Revista Brasileira de História Da Educação.

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Revista Brasileira de História da Educação Respeite o direito autoral Reprodução não autorizada é crime

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A Revista Brasileira de História da Educação finaliza seu oitavonúmero, reafirmando-se como uma publicação consolidada e que temampliado de maneira significativa sua circulação dentro e fora do Brasil.

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Revista Brasileira deHistória da Educação

Respeite o direito autoralReprodução não autorizada é crime

Conselho DiretorDermeval Saviani (UNICAMP); Marta Maria Chagas deCarvalho (PUC-SP); Ana Waleska Pollo Campos Men-donça (PUC-Rio); Libânia Nacif Xavier (UFRJ).

Comissão EditorialJosé Gonçalves Gondra (UERJ); Marcos Cezar de Freitas(PUC-SP); Maria Lúcia Spedo Hilsdorf (USP);Maurilane de Sousa Biccas (USP).Secretaria – Maria Cristina Moreira da Silva

Conselho Consultivo

Membros nacionais:Álvaro Albuquerque (UFAC); Ana Chrystina VenâncioMignot (UERJ); Ana Maria Casassanta Peixoto (SED-MG); Clarice Nunes (UFF e UNESA); Décio Gatti Jr. (UFUe Centro Universitário do Triângulo); Denice B. Catani(USP); Ester Buffa (UFSCAR); Gilberto Luiz Alves (UEMS);Jane Soares de Almeida (UNESP); José Silvério Baia Horta(UFRJ); Luciano Mendes de Faria Filho (UFMG); LúcioKreutz (UNISINOS); Maria Arisnete Câmara de Moraes(UFRN); Maria de Lourdes de A. Fávero (UFRJ); Mariado Amparo Borges Ferro (UFPI); Maria Helena CamaraBastos (UFRGS); Maria Stephanou (UFRGS); MartaMaria de Araújo (UFRN); Paolo Nosella (UFSCAR).

Membros internacionais:Anne-Marie Chartier (França); António Nóvoa (Portu-gal); Antonio Viñao Frago (Espanha); Dario Ragazzini(Itália); David Hamilton (Suécia); Nicolás Cruz (Chile);Roberto Rodriguez (México); Rogério Fernandes (Por-tugal); Silvina Gvirtz (Argentina); Thérèse Hamel (Ca-nadá).

Revista Brasileira de História da EducaçãoPublicação semestral da Sociedade Brasileira de História da Educação – SBHE

A Sociedade Brasileira de História da Educação (SBHE),fundada em 28 de setembro de 1999, é uma socieda-de civil sem fins lucrativos, pessoa jurídica de direitoprivado. Tem como objetivos congregar profissio-nais brasileiros que realizam atividades de pesquisa e/ou docência em História da Educação e estimular es-tudos interdisciplinares, promovendo intercâmbioscom entidades congêneres nacionais e internacionaise especialistas de áreas afins. É filiada à ISCHE(International Standing Conference for the History ofEducation), a Associação Internacional de História daEducação.

Diretoria NacionalPresidente: Diana Gonçalves Vidal (USP)Vice-presidente: Luciano Mendes de Faria Filho (UFMG)Secretária: Libânia Xavier (UFRJ)Tesoureiro: Jorge Luiz da Cunha (UFSM)

Diretores RegionaisNorte: Titular: Maria das Graças Sá Peixoto Pinheiro(UFAM), Suplente: Andréa Lopes Dantas (UFAC)Nordeste: Titular: Ana Maria de Oliveira Galvão (UFPE)Suplente: Jorge Carvalho do Nascimento (UFSE)Centro-Oeste: Titular: Maria de AraújoNepomuceno (UCG)Suplente: Regina Tereza Cestari de Oliveira (UFMS)Sudeste: Titular: José Carlos de Souza Araújo (UFU)Suplente: Rosa Fátima de Souza (UNESP)Sul: Titular: Maria Elisabeth Blanck Miguel (PUC-PR)Suplente: Flávia Werle (UNISINOS)

SecretariaCentro de Memória da EducaçãoFaculdade de EducaçãoUniversidade de São PauloAv. da Universidade, 308 – Bloco BTerceira Fase – Sala 40CEP 05508-900 – São Paulo-SPTel.: (11) 3091-3194E-mail: [email protected]

Revista Sociedade Brasileira de História daEducação – SBHE

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Revista Brasileira deHISTÓRIAEDUCAÇÃO

SBHE

Sociedade Brasileira de História da Educação

da

julho/dezembro 2004 no 8

ISSN 1519-5902

A publicação deste no 8 da Revista Brasileira de História da Educaçãocontou com o apoio financeiro do Conselho Nacional deDesenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq – EntidadeGovernamental Brasileira Promotora do Desenvolvimento Científicoe Tecnológico.

EDITORA AUTORES ASSOCIADOS LTDA.Uma editora educativa a serviço da cultura brasileira

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Conselho Editorial “Prof. Casemiro dos Reis Filho”Bernardete A. GattiCarlos Roberto Jamil CuryDermeval SavianiGilberta S. de M. JannuzziMaria Aparecida MottaWalter E. Garcia

Diretor ExecutivoFlávio Baldy dos Reis

Coordenadora EditorialÉrica Bombardi

Assistente EditorialAline Marques

RevisãoAdemar Lopes JuniorFernando Ramos de Carvalho

Diagramação e ComposiçãoDPG Ltda.

Projeto Gráfico e CapaÉrica Bombardi

Impressão e AcabamentoGráfica Paym

Revista Brasileira de História da Educação

ISSN 1519-5902

1º NÚMERO – 2001Editora Autores Associados – Campinas-SP

Sumário

EDITORIAL 7

ARTIGOS

Celebração e visibilidade: o Dia do Professor e as diferentes imagensda profissão docente no Brasil (1933-1963) 9Paula Perin Vicentini

A lei da escola: sentidos da construção da escolaridade popular atravésde textos legislativos em Portugal e Santa Catarina – Brasil (1880-1920) 43António Carlos Luz Correia e Vera Lucia Gaspar da Silva

Feios, sujos e malvados: os aprendizes marinheiros no Paraná oitocentista 85Vera Regina Beltrão Marques e Sílvia Pandini

Entre a história cultural e a teoria literária:rumo a uma história dos cânones escolares no Brasil 105Luiz Eduardo M. de Oliveira

Entre biografias e autobiografias pedagógicas: os diários de infância 125Egle Becchi

A constituição dos saberes escolares e as representaçõesde infância na Reforma Fernando de Azevedo de 1927 a 1930 159Sônia Camara

DOSSIÊ: TEMPOS SOCIAIS, TEMPOS ESCOLARES

Apresentação 181Maria Cristina Gouveia

El aula al exterior: el tiempo de las excursiones escolares en México, 1904-1908 183Lucía Martínez Moctezuma

De cuándo a cuándo. La transformación del calendario escolaren las escuelas mexicanas del siglo XIX 205Anne Staples

Tiempo y sociedad, en el Real Seminario de Minería, 1792-1821 225Eduardo Flores Clai

De jóvenes a estudiantes. La forja del tiempo y el orden escolares 243Antonio Padilla Arroyo

Tempos de aprender: a produção histórica da idade escolar 265Maria Cristina Soares de Gouveia

RESENHA

A educação dos negros: uma nova face do processo de abolição daescravidão no Brasil 289Por Surya Aaronovich Pombo de Barros

NOTA DE LEITURA

História da educação e da cultura en Galícia 297Por Diana Gonçalves Vidal

ORIENTAÇÃO AOS COLABORADORES 299

CONTENTS 301

Editorial

A Revista Brasileira de História da Educação finaliza seu oitavonúmero, reafirmando-se como uma publicação consolidada e que temampliado de maneira significativa sua circulação dentro e fora do Brasil.

É relevante destacar que o nosso investimento em assegurar a manu-tenção da periodicidade da revista tem sido amplamente correspondidopela nossa comunidade de pesquisadores de história da educação, quetem encaminhado de maneira contínua e sistemática artigos, propostas detraduções, e participado da organização de dossiês temáticos. Nosso de-sejo é que este engajamento e comprometimento com o nosso projeto depublicação continuem cada vez maiores, espelhando assim o amadureci-mento de um campo de conhecimento.

A regularidade e a excelência do nosso periódico têm sido reconheci-das por toda a comunidade científica, repercutindo não apenas na avalia-ção A (nacional) do Qualis/CAPES, como na concessão de recursos poragências financeiras. Este é o primeiro número de muitos, esperamos,que conta com apoio do CNPq.

No sumário, comparecem seis artigos bastante significativos e insti-gantes – (um deles tradução) – e o dossiê “Tempos sociais, tempos esco-lares”, composto por textos de pesquisadores latino-americanos ebrasileiros, trazendo uma importante contribuição ao abordar um mesmotema com diferentes e variados aportes teóricos metodológicos. Acom-panham ainda esta edição uma resenha e uma nota de leitura.

No sentido de continuarmos privilegiando a publicação de artigostanto relacionados à memória da educação quanto à historiografia da edu-cação brasileira, reiteramos nosso convite para que continuem propondotraduções, reedição de textos do campo da história da educação, resenhase notas de leitura.

Comissão Editorial

Celebração e visibilidade

O Dia do Professor e as diferentes imagens daprofissão docente no Brasil (1933-1963)*

Paula Perin Vicentini**

Este artigo analisa o processo de institucionalização do Dia do Professor no Brasil,celebrado em 15 de outubro desde 1933, identificando os diferentes significados assu-midos pela data que se afirmou como uma forma de dar visibilidade ao magistério e deexpressar diferentes concepções acerca da docência.PROFISSÃO DOCENTE; COMEMORAÇÕES; REPRESENTAÇÕES SOBRE OMAGISTÉRIO; MOVIMENTO DOCENTE; 1933-1963.

This text analyzes the process of institution of Teachers’ Day in Brazil, which is celebratedin October 15th since 1933. The different meanings of this date are identified from theperspective that it was an opportunity to give teachers’ issues public visibility and toexpress different thoughts on teachers’ work.PROFESSION; CELEBRATION; TEACHERS UNIONISM; 1933-1963.

* O presente texto constitui uma versão revista e ampliada do trabalho apresentadono GT de História da Educação durante a 26ª Reunião Anual da ANPEd, realizadaem Poços de Caldas – Minas Gerais – em outubro de 2003.

** Professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo e da Pontifí-cia Universidade Católica de São Paulo.

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Em 1933, a Associação dos Professores Católicos do Distrito Fede-ral (APC-DF) tomou a iniciativa de festejar, no Brasil, o Dia do Primei-ro Mestre em 15 de outubro, dando origem à comemoração do Dia doProfessor que acabou por se consolidar como uma forma de dar visibili-dade à categoria. A data passou a ocupar um lugar de destaque no movi-mento do magistério em prol de uma melhor remuneração e de maiorreconhecimento social, tornando-se objeto das lutas travadas no campoeducacional brasileiro para definir os valores e os comportamentos quelhes eram próprios. Diversas entidades e diferentes esferas do poderpúblico procuraram atribuir à celebração um significado específico, querseja através da natureza das atividades promovidas (missas, sessões so-lenes, entregas de medalhas, protestos, greves etc.), quer seja pelo con-teúdo dos discursos proferidos, nos quais tanto os aspectos exaltadosquanto os omitidos eram relevantes para identificar as concepções so-bre a docência que estavam em jogo, quer seja ainda pela discussãosobre a pertinência desse tipo de celebração que colocava em evidênciaa controvérsia existente entre a recompensa simbólica e a financeira daprofissão. Neste texto, reconstitui-se o processo por meio do qual a co-memoração se institucionalizou no Brasil analisando as diferentes ima-gens do magistério que ganharam visibilidade nas múltiplas formas decelebrar a data, desde o seu surgimento, em 1933, sob o predomínio deuma visão fortemente idealizada da docência que exaltava o sacrifício ea abnegação daqueles que a exerciam e eram relegados ao esquecimen-to a despeito da nobreza de sua missão – até a deflagração da primeiragreve do magistério paulista em 1963, justamente em 15 de outubro, aqual, além de procurar legitimar a idéia do docente como um profissio-nal que necessitava ser remunerado condignamente, provocou uma mu-dança sobretudo na imagem tradicional da professora primária, pois in-corporou às representações já consolidadas a seu respeito elementosrelativos à sua participação em manifestações de rua1.

1. Convém explicitar aqui que se utiliza, neste trabalho, a noção de campo tal como adefine Pierre Bourdieu (1983 e 1989): um espaço de lutas estruturado em torno deobjetos de disputa em função dos quais se constituem regras de funcionamento einteresses específicos e no qual se estabelece a posição dos agentes e das institui-

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Tal análise integra a pesquisa sobre a imagem social do magistériobrasileiro entre 1933 e 1963, que realizou um contraponto entre as re-presentações veiculadas acerca da docência por órgãos da grande im-prensa – tomados como indicativos de uma visão externa da profissão –e as divulgadas por periódicos de entidades representativas de diferen-tes segmentos da categoria, numa tentativa de apreender a sua “hetero-geneidade” (Enguita, 1991). Esta pretensão levou à escolha dos locaisinvestigados, pois o movimento docente no antigo Distrito Federal (trans-formado no estado da Guanabara em 1960) e em São Paulo assumiuconfigurações distintas durante o período investigado em razão das di-ferenças quanto à presença da iniciativa oficial e privada em seus siste-mas de ensino. No caso carioca, o Sindicato dos Professores do Rio deJaneiro, fundado em 1931 por iniciativa do magistério secundário parti-cular, tinha um lugar de destaque na grande imprensa, sobressaindo-sepela sua atuação contra os baixos salários e as péssimas condições detrabalho da categoria. Em São Paulo, diferentemente, o CPP (Centro doProfessorado Paulista), fundado em 1930 e vinculado ao professoradoprimário oficial, foi durante um período significativo a principal asso-ciação docente do estado. Nos anos 1940, com o crescimento da rede deensino público, surgiram outras associações que alcançaram expressãono campo educacional, dentre as quais se destacou a APESNOESP (Asso-ciação dos Professores do Ensino Secundário e Normal Oficial do Esta-do de São Paulo), que deu origem à APEOESP (Associação dos Professo-res do Ensino Oficial do Estado de São Paulo), atualmente o sindicatoda categoria2.

ções em decorrência do reconhecimento alcançado mediante as lutas pela legitimi-dade travadas no interior do próprio campo.

2. Tal pesquisa, desenvolvida em nível de doutorado, contou com o financiamento daFAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo).Os periódicos examinados foram: a Revista do Professor (1934 – 1965) – editadapelo CPP, a Revista APESNOESP (1961 – 1963), o Boletim do Sindicato dos Pro-fessores do Ensino Secundário, Primário e de Artes do Rio de Janeiro (1944 –[1945]) e o periódico que o sucedeu: a Folha do Professor (1959 – [1974]). Cabeinformar que a entidade carioca teve várias denominações: Sindicato dos Professo-res do Ensino Secundário e Comercial do Distrito Federal (1931), Sindicato dos

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Evidentemente, o nível de organização e a expressão alcançada porcertos segmentos do magistério através das suas associações eram de-terminantes nas lutas de representações, travadas para definir ou redefinira identidade profissional da categoria. A esse respeito, as observaçõesde Pierre Bourdieu são extremamente pertinentes, pois o autor observaque os critérios tidos como objetivos para delimitar uma identidade re-gional resultam de

representações mentais – [...] atos de percepção e de apreciação, de conheci-

mento e de reconhecimento, em que os agentes investem seus interesses e

pressupostos – e de representações objetais, coisas (emblemas, bandeiras,

insígnias etc.) ou atos, estratégias interessadas de manipulação simbólica ten-

dentes a determinar a representação (mental) que os outros podem construir

a respeito tanto dessas propriedades como de seus portadores [Bourdieu, 1996,

p. 107].

desenvolvendo uma luta entre representações que correspondem adiferentes princípios de classificação e de divisão do mundo social(Bourdieu, 1996, p. 107). Convém aqui assinalar as possibilidades deaproximação desta concepção do mundo social com a que é apresentadapor Roger Chartier, para quem o conceito de representação permiteapreender:

Inicialmente, as operações de recorte e de classificação que produzem as

configurações múltiplas graças às quais a realidade é percebida, construída,

representada; em seguida, os signos, que visam a fazer reconhecer uma iden-

Professores do Distrito Federal (1932), Sindicato dos Professores do Ensino Se-cundário, Primário e de Artes do Rio de Janeiro (1943) e, atualmente, Sindicatodos Professores do Município do Rio de Janeiro (SINPRO-Rio). A respeito da histó-ria das entidades mencionadas, no caso do Sindicato dos Professores do Rio deJaneiro, ver Coelho (1988); sobre o CPP, Vicentini (1997) e Lugli (1997) e, acercada APEOESP, Joia & Kruppa (1993) e Kruppa (1994).Sobre a participação da iniciativa oficial e particular na expansão do sistema edu-cacional de São Paulo e do antigo Distrito Federal (a partir de 1960, estado daGuanabara), ver: Beisiegel (1974), Sposito (1984), Matos (1985) e Santos (1994).

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tidade social, a exibir uma maneira própria de ser no mundo, a significar

simbolicamente um estatuto, uma posição, um poder; enfim, as formas insti-

tucionalizadas pelas quais os representantes encarnam de modo visível [...] a

força de uma identidade [Chartier, 1998, pp. 178-179].

Desse modo, para o autor, não há “prática ou estrutura que não sejaproduzida pelas representações, contraditórias e em confronto, pelas quaisos indivíduos e os grupos dão sentido ao [seu] mundo” (Chartier, 1991,p. 177).

É nessa perspectiva que se consideraram as representações veicula-das acerca da docência pelos periódicos das entidades representativasde diferentes segmentos do magistério que, numa tentativa de definir aidentidade do grupo, articulavam os embates e as negociações entrevalores e concepções que se pretendiam generalizar para a totalidade dacategoria e acabavam por forjar a sua imagem, procurando difundi-lajunto a diversos setores sociais em busca de uma melhor remuneração ede um maior prestígio. Evidentemente, tais entidades procuravam ga-nhar voz e visibilidade nos órgãos da grande imprensa, importantes nãosó para atrair a atenção da opinião pública para os problemas enfrenta-dos pela categoria, mas também para divulgar a sua atuação em prol dosprofessores. Por outro lado, os jornais também tinham interesse em in-cluir (e manter) os professores entre os seus leitores através de seçõesespecializadas em educação, cujo principal exemplo é a coluna “Edu-cação e Ensino”, escrita por um professor (Elisiário Rodrigues de Sousa)por mais de 20 anos para o Diário de S. Paulo. A importância dessegênero de produção pode ser avaliada pela moção apresentada duranteo X Congresso da APESNOESP reivindicando que os jornais mantivessemseções educacionais sob a responsabilidade de docentes para que divul-gassem “informação das entidades de classe”, a fim de evitar que sedisseminassem “falsas idéias sobre a realidade da Escola Pública” (Re-vista APESNOESP, ano I, n. 1, p. 15, 1961).

A esse respeito, convém observar que as relações que os agentes docampo educacional estabeleciam com o campo jornalístico dependiamnão só de sua posição na hierarquia do sistema de ensino ou nas esferasde representação do movimento docente, mas também da orientação

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política e ideológica dos jornais. Desse modo, o Sindicato dos Professo-res do Rio de Janeiro tinha como o seu principal porta-voz o jornalÚltima Hora, cuja vinculação com o trabalhismo é amplamente conhe-cida, ao passo que o CPP – que exercia uma posição de liderança nomovimento de organização do magistério paulista e cujos dirigentesocupavam postos de comando no sistema de ensino – tinha amplo des-taque nos jornais diários, gerando, após a greve de 1963, a crítica dealguns leitores da Folha de S.Paulo contra a sua predileção pelo profes-sorado primário. É importante assinalar aqui que esta situação se inver-teu a partir do final dos anos 1970, quando a configuração do movimen-to docente paulista alterou-se com a ascensão da APEOESP após as grevesde 1978 e 1979, fazendo com que o CPP reclamasse da sua exclusão donoticiário da Folha (Lugli, 1997). Assim, a grande imprensa, além defornecer indícios sobre o prestígio da categoria (ou melhor, de seus seg-mentos) junto aos grupos responsáveis pelos jornais examinados, cons-tituía um veículo importante na produção da imagem pública dos do-centes por se tratar de uma mídia externa ao campo educacional e deampla circulação.

A fim de obter uma visão multifacetada acerca das formas de repre-sentação do magistério na grande imprensa, examinaram-se três jornaisde perfis distintos de São Paulo e três do Rio de Janeiro, no períodorelativo ao Dia do Professor (de 10 a 17 de outubro de cada ano). Nocaso paulista, escolheram-se os dois principais jornais do estado na atua-lidade: O Estado de S.Paulo (fundado em 1875 com o nome de A Pro-víncia de S. Paulo) – no dizer de Capelato e Prado, “defensor dos postu-lados liberais” e tido como “órgão modelar da opinião pública” (1980,p. XIX) – e a Folha da Manhã (1925-1960) / Folha de S.Paulo – voltadapara as camadas médias. Além disso, examinou-se o matutino da em-presa de Assis Chateaubriand – o Diário de S.Paulo (1929-1979) – quepublicava a coluna “Educação e Ensino”, mencionada anteriormente.No caso do Rio de Janeiro analisou-se um dos seus principais jornaisatualmente, O Globo (1925), pertencente à família Marinho, pois o Jor-nal do Brasil (1891) já havia sido estudado por Ferreira (1998), emborasem a intenção de historiar a origem da comemoração e de analisar assuas significações. Por isso, optou-se pelo Correio da Manhã (1901-

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1974) que “foi um dos principais órgãos da imprensa brasileira, tendo-se sempre destacado como um jornal de opinião” e pelo Última Hora(1951-1971), fundado por Samuel Wainer que introduziu “uma série detécnicas de comunicação de massa até então desconhecidas no Brasil”(Leal & Flaksman, 1984).

Cabem aqui algumas observações sobre as especificidades das prá-ticas de leitura próprias desse tipo de mídia, de consumo rápido, queconta não só com leitores regulares, cuja familiaridade com a organiza-ção interna dos jornais altera a natureza da recepção do seu conteúdo,mas também com leitores esporádicos e com aqueles “que não lêem osjornais e os captam somente pelas manchetes, como num cartaz”, au-mentando “o valor ‘relativo’ de todas as informações” localizadas noseu interior (Morin, 1961, p. 90). Nesse sentido, vale lembrar a impor-tância do suporte do texto que, segundo Chartier, abrange as caracterís-ticas advindas “da passagem [...] a impresso”, presentes nas disposiçõestipográficas, na diagramação das páginas, na utilização de fotos e deoutros recursos gráficos mediante os quais se organiza a leitura a serrealizada. No dizer do autor, “é necessário recordar vigorosamente quenão existe nenhum texto fora do suporte que o dá a ler, não há com-preensão de um escrito, qualquer que ele seja, que não dependa dasformas através das quais ele chega ao leitor” (Chartier, 1990, p. 127).Embora durante o período estudado a organização das matérias dos jor-nais, com o auxílio de recursos tipográficos para facilitar a sua leitura,ainda estivesse se consolidando no Brasil e oscilasse muito de um órgãopara outro, é inegável a importância dos mecanismos por meio dos quaisse procurava despertar a atenção para determinadas questões, tais comoas manchetes, as chamadas na primeira página e as fotografias que sedisseminaram na grande imprensa brasileira a partir do final dos anos1950. Nesse sentido, convém notar a importância das formas de repre-sentação visuais, cuja recepção é mais imediata do que a do texto e queforam objeto de meu doutorado, mas que não serão analisadas aqui3.

3. Sobre as características da grande imprensa brasileira durante o período investiga-do, ver Sodré (1966), Abreu (1996) e Taschner (1992).

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Ao se tornar objeto do noticiário da grande imprensa, merecendomuitas vezes o destaque da primeira página, da representação fotográfi-ca e dos editoriais, a celebração do Dia do Professor afirmou-se comoum modo de dar visibilidade ao magistério, assegurando-lhe um espaçonão só para divulgar os festejos da data, mas também para explicitar osproblemas enfrentados pela categoria e os embates travados para legiti-mar diferentes concepções sobre a profissão. Sem a pretensão de esgo-tar as possibilidades de comparação entre o caso português e o brasilei-ro, convém observar que, em Portugal, o Dia do Professor – segundoNóvoa – foi instituído durante o Estado Novo como uma forma de solu-cionar a ambigüidade da política adotada com relação ao magistério,marcada pela aparente contradição entre a “desvalorização do estatutoda profissão docente e [...] [a] dignificação da imagem social do profes-sor” (1992, p. 496). Já no Brasil tal iniciativa partiu de uma associaçãodocente católica e o seu reconhecimento oficial se deu durante a vigên-cia do regime democrático no país. Apesar de diferentes esferas do Es-tado procurarem se apropriar da comemoração, tal medida – no casopaulista – foi fruto de um movimento empreendido por entidades repre-sentativas do magistério secundário e particular que a consideravam umaforma de tornar a atividade docente reconhecida socialmente, mas que,a partir do final dos anos 1950, passaram a utilizar a data como ummarco nos protestos contra a baixa remuneração.

Antes de analisar a pluralidade de significados que caracterizou oDia do Professor no Brasil, convém evocar a reflexão de Mona Ozouf(1976) sobre as possibilidades de interpretação advindas da incorpora-ção da festa como objeto da história, sem deixar de chamar a atençãopara os equívocos aos quais esta incorporação está sujeita. Ao seu ver,“não existe festa sem reminiscência; repetição do passado, freqüente-mente anual, a festa traz consigo uma memória que é tentador tomarcomo tal. Prenúncio do futuro, a festa fornece, por outro lado, como queuma aproximação deste. Suscita uma simulação do futuro que o histo-riador tem a boa fortuna de poder comparar com o futuro real”. Talvinculação com o tempo pode levar ao equívoco de se considerar a re-petição presente na festa como “uma repetição consciente de si própriaem que o passado celebrado seria reconhecido por aquilo que é, manti-

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do à distância e analisado”. Também se corre o risco de “tomar como talo ensaio de futuro” que a festa inclui, sem se levar em conta que “oprincípio representado pela festa é muito freqüentemente apenas umanovidade ilusória, o reinício de um gesto exemplar; é na repetição quese fundamenta a esperança” (Ozouf, 1976, p. 217). Embora a autoraprossiga a sua reflexão tendo em vista as interpretações existentes sobreas festas revolucionárias francesas, cujas circunstâncias históricas queas fizeram emergir, bem como a sua amplitude sejam extremamentediferentes dos festejos do Dia do Professor no Brasil, penso que as suasobservações são de grande relevância para a presente análise, pois asrelações da comemoração examinada aqui com o tempo mostraram-sefundamentais para a compreensão dos seus diferentes significados e dasrepresentações veiculadas acerca da profissão docente. Nesse sentido,foi possível constatar que a relação com o tempo poderia dividi-las en-tre as que constituíam uma imagem de professor (ou melhor, de profes-sora), cuja forte idealização fazia com que ela parecesse ultrapassar oslimites temporais do período estudado e as que procuravam romper coma imagem tradicional da docência, introduzindo elementos novos queeram as marcas de um momento em que se deu visibilidade à participa-ção da categoria em atos públicos contra a desvalorização salarial, cujoápice foi a primeira greve geral do magistério paulista em 19634.

1. Os percursos da comemoração

a) O Dia do Primeiro Mestre: uma iniciativa católica

Em 1933, a Associação dos Professores Católicos do Distrito Fede-ral (APC-DF) festejou o Dia do Primeiro Mestre com uma missa e umasessão cívica realizada no Instituto de Educação do Rio de Janeiro, ten-

4. Sem a pretensão de ser exaustiva, considero relevante mencionar aqui estudos pro-duzidos no âmbito da história da educação brasileira que tiveram como objetooutros gêneros de comemoração, tais como os de Circe Bittencourt (1990), CynthiaGreive Veiga e Maria Cristina Gouveia (2000), Moysés Kuhlmann Júnior (2001).

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do como referência a data da “primeira lei sobre o ensino primário noBrasil”, marcada pela aliança entre o Estado e a Igreja no país, pois em15 de outubro de 1827 o Senado do Império criou as escolas de primei-ras letras e designou um vigário para as paróquias existentes no Brasil.Tal idéia partiu do presidente da APC-DF (Everardo Backheuser) queatuou na Associação Brasileira de Educação (ABE) e, após a sua recon-versão ao catolicismo em 1928, engajou-se na arregimentação do ma-gistério católico mediante a fundação da APC-DF neste ano e de outrasentidades congêneres que, em 1933, deram origem à Confederação Ca-tólica Brasileira de Educação (CCBE). Segundo Marta Carvalho, os fun-dadores da CCBE haviam militado na ABE juntamente com os reforma-dores durante os anos 1920, sem apresentarem divergências quanto aoprojeto apregoado pela entidade que se notabilizou com a organizaçãodas Conferências Nacionais de Educação, mediante as quais conquistoulegitimidade para opinar sobre questões pedagógicas. Após a Revolu-ção de 1930, a possibilidade de interferir efetivamente nos rumos dapolítica educacional transformou os aliados da década anterior em ri-vais que passaram a disputar “o controle do aparelho escolar”, com ointuito de implantar um “projeto de unificação e homogeneização na-cional, que se montava preponderantemente através da constituição eda consolidação da hegemonia cultural”. Este embate – ao seu ver –ocorreu, sobretudo, “no campo doutrinário da pedagogia, no qual sedisputava o controle ideológico do professorado”, tendo em vistanormatizar as práticas escolares e viabilizar a sua proposta de reformasocial (Carvalho, 1989, pp. 33-34)5.

Em meio à tentativa de congregar em âmbito nacional o magistériocatólico, a APC-DF lançou um apelo para que tal comemoração ocorres-

5. “O nosso primeiro mestre: as comemorações de anteontem”, Correio da Manhã,17 out. 1933, Primeiro caderno, p. 2. Com relação à CCBE, cabe informar que,segundo Barreira, a entidade em 1934 “coordenava 40 APCS, arregimentando maisde 300 colégios católicos, espalhados pelo território nacional. Esses colégios reu-niam 60 mil alunos e cerca de 6.200 professores” (1999, p. 179). Sobre a ABE, verMarta Carvalho (1986) e a respeito das disputas entre católicos e reformadores, vertambém Azevedo (1976).

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se em todo o Brasil e a população expressasse a sua gratidão ao primeiroprofessor, visitando-lhe, enviando-lhe flores ou um cartão de felicita-ções e, no caso de ele estar morto, depositando flores em seu túmulo. EmSão Paulo, o Centro de Cultura Intelectual divulgou tais instruções epromoveu uma série de atividades nesse sentido: missa, concentração deestudantes em frente à Escola Normal, festival em homenagem aos mes-tres mais velhos da cidade e visitas aos professores doentes. Tambématendeu ao apelo da APC-DF a Liga do Professorado Católico de SãoPaulo que, desde 1920, festejava no mesmo dia Santa Teresa d’Ávila –patrona da entidade por ser “a grande doutora da Igreja” – que, a partir de1949, começou a ser designada nos jornais paulistas “padroeira do ma-gistério”. Em 1933, além da missa na igreja de São Bento em sua home-nagem, a Liga convocou toda a população do estado de São Paulo aprocurar quem lhe “ensinou a ler” para homenageá-lo e, com a autoriza-ção do Diretor Geral do Ensino, promoveu um concurso sobre o primei-ro mestre entre os diretores de grupos escolares, professores de escolasisoladas e particulares e também entre alunos do terceiros e quartos anos,cujos melhores trabalhos seriam publicados em seu órgão informativo: arevista Anchieta (1933–1934). Ao contrário da Liga, cujos festejos con-tinuaram a figurar na grande imprensa paulista, a APC-DF apareceu ape-nas mais uma única vez no noticiário carioca sobre a data. A partir dosanos 1940, outras entidades representativas do magistério começaram acelebrar a data e, em São Paulo, organizaram um movimento pela suaoficialização6.

b) A oficialização da data

Nos anos 1940, a comemoração do Dia do Professor voltou à cenaem 1947, com as atividades da “comissão [...] pró-oficialização do Diado Professor” que procurou divulgar a comemoração junto à grande

6. “Será solenemente comemorado hoje, nesta cidade, o Dia do Mestre. O programaelaborado”, Folha da Manhã, 15 out. 1933, Primeiro caderno, p. 15. “Nosso pri-meiro mestre”, O Estado de S.Paulo, 15 out. 1933, Primeiro caderno, p. 5.

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imprensa, à rádio, às autoridades escolares e aos parlamentares e rece-beu a adesão do Sindicato do Ensino Primário e Secundário, do Sindica-to do Ensino Comercial, da APESNOESP, da União Paulista de Educação(UPE) – presidida à época por Sólon Borges dos Reis – e da SociedadeBeneficente de Professores e Auxiliares de Administração, sem nenhu-ma menção ao CPP. O Sindicato dos Professores Secundários de Cam-pinas, particularmente, realizou uma missa, um almoço, uma romariaao Cemitério da Saudade para reverenciar os professores falecidos – oque passou a ser uma tradição para a entidade nos anos subseqüentes.Sem nenhuma referência à iniciativa da APC-DF, a UPE, na ocasião,veiculou instruções bastante semelhantes às divulgadas pela associaçãocarioca em 1933, fazendo um “apelo ao povo”

no sentido de que cada cidadão dedique um instante desse Dia do Mestre, ao

professor ou professora, que lhe ensinou as primeiras letras, ou que maior

influência haja exercido na formação de sua personalidade. Aqueles que de-

sejam atender este apelo da União Paulista de Educação, prestigiando o tra-

balho de educadores [...], deverão fazer uma visita ou escrever uma carta ao

seu antigo mestre. No caso do professor já ter falecido, a homenagem poderá

ser prestada através de uma prece em sua memória7.

Em 1948, o governador Adhemar de Barros declarou feriado esco-lar “a data de 15 de outubro, considerada o Dia do Professor” (lei n. 174,de 13/10/48) e, a partir de então, começaram a surgir notícias sobre assolenidades organizadas por grupos escolares, escolas normais, ginási-os e colégios, que contavam com “sessões lítero-musicais”, missas, con-ferências, homenagens a velhos mestres ou mediante a entrega demedalhas e de “diplomas de honra”. Ao noticiar os festejos que pelaprimeira vez tiveram caráter oficial em São Paulo, a Folha destacou acerimônia organizada pela Liga do Professorado Católico em homena-

7. “Dia do Professor: as comemorações de amanhã na capital”, O Estado de S.Paulo,14 out. 1947, p. 7. “Campinas: Comemorações do Dia do Professor”, Folha daManhã, 15 out. 1947, Segundo caderno, p. 4.

celebração e visibilidade 21

gem ao Jubileu de Ouro dos mestres formados há 50 anos e o almoçopromovido pelo SESI (Serviço Social da Indústria) numa de suas cozi-nhas distritais que se tornou tradicional durante período estudado e queera amplamente divulgado pela grande imprensa em matérias com vá-rias fotos do evento. Em São Paulo, após o reconhecimento oficial, oEstado ora se esforçando para “abrilhantar” os festejos em homenagemao magistério, ora deixando a data cair no esquecimento, fez com que oDia do Professor tivesse diferentes significados no âmbito da luta dacategoria por melhores vencimentos e maior prestígio social. Em 1960,criou-se o título de Mestre do Ano – entregue ao governador CarvalhoPinto num grande evento no Ibirapuera e, em 1961, a Dorina GouveiaNowill, deficiente visual e presidente da Fundação do Livro do Cego noBrasil. Sem ter sido realizada em 1962, último ano de seu mandato, asua entrega foi retomada em 1963 (ano da primeira greve do magistériopaulista), reverenciando os professores mais velhos do estado8.

Diferentemente, o noticiário da grande imprensa carioca sobre o fe-riado escolar de 15 de outubro caracterizou-se pela polêmica que taldeterminação gerou nas escolas particulares, evidenciando os conflitosexistentes entre os professores e os proprietários dessas instituições. Adiscrepância entre o que se pagava aos colégios e o número de aulasrecebidas motivou a crítica de O Globo, publicada na primeira páginaem 1951:

Dia da Criança – feriado escolar. Dia do Professor – feriado escolar. Mais

duas folgas, portanto, dentro de apenas uma semana, que é somente de cinco

dias nos colégios. Resultado: estuda-se seis meses no Brasil e paga-se um ano

inteiro [...]. Mas não seria melhor que no Dia da Criança – estudassem mais

8. “Governo do Estado: feriado escolar”, Folha da Manhã, 14 out. 1948, Segundocaderno, p. 5. “Significativas solenidades assinalaram ontem o transcurso do Diado Professor”, Folha da Manhã, 16 out. 1948, Primeiro caderno, p. 3. “Enaltecidoo magistério com a homenagem ao Mestre do Ano”, Folha de S.Paulo, 16 out.1960, p. 15. “A Mestra do Ano receberá seu título depois de amanhã. Dorina GouveiaNowill”, Folha de S.Paulo, “Educação”, 12 out. 1961, p. 8. “Homenagem do Pro-fessorado”, Folha de S.Paulo, “Educação”, 16 out. 1963, p. 6.

22 revista brasileira de história da educação n° 8 jul./dez. 2004

os estudantes, numa grande festa do espírito? E que no Dia do Professor –

ensinassem mais os professores, em homenagem à própria e alta missão que

lhes é conferida?9

O Correio da Manhã, ao contrário, criticou (em 1953) o não cum-primento, por parte dos proprietários de escolas privadas, da lei quedecretou o dia 15 de outubro feriado escolar. Esta questão reapareceucerca de dez anos depois, quando os diretores de colégios particulares,incluindo o secretário da Educação no governo de Carlos Lacerda (FlexaRibeiro), ameaçaram obrigar os professores a trabalharem como repre-sália às suas reivindicações salariais, o que não foi possível graças aodecreto do então presidente João Goulart declarando o dia 15 de outu-bro feriado escolar em todo o Brasil. Além disso, o ministro da Educa-ção participou da comemoração organizada pelo Sindicato dos Profes-sores do Rio de Janeiro. No caso carioca, o predomínio da rede de ensinoparticular fez com que a instituição do feriado do Dia do Professor de-sempenhasse um papel central nos embates travados entre o Sindicatodos Professores e os proprietários dos colégios, evidenciando as dife-renças entre as diversas esferas do poder público quanto à gestão dosconflitos trabalhistas dos docentes do ensino particular10.

A partir de 1951, os jornais cariocas passaram a divulgar os festejosdo Dia do Professor promovidos pela Câmara de Vereadores e pelo exe-cutivo municipal, estadual (a partir de 1961) e federal. Após a criaçãodo estado da Guanabara, algumas Administrações Regionais passarama comemorar a data, oferecendo aos professores “um Sorvete Amigo”,descontos em cinemas e uma missa. O Ministério da Educação lançouem 1956 o concurso que ficou conhecido como “Concurso Dia do Pro-fessor – embaixada da França”, destinado aos docentes do ensino mé-

9. “Feriados escolares...”, O Globo, 15 out. 1951, Primeira Página.10. “O Dia do Professor”, Correio da Manhã, 14 out. 1953, Primeiro caderno, p. 6.

“Professores festejam o seu dia com feriado”, Última Hora, 15 out. 1963, Primeirocaderno, p. 2. Quanto ao feriado escolar no Dia do Professor, cabe informar queforam localizadas em outros anos (1954, 1956, 1958 e 1959) referências a porta-rias nesse sentido.

celebração e visibilidade 23

dio, cujo prêmio seria um estágio de três meses no Centro Internacionalde Sevrès, na França e sobre o qual há referências até 1960. Em 1958, oministro Clóvis Salgado instituiu a Semana do Professor e a grande im-prensa passou a veicular a mensagem da União dos Professores Primá-rios do Distrito Federal – transformada na União dos Professores Pri-mários do Estado da Guanabara –, cujo conteúdo (todos os anos) enalteciao caráter sacerdotal da docência. Já o Sindicato dos Professores – querealizava uma “assembléia geral comemorativa da data” com uma “mesade doces” ou um coquetel – em suas declarações denunciava os baixossalários e as péssimas condições de trabalho11.

Simultaneamente às iniciativas oficiais e das entidades representati-vas de diferentes segmentos do magistério, instituições sem vínculo di-reto com o campo educacional engajaram-se na comemoração do Diado Professor. O Última Hora realizou inúmeros concursos a propósitoda data que contribuíram para que ela se difundisse, dentre os quaiscabe destacar aqui a eleição em 1951 do Patrono do Professorado Ca-rioca, entre grandes vultos do magistério já falecidos (Anchieta, RuiBarbosa, D. Pedro II, Abílio Cesar Borges, Ernani Cardoso e BenjaminConstant). José de Anchieta foi eleito com 26.641 votos dos 86.561apurados. A eleição do jesuíta pode ser considerada um indicativo dainfluência da Igreja Católica junto aos participantes do concurso, in-cluindo as alunas das duas escolas normais oficiais do Distrito Federal(o Instituto de Educação e a Escola Normal Carmela Dutra), das quaisse esperava o voto em Benjamin Constant. A simbologia de sua figura,evidentemente, remetia para uma concepção sacerdotal da docência emque sacrifício, abnegação e dedicação se associavam na descrição deum mestre exemplar12.

11. “Criticada na Assembléia Legislativa a indiscriminada criação de escolas médias”.Folha da Manhã, “Ensino e Magistério”, 12 out. 1956, Assuntos especializados,p. 17. “Alunos homenagearam (com flores) seus professores: Dia do Mestre”, Úl-tima Hora, 17 out. 1960, Primeiro caderno, p. 2. “Iniciadas as comemorações daSemana do Professor”, Correio da Manhã, 10 out. 1958, Primeiro caderno, p. 12.

12. “Patrono do Professorado Carioca”, Última Hora, 11 out. 1951, Primeiro caderno,p. 9; “Vence Anchieta para Patrono”, Última Hora, 27 nov. 1951, Segundo cader-no, p. 1.

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Nesse sentido, convém assinalar o papel da grande imprensa na di-vulgação do Dia do Professor, pois as iniciativas desse gênero, assimcomo o noticiário acerca dos festejos de 15 de outubro e os comentáriosa seu respeito, contribuíram para que a data fosse incorporada pelo ima-ginário coletivo. Em contrapartida, o engajamento dos jornais na divul-gação da comemoração também coloca em discussão as relações entre ocampo educacional e o jornalístico, evidenciando tanto a influência dasinstituições interessadas na sua difusão junto aos responsáveis pelo con-teúdo dos jornais quanto a representatividade do magistério como umsegmento de leitores em potencial que deveriam ser cultivados e manti-dos. Entretanto, no Rio de Janeiro, somente no início dos anos 1960 foipossível constatar uma maior projeção da data, ganhando o interesse deinstituições sem vínculo direto com o campo educacional: o Rotary Clubeda Tijuca, a Liga de Defesa Nacional (LDN), o Lion’s Club da Tijuca ea Associação do Comércio e Indústria da Zona Sul. Assim, o reconheci-mento oficial da comemoração deu origem a cerimônias promovidaspelos poderes públicos e por outras instituições, que homenageavamprofessores tidos como exemplares e exaltavam a dedicação e a abnega-ção com que a categoria realizava a sua “nobre missão”, mas no finaldos anos 1950 a data passou a incluir os protestos contra os baixos salá-rios e os problemas do seu estatuto profissional13.

c) O Dia do Professor e a luta por melhores salários

Em São Paulo, as associações docentes, a partir do final dos anos1950, passaram a utilizar a data para protestar contra a política governa-mental, não participando das cerimônias oficiais a fim de explicitar asua dissociação do Estado. Ao mesmo tempo em que tais entidades luta-

13. “Homenagem aos mestres em almoço do Rotary Clube da Tijuca”, Correio daManhã, 13 out. 1960, Primeiro caderno, pp. 2 e 8. “Liga de Defesa Nacional come-mora terça o Dia do Professor”, Correio da Manhã, 15 out. 1961, Primeiro cader-no, p. 9. “Dia do Professor será comemorado pela Liga de Defesa Nacional”, Cor-reio da Manhã, 12 out. 1962, Primeiro caderno, p. 2. “Comemorado na GB Dia doProfessor”, Correio da Manhã, 16 out. 1963, Primeiro caderno, p. 2. “Dia do Mes-tre”, Correio da Manhã, “Ensino”, 10 out. 1964, Segundo caderno, p. 7.

celebração e visibilidade 25

ram na década de 1940 para que a data fosse reconhecida oficialmente,com o intuito de melhorar o estatuto profissional do magistério, ao cons-tatarem que esta medida não contou com uma contrapartida materialrelativa à sua remuneração elas passaram a utilizá-la para expressar assuas insatisfações, elegendo-a como marco para as campanhas reivindi-catórias. Instaurou-se, portanto, entre o Estado e as associações docen-tes uma disputa para apropriar-se da comemoração e atribuir-lhe dife-rentes sentidos, tanto para o movimento docente quanto para a imagemsocial dos professores.

Em 1956, o Sindicato dos Professores do Ensino Secundário e Pri-mário solicitou que, em 15 de outubro, houvesse aulas nas escolas pri-vadas para compensar a greve realizada em setembro, em protesto con-tra as alterações do Fundo Nacional do Ensino Médio (FNEM)14. Em1958, o Sindicato e a APESNOESP resolveram não participar das comemo-rações oficiais do Dia do Professor. Ao divulgarem sua decisão, taisentidades anunciaram um programa próprio para a data e ironizaram aatitude do ministro em instituir a Semana do Professor, apontando acontradição entre a tentativa de mostrar o apreço aos professores e odescaso quanto à sua remuneração, ressalvando que os alunos e as suasfamílias sempre externaram a sua gratidão à categoria:

O Sr. Clovis Salgado [Ministro da Educação], enquanto procura burlar o

cumprimento de um diploma legal, que assegura ao professor um mínimo de

condignidade da remuneração, determina por um ato ministerial que se exal-

te este ano mais do que nunca o papel de relevância que têm os professores,

recomendando, ainda, num arroubo de ternura de magnanimidade, que as

comemorações não se realizem num único dia, mas durante toda a semana,

como se os professores – ainda que reconheçam o sacerdócio dos seus miste-

res – pudessem viver de flores e discursos. Muito platônico e generoso o Sr.

Ministro da Educação15.

14. “Criticada na Assembléia Legislativa a indiscriminada criação de escolas médias”,Folha da Manhã, “Ensino e Magistério”, 12 out. 1956, Assuntos especializados,p. 17.

15. “O magistério de São Paulo e as comemorações do Dia do Professor”, Folha daManhã, “Ensino e Magistério”, 10 out. 1958, Assuntos especializados, p. 5.

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Tal decisão teve o apoio da União Paulista dos Estudantes Secundá-rios (UPES), da União Estadual dos Estudantes (UEE) e da União dosEstudantes Secundários Paulistas (UESP) como atesta o seguinte comu-nicado, assinado por Daniel Marun Filho, Babajara da Silva Firpo eJoaquim Lima Neto:

Os estudantes paulistas, ciosos de seus deveres, repudiam recomendações

oficiais para prestar nessa significativa data as homenagens mais carinhosas

e espontâneas a que fazem jus os nossos mestres, de cujas amarguras e de-

cepções compartilhamos, lamentando que os poderes públicos não lhes dêem

e merecido respeito e tratamento compatível com a elevada função social

que desempenham na formação intelectual, moral e cívica da mocidade bra-

sileira16.

A Secretaria da Educação acabou por cancelar as atividades previs-tas para o Dia do Professor devido à morte do Papa Pio XII, o que levoutais entidades a atribuírem tal atitude ao “receio do insucesso nas festi-vidades oficiais”. Em 1961, a APESNOESP realizou uma concentração dian-te da estátua de Anchieta para homenagear o seu presidente (RaulSchwinden), “dissociando-se da homenagem oficial à Mestra do Ano”,pelo fato de ele ter sido afastado do cargo de diretor superintendente doInstituto de Educação Caetano de Campos devido à sua atuação no co-mando da entidade. Em 1963, com a iminência da greve de toda a cate-goria, as associações docentes, inclusive o CPP, declararam luto no Diado Professor, recusando-se a participar das “homenagens oficiais [...]diante da situação desesperada em que se encontra a classe em geral,não só quanto à remuneração, mas especialmente pela forma como vemsendo tratada pelo Governo do Estado”17.

16. “Os estudantes secundários e o Dia do Professor”, Diário de S. Paulo, “Educaçãoe Ensino”, 11 out. 1958, Segundo caderno, p. 9.

17. “Por causa da morte do papa foram suspensos os festejos do Dia do Professor”, OEstado de S.Paulo, 11 out. 1958, p. 10. “Numerosos festejos assinalarão a passa-gem do Dia do Professor”, Folha de S.Paulo, 4 out. 1960, p. 10. “A Mestra do Anoreceberá seu título depois de amanhã. Dorina Gouveia Nowill”, Folha de S.Paulo,

celebração e visibilidade 27

No Rio de Janeiro, o Dia do Professor também passou a ter um cará-ter de protesto, ainda que de forma menos contundente, pois o Sindicatodos Professores sempre aproveitava a data para denunciar a baixa remu-neração da categoria e as péssimas condições de trabalho dos professo-res nos estabelecimentos particulares de ensino. Em razão da combati-vidade do Sindicato, a comemoração da data em 1964 foi obscurecidapela perseguição às suas lideranças. Sob o título bastante eloqüente “Ter-rorismo enluta Dia do Professor”, o Correio da Manhã noticiou que,apesar de cerca de 2.500 pessoas terem sido convidadas, o coquetel ofe-recido pela entidade teve apenas 50 pessoas presentes devido “ao terro-rismo cultural e conseqüente afastamento de seus filiados”. O presiden-te interino da entidade informou que seriam realizadas assembléias paradecidir a atitude a ser tomada com relação aos professores expurgadospelo Ato Institucional, exaltando a importância do movimento sindicale denunciando a demissão de professores atuantes na entidade:

Apesar da suspensão das liberdades democráticas no país, o Dia do Profes-

sor tem que ser sempre um dia de festa, pois a educação e a cultura são

elementos fundamentais de sociedade, mais do que a violência e a força [...].

É o momento de todos os professores particulares se unirem em torno do

nosso sindicato para reivindicar um substancial aumento de salário para 1965,

pois o que se vê dia a dia são os proprietários de colégios se enriquecerem

ainda mais e a vida dos professores se tornar cada vez mais difícil18.

