produo e fora de trabalho. Se seus limites no podem ser confun-didos com a jurisdio administrativa das cidades, eles esto dados de maneira objetiva eevidente: as fronteiras do mercado de trabalho e os limites ao deslocamento dirio parao trabalho (ibidem).Quanto ao espao ou escala global, o capitalismo a define como escala geogrficaglobal sua prpria imagem (ibidem, p.202). Nessa escala o capital realiza plenamentesua pulso homogeneizadora, na medida mesma em que impe por toda parte a relaocapital trabalho e o valor... mesmo se as escalas nacional e urbana permanentemente im-pem barreiras ao processo global de homogeneizao.O que me parece curioso no esquema analtico proposto por Smith que a escalanacional, ao contrrio das outras duas, ser definida como uma escala de segunda ordem,j que, margem da produo, concebida como espao da circulao do capital. Se a escala urbana e a global representam, respectivamente, a perfeita expresso geogr-fica das tendncias contraditrias para a diferenciao e para igualizao, a escala da Nao-Estado um produto menos direto desta contradio. O impulso para a produo dessa es-cala vem da circulao do capital. (Ibidem, p. 204.)Para os que conhecem a primazia que a esfera da produo (do valor) tem em rela-o esfera da circulao nos esquemas de reproduo de Marx, e no pensamento mar-L U G A R , R E G I O , N A O , M U N D O14 R. B. ESTUDOSURBANOSEREGI ONAI SV. 8, N. 2/ NOVEMBRO2006xista cannico de modo geral, no fica difcil entender a importncia relativamente pe-quena atribuda por Smith a essa escala nacional. Poderamos nos perguntar se, ao con-trrio, no foi a desconsiderao com essa escala que acabou conduzindo Smith a confe-rir-lhe papel apenas na esfera da circulao.Relativamentedesimportantedopontodevistaqueinteressa,isto,dopontodevista do movimento da acumulao do capital, centralizao do capital, homogeneizaoe diferenciao que caracterizam o desenvolvimento desigual do capital, a escala nacional relegada ao que, no passado, e ainda hoje, os marxistas ortodoxos vem como superes-trutura: esfera do poder e da reproduo da dominao. Dando um pobre e a-histricotratamento funcionalista-utilitrio questo do Estado-nao, Smith v duas razes paraa existncia do Estado: a defesa contra outros capitais nacionais imobilizados e, alm dis-so, a defesa contra a classe trabalhadora de quem h sempre uma permanente ameaade revolta (ibidem, p.205).Poder-se-ia saudar, enfim, a emergncia de outras dimenses que no a sempre in-vocada dimenso do processo de acumulao do capital; mas, na verdade, a ameaa per-manente de revolta dos trabalhadores no altera em nada o argumento.O pensamento aqui analisado traz uma enorme contribuio ao enunciar, com to-das as letras, que estamos falando de espao e de escalas que so histricas, e datam da erado capital. Mas essa entronizao do espao e das escalas na histria acaba cobrando umpreo alto: as escalas aparecem como no sendo seno expresso da estrutura do capital,da lgica imanente que se expressa no movimento de sua acumulao. A histria foi in-troduzida para imediatamente ser posta de lado: houve histria, no h mais. O que te-mosagorasolgicasestruturaisquesemanifestamnomovimentodocapitalequecriam o tempo e o espao do capital.Emboranosejapossvelavanarnessadiscusso,cabedestacarque,emtrabalhoposterior, Smith retomou a discusso sobre as escalas, introduzindo dimenses antes silen-ciadas, e faz um nova e mais longa listagem de escalas: o corpo, a comunidade, o urbano,o regional, o nacional e o global (Smith, 1993). Apesar de alguns enriquecimentos, per-manecem os elementos centrais da anlise: a) a reificao das escalas, tidas como dadas ob-jetivamente e impostas aos homens; b) a evidente desconsiderao da complexidade his-tricaediversidadedosEstadosnacionais;c)asescalas comorecortesdoespaoquecontm umas s outras numa hierarquia sistemtica. Essa hierarquia sistemtica retoma algo que j estava presente na literatura geo-grfica, que a concepo das escalas como recortes de extenses do espao que se en-caixam umas nas outras, como babuchkas. Assim como as regies lablachianas, critica-das por Lacoste, se encaixavam num plano, as escalas dos gegrafos, incluindo Smith,seencaixam.Chamoissodeescalaridadebabuchka: cadaescala estcontidanaescalasuperior e contm a escala inferior. a volta da noo do espao como continente de re-laes e prticas.A ESCALA DA ECONOMIA-MUNDO CAPITALISTAEssa concepo de escalas encaixadas, ordenadas numa hierarquia que ascende do pe-queno ao grande, rompida por Wallerstein (1991). O empreendimento terico-histri-co de Wallerstein amplo e profundo. Em sua proposta de despensar a cincia social,ele vai questionar o que considera o mito de origem do capitalismo e da sociedade mo-derna, mito cuja narrativa seria compartilhada por marxistas e liberais. C A R L O S B . V A I N E R15 R. B. ESTUDOSURBANOSEREGI ONAI SV. 8, N. 2/ NOVEMBRO2006Nessanarrativamitolgica,amodernidadeaparececomoumprocessocontnuoeascendentequeteriapartidodolocal,passandopelonacionalatchegaraointernacio-nal/global. Esse mito da histria moderna da Europa (Wallerstein, 1991, p.73) desco-nheceria o processo de constituio de economia-mundo que instaura, ela sim, a granderuptura com a Idade Mdia: Se o movimento essencial da histria moderna da Europafoi do aglomerado urbano para a economia nacional, da arena local pra o Estado nacio-nal, onde entra o mundo neste quadro? (ibidem, p.73).Uma outra, e nova, narrativa da origem proposta: A transio do feudalismo ao capitalismo envolveu primeiramente (primeiramente doponto de vista lgico e primeiramente do ponto de vista temporal) a criao de uma econo-mia-mundo. Isto , a diviso social do trabalho veio existncia atravs de transformao docomrcio de longa distncia, que era de bens de luxo, em comrcio de bens essenciais ou demassa, vinculando processos que eram largamente dispersos em extensas cadeias mercantis.() Tais cadeias j estavam l no sculo XVI, antecedem qualquer coisa que pudesse ser cha-mado de economias nacionais. Por outro lado, estas cadeias somente poderiam estar segu-ras atravs da construo de um sistema interestatal coordenado com as fronteiras de divisosocial do trabalho real, a economia-mundo capitalista. Os estados soberanos foram institui-es criadas ento, no mbito desse (expansivo) sistema interestatal, foram definidas por elee derivaramsualegitimidadedacombinaodeauto-afirmaojurdicaereconhecimentopelo que a essncia do que quer dizer soberania. (Ibidem, p.73-4.)Se em Smith o capital que engendra as escalas, poder-se-ia arriscar um pouco e di-zer que em Wallerstein quase como se a escala mundo engendrasse o capital, ou tor-nasse sua historicidade possvel.Certamente haveria muito a discutir, e muito tem sido discutido, acerca das concep-es que, em Wallerstein e outros, desconsideram as importantes diferenas entre capitalis-mo mercantil e capitalismo tout court, propriamente dito. Tambm claro que as propostasde Wallerstein implicam a configurao de uma relao entre local, nacional e internacio-nal/global que no deixa margem acerca da primazia da escala da economia-mundo comonica passvel de ser arena para um projeto de questionamento da ordem... que , eviden-temente, antes de mais nada, ordem mundial. Mas esta no , por ora, nossa questo.EmWallerstein,pois,caiporterraoencaixamentosistmicohierarquizadoba-buchka das escalas dos gegrafos. Claramente, tambm, a escala deixa de ser poro doespao, jurisdio do mercado de trabalho ou de qualquer outro processo ou fenme-no para se transformar em campo de fluxos