A comemoração do Dia do Professor no Brasil teve início, portanto,com uma proposta da APC-DF, tendo como referência a data de uma leido império que criou o ensino primário no país e esteve vinculada aosrituais católicos – como por exemplo, a missa – que posteriormente tam-bém se fizeram presentes nas cerimônias oficiais. Em sua origem, talcelebração tinha unicamente um caráter afetivo ao pretender criar uma

“Educação”, 12 out. 1961, p. 8. “Homenagem do Professorado”, Folha de S.Paulo,“Educação”, 16 out. 1963, p. 6.

18. “Terrorismo enluta Dia do Professor”, Correio da Manhã, 16 out. 1964, Primeirocaderno, p. 10.

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oportunidade para que as pessoas demonstrassem seu reconhecimento aquem lhe ensinou a ler e a escrever e que era geralmente relegado aoesquecimento e ao anonimato. Embora o seu caráter afetivo tenha per-manecido no decorrer do período examinado, o Dia do Professor ga-nhou novos significados ao ser incorporado por outros segmentos domagistério e da sociedade, tornando-se uma comemoração oficial a par-tir de 1948 e, posteriormente, desempenhando um papel importante nosprotestos da categoria contra os baixos salários que se intensificaram apartir de meados dos anos 1950.

2. A simbologia do Dia do Professor:entre “o princípio de uma nova era”e o “vazio das belas palavras”

Cresceram e ocuparam grandes áreas do territórionacional as florestas do Brasil, no tempo em que não

havia o seu culto simbólico no Dia da Árvore. A criançaera outrora robusta e sadia; tinha leite para beber [...];

isso antes de lhe consagrarem o Dia da Criança. Oprofessor era no cenário nacional [...] uma figurarespeitável e acatada, antes do Dia do Professor.

“Hoje que temos o Dia da Criança, a mortalidade infantilassumiu raias inconcebíveis numa sociedade civilizada;

as árvores estão sendo devastadas [...] desde que nocalendário começou a figurar o Dia da Árvore; e

finalmente o ensino e seus artífices nunca se encontraramem situação tão crítica como depois que lhe atenderam à

sagração pública, através do Dia do Professor. [...]“Que o professor, hoje erigido em verdadeira peça do

Estado, não desapareça em voragem de sua consagração.

“O Dia do Professor”, Correio da Manhã, 15 out. 1944,Primeiro caderno, p. 4.

Neste artigo de 1944, o Correio opôs-se às celebrações do gênerodo Dia do Professor, associando-as à degradação do que ela pretendiacultivar simbolicamente e estabelecendo uma divisão entre um passadoextremamente positivo e um presente desolador. De conteúdo singular,

celebração e visibilidade 29

pois destoava de outros textos publicados no mesmo período que elo-giavam esse tipo de iniciativa, tal argumentação antecipou, em algumamedida, a questão central do debate promovido na grande imprensa pau-lista sobre o Dia do Professor que ora afirmava a sua necessidade, oraapontava o vazio das “belas palavras” dedicadas aos mestres nesta oca-sião, tendo-se em conta o seu baixo salário, oscilando entre a total vin-culação destes dois aspectos e a desqualificação das atividades que inte-gravam a comemoração. No discurso veiculado pelo colunista do Diáriode S. Paulo a recompensa simbólica aparecia associada fortemente àrecompensa financeira da profissão, ao passo que nos editoriais da Fo-lha era apresentada como uma forma de dissimular as péssimas condi-ções de exercício do magistério.

Ao anunciar a oficialização da data no estado de São Paulo (em1948), Elisiário de Sousa – colunista do Diário – interpretou o ato dogovernador de tornar o dia 15 de outubro feriado escolar como um sinalde que o Estado pretendia conduzir “o professor na posição que de jus-tiça lhe cabe” – a qual, ao seu ver, não se traduzia apenas numa “remu-neração condigna”, mas também num maior prestígio social. Nos anossubseqüentes, o colunista tomava a projeção alcançada pela comemora-ção como indicativo do reconhecimento de diferentes esferas da socie-dade quanto à importância do trabalho docente para o desenvolvimentonacional. Na maioria das vezes, ele se queixava da negligência por partedos poderes públicos e da população no tocante às homenagens à cate-goria, alertando, em 1949, para a frustração do magistério com o impac-to causado pela oficialização da data. Sousa ressaltou, ainda, que a suainclusão no “calendário cívico-escolar” não fora resultado de uma açãoespontânea do Estado, mas sim fruto de uma campanha das associaçõesdocentes que contou com a colaboração da imprensa. Embora afirmasseque a maior recompensa para um mestre era a amizade, a admiração e oprogresso de seus alunos, o colunista lamentou que os pais brasileirosnão se preocupassem em homenageá-lo, mencionando como exemplo acarta de um general americano na qual ele afirmava que os pais dosalunos deveriam se preocupar com a remuneração e o prestígio dos pro-fessores de seus filhos. Em suas próprias palavras:

30 revista brasileira de história da educação n° 8 jul./dez. 2004

Acontece, entretanto, que não basta existir a data, se não houver providên-

cias tendentes a consagrar a efeméride. Muita gente, talvez iludida com os

homens da época, pensou que uma vez determinado o Dia do Professor, teria

o mestre, a partir desse instante e em todos os 15 de outubro, a consagração

que merece pelo muito que faz em favor da nacionalidade. Mas o que há, de

fato, não é mais do que iniciativas isoladas das entidades de classe e, salvo

raras exceções, como da direção do SESI, nada mais está sendo feito, no dia

de hoje, para enaltecer a obra realizada pelo apostolado cívico do professor.

Não faz mal. O mestre nunca contou com isso, mesmo, para prosseguir na

sua profícua atividade educativa. A sua maior alegria reside em ver e sentir

que as crianças e os adolescentes seus alunos progridem no aprendizado e se

fazem seus amigos e admiradores. Quando mais tarde, encontra alguns des-

ses alunos que lhe reverenciam a presença e lhe reafirmam a amizade, então

tudo está pago, e bem pago. Sim, porque o justo e razoável seria, nesta data,

reunirem-se não as entidades da classe, mas todos os pais e alunos das esco-

las de São Paulo e do Brasil [...] para as homenagens ao professor19.

Cerca de seis anos depois (em 1955), num tom bem mais enfático, ocolunista do Diário referiu-se à expectativa de uma “nova era” para omagistério que havia sido criada com a oficialização do Dia do Profes-sor e que foi totalmente frustrada pelo abandono ao qual foi relegada acategoria. Isto porque o governador Lucas Nogueira Garcez, no últimoano de seu mandato (1954), havia vetado o projeto de reajuste salarialdo professorado, enviado à Assembléia Legislativa em 15/10/1951. Ba-seado num estudo realizado por uma comissão constituída de represen-tantes das associações docentes, este projeto gerou uma grande expec-tativa nos professores, pois permitiria uma melhora significativa em seusvencimentos. O próprio Elisiário de Sousa realizou, em sua coluna, umacontagem regressiva para a chegada do Dia do Professor neste ano devi-do à previsão de envio do referido projeto nesta data. Além disso, em1955, o seu sucessor (Jânio Quadros) havia anunciado apenas um abo-

19. E. R. de Souza. “Hoje é o Dia do Professor”, Diário de S.Paulo, “Educação eEnsino”, 16 out. 1949, Primeiro caderno, p. 6.

celebração e visibilidade 31

no de emergência para o magistério. Na mesma ocasião, ele tambémcriticou a caracterização da docência como um sacerdócio, lembrandoque o professor necessitava de recursos financeiros para sobreviver. Emseu dizer, quando se instituiu o Dia do Professor,

imaginaram os professores, na sua eterna e santa boa fé, revelando sensível

ingenuidade, que novos rumos se abriam à vida do magistério [...]. Todos

quiseram ver naquelas atitudes o princípio de nova era, na qual o professor

viesse a ocupar o lugar que de direito e por justiça lhe cabe no conceito dos

homens do governo, dos dirigentes das classes conservadoras e das profis-

sões liberais, e do próprio povo. Ouviam-se, amiúde, [...] expressões que

bem definem o estado de espírito do professor, como esta: – “Afinal, parece

que estão querendo compreender o valor de nosso trabalho e o alcance da

missão de educar”. Mas a realidade está aí para mostrar que as coisas não

mudaram muito. O professorado [...] esquecido e abandonado à própria sor-

te. [...] É preciso esclarecer que não nos referimos apenas à situação econô-

mica da classe. Preferíamos, até, nesta oportunidade deixar de lado esse as-

pecto da vida do magistério, que já tem suscitado tantas tristezas e desilusões

[...] Ouvimos falar, muitas vezes, [...] que o magistério é sacerdócio, é mis-

são, é posto de sacrifício e de resignação. Por isso o professor precisa estar

preparado para viver as penosas experiências que lhe imporá o missionarismo

educativo. Com os olhos voltados para o sublime ideal de servir à Pátria, o

mestre-escola deverá encontrar forças para suportar todas as provações. Isso

tudo é muito bonito para discursos e festas cívicas. Mas a vida é muito dife-

rente, principalmente para os que se dedicam exclusivamente ao magistério

e têm família para sustentar. O professorado paulista, na verdade, está viven-

do um Dia do Professor meio desanimado e muito triste, porque percebe que

todo o seu trabalho, todo o seu esforço, toda a sua dedicação não têm contri-

buído, na medida das necessidades para recolocar o magistério no seu devido

lugar. Entretanto, nada lhe abaterá a fé e a confiança na sua obra20.

20. E. R. de Souza. “Fé e confiança do professorado”, Diário de S.Paulo, “Educação eEnsino”, 15 out. 1955, Primeiro caderno, p. 6. Sobre as expectativas criadas emtorno do referido projeto e também com a eleição de Garcez (professor universitá-rio) no CPP, ver “O Governador-Professor: a dignificação da classe e o veto aoreajuste salarial” (Vicentini, 1997, pp. 113-123).

32 revista brasileira de história da educação n° 8 jul./dez. 2004

Mais de dez anos após a oficialização da data, Elisiário Rodriguesde Sousa expressou a sua indignação quanto ao fato de o Dia do Profes-sor continuar a ser uma “festa em família” e de não ter conseguido asse-gurar o reconhecimento do Estado e da população em relação à impor-tância da missão docente, ressaltando que nem o comércio havia seengajado na comemoração da data, apesar de ter interesse financeiro emvender presentes destinados aos professores. Na ocasião, ele tambémafirmou que “as flores, beijos e até pequenos presentes” dos alunos cons-tituíam a maior alegria do mestre, mas lamentou que estes, à medidaque o tempo passava, acabavam por esquecer de reverenciar os seusprofessores. A ênfase no valor da recompensa simbólica da profissão –expressa pela valorização do reconhecimento e do carinho dos alunos ede uma comemoração grandiosa do Dia do Professor – associava-se, nodiscurso de Elisiário Rodrigues de Sousa, a uma certa hesitação em re-conhecer a importância da recompensa financeira da profissão; por exem-plo, no artigo veiculado a propósito da data em 1952, ele afirmou

não será apenas com melhores vencimentos que os professores terão ânimo,

forças e disposição para bem realizarem [...] a sua missão educativa. Se a

remuneração constitui, sem dúvida, base de tranqüilidade econômica ou fi-

nanceira, é bem verdade, porém, que ela não basta ou não satisfaz integral-

mente, se não vier acompanhada de outras medidas indispensáveis de prote-

ção, estímulo e assistência ao professor21.

Embora o colunista freqüentemente reiterasse que a remuneraçãonão era determinante para a péssima situação do magistério, ele muitasvezes apontou os baixos salários como a causa do seu desânimo para

21. E. R. de Souza. “Palavras sobre o Dia do Professor”, Diário de S.Paulo, “Educa-ção e Ensino”, 16 out. 1959, Segundo caderno, p. 11. E. R. de Souza “Nossosvotos no Dia do Professor”, Diário de S.Paulo, “Educação e Ensino”, 15 out.1952, Primeiro caderno, p. 6. Quanto ao apelo comercial da data, na grande im-prensa paulista, foi localizado apenas um anúncio lembrando a comemoração, massem fazer nenhuma referência à venda do produto, já mencionado: “Homenagemda Sheaffer Pen do Brasil ao Dia do Professor”, Folha de S.Paulo, 15 out. 1963,Primeiro caderno, p. 16.

celebração e visibilidade 33

comemorar a data e, em contrapartida, o êxito da campanha salarialempreendida ao longo de 1961 foi interpretado como um “progressosensível” da categoria que ganhava “terreno a olhos vistos, ainda quesob o impulso de movimentos, campanhas e lutas sem tréguas”. Na ver-dade, a tentativa de dissimular o peso da recompensa financeira para oseu estatuto profissional articulava-se à imagem que Elisiário Rodriguesde Sousa veiculava da docência, fortemente vinculada ao apostolado,muito embora ele próprio em algumas ocasiões tenha criticado este tipode caracterização. Assim, a hesitação em colocar em primeiro plano aretribuição econômica para a melhoria do estatuto profissional do pro-fessorado associava-se à descrição do mestre como um ser modesto,simples e humilde, para quem o progresso e a estima de seus alunosconsistiam na sua maior alegria, que exaltava sempre a fé e o entusias-mo com que ele enfrentava as adversidades com as quais se deparava aolongo de sua carreira. Essa imagem da categoria veio à tona no artigoem que Rodrigues de Sousa lamentou que, em 1962, o Dia do Professortranscorresse “inexplicavelmente sem as pompas e as comemoraçõesdos anos anteriores”. O colunista, entretanto, reiterou a sua “confiançanos destinos do magistério” que mesmo sem as “pompas” e esqueci-mento “do próprio Professor do Ano”, tinha “consciência de seu valor,da dignidade da sua ação social e do que é capaz de realizar, ainda quan-do lhe faltem estímulos comemorativos”22.

Numa perspectiva contrastante, os editoriais da Folha, nos editori-ais sobre o Dia do Professor desqualificavam quase que completamenteas atividades que constituíam a sua celebração (discursos, entrega demedalhas etc.), alegando que essas eram destituídas de sentido diantedo descaso do Estado quanto à situação do magistério. O jornal critica-va esta contradição, ironizando os discursos proferidos nessas ocasiõespelo uso de “lugares-comuns” para exaltar a profissão docente. Ao co-

22. E. R. de Souza. “Nossa mensagem no Dia do Professor”, Diário de S.Paulo, 15out. 1961, “Educação e Ensino”, Segundo caderno, p. 8. E. R. de Souza “Fé econfiança nos destinos da educação e do magistério”, Diário de S.Paulo, “Educa-ção e Ensino”, 16 out. 1962, Segundo caderno, p. 7.

34 revista brasileira de história da educação n° 8 jul./dez. 2004

mentar a oficialização da data em 1948, a Folha da Manhã23 alertoupara a necessidade de um plano para o desenvolvimento do ensino que,ao invés de permitir a criação de escolas normais e ginásios em excessoocasionando uma “superprodução de professores”, buscasse ampliar ocurso primário e eliminar o tresdobramento do horário dos grupos esco-lares. Em 195124, quando os professores aguardavam que o então gover-nador Garcez enviasse o projeto de reajustamento de seus vencimentos,sob especulações de que o aumento seria pago em duas parcelas, o edi-torial da Folha desqualificou as “bonitas frases” acerca do apostoladodo magistério, dizendo que elas já eram recebidas “com um sorriso sar-cástico” pela categoria devido ao contraste com a ausência de medidasefetivas em prol da melhoria da sua “situação de patente e visível infe-rioridade, tanto no serviço público como no campo do ensino particular,em relação a outros profissionais de formação idêntica ou menos difí-cil”. O jornal praticamente retomou esta argumentação no comentáriosobre o Dia do Professor em 1955, lembrando que, no ano anterior,diversos setores do funcionalismo foram beneficiados, exceto o magis-tério, devido ao veto de Garcez ao referido projeto e que, em 1955,Jânio Quadros anunciou um abono de emergência com um caráter mais“de favor do que como satisfação a um direito”:

As comemorações do Dia do Professor [...] encontram o magistério em estado

de espírito que não lhe permite receber com muito entusiasmo as homenagens

que se anunciam. Se aos professores fosse dado pronunciar-se, certamente di-

riam que sessões solenes, desfiles, discursos, missas, medalhas de ouro etc.

[...] é muito bonito mas não basta. Para uma classe que todos os anos ouve

sonoras palavras de exaltação à sua missão, sem que se registrem atos parale-

los e concretos de reconhecimento da importância dela, muito pouco podem

significar homenagens como as que estão programadas em São Paulo25.

23. “Cuidemos do ensino primário”, Folha da Manhã, “Editorial”, 15 out. 1948, Pri-meiro caderno, p. 4.

24. “A expectativa do professorado”, Folha da Manhã, “Editorial”, 14 out. 1951, Pri-meiro caderno, p. 6.

25. “Franqueza com os professores”, Folha da Manhã, “Editorial”, 11 out. 1955, Pri-meiro caderno, p. 4.

celebração e visibilidade 35

Em 1956, a Folha da Manhã26 destacou a melancolia e a frieza quemarcaram o Dia do Professor, pois para o jornal não havia motivo paracomemorar em parte por causa do magistério particular, devido à greverealizada em setembro pelo atraso no pagamento da suplementação sa-larial advinda do FNEM, e em parte por causa dos professores públicosque ainda estavam sob o impacto da frustração causada pela “falseta doano anterior”, quando o governador não concedeu o abono de emergên-cia anunciado. Por ocasião da primeira greve do magistério paulistadeflagrada em 15 de outubro de 1963, a Folha dirigiu duras críticas aAdhemar de Barros, dizendo que, em vez de “mensagens ocas” sobre adocência, o governador deveria ter enviado à Assembléia Legislativa amensagem com o aumento salarial reivindicado pela categoria:

O governador requintou-se no uso de comoventes lugares-comuns, come-

çando por dirigir-se ao “esclarecido professorado de São Paulo” [...]. A se-

guir, proclama não ignorar “as preocupações que afligem a devotada classe”

[...] Em tempo, “o esclarecido professorado de São Paulo”, “a devotada clas-

se”, “o abnegado mestre paulista”, no seu dia, “tão grato no coração de todos

nós”, não estava interessado em mensagens ocas desse tipo. Esperava outra

mensagem que, concedendo padrões de vencimentos condignos ao magisté-

rio, lhe restituísse o estímulo que começa a perder27.

Após o Golpe Militar de 1964, o jornal renovou suas críticas aAdhemar de Barros, que se associou à “justa e meritória homenagem”prestada em 15 de outubro ao professorado, lembrando mais uma vezque as suas “bonitas palavras” não se coadunavam com a política adota-da com relação à categoria, pois além do atraso no pagamento dos pro-fessores secundários contratados havia ocorrido uma série de demis-sões de professores universitários sem a devida explicação. No dizer doeditorialista,

26. “O melancólico Dia do Professor”, Folha da Manhã, “Editorial”, 16 out. 1956,Primeiro caderno, p. 4.

27. “Frases”, Folha de S.Paulo, “Editorial”, 16 out. 1963, Primeiro caderno, p. 4.

36 revista brasileira de história da educação n° 8 jul./dez. 2004

Palavras, bonitas palavras, que não escondem aquilo que ainda ontem frisa-

mos nesta página: a existência em São Paulo de um lamentável estado de

hostilidade contra a inteligência, a cultura e a ciência. Pois o Dia do Profes-

sor transcorre desta vez antes de se apagarem os ecos do mal-estar gerado

pela demissão de vários professores universitários, sem que se tivesse escla-

recido amplamente [...] os motivos da punição. Não é só isso. Ainda nesta

página publicamos ontem também (em Cartas à Redação) a “reza” de um

professor que, entre jocoso e amargurado, implorava ao governador, em nome

dos professores secundários contratados, “o pagamento dos nossos salários

atrasados desde junho, a fim de que as nossas dívidas sejam perdoadas e

possamos pagar o pão de cada dia para nossos filhos”28.

Assim, no discurso veiculado pela grande imprensa paulista a res-peito desse tipo de comemoração, ora a recompensa simbólica apareciacomo signo de uma “nova era” para a categoria, na qual o reconheci-mento dos poderes públicos quanto à importância de sua missão se tra-duziria numa melhor remuneração, ora era apresentada como uma for-ma de dissimular a deficiência de seus vencimentos e, até certo ponto,como algo antagônico a medidas concretas em prol da melhoria do seuestatuto profissional. No caso carioca, embora esse tipo de polêmica nãotenha aparecido com a mesma intensidade e freqüência, o jornalista IBTeixeira – responsável pela coluna “Esse Rio aflito” do Última Hora –em 1962 criticou duramente a exaltação da “sagrada missão de ensi-nar”, presente no discurso veiculado pela associação representativa domagistério primário a propósito do Dia do Professor, pelo fato de omi-tir-se quanto à precariedade das condições de trabalho nas escolas ele-mentares do estado da Guanabara. Desse modo, o colunista acabou porquestionar as implicações de uma concepção acerca da profissão que,ao enaltecer o caráter missionário da docência, valorizava os aspectosrelativos à recompensa simbólica da ocupação, excluindo qualquer re-ferência às condições de trabalho e à sua remuneração:

28. “Dia do Professor”, Folha de S.Paulo, “Editorial”, 15 out. 1964, Primeiro cader-no, p. 4.

celebração e visibilidade 37

Hoje é Dia do Mestre. A presidente da União das Professoras Primárias, D.

Elinda Mendonça, já divulgou uma nota oficial, em que saúda “todas aquelas

que, no Brasil, cumprem a sagrada missão de ensinar”. Há 10 anos D. Elinda

diz essas coisas. Na Assembléia Legislativa, D. Lígia Lessa Bastos recitará

seu discursinho. [...] É muito fácil a gente adivinhar o que D. Lígia vai dizer:

é sagrada a missão de ensinar. [...] Embora isto desgoste a D. Lígia e a D.

Elinda, este repórter gostaria de meter a sua colher de pau na sagrada maté-

ria. Para começo de conversa, o Rio Aflito diria que não é muito bonito falar

da “sagrada arte de ensinar” quando se esquece de mencionar coisas muito

importantes relacionadas com a “sagrada arte de ensinar”. [...] Temos [...] de

cara esse disparate: uma professora primária para 50 crianças! [...] Conve-

nhamos que em tais circunstâncias, a arte de ensinar não pode ser muito

sagrada... as professoras que [na verdade] lecionam para 80 alunos (daí o

sistema de “dobra”. E “dobra” não remunerada!) não lecionam apenas. Elas

controlam a merenda escolar, a contabilidade da caixa escolar, as cooperati-

vas etc. [...] Para tanto mister a professora ganha [...] pouco mais de 20.000

cruzeiros! Ou menos bem menos que o próximo salário mínimo...29.

Embora se tratasse de uma opinião isolada, Teixeira, de forma con-tundente, criticou a visão fortemente idealizada da docência exaltadapor ocasião do Dia do Professor, procurando tornar a data uma oportu-nidade para expor os problemas enfrentados pelo professorado primáriooficial, sobre os quais a entidade representativa desse segmento da cate-goria insistia em silenciar, diferentemente do Sindicato dos Professoresdo Rio de Janeiro que, ao celebrar a data, não deixava de denunciar abaixa remuneração e as péssimas condições de trabalho dos professoresnas escolas particulares. Fortemente atrelada à recompensa simbólicada profissão, a comemoração do Dia do Professor acabou por constituiruma oportunidade para se falar da necessidade da recompensa financei-ra, sem deixar de evidenciar a ambigüidade com que esta dimensão dadocência era tratada. Completamente ausente quando se louvava a ab-

29. “No Dia do Mestre”, Última Hora, “Esse Rio aflito – IB Teixeira”, 17 out. 1962,Primeiro caderno, p. 3.

38 revista brasileira de história da educação n° 8 jul./dez. 2004

negação dos professores que haviam dedicado a vida inteira ao magisté-rio, mencionada com certa hesitação por aqueles que lhe atribuíam amesma importância do reconhecimento simbólico e abertamente defen-dida pelo movimento reivindicativo que se intensificou a partir de mea-dos dos anos 1950, a recompensa financeira foi representada de manei-ra contrastante nos discursos veiculados durante o período estudado apropósito do 15 de outubro que, evidentemente, deixavam entrever con-cepções distintas acerca da docência. Objeto das disputas travadas nocampo educacional em torno das tentativas de definir a identidade dacategoria, a data – tanto pelos discursos produzidos a seu respeito quan-to pelas diversas formas de celebrá-la – acabou por difundir diferentesimagens da profissão, assumindo múltiplos significados. Originalmenteconcebida para que as pessoas expressassem a sua gratidão ao seu pri-meiro mestre – geralmente relegado ao anonimato e ao esquecimento –,incorporou novos significados que se sobrepuseram ao inicial, mas semanulá-lo. Homenagens a professores tidos como exemplares e festas decongraçamento das mais diversas iniciativas associaram-se às lembran-ças do primeiro mestre na celebração do 15 de outubro que, a partir demeados dos anos 1950, começou a contar com protestos da categoriacontra os baixos salários. Desse modo, práticas que alteraram o signifi-cado original do Dia do Professor e que representavam uma mudançano processo reivindicatório do magistério passaram a se contrapor àaparente atemporalidade das atividades tradicionais da comemoração.

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A lei da escola

Sentidos da construção da escolaridade popularatravés de textos legislativos em Portugale Santa Catarina – Brasil (1880-1920)*

António Carlos Luz Correia**

Vera Lucia Gaspar da Silva***

* Este texto apresenta parte das reflexões que os autores têm feito ao abrigo do Pro-jeto PRESTIGE (Problems of Educational Standardisation and Transitions in a Glo-bal Environment), e caracteriza-se como aproximação de objetos de investigaçãode cada um dos autores, objetos estes que estão sendo tratados em teses de douto-rado. Uma primeira discussão acerca da temática abordada neste texto foi apresen-tada no ECER (European Congress of Educational Research) 2002, realizado pelaEERA (European Educational Research Association), Lisboa, com o título Taking aView of schooling landscape through the eyes of the law: primary schooling inPortugal and Brazil (Santa Catarina State), 1880-1920.

** Mestre em sociologia aprofundada e realidade portuguesa pela Faculdade de Ciên-cias Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Atualmente prepara tesede doutorado sobre o currículo em Portugal nos ensinos primário e secundárioliceal nos séculos XIX e XX.

*** Professora da Faculdade de Educação da Universidade do Estado de Santa Catari-na. Doutora em educação (história da educação e historiografia) pela Faculdade deEducação da Universidade de São Paulo – FEUSP.

Neste trabalho, apresentamos um ensaio de problematização da legislação escolar en-quanto fonte significativa, rica e dinâmica para a história e a sociologia da educação.Aqui o olhar sobre a legislação deve ser entendido inserido no plano da crítica dasfontes documentais. Tecemos um ensaio de reflexão tendo por campo de análise o ensi-no primário em Portugal e em Santa Catarina, no Brasil. O enquadramento cronológicoabarca grosso modo o período compreendido entre 1880 e 1920. Esta virada de séculoganha especial relevo por constituir marco cronológico na expansão e consolidação dossistemas públicos de ensino.LEGISLAÇÃO ESCOLAR; ESCOLA PRIMÁRIA; EDUCAÇÃO COMPARADA; SANTACATARINA; PORTUGAL.

44 revista brasileira de história da educação n° 8 jul./dez. 2004

In this work we present an essay on school legislation as a meaningful, rich and dynamicsource to the History and Sociology of Education. The look at the legislation must beconsidered as inserted in the level of the analysis of document sources. A reflectiveessay is developed here, having as the analysis field the primary schooling in Portugaland Santa Catarina, in Brazil. The chronological frame covers roughly the period between1880 and 1920. The turn of the new century period is specially approached for constitutinga chronological cornerstone in the expansion and consolidation of public schoolingsystems.SCHOOL LEGISLATION; PRIMARY SCHOOL; COMPARED EDUCATION; SANTACATARINA; PORTUGAL.

1. Introdução

Neste texto, procedemos a um ensaio de reflexão em torno da legis-lação enquanto fonte significativa para a História e a Sociologia da Edu-cação, aplicando-a a um campo de análise constituído pelo ensino pri-mário em Portugal e em Santa Catarina, no Brasil. No caso brasileiro, oestado de São Paulo será evocado como estado de referência para SantaCatarina na organização do seu sistema de ensino. São Paulo é realmen-te um estado de referência no cenário brasileiro na época de organiza-ção dos sistemas públicos de ensino. Segundo Catani:

Por encontrar-se em situação economicamente privilegiada, em função da

expansão da cafeicultura e da necessidade de produção e comércio assim

geradas, São Paulo pode investir, de imediato, nos primeiros anos da Repú-

blica, na reforma e criação de escolas que até então vinham sendo poucas e

ineficientes, mesmo na própria capital [2003, pp. 20-21].

A possibilidade aberta pela Carta Constitucional brasileira de 1891,que na prática “não respondeu a que esferas específicas de poder deve-riam ser atribuídas as diversas responsabilidades educacionais”, e a si-tuação econômica do estado são peças que funcionaram como elemen-tos propulsores para que São Paulo conduzisse sua tentativa de organizaruma rede de escolas que, “pelo pioneirismo, passará a funcionar comomodelo para outros Estados” (Catani, 2003, p. 20).

a lei da escola 45

O enquadramento cronológico do presente trabalho abarca o perío-do compreendido entre 1880 e 1920. A transição do século XIX para oXX ganha relevo por assumir-se marco cronológico da expansão dossistemas públicos de ensino.

A constituição de uma escala de análise exclusiva da pesquisa, pormeio da textualidade legislativa, conta com dois pressupostos, o da exis-tência de uma base lingüística comum e o da sua concretização em con-textos de expressão e atualização dotados de especificidade própria.

A língua portuguesa constitui, simultaneamente, o menor denomi-nador comum e a escala mais ampla de análise no nosso trabalho. Reú-ne no mesmo objeto de pesquisa, numa abordagem comparada, doiscontextos atuais específicos que, do ponto de vista histórico, cultural,social e político podem ser combinados e recombinados em objetos deanálise de geometria simbólica variável. Falamos, claro, de Portugal edo Brasil, como dois países distintos, assim como do estado de SantaCatarina na historicidade própria que se sobrepõe à historicidade doBrasil como nação.

Na sua diversidade, a língua portuguesa é o elo mínimo visível acolocar em relação aqueles contextos. O reconhecimento da naturezamínima do elo lingüístico requer que, em nossa opinião, seja imperativosituá-lo em termos de macroanálise. Deste modo, as particularidades eas discrepâncias, as continuidades e as descontinuidades são tomadasna pluralidade de expressões que configura e atualiza o universo simbó-lico que utiliza a língua portuguesa como suporte.

Vale a pena recordar que a linguagem em si mesma, os recursoslingüísticos, lexicais e semânticos, nomeadamente, não possuem expres-sividade própria nem geram sentidos abstratos. A língua ganha vitalida-de e sustenta amplas possibilidades de construção de sentidos por meiodo discurso e da comunicação (Bakhtin, 1999). O universo simbólicoda língua portuguesa dota-se assim de uma espessura histórica que com-bina espaciotemporalidades múltiplas e no qual as diferenças ou parti-cularidades não surgem como ruídos impossibilitadores da sua existên-cia como um todo, mas como reveladores da sua plasticidade e potencialreconstitutivo.

46 revista brasileira de história da educação n° 8 jul./dez. 2004

A delimitação do período cronológico decorre de considerandos queresultam da tomada das propostas de António Nóvoa (1998, 2000 e 2002)como quadro de referência conceitual para a definição de hipóteses ge-rais de reflexão. A entrada em cada contexto particular requer, no entan-to, a recuperação de alguma da historicidade que lhe é inerente. Alémdisso, é necessário a discussão e definição das fontes respectivas, em simesmas e nas relações que estabelecem através das intertextualidadescom que se definem.

A construção discursiva da escola realiza-se em duas dimensões prin-cipais distintas, interagindo entre si, é certo, mas necessariamente dis-crepantes e descontínuas. Falamos da construção discursiva da escolano plano organizacional e no plano institucional (Meyer, 1980). Con-soante a escala e o contexto em que se situam as práticas discursivas dosatores, o discurso da escolaridade e, particularmente, a produção dostextos que o materializa, incorporam em diferentes proporções e de modonem sempre harmonioso ou isento de contradições, elementos oriundosdas duas dimensões referidas.

No período contemplado, 1880-1920, o desenvolvimento dos siste-mas educativos escolares encontra-se em expansão, particularmente oensino elementar ou popular. A efervescente discussão não se restringeaos espaços aqui tomados como referência. As reformas marcam osmomentos fortes das políticas governamentais e revestem-se de umaimportância muito grande na caracterização do discurso educativo es-colar da época. Elas têm um valor simbólico relevante pois introduzemno discurso e nos debates sobre a educação categorias e problemáticasestratégicas que influenciam a evolução posterior do sistema escolar.

O recurso à legislação, para suportar ou ilustrar aspectos variadosrelativos à escolaridade ou aos atores sociais da educação escolar, fazparte das rotinas habituais do pesquisador. O trabalho que apresenta-mos pretende constituir um ensaio de problematização da legislaçãoenquanto fonte histórica. Num primeiro momento, o olhar sobre a le-gislação deve ser inserido no plano da crítica das fontes documentais.Defendemos, também, a necessidade do alargamento da construçãocrítica ao conjunto de fontes habitualmente utilizadas no nosso campoinvestigacional.

a lei da escola 47

2. O uso da legislação como fonte

A crítica das fontes faz parte dos procedimentos metodológico-conceituais incontornáveis de qualquer pesquisa de cariz historiográfi-co ou sociológico. Contudo, existem razões para que a discussão ereconceitualização das fontes assuma aqui um protagonismo particular.De há cerca de duas décadas para cá, como sublinha António Nóvoa

[...] assiste-se a uma diversificação dos enquadramentos conceptuais e das

ferramentas metodológicas. As abordagens sócio-históricas parecem incapa-

zes de dar sentido à complexidade dos processos de mudanças a longo ter-

mo, de apreender as permanências profundas e os pontos de ruptura das di-

nâmicas escolares e educacionais [1998, p. 23].

A resposta às interrogações daqui decorrentes não é fácil. O fato de,tradicionalmente, a legislação ter sido tomada como uma fonte de ex-pressão da realidade, sem grande aparato crítico, tem gerado reaçõesnegativas contra o seu alcance analítico. Se a legislação se mostra nestecenário como objeto e fonte dinâmica e promissora, não se pode negli-genciar que uma das dificuldades na abordagem deste tema resulta dopreconceito gerado por uma freqüente utilização redutora e descritivado conteúdo dos textos legislativos. A utilização da legislação nestestermos tem conduzido a reproduzir o discurso da administração escolarsobre si mesma ou a sua perspectiva e a ser encarada como manifesta-ção discursiva dos interesses dominantes do aparelho de Estado.

A legislação pode revelar-se como fonte de diferentes modos, de-pendendo essa configuração da forma como a pesquisa é concebida edas perguntas que coloca. A legislação não existe, absolutamente, comofonte predefinida à problemática da investigação. Esta é que cria o for-mato de fonte sob o qual a legislação se apresenta.

A legislação não surge num vazio social nem se reveste de umanatureza definitiva. Ela impõe mas também pode ser imposta. Pode for-malizar práticas pedagógicas ou organizacionais que se consagrarampelo uso ou forçadas por grupos de pressão (sindicatos, movimentos de

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pais, universidades, grupos econômicos...), ou propor “novos” encami-nhamentos para o desenvolvimento de atividades educativas. A críticaque se faz às concepções mecanicistas da legislação, entendendo-a comoexpressão e imposição dos interesses das classes dominantes, permitequestionar o simplismo e ausência de aparato crítico na utilização dalegislação como fonte histórica.

No quadro das suas possibilidades e limites, o texto legal pode serusado para discutir diferentes concepções de legislação ou até para fun-damentar a leitura crítica de outras fontes. A lei define um território (ecomo tal também estabelece os seus limites ou fronteiras) do conheci-mento e do saber legítimos (e o tipo de questões possíveis de elaborar)sobre uma determinada realidade, configurando-a. Estabelece assim pro-cessos identitários (Faria Filho, 1998).

A organização do território educativo acaba por ocultar ou dissimu-lar muito do que está expresso na legislação. São formas de organizaçãoe apropriação que lhe retiram a visibilidade textual, mas a legislação estápresente mesmo onde não parece estar. Quando analisamos materiaiscomo manuais escolares para os alunos, relatórios de estágio de profes-sores, relatórios de inspecção ou compêndios pedagógico-didáticos, oconhecimento da legislação que regula a respectiva produção é incon-tornável. Primeiro, porque determina as características formais de apre-sentação, os tópicos que organizam o conteúdo, a temporalidade emque se inserem. Segundo, porque dá pistas tanto para o dito como para onão dito, uma vez que todos eles são produzidos para obedecer a requi-sitos impostos ou regulados pela administração educacional. No casode relatórios de professores, reitores e diretores de escolas, por exem-plo, a maioria deles produzirá uma representação da realidade empírica,mais em conformidade com o que está estabelecido que deve ser do quecom aquilo que é, na realidade.

Habitualmente, utilizamos o conteúdo de um texto legislativo parailustrar afirmações respeitantes a medidas de política educativa ou as-pectos da organização escolar. Para além deste tipo de aplicação, é im-portante ter presente que a legislação se compõe de textos e um textomaterializa um discurso, o qual representa uma sistematização de valo-

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res e significados de uma instituição determinada. Assim concebida, alegislação constitui um corpus textual dotado de características própriasque permite ao leitor o seu reconhecimento expedito, tanto em termosde localização primordial, como pela forma e pelo conteúdo.

Os textos legislativos revestem-se, freqüentemente para os investi-gadores, de uma natureza subsidiária, ilustrativa, documental, mesmoquando tomam em consideração preâmbulos, relatórios ou consideran-dos que acompanham algumas das leis e decretos sobre educação. Pro-curamos, nessa perspectiva, consultar o texto definitivo do documentolegislativo, nas páginas da folha oficial ou das coleções oficiais de le-gislação. Mas, será isso utilizar a legislação conferindo-lhe o estatuto deuma fonte dotada de uma especificidade própria ou a designação repor-ta-se a cada documento legislativo singular, mesmo que utilizemos vá-rios, constituindo-se genericamente no conjunto de fontes escritas utili-zadas na pesquisa?

É possível olharmos para a legislação como reunindo documentosescritos de uma determinada tipologia, que permitem formar um corpusdocumental à parte. A legislação pode ser encarada como um arquivo,constituindo-se de acordo com uma determinada lógica de registo e con-servação. Quais são as vantagens e as implicações gerais de trabalhar alegislação a partir desta representação? Em primeiro lugar, permite re-cuperar a sua historicidade. A abordagem panorâmica da legislação comoum território textual pode levar-nos a descobrir a diferente arquiteturapolítica e organizacional, no contexto da qual são produzidos os textoslegislativos. Em segundo lugar, relacionada com a primeira dimensão,coloca-se a necessidade de clarificar as modalidades de produção e pu-blicação de cada texto legislativo. Um despacho, uma circular, uma por-taria são documentos gerados no desenrolar das atividades da adminis-tração escolar e, embora a carga política esteja sempre presente, ela édiminuta comparada com a que acompanha o processo de elaboração deuma lei ou um decreto-lei, com um percurso que a leva a passar, emcircunstâncias normais, pelas instituições parlamentares.

É certo que todos os textos de legislação são publicados em folhaoficial mas o lugar que nela lhes está atribuído obedece a critérios pre-

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viamente estabelecidos; a ordem de surgimento das peças legislativasnos veículos oficiais de circulação segue uma hierarquia de importânciaformal.

A partir dos elementos até aqui apresentados, busca-se superar umaconcepção mecanicista da legislação, que acredite na transposição purae simples de um texto legal para o seu cumprimento, ilusão que nem ospróprios legisladores partilham, já em 1907, como se pode ver pelo tex-to português que segue:

Não é pela mera influência das leis escritas, nem pela força exclusiva das

reformas decretadas, que a instrucção se aperfeiçoa ou corrige; e que fora ou

acima de leis e reformas, de planos e decretos, de compêndios e de progra-

mas, alguma coisa existe, de que é impossível prescindir e que se não conse-

gue pela simples influência dos preceitos escritos1.

O uso que cada grupo faz das peças legais, a forma como se apro-pria, os mecanismos de burla são aspectos que também devem estar pre-sentes em nosso universo de análise. Os fortes aparatos fiscalizadoresdo ensino, ainda que tenham mais impacto no texto que na operacionali-zação, são expressão dos esquemas coercitivos colocados em cena parase tentar fazer cumprir a lei. A organização deste aparato e a divulgaçãode sua estrutura podiam exercer força mais coercitiva que a fiscalizaçãoem si, mas, o conhecimento acerca de seu funcionamento também possi-bilitava a burla.

O fato, por exemplo, de que muitas escolas eram inspeccionadasuma vez no ano, e que professores e alunos sabiam quando isto aconte-ceria, poderia (e assim acontecia) gerar reações como a encenação a seracionada no momento da inspeção. Mas também é certo que, a existên-cia e divulgação dos preceitos legais criava um aparato fiscalizador paraalém do próprio serviço de inspeção. Párocos, famílias, chefes políticospoderiam, apoiados nas leis e num suposto conhecimento destas, exer-cer vigilância em relação ao que se passava numa escola. Não podemos

1. Decreto de 19 de agosto de 1907.

a lei da escola 51

esquecer, também, os diferentes usos de um mesmo preceito, uso estefeito à luz das cores políticas que iluminavam a ação de professores efiguras públicas.

Os aspectos até aqui abordados indicam que na definição de fontese no percurso da recolha de dados é necessário que a questão centraldo trabalho esteja sempre presente e seja revisitada a todo momento,indagando-se, à luz desta questão, possibilidades e limites de uma oude determinadas fontes. Mesmo dispondo de uma questão central, nor-teadora do trabalho, bastante amadurecida, há que ter abertura pararedefini-la no percurso, ou problematizá-la com novos elementos. Mes-mo quando se define o acervo que será consultado, novos recortes se-rão necessários.

Um texto legal pode, em pouco tempo, sofrer transformações bas-tante significativas (transmutar-se), por alterações em artigos, parágra-fos etc., publicadas separadamente. Ao fim de um período, alguns maisparecem um quebra-cabeças sendo difícil de reconhecer se o que foiordenado no texto inicial permanece ou não em vigor. Há casos tambémde leis, decretos ou similares que nunca foram colocados em prática,mas que acabam sendo incorporados em reflexões posteriores comoemblemáticos. No estado de Santa Catarina, uma lei aprovada em 1917,que proibia o casamento das professoras normalistas, tem sido citadacomo exemplo de tentativa de organização de um corpo docente celiba-tário ou gerado outras interpretações do gênero e de gênero. Diz o textoque “As candidatas ao magistério publico, que se matricularem na Es-cola Normal, da data desta Lei em diante, quando diplomadas e nomea-das professoras, perderão o cargo se contraírem casamento”2. De fato,nenhum registro foi encontrado assegurando desdobramento desta lei,pelo contrário, encontram-se com certa regularidade pedidos endereça-dos ao governador do estado, solicitando alteração de nomes. Estas mu-danças devem-se, certamente, a casamentos contraídos pelas professo-ras. Testemunhos orais também têm demonstrado que as professorasnão deixaram de contrair matrimônio por causa desta lei.

2. Lei n. 1.187, de 5 de outubro de 1917.

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A dinâmica do percurso de um texto legal é outro aspecto que mere-ce atenção. Mesmo consultando criteriosamente as publicações oficiais,documentos de legitimação social de um texto legal, através de numera-ção ou da ordem cronológica, há sempre possibilidade de que algo te-nha sido publicado separadamente, em forma de suplemento (os suple-mentos são figura recorrente na legislação portuguesa, assim como aspublicações separadas em Santa Catarina). As advertências acima nãodevem ser tomadas como desencorajadoras para o uso da legislação comofonte, mas como um alerta não só de sua complexidade, como da neces-sidade de se ter pontos de apoio que permitam certa triangulação, quedêem referências sobre a existência, efeitos e desdobramentos de umtexto legal. Isto indica que, tomar um único texto como fonte de análisepode comprometer a credibilidade do trabalho. Mesmo que, na perspec-tiva do uso da legislação como fonte não se persiga a legislação da for-ma como o fariam os juristas, a cautela é sempre um bom aliado.

Tendo-se por referência a pesquisa, torna-se também necessário aorganização de uma certa hierarquia, de uma clarificação conceitual emque assente a metodologia do trabalho. Contudo, propor uma hierarquiadas leis também não é tarefa simples. Por que consideraríamos maisimportante as leis que os decretos, se são os decretos que regulamentamas leis? Por que consideraríamos mais importantes as reformas que osregimentos ou regulamentos, se estes últimos são a materialização doprimeiro? E por que se deixariam por último os regimentos ou regula-mentos se são estes que organizam o terreno, na unidade escolar, ondese operam as alterações pretendidas?

O recorte temporal também é um ordenador do trabalho, do pontode vista externo, mas a delimitação não pode figurar como camisa-de-força. Há situações nas quais recuos ou avanços são necessários parasituar a origem ou desdobramentos de uma situação dada. É importanteque o cenário sociopolítico apareça não só como pano de fundo, mascomo contexto do qual emergem elementos que ajudem a compreendera presença de um dado documento no contexto educativo. Estes ele-mentos podem ajudar a evidenciar propósitos explícitos e não ditos ouimplícitos, ou seja, conforme diz Catani (2000), situar distâncias e vizi-

a lei da escola 53

nhanças entre o discurso teórico ou a retórica discursiva e os objetivosocultos, quando se detectam, da mesma3.

Outro passo importante é a etapa do trabalho de classificação e sis-tematização; etapa esta definida a partir de encaminhamentos anterio-res, compreendendo a escolha da temática num sentido mais amplo e adelimitação do período. É nesta relação mais próxima, ou de “intimida-de com as fontes”, que novos recortes, delimitações, escolhas são possí-veis. Num artigo recente, António Nóvoa alerta

[...] contra a tendência para legitimar posições políticas com “resultados cien-

tíficos” que, pura e simplesmente, não existem. “Torturar os dados até que

eles confessem”, chamou Edward Leamer (1983) a este exercício cada vez

mais habitual. É preciso um extremo cuidado para não confundir a análise de

um problema com a defesa de uma causa [2002, p. 260].

3. Construções discursivas da escolaridade eperspectiva comparada

Para o caso específico deste estudo, foram considerados textos le-gislativos do período delimitado, que registram a conformação da esco-la primária e da Escola Normal. Num rastreamento por textos com for-matos diversos (leis, decretos, despachos etc.) buscou-se identificar aarquitetura desenhada para a escola popular.

O texto legislativo requer uma atenção particular às diversas inter-textualidades nele presentes. A captação da densidade discursiva impli-ca algum grau de conceitualização prévia do texto ou textos que preten-demos explorar. O texto não é um artefato discursivo de natureza estática,

3. Nesta reflexão há uma apropriação de idéias de Antonio Viñao, presentes no texto“Culturas escolares, reformas e innovaciones educativas”, publicado em Com-Ciencia Social, n. 5, pp. 27-45, 2001. Embora em seu trabalho o autor utilize comopretexto os textos vinculados a reformas educacionais, considera-se aqui viável atransposição ou extensão de sua reflexão para a compreensão e utilização de outrostextos legais.

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acabada, definitiva, antes é, pelo contrário, dotado de propriedades di-nâmicas, atualizáveis e em transformação permanente, de tensões ediscordâncias internas. O olhar do leitor altera a natureza do texto lido,em função de inúmeras variáveis que fabricam o modo de ler.

Partimos da idéia de intertextualidade, como conceito genérico eabrangente abarcando diferentes níveis de leitura de um texto em funçãodas relações possíveis desse texto com outro(s) texto(s) para a utilizaçãooperatória de intertextualidades. Incluímos aqui aquelas cuja existênciaestá implícita ou explícita e é reconhecida e partilhada na produção erecepção desse texto (neste caso, um decreto, uma lei, uma portaria, umregulamento, um programa, um relatório etc.) e a(s) intertextualidade(s)possibilitada(s) pela aplicação de uma dada problematização, decorren-te do quadro teórico-conceitual específico, a cada texto ou conjunto detextos.

O reconhecimento da existência de intertextualidades resulta da idéiada presença de diferentes discursos ou níveis discursivos de um mesmodiscurso no texto legislativo, no mesmo documento ou em documentosdistintos.

Ler um texto é comparável à leitura de um discurso-prática. Para compreen-

der um texto deslocamo-nos do que está escrito para o não-escrito e retornamos

do que está presente para o que está ausente, das declarações para o seu

contexto histórico. Os textos no discurso-prática incluem manuais, relatórios

de investigação, monografias, linhas orientadoras do currículo e testes

avaliativos. Projectos de investigação, recolha de dados através de observa-

ção, intervenções experimentais, testes estatísticos e inferências constituem,

simultaneamente, textos e discurso-práticas. O seu sentido depende de ou-

tros textos que, por sua vez, dependem também de outros. A intertextualida-

de dos discursos e das práticas constitui e estrutura os nossos mundos sociais

e educacionais [Cherryholmes, 1988, p. 8].

A escola e a escolaridade ou o sistema escolar são sempre constru-ções discursivas, ou seja, organizam-se em torno de representações epráticas discursivas dos atores sociais intervenientes na educação esco-lar. A arquitetura do presente texto adota a perspectiva comparada como

a lei da escola 55

veio de estruturação da análise, numa abordagem dos textos e da inter-textualidade que lhe é inerente, que pretende aproximações mais ricasaos discursos configuradores dos universos sociais e educativos. Trata-se, do ponto de vista teórico, de ensaiar o desenvolvimento de

[...] novas inteligibilidades, sobre a base de uma reconciliação entre a histó-

ria e a comparação. A análise não toma como referencia contextos definidos

segundo seus contornos geográficos, políticos ou sociais, mas contextos de-

finidos pelas práticas discursivas que lhes atribuem sentidos [Nóvoa, 1998,

p. 48].

Brasil e Portugal entram neste ensaio de abordagem comparada, nãocomo duas entidades distintas e estáticas, mas com a referência simbó-lica da língua comum, referência esta gerada em vínculos históricos,culturais e políticos que não devem ser desconsiderados. Se, por umlado, Portugal e Brasil têm um denominador comum, o lingüístico, es-tão inseridos em espaços relacionais de naturezas diversas, que tanto osdistanciam como aproximam. Trata-se de, através da tomada da legisla-ção como fonte principal

[...] indagar mesmo quais as relações possíveis entre os processos de consti-

tuição dos campos educacionais nesses países, com vizinhanças e distâncias

tão singulares, ao longo de suas histórias [Catani, 2000, p. 144].

A emergência da escola de massas e da educação pública se dá comcerta universalidade mas, também, com características conforme o país.Apoiada em Yasemin Soysal e David Strang, Helena Araújo chama aatenção para três processos distintos, os quais podem servir de referênciapara a compreensão deste “fenômeno”. São formas que caracterizam pro-cedimentos não necessariamente excludentes: “formas estatais de cons-trução da educação, formas societais de construção da educação e cons-trução retórica da educação”. O primeiro conceito traduz a atividadecentrada no Estado e por ele desenvolvida. No segundo, destacar-se-ia aintervenção múltipla das organizações da sociedade civil na expansãoeducacional. E “com o terceiro conceito”, diz Araújo que estes autores

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pretenderam chamar a atenção para processos de intervenção que se caracte-

rizaram por anunciarem cedo, do ponto de vista temporal, a intenção e inte-

resse estatal na educação pública, em particular no lançamento da escola de

massas, mas tardaram na sua realização [Araújo, 1996, p. 167].

O descompasso entre o anúncio e a operacionalização é facilmentepercebido quando se tomam por base textos como os aqui privilegiados,ou seja, aqueles que compuseram, para este período, um corpus legal daeducação que pretendia universalizar o ensino primário. Durante o pe-ríodo em foco, Brasil e Portugal coexistem com regimes políticos dis-tintos – no primeiro, a República instala-se em 1889 e, em Portugal, édeclarada em 1910 – o que não obsta à ocorrência da expressão de ide-ais semelhantes a respeito da escolaridade elementar, no discurso dosdocumentos legais. Esta constatação nos remete para inquietações emrelação a explicações apoiadas em referências nacionais, de ordem polí-tico-ideológica que parece terem esgotado a capacidade explicativa dastransformações nas características da escolaridade. Isto implica reco-nhecer a necessidade de ampliar as lentes e buscar novos olhares paracompreender os fenômenos educativos (mas não só), integrando-os numquadro relacional e referencial que não se limite a estabelecer uma rela-ção de causalidade estrita a partir do contexto político e da semelhançalingüística sem, no entanto, abandoná-los.

O sentido que cada preceito toma num e noutro lugar pode ser dife-rente. Existem preceitos que ganham força de expressão e expansão ealcançam estatuto de universais, os quais podem servir de referência,embora acolhidos de maneira diversa em diferentes comunidades. Háque se estar atento para como se chega à construção destes modelos dereferência, o como circulam as idéias, pois como sugere António Nóvoa

[...] a comparação em educação é uma história de sentidos, e não um arranjo

sistematizado de fatos: os sentidos que as diferentes comunidades dão às suas

acções e que lhes permitem construir e reconstruir o mundo [1998, p. 83].

Mesmo quando tomamos como ponto de partida o quadro de refe-rência do Estado-Nação, no caso de Portugal e do Brasil, percebemos,

a lei da escola 57

gradualmente, que a temporalidade do discurso da educação escolar nãoflui unidirecionalmente. Não podemos ignorar que Portugal e Brasil têmestado em relação mútua através de fluxos em ambos os sentidos, comoseja o de já terem constituído metrópole e colônia, de ter havido signifi-cativa emigração portuguesa nos finais do século XIX e inícios do XX ede boa parte das elites políticas e culturais brasileiras se terem formadona metrópole, nomeadamente na Universidade de Coimbra. Veja-se, aeste respeito, nos princípios do século XX, o eloqüente testemunho crí-tico de José Veríssimo:

Os meus estudos feitos de 1867 a 1876 foram sempre em livros estrangeiros.

Eram portugueses e absolutamente alheios ao Brasil os primeiros livros que

li. O Manual Enciclopédico, de Monteverde, a Vida de D. João de Castro de

Jacinto Freire, os Lusíadas de Camões, e mais tarde no Colégio de Pedro II,

o primeiro estabelecimento de instrução secundária do país, as selectas por-

tuguesas de Aulete, os Ornamentos da Memória, de Roquete – foram os

livros em que recebi a primeira instrução. E assim foi sem dúvida para toda a

minha geração [Veríssimo, 1906, p. 5].

Considerando-se o vínculo entre o Brasil e Portugal, o patrimôniode relações culturais e sociais prolonga-se para muito além da declara-ção de independência. Muitos dos livros escolares usados pelos alunosdas escolas primárias e secundárias do Brasil são, até o início do séculoXX, portugueses. Alguns dos editores mais importantes no Rio de Ja-neiro e em São Paulo são portugueses. José Augusto Coelho publica asua obra principal Princípios de Pedagogia, em São Paulo, nos finaisdo século XIX. É tão fantasioso afirmar-se que não existem linhas decontinuidade cultural e lingüística na relação entre os dois países comopretender que Portugal constitui o quadro de referência determinantepara a sociedade e cultura brasileiras.

Quando, em Portugal, são criadas as Escolas Centrais, em 1878, eos Grupos Escolares em São Paulo, em 1890 e em Santa Catarina nosprimeiros anos de 1900, mais importante do que dizer que são duasexpressões diferentes para designar um mesmo modelo organizacionalde escola, interessa pesquisar os canais de circulação e de influência

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que proporcionam a definição tanto do campo lexical do discurso daescolaridade como da sua construção semântica na sua diversidade es-pecífica e entendê-los como processos de atualização que correspon-dem a múltiplos intercâmbios e relações.

Não se podem menosprezar outros territórios de referência, como éo caso da França e dos Estados Unidos. Além disso, o fluxo migratórioeuropeu vivido neste período interage para a circulação de idéias dediferentes países. Entrelaçam-se a este tipo de circulação, com forte in-fluência mas de carácter “informal”, importantes espaços de veiculaçãode idéias pedagógicas deste período como as Exposições Universais,verdadeiras feiras de apresentação e “comercialização” de propostas parao ensino (Kuhlmann Júnior, 2001). Em sobreposição de tempos e deespaços, parece compreensível que não só o modelo de organizaçãopolítica e administrativa como aspectos pedagógicos e de organizaçãoescolar (relacionados com a integração das comunidades estrangeirasimigradas) que inspiram o Brasil sejam provenientes dos Estados Uni-dos, a par de muitas outras referências a países da Europa.

No Brasil, recorda Lourenço Filho,

a reforma do ministro Guizot, de 1833, inspirou a maioria dos sistemas esco-

lares provinciais; a remodelação ainda na França, em 1850, reflectiu-se logo

também na organização do ensino primário e normal. Nos fins do século,

porém, outras influências se fizeram notar, então provindas da parte norte do

continente, ou seja dos Estados Unidos, cujo adiantamento em matéria de

instrução pública já inspirava admiração aos demais países. Elas tornaram-

se mais vivas a partir dos fins da 1ª grande guerra, passando a fundir-se, de

forma variável, com outras provenientes da Europa, como expressão do am-

plo movimento chamado escola nova [Lourenço Filho, 1961, p. 187].

Nos vários momentos da história dos estados e dos dois países aquiconsiderados, existe, assim, todo um feixe de relações que se cruzam,sobrepõem e percorrem sentidos distintos mas igualmente significati-vos no forjar da espessura histórica e na construção de identidades ima-ginárias.

a lei da escola 59

4. Portugal e Santa Catarina (Brasil)

Procuraremos avançar na operacionalização de um olhar compara-do da textualidade legislativa em Portugal e Santa Catarina interrogan-do o modo como aquela se constitui e se define em cada contexto. Par-timos de um leque comum de questões concernentes à caracterizaçãodo lugar ocupado pelo texto legislativo na configuração da escolaridadeelementar, das relações que estabelece com outros textos, da agendadiscursiva que lhe define o conteúdo e do léxico e da semântica queveicula e consagra. Os modos através dos quais a textualidade legislativafixa os vários discursos que a percorrem e constrói a realidade que ope-ra permitirão aprofundar o guião de pesquisa procurando comunidadesde sentidos e tendências comuns estruturantes e não meramente regis-tros factuais avulsos ou pitorescos.

Portugal

Do ponto de vista discursivo, traduzido em textualidade(s), a esco-laridade concebida sistematicamente, articulando entre si diversos ní-veis de ensino e definindo as seqüencialidades e correspondências, an-tecede em muito a afirmação organizacional correspondente do sistemaescolar estatal. A realidade empírica de que falamos, da qual o historia-dor recupera fragmentos reconstituídos, por exemplo, através dos in-quéritos e das inspeções levados a cabo com alguma (ir)regularidade eespaçamento no tempo, conflitua com a construção discursiva da esco-laridade e irrompe com maior ou menor visibilidade no articulado dasleis ou nos considerandos dos relatórios que por vezes as acompanham.

As várias reformas escolares que povoam a segunda metade do sé-culo XIX e as três primeiras décadas do século XX representam ensaiosdiscursivos sobre a educação escolar estatal à procura de uma fórmulaorganizacional, suscetível de institucionalização (por meio da obtençãode um relativo patamar de equilíbrio na arena de interesses dos diversosgrupos sociais e políticos) e de operacionalização no terreno, por meioda luta pela sua progressiva imposição enquanto modalidade dominantede socialização das crianças e dos jovens (objeto de uma secular resis-

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tência das populações rurais, que se prolonga praticamente até ao inícioda década de 1950).

A reforma do ensino primário de 1878–1881, através das leis de 2de maio de 1878, 11 de junho de 1880 e do Regulamento de 28 de julhode 1881, incorpora no texto legislativo medidas organizacionais queterão um alcance profundo e duradouro na instituição do sistema esco-lar público em Portugal. Entre elas, destacamos o estabelecimento deEscolas Centrais nas cidades e centros populacionais mais numerosos ea institucionalização das Conferências Pedagógicas, como dispositivode enquadramento dos professores e da normalização das respectivaspráticas.

Em Lisboa, Porto e em outras capitais de distritos ou onde, por vir-tude da densidade da população, exista mais de uma escola complemen-tar ou elementar, é determinada a possibilidade de estabelecer EscolasCentrais com três ou quatro professores ou professoras4. A organizaçãodo trabalho docente e as práticas pedagógicas lá desenvolvidas ocupamum lugar central no processo de conceitualização que legitimará a con-sagração da escola graduada, assente na “descoberta” de um invariante“natural” constituído pelos modelos desenvolvimentistas de base etária.

Nas Conferências Pedagógicas do Porto em 1884, descreve-se as-sim o que se passa nas Escolas Centrais:

[...] o curso geral destas escolas divide-se por aulas, cada uma regida por um

professor, a cargo de quem está uma parte ou grau de disciplina em que se

divide o ensino das que nelas se professam [sendo que a grande novidade é

que] nestas escolas há divisão do trabalho e não do trabalhador; isto é, é o

trabalho que se divide por diversos professores, e não o professor pelas dis-

ciplinas professadas, como acontece nas nossas escolas paroquiais [Lopes,

1884, pp. 43-44].

Com o espraiar da nova racionalidade, começam a ganhar expres-são esquemas de correspondência do nível etário com a ordenação dossaberes escolares e

4. Art. 20, Carta de Lei de 2 de maio de 1878.

a lei da escola 61

tomando como modelo as escolas de três professores para o ensino elemen-

tar, os alunos destas dividem-se em três categorias. Para esta divisão concor-

rem não só a maior ou menor cópia de conhecimento, como a idade dos

alunos. Assim, à 1ª pertencerão os de 6 a 8 anos; à 2ª, os de 8 a 10; e à 3ª, os

de 10 a 12 [e, por estas razões,] a divisão do curso geral destas escolas em um

certo número de aulas permite o emprego do modo simultâneo, com mais

perfeição [Lopes, 1884, p. 44].

Embora exista, do ponto de vista abstrato e racional, a representa-ção de um percurso de aprendizagem que leva do ensino primário aosuperior, cada nível de escolaridade é concebido e organizado de mododistinto dos que lhe são adjacentes. Em Portugal, ao ensino primárioobrigatório, elementar, do primeiro grau, ou ainda primeiro grau ele-mentar não se segue o secundário mas sim o complementar ou do se-gundo grau. Existe no ensino primário uma ambivalência que gera ten-dências contraditórias na sua definição, embora seja a vocação desocialização popular que prevalece. É o que transparece do relatórioque antecede o decreto n. 1, de 22 de dezembro de 1894, que reforma ainstrução primária:

Pelo que respeita à natureza mesma do ensino primário, no seu duplo fim de

educar as classes populares e de preparar para outros estudos, pouco foi alte-

rado, posto seja opinião do governo que haverá mais utilidade social em tirar

do analfabetismo completo em que eles ainda se conservam, tantos milhares

de cidadãos portugueses, do que em aumentar a intensidade de conhecimen-

tos que o ensino primário é destinado a derramar.

Uma leitura atenta da legislação referente ao ensino secundário re-vela-nos que, até 1884, pelo menos, há a possibilidade de uma criançade família abastada, aristocrática ou burguesa iniciar, verdadeiramente,o seu percurso de socialização escolar apenas a partir do liceu, uma vezque para a respectiva matrícula apenas era requerido comprovar a idademínima de 10 anos, apresentar diploma do exame de ensino primáriocomplementar ou, em alternativa, do exame de admissão ao liceu. Sen-do assim, parece-nos crível que uma parte muito significativa dos alu-

62 revista brasileira de história da educação n° 8 jul./dez. 2004

nos liceais tenham iniciado o seu percurso escolar com a realização doexame de admissão ao liceu sem ter cumprido, formalmente, a escolari-dade primária. Esta presunção encontra alguma validação no conteúdode um decreto de 24 de julho de 1884, no qual o artigo 1o declara que

a contar do ano de 1885 em diante, nenhum aluno será admitido a exame de

admissão aos liceus sem que mostre ter obtido aprovação no exame do ensino

elementar, estabelecido pelo artigo 42º da lei de 2 de Maio de 1878, e regula-

do pelo título II do decreto de 28 de Julho de 1881 [Alves, 1889, pp. 352-353].

É a partir do período compreendido entre as reformas de 1894–1896e a de 1901–1902, que se verifica uma viragem significativa do pontode vista curricular, ou seja, as matérias dos programas das disciplinasescolares (do ensino primário) passam a organizar-se seqüencialmenteem função dos anos de escolaridade e da faixa etária correspondentedos alunos. A imposição do modelo da escola graduada no ensino pri-mário remove alguns dos obstáculos mais significativos à padronizaçãodos saberes enquadradores das práticas profissionais dos professores.

A novidade é a adoção generalizada da escolaridade primária orga-nizada em quatro classes ascendentes, cada uma com um professor, emsalas separadas, nas Escolas Centrais, e todas por um professor nas ou-tras escolas, sendo que as três primeiras classes pertencem ao primeirograu e a 4ª classe constitui o segundo5. O regulamento de 1896 já esta-belecera as quatro classes ascendentes mas convém ter em conta que taldisposição só vinculava as escolas centrais6.

Portugal organiza a sua base legal para a educação inspirado emfeitos de outras nações, consideradas mais avançadas. O texto que acom-panha o decreto n. 8, de 24 de dezembro de 1901, é emblemático nestamatéria7. Para além de tomar como referência, na construção de seucorpus legal, outros países, Portugal busca também modelos-práticos, o

5. Decreto de 28 de setembro de 1902, Art. 71.6. Art. 39 do regulamento geral do ensino primário, Parte I, de 18 de junho de 1896.7. Já em 1870, no relatório que acompanha a malograda reforma da Instrução primá-

ria de 1870 (D. António da Costa), declara-se que “a questão da educação pública

a lei da escola 63

que pode ser exemplificado com o texto que acompanha uma circulardatada de 21 de dezembro de 1880, que trata da criação de escola-mo-delo de instrução primária no distrito do Porto. Nesta circular, registra-se que a Junta Geral deste distrito, em sessão ordinária de maio desteano, resolveu por

criar na cidade do Porto uma escola-modelo de instrução primária, regida

por pessoa que tenha concluído com distinção o curso de uma escola normal

de 1ª ordem na Suíça, Bélgica ou Alemanha... [Isto, segundo a circular,] mostra

quanto aquela ilustrada corporação se empenha pelos progressos do ensino,

e revela os patrióticos sentimentos que a animam na realização de melhora-

mentos atinentes a este importantíssimo ramo da administração a seu cargo8.

O discurso sedutor para atrair adeptos defensores da escolaridadeobrigatória enreda-se numa teia discursiva que incorpora vários elemen-tos. A defesa da transformação das escolas em lugares saudáveis é enfa-tizada, o que revela a forte preocupação higienista da época, mas tam-bém o sentimento de segurança que se busca disseminar:

Quando as famílias souberem que os seus filhos vão encontrar uma escola

salubre, confortável, agradável mesmo; que a classe é suficientemente venti-

lada, aquecida, iluminada; que todas as suas instalações são completas e as-

seadas; que os alunos estão cercados de todos os cuidados necessários; que

ali se desenvolvem integralmente; que se lhes procura dar, a par de uma boa

educação intelectual, uma desvelada e cuidadosa educação física, constante-

mente vigiada e progressivamente melhorada; quando souberem que há fun-

é (digamo-lo francamente) a questão vital de uma nação [...]. A Europa quase todatem inscrito nas suas leis de instrução primária o ensino obrigatório. Assim o fize-ram a Prússia e toda a Alemanha, a Suíça, a Holanda, a Bélgica, a Itália, a Espanha,a Turquia. Na França é uma questão resolvida no espírito público. Em alguns paí-ses alemães levam o rigor a tal extremo, que uma das penas consiste na proibiçãoda comunhão aos moços que não apresentem o atestado de instrução primária. Aimposição do ensino deve estar na razão directa da ignorância de um povo”.

8. Leis de 2 de maio de 1878 e 11 de junho de 1880 sobre a Reforma da InstruçãoPrimária e regulamento e providências para a execução das referidas leis, Lisboa,Imprensa Nacional, 1881.

64 revista brasileira de história da educação n° 8 jul./dez. 2004

cionários técnicos especialmente encarregados dessa salutar missão, incum-

bidos de transformar as escolas em invejáveis e apetecíveis centros de re-

creio metódico e higiénico, renascerá a confiança e diligentemente será pro-

curada a escola, sem preocupações e receios, combatendo-se insensível e

eficazmente o afastamento sistemático e nocivo9.

O mesmo “recurso discursivo” realça que “a intervenção da higienenas escolas é oportuna e urgente” e que o país não poderia ser “conde-nado a ter no futuro apenas braços débeis como instrumentos de suariqueza ou da sua segurança”. Mais adiante no texto afirma-se que não“se compreende que uma lei, como a da obrigatoriedade do ensino, pos-sa sacrificar a liberdade individual em nome dos interesses colectivos,impondo a aglomeração de crianças em locais que as condenam ao seuestiolamento físico”.

O excerto abaixo, extraído do texto introdutório que acompanha alegislação referente à reforma da educação portuguesa de 1901 é maisum exemplo elucidativo da combinação dos exercícios de sedução coma coacção:

O que é preciso é que tanto as restrições, como as vantagens, sejam realizá-

veis, isto é, se coadunem com o feitio particular de nosso meio social, e os

seus efeitos se tornem manifestos no campo dos interesses positivos, sem

nenhuma ofensa, nem agravo, para o sagrado direito da liberdade indivi-

dual10.

A estruturação discursiva da escola assume uma importância capitalpela instrumentalidade que lhe cabe na construção do sentimento deidentificação nacional, ou, nos termos de Benedict Anderson, na fabri-cação da nação como comunidade imaginada (Anderson, 1991). O tex-to do relatório que antecede o decreto n. 8, de 24 de dezembro de 1901,que reforma a instrução primária, é exemplar nessa definição:

9. Decreto n. 2, de 24 de dezembro de 1901.10. Decreto n. 8, de 24 de dezembro de 1901.

a lei da escola 65

Para a justa compreensão dos direitos, como para o exacto e perfeito desem-

penho dos deveres sociais, torna-se indispensável que todos participem e

comunguem nas ideias do seu país e do seu tempo; e só a instrução primária,

estabelecendo pela leitura e pela escrita, a comunicação do pensamento entre

os mais afastados cidadãos da mesma pátria, é que poderá dar-lhes também,

além das bases da educação intelectual, as primeiras e mais essenciais no-

ções de educação física.

A República reforçará esta idéia proclamando que

Portugal precisa de fazer cidadãos, essa matéria prima de todas as pátrias, e,

por mais alto que se afirme a sua consciência colectiva, Portugal só pode ser

forte e altivo no dia em que, por todos os pontos do seu território, pulule uma

colmeia humana, laboriosa e pacífica, no equilíbrio conjugado da força dos

seus músculos, da seiva do seu cérebro e dos preceitos da sua moral11.

À escola idealizada, socializadora de um povo também idealizado,mobilizado para a causa da instrução, ardente de patriotismo e senti-mento cívico corresponde, no território empírico da existência quotidia-na das populações, à caracterização implacável dos fatores da poucaprogressão da escolarização nas camadas populares:

[...] entre nós, do mesmo modo que em Espanha, na Grécia e na Turquia, o

ensino obrigatório não tem dado o resultado que devia dar, pela resistência,

por assim dizer passiva, que a lei encontra da parte da população, na sua

maioria ignorante, e por isso mesmo indiferente, senão refractária, às vanta-

gens e ao estímulo da instrução.

O discurso acerca da necessidade da escola espraia-se para váriosdocumentos, reforçando algumas matrizes deste discurso. A legislaçãoreformadora de 1919, por exemplo, traz, a dado passo do Programa de

11. Decreto de 29 de março de 1911.

66 revista brasileira de história da educação n° 8 jul./dez. 2004

Língua e Literatura Portuguesa do curso normal12, um comentárioelucidativo da vocação social da escola primária:

Não se deve esquecer que a escola primária não pretende formar literatos,

mas sim habilitar os seus alunos, na grande maioria futuros operários, a ex-

primirem o seu pensamento de forma conveniente.

O nosso trabalho encerra nos anos 1920, para o caso português, pre-cisamente com um projeto de reforma da educação13, apresentado noCongresso da República, em 1923, o qual ficou conhecido por ProjetoCamoesas, o então ministro da Instrução Pública. Neste projeto, cola-boraram figuras relevantes do movimento da Escola Nova em Portugal,como Faria de Vasconcelos14. Na perspectiva que aqui nos norteia, umdos aspectos mais significativos é, como sublinha António Nóvoa, que

as 24 Bases da Reforma caracterizam-se pela tentativa de construir um con-

junto coerente desde o jardim de infância à Universidade. Ora, o simples

facto de pensar o sistema escolar como um todo nunca tinha sido proposto

até então [1987, pp. 547-548].

O ensino obrigatório passa a ser incorporado numa dupla tensão dedireito de acesso e respeito às liberdades individuais e a criação de dis-positivos de controle, como o foram os recenseamentos escolares. Nocaso português está explícito que os dados levantados nos recensea-mentos serviriam de base para controlar a matrícula e freqüência à esco-la (ver por exemplo texto do decreto n. 4, de 19 de setembro de 1902).

12. Decreto n. 6.203, de 7 de novembro de 1919.13. Cf. Reforma da Educação – Proposta de Lei (Separata do “Diário do Governo”

de 2 de julho de 1923), Lisboa, Imprensa Nacional, 1923.14. Para uma caracterização mais desenvolvida desta reforma, consultar António Nóvoa,

Le temps des professeurs, Lisboa, Instituto Nacional de Investigação Científica,1987, pp. 542-549.

a lei da escola 67

Brasil – Santa Catarina

Do ponto de vista político-institucional, o estado de Santa Catarinapercorre duas situações: a que reporta ao período imperial (1835–1889)e a que contempla o período republicano (a partir de 1889). À seme-lhança de Portugal, os assuntos da instrução pública estiveram entre-gues a repartições sob a tutela de órgãos ou estruturas burocráticas comresponsabilidades mais amplas no domínio da administração interna.Desde meados do século XIX (184815), o responsável pelas questõesescolares é o presidente da província, que atua como diretor geral dainstrução pública. Em 1913, já com o regime republicano, o órgão res-pectivo é a Diretoria da Instrução Pública da Secretaria Geral dos Negó-cios do Estado, e ainda em 1935, é o Departamento de Educação daSecretaria do Interior e Justiça, só vindo a se tornar autônomo sob adesignação de Secretaria de Estado dos Negócios de Educação e Cultu-ra, em 1956 (Fiori, 1975, pp. 17-18).

A tímida presença do discurso educativo nos textos legislativos, prin-cipalmente no período anterior à República, indica a necessidade de sebuscar em “outros textos” oficiais as bases deste discurso. É na Repú-blica que o sistema de ensino ganha contorno mais nítido no texto de leique o organiza, sendo possível, ao debruçar-se nestes textos, delinearnão só a estrutura administrativa, como também os principais eixos dodiscurso educativo que o envolvem. Nos períodos que antecedem a Re-pública, as “fallas” dos governantes e os relatórios administrativosconstituem fontes de consulta fundamentais, se tivermos como locus oterritório catarinense. Uma incursão pelos trabalhos de história da edu-cação deste estado mostra o quanto as “fallas” e os “relatórios têm ser-vido como fontes privilegiadas na busca de dados, mesmo para o perío-do republicano. Aliás, em muitos trabalhos, a legislação nem sequer éconsultada. A riqueza de informações e detalhes presentes nestas “fallas”,e posteriormente nos relatórios, permite uma “reconstrução” do discur-so oficial acerca das políticas públicas da época, incluindo a instrução.

15. Lei n. 268 de 1o de maio de 1848.

68 revista brasileira de história da educação n° 8 jul./dez. 2004

Estas “fallas” eram proferidas pelo presidente da província por oca-sião da abertura da sessão legislativa anual da Assembléia Provincial econstituíam-se

num relatório geral, com a prestação de contas da administração governa-

mental e a exposição das medidas consideradas essenciais ao bom andamen-

to dos negócios públicos [Fiori, 1975, pp. 18-19].

Para o período posterior a 1848, às “Fallas Governamentais” podemser acrescidos os relatórios de presidentes de província. Trata-se de re-latórios pormenorizados, apresentados nas transições pelo presidenteda província que deixava o cargo.

Para a caracterização da organização social catarinense, valerá a penarecuar ao período colonial para referir que ela não acompanha o modeloimperante noutros estados e regiões do Brasil, situando-se mais no pla-no da pequena propriedade e do “trabalho livre”. O primeiro ensaioocorre no século XVIII, com a vinda de cerca de cinco mil colonosoriundos dos Açores. Embora esta tentativa tenha fracassado,

os açorianos influíram decisivamente na estruturação social de Santa Catari-

na, a qual legaram os traços básicos da civilização lusa, transmitindo as tra-

dições portuguesas referentes ao idioma, religião, costumes dos antepassa-

dos e sentimento pátrio [Fiori, 1975, p. 24].

No século XIX, a partir de 1828, o movimento de colonização co-nhece um recrudescimento decisivo que conduz à constituição de signi-ficativas colônias de imigrantes de origem alemã e italiana, entre outrasde menor expressão, como suíços, noruegueses, franceses, russos e po-lacos etc. Este processo decorre com intensidade ao longo de toda asegunda metade do século XIX.

Depois da declaração de independência do Brasil, em 1822, entre apromulgação da Constituição, em 25 de março de 1824, e o Ato Adicio-nal de 1834, as províncias não possuem autonomia legislativa. Até aí, ascompetências quanto às leis estão atribuídas à Assembléia Geral, com-posta de deputados de todas as províncias, sediada no Rio de Janeiro. A

a lei da escola 69

partir de 1834, é determinada a criação das Assembléias Provinciais asquais passam a ter jurisdição, entre outros aspectos, sobre a instruçãopública, nomeadamente primária e secundária. Em Santa Catarina, a pri-meira Assembléia Provincial foi inaugurada em 1o de março de 1835. Noinício dos anos de 1850, a regulamentação do ensino primário é objetode medidas legislativas que acompanham as reformas operadas na Corte.

O Governo Imperial estava, então, desejoso de promover uma uniformiza-

ção do ensino em todo o país. Em harmonia com essa política, os Presidentes

de Província, como delegados do Poder Central, procuravam divulgar junto

às Assembleias Provinciais, as reformas de ensino que se operavam na Cor-

te. Compreende-se que as ideias básicas da chamada reforma Couto Ferraz

(decreto n. 1331A) se reproduzissem na legislação catarinense [...] [Fiori,

1975, p. 50].

A questão da obrigatoriedade escolar, adotada na Corte em 1854, tam-bém está na ordem do dia e as formas de impor tal obrigatoriedade àpopulação mantêm-se como importante ponto do discurso educativo, atra-vessando as décadas iniciais do século XX. Há aqui um importante pontoem comum entre as políticas de instrução da época, seja na América, sejana Europa: o Estado, republicano ou monárquico, impõe a obrigatorieda-de do ensino e busca referendum para esta ação em nações de referência,tidas como mais avançadas. O discurso da obrigatoriedade está irmanadoao discurso do progresso, e é com a promessa de alcançá-lo que muitosexpedientes coercitivos ganham legitimidade social.

Em Santa Catarina, a escolaridade obrigatória acaba por ser insti-tuída em 187416. Esta medida correspondia a uma pressão crescentedo poder central e dos modelos de referência estrangeira de que, natu-ralmente, eram portadores os presidentes de província, como agentesdo governo da Corte. No relatório de um desses presidentes, DelfinoPinheiro de Ulhôa Cintra Júnior, do ano de 1872, este expressa a suasimpatia pela escolaridade obrigatória que é “uma ideia que está na

16. Lei n. 699, de 11 de abril de 1874.

70 revista brasileira de história da educação n° 8 jul./dez. 2004

moda” (Fiori, 1975 p. 56). Na fala de abertura da 1ª sessão da 24ªlegislatura da Assembléia Provincial de Santa Catarina, em 6 de outu-bro de 1882, do doutor António Gonçalves, a referência é explícitaquanto à importância de acompanhar as políticas escolares seguidasnos países mais adiantados.

A promessa de desenvolvimento e progresso que “sustenta” o dis-curso da obrigatoriedade parece não ter seduzido suficientemente apopulação: 54 anos após sua instituição, o governo catarinense conti-nua a cruzada para submeter a população à escola. Um dos expedien-tes utilizados é o aprimoramento e intensificação da fiscalização esco-lar, sobretudo a referente às escolas isoladas, escolas estas que atendiamsobretudo a população rural, camada que mais resistiu à escolarizaçãodas crianças. A mão-de-obra infantil era (e em muitos casos ainda o é)um importante aliado na atividade agrícola. Em 1928, um decreto apro-vado pelo então governador Adolpho Konder, considera que as dispo-sições da época

relativas à obrigatoriedade da frequencia escolar não actuam de forma eficaz,

por permitirem, com grave prejuizo à colectividade, a evasão de alunos das

classes escolares mais adiantadas, sem que completem a idade escolar. [Este

mesmo decreto prevê] multa de 20$000 a 50$000 e, no dobro, em caso de

reincidência, aos responsáveis por menores da idade17 obrigatoria à frequencia

escolar que, na época legal [...] não os apresentassem á matrícula18.

Este mesmo conteúdo pode ser localizado em lei de 191719.Recuando um pouco mais, é possível identificar a associação ante-

riormente mencionada entre obrigatoriedade do ensino e modernidade.Palavras20 do Coronel Gustavo Richard, governador do estado do início

17. Prevê-se como idade máxima de freqüência escolar, facultativa, nas escolas isola-das, 14 anos para os meninos e 13 anos para as meninas; já nos Grupos Escolares,a idade máxima era de 16 anos para ambos os sexos.

18. Decreto n. 2.176, de 22 de junho de 1928.19. Lei n. 1.187, de 5 de outubro de 1917.20. Conforme decreto n. 348, de 7 de dezembro de 1907.

a lei da escola 71

do século XX, podem ser consideradas como um bom exemplo. A refor-ma do Regulamento da Instrução Pública da época, 1907, é defendidasob o argumento de

melhorar as condições gerais do ensino, tanto primário como secundário nor-

mal, adaptando-se aos moldes da pedagogia moderna, já tornado efectiva-

mente obrigatorio o ensino primário, de acordo com o recenseamento esco-

lar [...].

A obrigatoriedade é aqui estabelecida para as crianças de ambos ossexos, com idades entre 7 e 12 anos.

Acompanhando o item que estabelece a obrigatoriedade encontram-se, via de regra, as exceções. Estariam “livres” da obrigatoriedade osportadores de “defeito moral” ou físico, inibidores da freqüência esco-lar; os residentes a distância superior a 2 quilômetros do local de funcio-namento de uma escola pública; os aprovados nas matérias que consti-tuíam o curso de ensino primário; os matriculados e com freqüênciaassídua em estabelecimento particular de instrução; os que recebessemensino domiciliar (decreto n. 348). Estes critérios para o estabelecimen-to da população obrigada à freqüência escolar sofrem poucas variaçõesno período aqui em foco e fornecem pistas para delinear o perfil doescolar da época.

A imposição da escola é uma ação estatal que mobiliza váriossectores.

A execução da obrigatoriedade do ensino em suas diferentes disposições per-

tence, não só aos chefes e Delegados Escolares, como tambem aos Promotores

Públicos, aos Juízes de Paz e às autoridades policiais, os quais prestarão toda a

cooperação e auxílio para o cumprimento das mesmas disposições21.

A exemplo de Portugual, o principal instrumento que subsidia a obri-gatoriedade é o “recenseamento escolar”, documento no qual eram re-

21. Decreto n. 348, de 7 de dezembro de 1907.

72 revista brasileira de história da educação n° 8 jul./dez. 2004

gistrados dados pormenorizados da população, que permitiam o contro-le da freqüência à escola. O recenseamento era de responsabilidade de“juntas” nomeadas em cada distrito, as quais eram compostas do chefeescolar, como presidente, do juiz de paz e do comissário ou subcomissáriode Polícia. Essas juntas reuniam-se no primeiro domingo de novembrode cada ano para proceder ao recenseamento da população escolar, re-correndo para esse fim aos livros de nascimentos e óbitos e ainda aquaisquer outras informações que pudessem ser obtidas.

As escolas que deveriam receber a população “escolarizável” eramorganizadas segundo uma tipologia que sofre alterações ao longo dotempo. Por exemplo, com a reforma estabelecida pela lei n. 776, de 21de maio de 1875, é consagrada uma tipologia de escolas primárias queas classifica em escolas urbanas e rurais, com currículos diferenciados,com as últimas mais orientadas para o ensino agrícola. A legislação nãotinha correspondência efetiva com as práticas escolares. O descumpri-mento e a ausência de regulamentação de muitas das leis referentes àinstrução levam ao ato de 29 de novembro de 1879, no qual António deAlmeida Oliveira procede à compilação e atualização de toda a legisla-ção do ensino em vigor.

Em 1881, o ensino é objeto de nova reforma, instituída pelo regula-mento de 21 de fevereiro. As escolas primárias passam a ser classifica-das em três categorias diferentes e de complexidade crescente: 1ª en-trância (em freguesias, arraiais e outras povoações); 2ª entrância (emcidades e vilas); 3ª entrância (na Capital)22.

Um dos problemas mais interessantes na abordagem do ensino pú-blico catarinense, especialmente, do ensino primário, é o que tem quever com a relação com as comunidades de colonos estrangeiros e a im-plementação por parte destas nas chamadas zonas coloniais, de escolasparticulares, com uso da sua língua nacional e seguindo até o currículoescolar dos países de origem. Neide Fiori reproduz um excerto do Rela-tório apresentado à Assembléia Legislativa da Província de Santa Cata-rina na 1ª sessão da 26ª legislatura, em 21 de julho de 1886, pelo presi-

22. Conforme regulamento de 21 de fevereiro de 1881.

a lei da escola 73

dente da província, Francisco José da Rocha, onde a questão é formula-da com clareza:

Parecendo-me que a imigração não produziria todos os seus salutares efeitos

com o sistema seguido de núcleos de uma só nacionalidade, expus ao Gover-

no Imperial minhas observações e tive a satisfação de as ver aprovadas. Com

efeito, uma boa parte das dificuldades com que lutávamos na localização de

novos imigrantes provinha desse sistema. Os recém-chegados não queriam ir

senão para os núcleos da sua nacionalidade, ou próximos aos destes, alegan-

do, e com razão, que antes de se estabelecerem, tinham falta de tudo e neces-

sitavam de quem os entendesse para auxiliá-los. Houvesse ou não lotes medi-

dos nas linhas ou nos núcleos indicados por eles, era preciso ou atendê-los ou

contrariá-los. Desse modo estender-se-ia indefinidamente uma nacionalida-

de estrangeira em uma certa área do país, tendendo sempre a crescer, e acaba-

ríamos por encravar no nosso território pequenas nações, que, pelo menos

poderiam vir a ser novas Andorras ou Mónacos [em Fiori, 1975, p. 76].

A prática do ensino noutra língua que não o português, neste caso oalemão, chegou a verificar-se em escolas públicas, o que conduziu aque o governo provincial determinasse que apenas seriam financiadasas escolas onde o ensino se fizesse em língua portuguesa.

A República foi proclamada no Brasil a 15 de novembro de 1889 e,como em Portugal, o novo regime adotou um discurso com maior ênfa-se na importância da instrução pública e na incúria do regime anterior aeste respeito. Após várias reformas e tentativas para remodelar o ensino,em 1911 é efetuada uma reforma considerada decisiva em Santa Catarina.Esta Reforma tomou como referência o modelo de organização do ensi-no público seguido em São Paulo, recrutando-se para conduzir esse es-forço reformador o professor paulista Orestes Guimarães.

A reforma de 1911, também conhecida por Reforma Vidal Ramos(nome do governador de então), relançou o ensino normal e introduziuum novo modelo organizacional de escola, o Grupo Escolar, correspon-dente, no contexto português, às Escolas Centrais. A idéia de criar Gru-pos Escolares, seguindo o exemplo paulista, data de 1904 embora ape-nas se concretize em 1911, quando são criadas sete unidades, duas na

74 revista brasileira de história da educação n° 8 jul./dez. 2004

capital e cinco nas principais cidades, destinadas a serem unidades mo-delo. Os edifícios desses Grupos Escolares, exceto o da cidade deJoinvile, foram construídos especialmente para o fim a que se destina-vam e a maior parte de seu mobiliário viera dos Estados Unidos e deSão Paulo.

Além disso, foram introduzidas medidas com vista a nacionalizar oensino. Por um lado, para facilitar a atuação dos professores públicosem zonas de imigração, o alemão foi incluído no plano de estudos daEscola Normal, de acordo com as práticas de americanização de popu-lações originárias da Alemanha que Orestes Guimarães tinha estudado apartir de exemplos recolhidos dos Estados Unidos. Por outro lado, numesforço que conduziu em 1918 à definição de zonas de nacionalização,as escolas “estrangeiras” (conceito que ficou estabelecido na lei 1.283,de 15 de setembro de 1919) passaram, pelas leis 1.187, de 5 de outubrode 1917 e 1.322 de 29 de janeiro de 1920, a

estar sujeitas ao horário e ao programa de ensino das escolas públicas, de-

vendo ministrar em língua vernácula, as disciplinas linguagem, história do

Brasil e educação cívica, geografia do Brasil, cantos e hinos patrióticos bra-

sileiros [Fiori, 1975, p. 117].

O espírito republicano cunha a escola normal como instituição ca-paz de formar profissionais regeneradores. A Reforma da Escola Nor-mal de São Paulo, de 1890, é clara neste sentido, ao considerar que

sem professores bem preparados, praticamente instruídos nos modernos pro-

cessos pedagógicos e com cabedal cientifico adequado ás necessidades da

vida actual, o ensino não pode ser regenerador e eficaz. [Neste mesmo texto

afirma-se que a Escola Normal do Estado] não satisfaz as exigências do tiro-

cínio magistral a que se destina, por insuficiência do seu programa de estu-

dos e pela carência de preparo pratico dos seus alunos23.

23. Decreto n. 27, de 12 de março de 1890.

a lei da escola 75

As escolas-modelo, criadas para servirem como uma espécie de la-boratório, também sofrem a influência do modelo paulista, estado noqual são construídas para servirem de referência, como pode ser obser-vado no texto que segue.

Artigo 1o Fica criada uma Escola Modelo, que servirá de padrão ás escholas

isoladas, do mesmo modo que a Escola Modelo actual serve de padrão aos

grupos escolares.

§ 1o A nova Escola Modelo ficará como a antiga, subordinada á Directoria da

Escola Normal, que se incumbirá de organizá-la livremente.

§ 2o O director da Escola Normal, depois da necessária experiência, submeterá

á aprovação do governo o plano do Regimento Interno dessa nova Escola, seu

programa, horário, etc., que mais tarde, serão adoptados em todas as escolas

isoladas do estado, para um trabalho de remodelação definitiva de todas elas24.

Assim como em muitos outros lugares, o “tempo escolar” também édiferenciado conforme o público a que se destina a escola. Ainda noestado de São Paulo, no ano de 1921, um decreto estabeleceu que o diaescolar nos grupos simples ou escolas reunidas simples seria de cincohoras, das 11 às 16h e, nas desdobradas, seria de quatro horas para cadaseção das 8 às 12h e das 12:30 às 16:30h (decreto n. 3.356, de 31 demaio de 1921). Neste mesmo estado, em 1925, o ensino primário com-preenderia quatro anos de curso nos grupos escolares e três anos nasescolas isoladas e reunidas25. São traços diferentes que marcam umaescola pretensamente igual à escola primária.

Em Santa Catarina, o quadro não é diferente e a tese de universali-zação do ensino através de “diferentes modelos de uma mesma escola”é tema presente na 1ª Conferência Estadual do Ensino Primário, ocorri-da em 1927, com o objetivo anunciado de melhoria da qualidade doensino. Dessa Conferência participaram membros de outros estados e o

24. Decreto n. 1.577, de 21 de fevereiro de 1908.25. São Paulo Decreto n. 3.858, de 11 de junho de 1925.

76 revista brasileira de história da educação n° 8 jul./dez. 2004

professorado catarinense, com suas mais expressivas figuras. Os parti-cipantes apresentavam teses e defendiam-nas perante a assistência quepoderia manifestar-se, aprovando-as ou rejeitando-as. Nas atas destaConferência, uma das teses registradas é justamente a defesa de umaescola com programa reduzido para a população rural, o que contrariaum dos princípios básicos da reforma de 1914, cuja orientação geral,em termos dos encaminhamentos pedagógicos,

visava obter a uniformidade da instrução ministrada. Os professores tinham

a obrigação de cumprir o programa de ensino “em toda a sua inteireza, não

sendo permitido suprimir partes, saltear ou inverter a ordem em que se acha-

rem essas partes” [Fiori, 1975, p. 108].

A documentação consultada e os “cruzamentos” estabelecidos per-mitem identificar que a organização dos sistemas públicos de ensinoaqui abordados foram construídos como uma espécie de mosaico, compeças nem sempre sincronizadas ou harmoniosas, mas com fortes mar-cas comuns.

Em termos gerais, no Brasil, a década de 1920 é marcada por inten-sa movimentação política a qual, para Boris Fausto, pode ser caracteri-zada como período no qual “a sociedade tendia a apoiar figuras e movi-mentos que levantassem a bandeira de um liberalismo autêntico”. Haviacerto movimento a favor da

defesa de um governo capaz de levar à pratica as normas da Constituição e das

leis do país, transformando a República oligárquica em República liberal, [o

que, para este autor, significava, entre outras coisas, a defesa de] eleições lim-

pas e respeito aos direitos individuais. Falava-se de reforma social, mas a maior

esperança era depositada na educação do povo, no voto secreto, na criação de

uma justiça eleitoral [Fausto, 2000, p. 305; grifos nossos].

No cenário educacional, o ideário da Escola Nova ganha adeptos dediferentes setores, movimentação que vai culminar no Manifesto dosPioneiros de 1932, o marco principal deste movimento no Brasil, país

a lei da escola 77

que encerra a Primeira República em 1930 e entra na era do EstadoGetulista (1930-1945)26.

5. Considerações finais

Nascido de aproximações circunstanciais, motivadas pelo cruzamen-to de projetos de investigação individual com o enquadramento institu-cional do Projeto PRESTIGE27, o presente trabalho ensaia uma reflexãoque, a partir da discussão crítica da legislação como fonte proporcioneuma abordagem comparada que se situe no território simbólico dastextualidades que exprimem o discurso da escolaridade produzido emuniverso de língua portuguesa, representado, neste caso, por Portugal eo estado brasileiro de Santa Catarina.

A abordagem discursiva da escolaridade, através da configuraçãode um território da textualidade legislativa e do pressuposto que lheestão inerentes diversas intertextualidades, leva a olhar para os textoslegislativos singulares como habitantes de um território cujas fronteirase características internas não são idênticas em todos os contextos histó-rico-sociais. Essas diferenças são mutuamente estimulantes para a re-constituição das práticas discursivas na organização dos contextos dadifusão da escolaridade popular, em Portugal e Santa Catarina, no pe-ríodo mais intenso da respectiva emergência e implantação mundial, ouseja, na viragem do século XIX para o XX.

A partir da relação apreendida entre a existência discursiva da esco-laridade primária e o território empírico ao qual faz menção de corres-ponder, é possível estabelecer que todo este período é marcado peloesforço realizado pelos Estados em ensaiar uma definição discursivasocialmente satisfatória e eficaz da escola e da escolaridade populares,ou seja, do ensino primário. Assiste-se também a um conjunto de tenta-

26. A posse de Getúlio Vargas na presidência a 3 de novembro de 1930 marca o fim daPrimeira República.

27. Problems of Educational Standardisation in a Global Environment.

78 revista brasileira de história da educação n° 8 jul./dez. 2004

tivas para reduzir substancialmente a discrepância existente entre a es-colaridade constituída discursivamente e a escolaridade empírica, dan-do-lhe expressão organizacional concreta e procurando preencher todosos níveis da administração escolar entre o central e o local.

Pode-se dizer que, para o período aqui contemplado, a escolaridadeé concebida e organizada no Brasil e em Portugal, em segmentos con-cordantes com uma representação estratificada e hierarquizada da so-ciedade segundo a qual a cada um corresponde um processo de sociali-zação escolar específico. A instituição da escolaridade obrigatóriaestabelecida por lei decorre mais da vinculação a modelos externos dereferência dos Estados do que a pressões provenientes dos contextossociais e econômicos internos.

É notório que entre as sociedades portuguesa e catarinense existemalguns traços característicos específicos. Em Portugal, há um forte surtoemigratório, nomeadamente para o Brasil, nos finais do século XIX enas primeiras décadas do século XX, enquanto em Santa Catarina existeo movimento inverso, ou seja, a chegada de contingentes de imigrantesde um caleidoscópio de nacionalidades. Neste último caso, as marcasna organização da escolaridade elementar e do seu currículo são eviden-tes. Em Portugal, o discurso da escolaridade oscila entre a centralizaçãoe a descentralização da administração escolar, embora o Estado nuncaabra mão das definições programáticas e curriculares enquanto, em SantaCatarina, o que está em causa é a afirmação do poder estadual através dasua legislação perante a legislação e orientações dimanadas da capitalfederal, naquele tempo sediada no Rio de Janeiro.

Assinale-se nesta época a preocupação em constituir como corpoprofissional e desenvolver uma consciência coletiva do professoradoenquanto condição essencial para a sua identificação com a causa doensino público. Outro aspecto relevante é a estruturação organizacionaldo ensino de modo que proporcionasse a duração e seqüência padroni-zadas dos estudos bem como do estabelecimento de critérios uniformeslegitimados de alguma forma no agrupamento dos alunos.

Apesar de uma aproximação formal progressiva, a tipologia dosdocumentos oficiais dos diversos contextos, a partir da qual a textuali-dade legislativa se organiza, não é idêntica e gera variantes nas relações

a lei da escola 79

intertextuais cuja exploração se afigura promissora para o desenvolvi-mento da pesquisa. Desenvolver esta pista requer uma leitura conjuntasistemática dos textos legislativos em Santa Catarina e em Portugal e aexploração das intertextualidades em que se configuram. Como Faircloughsublinha:

A análise intertextual tem um importante papel de mediação ao ligar o texto

ao contexto. Aquilo para que a análise intertextual chama a atenção é para os

processos discursivos dos produtores e intérpretes de textos, de como eles o

fazem a partir de repertórios de géneros e de discursos disponíveis no inte-

rior de ordens de discurso, gerando configurações variáveis destes recursos

que se concretizam sob a forma de textos. O modo como os textos são produ-

zidos e interpretados e, consequentemente, como os géneros e os discursos

são mobilizados e combinados, depende da natureza do contexto social [1999,

p. 206].

Finalmente, o vislumbre que se desenvolveu, no decurso da apre-sentação dos dados considerados, de possibilidades interessantes em tra-balhos de História Comparada da Educação, a partir da legislação, re-quer uma combinação alargada de metodologias e instrumentos de análiseque evite lógicas redutoras, conforme recomenda Perrone-Moisés:

Não devemos reduzir a intertextualidade ao uso da citação ou ao aparato

referencial da crítica das fontes. Tratar-se-ia, nesses casos, duma intertextua-

lidade rudimentar. A que nos interessa aqui não é uma simples soma de tex-

tos, mas um trabalho de absorção e de transformação de outros textos por um

texto [1979, p. 210].

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Feios, sujos e malvados

Os aprendizes marinheirosno Paraná oitocentista

Vera Regina Beltrão Marques*

Sílvia Pandini**

O capitão do Porto de Paranaguá comunicava ter recebido da Corte uma simulação denavio 23 anos após a criação da Companhia de Aprendizes Marinheiros no Paraná. En-fim, os meninos teriam um protótipo de navio para receberem instruções sobre os ofí-cios do mar. Esta singularidade paranaense e outras são analisadas neste artigo cujapretensão consiste em apontar as formas de recrutamento para ingresso na Companhia esuas vicissitudes; a educação do aprendiz tanto em nível elementar quanto profissionale as limitações impostas ao aprendizado de um ofício em condições adversas no que dizrespeito à sobrevivência e às condições de saúde desses meninos pobres, consideradosfeios, sujos e malvados por aqueles que os recrutavam.HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO; ENSINO PROFISSIONAL; HISTÓRIA DE APRENDIZESMARINHEIROS; EDUCAÇÃO; SAÚDE E TRABALHO.

This work pinpoints the ups and downs concerning the learning of a sailor’s jobexperienced by boys, after the creation of the “Companhia de Aprendizes Marinheiros”(Company of Apprentice Sailors) in Paraná, in 1864. Recruited among poor children,mainly orphans, the apprentices were given basic school, and professional instruction.This educational process is discussed according to the guidelines of the work society innineteenth-century Brazil. This work also addresses the limitations imposed on thelearning of a job under adverse conditions regarding the survival and health conditionsof the conscripted boys. The conscript many times ocurred illegally and the boys wereconsidered ugly, dirty and wicked by those who conscripted them.HISTORY OF EDUCATION; HISTORY OF PROFESSIONAL TEACHING;EDUCATION; HEALTH AND WORK.