e relaes , relaes econmicas, por cer-to, mas tambm, e de maneira inseparvel, relaes de poder.Mas no se poderia cobrar de Wallerstein, assim como cobramos de Smith, que umavez a historicidade da economia-mundo imposta, tudo o mais no seno o seu movi-mento intrnseco?NARRATIVAS ESCALARES E LUTA PELA IMPOSIO DE ESCALAS Seja como for, tanto em Wallerstein como em Smith, como em muitos dos autoresquecompemocampodopensamentocrticocontemporneo,maisoumenosdireta-L U G A R , R E G I O , N A O , M U N D O16 R. B. ESTUDOSURBANOSEREGI ONAI SV. 8, N. 2/ NOVEMBRO2006menteinspiradospelamatrizmarxistadepensamento,encontramosapoioparapensaruma histria das escalas. Mas o que me interessa explorar no propriamente a histriadaconstituiodasescalas e desuasinter-relaes.Oquepretendofocalizarcomosedeu o debate acerca da escala pertinente da ao poltica. Certamente, h uma relao estreita, e muitas vezes intencionalmente instrumental,entre, de um lado, as narrativas escalares, para utilizar expresso j empregada por Swynge-douw (1997), isto , anlises das relaes escalares involucradas em processos sociais, eco-nmicos e polticos, e, de outro lado, as estratgias e propostas de interveno/ao queprivilegiam tais ou quais escalas.Dito de outra maneira: por trs, ou frente, de toda proposta de interveno/aopolticaestpresente,subjacenteouno,explcitaouno,umaconcepoescalar domundo social, isto , das formas predominantes de produo e reproduo de relaes. evidente que os wallersteinianos defendero fortemente a irrelevncia da ao poltica naescala nacional. E no surpreende que Smith d enorme importncia s lutas urbanas, masno consiga identificar nos movimentos nacionalistas seno ideologias conservadoras e es-tratgias diversionistas que desviam os trabalhadores, mulheres e distintos grupos tnicosou religiosos de seus verdadeiros inimigos (Smith, 1993). Penso, com Swyngedouw, que as escalas de anlise e de interveno no esto da-das, nem so fixas, nem podem ser reificadas. Antes, devem ser trazidas para o terreno so-cial, incerto e mvel, daquilo que est em disputa. Nem as estruturas e lgicas econmi-cas nem as heranas histricas em si determinam e instauram escalas.No se trata de sugerir que estaramos diante da indeterminao total e absoluta, toa gosto dos ps-modernos, impedimento de qualquer teoria abrangente. Certamente, hbases histricas e materiais, generalidades e dinmicas que estruturam os processos e suasescalas; mas esses processos so tambm, necessariamente, processos contraditrios, con-flituosos, determinados ou condicionados igualmente por embates em torno da legitima-o e imposio (simblica e poltica, econmica, cultural) de escalas dominantes. As escalas no so apenas socialmente construdas ou engendradas, como tambm, esobretudo, esto permanentemente em questo, campo e objeto de disputas e confrontosentre diferentes agentes que propem diferentes escalas e em diferentes escalas se dispem seja para conservar seja para transformar o mundo e as escalas que o organizam.Nessa abordagem, possvel superar a reificao que faz das escalas um enquadra-mento inescapvel para os sujeitos polticos. Como bem observou Swyngedouw (19978,p.140), as escalas so produzidas elas mesmas em processos profundamente heterogneos,conflituais, contestveis e contestados: a escala no est nem ontologicamente dada nem um territrio geogrfico definvel a priori nem uma estratgica discursiva neutra politi-camente na construo de narrativas.Bourdieu (1998) foi extremamente feliz ao desvelar a eficcia dos discursos sobre ainevitabilidade da globalizao neoliberal como mecanismo para fazer avanar a globali-zao, numa espcie de profecia auto-realizada profetas que atuam para que suas profe-cias se concretizem. Afinal, se todos se convencerem de que o que resta s cidades com-petiremumascomasoutras,todasascidadescompetiroumascomasoutras...eaprofecia se realizar.Ora, se tal ou qual processo parece inevitvel e sem alternativas, porque, como dis-se Bourdieu (1998, p.34), h um poderoso aparato que inculca ideologias e banaliza osprocessos. Ao eliminar a possibilidade de escolha, esse exerccio do poder simblico lan-a a poltica ao lixo da histria e nega a prpria historicidade do momento vivido semC A R L O S B . V A I N E R17 R. B. ESTUDOSURBANOSEREGI ONAI SV. 8, N. 2/ NOVEMBRO2006alternativas no h mais histria, apenas a reproduo do existente num futuro que, naverdade, j deixou de s-lo para transformar-se apenas num presente contnuo.Rejeitar a reificao das escalas e o fim da histria permite conceber as escalas comoa arena e o momento, tanto discursiva quanto materialmente, nos quais relaes de po-der socioespaciais so contestadas, negociadas e reguladas (Swyngedouw, 1997, p.140).Assim, igualmente possvel entender que se, de um lado, os confrontos e conflitosocorrem num mundo escalarmente organizado, de outro, as escalas que organizam o mun-do so, elas mesmas, resultantes dos desenlaces de conflitos passados. Para usar a lingua-gem de Bourdieu, as escalas so estruturadas, mas so tambm estruturantes.Assim, as escalas esto dadas, mas sempre em suspenso, posto que objeto de confron-to, como tambm objeto de confronto a definio das escalas prioritrias onde os em-bates centrais se daro.2A perspectiva histrica aparece agora decisivamente enriquecida, uma vez que, almdos processos econmicos que subjazem emergncia e desenvolvimento da acumulaodo capital, o prprio embate acerca das escalas que passa a ser contemplado como ele-mento decisivo. Esse, a meu ver, o fundamento que autoriza e confere relevncia paraas exploraes histricas que se seguiro acerca das escalas da ao poltica.EXPLORAES HISTRICAS NACIONALISMOE INTERNACIONALISMO NO SCULO XIXCAPITALISMO GLOBAL E LUTA PROLETRIA PROLETRIOS DE TODO O MUNDO,UNI-VOS EM SEUS PASES?Comeo com o comeo, ou melhor, com o fim do comeo, a ltima frase do Mani-festo do Partido Comunista, de 1848: Proletrios de todos os pases, uni-vos!. Essa pala-vra de ordem no poderia ser mais, digamos assim, escalar. De um lado, parte do reco-nhecimento de que os proletrios esto vinculados a pases dirige-se aos proletrios dospases, de todos os pases. Mas, de outro lado, simultaneamente, diz que o fato de que se-jam de diferentes pases no pode desvi-los do que fundamental: devem unir-se. Essatenso est presente em outras partes do Manifesto e, de certa maneira, no pensamento deMarx e dos marxistas clssicos.A narrativa escalar doManifesto sobre o processohistricoinequvoca.Aemer-gnciaeodesenvolvimentodocapitalismo:a)revolucionouecontinuaarevolucionarincessantementeomundo;b)unificoueunificaomundosobagidedocapitaledaburguesia.Impelida pela necessidade de mercados sempre novos, a burguesia invade todo o globo.Necessitaestabelecer-se em todaparte, explorar emtoda parte, criarvnculos em todaparte.Pela explorao do mercado mundial a burguesia imprime um carter cosmopolita produ-o e ao consumo em todos os pases. Para desespero dos reacionrios, ela retirou indstriasua base nacional. As velhas indstrias nacionais foram destrudas e continuam a s-lo diaria-mente. So suplantadas por novas indstrias, cuja introduo se torna uma questo vital pa-ra todas as naes civilizadas, indstrias que no empregam mais matrias-primas autctones,mas sim matrias-primas vindas das regies mais distantes, e cujos produtos se consomem nosomente no prprio pas mas em todas as partes do globo. Em lugar das antigas necessidades,L U G A R , R E G I O , N A O , M U N D O18 R. B. ESTUDOSURBANOSEREGI ONAI SV. 8, N. 2/ NOVEMBRO20062 Encontramosumapassa-gem em Smith