* Professora adjunta do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFPR, linhade pesquisa: história e historiografia da educação; educação, saúde e trabalho.

** Pedagoga pela UFPR.

86 revista brasileira de história da educação n° 8 jul./dez. 2004

O capitão do Porto de Paranaguá, ao ser inquirido pelo presidenteda província do Paraná, afirma ter havido “pouco escrúpulo na admis-são dos aprendizes” pois a maioria das crianças, arregimentadas na épo-ca, havia sido alistada com 6 ou 7 anos de idade, contrariando o dispos-to na lei. Salientava que estes rebentos ainda necessitavam de cuidadosmaternos. Se isto não bastasse, o ingresso se efetuara sem a realizaçãode exames médicos. O capitão arriscava uma justificativa: como houve-ra dificuldades para a companhia angariar alunos, burlaram as normasprevistas, mas não tinha dúvidas, estes infantes deveriam “dar baixa”,pois acarretavam muitos gastos para o Estado (Ofícios, v. 22, 1885).

Imaginemos as dificuldades encontradas em arregimentar-se meni-nos para a companhia, nos idos da década de 1880. Como o própriocapitão enfatiza em sua carta, as condições do quartel no qual funciona-va a Escola de Aprendizes Marinheiros eram precaríssimas. O prédioencontrava-se em ruínas e com sérios riscos de desabamento. Esses in-fantes cuja formação os levaria a alta missão que consistia em “prestarserviços à navegação, socorrendo vidas e fortunas entregues aos peri-gos das águas” (Ofícios, v. 22, 1885), estavam arriscados a morrer emterra firme, soterrados sob os escombros do teto que lhes dava guarida.

Hilárico, se não fosse trágico, o capitão ainda descrevia o estadolastimoso do porto, o qual nem lancha a vapor dispunha – estragada esem maquinista, somente contava com uma a vela e também com umpequeno escaler, carecendo reparos.

Ademais, havia as epidemias que assolavam a cidade semeandopânico entre os habitantes de Paranaguá. A febre amarela de 1878 fizerahistória e na companhia, 3 a 4 meninos adoeciam por dia com sintomasda doença. A enfermaria do quartel era inapropriada, “anti-higiênica emtodas as condições” e obrigou a remoção dos doentes para local maisarejado, uma enfermaria provisória na casa do comando, vazia naquelaaltura. “Nas quadras em que grassam aqui febres paludosas, sezões emuitas outras moléstias, os doentes espalham-se pelos alojamentos dospróprios menores, e dos inferiores, porém com enfermidades de caráterepidêmico isto não pode ter lugar” (Ofícios, v. 3, 1878).

Se mudava a conduta e até mesmo improvisava-se uma enfermariaem temporada de epidemia, o dia-a-dia das enfermidades fazia dos apren-

feios, sujos e malvados 87

dizes alvo certo das endemias reinantes. Ao que tudo indica, compartilharo alojamento das crianças e dos “inferiores” tornava-se regra quando doen-ças acometiam os marinheiros. A instituição também registrava mortes deaprendizes, dizimados por malária e outros bichos, o que freqüentementeaturdia a todos. Procedimentos desta ordem deveriam deixar pais e tuto-res “de cabelo em pé”, temerosos da convivência direta de seus pupiloscom adultos adoecidos. E, com certeza, tal agravante não passava desper-cebido quando se tratava de alistá-los na companhia.

Porém, para os arautos do disciplinamento social nos idos do séculoXIX, tais como delegados de polícia, juízes de órfãos, homens de ciên-cia, empregadores e tantos outros, normas de controle social se impu-nham sobre uma infância predisposta, como eram percebidos os infan-tes pobres, filhos de trabalhadores livres ou daqueles ainda escravizados,órfãos ou desamparados1.

Crianças despossuídas a conviver no “ambiente desfavorável dasruas” sob precárias condições de saúde e educação logo foram inseridasno diagnóstico estabelecido por Cesare Lombroso2: a “inclinação natu-ral”, a predisposição biológica para o crime. Nesta acepção, somente apositividade do trabalho parecia capaz de funcionar como antídoto, apon-tando saída regeneradora3. Logo, o aprendizado compulsório do ofíciodo mar apresentava boas possibilidades de “salvá-los”.

1. Crianças e adolescentes foram denominados pelos juristas de abandonados quandonão fossem identificados seus pais ou tutores. Porém, concomitantemente, cria-ram-se os conceitos de abandono material e moral, o que expandiu as possibilida-des de tratar crianças pobres como menores abandonados. Ver: Fernando Londoño,“A origem do conceito de menor”, História da criança no Brasil, organizado porMary Del Priore, 1991.

2. Responsável pela formulação do conceito de criminoso nato a partir de medidasrealizadas, Lombroso publica a obra L’uomo delinqüente, na qual explica a predis-posição natural para o crime existente em determinados indivíduos.

3. Nos inícios do processo industrial brasileiro, não foram poucas as crianças explo-radas no trabalho fabril e em oficinas que foram sendo abertas no decorrer dooitocentos. Para mais detalhes acerca do trabalho infantil, consultar: EsmeraldaBlanco Bolsonaro Moura, Trabalho feminino e condição social do menor em SãoPaulo (1890–1920), CEDHAL-USP, 1988, e “Crianças operárias na recém-industria-lizada São Paulo” em: Mary Del Priore, História das crianças no Brasil, 1991.

88 revista brasileira de história da educação n° 8 jul./dez. 2004

Se essas concepções não bastassem, a força de trabalho dentre nósaté a Abolição era constituída basicamente por escravos, consideradosincapazes “de se integrar na sociedade de classes e de se transformar emtrabalhador livre, ordeiro e disciplinado”, como alardeavam até mesmoos abolicionistas, que batalhavam pela vinda de trabalhadores imigran-tes (Lara, 1989).

Então arregimentar, mesmo que à força, desvalidos e órfãos para osarsenais militares e da marinha, tinha o objetivo de (con)formá-los parao trabalho ao mesmo tempo em que se comporiam contingentes de futu-ros marinheiros.

Alistamentos a ferro e fogo

A justificativa para os alistamentos forçados efetuados por delega-dos de polícia ou dirigidos por juízes de órfãos sempre foram os crité-rios embasados em “boa formação e melhores condições de vida” a se-rem desfrutadas por meninos despossuídos, ou seja, aqueles provenientesdas classes desfavorecidas.

Mas o que se via na companhia não apontava para os quesitos for-madores e muito menos para boas condições de vida.

Meninos doentes não dispunham de alimentação condizente e relató-rios médicos escancaravam a compleição franzina de muitos deles. O ca-pitão do porto encontrava-os com “fisionomia mórbida”. Ao chamar ummédico para examiná-los, decidiu “dar baixa a quatro menores julgadosincapazes dos serviços, necessitando outros um tratamento prolongado ecuidadoso, para que possam ser aproveitados no futuro”. O médico queefetuou a análise reconheceu a necessidade de uma alimentação diferen-ciada para as quais o capitão não dispunha de recursos.

Mas nem só de alimentação escassa, contágios ou infecções adoe-ciam os aprendizes. Também eram surpreendidos por enfermidades quan-do se sujeitavam à “ausência de fardamento”. Os meninos ficavam to-talmente nus no alojamento em dias de lavagem de roupas. Ao contarsomente com uma farda, aguardavam, literalmente despidos, a secagemde sua indumentária. Porém, o capitão emendava: “tudo isto já havia

feios, sujos e malvados 89

sido comunicado ao ajudante geral da Armada, sem que providênciasfossem tomadas” (Ofícios, v. 22, 1885).

O médico encarregado da inspeção de saúde descrevia “com pesar”o estado dos meninos. Aparentavam ter no máximo 12 anos e “não seencontram em sua fisionomia a vivacidade própria da idade; o olhar étriste, a cabeça baixa, os olhos escondidos nas órbitas, a tez pálida, oandar vagaroso, de certo que não são estes sinais de saúde forte e vigo-rosa”. Diz que geralmente são crianças abandonadas, enviadas à Com-panhia, por pessoas que se compadecem delas. Chegam “já abatidas efracas”, ali não encontrando condições para “o seu desenvolvimento, ecrescimento, acentuam-se seus sofrimentos. Em idade tenra precisamestas crianças de uma alimentação abundante, forte e sã para poderemdesenvolver-se, não havendo na companhia uma alimentação abundan-te, se bem que sã pois que apenas há uma refeição de carne e duas depão e chá” (Ofícios, v. 22, 1885).

Diz ainda que dos 11 que examinou, 4 apresentam “condições debaixa por moléstia, já bem adiantada e 7 por sua constituição fraca eanemia mais ou menos pronunciada”. Os problemas eram caquexia pa-lustre, opilação, anemia avançada e eczema generalizado. “Sem trata-mento rigoroso eles jamais teriam o desenvolvimento compatível com avida de marinheiros, para a qual se destinavam, acarretando no futuroprejuízos para o estado pois seriam sempre uns marinheiros fracos edoentios” (Ofícios, v. 22, 1885).

Machado de Assis (1990) não deixaria fora de sua ironia fina, osescândalos da alimentação experimentada pelos marinheiros da Arma-da. Segundo ele, se fôssemos comparar a alimentação ali degustada aum jogo de cartas, diríamos que nossos marinheiros rasos jogavam semdinheiro, por distração e satirizando escrevia tratar-se de um “[...] solo atentos, que é o que chamamos leite de pato. O regímen da Armada édeste último leite”4. Isto porque os marinheiros eram freqüentementeacometidos de beribéri, nos fins do século XIX.

4. A alusão ao regime da Armada dá a medida da escassa alimentação da qual ban-queteavam-se nossos marinheiros. Ver, Machado de Assis, Bons dias! 1990, p. 47.

90 revista brasileira de história da educação n° 8 jul./dez. 2004

Mas não tenha dúvidas, cara leitor, havia também o jogo a dinheiro,o que segundo Machado de Assis (1990) corresponderia ao leite de vaca,puro, abundante, exclusivo... com o qual poder-se-ia aludir ao cardápiosaboreado pelos oficiais.

O rol de compras de mantimentos para a Escola de Marinheiros deParanaguá, na qual definhavam muitos aprendizes, estava composto debacalhau da terra nova, azeite doce e vinagre de Lisboa, carne seca everde, canjica, café, farinha, feijão preto, açúcar branco, arroz, mantei-ga, pão, toucinho, mate em folha e sal (Ofícios, v. 9, 1855). Oficiaisdeveriam saciar-se com refeições diferenciadas daquelas servidas aosaprendizes, desfrutando de víveres mais seletos.

Não esqueçamos que oficiais da Marinha compunham a burocraciaimperial brasileira formada pós-independência e a Escola Naval, suces-sora da Real Academia de 1808, era uma opção para filhos de famíliasricas. Embora gratuita, o recrutamento era seletíssimo a começar peloscustos dos enxovais exigidos, inacessíveis às camadas desfavorecidas.Seguimos a tradição burocrática portuguesa, agravando-a já que ofi-ciais ingleses de origem nobre ocuparam altos postos na Marinha, após1822. Claro que praças recrutavam-se no seio das classes populares,entre desocupados, desprotegidos ou criminosos, “quase sempre pelaforça, ou laço, como se dizia na época” (Carvalho, 1996).

Aprendizes recrutavam-se da mesma maneira. E foi através delesque se almejou consolidar a força de trabalho necessária à organizaçãodo próprio quadro de marinheiros, especialmente após a independência,quando as ampliações nas várias armas se fizeram imprescindíveis. Afi-nal, cabia constituir o Estado Nacional (Cunha, 2000) e a defesa territo-rial. Arregimentados entre órfãos, ou filhos de famílias pobres, somenteconseguiam dar baixa se fossem comprovadamente ineficientes do pon-to de vista médico, podendo então onerar o Estado Imperial. Caso demeninos cuja faixa etária não lhes permitia sequer manusear o escalerexistente na companhia, fosse por sua tenra idade ou debilidade física, eainda aqueles portadores de deficiências físicas, como um menino queapresentava “um aleijão no braço esquerdo” (Ofícios, v. 11, 1877).

A história do adolescente José Gonçalves de Aguiar, de 17 anos,remetido pelo delegado de Antonina para assentar praça, em 1867, quan-

feios, sujos e malvados 91

do contava com 13 anos de idade, é exemplar para demonstrar como ainstituição arregimentava e colocava toda sorte de obstáculos para quemeninos sadios não deixassem a companhia. Revela ademais o descasodas autoridades quando se tratava de respeitar os direitos dos desfavore-cidos.

Ocorrera que o pai alegava que seu filho José fora ilegalmente recru-tado pelas autoridades e temia pela sua falta de saúde, na Companhia(Requerimentos, v. 1, 1870) . O garoto passou então pela inspeção médi-ca, seguindo procedimento usual quando havia algum pedido de dispen-sa de aprendiz, por parte de seus pais. O laudo emitido assegurava que eleera de constituição robusta e apresentava “aptidão para a vida do mar”.

O capitão do porto, de posse do laudo, prontamente escreveu aopresidente da província a sugerir que o adolescente, havendo preenchi-do os requisitos para ingresso na companhia, não deveria ser dispensa-do. Alistado, perfazia as seguintes condições: a) era brasileiro; b) tinhaentre 10 e 17 anos de idade; c) apresentava constituição robusta própriapara a vida do mar. Assim sendo, submetia sua decisão à aprovação dopresidente (Requerimentos, v. 1, 1870).

Venâncio José de Oliveira Lisboa, então presidente, após examinaro caso, conformado com o parecer médico e mesmo estando informadodas aptidões do garoto, lembrava o regulamento de 4 de janeiro de 1855,que regia a instituição, no qual rezava que somente órfãos e desvalidospoderiam ser remetidos pelas autoridades à companhia, logo, não lheparecia legal o recrutamento do qual tratavam (Ofícios, v. 8, 1871).

O 1o tenente comandante da Companhia de Aprendizes, inconfor-mado com a resolução presidencial, envia-lhe nova missiva no sentidode contestar sua decisão. Para isto, anexou a ela cópia de todas as despe-sas realizadas com a educação e estadia de José, durante os quatro anosde permanência em Paranaguá. Argumentava mais: o pai havia mostra-do seu amor muito tarde, não apresentando documentos que provassemter sido zeloso na educação de seu filho; o montante despendido peloestado com o adolescente perfazia o total de 1173$600 e a lei era “pordemais benigna”, impedindo que a companhia chegasse ao seu verda-deiro fim. Ademais, dizia ele, pais de adolescentes como José, e tantosoutros, não lhes podiam dar nem mesmo o pão de cada dia, quanto mais

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a educação precisa. Preferem “que seus filhos pereçam nas trevas e namiséria do que entregá-los ao estado para educá-los na honrosa carreirad’armas”. Ah, se a lei permitisse que filhos pudessem ser retirados deseus pais, as companhias estariam completas e “a Marinha de Guerra eMercante poderiam contar para o futuro com um pessoal moralizado, edignos cidadãos para o serviço da Pátria”5. Não satisfeito com suaargumentação, o tenente prosseguia. “Estou bem convencido que estaautoridade (delegado de polícia de Antonina) só procedeu com todocritério para adquiri-lo; não o arrebatou da casa paterna, onde segundoo pai estava se educando, porque então este reclamaria em tempo e sequeixaria da arbitrariedade; nada disto houve então, e só agora, isto édepois de quatro anos e três meses teve um acesso de cuidado paternal”(Ofícios, v. 11, 1871).

O “caso” José Aguiar escancara facetas dos processos de recruta-mento e dispensa de meninos e adolescentes, vigentes nas escolas deaprendizes. A começar pela ilegalidade, reconhecida pelo capitão doporto nos idos de 1880, em carta dirigida ao presidente da província eque circunstanciava muitas arregimentações. Se a lei estabelecia quesomente órfãos e desvalidos deveriam ser alistados nas escolas, o exem-plo de José indica que a força também fez parte do processo de arregi-mentação de meninos pobres, cujos pais teriam dificuldades em se fazervaler.

O fato de o adolescente6 ter sido enviado pela polícia para assentarpraça e não ter tido nenhum registro de falta regimental nos anos quepermaneceu na companhia é indício que ele não se inseria na categoriada contravenção e que possivelmente fora alistado sem conhecimentode seus familiares. Talvez nem o pai soubesse onde se encontrava o

5. Grifos nossos.6. Vale lembrar que no oitocentos, a puerícia estendia-se dos 7 aos 12 anos e a adoles-

cência daí aos 21, portanto os meninos arregimentados inseriam-se na categoria deinfantes, infância cuja descoberta operou-se no dizer de Philippe Ariès, no séculoXVI. Ver Mary Del Priore, “Papel em branco”, em Mary Del Priore (org.), Históriada criança no Brasil, São Paulo, Contexto, 1991, e Philippe Ariès, História socialda criança e da família, Rio de Janeiro, Zahar, 1978.

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filho e daí a demora em localizá-lo. José também não deveria ter entra-do “franzino” na escola, pois nada sugere que meninos com compleiçãofísica deficiente se recuperassem ali. E, ainda, os argumentos apresenta-dos pelo tenente não desabonam sua conduta ou indicam que este fosseum malfeitor, como vários foram rotulados quando enviados pela polí-cia naqueles anos.

José fizera parte do contumaz esforço da polícia em auxiliar as for-ças militares a congregar a ferro e a fogo meninos pobres para os seusarsenais, durante o longo período de duração da Guerra do Paraguai,quando então o contingente necessitou reforços (Sousa, 1996; Venâncio,1999).

E por que havia tanta dificuldade em arregimentar meninos para aCompanhia?

A correspondência de governo é rica em informações encetadas en-tre juízes de órfãos e delegados de polícia, tanto acusando o recebimen-to de circulares “ordenando que se empregue todos os esforços a fim deremeter, para serem alistados na Companhia de Aprendizes de Mari-nheiros estabelecida em Paranaguá, o maior número de crianças desva-lidas que forem encontradas” nos termos, quanto comunicando o enviode crianças órfãs àquela escola (Ofícios, v. 14, 1871). No entanto, onúmero de crianças recrutadas normalmente encontrava-se aquém donúmero de vagas existentes. “Continuam sem resultados as incessantesrecomendações dirigidas aos juízes de órfãos e autoridades policiais pararemeterem a esta companhia os órfãos ou menores desvalidos” (Provín-cia do Paraná, Relatório de governo, 1876). A queixa de Lamenha Linsera mais uma voz a compor o coro de seus antecessores. As manifesta-ções eram unânimes: os esforços despendidos não se concretizavam emaumento do número de meninos aprendizes, tão necessários à constitui-ção da força de trabalho dos arsenais.

O ofício de 30 de maio de 1875, encaminhado ao governo da pro-víncia, nos dá algumas pistas para entender o porquê do empenho dasautoridades para a consecução dos objetivos da Escola não prosperar:“Cabe-me ponderar a V. Excia que tenho notado muita aversão à vidamilitar nos habitantes deste termo; e que portanto só por meio de recru-tamento se poderão conseguir o fim desejado; isto mesmo já fiz sentir

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ao antecessor de V. Excia, quando recomendou-me que remetêssemospara o depósito de aprendizes” (Ofícios, v. 8, 1875).

O juiz nos diz que a população de seu município tem aversão à vidamilitar e refere-se à companhia como depósito de aprendizes. Ora, aescola de Paranaguá foi criada às vésperas da Guerra do Paraguai, ecertamente meninos recém-alistados devem ter sido mandados para oArsenal do Rio de Janeiro para servir como serviçais nos navios da es-quadra brasileira. Deles, vários devem ter perecido, suscitando aversãoda população à vida militar nos municípios dos quais provinham. Semaprendizado prévio, essas crianças sucumbiam mais facilmente duranteas batalhas travadas. Além do mais, alterou-se a legislação, durante oconflito, para possibilitar o envio de um maior número de meninos. Opresidente da província, Polidoro Cezar Burlamaque, em relatório envi-ado à Assembléia Legislativa do Paraná, diz que em virtude da “épocaanormal que atravessamos” 14 meninos que não contavam com 16 anospoderiam ser remetidos ao quartel general da Marinha (Província doParaná, Relatório de governo, 1867).

“O país carece de bons marinheiros, e homens de guerra afeitos aotrabalho e à vida do mar”, emendava o presidente, atribuindo a inexis-tência de navio como causa para os poucos engajamentos e, conseqüen-temente, para o não preenchimento das vagas em Paranaguá (Provínciado Paraná, Relatório de governo, 1867), endossando a necessidade daformação de quadros militares.

Sim, pois a Escola de Aprendizes Marinheiros não dispunha de umnavio-escola e um “simulado” navio só seria montado ali, bem maistarde (Ofício, v. 20, 1855). Os governantes atribuíam o constante déficitde meninos em relação às vagas existentes ao ensino meramente teóri-co, desprovido do “estudo de náutica aplicada” o que não constituía acausa principal.

As arregimentações compulsórias realizadas durante o conflito ar-mado deveriam estar bem marcadas na memória de todos, como tam-bém aquelas que se deram anteriormente na expectativa de constituirbatalhões que zelassem pela defesa do território pátrio. De qualquermaneira, “as péssimas condições dos serviços navais sempre dificulta-

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ram o recrutamento (na Marinha). O afastamento da família, a insalu-bridade a bordo, os rigores das leis, as chibatadas, os ferros nos pés, agolinha ao pescoço, as intempéries climáticas, tudo isso formava o qua-dro desumano que fazia da Marinha um purgatório” (Sousa, 1996).

Estas dificuldades enfrentadas pelos praças e “inferiores” tambémfaziam parte do cotidiano dos aprendizes. Se não havia navio-escola emParanaguá, os iniciados sabiam que navios os aguardavam assim quefossem enviados para a o batalhão de Imperiais Marinheiros, na Corte.E, mesmo o quartel no qual viviam, deixava muito a desejar nos quesi-tos insalubridade, castigos e intempéries climáticas.

Já em 1871, quando o salão destinado ao dormitório ficou pronto,faltando apenas o conserto das janelas, os meninos dormiam nas macas.No entanto, não poderiam adoecer, pois passariam a ocupar um peque-no quarto mal arejado no qual fariam as necessidades corporais, pois alatrina localizava-se fora do quartel e os enfermos não podiam se exporao tempo. No dito quarto havia mesa, cadeira, armário, roupas de camae do doente, utensílios de cozinha e, normalmente, de 7 a 8 doentes(Ofícios, v. 14, 1871). É bem verdade que havia a reivindicação de umaenfermaria, mas ainda sem sucesso. O menino Leandro Antônio, porexemplo, ao completar a idade da lei, não pôde seguir para o QuartelCentral de Imperiais Marinheiros, pelo seu mau estado de saúde, “poisque sofre há mais de um ano moléstias gerais e atualmente estão perdi-das todas as esperanças de seu restabelecimento”, segundo o relatóriomédico (Ofícios, v. 10, 1871).

As condições do quartel não eram das melhores e só fizeram piorarcom o passar do tempo. Lembremos, ademais, o relatório do capitão doporto ao presidente da província, na década de 1880.

As promessas pífias de “boa formação e melhores condições de vida”não seduziam nem meninos, nem pais ou tutores, embora houvessemaqueles que ainda os alistassem na companhia. Havia prêmios e gratifi-cações pagos aos genitores e responsáveis na tentativa de estimulá-los aapresentar seus filhos menores de idade. Assim, quando arregimentados,assinavam contrato no qual se estipulava o valor a ser recebido (Ofícios,v. 14, 1875). Porém, a documentação compulsada revela que alguns

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abriam mão destas importâncias em prol de seus filhos ou tutelados elogo valores da doação eram depositados em caderneta de poupança daCaixa Econômica (Ofícios, v. 7, 1879).

Ademais, ocorriam baixas não consentidas pelas autoridades porfuga dos meninos. Crianças evadiam-se, “seduzidas por seus pais”, comoaludiu o comandante da Companhia, quando Antônio Luís “ausentou-se do quartel” e deram-se todas as providências para sua pronta captura(Ofícios, v. 21, 1879); ou ainda quando meninos remetidos pela políciapara Paranaguá tratavam de desaparecer da instituição. Em muitas oca-siões, ao serem encontrados, os garotos eram presos e postos na solitá-ria (Ofícios, v. 5. 1886). Práticas exemplares como essas faziam partedo dia-a-dia dos aprendizes, porém não os desencorajavam a abandonara escola pois continuava a haver importante número de baixas por de-serção (Ofícios, v. 3, 1878)7.

A Escola de Aprendizes de Marinheiros não acalentava os sonhosde meninos e adolescentes na província do Paraná, à revelia dos esfor-ços e das arbitrariedades despendidas pelas autoridades.

Mas o que e como se ensinava os meninos aprendizes?

Ensinando e aprendendo as artes do mar

Os meninos que ingressavam na Companhia de Aprendizes Mari-nheiros de Paranaguá sujeitavam-se a um rol de atividades diárias dis-tribuídas em um calendário semanal. Em 1870, por exemplo, tinhamseus dias tomados por “estudos de primeiras letras” – que ocupava amaior carga horária, “escola de aparelhos”, “exercícios de natação” e“exercícios de caçadores” (Ofícios, v. 16, 1870). A educação, distinguidaem elementar e profissional, era empreendida, não sem grande esforçode ambas as partes: dos meninos e de seus mestres.

7. O ofício de 27/2/1878, dirigido ao presidente do Conselho Fiscal da Caixa Econô-mica, solicitava a liberação dos depósitos realizados em nome de Antônio AlvesVazario, Joaquim Luiz do Nascimento e Manoel Beira de Veiga, meninos desertoresem fins do ano de 1875 para 1876.

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Em alusão clara ao ensino elementar, o decreto de 1855, que regula-mentava todas as companhias de aprendizes, estabelecia que os meno-res aprenderiam “ler, escrever, contar, riscar mapas, e a doutrina cristã”e teriam por mestre o “capelão oficial” ou um “oficial marinheiro” de-tentor de habilitações necessárias. Em Paranaguá, o ensino elementartinha lugar “todos os dias úteis da semana, das 9 às 12h para os menoresalistados na escola”. Os livros adotados nas aulas, em 1887, eram: “Lei-tura e Gramática portuguesa Dr. Abílio Cesar Borges, última edição,manuscritos de Duarte Ventura, Geografia da infância pelo Dr. JoaquimM. de Lacerda, aritmética”, dentre outros (Província do Paraná, Relató-rio de governo, 1887).

Em 1867, o presidente da província declarou-se surpreso com o “tra-balho daqueles futuros marinheiros” e afirmou que se pais e tutores decrianças desvalidas tivessem conhecimento do que lá lhes era ensinadooptariam por entregá-las à marinha e não ao desamparo. Treze anos de-pois, os relatos contrariam o exposto. O capitão do porto escrevia que: aeducação primária e a profissional que a Lei estabeleceu para a escolanão poderiam ser objetivadas lá por falta de pessoal habilitado. O mes-tre da companhia e o professor de primeiras letras, na maioria dos casoseram quase todos analfabetos e o atual, dizia ele, “além de não ter ashabilitações precisas [...] embriaga-se, dando com esse procedimentoexemplo pernicioso aos menores”. Em função da falta de professoresestariam os menores “atrasadíssimos, poucos lêem e escrevem mal, nãoconhecem quase nada do ensino profissional [...], não conhecem exercí-cio algum quer de Infantaria ou Artilharia”, por conta da inexistência dearmamentos, já requisitados anteriormente. Todos os contratempos ar-rolados teriam sido comunicados aos encarregados competentes, masraras eram as soluções ordenadas (Ofícios, v. 22, 1885).

O ensino profissional, que se supõe deveria receber especial cuida-do, dado o fim a que se destinavam as companhias, não era, contudo,realizado a contento.

O já referido decreto contemplava também a Instrução Militar e aInstrução Náutica e o que deveria ser atingido ao levar-se a cabo o pro-posto em cada uma delas. A primeira consistia em “aprenderem a entrarem forma, perfilar volver à direita, à esquerda, marchar a passo ordinário

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e dobrado; até a escola de pelotão; o manejo das armas brancas, a nomen-clatura da palamenta, carreta e peças de artilharia, e o uso que tem cadaum desses instrumentos”. Na segunda, aprendiam “o mister relativo àsartes de marinheiro, como fazer pinhas; costuras; alças; nós; etc... coserpano, entalhar; etc... e finalmente; aparelhar e desaparelhar um navio”.

Porém, carta enviada ao presidente da província afirma que “nadase pode bem ensinar por falta de um pequeno navio, ao menos de umagavia, onde estes seriam convenientemente preparados”. Dizia ainda dadificuldade de se ensinar a coser e largar panos, os ferros, os cabos, semdispor de um navio escola. O mesmo acontecia com os exercícios deartilharia para os quais não contavam com uma peça sequer, a fim deexecutarem “os exercícios e bem se explicar a nomenclatura” de modoque sobre estes os meninos sabiam apenas “definições vagas” (Ofícios,v. 22, 1885).

Ora, uma questão imediatamente posta é como haveriam de execu-tar tais exercícios se experimentavam toda sorte de privações, já citadasanteriormente, a saber a inexistência de um navio para tais exercícios,ou até mesmo de armas para se aprender a nomear.

O capitão do porto informa que a companhia dispunha de um únicoescaler “pesado e em péssimo estado” no qual os meninos faziam osexercícios de remo semanalmente; os quais, segundo ele, eram “tão pro-veitosos para o desenvolvimento físico das crianças”, mas admitia nãoprolongar esses exercícios ou não exigir que fizessem pois demanda-vam “serviços superiores de suas forças” (Ofícios, v. 22, 1885).

Poder-se-ia supor que esta situação era pontual. Mas os registrosprovam o contrário. Em diferentes momentos da existência da compa-nhia houve problemas com a educação profissional ministrada aos me-nores, fossem de ordem técnica ou moralizante. Não restam dúvidas deque as técnicas eram as mais comprometidas. Da criação da escola atéonde acompanhamos as correspondências trocadas por seus represen-tantes, sempre descreveu-se a escassez de aparelhos para a execuçãodos exercícios ou a absoluta falta deles. Quando existiam, forte era aprobabilidade de serem inadequados à idade e força física dos peque-nos, que ao longo da trajetória acabaram por ser a maioria.

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Em 1885, as companhias são reformuladas e passam a ser denomi-nadas Escolas de Aprendizes Marinheiros. O decreto n. 9.371, de 14 defevereiro de 1885, dá nova organização à Companhia de AprendizesMarinheiros e dispõe no art. 3o acerca da finalidade de tais escolas: “edu-car e preparar marinheiros para os diversos serviços da Marinha Impe-rial”. O art. 15 trata do ensino e reitera as modalidades de educaçãopostas anteriormente. Para o ensino elementar, firmava: “1) leitura demanuscritos e impressos, 2) caligrafia, 3) rudimentos de Gramática Por-tuguesa, 4) doutrina Cristã, 5) princípios de desenho linear e confecçãode mapas regimentares, 6) noções elementares de geografia física, prin-cipalmente no que diz respeito ao litoral do Brasil, 7) práticas sobreoperações de números inteiros, frações ordinárias e decimais, conheci-mento prático e aplicação do sistema métrico (Leis imperiais, decreto n.9.371, 1885).

E para o ensino profissional, subdividido em sete itens cujo direcio-namento era a atividade que exerceriam, propunha os seguintes temas:

1) aparelho e nomenclatura completa de todas as peças da arquitetura do

navio; 2) nomenclatura das armas de fogo em geral; 3) nomenclatura e uso

dos reparos de artilharia; 4) exercícios de infantaria, começando pela escola

de soldado até a do pelotão; 5) exercícios de bordejar e remar em escaleres,

6) construção gráfica da rosa dos ventos, conhecimento dos rumos da agu-

lha, prática de sondagem, 7) em geral todos os conhecimentos práticos ne-

cessários afim de serem depois desenvolvidos no tirocínio da profissão pelo

Imperial Marinheiro [Leis imperiais, decreto n. 9.371, 1885].

Refeita a organização das companhias em todo o país, precisou-sede dois anos mais para que o capitão do porto comunicasse ter recebidoda Corte um protótipo de “navio composto de mastro, mastaréo, vergas,panos e o aparelho competente” (Ofícios, v. 20, 1885) para ser armadono terreno da escola. Antes disso, muitas foram as missivas acerca da“falta de um navio escola para os menores”. Após vinte e três anos dacriação da Companhia em Paranaguá, finalmente, os aprendizes teriamum “simulado” navio para aprender os ofícios do mar. Primeiramente,

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este deveria ser montado pelo pessoal da escola, o que demandava tra-balho de carpintaria e madeira e para tanto, mais uma vez, seria precisosolicitar verbas.

No ano de 1887, o presidente da província, Sr. Joaquim de AlmeidaFaria Sobrinho, apresenta em seu relatório um panorama da Escola deAprendizes. Sobre o ensino profissional, narra que só a partir de 15 dejulho daquele ano começaram a fazer exercício de armas e, portanto,ainda não obtivera resultados satisfatórios, mas conheciam o “exercíciode esgrima de baioneta, de infantaria, de pano de remar, conhecem ostrabalhos de marinheiro, rumo de agulha, etc.” O exercício de artilharianão teve lugar por não haver armas desta espécie na escola, mas ressaltaque já pedira à Corte. O escaler existente era pequeno e pesado demaispara os meninos, razão pela qual solicitava à Corte “um escaler de 10remos, correame para os exercícios, objeto para o simulacro, mesas ebancos próprios para a aula” (Província do Paraná, Relatório de gover-no, 1887).

Considerando-se as inumeráveis tentativas de arregimentação demeninos em todo o estado, fossem eles órfãos ou simplesmente “desva-lidos”, pode-se inferir que a ânsia por tê-los no interior da companhiacumpria, concomitantemente, dois papéis: o primeiro deles era angariarpossíveis futuros trabalhadores para os quadros da Marinha e o segun-do, disciplinar e manter a ordem da sociedade. Assim, os juízes de ór-fãos ou chefes de polícia a quem o presidente da província e o capitãodo porto remetiam clamores para o envio de menores e depois a vigilân-cia a que eram submetidos os meninos no interior do quartel, represen-tam “o olhar disciplinador” das autoridades diante da “figura do menordesprotegido – a fim de evitar que ‘fiquem entregues à miséria e aovício’ – e do menor delinqüente – procurando neles ‘incutir hábitos detrabalho e educar’ – justificando desta forma sua interferência na socie-dade” (Boni, 1987).

Logo contenção e disciplina rígida eram elementos primordiais aserem ensinados. Podiam ser notados, tanto na organização das ativida-des, quanto na sistematização do calendário semanal e inspeções a queestavam submetidos. “Naturalmente, nos Arsenais a vida era marcada

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por ritmo, disciplina e pedagogia militares”, afirma Marcílio (1998),imprescindíveis à nova sociedade do trabalho em configuração8.

Vislumbra-se, portanto, a construção da “sociedade civilizada” as-sociada ao disciplinamento rígido ensinada pelas companhias e na pro-fissão que ali deveriam aprender. A extrema importância dada ao traba-lho associa-se à idéia de progresso e “informa também a correlação quese estabelece entre menoridade e desrespeito às normas sociais, pois sãofreqüentes as referências, desde o século XIX, a menores vadios,ratoneiros, viciosos, desordeiros” no Paraná do período (Boni, 1987).

Se o Estado tomou para si a tarefa de educar meninos despossuídoscomo demonstram fartamente as fontes, não foi sem propósito definidoque o fez. A multiplicação das companhias ao longo da costa brasileirae também no Mato Grosso constitui um expediente para qualificar ho-mens para a prestação de trabalhos à Marinha de Guerra, posto que aprática denotou a “superioridade do marinheiro procedente da Compa-nhia de Aprendizes sobre o recrutado sem a mais elementar educação”(Prado Maia, 1975).

Com esta determinação, mataram-se dois coelhos com a mesmacajadada: assistiam-se crianças pobres e desamparadas, impingindo-lhesa moral do trabalho, ao mesmo tempo em que se formavam quadrospara a Marinha.

Porém, políticas de assistência social como esta, tão ao gosto dasautoridades públicas, não implicavam que a educação dos aprendizesdevesse ser ministrada de forma caritativa, por dádiva ou benesse. Qual-quer custo oneroso era lamentado. Baixas significavam perdas de in-vestimentos e por isso eram combatidas.

Neste contexto, a arregimentação forçada e a educação profissionalinapropriada davam-se as mãos, aliadas às precariedades sanitárias e

8. Segundo a autora, até 1840 as “Companhias de Aprendizes dos Arsenais” não dis-punham de regulamento próprio, o que dava margem a maus-tratos e exploração demenores. Contudo, uma observação do cotidiano da companhia paranaense permi-te afirmar que a criação de sucessivos regimentos não amorteceu suas penas diá-rias. Basta ver o calendário semanal a que estavam submetidos, os exercícios atre-lados à educação profissional e todas as dificuldades colocadas.

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alimentares enfrentadas por estes aprendizes no interior do quartel, poisa Companhia de Paranaguá funcionava anexa às dependências do quar-tel da Marinha.

É preciso lembrar, contudo, as diferenças entre o disposto pelo de-creto e o cotidiano da companhia, descrito nas correspondências con-sultadas.

Porém, se o ensino profissional jamais se efetivara a contento e oelementar que, em 1880, ocupava a maior parte do tempo estava em tãolastimoso estado, o hábito de trabalho e o disciplinamento da vida da-queles aos quais a escola conseguira reter estavam constituídos. A reor-ganização ocorrida em 1885 pretendia preparar os jovens para atenderaos quadros da Marinha e não mais assistir meninos abandonados ouexpostos. Acreditar no progresso, amar a ordem e o trabalho, eis as má-ximas apregoadas pelas Escolas que intentavam formar jovens “úteis asi e à nação”9.

As Companhias de Aprendizes Marinheiros cumpriam o papel dasinstituições de internamento do século XIX, cujo princípio assentava-sena regeneração, calcado em uma disciplina rigorosa. O trabalho físico eo aprendizado das artes do mar funcionavam em última instância comoelemento reabilitador. Educar reabilitando pelo trabalho crianças po-bres e abandonadas foi a lógica empregada em colônias agrícolas, esco-las industriais ou arsenais da Marinha. O que importava era o sistemadisciplinar no qual os infantes se viam inseridos, pois quartéis, oficinasou escolas poderiam funcionar não só como máquinas de ensinar, mastambém vigiar, hierarquizar, recompensar (Foucault, 1983).

9. O modelo de intervenção estatal no controle da criança encontra-se muito bemdiscutido por Sandra Carli em Niñez, pedagogia y política, 2003.

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LIVRO DE OFÍCIOS DO ANO 1878, v. 3.

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LIVRO DE OFÍCIOS DO ANO 1886, v. 5.

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Entre a história culturale a teoria literária

Rumo a uma história doscânones escolares no Brasil

Luiz Eduardo M. de Oliveira*

Foi com o intuito de localizar e discutir os momentos em que Chartier dialoga com os(ou se apropria dos) estudos literários, em alguns de seus textos e entrevistas, bem comode verificar o modo como o autor sugere uma linha de pesquisas que cruza algumascontribuições da teoria ou da história literária com a história cultural e a história daeducação, que o presente artigo foi escrito, buscando assim contribuir para uma propos-ta multidisciplinar de pesquisas que pretendam viabilizar a configuração de uma histó-ria dos cânones escolares no Brasil.HISTÓRIA CULTURAL; HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO; HISTÓRIA LITERÁRIA;CÂNONES ESCOLARES; TEORIA LITERÁRIA.

With the intention of situating and discussing the moments when Chartier deals with (orappropriates) the field of literary studies, in some of his texts and interviews, as well asverifying the way how he suggests a field of research which intersects some contributionsof literary theory or history with cultural history and history of education, this articlewas written, hoping that it can contribute to a multidisciplinary proposal which intendsto make a history of school canon possible in Brazil.CULTURAL HISTORY; HISTORY OF EDUCATION; LITERARY HISTORY; LITERARYTHEORY; SCHOOL CANON.

* Professor do Departamento de Letras da Universidade Federal de Sergipe (UFS),mestre em teoria literária pela Universidade Estadual de Campinas e doutorandoem história da educação na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

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1. Introdução

Desde o final da década de 1980, quando seus textos começaram acircular no meio acadêmico brasileiro em edições francesas, portu-guesas ou hispano-americanas, e sobretudo no decorrer da década se-guinte, quando passaram a ser editados e publicados no país, o nomede Roger Chartier tem sido associado à designação “história cultural”,ou “nova história cultural” (Hunt, 2001), termo que, além de apontarpara a “nova” postura, tanto política quanto editorial e acadêmica, as-sumida pela tradicional École des Hautes Études en Sciences Socialesde Paris, dirigida atualmente pelo autor, se instala numa linha multi-disciplinar de estudos e pesquisas que têm como objetos desde insti-tuições, tais como escola, imprensa e censura, até as práticas relacio-nadas à produção, difusão e apropriação dos textos nos seus maisvariados suportes.

Muito embora Chartier possa estar incluído no grupo da terceirageração da chamada “Escola dos Annales”, sendo portanto oriundo decerta tradição no campo da historiografia francesa, sua contribuição nãose restringe à história:

Mais paradoxal é a contribuição de Roger Chartier, para esse tipo de história

[de cunho antropológico], que é mais conhecido por seu trabalho conjunto

com Martin, Roche e outros, sobre a história do livro, [...]. Pode parecer

estranho descrever um especialista em história da alfabetização como antro-

pólogo histórico, e estou longe de estar seguro de que Chartier aceitaria esse

rótulo. Mesmo assim, a força impulsora de seu trabalho vai na mesma dire-

ção dos trabalhos recentes em antropologia cultural [Burke, 1997, p. 98].

No caso brasileiro, a recepção e apropriação de seus termos, catego-rias e métodos de abordagem não se deu apenas nos departamentos dehistória e antropologia, mas também em outros setores das ciências hu-manas, como a educação, a comunicação, a semiótica, a lingüística e osestudos literários, sendo muito recorrente o seu nome nas bibliografiasde programas, relatórios de pesquisa, dissertações, teses e publicaçõesdessas áreas. Tal fenômeno de aceitação quase consensual de seus tex-

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tos por vertentes disciplinares diversas, não só no ambiente acadêmicobrasileiro como no de outros países, parece não passar despercebidopelo autor, que em várias entrevistas concedidas a intelectuais estran-geiros ou brasileiros – em suas visitas freqüentes ao país –, se mostranão só consciente do caráter multidisciplinar do seu trabalho, mas tam-bém um erudito conhecedor de estudos e pesquisas dos diversos cam-pos pelos quais transita.

Foi com o intuito de localizar e discutir os momentos em que Chartierdialoga com os (ou se apropria dos) estudos literários, em alguns deseus textos e entrevistas, bem como de verificar o modo como o autorsugere uma linha de pesquisas que cruza algumas contribuições da teo-ria ou da história literária com a história cultural e a história da educa-ção, que o presente artigo foi escrito, buscando assim contribuir parauma proposta multidisciplinar de pesquisas que pretendam viabilizar aconfiguração de uma história dos cânones escolares no Brasil.

2. Chartier e a crítica literária

Um exemplo bastante significativo da maneira como Chartier pare-ce conceber a crítica literária pode ser representado pelas falas iniciaisde uma entrevista realizada por Noemi Goldman e Leonor Arfuch, numaocasião em que o autor visitava Buenos Aires, em setembro de 1994, aconvite do Instituto de História Argentina e Americana “Dr. EmílioRavignani” e do Departamento de História da Faculdade de Filosofia eLetras da Universidade de Buenos Aires.

Apresentado como um historiador francês especialista em “históriada educação, do livro e da leitura no Antigo Regime”, Chartier é solici-tado a falar do contexto do surgimento de seu interesse pelas práticas deprodução, circulação e leitura dos objetos impressos. Ao situar o iníciode sua trajetória no modelo “serial ou quantitativo” da historiografiacultural francesa da década de 1960, quando se envolve com os estudosdirigidos por Daniel Roche sobre história do livro na França do séculoXVIII, o autor destaca sua curiosidade, desde o princípio, “pelas obrasliterárias, pela crítica literária, pela história da literatura”, ressentindo-

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se, no entanto, da desvinculação, à época, dos “campos de investiga-ção”: “eleger a história era, de certo modo, abandonar o interesse peloespectador, pelo leitor, pelas obras literárias, senão seguir outro cami-nho no âmbito intelectual: o caminho da história cultural serial, quanti-tativa” (Chartier, 1994, p. 134).

Chartier afirma depois que “hoje em dia” – ele fala, como já foireferido, em 1994 – é possível criar o vínculo necessário entre o quechama de “crítica textual”, relacionada ao estudo das “obras maiores deum tempo”, e a história do livro e da leitura. É a partir de então que aentrevistadora Leonor Arfuch o força a tratar mais diretamente da “coin-cidência” entre os campos dos estudos literários e da história, numa pers-pectiva “semiótico-antropológica de cultura”, perguntando ainda quaisseriam os autores que marcam a mudança para esse tipo de articulação.

Respondendo que, no momento, “os debates intelectuais mais inte-ressantes atravessam o campo da crítica literária”, o autor passa a fazerum apanhado da situação desse campo nos Estados Unidos, onde, se-gundo ele, aquele tipo de abordagem multidisciplinar se expressa demaneira “mais pura”. Para Chartier, ao lado de uma tradição que se apre-senta como francesa, com referenciais a Barthes, Foucault, Lacan e àcrítica feminista, e que se caracteriza por uma perspectiva “lingüística,semiótica, estruturalista”, na qual não há lugar para as formas de produ-ção, transmissão e recepção de textos1, existem três tendências na dire-ção de uma re-historicização do objeto literário. A primeira é represen-tada pelo new historicism:

[...] que trabalha sobre os textos da Inglaterra shakespeareana e que intenta

vincular a obra de arte com os elementos, discursos e práticas que constituem o

mundo ordinário, as matrizes para a criação estética e os elementos que dão

sentido à obra de arte para o leitor e o espectador [Chartier, 1994, p. 135]2.

1. Segundo o autor, o tipo de crítica que se apresenta como francesa nos EstadosUnidos nunca foi, na França, um campo dominante, e sim marginal, pois lá domi-nava a tradição de “uma história literária muito clássica”.

2. A citação foi aqui traduzida por mim.

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Outro caminho apontado por Chartier é o do ponto de interrogaçãosobre o autor: os questionamentos a respeito do processo de constitui-ção da autoria e do copyright e suas implicações no regime de circula-ção e compreensão dos textos. Campo prolífico, que também se consti-tui numa maneira de historicizar o objeto literário, um caso nacionaldesse tipo de abordagem pode ser verificado no capítulo “Direitos eesquerdos autorais”, incluído no livro Formação da leitura no Brasil(1996), de Marisa Lajolo e Regina Zilberman, no qual as autoras fazemuma narrativa bem documentada sobre as relações entre Machado deAssis e Garnier, seu editor.

A terceira tendência é identificada pelas abordagens que têm suaatenção voltada para os lugares de produção, as formas de transmissão eas práticas de apropriação das obras. De acordo com o autor, tal tendên-cia se alia à tradição da bibliography, à americana ou à inglesa, assimcomo ao que chama de “a maneira dos Annales”.

Chartier arremata a questão afirmando que há espaços intelectuais –como no caso das três tendências em questão – nos quais as disciplinasjá não mais existem de forma tão forte quanto antes, isto é, se ainda sãocompartimentadas do ponto de vista acadêmico, pela própria organiza-ção das universidades em departamentos, do ponto de vista intelectual,há sempre uma mescla de tradições nacionais e disciplinares:

Este campo, que se define entre a crítica literária, a história do livro, quer

dizer, uma história de todas as formas de transmissão dos textos, e a história

da leitura entendida como história de uma prática, história de uma produção

de sentido, é um campo que abre um grande debate sobre a maneira de enten-

der as obras literárias, mas que não tem uma identidade disciplinar particu-

lar. A gente pode vir da história literária, da bibliografia, em seu sentido

amplo, ou da história cultural [Chartier, 1994, p. 135].

3. Chartier e a estética da recepção

O diferencial de Chartier em relação à história do livro de aborda-gem quantitativa produzida na década de 1960 se dá pelo movimento de

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sua atenção, que se desloca da enumeração dos livros – impressos oupossuídos – para a leitura, ou, mais amplamente, para os manuseios, asapropriações e práticas culturais em torno dos materiais impressos. Aênfase se volta, dessa forma, para a recepção dos textos, sejam quaisforem seus suportes materiais. Ora, qualquer um que tenha tido contatocom as pesquisas e publicações no campo dos estudos literários, nasúltimas décadas, no Brasil ou no exterior, sabe que essa atenção concen-trada no leitor ou receptor da obra é um dos pressupostos fundamentaisda chamada estética da recepção, de feição alemã, ou das mais recentesteorias do reader’s response norte-americanas.

Com efeito, a publicação de A história da literatura como provoca-ção à teoria literária (1994)3, de Hans Robert Jauss, trouxe o tema dahistoriografia de volta ao debate literário na década de 1970, estabelecen-do os pressupostos para a reescrita da história literária sob a perspectivada estética da recepção4. A historicidade do texto literário, para o teóricoalemão, só poderia ser detectada levando-se em conta o “horizonte deexpectativa” do leitor, que significa o conhecimento prévio em relação agênero, forma ou temática de obras já conhecidas. Seu valor estético, des-sa forma, dependeria da distância entre a experiência já vivenciada daleitura e a “mudança de horizonte” representada pela obra (Jauss, 1994).As teses do seu pequeno livro se tornaram emblemáticas da crise dosestudos literários no final dos anos de 1960, ainda envolvidos com umatradição imanentista, ou estruturalista, que desprezava eloqüentementetodas as questões relativas ao contexto da obra.

Chartier, em várias ocasiões, parece reconhecer o débito que seumodelo de história da leitura tem em relação às contribuições da estéti-ca da recepção, representada não só por Jauss, como também por W.Iser e S. Fish – autores que são igualmente citados em nota de rodapé noseu artigo “Do livro à leitura” (2001) –, mas nunca deixa de ressaltar

3. O livro nasceu de uma palestra, na abertura do semestre letivo de 1967 da Universidadede Constança, intitulada “O que é e com que fim se estuda história da literatura?”.

4. Sobre o advento da história da literatura, ver Roberto Acízelo de Souza, em For-mação da teoria da literatura (1987).

entre a história cultural e a teoria literária 111

suas limitações: “reconhecer como um trabalho tipográfico inscreve noimpresso a leitura que o editor-livreiro supõe para o seu público é, defato, reencontrar a inspiração da estética da recepção, mas deslocando eaumentando seu objeto” (Chartier, 2001, p. 99).

Para o autor, há dois problemas com a estética da recepção. O pri-meiro, fundamental, é que ela ignora os tão preciosos e significativosdispositivos tipográficos, que também concorrem para a construção dasignificação na recepção dos textos. Além disso, segundo o autor, sãoeles que possibilitam uma melhor compreensão do “comércio perpé-tuo” entre os textos clássicos, ou “imóveis”, e os leitores em mutação,pois traduzem, no impresso, as mudanças do horizonte de expectativado público, uma vez que podem propor significações outras além da-quelas pretendidas pelo autor:

Há aí uma grave lacuna para as épocas antigas, entre os séculos XVI e XVIII,

uma vez que a maioria dos textos impressos, literários ou não, não são novi-

dades, mas reedições propostas para horizontes de expectativa de leitores

muito distantes cronologicamente e, no caso das impressões de larga difu-

são, socialmente, das sinalizações e referências inscritas pelo autor em seu

texto [Chartier, 2001, p. 99].

O outro problema, segundo Chartier, é o fato de a estética da recep-ção hesitar entre duas perspectivas: uma que considera que os dispositi-vos textuais impõem ao leitor uma posição relativa à obra, “uma manei-ra de ler e compreender”, e outra que reconhece a pluralidade de leituraspossíveis de um mesmo texto, em função das características particula-res de cada leitor. Na primeira perspectiva, o horizonte de expectativa épensado como sendo unitário, uma “experiência partilhada”, e na se-gunda, as diferentes condições de apropriação do texto, que são sociais,repercutem fora do alcance de um enfoque concentrado sobre o leitor naobra5. Tal ambigüidade, para Chartier, seria reduzida recorrendo-se auma melhor análise dos dispositivos tipográficos:

5. Uma crítica semelhante da estética da recepção, porém mais atenta ao seu caráter“ideológico”, pode ser encontrada em Eagleton (1983).

112 revista brasileira de história da educação n° 8 jul./dez. 2004

Uma atenção dada aos dispositivos tipográficos permite, talvez, reduzir essa

ambigüidade, já que inscrevem no objeto tipográfico leituras socialmente

diferenciadas (ou, ao menos, as representações feitas pelos fabricantes de

impressos). É necessário, portanto, tentar sinalizar o social no objeto impres-

so, controlando sempre as hipóteses construídas a partir da análise das for-

mas através do que, algumas vezes, leitores populares contaram de sua ma-

neira de ler [Chartier, 2001, p. 100].

Em outros artigos e entrevistas, Chartier volta a tocar no tema, ex-pressando o modo como vê suas limitações6, mas em boa parte de suaobra notamos a apropriação que faz de certos termos ou categorias daestética da recepção, que sem dúvida o auxiliam em suas teorizaçõessobre as práticas de leitura, principalmente o conceito de “horizonte deexpectativa”, ou “mudança de horizonte”, que utiliza com certa freqüên-cia, conquanto tais conceitos já tenham sido acolhidos pelo “uso co-mum”, como diz o próprio Jauss, num artigo de 1987, publicado nojornal alemão Frankfurter Allgemeine, comentando a repercussão daexpressão “horizonte de expectativa”, já traduzida para dezessete lín-guas: “ao âmbito do modismo pertence o fato de o conceito ‘horizontede expectativa’ ter sido já acolhido pelo uso comum da língua (chegan-do até a reportagem futebolística: ‘o horizonte de expectativa dos torce-dores era grande’)” (Jauss, 1994, pp. 75-76).

4. História cultural, teoria literária e história daeducação

Uma ocasião igualmente ilustrativa das preocupações de Chartiercom os estudos literários é a série de entrevistas, ou de “jornadas deconversação”, intitulada Cultura escrita, literatura e história, editadapor Alberto Cue e publicada no México em 1999. As “conversações”,

6. Um outro exemplo pode ser representado pelo artigo “O mundo como representa-ção”, publicado originalmente na revista Annales em 1989 (Chartier, 1991, p. 182).

entre a história cultural e a teoria literária 113

divididas em cinco jornadas, foram travadas com Carlos Aguirre Anaya,Jesús Anaya Rosique, Daniel Goldin e Antonio Saborit.

Na terceira jornada, editada com o título “Literatura e Leitura”,Chartier mais uma vez discorre sobre seus conhecimentos no campoda teoria literária, dessa vez tratando, num tópico especial, das com-plexas relações entre o historiador e a literatura, momento em que temoportunidade de apontar não só o “retorno da história sobre si mesma”,isto é, a consciência de sua dimensão literária, de discurso – no que oautor reavalia, indiretamente, algumas questões postas pelo norte-americano Hayden White7, estabelecendo elementos para uma especi-ficidade dos estudos históricos –, mas também a controvertida questãoda literatura como objeto de investigação histórica, no que nos alertapara “não destruir a condição literária das obras literárias” (Chartier,2000, pp. 125-126).

Chartier exemplifica suas explicações com dois casos que, ao ladode Borges, estão sempre presentes no seu repertório de citações literá-rias: Molière e Shakespeare. É a partir desses autores que comenta amultiplicidade das formas de representação dos textos teatrais, salien-tando a necessidade da diferenciação de métodos e abordagens de acor-do com a forma de representação8. O entrevistado também comenta operigo do anacronismo lingüístico da crítica literária, valendo-se do newhistoricism de Greenblat para defender o conceito de “negociação”, emsubstituição a “reflexos etc.” (Chartier, 2000, pp. 129-130).

Mas é no tópico intitulado “Literatura e sociedade” que pela primeiravez notamos o modo como o autor se reconcilia com as chamadas corren-tes estruturalistas da crítica literária, fazendo-nos ver a sua importânciapara o conceito e definição dos cânones literários, assim como o papelpreponderante da escola no estabelecimento e fixação desses cânones.

Filiando o desconstrutivismo ao new criticism inglês e norte-ameri-cano, assim como à nouvelle critique francesa, o autor destaca o desca-so dessa perspectiva para com as condições materiais de produção e

7. Em “Teoria literária e escrita da história” (1994).8. No livro Do palco à página (2002), o autor trata mais detalhadamente da questão.

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recepção das obras, em vista de sua concentração nos mecanismos tex-tuais. No entanto, não deixa de observar a utilidade da idéia de “instabi-lidade de sentido” dos textos no processo de construção dos cânones,uma vez que é uma maneira convincente de explicar a permanência ouatualidade de certas obras consideradas clássicas, que pela sua flexibili-dade, ou peculiaridade de construção frasal, são ainda hoje lidas, e “rea-propriadas”, em detrimento de outras que se tornaram datadas.

Para ele, a escola seria uma instituição de suma importância em talprocesso, uma vez que reforça o estabelecimento e fixação de determi-nadas obras ou autores como sendo canônicos, através de manuais deleitura ou de livros didáticos de literatura. Assim, propõe um campofértil de investigação que intenta verificar os mecanismos através dosquais, em períodos ou épocas diferentes, determinadas obras ou autoresse mantiveram na condição de clássicos e outros não, nos manuais didá-ticos de leitura ou literatura. Para uma tal investigação, seria necessáriolevar em conta não só os dispositivos tipográficos, assim como os de-mais agentes externos, no processo de construção de significação dostextos, mas também seus agentes internos, ou seja, seus dispositivostextuais, através dos quais a obra pode ser relida e reinterpretada, e as-sim reapropriada, a despeito de sua distância temporal ou das intençõesdo seu autor ou editor:

Es una cuestión central que tal vez ayude a abrir este tipo de investigación en

torno a las condiciones sociohistóricas sin estabelecer un diálogo imediato

entre el texto inestable y el crítico deconstruccionista, cuando, naturalmente,

entre ambos existen todos los mecanismos, los agentes y las mediaciones de

que ya hemos hablado. Pero es tabién una manera de aceptar una visión que

evite un sociologismo reductor del proceso de construcción del canon, pues

dicha visión remite a la estructura interna de las obras y al funcionamento del

lenguaje, y no unicamente a los dispositivos externos como la escuela, la

crítica literaria, el mercado del libro, etc, que han operado para estabelecer

esta selección canónica [Chartier, 2000, p. 150].

Na conclusão do já bastante conhecido artigo “História das discipli-nas escolares: reflexões sobre um campo de pesquisa”, publicado origi-

entre a história cultural e a teoria literária 115

nalmente em 1988, André Chervel já havia tratado da questão, situan-do-a no plano dos efeitos da penetração das disciplinas escolares “nointerior do corpo social”, isto é, de sua intervenção no que chama de“história cultural da sociedade” (Chervel, 1990, p. 220). Para o autor,embora tenham como aspecto funcional a preparação para a aculturaçãodos alunos conforme certas finalidades, as disciplinas, quando conside-radas “em si mesmas”, tornam-se entidades culturais que transpõem osmuros da escola, penetrando na sociedade e muitas vezes exercendo“pressão” sobre a “cultura de seu tempo”:

É quase certo que a aprendizagem universitária ou escolar da línguaescrita, desde os manuais de versão do Primeiro Império até às práticasda redação e da dissertação literária surgidas sob a Terceira República,tenham deixado sobre o uso escrito do francês e sobre a própria línguauma marca durável, talvez mesmo indelével (Chervel, 1990, p. 221).

É a partir de então que Chervel passa a considerar o caso específicodo ensino de literatura, analisando “a interpenetração entre a culturaescolar e a atividade literária”. Em apenas um parágrafo, o autor colocaa importância do papel da escola, através de programas e compêndiosdidáticos, na construção do cânone literário de várias épocas:

Resta um último ponto, cuja importância, salvo algumas exceções, jamais

preocupou os historiadores da literatura: a interpenetração entre a cultura

escolar e a atividade literária. Por que Easther e Athalie são as únicas obras

dramáticas que permaneceram constantemente no programa das classes du-

rante todo o século XIX? É por que são de Racine, ou por que foram destina-

das a uma exploração escolar? É por acaso que a primeira grande epopéia

francesa, la Henriade, composta por um antigo aluno dos jesuítas para riva-

lizar com Virgílio, entrou desde o século XVIII nos programas escolares, e

fez, nos colégios, o essencial de sua carreira literária, até 1835? Esta obra

não remonta, antes, à história do ensino, mais do que à história da literatura?

[Chervel, 1990, p. 221]9.

9. As exceções referidas por Chervel são Henri Peyre, franco-americano que, aoinventariar os trabalhos indispensáveis para uma história da literatura, coloca em

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Algum tempo depois, tratando do ensino de humanidades, Chervel,em parceria com Marie-Madeleine Compère (1999, pp. 156-157), iriaassociar o processo de constituição de um cânone de autores franceses –na virada do século XVII para o XVIII, período em que, segundo osautores, o francês, como disciplina escolar, começa sua “escalada depoder” – à sobrevivência das “humanidades clássicas” nas escolas fran-cesas. Ao comentar o advento das “humanidades modernas”, objeto deintenso debate pedagógico no final do século XIX, afirmam que elasreivindicam o mesmo estatuto das clássicas, produzindo uma “culturageral” através do ensino das línguas e literaturas:

Contenta-se em substituir as línguas antigas pelas línguas vivas estrangeiras e

em oferecer aos alunos, no lugar de Homero, Demóstenes, Virgílio e Cícero,

as novas figuras tutelares de Shakespeare, Goëthe, Dante e Cervantes. Sobre

o modelo das línguas antigas, que funciona em dupla no ensino clássico, ten-

de-se igualmente a privilegiar um dispositivo em que duas línguas vivas, in-

glês e alemão, por exemplo, viriam juntas [Chervel & Compère, 1999, p. 166].

Em texto mais recente, e de divulgação dos trabalhos realizados noServiço de História da Educação do Instituto Nacional de Pesquisa Peda-gógica de Paris, órgão do qual Chervel é também pesquisador, Jean Hébrardconsidera em vários momentos o tema em questão, mapeando o “fortedesenvolvimento” da história das disciplinas escolares na França. Divi-dindo o “novo campo” em três direções: história das ciências, história daeducação e história cultural, o autor localiza na última vertente um setorprivilegiado de investigação: o que chama de “história dos cânones esco-lares”, “um meio proveitoso para abordar a difusão das práticas de leitura

primeiro lugar a “história dos estudos”, em L’Influence des littératures antiquessur la litterature Française moderne. État des travaux, de 1941, e o padre Françoisde Dainville, historiador dos colégios jesuítas, que em texto de 1976, intitulado“La litterature française du XVIIIº siècle dans l’énseignement secondaire emFrance au XIX siècle: le Manuel de Noël et La Place, 1804-1862”, afirma que“uma história literária séria deveria apoiar-se sobre uma história do ensino”(pp. 183; 223-224).

entre a história cultural e a teoria literária 117

da elite”10. Nessa mesma linha, são citados trabalhos sobre a “história dasmodalidades de explicação de textos” e sobre as técnicas retóricas e doslugares-comuns (Hébrard, 2000, pp. 37-38).

Ao comentar as leituras laicas da escola sob a Terceira República,Hébrard identifica três modelos de manuais de leitura: o “livro de leitu-ras” para o ensino católico, com lições de moral, higiene etc.; o livro derelatos edificantes e da vida cotidiana dos escolares, em prosa ou emverso, cujo grande exemplo é A volta da França por duas crianças,“best-seller absoluto” com três milhões de exemplares vendidos entre1877 e 1887; e os livros de leitura literária. Sobre este último, escreve oautor:

No entanto, um terceiro modelo surgiu na última década do século, quando

tentou aproximar a cultura primária à cultura do secundário. O livro de leitu-

ra, aliviado dos textos informativos (a aprender), enriqueceu-se de textos

literários (a entender). A referência partilhada não era a do “amor sagrado da

pátria”, a do patrimônio cultural, da língua “materna”, tal como forjada por

séculos de escrita [Hébrard, 2000, p. 63].

Aqui, segundo o autor, se encontraria o momento inicial do proces-so de inclusão da literatura nacional, articulada com o ensino de (e em)francês, nas escolas secundárias do país, assim como no ensino dasmeninas, pela via da leitura expressiva, ou em voz alta. A literatura,assim como a pátria, se tornava a religião da escola republicana, fazen-do nascer uma nova disciplina escolar: o francês, que ao lado dos ele-mentos da língua (ortografia e gramática), passava a abranger um cânonede textos-modelo em que forma e conteúdo jamais poderiam ser dis-sociados:

A literatura ofereceria então, às jovens gerações, registros múltiplos de iden-

tificação e de reflexão, refletiria todas as faces da história literária nacional,

10. Hébrard cita “Les auteurs français, latins et grecs au programme de l’enseignementsecondaire de 1800 à nos jours”, texto de Chervel de 1986, para justificar suaafirmação.

118 revista brasileira de história da educação n° 8 jul./dez. 2004

sem ultrapassar os limites que exige a laicidade. A ciência podia instruir as

inteligências, exercitar a razão e fazer acreditar no progresso, mas não podia

formar, ao mesmo tempo, a sensibilidade e a consciência moral [Hébrard,

2000, p. 70].

5. O caso brasileiro

No Brasil, o pioneiro incontestável no trato da relação entre literatu-ra e ensino – no seu caso, entre história literária e ensino da literatura –é Otto Maria Carpeaux, na “Introdução” à sua História da LiteraturaOcidental (1959-64). Para o autor, o interesse em organizar os fatosliterários do passado11 em função do ensino teria começado com MarcusFabius Quintilianus (c.35-95), num momento em que a cultura greco-latina, representada pelos antigos manuscritos, se via ameaçada peladestruição dos bárbaros (Carpeaux, 1959, p. 16).

Quintiliano havia inserido no Décimo Livro da sua Institutio Oratoria“uma apreciação sumária dos autores gregos e latinos, menos como re-sumo bibliográfico do que como esboço de uma ‘bibliografia mínima’do aluno de retórica”, iniciativa que acabou por fixar para a posteridadeo cânone definitivo da literatura clássica:

Até hoje [o autor fala em 1959], os programas de letras clássicas para as

nossas escolas secundárias organizam-se conforme os conselhos daquele pro-

11. Carpeaux não se preocupa em considerar a constituição histórica do conceito deliteratura, cuja noção, em sentido moderno, data, pelo menos na França, e segundoChervel e Compère, do século XVIII: “uma imensa reviravolta de significadosintervém nesse campo lexical, logo após a Idade Clássica. As letras, que designa-vam o conjunto do saber, incluindo também as ciências, têm de limitar seu sentido,por volta de 1720, às obras literárias. As belas-letras, que englobavam anterior-mente até a Filosofia, evoluem igualmente em torno de 1750, em uma direçãoanáloga. Quanto à literatura que, para Fontenelle (prefácio da História da Acade-mia das Ciências, 1699), ainda compreendia todas as produções do espírito, inclu-sive as matemáticas, fixa-se no uso moderno, no decorrer da segunda metade doséculo” (1999, p. 157).

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fessor romano; e nós outros, falando da trindade “Ésquilo, Sófocles e

Eurípedes”, ou do binômio “Virgílio e Horácio”, mal nos lembramos que a

bibliografia de Quintiliano nos rege como um código milenar e imutável

[Carpeaux, 1959, p. 16].

Da mesma forma, quando pensamos nas primeiras histórias da lite-ratura organizadas conforme o critério cronológico12, resultantes dos vá-rios projetos de afirmação da identidade nacional do século XIX, pode-mos associá-las ao processo de autonomia do ensino da literatura emrelação ao ensino de retórica, bem como à institucionalização do ensinodas línguas e literaturas nacionais (Oliveira, 1999).

Dentre as produções mais recentes, os primeiros passos nesse senti-do foram dados por alguns trabalhos de teoria e história literária, muitoembora estes ainda não apresentem vínculos ou diálogos – pelo menosde modo explícito – com a história cultural, tal como sugere Chartier, oumesmo com a história da educação de feição cultural, como a linha deestudos no campo da história das disciplinas escolares que se concentrana “história dos cânones escolares”, tal como propõe Chervel ou Hébrard.

Um exemplo desse tipo de iniciativa é O império da eloqüência, doprofessor Roberto Acízelo de Souza, excelente e pioneiro estudo quetraz não só um levantamento do ensino de retórica e poética no Brasildo século XIX, reproduzindo programas e capas de manuais, mas tam-bém uma análise dos livros e de seus autores/professores, bem como umcapítulo dedicado à “formação retórica e seus efeitos” na cultura e no“caráter nacional” brasileiro (Souza, 1999). Outro exemplo pode serrepresentado pela tese de doutorado de Márcia Razzini, defendida em2000 no Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp. Nela, a autorafaz um histórico do ensino de português e de literatura, recuperando

12. Para Carpeaux, os precursores teriam sido o inglês Thomas Warton, cuja History ofEnglish poetry from the close of the eleventh century to the commencement of theeighteenth century (1774-81) é a primeira obra que trata a história literária comohistória política, e o alemão Johann Gottfried Herder, cujas Idéias para a filosofiada humanidade (1784-91) sugerem a noção de uma história literária autônoma (pp.20-21).

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todos os programas de ensino e a carga horária de todas as disciplinasdo curso secundário. Apesar de não se deter exclusivamente nos chama-dos agentes externos do processo de produção e recepção do texto –muito embora incorpore em sua narrativa as reproduções das capas dasvárias edições com que trabalha – busca verificar a importância dasedições sucessivas da Antologia Nacional (1895), uma das compilaçõesliterárias mais usadas pelos brasileiros que passaram pela escola secun-dária, organizada por Fausto Barreto e Carlos de Laet, na consolidaçãodo cânone da literatura nacional13.

São trabalhos que, muito embora não correspondam exatamente aomodelo de abordagem sugerido por Chartier, têm a importância funda-mental de abrir direções possíveis de pesquisas que visam a harmonizaras contribuições da história cultural com alguns métodos oriundos dateoria literária, revelando-nos não só uma maneira nova de observar aspráticas relacionadas à difusão e recepção de textos, canônicos ou não,na escola, mas também uma perspectiva multidisciplinar de se trabalharcom história da educação, principalmente no que concerne à investiga-ção dos processos e práticas que envolvem a produção, difusão e recep-ção dos livros didáticos de leitura ou literatura, na escola e fora dela.

6. Conclusão

O envolvimento de Chartier com os estudos literários, ao que pare-ce, é muito mais intenso do que se costuma comentar, constituindo aque-les um tema de interesse do autor desde o início de sua trajetória intelec-tual, como ele mesmo fez questão de frisar na entrevista da revista

13. O título da tese é O espelho da nação: a antologia nacional e o ensino de portu-guês e de literatura (1838-1971). Operação semelhante, mas voltada para a litera-tura inglesa no Brasil, foi realizada em minha dissertação de mestrado, que temcomo título A historiografia brasileira da literatura inglesa: uma história do ensi-no de inglês no Brasil (1809-1951). Ambos os trabalhos foram orientados por MarisaLajolo e estão disponíveis no site do projeto Memória de Leitura, coordenado porMarisa Lajolo e Márcia Abreu (www.unicamp.br/iel/memoria).

entre a história cultural e a teoria literária 121

Entrepasados. É também patente a sua consciência do caráter multidis-ciplinar de qualquer abordagem que se paute pelos pressupostos da his-tória cultural, tal como a concebe.

Os diálogos travados entre a história cultural e a história da educa-ção deram vários resultados ao longo da década de 1990, sendo possíveltraçar um corpus de obras e autores que se dedicam ao amplo tema dacultura escolar (Viñao Frago, 1998; Julia, 2001), relacionado não só àhistória das disciplinas escolares, mas também ao currículo, à infância,às questões de gênero, à alfabetização, às relações entre a cultura oral eescrita, aos castigos e punições, à arquitetura escolar, dentre outros te-mas (Lopes & Galvão, 2001).

Já os vínculos entre a história cultural e os estudos literários, pelomenos no Brasil, são tímidos ainda, isso para não falar das tentativas deaproximação entre aqueles estudos e a história da educação de feiçãocultural. No entanto, os mais recentes textos de Chartier, inspirados, comoele mesmo afirma, pelo new historicism norte-americano, corrente decrítica literária que, no seu entender, re-historiciza o objeto literário, searticulam entre a história cultural e a história literária, concentrando-senos processos de “re-apropriação”, pelas companhias de teatro, de textosclássicos da dramaturgia francesa (Molière) e inglesa (Shakespeare), as-sim como nas complexas relações entre oralidade e escrita. Seus diálo-gos com determinadas teorias literárias, como a estética da recepção e odesconstrutivismo, ou pós-estruturalismo, nos mostra que, se por um ladoele pode rechaçar certos aspectos que considera limitadores em tais mo-delos de abordagem, por outro pode se apropriar de muitos de seus ele-mentos e conceitos, acessíveis e úteis para o tipo de estudo ou pesquisaque desenvolve ou sugere que sejam desenvolvidas.

Como observa o autor numa de suas entrevistas, há espaços intelec-tuais nos quais as disciplinas já não mais existem de forma tão fortequanto antes, precisando do auxílio de outros campos numa relação re-cíproca de trocas e empréstimos, para romper certas limitações e fo-mentar perspectivas inusitadas de velhos objetos. De fato. É precisohaver um maior diálogo entre setores tão compartimentados das ciên-cias humanas, principalmente quando se percebe que a tradicional con-

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figuração do saber acadêmico já não é suficiente para a compreensão dadifícil “teia simbólica tecida pelas sociedades humanas”14.

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entre a história cultural e a teoria literária 123

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Entre biografias eautobiografias pedagógicas

Os diários de infância*

Egle Becchi (Universidade de Pavia/Itália)

Tradução: Gizele de Souza (UFPR) eRevisão Técnica: Luiz Ernani Fritoli (UFPR)**

* Uma primeira versão deste ensaio, apareceu como capítulo intitulado “Diarid’infanzia: proposta per l’organizzazione di un archivio” em E. Becchi, A. Semeraro(a cura di) Archivi d’infanzia. Per una storiografia della prima età. Milano, LaNuova Italia, 2001a, pp. 289-310. Para a redação do presente artigo me vali tam-bém de um ensaio (no prelo), na revista Medicina e Storia, intitulado “Corpi infantilie nuove paternità: inizi della pediatria moderna”.

** Gizele de Souza, professora do setor de educação da Universidade Federal do Paraná.Luiz Ernani Fritoli, professor de língua e literatura italiana do Departamento deLetras Estrangeiras Modernas da UFPR.

Uma primeira versão deste ensaio aparece como capítulo intitulado “Diários de Infân-cia: proposta para a organização de um arquivo” em E. Becchi e A. Semeraro (orgs.),Arquivos de infância. Para uma historiografia da primeira infância (Milão, La NuovaItalia, 2001a, pp. 289-310). Para a redação do presente, utilizei ainda um outro um en-saio em processo de impressão na revista Medicina e Storia, intitulado “Corpos infantise novas paternidades: inícios da pediatria moderna”.BIOGRAFIA; AUTOBIOGRAFIA; INFÂNCIA; DIÁRIO.

A first version of this essay appears as a chapter with the title “Diari d’infanzia: propos-ta per l’organizzazione di un archivio”, in E. Becchi and A. Semeraro (eds.), Archivid’infanzia. Per una storiografia della prima età (Milano, La Nuova Italia, 2001a, pp.289-310). For the writing of this essay, I recurred also to an essay to be published onMedicina e Storia, under the title “Corpi infantili e nuove paternità: inizi della pediatriamoderna”.BIOGRAPHY; AUTOBIOGRAPHY; CHILDHOOD; DIARY.

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Um corpus de 78 diários de crianças, recolhidos até agora – a listaestá no apêndice1 introduz em um teatro de sujeitos que moram em lu-gares, realizam ações, convivem e usam instrumentos do cotidiano. Umasérie de cenários delineados en gros, ou detalhados nos mínimos parti-culares, abre-se agora, depois de séculos, ao leitor que assiste a umasérie de atos teatrais, onde crianças, mesmo as muito pequenas, cresceme são vistas, guiadas e descritas em seu crescimento, por adultos atentose desejosos de manter as memórias desses acontecimentos. O meninodo qual se escreve é sempre colocado em um espaço, geralmente orga-nizado a seu modo, e vive entre outros – meninos, pais, professores,terapeutas, empregados – que constituem um microcosmo, onde a or-dem social se essencializa com vistas do desenvolvimento que se querque ele siga. Pequenos príncipes (Louis XIII da França, menino e reimuito precoce, como o descreve em seu Journal o médico Heroard;Sophie, para cuja educação o ansioso pai, futuro soberano de Wurtemberg,pede conselhos a Rousseau) e nobres em potencial, cujo amadureci-mento e educação são descritos de modo minucioso e afetuoso (TeresaVerri, criada à la Rousseau e, também à maneira genebrina, os pequenosÓrleans como os descreve seu mentor Bernard de Bonnard) estão nocentro desses diários. Mas também crianças menos excepcionais social-mente – pequenos burgueses como os filhos de doutos iluminados ale-mães dos quais a literatura pedagógica alemã do final do século XVIIInos dá alguns exemplos (são Tiedemann, Winterfeld, Dillenius,Mauchart), e sobretudo criancinhas dos nossos tempos, para as quaismamães e papais escreveram crônicas, preencheram álbuns, tiraram,recolheram e organizaram fotos, fizeram filmagens (cito ao fim desteensaio) constituem a maior parte dessa galeria de retratos que aindadeve ser registrada, organizada, enriquecida, capital precioso para umahistória da infância, até aqui inexplorado e longe de ser completo2.

1. Neste ensaio, analisei de maneira detalhada os diários listados no Apêndice conti-dos na lista A. Sobre aqueles da lista B, contidos em pré-estampas, está já empreparação um segundo ensaio.

2. Uma primeira contribuição e estímulo a pesquisas mais precisas são os dois textosde L. Trisciuzzi, La scoperta dell’infanzia, Florença, Le Monnier, 1976, e Il mito

entre biografias e autobiografias pedagógicas 127

Uma pesquisa, portanto, que interessa os historiadores da primeirainfância, mas que desde agora propõe problemas de classificação, por-que o material recolhido não é homogêneo, pede critérios de leitura ar-ticulados a dúcteis e sobretudo suscita questões teóricas, narratológicase historiográficas.

1. Sujeitos e escrituras

Um primeiro movimento deve dar conta da locução diários de in-fância que aparece no título e com a qual entendo textos de adultos queescrevem sobre crianças seguindo um fio cronológico prevalentementeligado ao desenvolvimento da criança que constitui o objeto da escritu-ra. O genitivo de em “diários de infância” é portanto, objetivo, ou seja,indica que em tais obras se fala de infância, e não é uma criança que falade si, nem um adulto que fala da sua primeira infância. O sujeito narradoré quase sempre a pessoa grande, mas, com freqüência palavras – referi-das literalmente ou de modo indireto –, algumas vezes páginas escritas –diários, cartas, contos ou textos –, outras vezes rabiscos e desenhos dacriança3 são parte constituinte da obra, e nesses textos – não raro longos

dell’infanzia, Napoli, Liguori, 1990. Por minha conta, procurei comentar não ape-nas alguns diários já reeditados e introduzidos por Trisciuzzi (Tiedemann, Taine,Ferri), mas de descobrir e ler outros, que indiquei na lista constante do Apêndice.Aventurei-me também nas primeiras considerações do conjunto, pelo qual remetoaos meus ensaios “Immagini di bambini e bambine nella primissima età: note peruna Storia” em Infanzia, pp. 1-7, setembro 1997. “Diari d’infanzia” em L. RestucciaScritta (a cura di), Il presente ricordato. Bambini, identità memoria nei servizi perl’infanzia e nella famiglia, Milão, Angili, 1998, pp. 80-89; “Storie di bambini ostorie d’infanzia?”, em A. Semeraro (a cura di), Due secoli di educazione in Italia(XIX-XX), Scandicci, La Nuova Italia, 1998, pp. 3-19; “Scrivere di bambini consenso pedagogico”, em Encyclopaideia, 10 julho-dezembro 2001, pp. 41-54.

3. É esse o caso do Journal de Héroard, que insere no seu diário muitas folhas comrabiscos, desenhos, depois frases escritas do pequeno Delfim e alguns diários daavó de Anna e Claudio, nos quais estão presentes também desenhos e páginas es-critas dos netinhos. O último e artisticamente bom exemplo é o diário de LeonePentich, ilustrado com desenhos do próprio Leone quando adolescente e jovem.

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e de qualquer modo freqüentes – o récit resulta construído pela própriacriança. Muitas vezes o pronome é um nós dual – do sujeito que escrevee do sujeito que constitui objeto da escritura – mas que ao mesmo tempodiz – e às vezes até escreve de si (um exemplo é o de Hugo Frank, quemantém, ele mesmo, um diário e os Tagebuecher de viagem). Pode-seportanto falar de textos mistos de biografia e de textos de diários deinfância – e aqui o de tem valor subjetivo.

Uma outra dimensão freqüente é que o adulto que escreve e a crian-ça da qual se escreve vivem em uma estreita comunhão de lugares esituações, e que o “grande” tem uma sua competência – de tipo social,pedagógico, terapêutico – em relação à criança; é um pai, um preceptor,um médico ou todas essas coisas juntas. O não adulto, portanto, se ins-creve em um projeto da pessoa madura que possui sobre ele não apenasum poder que lhe é conferido oficialmente ou em modo privado, masque de qualquer modo autentica o seu fazer – além do seu dizer da crian-ça – justamente escrevendo sobre estes.

Ainda: a ordem do tempo é complexa. Mesmo se em alguns diárioso autor constrói o seu texto quando os eventos já ocorreram há algumtempo (como fizeram Darwin e Frontali) e se vale de anotações feitasem momentos contemporâneos, mas muitos anos antes que as coisasaconteçam, freqüentemente ele os anota em tempo real e às vezes até osprevê, mesmo se fala detalhadamente ex post facto. Além disso, o tem-po não é o mesmo de uma crônica, mas sim de etapas de uma vida quese desenrola diante dos olhos de um observador que a protocola, massobretudo a seleciona segundo esquemas que são decididos a priori. Defato, trata-se de um tempo que o adulto não só cadencia segundo princí-pios que ele privilegia – ligado a ideologias pessoais e culturais – masque respondem – frequentemente em modo não declarado, mas não porisso menos forte – a situações existenciais do adulto que escreve: umcaso extremo é, mais uma vez, aquele de Hermann Franck, cujo diáriose conclui com a morte do filho, provável vítima de um ato de violênciado próprio pai, que imediatamente se suicida.

Sobre esses testemunhos gráficos da mão infantil remeto ao meu artigo “Storie condisegni” em Cadmo, VIII n. 24, pp. 83-90, dezembro 2000.

entre biografias e autobiografias pedagógicas 129

Dessas dimensões de fundo são um vivaz corolário outros aspectosque aqui me limito a enumerar esquematicamente e dos quais aos pou-cos tentarei indicar os exemplos mais significativos.

Freqüentemente, quem escreve dirige-se à criança de forma epistolar(é o caso de Verri em relação à sua pequena Teresa, e de Hermann Franckque se dirige ao filho chamando-o Meu caro Hugo) ou, de qualquer for-ma, convidando-o no perímetro e nas intenções da narração. Esse envol-vimento que provavelmente é atribuível também à tradição epistolar queconstitui, a meu ver, uma das matrizes culturais desse tipo de texto, res-ponde também a intenções pedagógicas bastante freqüentes, motivo peloqual os diários de infância são também documentos educativos para ouso da criança que é o protagonista, que deles deverá fazer uso ao longoda infância e quando virar adulto, para completar a sua educação e/ouformar, por sua vez a filhos. Não basta: a criança pode também servir-sedesses diários como modelos para o exercício de escritura autobiográficapara os quais, no início de 1800, foi intensamente treinado4.

Para além desse feixe de caracteres compartilhados, a uniformidadede tais textos se rompe e, mesmo sendo possíveis alguns agrupamentos,não se pode falar de todos com o mesmo título.

Antes de mais nada, eles variam em relação aos sujeitos falantes.Freqüentemente se trata de pais, juntos mamãe e papai (William e ClaraStern, os Scupin, os Frontali, mamãe e papai de Hanna Arendt) onde,porém, não há sempre paridade, no sentido que um dos pais – especial-mente a mãe – é aquele que recolhe e evoca o material, mas quem oorganiza é o pai, o qual aparece no frontispício como único autor. Ou-tras vezes é o pai sozinho (Wurtemberg, Pestalozzi, Verri, Tiedemann,Dillenius, Wirtenfeld, Mauchart, Franck, Schleicher, Darwin, Tommaseo,Ferri, Taine, Preyer, Rossi, il padre del piccolo Hans, Augusta, Frontali,Lichtner) que escreve o texto. No meu corpus a mãe é menos freqüente-

4. Vale para todos um pequeno volume sobre diários, editados em 1813, Anônimo,Ueber Tagebuecher zur befoerderung der Kenntnis und bildung des Herzens undVerstandes. Fuer die Jugend. Mit auserlesenen Beyspielen und Lehren beruehmterMaenner. Muenchen, Lentner, 1813, que tinha intenção de funcionar como guia àescritura de um diário (Tagebuch) por parte de crianças e adolescentes.

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mente a autora (Robert Stevenson, Alik, Ursula, Bubi Scupin nel IIIdiario, Formiggini, Robertson, Pentich, Fabrice, Silvia, Viola, Mirta);uma vez é uma tia ou tia-avó (Washburn Shinn), outras vezes um tio(Egger), um avô (Giorgia), uma avó (Anna e Claudio). Em alguns casos –trata-se de inéditos – não é possível distinguir se são os pais ou parentesque preenchem diários pré-estampados5. Às vezes o autor é um estranhoque tem uma relação longa e estreita com a criança: médicos (Héroard),psicoterapeutas (Freud, no qual o analista é também pai da criança; A.Freud, Klein, Winnicott) preceptores (Bonnard). Em um caso (Eva) tra-ta-se de um hóspede; em outro, de um estranho do qual não se sabe querelação tenha com Ruth, a menina da qual se escreve.

Uma outra característica bastante variada é a idade da criança daqual se fala. Geralmente se trata de bebês na primeira infância e o diáriosilencia assim que estes tenham alcançado uma fase de sua evolução naqual um certo desenvolvimento ocorreu: são autônomos na alimentaçãoe no andar (Viola, Mirta), vão à creche ou à escola (Enzo, Silvia, Fabrice),aprenderam a falar (Taine, W. e C. Stern, as meninas Frontali, MicolLichtner), completaram um certo caminho na maturação das habilida-des psíquicas de base (Tiedemann, Dillenius, Wirtenfeld, Mauchart, Ferri,Preyer, Rossi), exprimem as suas emoções (Darwin); já são adultos eautônomos (Augusto, Pentich), ou seja, alcançaram uma idade na qualpodem assumir eles mesmos a tarefa de dizer e até de escrever sobre si.Mas a conclusão deriva outras vezes de fatos contingentes, e às vezesdramáticos: o Journal di Heroard se conclui em 1628, quando morreseu autor. Em dois casos (Franck e Pentich) o diário pára com a mortedo sujeito – não mais uma criança – da qual se narrou.

O incipit é muitas vezes o do nascimento, mesmo que apenas emalguns casos (Louis XIII, Teresa Verri, o filho di Tiedemann, Lottchen,Augusta, Anna, Fabrice, Viola, Mirta, Silvia) se fale do neonato emtermos detalhados e sigam-se-lhe as primeiríssimas etapas evolutivas,até reproduzir – em alguns dos exemplos da lista B do Apêndice –

5. “pré-estampado” – constitui-se em um tipo de diário que já vem impresso mas comespaços definidos para serem preenchidos.

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alguns fotogramas da ecografia durante a gravidez. Em alguns casos,o início é um evento forte que não coincide com o nascimento biológi-co (Hugo Franck que perde a mãe, a Formiggini Santamaría que adotaseu menino). Algumas vezes o trecho de vida infantil do qual se fala émais claramente delimitado, caso em que o autor, é também um cien-tista e está interessado em algumas dimensões comportamentais dodesenvolvimento da criança e as segue por um tempo definido(Tiedemann, Wirtenfeld, Dillenius, Mauchart, Schleicher, Taine, Polloke W. Stern pela linguagem, Darwin pelas emoções, Ferri pelo senti-mento moral e estético, Frontali e Lichtner pela linguagem, Zillig pelodesenvolvimento intelectual em idade escolar, Boltanski por algunsgestos).

Início e conclusão do diário também são determinados por seu obje-tivo: se se trata de um pai, o diário tem, sobretudo, intenções de docu-mentar uma ligação afetiva e pedagógica que se constrói no tempo etem um andamento mais contínuo; se esse pai é também um cientista(Tiedemann, Wirtenfeld, Dillenius, Mauchart, Schleicher, Darwin, Taine,Ferri, W. e C. Stern), o diário toma uma forma diferente, trata do perío-do no qual determinadas manifestações comportamentais acontecem ese tornam protocoláveis.

Em alguns casos a narração se interrompe: é este o caso de muitosdos diários que não foram feitos para serem publicados e que preten-diam ser uma espécie de livro de anotações para escrever coisasemotivamente interessantes. Mas há também alguns fatos menos (nocaso de Anna e Cláudio, os dois diários param quando os dois meninos,junto dos pais, mudam de casa, e a avó, que escrevia, não os tem maisconstantemente sob observação) ou mais dramáticos que explicam ainterrupção: a morte do autor e/ou do sujeito do qual se fala (Héroard eFranck).

Existem também diários múltiplos, de estrutura em forma de cacho:os diários de Anna e de Cláudio são acompanhados por um da avó – nãocitado no Apêndice –, do qual o mais amplo segue por uma década odesenvolvimento da netinha, um outro o do netinho, no qual são fre-qüentemente referidos momentos da vida da menina; o terceiro – con-temporâneo – é uma autobiografia da avó, autora dos diários dos neti-

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nhos, na qual são freqüentes as referências às duas crianças. Tommasoescreve um diário de fantasia no qual conta sobre um bom menino,Benedetto, e sucessivamente mantém um breve diário, interrompido enão publicado por ele, sobre a pequena filha Caterina. Os Scupin dãomuitas versões de seus diários. Frontali prepara alguns ensaios científi-cos – dos quais um é editado em 1955 – anotando e organizando obser-vações sobre a linguagem das filhas, que são escritos muitos anos antesde sua utilização erudita.

Muitas meninas são personagens desses diários: Amalia Louise,Frederike, Lottchen, Teresa, Betty, Elena, Hilde e Eva Stern, as duasRuth, “A Menina Diabo” descrita por Anna Freud, Ursula, Augusta, Jean,Anna, Micol, Emilia, Piggle, Viola, Mirta, Giorgia são as pequenas pro-tagonistas desses relatos. Schleicher fala da filhinha Emma ex aequocom os irmãos Erhart e Ernest. No caso de Darwin, uma irmãzinha apa-rece como pano de fundo, figura de comparação e de contraste com omenininho do qual se fala principalmente6; a avó fala de Anna e Claudiomas os maiores detalhes estão nas páginas dedicadas à menina.

Para dar maior vivacidade e proximidade à vida infantil da qual seconta o desenvolvimento, não são poucos os diários que possuem dese-nhos feitos pelo autor (Verri, Franck, Freud), ou até mesmo feitos poruma ou mais pessoas muito próximas à criança (Pentich); alguns repro-duzem rabiscos e desenhos produzidos pela própria criança (Heroard,Pentich, Anna, Cláudio, Viola, Mirta), transcrições fiéis do que a crian-ça disse (Héroard, Pestalozzi, Tiedemann, Franck, Darwin, Taine, Ferri,Stern, Freud, Winnicott, Klein, Formiggini Santamaria, Clara, Laura,Anna, Cláudio) e escreveu (Héroard, Franck, Anna e Cláudio), passa-gens que enriquecem a página e tornam mais imediata a presença daprópria criança. Nos diários de Anna e Cláudio estão colados algunsrecortes de jornal com personagens da época, para tornar mais tangívele vivaz o contexto no qual os fatos acontecem. Em um caso (Boltanski),

6. Provavelmente, trata-se da irmãzinha Annie, que viveu de 1841 a 1851, de quem opai escreve um breve perfil post mortem. Cf. R. Keynes, Darwin, his daughter &human development, New York, Riverhead Books, 2001, pp. 214-217.

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o diário é relativo a um fragmento muito pequeno da vida de um menino(do qual não se diz o nome nem se vê a face), a poucos mas intensosminutos de seus “fazeres” específicos (subir em uma árvore, ler um jor-nal, jogar, atravessar uma rua, lavar as mãos) que são apresentados emuma seqüência de fotografias. O diário de Augusta é acompanhado porvários álbuns de fotografia com breves legendas e fotos instantâneasdão mais vida aos diários de tipo “pré-estampado”.

Problemas narratológicos se aglomeram durante a consulta do corpus.Uma primeira questão é por quais aspectos esses diários se distinguemdas autobiografias. Defrontamo-nos, de fato, com um narrador que con-ta um acontecimento em primeira pessoa, mas o protagonista não é onarrador, e sim sempre o objeto da narração, a criança. Contudo, anali-sando bem, trata-se de uma autobiografia sui generis porque a mudançada tônica narrativa do si mesmo de quem escreve ao sujeito do qual seescreve serve para dar autoridade ao narrador, a legitimar o seu relato, jáque apenas ele que tem certas ligações – de parentesco, de magistério,de terapia, de poder social, enfim – com o objeto de seu escrever que éautorizado a dizer dele, e a tornar-se, com propriedade, o autor legítimodo diário. Escrevendo de um outro que o legitima, ele pode escrever eexercitar a sua arte de autor, tem aqui o juízo prévio do quanto podedizer – de si e dos outros. Não basta; nesses diários a pessoa que narraestá sempre presente, mesmo que em doses diferentes, fala de si, fala deseus sentimentos em relação à criança da qual escreve, é co-protagonis-ta do texto que, por isso, pode ser chamado também de autobiografia.Contudo, deve-se insistir, o récit autobiográfico não é exclusivo; o au-tor não fala somente de si, do seu estar no centro de um acontecimento,mas seleciona, organiza, segue os tempos, os principais eventos, as ten-dências e tensões do ponto de vista de um outro.

Questões relativas à forma se entrelaçam a interrogativas de tipomais estritamente histórico e historiográfico. Nos diários que tive opor-tunidade de ler não só e não tanto se acaba sabendo do menino do qualse fala – do seu crescer, da sua índole, do seu faber e do seu dizer – mastambém daquilo que está em torno dele, daquilo que fazem aqueles queconvivem com ele, de tudo quanto constitui o conjunto das circunstân-cias materiais, além das humanas, dentro das quais se realiza o seu de-

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senvolvimento. Nessa altura, a história dessas infâncias singulares seenche de amas, governantas, outras crianças, empregadas, pais que apa-recem juntos ou sozinhos, de pedaços de vida adulta ao lado da vida dacriança, em lugares abertos – jardins e pátios, viagens, teatros, celebra-ções e solenidades, – e fechados – o quarto da criança ou o seu viver emlugares comuns a grandes e pequenos –, de brinquedos, livros, coisas deescola. São roupas e comidas, ritmos de sono e de vigília, de estudo e debrincadeiras, são estilos disciplinares, prêmios e punições, palavras egestos que os outros dirigem a ele, e que todos fazem entrar nesse mun-do nada privado do qual outros documentos dizem pouco ou nada, aju-dam a repensar universos infantis de outro modo opacos. Mas, maisuma vez, todos esses balanços se exprimem segundo seleções e opçõesdaquele que escreve, que não narra tudo ou de tudo, que muito diz mastambém muito cala, e que aparece às vezes no relato de forma mais oumenos evidente, das notas à margem de um registre tal qual o de Héroardque comenta na zona branca das páginas os eventos e sobretudo as açõese o dizer de seu pequeno Delfim, aos explícitos comentários de Pestalozzi,de Franck, da Formiggini, do pai do pequeno Hans, da avó de Anna eCláudio, sobre os próprios sentimentos.

Todo um trabalho a fazer – e não será fácil – é o de individualizar asorigens – diferentes por tempo e contexto e portanto heterogêneas –deste tipo de texto que parecem derivar e ter fortes afinidades com ogênero epistolar, diário da saúde, livros de família, autobiografias pie-dosas, journaux intimes, crônicas, agendas. Dentro de qual grupo literá-rio se coloca cada um desses autores uma vez que destine o seu texto,por meio do impresso, a um público? O que motivou um autor asociabilizar em forma publicada – ou não fazê-lo – um escrito dessetipo? Trata-se de interrogações que aumentam uma vez que se queiraenquadrar cada um desses escritos em um clima social e ideológico, emque uma determinada representação de criança é peculiar e acerca daqual o texto em questão resulta em uma contribuição ou um desvio.

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2. Diários de fantasia

Histórias geralmente autênticas, esses diários que relatam sujeitos efatos reais; mas também diários de fantasia, narrações de uma criançaque nunca existiu, quase romances que possuem porém uma contínuanota de verossimilhança, são cobertos de palavras prováveis do peque-no do qual se diz, inseridos em paisagens naturais e humanas que osligam ao mundo real. Trata-se de textos de exortação a um bem fazerpedagógico, do qual oferecem um paradigma plausível, não só pela ges-tão educativa, mas também pelo modo em que é observado e lido odestinatário do intervento, que quanto mais novo, mais precisa de plau-sibilidade e verossimilhança.

Se o Emílio rousseauniano não se apresenta legitimamente comoum diário (mas o que é aos olhos de seu autor? Um tratado, uma Mémoire,um conjunto de frases sem sistematicidade7 e, por que não?, tambémum Journal autenticado como tal pela sua ambigüidade narratológica),este inaugura um novo modelo pedagógico fundado na observação dia-crônica e incessante da natureza da criança. Natureza que é histórica,que cresce, que deve ser vista sem preconceitos no seu fieri, que deveser, portanto, anotada em seus movimentos, relatada em seus progres-sos para fundar o intervento correto. O Emílio dá origem não somente anovas aventuras formativas, mas também a diários que dele falam eprospectam belezas e dificuldades. O príncipe do Wurtemberg, e, maistarde, Bernard de Bonnard, se esforçam para pôr em prática a mensagemdo Emílio, escrevendo não apenas como intervêm educativamente, mastambém como se desenvolve a vida e o crescimento de seus pupilos.

Quase contemporâneo ao diário de Bonnard, um diário de fantasia –cuja autora é Madame de Genlis que sobre os enfants d’Orleans tinhauma autoridade pedagógica – tem grande êxito no fim de 1700 na Fran-ça, graças ao livro que o acolhe. Em um romance para adolescentes,Adèle et Théodore, publicado em 1782, a trama se desenvolve através

7. J.J. Rousseau, “Emile ou de l’ education”, em J.J. Rousseau, Ouvres complètes,Paris, Gallimard, vol. IV, 1969, p. 241.

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de uma farta correspondência entre os personagens, dentre os quais estátambém o Conde de Roseville, ao qual é confiado um menino de 12anos que é destinado a reinar e para o qual o conde escreve cotidiana-mente un journal très detaillé. O texto é o protocolo moral de uma se-qüência de jornadas de um pequeno príncipe que cresce com regalias epor uma soberania mais democrática que aquela própria do Ancienrégime, mas também um instrumento de educação moral, realizado noestilo da pedagogia especular do príncipe; as páginas relativas ao diasão, de fato, mostradas na manhã seguinte ao rapazinho, que as pedecom ansiedade. Quando o futuro rei tem 13 anos e o Journal consta deoito volumes, o gouverneur o entrega, declarando que de agora em dianteo diário será diferente, e, escrito com plus de corretion et d’attention,será publicado e virará história.

Um menino bom, o pequeno príncipe de Madame de Genlis, comoum menino boníssimo é – já diz o próprio nome – Benedetto, figuracentral de dois ensaios de Tommaseo, que usa o “diário” da mãe dopequeno. Na lapidação da narração, sabemos que Benedetto não temdefeitos, comporta-se de modo exemplar, em uma tradução à enésimapotência da função pedagógica dos diários de infância, em que se assis-te – no relato de um caso emblemático – a um projeto perfeitamentebem sucedido, não se sabe se por obra da natureza intrinsecamente boado pupilo ou pela empenhadíssima paideia materna.

A fantasia na escritura de vidas infantis possui exemplos escassosnos tempos seguintes. Ao Jeune prince de Madame de Genlis, ao tedio-so e sabichão Benedetto di Tommaseo, aparece depois de mais de umséculo, Joey, o protagonista do Diario di un Bambino, de Daniel Stern.Nele, a história do desenvolvimento da criança é feito pelas palavras deseus sábios pais, mas também da palavra do próprio Joey, não em umentrelaçamento dialógico, mas em dois discursos contemporâneos, queo menino desde o primeiro mês de vida sabe dizer e escrever de si, desua vivência, até refletir, lá pelos quatro anos, sobre seu passado e areescrevê-lo em forma menos rapsódica e impressionista.