que, emboraa nossoveremcontraposi-oaomarcogeraldesuaanlise, vai nessa mesma di-reo:asescalas demar-cam os espaos do conflitosocial, o objeto assim comoa resoluodoconflito(1993, p.101).satisfeitas pelos produtos nacionais, nascem novas necessidades, que reclamam para sua satis-fao os produtos das regies mais longnquas e dos climas mais diversos. Em lugar do anti-go isolamento de regies e naes que se bastavam a si prprias, desenvolve-se um intercm-biouniversal, umauniversalinterdependnciadasnaes. E istosereferetantoproduomaterial como produo intelectual. As criaes intelectuais de uma nao tornam-se pro-priedade comum de todas. A estreiteza e o exclusivismo nacionais tornam-se cada vez mais im-possveis; das inmeras literaturas nacionais e locais, nasce uma literatura universal. (Marx &Engels, s. d, grifos nossos).Narrativa escalar acima de tudo, revela-o uma simples contagem semntica: a) as pa-lavras e expresses globo, global, mundial, universal e outras de significado conexo apa-recem dez vezes; b) as palavras nao, pas e conexas aparecem doze vezes; c) as palavrasregio e local aparecem quatro vezes.Se o mundo um s, e se, sejam quais forem os locais, regies, pases ou naes, oinimigo o mesmo, nada mais coerente do que convocar para uma luta nica todos osproletrios. A narrativa escalar sugere uma escala pertinente de anlise o mundo, o mer-cado e a cultura mundial e extrai como conseqncia uma escala pertinente de ao po-ltica: esse mesmo mundo. Certo? Mais ou menos. Examinemos como nossos autores tra-tam a questo da relao dos trabalhadores com a nao e com a luta na escala nacional. Numa instigante passagem, respondendo s acusaes de que os comunistas queremabolir a ptria e a nacionalidade, Marx & Engels (s.d.) escrevem: Os operrios no tm Ptria. No se lhes pode tirar aquilo que no possuem. Como,porm, o proletariado tem por objetivo conquistar o poder poltico e erigir-se em classe di-rigentedanao,torna-seelemesmonao,ele,nessamedida,nacional,emboradene-nhum modo no sentido burgus da palavra. Passagem, h que reconhecer, um tanto ou quanto obscura. Tanto mais que, logo aseguir, volta o texto a insistir que Asdemarcaeseosantagonismosnacionaisentre ospovosdesaparecemcadavezmaiscomodesenvolvimentodaburguesia,comaliberdadedocomrcioeomercadomundial,comauniformidadedaproduoindustrialeascondiesdeexistnciaquelhes correspondem. Se as demarcaes nacionais tendem a desaparecer, por que razo deveria o proleta-riado constituir-se em classe dirigente da nao?A explicao,parece-me,queosautores,apesardaprimaziaconferidaescalamundial, reconhecem que a luta concreta, aquela na qual de fato o proletariado se cons-titui como classe, se trava em mbito nacional. A passagem decisiva seria a seguinte:A luta do proletariado contra a burguesia, embora no seja na essncia uma luta nacio-nal, reveste-se contudo dessa forma nos primeiros tempos. natural que o proletariado de ca-da pas deva, antes de tudo, liquidar sua prpria burguesia. (Marx & Engels, s.d., grifos nossos.)Soluo formal e, a meu ver, insatisfatria: como poderia o proletariado nacional li-quidar sua prpria burguesia se essa j se tornou, h muito, uma fora mundial? C A R L O S B . V A I N E R19 R. B. ESTUDOSURBANOSEREGI ONAI SV. 8, N. 2/ NOVEMBRO2006Afinal de contas, qual o lugar e qual o papel da escala nacional para Marx & Engels?Examinando uma srie de polmicas e embates de que participaram, ao longo da segun-da metade do sculo XIX, e que colocavam em questo, de uma maneira ou de outra, aoposio classe versus nao, Georges Haupt (1974, p.12) afirma que, em princpio, emqualquer circunstncia, a posio de Marx e Engels repousa sobre uma certeza absoluta:o primado da classe sobre todas as outras categorias histricas. Essa posio, que ancora-riaaprimaziadaescala mundialsobreaescala nacional,apoiava-se,sempresegundoHaupt, no entendimento de que a nao no passa de uma categoria transitria que, deum lado, a prpria dinmica do capital tende a enfraquecer e que, de outro, ser defini-tivamente enterrada com a vitria da revoluo proletria.O mesmo autor sugerir que, ao lado do princpio classista que , necessariamente,internacionalista, Marx & Engels operavam tambm, todo o tempo, com um certo prag-matismo poltico, o que os levava a oscilar, conforme as conjunturas, no tratamento dados diferentes reivindicaes nacionalistas que espocavam na segunda metade do sculo XIX.Assim, por exemplo, seu apoio entusiasmado independncia da Polnia tinha co-mo fundamento sua crena de que a partilha do territrio polons entre os Imprios Rus-so, Austro-Hngaro e a Prssia constitua um dos pilares do despotismo europeu. Mas sea libertao e a reunificao da Polnia pareciam a Marx & Engels indispensveis ao avan-o das foras progressistas e democrticas, no demonstravam nenhuma simpatia pelo na-cionalismodospovoseslavosdominadospeloImprioAustro-Hngaro.Aocontrrio,viam sua independncia como um fortalecimento da principal trincheira da reao euro-pia, o tsarismo, e do movimento paneslavista que o tsar alimentava e financiava. A res-peito de srvios, croatas, rutnios, montenegrinos e outros, Engels foi implacvel, decre-tandopuraesimplesmenteseudesaparecimento:Soubastanteautoritrioparaconsiderar como anacrnica a existncia, em pleno corao da Europa, de tais povinhosprimitivos (Engels, Carta a Eduard Bernstein, 22.2.1882, apud). Imagine-se o que diriaEngels se soubesse que vrios desses povinhos primitivos e anacrnicos conquistaram maisde cem anos depois Estados nacionais!LUTA SOCIALISTA E LUTA NACIONAL AS RELAES CENTRO-PERIFERIAH,porm,umaquestoemqueaposiodeMarx foiradicalmentediferente:aquesto irlandesa. Para que possam ser percebidos o alcance e a relevncia dessa questo,vale a pena destacar que, diferentemente dos casos de poloneses, eslavos do Sul e outrospovos submetidos ao Imprio Otomano, a questo irlandesa colocava em pauta uma re-lao de dominao em que o plo dominante era a Inglaterra, vanguarda do desenvolvi-mento capitalismo, e no um velho e reacionrio imprio autocrtico.O tema do colonialismo, ou, se preferir, da relao centroperiferia, havia sido tra-tado por Marx em famoso, embora pouco conhecido, artigo sobre a dominao inglesana ndia, publicado em 1853 no New York Herald Tribune. Aps afirmar que a Inglater-ra destrurademaneiraprofundaeirreversveltodaaestruturadasociedadeindiana,Marx (1853) denunciava que a misria imposta pelos britnicos no Hindusto essen-cialmente diferente e infinitamente mais intensa do que tudo o que jamais sofreu antes oHindusto. E termina o curto artigo com uma surpreendente concluso: no importa seos motivos dos ingleses foram torpes e seus crimes, inominveis, o relevante que o g-L U G A R , R E G I O , N A O , M U N D O20 R. B. ESTUDOSURBANOSEREGI ONAI SV. 8, N. 2/ NOVEMBRO2006nero humano no alcanar seu destino sem uma revoluo social na sia, revoluo es-sa deflagrada pelos ingleses que, sua revelia, se tornaram os instrumentos inconscientesdo progresso e da histria. A posio de Marx conhecida e inequvoca: os progressos do capitalismo, apesarde sua violncia e dos sofrimentos que provoca, so progressos da humanidade como umtodo. A globalizao capitalista, ou, para utilizar uma linguagem de poca, a submissoao capital dos povos brbaros e atrasados, obra do progresso e anuncia o futuro. Em 1869, 16 anos depois do artigo sobre a ndia, quando o Conselho Geral da As-sociao Internacional dos Trabalhadores discutia a posio a adotar em relao ao in-glesa na Irlanda, Marx assumiria uma posio diferente e original. Em carta enviada a En-gels, Marx escrevia: Durante muito tempo acreditei que era possvel derrubar o regime irlands [refere-se dominao inglesa na Irlanda] mediante a influncia da classe operria inglesa ... Um estu-do mais profundo me convenceu do contrrio. A classe operria inglesa no poder fazer na-da antes de liberar-se da Irlanda. H que apoiar-se na Irlanda. Por este motivo a questo ir-landesa to importante para o movimento social em geral. (Marx & Engels, 1979, p.26.)Em outra carta l-se:Anos de estudo sobre a questo irlandesa me levaram concluso que o golpe decisivopara o movimento operrio de todo o mundo no pode ser dado na Inglaterra, mas somen-te na Irlanda. (Marx, carta enviada a S. Meyer e A. Vogtn, apud Haupt, 1974, p.97.)Entre outros argumentos, Marx explicava como a dominao inglesa sobre a Irlan-da rebatia-se sobre a classe operria na Inglaterra. Todos os centros industriais e comerciais da Inglaterra tm agora uma classe operriadivididaemdoiscamposinimigos:proletriosingleseseproletriosirlandeses.Ooperrioingls comum detesta o operrio irlands como um concorrente que abaixa seu padro de vi-da. Ele se sente com relao a este como membro de uma nao dominadora e torna-se, as-sim, o instrumento de seus aristocratas e capitalistas contra a Irlanda, e consolida assim seupoder sobre o outro. (Ibidem H.)Temos aqui uma posio bastante diversa daquela assumida no tratamento da ndia.Aqui, a questo nacional do pas ou nao dominada ou perifrica se reconfigura doponto de vista escalar. No est mais em causa uma simples questo dos irlandeses, da peri-feria que est avanando pelas sendas do progresso graas interveno do capitalismo in-gls.Oquesediscuteumaquestodecisiva,emprimeirolugar,paraaprpriaclasseoperria inglesa, e, em segundo lugar, para toda a classe operria europia afinal, os ru-mos do proletariado ingls e os destinos da revoluo inglesa seriam decisivos para o queviria a acontecer na Europa. O interessante no tratamento dado por Marx questo irlandesa que, pelo menosnesse caso, classe e nao, escalas nacional e internacional se articulam, em vez de se opo-rem,ousimplesmenteseremmanipuladastaticamente.Halgodemaisprofundoqueinstauraarelaoentrecentro(Inglaterra),periferia(Irlanda)emundo(Europa), e que Marx, de maneira inspirada, expressou da seguinte maneira: repete-se na InglaterraC A R L O S B . V A I N E R21 R. B. ESTUDOSURBANOSEREGI ONAI SV. 8, N. 2/ NOVEMBRO2006de nossos dias o que a antiga Roma mostrou em escala colossal. O povo que escraviza aoutro povo forja suas prprias cadeias (Karl Marx, Circular do Conselho Geral ao Conse-lho Federal da Sua Francesa, apud Marx & Engels, 1979, p.197).Engels, ao que parece, tambm reviu profundamente sua posio. Em 1892, referin-do-se luta de poloneses e republicanos irlandeses, afirmava que estes tinham no somen-te o direito, mas o dever de ser nacionais antes de ser internacionais [pois] quando sobem nacionais que so internacionais da melhor maneira possvel (Haupt, 1974, p.19).NACIONALISMO E DIREITO AUTODETERMINAO NAO E CLASSE NOFINAL DO SCULO XIXNa virada do sculo XIX para o XX, explodem por toda parte tenses nacionais, sejana periferia extra-europia do capitalismo, em virtude da expanso colonial, seja na peri-feria imediata Europa Oriental e Blcs , onde comeavam a ruir os ps de barro so-bre os quais se apoiavam os trs grandes imprios multinacionais: Imprio Russo, Imp-rio Austro-Hngaro e Imprio Otomano.Os social-democratas, unificados na Internacional Socialista, vem sua profisso def internacionalista ser desafiada. A inexistncia de uma teoria (digna desse nome) mar-xista do Estado e a pobreza do patrimnio intelectual do marxismo sobre a questo na-cional apenas agravam as dificuldades. Divises nacionais no interior dos Estados e dosprprios partidos, assim como reivindicaes nacionalistas de vrios povos desafiam, nateoria e na prtica, a sacrossanta unidade internacional da classe trabalhadora.O desenlace desse processo, do ponto de vista do movimento socialista, conheci-do. De um lado, a desagregao da II Internacional, cujas sesses nacionais vo aderir, emseusrespectivospases,spolticasbelicistas,ditaspudicamentededefesanacional,eque levariam o mundo carnificina das trincheiras da Primeira Guerra Mundial. De ou-tro lado, a Revoluo Russa, sob a liderana dos bolcheviques, que haviam denunciado oque chamavam de capitulao dos social-patriotas.Seria impossvel recuperar todo o rico debate desse perodo. Tomei dois momentosdesse processo que, a meu ver, ilustram perfeio a diversidade e riqueza das teses emconfronto: o debate que ops Rosa Luxemburg e Lenin a respeito da Polnia e a polmi-ca travada no partido austraco sobre soberania nacional e autonomia cultural.No Congresso de 1896 da Internacional Socialista, delegada do Partido Social De-mocrata do Reino da Polnia, Rosa Luxemburg (1974) faz duro ataque ao nacionalismopolons. Suas idias essenciais podem ser sintetizadas pelas passagens seguintes:Na sociedade de classes no h nao enquanto entidade sociopoltica homognea; poroutro lado, em cada nao h classes com interesses e direitos antagnicos. (Ibidem, p.194.)Quando se encontra na histria das sociedades modernas lutas e movimentos nacio-nais, por interesses nacionais, so em geral movimentos de classe da camada burguesa di-rigente. (Ibidem, p.195.)[Emconseqncia,] Naquestodasnacionalidades,umpartidosocialista...deveconsiderar antes de mais nada o antagonismo das classes. (Ibidem, p.196.)L U G A R , R E G I O , N A O , M U N D O22 R. B. ESTUDOSURBANOSEREGI ONAI SV. 8, N. 2/ NOVEMBRO2006Em conseqncia,argumentavaRosaLuxemburg,introduzirnoprogramasocial-democrata o direito das naes autodeterminao seria aceitar o contrabando do pontode vista nacionalista sob a bandeira do internacionalismo.Defendendo a idia de que os socialistas devem lutar intransigentemente pela igual-dade das nacionalidades em instituies democrticas, rejeita radicalmente que isso sejadesejvel, e, mesmo, possvel nos marcos de um Estado nacional burgus. Por essa razo,a Internacional Socialista deveria colocar em seu programa a igualdade das nacionalida-des, mas no o apoio constituio de um Estado polons soberano, que seria, necessa-riamente, expresso e instrumento da dominao de classe.3A mesma questo vai estar no ncleo de uma polmica no Partido Operrio Social-Democrata Russo, ao qual o Partido Polons se havia filiado. Rosa Luxemburg questionao artigo (9) do programa do POSDR que defende a autodeterminao nacional, ou seja,o direito de toda nao a dispor de si mesma. Segundo Luxemburg, o princpio do di-reito autodeterminao abstrato e metafsico e reconhec-lo implicaria subordinar oproletariadoeosocialismoaonacionalismoburgus.Certamente,afirma,ossocialistaslutam pela igualdade e autodeterminao das naes, mas isso uma utopia nos marcosdo Estado burgus, onde, justamente, os povos, isto , os trabalhadores so dominados eexplorados por suas burguesias nacionais.Lenin defende o Programa, partindo da afirmao de que a anlise econmica da in-ternacionalizao do capital deve ser deixada de lado nesse debate, por tratar-se de ques-to democrtica, a resolver-se na esfera da poltica (Lowy, 1974, p.370). Recusa a idia deque o problema da autodeterminao de uma nao possa ser resolvido com a propostade autonomia cultural nos marcos de um estado multinacional, como sugeria Rosa, na es-teira dos austracos cujas posies sero examinadas logo a seguir. Lenin tambm recusaentrar numa discusso, j presente em Engels, e retomada por Luxemburg, de que h es-tados viveis os grandes estados baseados em