O diário de Joey constitui – mesmo que a posteriori – um nexoentre tudo o que pais estudiosos escreveram dos próprios filhos:Tiedemann, Wirtenfeld, Dillenius, Mauchart, Darwin, Taine, Ferri,

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William e Clara Stern, os Katz, os Frontali, Lichtner observaram,protocolaram, interpretaram as condutas de suas crianças com o objeti-vo de demonstrar através dessas o que fosse a infância de um ponto devista científico. A intenção de Daniel Stern não é, no fundo, diferente;ele quer tornar acessível, através do estratagema retórico do exemplo,as regras de uma psicologia rigorosa da evolução que ele está construin-do com empréstimos da psicanálise e teorias construtivistas. Joey é ummenino composto pelos casos observados pelo próprio Stern, pequenosestranhos e os seus próprios filhos, um sujeito que da hipótese de gene-ralização do desenvolvimento infantil, retorna, graças à sua palavra, àcotidianidade – enriquecida por traços de sugestiva e inverossímil fan-tasia – para dizer de ulteriores possibilidades e funções desse tipo deescritura.

3. Teorias, esboços, perfis, exemplos, casos clínicos

Dirigimo-nos segundo uma linha histórica, que parte do fim do sé-culo XVIII e percorremos o século XIX e a primeira metade do séculoXX, quando os diários de infância se estabelecem como gêneropsicopedagógico autônomo e começam a se fazer mais espessos e notó-rios; alguns viram célebres diários (penso o “Piccolo Hans” de Freud),outros, a essa altura já estão esquecidos (mesmo que tenham despertadodiscussões e imitações quando foram publicados – o corpus inclui qua-tro8), passando por textos de Sigismund, Schleicher, Struempell, Egger,dos quais, mesmo quando foram editados, se falou pouco. E fazemosesse percurso considerando como, nesses textos, vinha se preparandoaquela psicologia não filosófica do desenvolvimento que se inauguraoficialmente no último vinteno do século XIX, mas que tem os seusantecedentes nas preocupações higiênicas, médicas, pedagógicas e psi-cológicas de Tiedemann, Wirtenfeld, Dillenius e Mauchart. Tais textostêm intenções eruditas, procuram não ter preconceitos ideológicos e

8. Tiedemann, Dillenius, Mauchart, von Wirtenfeld.

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afetivos – mesmo que não faltem expressões de ternura –, são voltadosa generalizar traços julgados essenciais da natureza infantil observadosna criança que olham com incansável atenção. Nesses a observação, acomparação, a catalogação e a análise das condutas estão no centro daescritura, e a abordagem evolutiva é exercitada sobretudo sobre os maisnovos, que não sofreram intervenções de superestruturas culturais, maisnaturais e portanto garantia de pureza empírica para quem os estuda.Progressivamente, a base existencial das observações – a criança indi-vidualizada, com um nome, um caráter, um ambiente – é omitida e acotidianidade dos pequenos, que, por exemplo, serve como pitorescamoldura do “Profilo di un bambino” de Darwin, os caprichos e as cômi-cas asneiras do pequeno Doddy – o personagem, a meu ver, mais bem-sucedido desses diários infantis –, são aos poucos colocados de lado eno fim do século o menino particular, colhido em sua existência de to-dos os dias e de seus lugares, e juntamente descrito com fins científicosdesaparece no trato teórico de uma infância considerada en géneral.Caso exemplar disso é Die Seele des Kindes (l’anima del bambino) pu-blicado em 1882. O autor Wilhelm Preyer, um fisiologista, funda suaproposta teórica em base empírica, graças a estudos de observação fei-tos por outros e diretamente com a própria criança. Do pequeno Preyernão se conhece o nome, não se dá nenhuma informação sobre suas con-dições de vida, é indicado muitas vezes com o apelativo mein keind,mein khabe, ou seja, “meu filho, meu garoto”, quando tem poucos me-ses. Contudo, entre as linhas transparece uma série de informaçõesdeduzidas por um olhar contínuo, atento, por que não? empático, cujosêxitos foram protocolados de modo verossimilmente diarístico, com aintenção de utilizá-los para fins científicos. O diário subjacente ao textoque se expande como obra teórica, configura-se como uma espécie dedesenho originário que guiou a caneta do autor, um esboço como exis-tiam no fundo dos antigos afrescos, e a criança que o diário relata setorna o sujeito anônimo, mas essencial, que autentica uma proposta depsicologia rigorosa da infância, destinada a um público de doutos.

De uma criança e de sua cotidianidade doméstica até a sua descriçãotraduzida em termos metaindividuais; esse é o projeto intuível no texto

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de Preyer e que, pelo que sei, tem apenas cinco análogos9, aos quaisacenarei nas próximas linhas.

Em 1907, o psicólogo da idade evolutiva William Stern, ajudadopela mulher Clara, publica Die Kindersprache. Eine psychologische undteoretische Untersuchung, em que organiza de forma científica as ano-tações que principalmente a mulher tomou sobre o desenvolvimento desuas três crianças, Hilde, Guenther, Eva. Trata-se de um texto científico,que um longo trabalho de anotações – há também alguns desenhos ecartas das crianças – possibilitou: os diários dos três pequenos Stern,tesouro documentário também para fins de uma história da educação,continuarão a ser explorados em textos sucessivos, mas suas redaçõesque até aqui não foram publicadas, irão muito além da função para aqual foram escritos10.

Em 1908, uma psicóloga americana, M. Washburne Shinn, publicaa sua tese de doutorado em psicologia do desenvolvimento, valendo-seda observação diacrônica de um único caso. O trabalho é científico, masem sua base está declaradamente uma série de anotações diarísticas,recolhidas pela autora, tia da menina observada – Ruth – e tiradas tam-bém de informações dadas pelos pais. Por vezes a pequena protagonistatransparece vivaz da pureza pós-positivista da página, e a escritura

9. O texto de Preyer coloca-se em uma “moda” que já era difusa e que se intensificarános anos seguintes à publicação de Die Seele des Kindes, de recolher diários decrianças e exortar a escrevê-los. Sinal disso é o pedido feito por W. Sully e reporta-do na Educational Review de junho – dezembro 1983, vol. VI (pp. 414 e ss.), noqual ele pede que pais e professores façam protocolos das suas observações sobreo desenvolvimento psíquico da primeira idade, pois “uma psicologia da mente in-fantil que seja fundada e sistemática pode ser desenvolvida apenas pela acumu-lação de um vasto numero de fatos”. Sully indica e explica também os parâmetrosgraças aos quais organizar as observações: atenção e observação, memória, imagi-nação e fantasia, raciocínio, linguagem, prazer e dor, medo, autoconsciência, sim-patia, afeição, senso artístico, sentimentos morais e religiosos, volição, produçãoartística. Seria interessante saber se esse convite teve continuidade.

10. Tal capital de muitíssimas páginas de anotações, depositadas e transcritas no MaxPlanck Institut fuer Psycholinguistik di Nijmegen, foi acessível a mim graças àgenerosidade da colega Imbke Behnken da Universidade de Siegen na Alemanha.Deve-se lembrar que o diário de Hilde é concluído quando a pequena garota com-pleta 13 anos, o de Guenther continuará até 1918, e o de Eva terá fim em 1915.

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ritmada em dias, depois semanas, depois meses, se une a alguns trechosde diários – que constituem verificação desse caso único de menina“sinopia” recuperada além do véu da análise científica.

No início dos anos de 1920, Susan Isaacs, na tentativa de sintetizarpara fins educativos idéias piagetianas e psicanalíticas acerca do desen-volvimento infantil, apresenta – em três diferentes pontos de dois deseus volumes – o diário mantido pela mãe de Ursula, uma menina dos 3aos 5 anos, que é declaradamente selecionado para constituir uma con-firmação das hipóteses acerca do amadurecimento social e intelectualdessa fase evolutiva. Assim se fala da menina seja a propósito de amor,ódio, sexualidade, dos sentimentos de culpa e vergonha – categoriaseletivas do psiquismo não só infantil no modelo Kleiniano –, seja a pro-pósito de pensamento e raciocínio. Obviamente, o nome da pequena éfictício, a narração do seu crescimento é selecionada e direcionada parafins científicos, mas a menina é presente na sua vivaz concretude e ser-ve de exemplo para explicar melhor uma teoria, ainda não completa eafirmada, tem uma função que é confiada a ela por quem está de fora dodiário e o está submetendo a uma versão que não era a sua original. Nãomais “sinopia”, não ainda caso clínico, mas exemplo: esse o destino deUrsula nos acontecimentos do seu “diário”, que possui analogias na psi-cologia do profundo.

Junto do relato do primeiro experimento pedagógico em chave psi-canalítica, l’Asilo psicoanalitico di Mosca (Schmidt, 1972), a ediçãoitaliana traz dois extratos de um diário que uma mãe cultuadora de estu-dos psicoanalíticos – talvez a própria Schmidt – escreve sobre o filhi-nho Alik e que servem para fundar, através da observação, hipótesesfreudianas sobre a pulsão da procura e sobre o sugar no desenvolvimen-to libídico e intelectual da criança. A narração se desenrola com escansõesdeformes, breve para os primeiros tempos, aos poucos mais longa, mos-tra o crescimento da criança, algumas das circunstâncias onde acontecetal desenvolvimento, e culmina em reflexões sobre a funcionalidade dasnotas recolhidas com fins de generalização. No texto, construçõesfreudianas são ligadas a elementos de matriz marxista, por isso o am-biente social é visto na sua determinação sobre o desenvolvimento e

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Alik – que é também um pequeno aluno do Asilo psicanalítico – setransforma, também ele, em um exemplo.

Em 1956, Anna Freud relê, seleciona e discute aquilo que chama deum “relato”, que uma mãe, Joyce Robertson, faz da sua filha de 4 anos,Jean, que após a recuperação em um hospital por causa de uma opera-ção de tonsilectomia, volta para casa, seguida ainda por três semanaspela atenção e pela escritura materna. Sobre esse texto se debruça a filhade Freud, que o lê em chave de psicanálise do eu. Tal leitura possui umsentido preciso: “considero a publicação de Joyce Robertson uma con-tribuição importante aos nossos estudos psicanalíticos da vida psíquicainfantil, não menos instrutivo do que as contribuições que são fruto detratamentos analíticos realizados com crianças. Em seu papel de mãe,ela tem todo o direito de limitar-se à experiência vivida individualmentecom sua filha e abster-se das generalizações. Enquanto leitores analis-tas, podemos nos permitir dar um passo além e retirar, do seu estudo,algumas experiências de validade geral” (A. Freud, 1956).

As palavras da psicanalista nos conduzem ao centro das culturas doprofundo, onde o diário terapêutico é transformado em caso clínico,torna-se procedimento de apresentação rigorosa por excelência. Aqui asoperações são opostas àquelas da psicologia científica de matriz positi-vista; parte-se do diário que é apresentado de uma forma literariamentee tecnicamente correta e elegante, e sobre tal texto, apertis verbis, fun-da-se no conjunto ou por algumas de suas partes, uma teoria, instituindoo caso como exemplo que confirma uma regra, mas também como capi-tal de informações a serem interpretadas para refinar a própria regra.Nas origens desse tipo de procedimento está o caso clínico de um meni-no – o caso clínico do pequeno Hans –, acontecimento essencial não sópara fins terapêuticos e teóricos, mas também para a nova idéia de in-fância que a inspira e que ele transmite. Mais uma vez é um pai queescreve de um filho, sob direção contínua e experiente de Freud: MaxGraf, o pai do pequeno Herbert, que gerações de especialistas e de lei-gos conhecem sob o nome de “Pequeno Hans”, protocola incessante-mente o crescimento do menino, seja quando está bem, seja quandoadoece, e entrega as suas anotações ao professor, que as transformará nomais célebre dos casos clínicos. Se Hans é, segundo Freud, o sujeito

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exemplar de uma infância que se desenvolve em chave libídica, ele étambém uma criança real, que aparece na consistência da sua vida defilho de uma família culta e burguesa, com os seus acontecimentos doquotidiano, os lugares reservados da sua socialização, as figuras domés-ticas que governam a sua formação. Mas tudo isso, certamente esteno-grafado nas páginas que o pai anota, se enfraquece e continua em filigranaquando ele é instituído protagonista de um breve “romance” psicanalíti-co. No caso clínico também o pequeno Hans virou um menino “sinopia”,foi expropriado de algo – o seu nome mudou –, viu sentimentos seremsacrificados, palavras, perguntas, mitos que na realidade sentiu, expri-miu, criou, mas que não eram significativos para fins de sua diagnose ede sua terapia.

Outras figuras de crianças povoam as páginas da psicanálise e pos-suem também essa função: mostrar como se tratam distúrbios da psiqueinfantil, oferecendo o relato de casos individuais e mostrando seu valoremblemático e fundante para fins de uma teoria. A “menina diabo” e opequeno mentiroso e ladrãozinho dos quais Anna Freud fala nas pági-nas que se referem ao seu trabalho terapêutico dos anos 1926-27, deIl trattamento psicoanalitico dei bambini (A. Freud, 1927), e aos quaisacena também em outros textos, são eles também meninos escondidos,atraentes em suas dificuldades de estar no mundo, essenciais para mos-trar como uma técnica terapêutica funciona; crianças contadas antes quenas páginas de uma obra científica, em anotações diacrônicas de seusterapeutas, em diários “descartáveis”, para serem, de qualquer forma,traduzidos em outro gênero textual. Junto das crianças freudianas estáRichard, o paciente de 10 anos que Melanie Klein tratou em noventa etrês sessões, a partir de 1941, e das quais manteve notas terapêuticasdetalhadíssimas, constitui um exemplo notável das mudanças, que parafins de reabilitação e científicos, atravessam essas figuras infantis naescritura psicanalítica: de crianças protocoladas em seus cotidianos paracasos clínicos, para sujeitos de diários terapêuticos, e portanto para per-sonagens emblemáticos de técnicas e hipóteses curativas e psicológi-cas. Richard não é uma criança “sinopia”, mas um menininho cuja vidaparece desenvolver-se nos acontecimentos experimentados no settingclínico ou neste relatado; a sua história é aquela que ele vive junto de

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Melanie Klein nas densas sessões, nas quais é ajudado a crescer. Aqui,no foco da díade terapêutica, o desenvolver-se de atos e de palavrascondensa a vida da criança, mostra suas dimensões insuspeitadas, reco-nhece e magnifica sua palavra e o gesto, e no tempo que não é apenas etanto aquele do fazer-se adulto de um infante, quanto aquele da doençae da eventual cura, na desinibição de bloqueios e de regressões nos pro-cessos de amadurecimento, a atenção da terapeuta tenta colher e revelaro ponto de vista da própria criança. De todo o récit emerge uma outrainfância, mais fascinante e inquietante, em que a palavra criança não édelegada ao discurso adulto, mas é respeitada, colocada no centro darelação com quem ouve, protocola, interpreta, narra; em que junto dapalavra está o sintoma, e em torno do menino do qual se reconstrói ocaso, juntam-se, sem nome autêntico, uma série de outras criançasmantidas sob cuidados.

Tal nova escuta da infância permitiu uma tomada do ponto de vistada criança, espectador do provável trânsito do protocolo à teoria. Certavez, única que conheço, uma menina nos diz, de fato, como ela mesmase tinha visto no diário “sinopia” do adulto: é Piggle, muito jovem depaciente Donald Winnicott, da qual reportamos um breve trecho: “Odoutor Winnicott costumava tomar notas durante as consultas e Gabriellepensava que ele estivesse escrevendo a própria autobiografia, e que ela,de algum modo, tivesse sido envolvida em uma pequena parte dessa”.“Ele escrevia e eu brincava” (Winnicott, 1977).

4. Cadernos, álbuns, manuais , coleção defotografias, filmes

Latentes atrás e ao lado de tratados, casos clínicos, ensaios de psico-logia do desenvolvimento existem diários, de cuja construção não sabe-mos nada: como foram construídos, se com rápidas anotações, com no-tas e comentários acerca de condutas consideradas críticas, ou de modomais livre ou rapsódico, revelador de afetos mais que de empenhos sis-temáticos e de controladas contratransferências. Ignoramos qual tenhasido a distância temporal desses diários do texto bem organizado e pu-

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blicado no qual se podem, às vezes com dificuldade, encontrar esboçosde crianças – filhos e pacientes. Esse mundo da primeira infância pode-mos somente intuir, e por tal esforço da nossa fantasia e do nosso empe-nho para saber mais podem talvez servir – com cautela, porque as inten-ções dessa produção não são declaradas – aqueles diários que agenerosidade de mamães e papais, de crianças que viraram adultos, deirmãos e irmãs já grandes – que colaboraram para a sua construção – mepermitiu consultar. Por hora são apenas 34; espero que aumentem, por-que estou convencida de que existam muitos outros, conservados emarquivos familiares, junto de outros testemunhos que servem parareavivar a memória daqueles que os escreveram e daqueles que – e paraos quais – foram escritos. Trata-se de cadernos em que o récit é difundi-do, tem ambições e não raramente qualidades narrativas, em que o sen-timento é afastado, em que a mão e o olhar estão parados, decididos emsuas seleções, aguçadas na construção de uma fenomenologia dos pe-quenos sujeitos que amam, esquadrinham, tentam evitar a ambigüidade,cuidam, educam. Mas são também pequenos relicários, em quanto mui-tos deles contém rabiscos, desenhos, escritos, fotos, das crianças quesão relatadas, de sua frase textualmente retratada, cachos de cabelo. Sãorelatos feitos de imagens – hoje há também filmes feitos com o videotapeque narram histórias de vidas infantis –, ou mistos de fotografias e detexto escrito. Em muitos casos são todas essas memórias textualmentediferentes. E são também – avanço a arriscada hipótese de que se tratede sucessores dos livros de família que desde a época medieval conti-nuaram até o século XIX – textos “pré-estampados”, nos quais páginaslivres, mas organizadas por vozes, permitem escrever de modo ordena-do a história do próprio filho, do nascimento até uma idade que varia.Um corpus no corpus, portanto, em que parece não haver quase ne-nhum denominador comum, em que as vias que se abrem à maravilhado leitor são muitas. Essas oferecem uma pluralidade de escuta de pala-vras: aquelas que diz o grande – mais uma vez de si – sobretudo se éuma mãe, a qual relata freqüentemente sobre a gravidez, detém-se noparto, insiste sobre a proto-história de uma ligação em que mãe e filhose destacam lentamente de uma conexão simbiótica – e aquelas expres-sas pelo pequeno.

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Nessa produção, a mãe aparece como a grande narradora, suplanta –ou sustenta – a figura paterna como autor do diário, se reapropria de suafunção biológica e cultural, olha, trata, interpreta a criança em nome desua ação de cuidado e educação. Em meu corpus, em 31 diários inéditosde tempos recentes (de 1930 até hoje), 3 são compostos somente pelopai, mas em dois desses (Laura e Clara) existem também anotações damãe; nos outros a contribuição materna é exclusiva ou predominante. Aescrita materna aparece menos inclinada a fazer do documento uma au-tenticação do próprio papel, uma preparação para um livro ou ensaiopublicáveis, o trecho de uma obra científica; são, em um certo sentido,testemunhos escritos de maternal thinking11, em que o discurso se de-senrola para ser breve, mas rápidos e essenciais, em que existe a mara-vilha de ver uma criança muito pequena que entra no mundo, de distin-guir como reage aos cuidados, como se torna um sujeito.

O leitor, enfim, não encontra somente diários de conteúdo amplo(aqueles de Anna e Cláudio escritos pela avó, aqueles de Viola e Mirtaescritos pela mãe para as filhas nascidas com 16 anos de diferença,aqueles do pai de Laura e Clara), mas também páginas mais breves,em que a indicação é lacônica, mas em que a fotografia – o caso deAugusta – intervém para mostrar aquilo que a caneta tem dificuldadede exprimir, em que o desenho completa a página e conta da alegriaque acompanha a gestão dos menores.

Na tentativa de definir critérios de organização, tenho como hipóte-se que, provisoriamente, uma distinção desse tipo:

• Um grupo de documentos em que a redação da página é continua.A narração se desenrola por passos mais ou menos longos, data-dos, em intervalos irregulares, mais ou menos ricos de comentá-rios sobre a conduta da criança, em que se diz como ela age ereage, como adquire certas competências. Neles são descritos tam-bém os lugares – da casa e de fora da casa – nos quais acontecem a

11. Conferir S. Ruddick, Maternal thinking, Boston, Beacon Press, 1989, especial-mente. pp. 13 e ss.

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sua transformação12, fala-se de estratégias de criação, de ritmos dodia, de pessoas que ajudam a mãe com os cuidados do filho. Osdois diários – de Anna e Cláudio – escritos pela avó, os dois diárioscompostos pela mãe de Viola e Marta, os três diários realizadospor Giro Frontali, o diário da mãe de Silvia, fazem parte dessaestante do arquivo que estou imaginando. Aqui a criança é descritasem dificuldade, com detalhes, e se fala também em relação aossentimentos do adulto que escreve: alegria e ternura, empenho, as-siduidade, temor de não agir de modo pertinente, às vezes até ciú-me porque o amor pela criança é dividido com outros, preocupa-ção porque as suas reações são imprevisíveis e não correspondemàs expectativas, esperança que após o crescimento aconteça aquiloque se desejaria que se tornasse. Nessas páginas se exprime umsaber espontâneo do adulto chamado para gerir um ser que cresce,e se delineia a conquista de um profissionalismo não erudito, massempre eficaz e precioso, de pedagogos e psicólogos, que pedepara ser reforçado e traduzido em termos mais seguros. São esses osdiários mais completos, mais abundantes de detalhes, mais ricos nahora de contar de si e da criança juntos, com aquele olhar duploencontrado nos diários publicados, ou naqueles escritos para seremlidos ao menos pela criança da qual escreveram. É também nessesdiários que se exprime freqüentemente o motivo pelo qual a canetase cala em um certo momento: a mãe de Sílvia conclui o seu textoquando a menina tem 4 anos e acontece o batizado de seuirmãozinho menor; a mãe de Viola, ao fechar o seu diário – a meninatem quase um ano e meio – afirma: “V. passou por grandes mudan-ças: já é grande”; a avó de Anna e Cláudio anuncia com palavrastristes o fim de seu diário pessoal – que acompanha e comentaaqueles sobre os netos – quando filhos e pais mudam de casa e aavó fica sozinha no velho apartamento.

12. Sobre os espaços domésticos nos diários de Hugo Franck, Anna e Cláudio, cf. o meu“Per una pedagogia della casa”, em Cadmo, vol. VII, n. 3, pp. 7-14, dez., 1999.

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• Junto aos diários de amor materno e de afeto de uma avó, os diá-rios do pediatra Frontali aparecem como preparativos para a reda-ção de um texto científico que será escrito vinte anos mais tarde(Frontali, 1955), relativo à definição da competência verbal nastrês filhas. Nas páginas dos diários (Laura, Clara), o desenvolvi-mento da linguagem, marcado com atenção e precisão, já com al-guns traços de organização e interpretação dos dados que acompa-nham o relato de fatos cotidianos, de interventos dos adultos, deatividades das meninas, de lugares, encontros, eventos, quase arevelar os mecanismos e as seleções que em outros casos conduzi-ram daquelas que chamei “sinopias” do documento científico.

• São sobretudo os pais que se arriscam com a aparelhagem fotográ-fica e a utilizam para lembrar os momentos salientes da vida dopróprio filho. O exemplo mais bonito e completo do corpus é aquelede Augusta, que começa logo após o nascimento e se conclui quandoa menininha tem quase 20 anos, e tem como seguimento um álbumde fotos feitas pela própria Augusta, a essa altura já dona de umamáquina fotográfica. Desenhos e comentários acompanham as fo-tos instantâneas, dando origem a um diário de múltiplos alfabetos– existia um outro mais breve, que depois se perdeu, em que o paianotava quase estenograficamente em algumas pequenas agendasos progressos da menina no desenvolvimento físico e verbal –,estendendo-se por anos em muitos álbuns distintos. Os lugares do-mésticos e de férias, as celebrações de família com, no centro, amenina, a primeira comunhão, as festas e as fantasias de carnaval,são a memória de uma infância antes da guerra, com as suascotidianidades, o outillage do jogo, a roupa, as pessoas que acu-diam a pequena. Aqui e ali um filme sem áudio – esse materialtambém não existe mais – contava mais detalhadamente episódiosque a fotografia fixava, para dizer os problemas da reconstruçãode uma infância e da escolha dos instrumentos para fazê-lo semperder nada.

• Também fazem parte do corpus álbuns manuscritos, cadernos ilus-trados, páginas deixadas para serem preenchidas pelos pais e espa-ços para colar fotos, poderíamos chamá-los porta-diários, que ain-

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da hoje podem ser encontrados e oferecidos como objetos de pre-sente pelo nascimento ou batizado de uma criança. Aqui a escrita élacônica, a habilidade de concretizar categorias observativas e derelato banalizada pelos lugares fixados pelo fac símile de diário: onascimento, os dados sobre os pais, o peso, o batizado, os primei-ros distúrbios físicos, o primeiro dentinho, a primeira palavra, oprimeiro aniversário. Raramente se vai além do primeiro ano devida, se isso acontece, transgride-se a moldura do álbum impresso.Mas, de qualquer modo, tenta-se deixá-lo mais rico, preencher to-das as linhas disponíveis, enchê-lo de fotografias, personalizá-loao máximo. Esses diários, hoje freqüentes, possuem um antece-dente longínquo, o diário “pré-estampado” redigido na metade doséculo XIX pela mãe de Robert Stevenson, do qual existe umaversão impressa. A mãe do futuro escritor não se limita a seguir asindicações propostas pelo texto, mas intervém dizendo mais coisase anexa uma fotografia do menino, quase que para testemunhar arealidade do menino sobre o qual escreve. Em um passado que équase um presente, os diários contidos na parte B da lista do Apên-dice são desse tipo, isto é, diários “guiados” com um assunto bemdefinido. Nestes, freqüentemente, há também conselhos à mãe. Ostextos de Longhi (onde se dá, para 1955, notícias relativas a MariaRosa, nascida em 1955), de Cislaghi (que contém informações re-lativas a Emília, nascida em 1969), aquele distribuído como brindedo Talco bórico Florentia (intitulado Omaggio alla natalità, quenos diz a mensagem que veiculava, em linha com a incipiente po-lítica fascista de promoção demográfica), são desse grupo. Aquium aspecto emerge com evidência: ser mãe de uma criança peque-na é uma terefa que deve ser ajudada, explicada, ensinada. Ma-nuais do “faça você mesmo” moral e puericultura acompanham amãe no início desse seu trabalho, guiam-na seja no fazer seja noobservar, e lhe oferecem sugestões, para aquele profissionalismoparental que já no início dos anos de 1930 vinha se delineando eque – nas últimas gerações – demonstra-o a leitura dos cadernoscitados – resulta mais seguro, mais capaz de colocar-se problemas,de transformar em saber um fazer instintivo e tradicional.

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• Junto desses exemplos o corpus contém também diários feitos emcasa, mas construídos sob o modelo de álbuns “pré-estampados”, eque respeitam mais a fantasia de quem os escreveu. Os pais deLucia (1990) narram a sua história em um caderno com ilustraçõesimpressas, extrapolando as indicações do texto, e sobretudo, enri-quecendo-o de fotos ricamente comentadas, que acabam quandonasce um irmãozinho. Um irmão e uma irmã mais velhos (Elisa,1990) usam a fantasia livremente para fazer do relato uma históriafeliz, bem documentada, que vai do nascimento ao início da vidaescolar. A tendência é, portanto, de ocupar o espaço da página, deassumir a palavra, de mostrar como a vida da criança é um eventopeculiar que deve ser narrado segundo seus ritmos e modos, semtrancafiá-lo em rígidas rubricas, permitindo ao adulto a direção daobservação, documentação, expressão. Mas, paradoxalmente, hátambém o convite à criança para falar de si: o subtítulo do diário deJéssica é, de fato, “L’ album ricordo della mia infanzia”.

• Não faltam diários construídos com tecnologias mais modernas, ode Augusta, paralelo fotográfico de uma série de pequenas agen-das no qual o pai da menina anotava, de modo quase estenográfico,pequenos eventos da cotidianidade, exceto por enriquecê-lo comas imagens da pequena em seus acontecimentos existenciais,explicadas em seu tempo e lugar. Recentíssimos são alguns diáriosfilmados13, filmes em videotape, em que a cena tende a perder asua diacronia mais ampla – dias por anos – e concentrar-se emfatos intensos, ricos de imagens e vozes, em um caso (Camilla)reprodução muito organizada (foi contratado um profissional) deum batizado no campo. Esses diários ilustrados ou construídos atra-vés de imagens fixas ou em movimento, acompanhadas tambémpela voz filmada ao vivo, criam problemas sui generis não só de

13. No microcorpus de Augusta havia – também esses se perderam – filmes de algunsdias particularmente significativos – um dia na montanha, um passeio de barco avela – que repetiam de modo dinâmico as fotografias e integravam as agendinhasescritas, já quase completamente substituídas pelas imagens fotográficas.

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arquivamento mas também de interpretação, de leitura de uma his-tória escrita em um alfabeto e em uma sintaxe diferentes, consenti-dos e permitidos pelas novas tecnologias que modificam a anota-ção da cena a ser lembrada, mas obrigam também a uma inteiraorganização textual bem diferente daquela da página escrita.

Arquivar um corpus documentário incompleto e diferente por mo-dalidade de realização do texto significa não só e não tanto avançar oucolocar problemas de catalogação, e perguntar-se como enriquecê-lo,quais caminhos percorrer para deixá-lo mais conspícuo, quais são asregiões nas quais passa os limites e onde se poderá talvez encontrarmaterial útil. Isso requer também perguntar-se acerca das muitas opera-ções que estão em ação na produção de tal material: o que levou adultosde muitas gerações que nos ofereceram testemunhos desse tipo a escre-ver sobre uma criança? A fotografá-la, a filmá-la ao longo do tempo?Quais foram as motivações, as obrigações, as esperanças que inspira-ram os autores desses escritos e de tais imagens a falar de si e de umacriança com as quais tinham uma ligação exclusiva? Quais eram e sãoos modelos não só de construção do texto, mas, sobretudo, de infânciaque tem quem escreve e quer verificar e realizar na criança que crescediante de seus olhos? Quais, entre outras, as encomendas do social di-versificadas por tempos e culturas que estimularam tais escritos eiconografias e governaram – tão mais obrigatórias quanto menos adver-tidas – o “corte” observativo, pedagógico e reabilitativo? E, talvez apergunta mais importante e inquietante pela dificuldade de dar-lhe umaresposta, qual pedagogia doméstica tornou consciente e mais bem aca-bada a redação desses documentos da cotidianidade do adulto que olha,ouve e escreve sobre uma criança? Aqui, talvez mais do que em outromaterial documentário, a problemática da criança diante do adulto quese interessa por ela, mostra-se vistosamente, como se mostra com igual-mente dramática clareza a dificuldade de educar no espaço protegidoporém difícil da casa, chamando estudiosos de diferentes competênciaspara uma cooperação que, talvez em outros territórios da historiografia,não sejam estimulados com tanta força.

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Apêndice

Os diários abaixo indicados são ordenados, quando possível, pordata de nascimento da(s) criança(s), das quais, quando conhecido, indica-se também o nome. Em caso de textos publicados, são indicados a datade edição e o título. Os diários ainda hoje inéditos são marcados por umasterisco. A lista A contém textos que não seguem um modelo pré-definido, diferentemente dos diários incluídos na lista B.

1. 1601. Louis, in J. Héroard, Journal, a cura di M. Foisil, Paris,Fayard, 1989. Iniciada com o nascimento do futuro soberano, anarração se conclui em 1628.

2. Emile, in J.J. Rousseau, Emile ou de l’éducation, in J.J. Rousseau,Oeuvres complètes, Paris, Gallimard, vol. IV, 1969, pp. 241-868.

3. 1763. Sophie, in Luigi Eugenio del Wurtemberg, Lettere aRousseau, edite in J.J. Rousseau, Correspondance complète, Edi-ção crítica e comentada por R.A. Leigh. Genève-Madison, Institutet Musée Voltaire-The University of Wisconsin Press. As cartasvão de outubro de 1763 a maio de 1765, estão incluídas entre a2955 e a 3966 e contidas nos volumes XXV (1974), XXVII (1973)e XXVIII (1975).

4. 1770. Jacqueli, in J.H. Pestalozzi, “Diario sull’educazione del figlio(27 gennaio-19 febbraio 1774)” in E. Becchi (a cura di), J.H.Pestalozzi, Scritti scelti, Torino, UTET, 1970, pp. 57-71.

5. Piccolo principe, in S.F. Comtesse de Genlis, Adèle et Théodoreou Lettres sur l’éducation - Ne ho consultato la Nouvelle éditionrevue et corrigée, Paris, Morizot. s.d. A primeira edição, sem indi-cação de edição e local, é de 1782.

6. *1773, Duc de Valois, 1775, Duc de Montpensier, enfantsd’Orléans, in B. de Bonnard, Journal d’éducation inedito. Il saggiodi D. Julia, “Bernard de Bonnard, gouverneur des princes d’Orléans(1778-1782)”, in Mélanges de l’ecole française de Rome. Italie etMèditerranée, vol. CIX, 1997, pp. 383-464, reproduz amplos tre-chos do texto.

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7. 1777. Teresa, in P. Verri, “Memorie della fanciullezza di Teresa(1777-1784)” in P. Verri, Manoscritto per Teresa, a cura di G.Barbarisi, Milano, Serra e Riva, 1983, pp. 95-140.

8. 1781. Friedrich, in D. Tiedemann, “Beobachtungen ueber dieEntwicklung der Seelenfaehigkeit bei Kindern” in HessischeBeyträge zur Gelehrsamkeit und Kunst, primeira parte, 1786, n. 6,pp. 313-333: segunda parte, 1787, n. 3, Stück, pp. 486-502. Existeuma tradução italiana com o título “Osservazioni sullo sviluppodelle facoltà mentali nei bambini” in L. Trisciuzzi, Il mitodell’infanzia, Napoli, Liguori, 1990, pp. 119-154.

9. 1785. Amalie Louise, in M.A. von (1789-1790) Winterfeld, von,M.A. “ Tagebuch eines Vaters ueber sein neugeborenes Kind (1789-1790)” in Braunschweigisches Journal, I parte, 1789, 8 (August),n. 4, pp. 404-441; II parte, 1790, 3, (Maerz), n. 5, pp. 322-332;III parte, 1791, 12, (Dezember), n. 6, pp. 476-484; “Beantwortungeneiniger Einwuerfe der Herausgeber des Tagebuchs eines Vaters inAuguststuecke vorigen Jahrgangs, vom dem Verfasser diesesTagebuchs” in Braunschweigisches Journal, 1790b, vol. III, Maerz,n. 5, pp. 322-332. Na família existem também outras três criançasmais ou menos pequenas, das quais se trata.

10. 1789. Frederike, in F.W.J. Dillenius, Fragmente eines Tagebuchsueber die Entwicklung der koerperlichen und geistigenFaehigkeiten und Anlagen eines Kindes, in Campe, J.H. e Trapp,E.C. Braunschweigisches Journal philosophischen, philologischenund paedagogischen Inhalts, I parte, 1790a, n. 2, pp. 320-342;II parte, 1790b, n. 3, pp. 279-298; e “Noch ein Tagebuch ueber einkleines Kind: zweites Jahr. Von einem anderen Beobachter”, inMauchart, I.D. (Hrsg.) Allgemeines Repertorium fuer empirischePsychologie und verwandte Wissenschaft, Tuebingen, 1799, n. 5,pp. 225-252. A criança é a terceira filha do autor.

11. 1794. Lottchen in I.D. Mauchart, “Tagbuch ueber die allmaehligekoerperliche und geistige Entwicklung eines Kindes. Geb. den 7April 1794. Nach Campe’scher Methode”, in AllgemeinesRepertorium fuer die empirische Psychologie und verwandteWissenschaft, Nuernberg, 1798, Band 4, pp. 269-294.

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12. 1839. Doddy, in C. R. Darwin, “A Biographical Sketch of anInfant”, in Mind, vol. 2, 1877, pp. 285-294.

13. 1840. Hugo, in H. Franck, Wenn Du dies liest... Tagebuch fuerHugo. Muenchen, Hanser, 1997.

14. 1846. Benedetto in N. Tommaseo, “Giornale di una madre”, in N.Tommaseo, Sull’ educazione, Firenze, Le Monnier, 1846, pp. 52-61que contém também um outro ensaio “Dell’imaginazione, come sisvolga in un bambino che ne pare poco dotato”, pp. 246-250, quese baseia no “jornal” da mãe de Benedetto.

15. 1846. Bambina in L. Struempell, Psychologische Paedagogik,Leipzig, Boehme, 1888, pp. 352-368.

16. 1850. Robert Louis Balfour, in Stevenson’s Baby Book, Being theRecord of the Sayings and Doings of Robert Louis BalfourStevenson, son of Thomas Stevenson, C.E. and Margaret IsabellaBalfour or Stevenson, San Francisco, Howell, 1922.

17. 1853. Caterina, in N. Tommaseo, “Il Giornale della Caterina,”trechos editados in F. Bacchetti, Niccolò Tommaseo e il “Giornaledella Caterina”, Firenze, Le Lettere, 1997.

18. Maschietto, in B. Sigismund, Kind und Welt. Die fuenf erstenPerioden des Kindesalters. Braunschweig. Vieweg, 1856.

19. Emma, Erhart, Ernst in A. Schleicher, “Einige Beobachtungen anKindern”, in A. Kuhn, A. Schleicher (Hrsg.). Beitraege zurvergleichenden Sprachforschung auf dem Gebiete der arischen,celtischen und slavischen Sprachen, Berlin, Duemmler, 1861,pp. 497-498.

20. Bambina, in H. Taine, “Taine on the Acquisition of Language byChildren”, in Mind, vol. 2, 1877, pp. 252-259.

21. 1876. Betty, 1878 Elena, in L. Ferri, “Osservazioni e considerazionisopra una bambina”, publicados in La Filosofia della scuola ita-liana, em três partes, em 1879, 1881 e 1883 e reeditados em Trisciuzzi,Il mito dell’ infanzia, cit. pp. 246-296.

22. 1877. Alice, in F. Pollock, “An infant’s progress in language” inMind, 1878, vol. III, pp. 392-401.

23. Maschio in M.E. Egger, Observations et réflexions sur ledéveloppement de l’intelligence et du langage chez les enfants.

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Mémoire lu à l’ Académie des sciences morales et politiques. Paris,Picard, 1879.

24. Maschietto, in T.W. Preyer, Die Seele des Kindes. Beobachtungenueber die geistige Entwickelung des Menschen in den erstenLebensjahren. Leipzig, Grieben, 1882.

25. 1893. Ruth, in M. Washburn Shinn, Notes on the development ofa child, University of California publications in education, vol. 4,1908. Do texto, há também uma tradução parcial em francês prefa-ciada por René Zazzo, Ruth, la biographie d’un bébé. Trad. franc.Paris, PUF, 1988.

26. 1900. Bambina, in P. Rossi, “Una pagina di psicologia della culla”in La Rivista moderna, vol. III, pp. 5-6, reeditada in Pasquale Rossie il problema della folla (organizado por T. Cornacchioli e G.Spadafora), Roma, Armando, sem data, pp. 461-476.

27. 1900. Hilde.28. 1902. Guenther.29. 1904. Eva, in W. Stern, Die Kindersprache. Eine psychologische

und theoretische Untersuchung, Leipzig, Barth, 1907; C. und W.Stern, Erinnerung, Aussage und Luege in der ersten Kindheit,Lepzig, Barth, 1909; W. Stern, Psychologie der fruehen Kindheitbis zum sechsten Lebensjahr, mit Benutzung ungedrueckterTagebuecher von Clara Stern. Leipzig, Quelle & Mayer, 1914.

30. 1903. Hans, in S. Freud, “Analyse der Phobie eines fuenfjaerigenKnaben, (Der Kleine Hans)”. In S. Freud, Studienausgabe, vol. VIII,Zwei Kinderneurosen, Frankfurt A.M., Fischer TaschenubuchVerlag, 2000, pp. 13-123.

31. 1904. Bubi, in E. e G. Scupin, Bubis erste Kindheit, Leipzig,Grieben, 1907. Degli stessi genitori Bubi im 4-6 Lebensjahre,Leipzig. Grieben, 1910. Desta obra, existe uma versão abreviadacom desenhos da criança para o uso de educadores. Vier Lebensjahe“Bubi”. Eine Beispielsammlung aus dem Tagebuch ueber diegeistige Entwicklung eines Knaben, Leipzig, Duerr, s.d.; G. Scupin,Lebensbild eines deutschen Schuljungen, Leipzig, Duerr, 1931.

32. 1906. Hannah, diário inédito com o título Unser Kind, mantidopela mãe, Martha Arendt, desde o nascimento da filha até 1917. É

entre biografias e autobiografias pedagógicas 155

inédito e conservado nas “Carte Arendt” na “Library of Congressdi Washington”. Dele trata E. Young-Bruehl no capítulo I de HannahArendt. 1906-1917. Per amore del mondo, trad. it. Torino, BollatiBoringhieri, 1990.

33. 1909. Ruth, in V. Rasmussen, Ruth, Tagebuch ueber dieEntwicklung eines Maedchens von der Geburt bis zum 18Lebensjahre, tradução do manuscrito dinamarquês, Muenchen-Berlin, Oldenbourg, 1934.

34. 1920. Alik, in V. Schmidt “Lo sviluppo del desiderio di sapere inun bambino” e “L’ importanza del succhiare il seno e del succhiareil dito per lo sviluppo psichico del bambino. Brani del diario diAlik”. Trad. it. in V. Schmidt, L’ asilo psicoanalitico di Mosca,trad. it. Milano, Emme, 1972, pp. 33-86 e 89-111.

35. 1924. Ursula, in S. Isaacs, Intellectual Growth in Young Children,London, Routledge & Sons, 1930; Social Development in YoungChildren. A study of Beginnings, London, Routledge & Kegan Paul,1933. A criança tinha sido aluna da Malting House, dirigida porIsaacs, em Cambridge, no início dos anos de 1920.

36. 1919. Nando, in Formiggini Santamaria, Giornale di una madre,Roma, Formiggini, 1926.

37. La “bambina diavolo” e “il bimbo bugiardo” in A. Freud,Einfuehurung in die Technik der Kinderanalyse, Vienna,Internationaler Psychoanalytischer Verlag, 1927, passim. Os casostinham sido tratados na metade dos anos de 1920.

38. *1930. Augusta: existem dois diários, um feito de apontamentosescritos em agendazinha que terminam quando a pequena tinhatrês anos, o outro, composto de muitos álbuns de fotografias comdesenhos e legendas, que continuam mesmo que com freqüênciaprogressivamente mais rara, até quando Augusta tinha mais de vinteanos. Havia – atualmente perdidos – também micro-histórias fil-madas, cenas do diário detalhadas em pequenos filmes.

39. 1931. Richard in M. Klein, Narrative of a Child Analysis, in TheWritings of Melanie Klein, vol. IV, New York, Delacorte-SeymourLawrence, 1975.

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40. *1935. Laura (há um outro diário de Laura escrito pelo pai, emalemão, que cobre um período mais breve, em 1936, mas não é atradução parcial do diário iniciado em 1935) 1955, G. Frontali,“Lo sviluppo del linguaggio articolato nel bambino”, in Bollettinoed Atti dell’ Accademia Medica di Roma, n. 1, 5/6, pp. 7-21.

41. *1936. Clara, se trata da criança nas últimas páginas do Diário deLaura, da qual é um irmã menor.

42. 1949-1976. Leone, in G. Pentich, I colori di una storia. Momentidi vita e luoghi di poesia. Milano, All’insegna del pesce d’oro,1993.

43. *1950. Anna, no diário da avó Lina, que trata também de ambasas crianças – Anna e Claudio – no seu diário autobiográfico.

44. *1954. Claudio, no diário da avó Lina.45. 1952. Eva in M. Zillig, Eine Schulanfaengerin, Psychologische

Monographie eines sechsjahrigen Kindes, Muenchen-Basel,Reinhardt, 1960.

46. 1956. Jean, in A. Freud, Comments on Joyce Robertson’s “AMother’s Observations on the Tonsillectomy of her Four-Years-Old Daughter in New York, International Universities Press, 1956.

47. 1963. C. Boltanski, 20 Règles et techniques utilisées en 1972 parun enfant de 9 ans. Kobenhavn, Berg, 1975.

48. 1968. Micol, in M. Lichtner, Le prime parole. Diario di unabambina. Roma, Meltemi, 1999.

49. 1973. Fabrice, in S. Mollo, Construire Fabrice, Paris, Edilig, 1982.50. 1977. Piggle, in D.W. Winnicott, The Piggle. An Account of the

Psychoanalytic Treatment of a little Girl, London, The HogarthPress, 1977.

51. *1978. Silvia.52. *1979. Viola.53. D.N. Stern, Diario di un bambino. Da un mese a quattro anni, il

mondo visto da un bambino, Milano, Mondadori, 1991.54. *1995. Mirta.55. Giorgia, in P. Bertolini, I primi tre anni della vita di una bambina

raccontati da suo nonno. Roma, Meltemi, 2001.

entre biografias e autobiografias pedagógicas 157

B. Os diários das seguintes crianças são preenchidossobre pré-estampados:

56. *Maria Rosa, 1955.57. *Emilia, 1969.58. *Roberto, 1968.59. *Alessandro, 1972.60. *Davide, 1976.61. *Elena, 1978.62. *Alessandra, 1980.63. *Emma, 1980.64. *Cristiano, 1981.65. *Elisa, 1981.66. *Francesco, 1981.67. *Ilaria, 1982.68. *Valentina, 1983.69. *Simona, 1983.70. *Daniela, 1984.71. *Jéssica, 1986.72. *Matteo, 1984.73. *Sara, 1986.74. *Federica, 1987.75. *Elisa, 1990.76. *Alessandro Giovanni, 1992.77. *Diego, 1992.78. *Camilla, 2002.

A constituição dos saberes escolarese as representações de infância

na Reforma Fernando de Azevedode 1927 a 1930

Sônia Camara*

Neste artigo, pretendo promover uma análise do Programa para as Escolas Primárias doDistrito Federal, elaborado durante a Reforma Fernando de Azevedo de 1927 a 1930,procurando, a partir da constituição dos saberes escolares selecionados, particularmenteno que concerne à disciplina de Educação Higiênica, identificar as diferentes represen-tações de infância que configuraram como modelo para formação de um “novo cida-dão” a ser forjado na capital do país.SABERES ESCOLARES; REFORMA DE ENSINO; INFÂNCIA; EDUCAÇÃOHIGIÊNICA.

In this article I intend to promote the analysis of Program to Primary Schools of FederalDistrict, elaborated during Fernando de Azevedo’s Reform from 1927 to 1930, searching,from the constitution of selected school knowledges, in particular, concerning, discipli-ne of Hygienic Education, to identify the different representations of childhood thatshowed up as a model to development of the “new citizen” to be forged in the capitalcountry.SCHOOL KNOWLEDGES; REFORM OF EDUCATION; CHILDHOOD; HYGIENICEDUCATION.

* Doutoranda em história da educação pela Faculdade de Educação da Universidadede São Paulo e professora assistente da Faculdade de Formação de Professores daUniversidade do Estado do Rio de Janeiro.

160 revista brasileira de história da educação n° 8 jul./dez. 2004

Introdução

A lei biogenética, segundo a qual a criança deve ser antes um bom animal

para ser mais tarde um bom civilizado, é a pedra angular da Escola Nova.

Que importam métodos, processos, livros e aparelhagens ótimos, quando a

matéria-prima não está em condições de ser preparada. Ninguém pode ensi-

nar uma criança doente. Saúde em primeiro lugar e, depois, sabedoria.

[...] A Escola Nova é, assim, a Escola da Saúde [Moraes, 1997, p. 615].

Intitulada Escola Nova, a tese de Deodato de Moraes, apresentadana I Conferência Nacional de Educação realizada pela ABE (Associa-ção Brasileira de Educação), em 1927, procurou estabelecer as contra-posições entre a escola tradicional e a nova e, por conseguinte, buscoudelinear os princípios científicos e práticos do trabalho, da profissiona-lização e da saúde como parâmetros a partir do quais a escola deveria seorganizar. A reorganização da escola implicava a superação da dimen-são formalística, autoritária, triste, inerte, artificial e vista como cárcerepara a infância que a escola tradicional teria assumido e, a contrapor àescola de Satã, surge a Escola Nova, cujo lábaro de harmonia com asleis físico-psíquicas da criança abre campo vastíssimo às observações eexperiências (Moraes, 1997, p. 613).

Ao explicitar o caráter da escola existente, em detrimento de umanova formulação acerca do seu papel, Deodato de Moraes, mais do queconstruir alegorias acerca da escola, buscou reafirmar o sentido que de-veria avocar a escola reformada tanto em sua intervenção na sociedadequanto na redefinição de suas práticas e finalidades com relação à for-mação da infância escolarizada.

Como representante do Distrito Federal na I Conferência Nacionalde Educação, Deodato de Moraes canalizou, de maneira significativa,as posições de uma plêiade de intelectuais que, como ele, via nas idéiasidentificadas com o escolanovismo a possibilidade de se estabelecer osnovos pressupostos a partir dos quais a educação deveria se reorganizar.Fernando de Azevedo que, neste ano (1927), assumiu a Diretoria Geralde Instrução Pública do Distrito Federal, na mesma linha de argumenta-

a constituição dos saberes escolares... 161

ção de Deodato de Moraes, procurou antagonizar Escola Nova e EscolaTradicional, a fim de reafirmar a importância dos pressupostos científi-cos, técnicos, metodológicos e pedagógicos advindos dos referenciaisda escola reformada e nova. Nesse sentido, podemos dizer que o projetode reforma que Fernando de Azevedo pretendia desenvolver encontra-va-se assentado em três pilares centrais: a saúde, a moral e o trabalho. Apartir desses parâmetros, acreditava poder traçar um novo perfil para asnovas gerações, estabelecendo, portanto, a base necessária para a re-construção do país.