grandes naes e estados inviveis ospovinhos primitivos de Engels.A questo, para Lenin, est no reconhecimento de que o internacionalismo s pos-svelsefundadonarelaoentrenacionalidadesiguaisemdireitos.Ora,essaigualdadeno real se alguns povos tm o direito de estabelecer seu estado, enquanto a outros no oferecida seno a autonomia cultural ou mesmo o simples desaparecimento seja pe-la assimilao seja pela violncia. O reconhecimento do direito autodeterminao nodeve implicar, segundo Lenin, que os socialistas consagrem seus esforos luta nacional,em vez de dedic-los luta de classe. Mas, como destacou Lowy (1974), Lenin muitosensvel para o potencial polticoda questo nacional e para a impossibilidade de qual-querneutralidadequandoumanaooprimidalutapelasoberaniacontraumEstadoopressor. A questo est no equilbrio delicado entre defender o direito autodetermina-o das naes com o nacionalismo, equilbrio que Lenin (1959, p.447) busca com cu-rioso argumento:Acusar os partidrios da livre determinao, isto , da livre separao das [nacionali-dades para constituir um Estado soberano], de encorajarem o separatismo to absurdoe hipcrita quanto acusar os partidrios da liberdade de divrcio de encorajar a destruiodos laos de famlia. Penso ser possvel afirmar que o lder russo buscava, de alguma maneira, preservarum espao para a luta na escala nacional:C A R L O S B . V A I N E R23 R. B. ESTUDOSURBANOSEREGI ONAI SV. 8, N. 2/ NOVEMBRO20063 RosaLuxemburgnodeixadedenunciarosconservadoresque,emou-trocontexto,usam,sobosaplausosdealgunssocia-listas,passagensemqueMarxeEngelssaudavamalutanacionalpolonesa,ereivindicaque,quandone-cessrio, e contra todo dog-matismoquetransformaverdadescontingentesemverdadesuniversaisintoc-veis,deve-seusarMarxpa-ra rever Marx.Igualdade completa das naes; direito das naes a dispor delas mesmas; unio dos oper-rios de todas as nacionalidades: eis o programa nacional indicado aos operrios pelo marxis-mo, pela experincia do mundo inteiro e pela experincia russa. (Ibidem, p.480.)NAES E ESTADO O CULTURALISMO NO IMPRIO AUSTRO-HNGAROOutro rico processo de discusso, tanto terica como poltica, desenrolou-se no in-terior do Partido Social-Democrata Austraco, onde se destacam as contribuies de Ren-ner e Otto Bauer.Jurista e socilogo, Renner, que chegou a chanceler austraco de 1918 a 1920, sedebruou sobre a relao entre Nao e Estado. Em 1899, lanou um livro Estado eNao no qual elaborava a seguinte tese: sendo a nao essencialmente uma comuni-dade cultural e lingstica, seus interesses esto, na verdade, aqum ou alm dos inte-resses econmicos. Ora, a esfera da economia e dos interesses econmicos se internacio-naliza a passos acelerados. Trata-se, portanto, de conceber um formato que contempleessa dupla dimenso: internacionalizao da economia e permanncia das culturas na-cionais.Sobre essa base, Renner rejeitava qualquer separatismo das naes do Imprio Aus-tro-Hngaro. Como jurista, vai conceber e propor uma refundao do Imprio, de mo-do a afirmar seu carter multinacional por meio do respeito igualdade das nacionalida-dese,sobretudo,dorespeitoautonomiacultural.noodeautodeterminaoesoberania, Renner e o Partido Austraco opunham a noo de autonomia. E no apenasreconheciamvirtudesnaorganizaodoEstadoimperialdualaustracoehngaro,como defendiam que essas virtudes fossem aprofundadas, ampliadas, radicalizadas. As es-colas deveriam adaptar-se a essa realidade e ensinar tambm em checo, croata e outras ln-guas.SepararasnacionalidadesquejestavamunidasnoImprioseriaempurrarparatrs, e no para a frente, a luta internacionalista pela integrao de todos os povos. Umimprio democratizado, respeitador das autonomias culturais, seria, de alguma maneira,um prenncio do mundo socialista.As posies de Renner foram adotadas pelo Congresso de Brunn, quando, pela pri-meira vez, um partido socialista assumia, formal e abertamente, um programa nacional.Esse propugnava a transformao da ustria numa democrtica federao de nacionali-dades.Nolugardoexclusivismodualaustro-hngaro,constituir-se-iamcorposauto-administradosdetodasasnacionalidadesdoimprio,dotadosdeautonomiaculturalelingstica, respeitados em todos os territrios os direitos das minorias, garantidos por leiadotada pelo Parlamento federal.Certamente oCongresso de Brunn inovava extraordinariamente, tendo em vista atradio socialista-marxista. Separava a Nao do Estado e afirmava o valor da autonomia,em detrimento da soberania. E, numa espcie de ps-modernismo avant la lettre, incor-porava como essenciais o multiculturalismo e o respeito diversidade.Em Marx, e no Manifesto, esse trabalho de unificao universal do gnero humano,iniciado pelo capital sob a gide do mercado mundial, seria completado pela vitria doproletariado socialista. No Partido Austraco, em vez da marcha inexorvel para o apaga-mento de todas as fronteiras e toda a diversidade, o caminho a ser trilhado seria o da va-lorizao dessa diversidade. L U G A R , R E G I O , N A O , M U N D O24 R. B. ESTUDOSURBANOSEREGI ONAI SV. 8, N. 2/ NOVEMBRO2006Duas utopias, ambas reivindicando o socialismo: numa, o universalismo se realiza pe-la unificao num nico gnero humano e numa nica literatura universal, como prenun-ciava o Manifesto; noutra, a utopia do universalismo se realiza pela convivncia do diverso.Em Otto Bauer essa segunda utopia vai ser radicalizada. Mais que comunidade cul-tural e lingstica, a Nao agora definida como comunidade de destino. Em outraspalavras: a nacionalidade, o pertencimento e a identidade nacionais no esto ancoradosapenas no passado patrimnio cultural e lingstico herdados , mas tambm, e sobre-tudo, no futuro, num destino (imaginrio) compartilhado. A Nao e os particularismosdeixam de ser o adversrio a combater, para transformarem-se em objetivo a alcanar noembate com a vocao homogeneizadora do mercado mundial. Cabe aos socialistas pre-servar as naes e suas culturas, em vez de completar a obra destrutiva do capital.Osocialismo internacional deve compreender a diferenciao nacional dos mtodos deluta e da ideologia em seu seio como o resultado de seu crescimento () A tarefa da Inter-nacional deve e pode ser, no o nivelamento das especificidades nacionais, mas a realizaoda unidade internacional na diversidade nacional. (Bauer apud Haupt, 1974, p.48.)Para Bauer, a diversidade das naes, e portanto a existncia mesma das naes, umprojeto de futuro, posto que, at hoje, os trabalhadores estiveram excludos da Nao. Aeducao e a superao do capitalismo como envelope econmico da sociedade permiti-ro o pleno florescimento das naes como comunidade da educao, do trabalho e dacultura. A Nao e seu (re)encontro com os trabalhadores seria, pois, um dos objetivosdos socialistas. A COMUNA DE PARIS E O LOCALISMO FEDERALISTA REVOLUCIONRIOAt aqui tratamos de debates que tiveram como foco central o par nacionalismo ver-sus internacionalismo, que tambm, em muitos momentos, se apresentou como par naoversus classe. O debate do sculo XIX, porm, no se limitou a examinar as relaes entreessas duas dimenses e escalas da ao poltica. O episdio revolucionrio da Comuna deParis enriqueceu enormemente esse debate justamente por haver introduzido, de manei-ra trgica e herica, a questo da organizao federal do que poderia ser uma repblicademocrtica fundada nas organizaes sociais locais.Na primavera de 1871, durante 72 dias, na tradio de outros tantos levantes, o po-vo de Paris, que se encontrava cercado pelas tropas prussianas aps a derrota e a queda deNapoleo III, invadiu o Hotel de Ville (sede da prefeitura) e