A reorganização dos aparelhos escolares, tendo em vista uma novafinalidade pedagógica e social, implicava a redefinição do papel da es-cola. A escola que, até então, vivia como uma instituição solitária emnosso meio, enquistada na vida social, com a qual não se relacionavaintimamente e sobre a qual não influenciava, passava a ser vista comouma instituição social que iria variar em função das formas sociais e dodesenvolvimento da sociedade.

Para Fernando de Azevedo, essa nova perspectiva, preconizada como projeto de reforma, antagonizava-se com os antigos procedimentoscom os quais a escola vinha se organizando no Distrito Federal e sobreo qual era preciso incidir.

Quando assumiu o cargo de Diretor Geral da Instrução Pública doDistrito Federal em 1927, Fernando de Azevedo trouxe consigo a con-vicção quanto ao poder da educação como elemento de progresso e ci-vilização. Educar significava não só assegurar os interesses do país, mastambém criar a identidade do povo em consonância com o conhecimen-to de suas necessidades e tradições nacionais. Em sua concepção, a re-construção social e nacional do país não poderia ser realizada senão poruma educação sólida capaz de dar às novas gerações a consciência doseu destino e prepará-las para viver num ambiente de compreensão esolidariedade.

Com a colaboração da Comissão de Planejamento e Reestruturaçãodo Ensino e das Escolas, composta por Frota Pessoa, Renato Jardim eJonathas Serrano, Fernando de Azevedo objetivou elaborar um corposistemático e apropriado de leis que regulassem o ensino que se encon-

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trava, segundo ele, sob a influência de uma legislação fragmentária econfusa, pois expressava a “apatia” do Estado pelos problemas da edu-cação. O Regulamento do Ensino, decreto n. 2.940, de 22 de novembrode 1928, constituiu um conjunto de textos normatizadores e operacio-nalizadores das transformações que se pretendia realizar na escola apartir da reorganização dos procedimentos administrativos, pedagógi-cos e educativos que orientavam o seu funcionamento.

Fomentar um projeto que conseguisse extirpar do cenário carioca osmales do seu atraso, identificados com o analfabetismo e a doença, sig-nificava a possibilidade de o Estado estabelecer as bases para promovero ajustamento e a inserção da capital e, por conseguinte, do país à or-dem capitalista internacional fomentando e potencializando progressostécnicos e científicos na edificação de uma nova idéia de civilização.Entre as formulações apresentadas, o projeto de reforma previa umaampla reestruturação do ensino, inspirando-se no propósito de atribuir àescola uma tarefa “social” e “nacional”, desenvolvendo para isto a suarenovação interior a fim de adequar o ensino à criança.

A preocupação com a formação social do indivíduo vai aparecercomo tônica a orientar as práticas desenvolvidas na escola pelas dife-rentes instituições criadas pela reforma, uma vez que visava a contribuirpara a formação cívica e moral, ressaltando sua importância para a cole-tividade social. Nesse sentido, o sistema escolar assumiu um duplo pa-pel: o de formar os indivíduos, mas também uma cultura que vem porsua vez penetrar, moldar, modificar a cultura da sociedade (Chervel,1990, p. 184).

Para isso, estratégias foram concebidas a fim de assegurar o desen-volvimento das escolas como “colméias sociais” vibráteis e laboriosas,onde todos deveriam ter o dever de trabalhar e tornar-se parte destacomunidade solidária. A criação das instituições e associações auxilia-res do professor, integradas aos métodos advindos com o escolanovis-mo, conferiam à escola um caráter novo e dilatava seu raio de açãosobre o meio social e seus freqüentadores.

O ensino público assumiu o caráter de obrigatoriedade e gratuidadecomo elementos fundamentais para a expansão da educação, passandoa constituir-se da seguinte maneira: ensino infantil ministrado nos jar-

a constituição dos saberes escolares... 163

dins de infância, ensino primário de cinco anos1, ensino vocacional eensino profissional, bem como o curso normal. A reorganização das es-colas colocava em foco a necessidade de a reforma atuar sobre a organi-zação, e o que era ministrado no ensino público do Distrito Federal.

A fim de intervir sobre o emaranhado de conteúdos que a escolaensinava, Fernando de Azevedo organizou, em 1929, uma comissão,composta pelos educadores Paulo Maranhão, Everardo Bacheuser, CelinaPadilha, Maria dos Reis Campos, Afonsina das Chagas Rosa e Alcinade Souza, que tinha como objetivo organizar os Programas para as Es-colas do Distrito Federal. Para além de elencar as matérias e os conteú-dos a serem ensinados, os programas apresentavam orientações pelasquais deveriam se pautar as escolas, estabelecendo as finalidades obje-tivas às quais professores, alunos e demais funcionários deveriam nortearseus procedimentos e condutas.

Nesse texto, pretendo, de forma preliminar, analisar o programa ela-borado para as escolas primárias do Distrito Federal. Procurando, a par-tir da definição das finalidades objetivas e da constituição dos saberesescolares selecionados para compor o plano de matérias, identificar asdiferentes representações de infância que configuraram como modelodesejável para a formação desse “novo cidadão” a ser forjado na capitaldo país.

Acredito ser imperioso, para o desenvolvimento de minha reflexão,pensar sobre o significado do que a escola ensinava e como os conteú-dos selecionados inseriram-se na constituição de uma perspectiva desociedade moderna nos anos de 1920. Para esse intento, voltarei minhaatenção prioritariamente para o plano de matéria da disciplina de Edu-cação Higiênica a ser oferecida nos cinco anos do curso primário, comoparte das iniciativas fomentadas pela reforma para configuração de umnovo tipo de educação direcionada à formação dos indivíduos oriundosdas camadas populares da sociedade carioca.

1. A matrícula tornou-se obrigatória nas escolas primárias às crianças de 7 a 12 anose facultativa às crianças de 13 a 16 anos. É interessante observar que permanece areferência de criança para designar os de 13 a 16 anos numa indicação, ao nossover, do tempo de duração da infância à época.

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Com este intento, podemos dizer que esse texto se organiza em doismomentos: no primeiro, pretendo analisar o programa para as escolasprimárias concebido pela Reforma Fernando de Azevedo e, nele, enten-der as finalidades que sustentaram a seleção e organização dos conteú-dos expressos na disciplina de Educação Higiênica; no segundo mo-mento, problematizar as representações de infâncias constituídas noprograma da Reforma.

Saberes escolares para quê?A Educação Higiênica em perspectiva

Os Programmas para as escolas primárias, elaborado em 1929, coma reforma de ensino partiu de uma noção comum sobre o que seriam opapel do professor, o lugar da escola e as finalidades gerais que deveriamorientar a reorganização da escola em suas técnicas de leitura, escrita,cálculo, nos hábitos de higiene, de saúde, de patriotismo, nos valoresmorais, nas normas de polidez, nas noções de vida doméstica e social,selecionando e estabelecendo o que necessitava ser fixado como centropropulsor da reforma das escolas. A preocupação com as condições físi-cas, pedagógicas e de equipamentos orientou a perspectiva intervencio-nista estabelecida por Fernando de Azevedo que via na organização mate-rial das escolas, na sistematização de um “guia para os professores” e nareorientação das finalidades educativas da escola a possibilidade de seconstruir uma verdadeira “Revolução da educação do país”.

Partindo dos princípios da escola única, escola do trabalho e escolado trabalho em cooperação, Fernando de Azevedo e sua equipe defini-ram o caráter da escola reformada, moderna, em que os programas apa-reciam associados à construção dos “novos fins, novos meios” de sepensar a escola em suas relações educativas, passando a ser concebidacomo “laboratório de saúde da raça” e espaço de formação de hábitossadios e desejados para a integração moral e social da criança.

A saúde é a condição primordial de uma vida completa, a base da felicidade

individual e da contribuição que possa prestar o homem à coletividade. Edu-

a constituição dos saberes escolares... 165

car um povo para que tenha saúde é dar-lhe maior eficiência de trabalho, é

realizar verdadeira obra de patriotismo [Programmas, 1929, p. 51].

As disciplinas de Observação (Geografia, Ciência Física e Natural);disciplinas de Expressão (Linguagem, Desenho, Trabalhos Manuais);Iniciação Matemática (Aritmética, Geometria); História Pátria; Educa-ção Social; Educação Higiênica (Higiene e Puericultura) e EducaçãoDoméstica foram pensadas em conjunto, agrupadas em torno de centrosde interesses que passaram a definir o que deveria ser ensinado pelosprofessores, tendo em vista a composição que adquiriu o programa paraas escolas primárias com a Reforma Fernando de Azevedo.

O programa trouxe um plano de distribuição de disciplinas comumpelos cinco anos da escola primária, diferindo os conteúdos e metodolo-gias a serem adotados pelos professores a cada ano. As disciplinas docurso primário assim se estruturaram: Conhecimentos Gerais, discipli-nas de Expressão; Iniciação Matemática; Educação Higiênica e Educa-ção Doméstica. Para além de se constituir como currículo a ser desen-volvido na escola, o programa se estabeleceu como um balizador dascondutas a serem observadas pelo professor a partir da fixação de prin-cípios que nortearam as práticas produzidas na escola.

Nesse particular, é interessante ressaltar que algumas disciplinaspassaram a constituírem-se como auxiliares imprescindíveis dos pro-fessores, independentemente da disciplina que trabalhassem. Exemplardisso são as disciplinas de Expressão (Desenho, Linguagem, TrabalhosManuais) que deveriam ser utilizadas no ensino de todas as demais dis-ciplinas, uma vez que eram vistas como os meios mais usuais para aexpressão do que sente e pensa a criança (Programmas, 1929, p. 34).

Como nos afiança Bittencourt, a presença de cada disciplina escolarno currículo, sua obrigatoriedade ou sua condição de conteúdo opcionale, ainda, seu reconhecimento legitimado por intermédio da escola nãose restringe a problemas epistemológicos ou didáticos, articula-se aopapel político que cada um desses saberes desempenha ou tende a de-sempenhar, dependendo da conjuntura educacional em que se consti-tuiu (2003, p. 10).

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O destaque dado à disciplina de Educação Higiênica em sua dimen-são de conteúdos escolares, de práticas instituídas e de assistencialismorealizado deve ser pensado no contexto de sua institucionalização comosaber legítimo e imprescindível à realidade escolar, uma vez que veio seprocessando em diferentes lógicas discursivas (médica, jurídica, urba-nística) presentes na sociedade dos anos de 1920, a prerrogativa de seestabelecer os parâmetros necessários para higienização, medicalização,controle e conformação dos corpos e da cidade em relação a uma lógicaque identificou o progresso e a modernidade à idéia de limpeza, beleza,educação e saúde.

Transformar-se numa sociedade moderna e civilizada significava, entre vá-

rios aspectos, suplantar-se o viver de acordo com os conhecimentos e ensina-

mentos de um grupo que se destacava do conjunto, exatamente por ter o

domínio deste conhecimento. Este era o critério para diferenciar a ordem da

desordem. Os higienistas pretendem erigir-se assim como a razão nesta or-

dem. A desordem associada à ignorância das regras de higiene é desqualificada

e justifica a ênfase na questão da educação [Cavalcante, 1985, p. 102].

Além da transmissão dos conteúdos a serem ensinados a partir daspráticas dos professores em sala de aula, as finalidades que orientavama constituição de formas de intervenção na escola devem ser analisadaspara que desta maneira se possa entender que a materialidade que assu-miram as idéias no contexto educacional não se encontrava subsumidaa uma única lógica discursiva de intervenção social, constituindo o en-trelaçamento entre as expectativas do poder público e os diferentes se-tores da sociedade, visando a estabelecer o predomínio de soluções paraos problemas do país2.

Compete à inspeção médica “zelar pela saúde das crianças das escolas,

manter as condições higiênicas do meio escolar e difundir princípios gerais

2. Neste texto não me proponho a discutir a aceitação ou recusa desses pressupostosdefendidos e colocados em prática nas escolas pela Reforma.

a constituição dos saberes escolares... 167

de higiene, cabendo à autoridade técnica incumbida de sua execução reali-

zar: a) palestras nas classes, a propósito de assuntos sugeridos por fatos da

vida escolar, no momento de visita; b) preleções sistemáticas sobre pueri-

cultura prática; c) organizar pelotões de saúde etc.” [...] [Velloso, 1929].

A ampliação do papel da escola envolvia também a influência queessa passaria a exercer na formação mental e moral da criança, amplian-do seus domínios e dando a ela lugar preponderante na racionalizaçãode procedimentos necessários para a formação do novo cidadão que seesperava formar. Para além de instruir, a escola deveria dar lições dehigiene e de cultura nacional, educando os costumes, os hábitos e ins-taurando um novo perfil de aluno, de professor e de espaço escolar.

Objetivando promover uma educação integral, Fernando de Azeve-do defendeu a importância de se implementarem atividades comple-mentares como o pelotão de saúde, o prato de sopa, as ligas de bondade,o escotismo, a assistência dentária, as colônias de férias, os clubes deleituras, as cooperativas escolares através das quais a escola passaria aser pensada como escola de saúde, graças ao seu ambiente de conforto epelas suas instalações próprias e ações conjuntas de todas as autorida-des e auxiliares.

O programa construído com a reforma alargou a ação da escola paraalém dos seus domínios, alcançando os lares das camadas “desprezadasda sorte”. Nesse particular, parece-me bastante significativa a orienta-ção que se estabeleceu para a disciplina de Educação Higiênica ofereci-da, indistintamente para meninos e meninas, nos cinco anos da escolaprimária. Sendo, particularmente, interessante à introdução, no quintoano da disciplina de Puericultura.

Educação Higiênica

Primeiro ano

• Hábitos de higiene bucal. Uso da escova de dente.• Higiene dos olhos, ouvidos, nariz, das mãos e dos pés.

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• Hábitos de higiene da pele, banhos, fricções, banhos de sol.• Higiene da alimentação. Escolha de alimentos. Como mastigar en-

golir; hábitos de temperança.• Hábitos de regularização das principais funções de excreção

(urinária e intestinal). Hábitos higiênicos no uso dos aparelhos sa-nitários.

• Higiene do vestuário.• Hábitos higiênicos relativos ao sono.

Segundo ano

• Ar. Poeiras. Ventilação. Quarto de dormir.• Água. Utilidade. Asseio. Moléstias transmissíveis pela água. Mei-

os de evitá-las. Filtragem.• O sol como centro de energia vital e microbicida. Vantagens e peri-

gos do sol de verão. Iluminação natural e artificial. Trabalho à noite.• Perigos dos animais domésticos. Doenças transmitidas pelos mos-

quitos, moscas, pulgas. Meios de exterminá-los.• Frutas e verduras. Seu papel na alimentação.• Asseio da habitação.• Hábitos higiênicos.

Terceiro ano

• O ar – Papel do oxigênio e do azoto (sic) – A hematose e a funçãoclorofiliana – Respiração defeituosa. Ar viciado e seus efeitos so-bre a saúde e o trabalho.

• Meios de evitar a tuberculose.• Alimentos em geral – Sua utilização na ração normal. Sua impor-

tância no crescimento. Pesagem dos alunos. Relação entre o peso ea altura. Horário das refeições; inconvenientes das irregularidadese dos abusos. Super e sub-alimentação. Doenças transmissíveis pe-los alimentos. Precauções higiênicas com as frutas e saladas. Regi-me vegetariano e misto.

• A febre amarela e o tifo – profilaxia.

a constituição dos saberes escolares... 169

• Saneamento da cidade do Rio de Janeiro. O Rio antigo e o moder-no. Hábitos higiênicos.

Quarto ano

• Bebidas estimulantes.• Alcoolismo – agudo e crônico. Malefícios para o indivíduo, para a

família e para a sociedade.• O leite e seu papel segundo a idade – sub-nutrição.• Profilaxia das principais moléstias transmitidas por insetos. Impa-

ludismo, ancilostomose.• Verminoses. Modos de propagação e meios de combatê-las.• Higiene da visão.• Moléstias contagiosas mais comuns. Hábitos para evitá-las.• Princípios de higiene mental.

Quinto ano

• Puericultura.• Higiene do recém-nascido. O quarto da criança, o vestuário, o as-

seio corporal, os passeios.• Aleitação natural. Aleitação artificial. Aleitação mista.• Alimentos próprios da criança.• Desmame. Alimentação da criança nas diversas idades.• Alimentação da criança doente.• Desenvolvimento normal da criança: o peso e a estatura; a pele e

as mucosas; a musculatura; o desenvolvimento físico; o sono; asfontanelas; os dentes; a temperatura; o trabalho digestivo.

• Higiene dos olhos, da boca, dos ouvidos, do nariz, da garganta edos órgãos sexuais da criança.

• Higiene mental das crianças (Programmas, 1929, pp. 56-57).

Os saberes que foram introduzidos a esta nova finalidade educativada escola denotaram a preocupação de associar o homem aos princípiosda natureza, do trabalho e da sociedade como formas fundamentais paraa formação completa desse futuro cidadão a ser incorporado à socieda-

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de que se pretendia moderna e civilizada. A perspectiva de infância de-sejada, a se constituir a partir do programa, demonstrava a ênfase atri-buída à consolidação de princípios higiênicos a serem ensinados einteriorizados pelas crianças das escolas públicas, intervindo no corpo,na casa, na família e nos seus hábitos a fim de contribuir para a forma-ção de mentes sãs e corpos sãos.

Não há matéria, não há atividade escolar, não há solenidade que não dê ense-

jo a uma lição de moral ou de civismo. Incutir no espírito do aluno à cons-

ciência do dever e da responsabilidade formar-lhe o caráter; criar e desenvol-

ver o espírito de brasilidade despertar-lhe a consciência dos deveres de cidadão

[...] todos os professores unidos por um ideal comum e empenhados por um

profundo sentimento cívico em preparar o cidadão capaz de amar a sua terra

[idem, p. 14].

A educação integral pretendida com a reforma objetivou preparar oaluno para o trabalho e para isso era fundamental desenvolver hábitoshigiênicos, despertando-lhe o sentido da saúde como elementos impres-cindíveis em sua formação tanto através das matérias ensinadas, comonas orientações prescritas pelas enfermeiras e inspetores médico e den-tista, visando a promover a prática, a propaganda e a defesa dos hábitoshigiênicos necessários à formação de uma “infância civilizada” e “útil”ao meio escolar e social.

Por um lado, é possível observar que o interesse que se tencionouincutir no aluno, bem como as práticas que se desenvolveram em classe(asseio, ordem, disciplina, ornamentação da sala de aula, pesquisa, con-fecção de material para museu) e, por outro, o sentimento de solidarie-dade, cooperação e responsabilidade que se buscou despertar e desen-volver nas crianças foram os fatores que contribuíram para areorganização das atividades escolares dentro de sua finalidade social(idem, p. 15).

Visavam a despertar no aluno o desejo de praticar hábitos sadios,tanto pelo aconselhamento que se daria nas escolas, como também pelaprática de atividades que o levassem a desenvolver desenho, redação,confecção de cartazes, representações, canções a propósito da educação

a constituição dos saberes escolares... 171

sanitária e da necessidade de sua pronta adaptação ao cotidiano escolare familiar das crianças, pois, como salienta Chervel, “[...] as disciplinasescolares intervêm na história cultural da sociedade, preparando a acul-turação dos alunos em conformidade com certas finalidades, sendo istoque explica sua gênese e constitui sua razão social” (1990, p. 220). Nes-te sentido, poderia então inquirir sobre que representações de infânciaforam constituídas e quais as finalidades de sua organização no contex-to de implementação da Reforma no Distrito Federal?

Os saberes escolares e as representaçõesde infâncias

A representação de uma infância desejada estava intimamente asso-ciada ao referencial de criança saudável, ajustada e em consonância coma perspectiva de civilização pretendida para o país nos anos de 1920. Ésugestivo pensar que, ao propor os conteúdos da disciplina de EducaçãoHigiênica, os métodos de ensino e as práticas educativas a serem desen-volvidas nas escolas, Fernando de Azevedo pretendia, para além de con-figurar uma nova cultura escolar, estabelecer um novo padrão de infân-cia moldada aos princípios de higiene e aos referenciais científicos quedefiniram pelos vieses da psicologia e da puericultura os parâmetros apartir dos quais se forjaram as idealizações mental, física e pedagógicapara a infância do país em mudança.

As inspeções escolares foram estimuladas e com elas a elaboraçãode práticas normatizadoras, ações de vigilância e fiscalização sobre ocorpo da criança corporificaram-se. Se a escola era vista como laborató-rio, a criança passava a ser objeto de investigação. A prática da pesageme da medida, bem como a revista diária e os exames constantes dosaparelhos respiratório, visual, auditivo, garganta e nariz indicavam anecessidade maior ou menor da intervenção por parte da escola na vidada criança (Camara, 2003, p. 408).

A higiene individual, ressaltada na limpeza das roupas, unhas, ca-belos, orelhas e dentes foi minuciosamente observada, uma vez quepossibilitava juntamente com a ficha médica e sanitária traçar o perfil

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familiar da criança. A higiene da criança, tanto nos aspectos físicosquanto nos mentais, foi objeto de atenção onde a partir do seu compor-tamento, o professor deveria ser capaz de enquadrá-la como normalou anormal. A definição dessa natureza deveria ser seguida de proce-dimentos específicos, a fim de identificar e intervir na adaptação dosindivíduos que apresentavam qualquer problema ou que fossem diag-nosticados como anormais3.

A preocupação em organizar de forma sistemática as finalidades eos conteúdos a serem ensinados na escola expressou a tentativa por par-te da Diretoria de Instrução Pública de se estabelecerem referenciais apartir dos quais se instituiu a caracterização de uma infância desejável esimetricamente o seu oposto. Sendo assim, é possível dizer que a condi-ção de escolar atribuída à criança sancionou a afirmação de uma identi-dade própria a ser assumida por ela no espaço da escola denotando osentido ideal de infância4 desejada e civilizada a ser construída a partirda implementação e dos procedimentos a serem encaminhados pela re-forma do ensino.

Neste contexto, forjou-se uma nova representação de criança e dealuno, uma vez que se associou a sua imagem à mudança de foco daeducação reformada, e a essa criança seria preciso associar novas capa-cidades, negligenciadas pela escola tradicional. Além de observador aten-to, investigador tenaz, deveria a criança ter discernimento e iniciativapessoal, constituindo-se como “[...] ser vivo pensante, como unidadesob o ponto de vista físico, intelectual e moral” (Moraes, 1997, p. 615).

Quanto à essa dimensão de infância escolarizada é possível perce-ber que se constituíram adjetivações a partir das quais as “crianças”

3. Objetivando atender às crianças anormais, Azevedo mandou construir na Quintada Boa Vista a escola para débeis físicos, onde as condições de higiene e salubrida-de foram ressaltadas na arquitetura concebida por Nereu Sampaio.

4. Utilizo a idéia de infância desejada como acepção correlata a criança/aluno disci-plinado e afeito aos pressupostos propugnados pelo Programa da Reforma, porconsiderar que, ao estabelecer os referenciais a partir dos quais as criançasescolarizadas deveriam pautar-se, sancionaram uma prerrogativa de infância, vistacomo fase da vida da criança na qual a escola teria o papel de encaminhar, moldare construir hábitos saudáveis.

a constituição dos saberes escolares... 173

seriam pensadas, escutadas, prescritas e silenciadas no espaço da esco-la. Nessa perspectiva, buscaram associar os aspectos psíquicos, sociais,culturais e físicos para reforçar as representações construídas acerca dolugar da criança na sociedade, estabelecendo as distinções por sexo,compleição física, normal, anormal e de raça como elementos significa-tivos na configuração da identidade da infância desejada e “perfeita”para a capital do país, numa alusão clara à necessidade de a escola exer-cer um papel preventivo no sentido de inibir os perigos provenientes deum cotidiano vicioso e condenável a oferecer toda sorte de perigos àscrianças em formação.

Como parte educativa devemos considerar a que procura desenvolver no in-

divíduo qualidades e sentimentos que o tornem apto a preencher da melhor

maneira o seu papel na coletividade política de que faz parte, ocupa-se, por-

tanto, dos deveres e direitos do cidadão. Mas as qualidades do perfeito cida-

dão ligam-se intimamente as do homem perfeito [Programmas, 1929, p. 48].

Nesse sentido, como salienta Chartier, as representações constituemcomo matrizes de práticas construtoras do mundo social e, nesse parti-cular, a noção de representação coletiva autoriza a articularmos trêsmodalidades de relação com o mundo social. Primeiramente, que a rea-lidade é contraditoriamente construída pelos diferentes grupos que com-põem uma sociedade; segundo, que as práticas visam a fazer reconheceruma identidade social, exibe uma maneira própria de ser no mundo e,terceiro, que as formas institucionalizadas e objetivadas das representa-ções marcam de modo visível e perpétuo a existência do grupo, da co-munidade ou de classe. A partir desta constatação, abre-se uma duplavia: uma que pensa a construção das identidades sociais como resultadode uma relação de forças entre as representações impostas pelos quedetêm o poder de classificar e de nomear, implicando aceitação ou resis-tência que cada comunidade produz de si, outra que considera o recortesocial objetivado como a tradução do crédito conferido à representaçãoque cada grupo dá de si mesmo (1991, pp. 183-186).

Se por um lado, o programa pretendia, a partir das disciplinas sele-cionadas, construir a intervenção na sociedade, estabelecendo os padrões

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desejáveis de comportamento para o aluno, por outro, encontramos umcontingente enorme de crianças excluídas desses espaços escolares, ca-bendo a elas o atendimento filantrópico promovido por associações assis-tenciais ou pelas escolas, através do assistencialismo realizado com a dis-tribuição dos pratos de sopa para as “crianças pobres e necessitadas”.

O ensino obrigatório impõe-se, a meu ver, como única medida eficaz a ser

adotada. Somente depois que se der um destino certo a essa multidão de

almas inocentes que perambulam a esmo pelas sarjetas, em completa imun-

dície física e moral, é que se poderá modificar o aspecto desolador que esta

grande cidade nos oferece diariamente [Werneck, 1929].

A preocupação de “ajustar” a escola ao meio social trouxe a neces-sidade de constituí-la como um elemento dinâmico, criador e discipli-nador de atividades, capaz de transmitir valores e ideais às novas gera-ções, exercendo sobre as crianças uma pressão poderosa, capaz decontribuir para a transformação do meio social para o qual foi criada. Àmedida que se vivia num meio que necessitava ser modificado, a escolaassumiu o papel de agente prioritário desta ação, uma vez que atuandojunto às crianças, tinha a função de colaborar para a implementação dehábitos sadios e saudáveis junto à população pobre que habitava a cida-de, para isso associaram esforços no sentido de transformar a escola emmodelo exemplar de higiene e saúde.

Materializando-se em “lugar de saúde”, a escola, aberta à luz do sol e ao ar,

limpa, espaçosa, ordenada e clara, exerceria por si só uma “poderosa suges-

tão higiênica sobre as crianças. Contrastando com a sujeira dos seus sapatos

e das suas mãos, o assoalho limpíssimo e os móveis polidos e lustrosos ensi-

nariam às crianças a necessidade de limpar a sola dos sapatos e lavar as

mãos. Agindo sobre a tendência à imitação, a escola, impecavelmente limpa

e iluminada, transbordaria a sua ação educativa para o ambiente doméstico,“e

assim, a instalação escolar, pela sua simples força de presença, irá repercutir

nas condições sanitárias do domicílio” [Rocha, 2003, p. 48].

a constituição dos saberes escolares... 175

Embora os programas elaborados visassem a conformar as escolasàs finalidades estabelecidas, havia na apropriação construída pelos su-jeitos professores e alunos o lugar da criação, da recusa do enfrentamen-to surdo em relação aos procedimentos a serem desenvolvidos na esco-la. É possível dizer que a composição dos programas associava-se àperspectiva de se construirem práticas no espaço da escola que modifi-casse a cultura das crianças oriundas das classes populares, denotando àescola o papel de intervenção no social e de transformação dos indiví-duos, sem a qual, a criança estaria sujeita a toda sorte de vícios e degra-dação.

Nesse aspecto, posso inferir que os conhecimentos que passaram acompor a disciplina de Educação Higiênica assumiram um papelnormatizador e disciplinador, uma vez que expressavam as finalidadesque deveriam estruturar os ideais de formação de uma sociedade identi-ficada com os preceitos higiênicos a serem socializados, e incorporadacomo práticas cotidianas no viver da população, para além do espaço daescola. Assim, uma disciplina define-se tanto por suas finalidades quan-to por seus conteúdos, e para entender a seleção do que se deve ensinaré preciso ter claro quais as finalidades que orientam as escolhas. Embo-ra as finalidades das disciplinas aparecessem como preocupação funda-mental no Programa da Reforma, é possível afirmar que isto não garan-tia a sua existência no ensino real das salas de aula, pois “as finalidadesdas disciplinas nunca são unívocas. Procedem, normalmente, de arqui-teturas complexas, nas quais estratos sucessivos, que se sobrepuseram apartir de elementos contraditórios, se mesclam” (Julia, 2002, p. 51).

A obra fundamental da escola não estava associada apenas à difusãodo ler, do escrever e do contar como base necessária à extensão dasaprendizagens para todos, isto é, ao lado do aumento quantitativo daalfabetização pretendida pela reforma encontrava-se, também, a consti-tuição dessas e de outras aprendizagens como saberes escolarizáveis, oque conferiu a essas aprendizagens estatutos diferentes, imprescindívelà passagem dos conhecimentos amadores para conhecimentos profis-sionais, sob a batuta dos referenciais advindos com a ciência e a técnica.

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A escola não só transmitiu valores, mas também se apropriou deles,produzindo novos saberes, através dos quais pretendeu intervir no meiosocial. No caso da disciplina de Educação Higiênica, a presença maciçade conteúdos associados a usos e práticas do cotidiano das famílias de-notava a tentativa de se escolarizar os saberes naturalmente adquiridos,instituindo a competência da escola e a legitimidade dos saberes escola-res a serem apropriados pelas crianças.

Afora as medidas assistencialistas adotadas nas escolas, foram asmedidas preventivas e profiláticas que adquiriram papel preponderante,uma vez que visavam não só a contribuir para a coibição dos avançosdos vícios do fumo e do alcoolismo, como também das epidemias queinfestavam a cidade. Exemplar dessa iniciativa intervencionista na cons-tituição ou na conformação dos comportamentos das crianças pode serpontuada na forma como a disciplina de Educação Higiênica foi organi-zada. Logo no primeiro ano, a criança deveria constituir hábitos de hi-giene pessoal (higiene bucal, associada ao uso da escova de dente; hi-giene dos olhos, ouvidos, nariz, mãos, pés, pele, banhos, banhos de sol;higiene alimentar, como mastigar e engolir, hábitos de “regularizaçãodas funções de excreção”, hábitos no uso dos aparelhos sanitários; hi-giene do vestuário e hábitos higiênicos relativos ao sono. Para, então,no 2o, 3o e 4o anos direcionarem o foco de preocupação para a naturezae sua relação com o homem, o trabalho e a sociedade). No 5o ano, aEducação Higiênica assumiu a designação de Puericultura e seus con-teúdos foram direcionados para a aprendizagem da higiene, da alimen-tação e do desenvolvimento intelectual, físico e psicológico da infância,permitindo aos alunos, ao final da escola primária, estarem imbuídos de“todos os conhecimentos necessários” para a sua formação como ho-mens e mulheres conscientes de seus deveres e de seus papéis sociais. Ahigiene individual constituiu o meio a fim de se promover a higienesocial, estabelecendo-se como hábitos internalizados e incorporados aoviver das camadas mais pobres da sociedade e, dessa forma, modifican-do os seus costumes.

A presença da Puericultura em lugar da Educação Higiênica, no 5o

ano da escola primária, é sugestiva da preocupação do reformador em

a constituição dos saberes escolares... 177

encaminhar as crianças na escolha por uma profissão, e a partir dessemomento a escola se organizava de maneira diferenciada para meninose meninas5. A escola primária, vista como escola do trabalho educativo,deveria fornecer o escopo necessário para o enraizamento dos valores esentidos necessários para a conformação das crianças aos papéis sociaisque exerceriam, atribuindo-lhes a “responsabilidade que têm para como futuro se não prevenirem sua prole contra as deficiências e deforma-ções provenientes da má saúde dos pais” (Programmas, 1929, p. 53).

O maior esforço deve ser exercido evidentemente sobre as crianças às quais

convém dar hábitos novos “tão bem enraizados que elas lhes obedeçam como

a verdadeiros preconceitos”. Mas à escola, além dos cuidados do espírito e

do corpo de que deve cercar as crianças, compete trabalhar, por intermédio

das educadoras sanitárias, para lhes criar, nas famílias, por mais modestas

que sejam, um ambiente mais favorável à saúde, reagindo contra todos os

elementos que possam alterá-la ou pô-la em perigo [Azevedo, s/d., p. 181].

Além dessas medidas preventivas, a adoção de critérios médicospara realização da matrícula escolar passou a definir o padrão desejávelda criança que ingressaria no mundo escolar. O exame médico6 realiza-do deveria observar se a criança apresentava retardamento mental, doen-ças contagiosas ou incuráveis e se havia sido vacinada. Concomitante-mente, as premissas de higienização dos corpos e normatização das

5. Para entender melhor a perspectiva do gênero na escola primária no período daReforma Fernando de Azevedo, ver o texto de Diana Vidal, “A Educação Domés-tica e a Reforma da Instrução Pública do Distrito Federal (1928-1930)”, 1996.

6. Segundo Antonio Leão Velloso, existiam diferenças entre a inspeção médica esco-lar que tinha a finalidade de amparar, auxiliar e assistir os escolares, e a inspeçãomédica sanitária escolar, que atuava de forma profilática na escola, identificandoas crianças portadoras de doenças e prescrevendo tratamento e o seu afastamentodo espaço escolar. Neste mesmo artigo, Velloso demonstra a existência de doisencaminhamentos quanto ao problema da assistência escolar. De um lado a visãodefendida por Oscar Clark, chefe do serviço da Inspeção Médica da Diretoria Ge-ral de Instrução Pública, e de outro lado, Zopyro Goulart, médico escolar que de-fendia a prerrogativa profilática para a inspeção escolar. “Profilática ou assistên-cia?” Jornal Correio da Manhã de 14 de maio de 1929.

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condutas tornaram freqüente a preocupação com a ordenação dos espa-ços escolares e da cidade, como podemos observar no discurso proferi-do por Fernando de Azevedo, no salão do Jockey Club, no dia 8 desetembro de 1927, sobre a questão da higiene escolar e higiene física doaluno.

Esta questão não basta enunciar para avaliar o seu alcance, reveste excepcio-

nal gravidade, em face da miséria orgânica e social da população da maioria

das escolas rurais e suburbanas. Eu falo em nome das crianças dos meios

rurais e operários, filhos da rua e da miséria, brotadas em lares onde escas-

seia o pão e sobram as provações e onde o agasalho do corpo e a própria

subsistência não provém do salário certo, mas de expedientes aleatórios. Eu

falo em nome dessas crianças enfezadas e anêmicas, quase maltrapilhas que

enchem grande número de escolas públicas, bem perto do bulício e do fausto

dos brandes centros da cidade, e trazem, na tristeza apática, nas olheiras fun-

das e no olhar sem brilho, quando não nas escolioses, e em toda espécie de

estigmas, a marca do meio social em que detinham, e todos os sinais de uma

debilidade congênita agravada pelas taras hereditárias e pela penúria de mei-

os malsãos, e oferecida como presa fácil à contaminação ambiente. Por me-

nor que pareça, constituem essas crianças quase a metade da população em

idade escolar que rumoreja em casarões sombrios ou cochicholos infectos,

em que a higiene não pode, pela força irremovível das condições dos prédi-

os, passar do papel, e a própria educação física se ministra nos saguões dos

edifícios, nos quintais e em pátios de recreio, inapropriados sujeitos a ema-

nações insalubres de instalações sanitárias [Programmas, 1929, p. 50].

O discurso de Azevedo trouxe a intenção de processar uma inter-venção no espaço da cidade, através da construção dos prédios escola-res adaptados às condições sanitárias e higiênicas, como também naforma de inserção das crianças na cidade. A argumentação produzidaprocurou patentear as reivindicações e necessidades das camadas maispobres da sociedade, representadas pelos operários e trabalhadores emgeral, com a intenção de criar representações acerca de uma infância“desprezada”, “doente”, “estigmatizada”, “triste”, o contraponto paradefender os pressupostos necessários para criar na criança o “sentido da

a constituição dos saberes escolares... 179

saúde”, associado a uma infância protegida, saudável, assistida, alegre erobusta a ser educada na escola reformada.

Os saberes escolares e as práticas pedagógicas que se desenvolve-ram nas escolas inscreveram-se como estratégias de configuração docampo escolar e, por conseguinte, de intervenção no campo social pelossujeitos envolvidos no processo de escolarização da sociedade por meioda “escola da saúde” implementada com a Reforma Fernando de Aze-vedo. Estiveram, neste particular, em diálogo e em consonância comoutros movimentos que, empreendidos por diferentes setores da socie-dade, tais como o jurídico e o médico, vislumbraram na educação dire-cionada à criança e na ação desempenhada pela escola, elementos cruciaispara se realizar o esforço transformador da sociedade nas décadas de1920 e 1930.

A seleção dos conteúdos escolares constitutivos da disciplina deEducação Higiênica, expresso no plano de matérias da Reforma Fernandode Azevedo, bem como as práticas e fazeres introduzidos por ela, balizam-me a pensar que tais referenciais corroboraram para a configuração, nacapital do país, das produções das representações de “infâncias deseja-das” como reverberação da idealização do homem novo a constituir-secomo esteio fértil para o futuro do país em bases modernas e identifica-das com a civilização proclamada e desejada pelos reformadores.

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DOSSIÊ

TEMPOS SOCIAIS, TEMPOS ESCOLARES

Apresentação

Os textos aqui reunidos tratam de períodos históricos diferenciados(contemplando desde o século XVII ao século XX), contextos diversos(Brasil e México) e abordam temáticas diferentes (as excursões e ritosescolares, a organização curricular, a produção da idade escolar), tra-zendo em comum a centralidade da categoria tempo no estudo dos fenô-menos educativos investigados. Busca-se, a partir de pesquisas empíricasdiversas, demonstrar como a produção e ordenação de tempos escolaresconstituíram elemento central no processo de escolarização do social,articulado à modernidade.

A partir desse eixo, os autores analisam como a aquisição de umadeterminada concepção do tempo, ordenada no interior da escola, foifundamental para a introjeção de um conjunto de habitus, identificadocom a modernidade. Modernidade essa que assumiu significados singu-lares, tendo em vista as especificidades de cada momento histórico, dasinstituições e atores sociais postos em cena.

Assim é que Lucía Moctezuma aborda, no diálogo com os estudossobre as inovações pedagógicas introduzidas no cotidiano escolar doensino elementar do final do século XIX e início do XX, um tema aindapouco investigado: as excursões escolares. Essas buscam introduzir umanova ordenação do tempo, na organização do cotidiano das salas deaula.

É a ordenação dos tempos escolares no interior dos espaços pedagó-gicos que constitui o tema desenvolvido por Anne Staples. Em seu arti-go, a autora contempla os rituais institucionais, bem como a definiçãodo calendário escolar no início do século XIX, no bojo da introdução dométodo simultâneo.

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Já tendo como foco de estudo, não a escola elementar, mas a desti-nada à formação da juventude, ao final do século XVIII, Eduardo FloresClai, em seu texto, contempla a análise da vida acadêmica, no interiordo Real Seminário de Mineria. Tal instituição, voltada para difusão deconhecimentos científicos relacionados à exploração mineral, buscouirradiar uma representação coletiva do tempo, através da produção deum ritmo da vida escolar no cotidiano dos sujeitos ali inseridos.

Também centrando-se na formação da juventude, Antonio PadillaArroyo aborda a relação entre tempos escolares e tempos sociais. Seuestudo contempla a análise dos processos disciplinares conformadoresde regulações e controles, a serem introjetados pelo indivíduo, identifi-cados com o projeto civilizador.

Por fim, o artigo de Maria Cristina Gouveia tem como foco, não ocontexto mexicano, mas o estudo da produção histórica de uma idadeescolar na província brasileira de Minas Gerais ao longo do século XIX.Idade compreendida como período de vida do indivíduo (a meninice),em que esse deveria obrigatoriamente estar inserido na escola elemen-tar, para ali adquirir saberes para sua formação para a vida adulta.

Maria Cristina Gouveia

El aula al exterior

El tiempo de las excursiones escolaresen México, 1904-1908

Lucía Martínez Moctezuma*

Las modernas prácticas de enseñanza impuestas en Europa a finales del siglo XIX fuerondicutidas y practicadas en diferentes regiones de México. La organización pedagógica yel plan de estudios de la escuela moderna buscaba lograr el desarrollo intelectual, moraly físico de los alumnos, para ello se prescribió la práctica de la gimnasia, los ejerciciosmilitares, el trabajo manual y la realización de excursiones escolares. Esta última fueuna de las innovaciones pedagógicas que se recibió con mayor entusiasmo debido a querepresentó una actividad lúdica de socialización y de aprendizaje fuera de la disciplinaimpuesta en el aula escolar. La aplicación del procedimiento intuitivo en toda la curriculaescolar transformará el tiempo y el espacio escolar.CULTURA ESCOLAR; TIEMPO Y ESPACIO ESCOLAR; EDUCACIÓN INTUITIVA.

The modern practice of teaching education imposed in Europe at the end of the 19th

century has been argued and practiced in different regions of Mexico. The pedagogicalorganization and studies plans of modern school, was searching the intellectual, moraland physical development of the pupils, it was prescribed a program of physicaleducational, military exercises, manual work and school excursions. This last one wasdetermined to be one pedagogical innovation, and was received with great enthusiasm,therefore it represented a playful activity of socialization and learning out of thecurriculum impost in the classroom. The application of the innovative procedure in allschool curriculum had transformed the school time and space.SCHOOL CULTURE; TIME AND SCHOOL SPACE; INTUITIVE EDUCATION.

* Doctora en historia por la Universidad de París X-Nanterre, Francia.Profesora investigadora del Instituto de Ciencias de la Educación de la Universi-dad Autónoma del Estado de Morelos, México. Entre sus últimas publicacionesestá la coordinación de La infancia y la cultura escrita (México, Siglo XXI Edito-res, 2001).

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El tiempo escolar ha sido concebido como una construcción cultu-ral y pedagógica que no se reduce simplemente a un esquema formal oa una estructura neutra en la cual se vacía la educación. Se trata de unasecuencia donde se distribuyen procesos y acciones educativas, en laque intervienen el currículo y la cultura escolar, a saber, los determina-dos supuestos psicopedagógicos, una jerarquía de valores y las formasde gestión de la escuela. El tiempo escolar es un tiempo normado yorganizativo, donde el calendario y los cuadros de horarios distribuyenlas actividades y las materias por semana, día y hora. El calendarioestablece el principio y el fin de las actividades escolares, la entrada y lasalida, los periodos vacacionales, los lectivos y los feriados. En laconfiguración del tiempo escolar influyen aspectos económicos, reli-giosos y políticos que se conjugan con los hábitos y ritmos temporalesal mismo tiempo que con las inercias y las tradiciones de la sociedad.Además del calendario y el horario escolar existe una doble red de rela-ciones temporales. La primera está implícita en la estructura del sistemaeducativo con sus niveles, ciclos, cursos y ritos que pretende sustentarseen una determinada concepción evolutiva de la infancia y adolescencia.La segunda tiene que ver con el reparto de las tareas y las actividades encada una de las unidades temporales que de manera tradicional se hanpensado como parte de un lugar determinado, aunque ha sido la prácticaescolar que ha revelado que este espacio se ha ampliado más allá de lasfronteras del aula. Es este último planteamiento el que nos interesa ahora,pues hace unos años, Antonio Viñao hacía un recuento de los problemasque aún estaban pendientes en la historiografía del campo de la historiade la educación. Uno de ellos tenía que ver con el tiempo dedicado a losejercicios escolares, fuera del ámbito espacial y temporal del centrodocente. Un tiempo donde el alumno estaba dedicado a las tareas esco-lares, sin estar dentro del aula pero en un horario que podía considerarsepropio de la escuela (Viñao Frago, 1996, pp. 47-48, 51-53).

Así, pues, este trabajo tiene como objetivo conocer el tiempo quedestinaron los alumnos mexicanos en el aprendizaje de los nuevos sabe-res que propuso la escuela moderna. A finales del siglo XIX, la escuelamexicana sufrió una transformación que se reflejó en la curricula, en loslibros de texto y sobre todo en el tiempo que los alumnos dedicaron a

el aula al exterior 185

sus tareas dentro y fuera del aula escolar. La realización de los paseosescolares permitió a los alumnos adquirir de manera intuitiva una seriede conocimientos con la visita que realizaron a las industrias, lashaciendas, los talleres, las imprentas y el campo. Una actividad pedagó-gica innovadora que llevó a los maestros, los pedagogos, los autores delibros de texto y a las autoridades escolares de la época a reorganizar eltiempo de aprendizaje fuera de las limitaciones del espacio escolar.

Para dar cuenta de este problema y siguiendo la propuesta de AntonioViñao, confronté los tres puntos de vista que él había puesto en prácticaen algunos de sus trabajos: el teórico, el de los pedagogos, los inspectoresy los maestros; el legal, siguiendo las normas que regularon la cuestión yel punto de vista escolar, es decir, lo que sucedía al interior de las escuelas,tratando de ver la evolución y sus cambios, pero también sus influenciasrecíprocas. Sólo así pude observar la triple naturaleza del tiempo escolar:como medio disciplinario, como mecanismo de organización curricular ycondicionada por la cultura escolar (idem, pp. 51-53).

Aprendiendo de la naturaleza: el procedimientointuitivo en la escuela

En el último tercio del siglo XIX, la mayor parte de los paíseseuropeos establecieron modernos sistemas educativos cuyas finalida-des fueron dos principalmente: asegurar la reproducción de ciertos va-lores e ilustrar a las clases populares de acuerdo con las transformacioneseconómicas de la época. De esta manera, el desarrollo del sentimientonacional y el mantenimiento del orden social fueron una prioridad tantocomo la propagación de ciertos conocimientos útiles para la vida. Sevinculó entonces la divulgación de la ciencia aplicada y las necesidadesde la reciente industrialización (Melcón, 2000, p. 135).

Estas modernas prácticas de enseñanza también fueron discutidas yaplicadas en América Latina. En México, el régimen del General PorfirioDíaz (1876-1910) había adoptado como modelo de desarrollo el francés,fundado en una nación moderna, cosmopolita y urbana, que suponía ala nación como una construcción homogénea y occidentalizada orienta-

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da hacia el mercado internacional, reglamentada y organizada científi-camente, donde los inmigrantes blancos y la inversión extranjera erancomponentes claves de este concepto. En materia educativa se mostrabala imagen de un país liberal y positivista que ponía el acento en unaenseñanza laica, gratuita, obligatoria, moral, cívica, nacional, física eintelectual (Tortolero, 2002).

Tanto en Brasil como en México, la organización pedagógica y elplan de estudios buscaban lograr el desarrollo intelectual, moral y físicode los alumnos a través de la enseñanza intuitiva.

En Brasil, la reforma de la enseñanza pública de 1892 impuso elprocedimiento intuitivo como obligatorio en la escuela pública. EnMéxico, como resultado de las discusiones académicas llevadas a caboen dos Congresos de Instrucción Pública (1889-1890 y 1890-1891), seacordó también adoptarlo en el proceso de aprendizaje de casi todas lasasignaturas. Llamado intuitivo o de Pestalozzi, fue desarrollado por elpedagogo suizo en su tratado Cómo Gertrudis enseña a sus hijos, don-de, inspirado en el pensamiento de filósofos y pedagogos como Bacon,Locke, Hume, Rousseau, Rabelais, Comenius y Froebel, señalaba laimportancia del desenvolvimiento gradual de las facultades intelectualesde los niños a través de la observación y el análisis de los objetos que lerodeaban. Un procedimiento que consistía en la valoración de la intuicióncomo fundamento de todo el conocimiento, que exigía sobre todo de lossentidos y de la observación. Se recomendaba su aplicación sobre todoen las materias científicas del currículum escolar como la aritmética ylas ciencias físico-naturales (lecciones de cosas) aunque se aconsejabatambién su uso en la enseñanza de la historia, la geografía y nuevossaberes como la gimnasia, los ejercicios militares, el trabajo manual, lahigiene en la escuela y la realización de paseos escolares. Esta últimafue una de las innovaciones pedagógicas más interesantes de la épocadebido a que representó una actividad lúdica y de aprendizaje fuera dela disciplina impuesta en el aula escolar (Souza, 1999, pp. 120, 121,130; Bazant, 1995, p. 34; Bazant, 1999, pp. 145-146).

El desarrollo de esta propuesta innovadora significó una reorgani-zación del ambiente escolar. Con el marco legal que estipulaba launiformidad, el laicismo, la gratuidad y la obligatoriedad (1891), se

el aula al exterior 187

crearon una serie de instituciones como la Dirección de Enseñanza Nor-mal (1901), la Secretaría de Instrucción Pública y Bellas Artes (1905),un órgano de vigilancia como el Consejo Superior de Educación Públi-ca (1902) y un cuerpo de inspectores (1901) que concediera atención ala práctica de la enseñanza de la lengua nacional, los trabajos manualesy los conocimientos elementales intuitivos y coordinados de las cosas,los seres y los fenómenos que estuvieran al alcance de los niños, a efectode que pudieran aprovechar y fomentar los recursos del lugar en que sevivía (Boletín de Instrucción Pública, 1909, p. 194).

El aprendizaje intuitivo implicó un cambio en la curricula y en elespacio escolar. El saber no fue otra cosa que el conocimiento de lasleyes naturales y la aplicación que de éstas había hecho el hombre paraalcanzar su bienestar. Observar directamente a la naturaleza para inter-pretar y aprovechar la vida que les rodeaba era la mejor manera de obtenerla ciencia teórica y práctica. No podía prescindirse ni de los elementosque existían en la ciudad y en el campo como tampoco del aprendizajeen el aula y en los libros. La aceptación del método se explicaba por lacorrespondencia que existía entre sus principios y las aspiraciones de lareforma social, donde se privilegiaba la formación de los trabajadorespara la industria: “[...] la observación engendra el raciocinio y el trabajoprepara al futuro productor, haciendo indisolubles el pensar y el cons-truir” (Souza, 1999, pp. 120-121).