assumiu o poder. Sob a lide-rana dos blanquistas e, secundariamente, proudhonianos e bakuninistas, os communardsorganizaram o primeiro poder revolucionrio a adotar uma ideologia abertamente classis-ta proletria. Se na rea da legislao social, da educao e da emancipao das mulhe-res a Comuna mostrou-se extraordinariamente criativa, ultrapassando muitas das propos-tas e dos projetos que os revolucionrios haviam concebido e divulgado em seus panfletose obras tericas, tambm no que concerne organizao e configurao escalar ela abriunovos campos de discusso.Poder-se-ia comear por chamar a ateno para o prprio nome desse ncleo de po-der revolucionrio hesito em cham-lo de Estado. Comuna: mais que um simples no-C A R L O S B . V A I N E R25 R. B. ESTUDOSURBANOSEREGI ONAI SV. 8, N. 2/ NOVEMBRO2006me, mais que um mero remetimento ao Conselho Geral de Paris eleito democraticamen-te, a adoo orgulhosa do nome trazia consigo toda uma concepo e programa de orga-nizao social. Contra o Estado autocrtico centralizado e centralizador do poder e dariqueza , os revolucionrios conclamam todas as comunas a se insurgirem contra o po-der central e a assumirem o poder em suas respectivas jurisdies, a fim de que se possaconstituirumalivrefederaodelivrescomunas. A esserespeito,escreveuMarx(1871,p.25) cujos partidrios ligados Associao Internacional dos Trabalhadores, no tive-ram nenhum papel de relevo na Comuna de Paris:a Comuna de Paris havia de servir de modelo a todos os grandes centros industriais da Fran-a. Uma vez estabelecido em Paris e nos centros secundrios o regime comunal, o antigo go-verno centralizado teria de ceder lugar tambm nas provncias ao governo dos produtores pe-los produtores. No breve esboo de organizao nacional que a Comuna no teve tempo dedesenvolver, diz-se claramente que a Comuna deveria ser a forma poltica inclusive das me-nores aldeias do pas ()Esse ideal de repblica federativa comunal, como chamou ateno Korsch (1929), es-tavamuitomaisprximodofederalismodeblanquistaseproudhonianosquedastesesmarxistas. Na discusso sobre o carter da Comuna, Marx vai sugerir que ela no recom-pe nem resgata as caractersticas da comuna na qual, ainda sob o domnio do feudalismo,a burguesia deu seus primeiros passos para se constituir como classe. Escreveu Marx:Em geral, as criaes histricas completamente novas esto destinadas a ser tomadas co-mo uma reproduo de formas velhas, e mesmo mortas, da vida social, com as quais podemter certa semelhana. Assim, esta nova Comuna, que vem destruir o poder estatal moderno,foi confundida com uma reproduo das comunas medievais, que precederam imediatamen-te esse poder estatal e logo lhe serviram de base. (Ibidem, p. 28.)No dizer de Korsch (1929), a comuna, longe de representar apenas uma forma burguesa de governo mais antiga que o parlamen-to, foi desde a sua origem no sculo XI at ao seu apogeu, o grande movimento burgusda Revoluo francesa de 1789-93 - nem mais nem menos que a manifestao concreta emais pura do ponto de vista de classe da luta que a burguesia, na poca classe revolucio-nria, conduziu sob as mais diversas formas, durante todo este perodo, com vistas a aba-ter a ordem feudal at ento predominante, e substitu-la pela sua ordem prpria, a ordemsocial burguesa.Assim, em Paris de 1871, a comuna era vista como uma nova comuna: fora no pas-sadoaestufaemqueteriaocorridoagnesedaburguesiarevolucionria,constitua-seagora em espao de afirmao do proletariado revolucionrio. O interessante que, coma Comuna de Paris, em todos os sentidos, uma nova e revolucionria escala ingressa nodebate: a escala urbana, local ou comunal. Se somos tentados a uma assimilao da escala comunal ao que costumamos reco-nhecer hoje como local, vale a advertncia de que a comuna revolucionria nada tem a vercom nenhum tipo de comunidade, fundada em laos de sangue, lngua, cultura ou terri-toriais. Ela uma comunidade de cidados, e no de linhagens ou de vizinhos.L U G A R , R E G I O , N A O , M U N D O26 R. B. ESTUDOSURBANOSEREGI ONAI SV. 8, N. 2/ NOVEMBRO2006Da mesma maneira, se encontramos aqui tambm a forma federativa proposta, al-guns anos mais tarde, por Renner e Bauer, a federao dos communards de base territo-rial, e no de base nacional, tnica e/ou cultural. ilustrativo e cheio de ensinamentos so-breessesignificadodecomunaoseguinteepisdio.LoFrankel,operriojoalheirohngaro e judeu foi eleito para uma vaga no Conselho Geral da Comuna. O Comit Elei-toral, a respeito, deliberou o que segue:Considerando que a bandeira da Comuna a bandeira da Repblica universal; consi-derando que toda cidade tem o direito de dar o ttulo de cidado aos estrangeiros que a servem... a comisso de parecer que os estrangeiros podem ser admitidos, e prope a admisso docidado Frankel. (Apud La Commune de Paris, http://lacomune.club.fr/pages/parent.html)4Trata-se, decididamente de uma nova e original escala, embora com passagem me-terica pela histria. Interessante ver como Marx (1871, p.35) imediatamente a incorpo-ra em seu esquema escalar.A Comuna era, pois, a verdadeira representao de todos os elementos sos da socieda-de francesa e, portanto, o governo nacional autntico. Mas, ao mesmo tempo, como governooperrio e campeo intrpido da emancipao do trabalho, era um governo internacional nopleno sentido da palavra. Ante os olhos do exrcito prussiano, que havia anexado Alema-nha duas provncias francesas, a Comuna anexou Frana os operrios do mundo inteiro.5CONSIDERAES FINAIS DE VOLTA AO DEBATE CONTEMPORNEO SOBRE ESCALASApesar dos limites da exposio, espero ter sido possvel, pelo menos, mostrar a ri-queza que uma explorao histrica do tema das escalas da ao poltica pode trazer parao debate contemporneo. Penso ter sido possvel mostrar como, de fato, os embates pol-ticos e ideolgicos mobilizam e acionam, instauram e rompem escalas, num processo emque narrativas escalares estruturam e fundamentam estratgias e tticas, configurando are-nas e objetos de disputa. No apenas as escalas se transfiguram, como seu prprio signifi-cado e nomeao indicam redefinies de sujeitos e relaes.A historicidade dos processos escalares est posta como uma permanente advertnciapara que evitemos o congelamento confortvel das escalas, que, por exemplo, faz de ter-mos como lugar ou local noes absolutamente ideolgicas, destitudas de qualquerconsistncia conceitual. De que local se fala quando se fala de desenvolvimento local:domunicpiobrasileiro,daaldeiatailandesa,dacomunidadetribalindiana,docountynorte-americano, da comuna francesa?6Com essa convico reforada pelo exerccio realizado, possvel retomar uma idiatrabalhada no incio deste texto: os desafios que a reconfigurao contempornea das es-calas coloca para todos os que militamos e pesquisamos no campo do Planejamento Ur-bano e Regional. Planejamento nacional, regional, local? De que se trata? Como se defi-nem e relacionam? Sem uma viso minimamente consistente sobre essas questes, sem aomenos instaurar o debate sistemtico a respeito, estaremos num jogo de cabra-cega ondeapenas tm os olhos descobertos as grandes corporaes globais, que articulam e intervmem todas as escalas, luz de estratgias e tticas transescalares.C A R L O S B . V A I N E R27 R. B. ESTUDOSURBANOSEREGI ONAI SV. 8, N. 2/ NOVEMBRO20064 Vale a pena, neste ponto,citaroqueescreveuHobs-bawm (1990, p.33) a respei-to deexperinciasimilar,ocorrida no calor da Revolu-o Francesa, quando o an-glo-americanoThomasPai-ne foi deputado eleito para aConvenoNacional,em1792:acaractersticadopovo-naovistadecimaeraofatoderepresentarointeressecomumemoposi-o ao interesse privado e obemcomumemoposioao privilgio Do ponto devista revolucionrio as espe-cificidadestnicaseramsecundriascomoacon-tecermaistardecomossocialistas.5 Oslimitesdestetrabalhoimpedemqueexploremostambmosdesdobramen-tosdessedebate,quevoestarpresentes,naRevolu-oRussa,nadiscussoeimplantao da organizaodonovoEstadosoviticoedesuasrelaescomaquesto das nacionalidades.E maistarde,naselabora-esdospartidoscomunis-tas, incluindo o brasileiro, e,por ele, toda a intelligentziaprogressistabrasileira,notratamentodasquestesescalares.6 Certamente,hqueenri-queceressasexploraes,na direo de ler criticamen-tetambmoutrospartici-pantes do debate do sculoXIX:jacobinos,liberais,anarquistas talvez sobretu-doestesltimos,demar-cante presena na Comuna,na discusso que se lhe se-guiue,demodogeral,nadennciadoestadocentra-lista e centralizador.Os pesquisadores e intelectuais no podem resolver todos os problemas, mas tm aobrigao de, pelo menos, contribuir para que eles sejam postos na mesa diante dos ml-tiplos agentes sociais que tm muito a perder ou a ganhar conforme as escalas que se im-ponham e as correlaes de foras resultantes.Se, como sugere Swyngedouw, a reconfigurao das escalas do poder re-scaling ofpower um dos elementos definidores da contemporaneidade, a tarefa da objetivao eanlise dos embates nessa arena decisiva. Localismos, nacionalismos, regionalismos, glo-balismos, todos esses modelos e projetos devem ser incessantemente interpelados. Afinalde contas, o poder, mais do que nunca, no est nem no local nem no regional, nem nonacional nem no global... mas na capacidade de articular escalas, de analisar e intervir demodo transescalar.Por isso mesmo, a questo da escala da agncia e, em particular, a escala da aopoltica parece ser crucial tanto para aqueles que querem compreender o mundo contem-porneo quanto para aqueles que querem transform-lo. REFERNCIAS BIBLIOGRFICASBOURDIEU, P. Contre-feux: propos pour servir la rsistance contre linvasion neo-librale. Paris: ditions Lber Raisons dAgir, 1998.CASTELLS, M. The world has changed: Can planning change? Keynote Speech,ACSP Annual Meeting, Austin, Texas, November, 1990 (mimeogr.).CASTRO,I.E.de.Oproblemadaescala.In:CASTRO,I.E.deetal.(Org.)Geografia: conceitos e temas. 7.ed. 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Cambridge, UK: Polity Press, 1991.A B S T R A C T Drawingfromatheoreticalreviewofthenotionofscaleandanhistoricalapproachofthesocialistdebateonnationalismandinternationalisminthe19thcentury, this article intends to shed light on the contemporary debate about the scale of politicalagency and planning. Denying the possibility that any transforming strategy could be inscribedin an unique and privileged scale local, regional, national or global , the article suggeststhat power, more than ever, is not placed on the local, on the regional, on the national, nor onthe global scales but in the capacity to articulate scales, to analyse and intervene in a trans-scale manner.K E Y W O R D S Scale; planning; political agency.C A R L O S B . V A I N E R29 R. B. ESTUDOSURBANOSEREGI ONAI SV. 8, N. 2/ NOVEMBRO2006REBELIO NAS PERIFERIASO CASO FRANCSJ E A N - P I E R R E GA R N I E R*R E S U M O Amplamentemidiatizadasedramatizadas,asrevoltasdenovembrode2005 na Frana foram igualmente bastante analisadas. Privilegiando seus aspectos urbanos,locais, ou mesmo tnicos, a maior parte das interpretaes propostas pelos pesquisadores tevepor efeito, seno por objetivo, negar a este evento o seu verdadeiro carter poltico. Elas no fa-zem mais do que reconduzir ao plano terico o impasse prtico ao qual conduziu uma polti-ca urbana que, h trs dcadas, segundo diferentes configuraes, restringe-se a territorializar aquesto social para eludi-la, falta de poder resolv-la. Essa questo reveste-se de formas espa-ciais novas com a transacionalizao do capital na era da acumulao flexvel. Para neutralizarnoterrenoasdesordenssociaisengendradasporessanovaordemmundial,asautoridadesfrancesas esforam-se em instaurar uma nova ordem local, em que a preveno tende a tomara forma da represso e a poltica urbana a confundir-se com uma polcia da cidade. Vale di-zer que o caso francs no mais que a exceo que, em um contexto sociolgico, urbanstico eideolgico, vem confirmar a regra global.P A L A V R A S - C H A V E Questo urbana; questo social; poltica das cidades. O movimento de revolta de uma parte da juventude popular das cits francesas1emnovembro de2005deulugarainmeroscomentrioseinterpretaes,tantodapartedejornalistaseresponsveispolticoscomodepesquisadoresdasCinciasSo-ciais. Mas, independentemente das diferenas de apresentao e apreciao dos fatos,tributrias que so dos conflitos de interesse, das clivagens ideolgicas e dos embatespolticosqueatravessamasociedadefrancesa,duasconstataesforamunnimes:adurao excepcional das perturbaes quase trs semanas , e sua extenso geogr-ficaaproximadamentetrezentascomunas2envolvidas.Entretanto,contrariamenteaosrelatrioserepresentaessensacionalistasdequeesseseventosforamobjetonamdia estrangeira, a intensidade dos enfrentamentos foi mnima se comparada s re-belies ocorridas em anos recentes em outros pases. Por certo, as foras policiais en-gajadas para restabelecer a ordem foram considerveis (at 17 mil funcionrios), maselasconseguiramevitarferimentosgravesentreosrebeldes.Ademais,onmerodemanifestantes15mil,nomximo,emsuamaioriacomidadevariandode15avinte anos, foi mnimo relativamente populao total de jovens de 15 a trinta anosdesexomasculinoquase350mil,umterodosquaisinativosoudesempregadosque no esto em cursos de formao e residindo nos bairros classificados como zo-nas urbanas sensveis.3Feita essa relativizao, preciso reconhecer que a importncia poltica dessas per-turbaesnodeve sersubestimada.Em primeiro lugar, porqueelassoreveladorasdeuma grave crise social da qual nada indica, mais de um ano aps os fatos, que ela estejaem vias de ser absorvida. Em segundo, porque nada prova que o que pde parecer at aquicomoumaespciedeexceofrancesadevaassimpermanecer.Essasduasafirmaesno deixaro, certamente, de suscitar crtica ou mesmo uma recusa categrica. Pois novoelas justamente contra osmodosde pensar e de tratar a nova questo social ou,31 R. B. ESTUDOSURBANOSEREGI ONAI SV. 8, N. 2/ NOVEMBRO2006* Traduo de Marcos Reis1 Cits:nomedadoaosconjuntos de habitaes so-ciaispblicasconstrudasapsaSegundaGuerraMundialat1973.Emsuaorigem, eram destinadas aoconjunto das famlias assala-riadasquenoconseguiamter acesso a habitaes pri-vadas.Hoje,nelassresi-dem,emsuamaioria,fam-liasdeoperrioseempregadosmaisdesquali-ficados.2 Comuna: a menor subdi-viso administrativa do terri-triofrancs,administradapor uma municipalidade (umprefeito maire e conse-lheiros municipais). 3 Zonaurbanasensvel:entidadeburocrticadefini-da e delimitada pelos pode-respblicosparaseralvodeumapolticaurbanaque visa circunscrever a de-gradao fsica e social dascits.antes, como veremos, de eludi-la que prevalecem na Frana h mais de 35 anos? , pois,para sustent-las que este artigo se dedica. TERRITORIALIZAR A QUESTO SOCIALConforme deixam entender as manchetes ou as formulaes utilizadas a propsitodas revoltas de novembro de 2005, a includos os discursos de pretenso cientfica, con-firmar-se-iaumaagravaodoproblemadasbanlieues,4ou,maisprecisamente,dosquarteires sensveis.5Uma vez mais, verificava-se assim o consenso macio estabeleci-do desde meados dos anos 1970 para problematizar as perturbaes provocadas pelas jo-vens geraes que vivem nas cits como pertinentes a uma questo urbana. Sem dvida,os fatores explicativos de ordem socioeconmica (desemprego, subemprego, desqualifica-o da mo-de-obra, fracasso escolar ou mesmo desescolarizao das crianas) ou po-ltico-ideolgica (sentimentos de injustia muito pronunciados em um pas onde os ci-dados so oficialmente proclamados livres e iguais em direito ante as desigualdadessociais, as discriminaes tnicas, a brutalidade da polcia) no eram negados como po-deriam s-lo? , mas o quadro de anlise e de ao mantm-se mais do que nunca terri-torial. Ora, como o assinalava o socilogo Pierre Bourdieu (1993), o essencial do que sevive e se v no terreno, quer dizer as evidncias mais chocantes e as experincias mais dra-mticas encontram seu princpio totalmente em outro lugar.Sem pretender discutir aqui esse outro lugar, freqentemente evocado de manei-raalusivaenaturalizantesobdesignaesdiversas(mundializao,mutaes),oque remete s transformaes globais do sistema capitalista na era da acumulao flex-vel (Garnier, 1997), preciso, assim mesmo, sublinhar de novo o carter ao mesmo tem-po estril e mistificador de uma viso que implica territorializar um problema para des-politiz-lo. Pois,longedeconduzirap-lasdefinitivamenteemquesto,asrebeliesde 2005 serviram de pretexto para reforar sua ancoragem nas mentalidades e institui-es. Para gegrafos e socilogos, entre os mais representativos da pesquisa urbana fran-cesa (cf. Nuits de novembre, 2005),por exemplo, a concluso a tirar da geografia dasviolncias corroboraria o que constitui a seus olhos o ponto de partida obrigatrio detoda reflexo sobre a urbanizao contempornea: justo na hora em que o conflito docapital e do trabalho no mais o nervo da conflitualidade, a relao estabelecida como territrio tornou-se central (cf. Redessiner les territoires, 2005). Como se a relao en-tre o capital e o trabalho, tornada no (ou menos) conflitual em razo da vitria (provi-sria?) do primeiro sobre o segundo no tivesse nenhuma incidncia na relao de umcomo de outro com o territrio! A destituio dos bairros de habitao social,6em par-ticular, no deveria nada decomposio social, poltica e ideolgica da classe operriasob o efeito, entre outros,7das novas modalidades da explorao da fora de trabalho?(Bihr, 1991; Beaud & Pialoux, 1999).Segundo a maior parte dos especialistas franceses e jovens das cits ou quarteiressensveis, os ltimos motins sancionariam o fracasso da poltica urbana desenvolvida,sobessenomeouumoutro,desdeofimdosanos70.Masnooprincpiomesmodeuma interveno dos poderes pblicos tendo por alvo um territrio com problemas pararesolver os problemas surgidos neste territrio. Dito de outro modo, uma outra polti-ca urbana que se deveria implantar. Acreditou-se, de fato, poder dinamizar os quartei-resgraasamedidasespecficas:re-habilitaoarquitetural,apoioescolar,desenvolvi-R E B E L I O N A S P E R I F E R I A S32 R. B. ESTUDOSURBANOSEREGI ONAI SV. 8, N. 2/ NOVEMBRO20064 Utilizado no plural, o ter-mobanlieue nodesignamaisdeformaneutraoconjuntodiversificadofor-madopelaaglomeraour-bana que cerca uma grandecidade,mascentenasdecomunassuburbanase,mais precisamente, as citsque aliestoimplantadastrazendoproblemasdema-nuteno da ordem. 5 Quartier sensible no ori-ginal:nooideolgicadeconotaes mdicas erigidacomoconceitoparadesig-nardemaneirametafricaagrupamentosdehabita-essociaisondeasitua-o testemunharia um mal-estarouummalquecaberiaaospoderespbli-coscuidarapsumdiag-nsticoegraasainter-venesentre asquaisoperaesurbansticasearquiteturais ou policiais apropriadas.Comoparaasbanlieues, a colocaonopluraldotermoquartierdispensa acrescentar o qua-lificativosensvelouain-dadifcilparafazersa-berquesetratadeagrupamentosdehabita-essociaiscujosmorado-res trazem problemas s au-toridades. 6 Quartier dhabitat social:outradesignaodadascits.7 O colapso dos regimes dosocialismo real, por um la-do, e a adeso dos partidosde esquerda economia demercado,poroutro,acele-raram esse processo. mento de atividades culturais, esportivas ou ldicas, promoo das associaes, criao deempregos temporrios para jovens sem trabalho consistindo com freqncia, sob a rubri-ca de animao, de formao ou de mediao, a ocupar outros jovens despossu-dos para dissuadi-los de semear a desordem etc. Ora, essa discriminao positiva de fa-to teria contribudo involuntariamente ao retraimento dos territrios e ao fechamento deseus habitantes sobre si mesmos. Seria preciso, portanto, antes, reconfigurar os primei-ros para favorecer o desenclavamento e a mobilidade dos segundos na escala da cida-de, da aglomerao ou da metrpole, o que, a crer nos partidrios dessa reorientao daao pblica, permitiria reinserir uns e outros na sociedade urbana. Como podemos constatar, essa poltica urbana, qualquer que seja sua verso, abs-trai a dimenso poltica da relao entre certos espaos no caso, as zonas de relegao on-de uma parte da franja inferior das classes populares se encontra concentrada e o con-juntodasociedade.Aomenosseentendemosporpolticoumcampo,prticaserepresentaes que tm a ver com a diviso e o conflito. Por certo, a diviso e o conflitono esto ausentes das preocupaes dos idealizadores e dos agentes da dita poltica urba-na, pois sua razo de ser ltima (ou inicial) , por mais inconfessvel que seja, a de neu-tralizar o conflito e negar a diviso. Com efeito, as relaes de dominao prprias ao cur-soneoliberaltomadopelaevoluodomododeproduocapitalista(flexibilizaodomercado de trabalho, desmantelamento das conquistas sociais, diminuio da funo re-distributiva do Estado), que esto na origem da acentuao da segregao socioespacial,so postas entre parnteses em favor de uma abordagem unanimista que d prioridade reconstruo do lao social, participao do habitantes e a valorizao da cidada-nia ali onde a nova questo social se coloque. Para tanto, bastar qualificar como ur-bana essa questo. E circunscrever cidade na verdade a alguns de seus setores e acertas categorias de seus habitantes as respostas que lhe sero dadas. Essa questo, sabemos, a da(s) violncia(s) urbana(s), e da insegurana tambmurbana que ela(s) engendraria(m). No se falar, seno de modo alusivo, das violnciasde ordem material, institucional ou simblica infligidas s camadas populares em uma so-ciedade cada vez mais desigual, assim como tampouco se falar da insegurana que resul-ta para elas em diversos planos: profissional, residencial, sanitrio, alimentar, mas tambmpsicolgico e existencial. Na Frana, essa violncia social se agrava, para as jovens geraesresultantesdaimigraops-colonial,dasvexaesracistasdetodotipo(discriminaono emprego ou no acesso moradia ou aos equipamentos de lazer, controles policiais re-petidos, julgamentos inquos nos tribunais etc.) suscitados por sua aparncia facial ou seunome. Somente sero consideradas e condenadas pelos agentes da ordem supostamenterepublicana as violncias que so denominadas urbanas, sob o pretexto de que os fe-nmenos reunidos sob essa etiqueta (vandalismo, roubos, furtos, trfico, agresses, rixasentre bandos, rebelies, incivilidades) acontecem com maior freqncia nas cidades como poderia ser diferente em um pas amplamente urbanizado?8 e mais precisamen-te, em espaos pblicos urbanos. Quandonoseresolveumproblemaatacandodiretamentesuascausasestruturais,acaba-se sempre tentando regular sua no-resoluo, impedindo que os conflitos deles re-sultantes se tornem explosivos. Tal a linha de conduta adotada na Frana pelos gover-nantes tanto de direita como de esquerda, em mbito nacional e local, diante de compor-tamentos e atos de rebelio origi