El procedimiento intuitivo era un medio del que hacía uso el maes-tro en asignaturas tales como las lecciones de cosas que aparecieron enla ley de instrucción pública desde 1890. El programa escolar señalabaque los alumnos del nivel elemental que cursaban el primer año debíanobservar los objetos materiales que les rodeaban para saber sucomposición y su uso. En el segundo año, los niños conocían de cercalas plantas y los animales vertebrados además de los instrumentos quese empleaban en la agricultura, las artes y la industria. En el tercer añoadquirían nociones sobre los meteoros, el clima, la producción de lalocalidad (maíz, trigo y otros cereales) además de los animales inverte-brados. Y en el último año se acercaban al conocimiento de la anatomía,la fisiología y la higiene del cuerpo humano.

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Estas lecciones proponían dar al niño ideas o conocimientos varia-dos de cosas que podían ser vistas. Cuando el contacto directo no eraposible, se recurría a las láminas o a las imágenes de los libros escolarescon el objeto de provocar la curiosidad y la atención del niño para enri-quecer y ampliar su experiencia. Las lecciones de estos libros estabanorientadas a la lectura de temas que los ponían en contacto con losvegetales, los animales y sobre todo los aparatos construidos por elhombre. Todas las disciplinas procuraron adaptarse a este método.

Los libros de texto podían ser de dos clases: los que trataban de lanaturaleza, una ciencia o un solo oficio y aquellos que estudiaban obje-tos heterogéneos, una suerte de modelo enciclopédico, de caráctersincrético que reunía en un solo volumen toda la cultura escolar (GómezR. de Castro, 1997, pp. 450-453; Escolano, 2000, pp. 28-29). A estesegundo grupo correspondieron casi todos los libros de la asignatura delecciones de cosas de la escuela elemental debido a que durante el Se-gundo Congreso de Instrucción Pública, se acordó que sólo seríaobligatorio el libro de texto de lectura para todos los grados (MartínezMoctezuma, 2001, pp. 396-399).

Esta propuesta pedagógica modificó la presentación de los libros detexto, pues desde entonces los editores y los autores procuraron que eleducando se interesara en sus publicaciones, pues con ellas podríanasimilar asuntos “de más valor para su vida práctica”. Para lograrlo fuenecesario que el libro resultara atractivo por su contenido y presentación,lleno de grabados, figuras coloridas y letra clara (Ruiz, 1903, p. 38).Entre 1904 y 1908, para cubrir el programa de lecciones de cosas, seautorizó para la Ciudad de México la circulación de textos como Ellector enciclopédico mexicano de Gregorio Torres Quintero, El niñoIlustrado. Libro Cuarto de lectura o preparación al estudio de lasciencias de José María Trigo, donde se abordaban temas como laobservación, el uso del barómetro y el termómetro junto a mensajessobre el trabajo y la honradez (Trigo, 1896, p. 98; Torres Quintero, 1908,p. 11). También circularon traducciones del francés como las Leccionesde Cosas en 650 grabados del profesor Luis G. León, que rebasó lasfronteras mexicanas e hizo conocer a los niños españoles las enseñanzas

el aula al exterior 189

del doctor en ciencias de la Facultad de París, Georges Colomb (Melcón,2000, p. 156). Una situación que se explica debido a la falta de interéspor esta enseñanza en España, como bien lo ha demostrado Bernal, yaque aún a principios del siglo XX, no aparece ningún texto específicodel área de ciencias en las listas de texto para la escuela elemental.(Bernal, 2001, pp. 31 y 58)

Pero el conocimiento de estos temas no se limitó al uso del libro enel aula escolar pues el programa de lecciones de cosas se reforzó con larealización de paseos y excursiones escolares cuyo principal objetivofue aumentar los conocimientos prácticos de los alumnos. Hacia 1904empezaron a generalizarse, por ejemplo, en la primaria anexa a la EscuelaNormal de Profesores esta actividad se llevó a cabo los miércoles decada semana (Archivo Histórico de la Secretaría de Educación Pública,en adelante AHSEP, 1892). En las escuelas primarias superiores de laCiudad de México se realizó una excursión por escuela durante los me-ses de mayo y junio de cada año escolar.

En general, las visitas escolares estaban destinadas a los futurosprofesores que se preparaban en la Escuela Normal de la Ciudad deMéxico y tenían dos objetivos: el estudio de un tema en particular y elrecreo de los alumnos. El Plan de Estudios establecía que, a petición deldirector, los alumnos de 4º, 5º y 6º grado podían visitar alguna instituciónpara estudiar la organización, observar los métodos y el régimendisciplinario. Cuando se elegía una temática (geografía, historia, física,topografía, botánica y otras), se podía visitar algún establecimiento in-dustrial o una gran propiedad, donde el profesor daba la lección sobre elterreno. También podían realizarse paseos al campo o a lugares históri-cos, con el fin de recoger muestras de la flora y la fauna, rocas o mineralesde la región, que servían de temas en la clase y posteriormente formaríanparte del museo escolar. Los estudiantes realizaban viajes escolares porferrocarril, tranvía o a pie, pero siempre bajo la vigilancia y dirección desus profesores, inspectores, celadores o autoridades escolares quefinanciaron los traslados (La Enseñanza Normal, 1905, p. 273; AHSEP,1892).

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Los paseos escolares, 1904-1908

La práctica de los paseos escolares puede situarse desde 1879 enFrancia. El profesor Paul Berton preconizaba el enriquecimiento educa-tivo con la práctica de esta actividad cuyo fin era utilizar todo lo quellamara la atención de los niños para lograr un verdadero aprendizajepráctico de las ciencias y artes (Chanet, 1996, p. 329). Dado que lasmaravillas de la naturaleza no podían ser trasladadas al aula, había quedesplazar a los alumnos a ella para mostrarles “… à savoir voir… àl’école comme au dehors”, era necesario ir a los campos, los terrenos,los puertos, las minas, ahí donde el trabajo del hombre la transformaba.Paulatinamente, con este conocimiento, los alumnos podrían ser capacesde trazar sus propios itinerarios en una carta geográfica, evaluar las dis-tancias y las alturas, conocer la composición de los terrenos y el funcio-namiento de la maquinaria en los trabajos agrícolas (Berton, 1879, pp.581 y 593).

De manera general, todo paseo escolar, en la época, era consideradocomo aquella salida del alumno fuera del aula escolar bajo la direccióndel maestro para cumplir un fin educativo. Si la salida era corta, paravisitar un establecimiento o un punto determinado se le llamaba visitaescolar. Pero si se hacía a sitios distantes de la población, por un tiempomás o menos largo y por un medio de transporte, se le llamaba excursiónescolar. Como lo hemos señalado, los paseos escolares eran considera-dos como los medios ideales para cultivar determinados sentimientos.En el orden físico, permitía al alumno una completa libertad de acción enoposición al sedentarismo de la sala de clases. En el orden mental permi-tía poner a la vista de los niños multitud de objetos reales que despertabansu curiosidad y deseo de saber. En el orden moral, el desarrollo de unsentimiento estético (La Escuela Moderna, 1893, p. 78).

Entre 1904 y 1908, los alumnos de las escuelas primarias superioresde la Ciudad de México realizaron visitas escolares de un solo díamientras que los alumnos de las escuelas normales de profesores yprofesoras de la Ciudad de México hicieron excursiones escolares hastapor ocho días.

el aula al exterior 191

Por ejemplo, entre mayo y junio de 1905, los alumnos de las escuelasprimarias realizaron 11 paseos escolares repartidos de la siguientemanera: tres visitas a una gran propiedad, cinco a una fábrica y quatro asitios naturales como los Dínamos de Contreras y Xochimilco. Resultainteresante analizar como se empleaba el tiempo escolar durante una deestas visitas fuera del espacio tradicional, un espacio que permitía elrelajamiento de la disciplina impuesta en el aula pero también elaprendizaje de ciertos conocimientos que eran dirigidos por la parte queadministraba de la propiedad. Una de estas visitas llevó a los alumnos ala Negociación Agrícola de San Rafael en el Valle de México, cuyaproducción se había elevado debido a la desecación del lago de Chalcoy a la tala de bosques. Los registros escritos narran como fueron recibidospor el director técnico de la compañía, quien después de la visita lesofreció una comida en uno de los locales de la fábrica. Terminada ésta,los alumnos se divirtieron jugando en los terrenos de la propiedad y porla tarde los acompañó a tomar el tren de regreso que se había preparadoespecialmente para los viajeros. Otra excursión que reunió a 106 alumnosy a cuatro profesores se dirigió a la Hacienda de Zavaleta, en la mismazona, donde fueron recibidos por el director técnico, quien les explicódel éxito de las labores agrícolas con la desecación de los lagos de Chalcoy Texcoco. Es curioso que en estos dos relatos no se mencionan nuncalos problemas a los que la Compañía Agrícola se enfrentó constante-mente con los pueblos por la posesión de las tierras y las aguas, tampocohubo indicios que dejaran ver el castigo ecológico que sufriría la zonadebido a la desecación del lago, como ahora lo han revelado diversosinvestigadores (La Escuela Moderna, 1905).

Esta idea de aprender una realidad ajena a los escolares fue criticadapor un profesor de la época como Gildardo Avilés. En su opinión eraimportante la labor del maestro pues era únicamente a él a quien competíadirectamente la elección, el ordenamiento y la distribución de los ejerciciosescolares durante esas visitas, era él quien conocía de cerca el clima, lascostumbres locales, el desarrollo intelectual de los niños y las necesida-des de la escuela. De acuerdo con Avilés, el empleo del tiempo contenidoen el reglamento limitaba el aprendizaje pues culpaba directamente a losinspectores de hacer seguir actividades ajenas a la realidad de la escuela.

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Hacia 1906, el año escolar era de 10 meses, igual a 298 días, a los cualesse descontaban seis días de enero, 86 días entre sábados y domingos,cinco días de vacaciones de primavera y 11 días entre fiestas cívicas yreligiosas, menos otros 15 días por enfermedad del maestro o cualquierotra causa imprevista como los exámenes, en realidad quedaban 181 díasútiles en el año que servían de poco pues era el inspector quien limitaba eltrabajo del maestro exigiéndoles estas visitas que poco provecho teníanen el rendimiento escolar (Avilés, 1910, p. 16)

En cuanto a las excursiones de los estudiantes de la Escuela Normalde la Ciudad de México, los objetivos giraron en torno al conocimientopedagógico de otras instituciones escolares, cumplieron fines temáti-cos, conocieron el progreso de ciertas industrias del país, pero, también,influidos por los planteamientos higienistas y sanitarios de la época,pudieron advertir “la mano arrasante del hombre” y los inconvenientesde las aglomeraciones urbanas.

Uno de los destinos preferidos fue el estado de Veracruz, pues veían,con mucho aprecio, los logros educativos del pedagogo suizo EnriqueRébsamen en la región. Una primera excursión de tres días fue financia-da por la propia entidad. La reseña del viaje dio cuenta del buen humory de la expectación que causó el cambio de paisaje al que estabanacostumbrados. Los viajeros conocieron el funcionamiento de vapores,corbetas y barcos-escuela, visitaron el palacio municipal, la escuela na-val, las cantonales y las municipales, el Hospicio Zamora y el históricocastillo de San Juan de Ulúa, que sirvió de motivo para recordar pasajesde la historia de México.

Los estudiantes asistieron a una serie de actividades en las escuelasveracruzanas: durante su visita presenciaron la entrega de una banderanacional ofrecida por los mexicanos residentes en Tampa, Estados Uni-dos; conocieron diferentes planes de estudio de las instituciones educa-tivas; asistieron a una representación en el teatro Dehesa; supieron delfuncionamiento del hospital, de la escuela del Hospicio Zamora yparticiparon de la tertulia literaria del Casino español (La EnseñanzaNormal, 1907, pp. 18-21).

En un segundo trayecto hacia Veracruz, los alumnos recrearon hechoshistóricos en los sitios que visitaban. Por ejemplo, en el cerro de

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Guadalupe, en Puebla, recorrieron a pie el camino por donde transitaronlos franceses el 5 de mayo de 1862 y entonaron el himno nacionalmientras descendían, un interés que los aspirantes a profesor debían cul-tivar, pues, en el futuro, serían ellos los encargados de “[...] reanimar yfortificar en las generaciones [...] el sentimiento que guió a los defenso-res de Puebla [...]” (La Enseñanza Normal, 1905, p. 243 y 1907, p. 10).

Los alumnos normalistas conocieron también detalles interesantesen torno a la educación de la región: las condiciones materiales y elfuncionamiento de las escuelas Normal y Lafragua que, entre sus curio-sidades, exponía un cuadro mural con motivo de la campañaantialcohólica impulsada en la época. Cabe señalar que uno de los mo-mentos más interesantes de la visita escolar se suscitó cuando los alumnosasistieron a una clase de geografía impartida para los alumnos de cuartoaño, pues el profesor de la clase, sirviéndose del mapa respectivo, hizoun recordatorio sobre la división política del país y la orografía de Mé-xico, que le sirvió para reflexionar con los alumnos sobre el problemade las fronteras y del regionalismo, “tan perjudicial a la unidad nacio-nal” (La Enseñanza Normal, 1907, pp. 5-17).

También se realizaron visitas a la Escuela de Comercio Miguel Ler-do y a la de Artes y Oficios para mujeres que permitió discutir sobre “eltriunfo real del feminismo”, pues al observar una clase práctica defarmacia, se insistió en el hecho de que la profesora pudiera dedicarse aciertas ramas de la ciencia, con lo que se ofrecía a la mujer una enseñanzafácil y un trabajo lucrativo, y con ambas se contribuía “al aumento de lariqueza nacional y el mejoramiento de la Patria” (idem, p. 46).

Todo lo que se atravesaba en el camino de una excursión escolarpodía ser motivo de aprendizaje, como “la lagunilla de agua” queencontraron los alumnos y el profesor de la escuela elemental de SanPablo de la municipalidad de Toluca en la visita que hicieron a la haciendade Jiltepec, donde “las ondulaciones que hacía el viento [...] corriendodel poniente hacia el oriente [...]” permitieron mostrar el movimientoque hacían las olas en el mar, tan grandes “... como los cerros que se venpor aquí” (Bazant, 1999, p. 153).

Una explicación del profesor de química sobre el procedimiento paraextraer la plata llevó a los alumnos normalistas a visitar la hacienda de

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beneficio de Loreto en Pachuca, Hidalgo. En esta visita los alumnosconocieron, paso a paso, el método de patio para la extracción de laplata, inventado y puesto en práctica en la región, desde 1557, porBartolomé de Medina. Conocieron el funcionamiento de la maquinariaimportada que poseía la hacienda, es decir, los molinos quebradores ylos chilenos, las mesas concentradoras Johnston y el aparato repasadorParrés Waters, una innovación tecnológica del ingeniero Parrés, jefe dela hacienda (La Enseñanza Normal, 1904, p. 31).

Este interés hacia los forjadores del progreso en las haciendas semuestra también en la visita que la clase normalista de geografía e historiahizo a Puebla cuando mostraron respeto frente a las estatuas ubicadas alo largo del Paseo Nuevo: Nicolás Bravo, los Héroes de la Independencia,el doctor Gabino Barreda y don Esteban de Antuñano “introductor de laindustria de hilados y tejidos en el país” (La Enseñanza Normal, 1905,p. 243).

Al realizar viajes escolares a diferentes puntos del país, los alumnosnormalistas también tuvieron oportunidad de comparar diferentesactitudes entre la población. Una que les causó gran impresión fue la delos indios del mercado poblano a quienes calificaron de escrupulosísimospara recibir monedas, pues las revisaban detenidamente y preferían con-servar sus mercancías cuando las monedas no eran de su gusto (idem,ibidem).

A través de un viaje por ferrocarril, los alumnos normalistas de laclase de geografía e historia siguieron las interminables hileras demagueyes finos que producían el mejor pulque de los llanos de Apam; enTexcoco, en su visita a una fábrica de vidrio, conocieron el procedimientoen la elaboración de garrafones y de cristales planos; tomaron clase degeografía y botánica en el Valle de México donde recolectaron plantas enla fábrica de papel y coincidieron en señalar la diferencia que sentían enel ambiente frente a la viciada atmósfera que atosiga y oprime en laciudad de México (La Enseñanza Normal, 1907, p. 78).

Una excursión escolar efectuada hacia Dos Ríos, estado de México,nos da idea de la impresión que los estudiantes tenían del cambio drás-tico de la naturaleza. En su opinión, la región se había modificadolamentablemente, “[...] las encinas corpulentas y majestuosas, los ve-

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tustos y venerables sabinos, los sauces exuberantes y jugosos [...] ¿endónde están? [...] se han vuelto humo [...]”. Pero este humo no habíavuelto al suelo en forma de agua, por lo que las sequías, “inflexibles einconmovibles”, habían castigado duramente a la población debido a laimprudencia de algunos hombres que habían talado los bosquesconvirtiéndola en “[...] una comarca desarbolada y sin agua [...]”. Sudescubrimiento los llevó a cuestionar el nombre de la población, que deDos Ríos “[...] mañana no podrá llevar ni el de Dos Arroyos [...]” (LaEnseñanza Normal, 1905, pp. 158-160).

Una afirmación que dista de ser real, pues contradice la visión de unespecialista del México rural cuyo modelo de la hacienda mexicana hasobrevivido más de un siglo: “[...] la enorme cantidad de parcelas decultivo que perfectamente suben hasta la cima de las montañas de LasCruces [...] ¿no les habrá ocurrido a todos quienes han visto ese puebloque si las grandes planicies de las haciendas estuvieran cultivadas así,otros serían los destinos nacionales?” (Molina Enríquez, 1978 p. 153).

Esta advertencia sobre el medio ambiente también se hizo patenteen libros de texto como Tercer año de lecciones de cosas de Luis G.León. Influido por los planteamientos higienistas y sanitarios de la épo-ca, el autor invitaba a los niños a aprovechar cualquier oportunidad quetuvieran para salir de la ciudad y respirar el aire puro del campo, libre dela aglomeración humana, el polvo provocado por el tráfico de animales,de vehículos y de las chimeneas de las fábricas. Según el autor, su efectose percibía en la alteración del sistema nervioso causado por los milruidos del rodar de los coches y las carretas, las bocinas, los gritos delos vendedores, los timbres de los motores y el zumbar de los aserraderos.El clima malsano de la ciudad se revertiría con las obras del desagüe delValle de México, que devolvería a la ciudad el calificativo de ser uno delos lugares más sanos del mundo (León, 1913, p. 45).

El agua también fue un tema recurrente en los libros escolares. Igualse describían sus virtudes que su poder para provocar verdaderos desas-tres en una región. Como en la reseña sobre una excursión escolar alPopocatépetl, un volcán donde desde lo alto “pensábamos que desdeahí todo parece dichoso y tranquilo [donde] no llegan [...] los gritos deguerra de los roedores... los crujidos de la fúnebre entonación [...] que

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derriba el hacha del leñador, o que castiga [...] el dios furibundo de lastempestades o el fuego del incendio [...]” (Avilés, 1910, p. 24). El tematambién sirvió para dar lecciones de higiene, pues se recomendaba a losniños hervir el agua por quince minutos para purificarla y evitar losmicrobios antes de tomarla (Colomb, 1904, p. 32).

Las excursiones escolares también cumplieron objetivos temáticos.Una de ellas, hacia el pueblo de Tizapán, en el Distrito Federal, diooportunidad a los profesores del curso de metodología aplicada de mos-trar la enseñanza de la geometría empírica con el levantamiento de pla-nos, siguiendo el método de rumbo y distancia. El éxito de los trabajospermitió al profesor asegurar que este tipo de ejercicios representaba elmedio más seguro y divertido para el aprendizaje de los teoremas (LaEnseñanza Normal, 1905, pp. 182-183).

Este último ejemplo me permite reflexionar en torno a ladocumentación producida a raíz de las excursiones escolares. Lainformación publicada en la revista La Enseñanza Normal fue productode los ejercicios que los alumnos normalistas redactaron y captaron conuna cámara fotográfica. Esto era una exigencia, pues debido a su carácterflexible, los paseos escolares fueron catalogados en ocasiones como

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pérdida de tiempo o simple excursión de recreo, lo que llevó a las auto-ridades educativas a establecer dos estrategias para evitar la dispersiónde los alumnos: fijar claramente el fin de cada visita – histórica, agríco-la, industrial, topográfica – y exigir a los alumnos un relato escrito de susalida donde se ordenara claramente y con un buen nivel de redacciónsus experiencias de viaje. Un ejercicio creativo y útil para los interesesdel investigador pues permite recrear sus impresiones.

Cabe decir que hay una riqueza enorme en la información que circulóen estas revistas pedagógicas que se editaron en diferentes regiones delpaís a finales del siglo XIX. En la Ciudad de México se publicaron LaRevista Escolar, El Eco Pedagógico, El Educador Práctico Ilustrado,La Voz de la Instrucción, La Enseñanza Normal; en Colima, LaEnseñanza Primaria; en Yucatán, La Escuela Primaria y en Veracruz,México Intelectual, entre muchas más. Como en el caso de otraspublicaciones escolares de la época, desconocemos el número exacto ylos tirajes de estas revistas, aunque sabemos con exactitud que estabandirigidas a los cerca de 8.000 maestros del nivel elemental que laboraronen el país. Tenían como objetivo principal unificar criterios en torno a laescuela mexicana, por lo menos era lo que se esperaba de las guías me-todológicas, los boletines de instrucción pública y las revistas pedagó-gicas, que habían surgido como producto de las discusiones académicasllevadas a cabo entre 1890 y 1891, en el Segundo Congreso de InstrucciónPública. El contenido de estas revistas era muy variado. Había seccionesdedicadas a la legislación escolar, las novedades bibliográficas, avisospara los padres de familia, informes sobre dotaciones de material y so-bre todo artículos orientados hacia diferentes temas del saber escolar.La mayor parte de estos escritos fueron trabajos originales, pero tambi-én hubo traducciones de artículos publicados en otras revistas decirculación internacional. Casi todos fueron escritos por la elite educati-va de la época, es decir, por aquel grupo de maestros de reconocidoprestigio, autores de libros de texto, que formaban parte de laadministración educativa, aunque también hubo lugar para el testimonioescrito de los alumnos de la Escuela Normal de Maestros y Maestras dela Ciudad de México (Martínez Moctezuma, 2004, p. 134).

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La formación del futuro profesor fue una de las preocupaciones cons-tantes de finales del siglo XIX. En 1902 se reformuló en México el plande estudios de la Escuela Nacional de Maestros, retomando la idea de1892, cuyo objetivo principal se centraba en la formación de dos clasesde profesores: los que impartirían instrucción primaria elemental (4 años)y aquellos que se dedicarían a la primaria superior (6 años). Lasasignaturas aumentaron a 40 (14 más que en 1892) y se prescribieronprácticas en las escuelas anexas para los alumnos de 3º, 4º, 5º y 6º gra-dos, visitas de observación a otras escuelas primarias, conferencias pe-dagógicas y excursiones de carácter científico. La curricula muestra quelos alumnos recibieron clase de ejercicios militares y las profesoraspracticaron labores domésticas y a partir de 1908, ejercicios físicos. Cabeseñalar que en la distribución del tiempo escolar no hay ningunaasignatura que deje entrever el aprendizaje en el uso de la fotografía, sinembargo, en el programa de metodología aplicada se señala que durantelos meses de junio y julio, los alumnos que estudiaban en el primer añode Instrucción Primaria Superior debían aprender la geografía descriptivaa través de la gráfica y la narrativa a través del uso de proyeccionestopográficas, pláticas de viaje y proyecciones luminosas, lo que eviden-temente les preparaba para ilustrar sus relatos sobre las excursiones es-colares que realizaban (Jiménez, 1987, pp. 150-189).

Los registros escrito e iconográfico de estos paseos escolares sonuna representación del mundo que no era real pero que nos permiteacercarnos a un problema concreto. Conocer bien era describir y describirsignificaba desarrollar un discurso verídico en el que las curiosidades,además de suscitar el interés, constituían un espacio (Lepetit, 1999,p. 197). Resulta interesante conocer los procedimientos de elaboraciónde ese discurso y mostrar el espacio que abordaron desde la perspectivade la imagen fotográfica, sobre todo teniendo presente que la finalidadera hacer llegar a los profesores de todo el país un modelo educativo porel que abogaron los intelectuales mexicanos de finales del siglo XIX(Kossoy, 2001, p. 74). Esta realidad que quería imponerse se muestra enla siguiente fotografía que los alumnos tomaron en su visita a la EscuelaAnexa a la Normal de la ciudad de Toluca, donde sorprende ver la disci-

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plina, la cantidad y la variedad de material pedagógico y la calidad delas instalaciones.

Es claro que el primer acercamiento de los viajeros a la realidad quese visitaba se hacía a través de los sentidos. Un método fundado en ladescripción de la apariencia de las cosas cuyo proceso de abstracción lellevaba a seleccionar fragmentos de la realidad y a elaborar un inventarioparcial. Sin embargo, el estilo literario de sus reportes no logra esconderel enfrentamiento entre el modelo moderno de educación urbana que sequería imponer y los problemas a que se enfrenta a causa de la inasistenciaescolar, la falta de capacidad económica que se refleja en la infraestructuraescolar o la actitud celosa de quien era visitado. Esto resulta claro cuan-do el objetivo del reportaje no se centra en el salón de clases sino en lapráctica de topografía; es así que descubrimos un salón de clases máscercano a la realidad rural del país.

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Notas finales

Las excursiones escolares estuvieron destinadas a mostrar a losalumnos los diversos aspectos del medio que habitaban. Junto con ellas,las fiestas de fin de año, las de premiación o cualquier festejo que reunieraa la comunidad en torno a la escuela, permitieron tanto a los alumnoscomo a los padres de familia mantener contacto con la escuela, uncontacto que hizo disminuir el aislamiento de la institución frente a larealidad económica y social que vivía el país.

Las excursiones y los viajes estuvieron orientados a aprender fueradel aula. Con estos paseos escolares, los alumnos observaron diferen-cias y particularidades de cada región explorada, una gran paradoja puesla idea general de la época abogaba por la uniformidad del país, dondeno existía diferencia alguna, pues el discurso oficial apuntaba a conse-guir que México estuviera orientado al desarrollo industrial. Sin embar-go, es curioso reconocer en los textos que narran los itinerarios de losviajes que los relatores señalan claramente las diferencias para cadaregión, incluso se atreven a decir que fuera de la Ciudad de Méxicotambién hay patria.

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Gracias a los testimonios escritos de los viajeros, sabemos quereconocieron el valor de los viajes escolares en su formación profesional,pues como lo señala uno de ellos: “¿Quiénes [...] más urgentementenecesitados de conocer la patria, de un modo tan exacto y preciso comoel que suministra la observación directa de las cosas que la constituyen,que aquellos que luego han de contribuir a la renovación del espíritupatrio?” (La Enseñanza Normal, 1907, pp. 31-32).

Como puede advertirse en los testimonios, los paseos escolarespermitieron a los alumnos escapar de la vida sedentaria del aula y de ladisciplina escolar, pero no siempre reinó la armonía, pues debido a sucarácter aparentemente flexible, las excursiones crearon malestar no sólodentro de la escuela, cuando algunos padres de familia las catalogaroncomo “simple pérdida de tiempo”, sino que también otros habitantes dela comunidad las vieron con recelo. Hacia 1900, por ejemplo, el maestrode la escuela San Pablo, de la municipalidad de Toluca, llevó de paseo asus alumnos a la “pedrera” de la hacienda de Jiltepec y fueron acusadosde romper la compuerta y obligados a pagar una cantidad por la pérdidade agua que habían sufrido; este hecho motivó a cancelar, en 1902, lasexcursiones escolares en el Estado de México (Bazant, 1999, p. 153).

Es claro que los viajeros que participaron en estos paseos escolaresfueron alumnos privilegiados por tener acceso al conocimiento y a laexperiencia, un privilegio que no sólo tiene que ver con lo pedagógicosino también con lo económico, puesto que sabemos que la poblaciónmexicana viajaba poco debido a las altas tarifas del transporte. Si consi-deramos que, hacia 1910, un boleto en primera clase resultaba tres vecesmás caro que uno en diligencia, o el costo de un viaje promedio de 67km en segunda clase era de $1.63, equivalente a 9.4 días de salario mí-nimo diario en la agricultura y dos días de trabajo para los grupos mejorremunerados como los burócratas, comprenderemos que se evitaba via-jar, excepto en casos en que las largas distancias hicieran poco prácticoo peligroso el viaje por otro medio. Esto explica por qué, en 1910, sóloviajó a Veracruz una tercera parte de la población del país (Coatsworth,1984, pp. 63-66 y 136-137).

Hasta ahora conocemos únicamente los reportes de quienes viajarondesde la Ciudad de México a Veracruz y dentro del Estado de México,

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sin embargo aún falta mucho por conocer, pues los viajes y lasexcursiones escolares han tenido larga vida. Hacia 1910 fue un temacomún en los discursos de los intelectuales y de los pedagogos, en losinformes de los inspectores, en las reuniones académicas de losprofesores, en las reseñas que los alumnos publicaron en las revistaspedagógicas y en los temas de los libros de texto. Su historia está aúnpor escribirse, pues, en la actualidad, se sigue realizando esta prácticapedagógica en las escuelas primarias, aunque los viajes sólosobrevivieron hasta 1984, cuando la formación normalista tomó elcarácter de licenciatura, una historia de largo alcance que nos permitirádar a conocer el impacto y la difusión de una innovación pedagógicapuesta en marcha a finales del siglo XIX en México.

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De cuándo a cuándo

La transformación del calendario escolaren las escuelas mexicanas del siglo XIX

Anne Staples*

En este artículo se observa cómo la realización de ciertos rituales como el sonido de lacampana escolar, el empleo de días festivos y de vacaciones escolares, impusieron unnuevo ritmo dentro del calendario escolar mexicano del siglo XIX que por primera vezexigía el empleo del método simultáneo.TIEMPO Y ESPACIO ESCOLAR; MÉTODO SIMUTÁNEO; CULTURA ESCOLAR.

In this curriculum we observe how some of the ritual realizations as the impact causedby the school campaign, the utilization of comemorative days and school vacations, hadimposed a new rhythm in the mexican school calendar in the 19th century, which for thefirst time demanded the utilization of simultaneous method.TIME AND SCHOOL SPACE; SIMULTANEOUS METHOD; SCHOOL CULTURE.

* Doctora en historia. Profesora investigadora de El Colegio de México.

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De cuándo a cuándo. Días festivos y vacaciones delalumno mexicano

Cuando los mexicanos recién liberados de España observaron suentorno se dieron cuenta de las enormes tareas que estaban por delante:construir un Estado moderno, educar a la ciudadanía, incorporar al indí-gena a la “civilización”, colonizar las tierras del norte y de las costas,reconstruir la red de transportes, defender al país de las invasionesextranjeras y de los intentos de reconquista de la madre patria – la listaera interminable. Todo esto significaba, en una palabra, trabajar. Ytrabajar, la esencia de una ideología utilitarista e ilustrada, significaba, asu vez, quitarle las trabas al trabajo. ¿Cómo aumentar la eficacia, cómodisponer de más mano de obra, cómo motivar, cómo contagiar a lasmasas con los sueños de progreso material de los nuevos dirigentes,ansiosos de poner en práctica las mil ideas que les surgían para desterrarviejas y dañinas prácticas y sustituirlas con una entusiasta entrega alracionalismo? Ante todo, se necesitaba un nuevo concepto del tiempo.El tiempo se tenía que emplear con una intención en mente, se tenía quededicar a un fin, se ahorraba, se gastaba y por todos los medios se evitabasu desperdicio. Desperdiciar el tiempo llevaba al vicio, al relajamientode las costumbres, al dispendio, a la inconciencia de rutinas sin sentido.

Para los educadores se volvió un reto enseñar a los niños y a lapoblación en general a medir el tiempo. Para eso eran las campanas,para eso los relojes que empezaban a aparecer en las torres de las iglesias.El tiempo tenía ahora un sentido secular, marcaba los segmentos de laactividad que no era litúrgica. Las campanas decían cuándo levantarse,ir a misa, rezar, recogerse en la noche. Avisaban de nacimientos,matrimonios, muertes y de los grandes acontecimientos. Tambiénavisaban a los parroquianos de los sucesos locales, de incendios, depeligros. El reloj avisaba silenciosamente de la hora de entrada a laescuela, del comienzo de las sesiones del congreso, del inicio de la obrade teatro. La vida fuera de la iglesia tenía ritmos que la poblacióninteriorizaba lentamente. Ser puntual se aprendía en la escuela, en familia,en las oficinas, en las fábricas. Fue una enseñanza muy incompleta, como

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lo demuestra nuestra sociedad contemporánea, adornada hasta la fechapor individuos que hacen poco caso del tiempo oficial y de los demás.

Había, pues, que aprender a usar el tiempo y a trabajar. Para lograrlo último, había que arreglar aquél. No todo el tiempo le pertenecía auno. Una cantidad considerable pertenecía a la Iglesia, a la Corona yposteriormente al Estado. ¿Qué tanto? Según las constituciones de laUniversidad de Guadalajara, aprobadas en 1792, era mucho. Días festi-vos eran todos los designados para oír misa, más del 24 de diciembrehasta el primero de enero, dos días de Carnestolendas (Carnaval),Miércoles de Ceniza, Domingo de Ramos hasta el martes siguiente deDomingo de Pascua, cuatro días de rogaciones, todos los jueves,cumpleaños reales, días de entierro de doctores de la universidad, más40 de vacaciones entre el 8 de septiembre y el 18 de octubre (Constitu-ción XXVII de la Real Universidad de Guadalajara, en Razo Zaragoza,1963, pp. 183 y 197-199; Staples, 1977, pp. 177-194).

Después de separarse del gobierno español, esta carga de festivida-des se tenía que adecuar a las nuevas circunstancias nacionales. Desdeluego que ya no tenía sentido festejar a reyes y reinas, porque ahorahabía otro panteón de héroes. No faltaron nuevas fechas claves en lavida pública. Como decía un decreto de marzo de 1822, “para perpetuarlos grandes acontecimientos de la instalación del soberano congresoconstituyente, [...] el plan de Iguala, jura del ejército trigarante en Igua-la, primer grito de libertad en Dolores (Hidalgo), ocupación de la capi-tal por el ejército mexicano, y para honrar la memoria de los primerosdefensores de la patria y de los principales jefes que proclamaron elplan de Iguala” había que apartar por lo menos los días 24 de febrero, 2de marzo y 16 y 27 de septiembre. Se celebrarían con “salvas de artilleríay misa de gracias, a la cual debería asistir la regencia con las demásautoridades, vistiéndose la Corte de gala y usando del ceremonial de lasfelicitaciones, lo que se hará extensivo a todos los lugares del imperio”(Decreto 1º de marzo de 1822, Dublán y Lozano, I, 1876-1904, p. 599).Es decir, en vez de reducir el número de días festivos, lo primero quehizo el gobierno independiente fue aumentarlos. Al caer el primer imperioy la estrella de Iturbide, su ingreso con el ejército trigarante a la ciudadde México perdió importancia. Para 1824, además de las cívicas, sólo

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había cuatro fiestas religiosas nacionales (Jueves y Viernes Santo, CorpusChristi y el 12 de diciembre) (Decreto 27 de noviembre de 1824, Dublán& Lozano, I, 1876-1904).

La independencia trajo muchos cambios, aunque algunas costumbresfueron inalterables. Desde luego que había que escuchar misa cada do-mingo. Siempre se celebraría Corpus Christi, aunque no lo diganespecíficamente las fuentes. La celebración de la virgen de Guadalupeno está entre las autorizadas por el Vaticano hasta 1839, aunque seencuentra en los documentos mexicanos desde 1822. La Semana Santapodía durar desde el Domingo de Ramos hasta el martes siguiente deDomingo de Pascua o sólo tres días. A veces no se mencionaba el Car-naval. Festejar a santa Rosa de Lima es un evento aislado en 1822; lomismo pasa con San Juan Bautista en 1835. Parece que la tendenciageneral era convertir las fiestas de guardar, que obligaban a misa yadoración durante el día entero, a media fiesta, donde cumplir con lamisa, antes de regresar al trabajo o al estudio, era el único requisito(Escriche, 1996, pp. 200-201)1. La Navidad, cuando los jóvenes estabande vacaciones, era una de las festividades donde participabanactivamente, ya que representaban pastores y ángeles en los carros ale-góricos y pequeñas obras teatrales, las pastorelas de hoy. En Querétaro,tal vez por la presencia de los “preciosos niños”, el inmenso concursode gente sentado en las banquetas de las calles para ver desfilar los car-ros quedó sin moverse, en el mayor silencio y buen orden, sin que hubiera“ni un solo ebrio ni herido, desgracias comunes en estas funciones”(Águila Mexicana, 9 de enero de 1827, IX, p. 4).

Pronto se tuvo que tomar una decisión en cuanto a cuáles festivida-des del antiguo régimen habría que conservar. Las políticas fueron fácilesde acomodar, no así las religiosas. Un caso fue el de San Hipólito, titularde México, gran ayuda a la hora de vencer a los indígenas en la conquis-ta, identificado completamente con el gobierno español. Las autorida-des escogieron retener los servicios protectores de este mártir y conti-

1. Los días de precepto obligaban a dejar los trabajos serviles, pero nada decía la leyde no estudiar.

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nuar celebrando, como antaño, la purificación de la virgen, Domingo deRamos, Jueves y Viernes Santo, San Pedro y San Pablo, Corpus Christiy su octava, la Asunción de la Virgen, Santa Rosa de Lima (primera vezque lo encuentro mencionado específicamente) y la fiesta de la Virgende los Remedios, más una misa de aniversario por los muertos en laguerra de independencia, del bando que fueran, el 17 de septiembre. Sedaba importancia especial al 12 de diciembre, “el más grande para estaAmérica, por la maravillosa aparición de María Santísima de Guadalupe”,a pesar de no haber figurado en la lista de días notables anteriores (De-creto 16 de agosto de 1822, Dublán & Lozano, I, 1876-1904, p. 628.Sesión 10 de agosto de 1822, Mateos, 1877, I, p. 767. Fernández deLizardi, XII, 1991, p. 554)2. Para equilibrar la presencia de San Hipólito,desde principios de 1826 quedó en el santoral de la patria el día delúnico santo mexicano de aquel entonces, San Felipe de Jesús, cuyo díasería el 5 de febrero (Decreto 28 de enero de 1826, Dublán & Lozano, I,1876-1904), transformado, en aras de la secularización, en el día de lafirma de la Constitución de 1917. Bajo el pretexto que fuera, es un díade asueto hasta la fecha. Este tipo de festividad tenía un alto contenidoeducativo para los niños, que aprendían algo de su propia historia y delas fuentes del orgullo nacional. No podía pasar desapercibido un even-to de esta magnitud, sobre todo la primera vez que tuvo lugar. Hubosalvas militares; las campanas se echaron a volar en todas las iglesias,siguiendo, como siempre, el ejemplo de las mayores de catedral; tam-bién se realizó una procesión con vistosas colgaduras en los balcones; elpresidente Guadalupe Victoria, con su comitiva de ministros, generales,la plana mayor de ejército, el ayuntamiento y por supuesto los alumnosde los colegios, hizo “un cuadro magnífico que sorprendió al numerosopueblo que ocupaba la gran plaza” (Gazeta de México, 8 de febrero de

2. Hubo una fuerte discusión en el congreso acerca de la conveniencia de quitar delcalendario a San Hipólito, “para borrar el recuerdo ignominioso de nuestradepresión”. Fernández de Lizardi había notado que únicamente en México era díade guardar. Preguntaba “¿Y el día 13 de agosto ha de seguir festivo en memoria detan inauditas atrocidades?”, sobre todo cuando se trataba de enseñar a los niños aensalzar a México y olvidarse de España.

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1826, n. 39, vol. II, p. 3). No hacía falta participar en la educación for-mal para comprender la exaltación de un personaje nacido en tierrasmexicanas, en cuyo honor había que suspender clases y labores.

Las fiestas eclesiásticas, según decretos de 1824 y 1826, además delos días de precepto, eran los domingos, las de Carnaval, Semana Santadesde el Viernes Santo hasta el siguiente martes, Corpus Christi, losdías de Guadalupe, San Felipe de Jesús, San Hipólito y Navidad, máslos civiles (Rodríguez de San Miguel, 1978, p. 281). José María LuisMora, reformador hasta en esto, denunció que “de los 365 días del añoentre vacaciones, asuetos, asistencia a fiestas o funciones religiosas, actosliterarios procesiones o entierros”, se les iban a los estudiantes más de200 días (Mora, 1986, p. 465). Sólo les quedaban cinco meses y mediode clases.

Al mismo tiempo que algunos funcionarios aumentaban el númerode fechas donde se ocuparía una parte del día en misa, o de plano nohabría labores ni clases, otros hacían lo posible por aumentar laproductividad y la asistencia a la escuela. Parecía a algunos críticos unaaberración la cantidad de tiempo dedicado a actividades no conducentesal progreso. Pero el cambio se producía lentamente. En 1826, el congresode Puebla advirtió a los alumnos que tendrían únicamente un mes ymedio de vacaciones y asueto los días de guarda religiosa o civil, perosin especificar cuáles eran (Decreto 20 de mayo de 1826, Puebla. Co-lección de decretos, 1828, p. 63). De hecho, no se ve mucha diferenciaentre este calendario y el observado a finales del virreinato. Para la dé-cada de 1830, la situación tampoco había mejorado sensiblemente, apesar de las buenas intenciones. Un periódico de Toluca hizo el siguientecálculo de los días de descanso observados en los establecimientos deeducación: 52 domingos, 31 días festivos, 12,5 jueves (medio día o com-pletos), 26 sábados por la tarde (cuando estudiaban el catecismo deRipalda), 59 días de vacaciones desde el 20 de agosto en que comenzabanlos exámenes hasta el 18 de octubre, cuando empezaba el año escolar),20 días de vacaciones menores de las dos Pascuas, 8 días de los santospatronos y 2 de fiestas nacionales, lo que sumaba 210,5 días para losasistentes a la primera instrucción. En las facultades mayores, de estudiossecundarios o profesionales, sólo eran útiles 168 días del año. Además,

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se daba únicamente una hora de clase y ninguna de estudio, así quehabía 168 horas de clase, más 72 de academias (estudio extracurricular),para un total de 240 horas en el año. Se consideraba que un jovennecesitaba por lo menos tres horas de estudio al día para “formarse en lajurisprudencia”; “ya es inútil preguntar porqué la juventud camina conpies de plomo”, muy despacito, observaba el autor de este artículo (ElReformador, Toluca, 1º de enero de 1834, p. 3).

Evidentemente, había que tomar medidas. El gobierno central envióuna circular a las autoridades de la Ciudad de México en que denunciabael permitir a los alumnos ausentarse todo el día cuando era media fiesta“en que únicamente obliga la misa” y que volaban “además [...] las tar-des de los sábados”, “resultado de ahí, que al excesivo número de díasde descanso, se añaden otros en que está permitido el trabajo”. A partirde la publicación de la circular, los únicos días feriados serían los do-mingos, los días completos de guardar, los tres últimos de Semana San-ta y el 16 de septiembre (Circular 22 de mayo de 1835, repetida 13 dejunio de 1838, Dublán & Lozano, III, 1876-1904, pp. 49 y 534). Por lomenos se habían reducido las festividades cívicas a una sola. Parece queno se prestó mucha atención a esta medida, ya que se tuvo que repetirtres años después, ahora con una advertencia explícita acerca de losperjuicios que hacía este abuso “a los intereses nacionales y delaprendizaje, causando, además, otros daños a la moralidad y buenaeducación”. No había un acuerdo firme acerca de los días de clase y losde asueto. Entre las fechas de los dos decretos mencionados se publicóun volumen sobre legislación, donde se supone que estaban vigentes lasde la Virgen en sus tres advocaciones: Carmen, Ángeles y Pilar, 10 díasde Resurrección, de Navidad a Año Nuevo y tres días de Cuaresma. Nose menciona el 12 de diciembre (Escriche, 1996, pp. 200-201)3.

El Estado, respetuoso del poder y prestigio de la Iglesia, no cambiabatan fácilmente el calendario ritual católico, aunque solamente fuera unasunto de disciplina externa comprendida dentro de las facultades del

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antiguo patronato real. Era mejor seguir los caminos correctos y solici-tar a Roma la reducción de las fiestas religiosas. Ningún trámite tuvoéxito ante el Vaticano hasta no acceder al trono Gregorio XVI, en 1831.A pesar de no reconocer la independencia de México, que la Santa Sedehizo hasta que España tomó la medida en 1836, el nuevo papa reconocióla urgencia de reafirmar la presencia de la jerarquía sin mencionarespecíficamente a la república mexicana. En 1831 nombró a seis obispos,ya que el último, Antonio Joaquín Pérez Martínez de Puebla, había muer-to en 1829 (Staples, 1976). A pocos meses, nombró a otros tres. ElVaticano también emitió un breve que reducía el número de días festi-vos eclesiásticos. Los razonamientos para hacerlo están dentro de loslineamientos ilustrados: más ocio equivale a mayores oportunidades deincurrir en vicios. Al disminuir el número y frecuencia de festividades,los fieles “andarían más celosos en la observancia de las que quedaran”.Esto iría cerrando la puerta al crimen, haría más industriosos a loscreyentes, quienes se aplicarían “con más amor al trabajo en beneficiopersonal y de sus familias, con aumento del culto y del alimento” (Enplena revolución industrial, los dueños de las fábricas usaban la mismalógica para exigir largas jornadas y poco descanso. Si el obrero trabajaba,no tomaría alcohol ni apostaría su magro sueldo). Se esperaba remediaren algo el hecho de que “en algunos el estudio de la religión y de lapiedad se ha resfriado [...] de manera que prefieren la ociosidad, el vicioy la complicidad en los crímenes y maldades, aplicándose al estudio delas novedades” en vez de seguir por el camino del bien (Breve pontificio,1836). El papa redujo los días de misa obligatoria a cinco celebracionesde Cristo, cinco de la Virgen, el nacimiento de San Juan Bautista, lasfestividades de San Pedro y San Pablo y Todos Santos. Las fiestaspatronales se celebrarían el domingo más próximo a su fecha. Nadadecía el breve de Semana Santa. Curiosamente, este documento no men-ciona la aparición de la Virgen de Guadalupe como día especial. Estaausencia se remedió cuatro años después en otro breve pontificio dondese le enlista específicamente, pero desaparecieron otras cuatro fechas dela Virgen y la Navidad como días obligatorios de misa. Se redujo laprohibición de trabajar y de ir a la escuela a los 52 domingos más nueve

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días de guardar (Dado en San Pedro 17 de mayo de 1839; pase el 14 deseptiembre de 1839, Colección de decretos, 1851, pp. 209-210). Evi-dentemente, se estaba alargando el año escolar.

Pero no en todas partes. Había clérigos más papistas que el papa. Apoco tiempo del último breve pontificio mencionado, el obispo de So-nora decretó que además de los asignados por el Vaticano, los fieles desu diócesis tendrían que guardar la Navidad, el martes siguiente dePascua, el día siguiente de Pentecostés y el día de San José. Se complicabala vida en la República porque no todas las localidades de un estado seubicaban dentro de la misma diócesis, de modo que algunas escuelaspodrían seguir un calendario, otras, otro. Hacía falta que los obispos delpaís se pusieran de acuerdo para que los calendarios religiosos y cívicoscoincidieran (Colección de decretos, 1851, pp. 251-252). Los periodosvacacionales eran distintos, lo que daría lugar a los calendarios A y B,según la región del país, que tanto trabajo costó eliminar en el siglo XX.

Uniformar la educación en México fue justamente una de las metasde los gobiernos ilustrados desde la constitución de la monarquíaespañola de Cádiz, de 1812. Se logró en el papel por primera vez en elMéxico independiente con el Plan General de Estudios de 1843, quedaba pie para normar las vacaciones y los días de estudio en todo elpaís. Oaxaca hizo caso a partir de finales de 1844. Para hacer este ajus-te, las autoridades estatales perdonaron a los estudiantes de facultad dosmeses y medio de su último año de estudios; los de recién ingreso tendríanque cursar los 40 meses que prevenía la ley de 1843 (Oficio del Ministeriode Justicia e Instrucción Pública al gobernador Benito Juárez, 2 de agostode 1844, Benito Juárez, 1987, p. 11). El Colegio de Minería quiso se-guir el mismo esquema, con vacaciones desde el 15 de noviembre hastael 31 de diciembre, para empezar el primero de enero. “El objeto de estamedida es acortar las vacaciones, que son demasiado largas en esteseminario, con perjuicio del aprovechamiento de los alumnos” (“Oficiode la dirección del Colegio Nacional de Minería”, 31 de agosto de 1843,“Justicia”, El Observador Judicial, IV, pp. 208-209). Parece que hubotantas ausencias durante la Navidad que era mejor dar a los estudiantestoda la temporada y quitarles el mes y medio tradicional entre el 8 de

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septiembre y el 18 de octubre, cuando había pocas festividades religio-sas y familiares. El estado de Puebla hizo un intento de modificar lacantidad de días de asueto. En 1849 decretó que los de precepto ecle-siástico serían los comprendidos en la Semana Santa, del 25 de diciembreal primero de enero, el 16 y 27 de septiembre y el 4 de octubre, día de lapromulgación de la constitución de 1824 (Decreto 15 de marzo de 1849,Puebla. Colección de decretos, 1851, p. 344). La Universidad de Méridatampoco vio con buenos ojos tantas vacaciones. El año escolar correríadel 19 de octubre al primero de septiembre y los días de asueto seríanlos domingos y fiestas dobles, del 25 de diciembre hasta el primero deenero, dos días de Carnestolendas y los tres últimos de Semana Santa(Artículo 19, Reglamento de la Universidad de Mérida, Mérida,Tipografía de Rafael Pedrera, 1851, en Instrucción Pública, vol. 88, f.102, Archivo General de la Nación, México, en adelante AGNM). No semenciona ningún cívico. En Guanajuato, se decretó en 1827 que lasvacaciones serían proscritas “para siempre” (Decreto 8 de marzo de 1827,Colección de decretos, 1834, p. 42). San Luis Potosí no quedó atrás.Para los alumnos del Colegio Guadalupano Josefino, tampoco habríavacaciones jamás (El Siglo XIX, 1 de abril de 1842, citado en Staples,1985, nota 81). El director del Instituto de Educación Comercial yPreparatoria compartió el mismo criterio de lo perjudicial que eran lasvacaciones, así que decidió no darlas “en ninguna época del año” (PlinioD. Ordóñez, Historia de la educación pública en el estado de NuevoLeón 1591-1942, Monterrey, Talleres Linotipográficos del Gobierno delEstado, I, 1942, p. 78 en Staples, 1985, nota 81).

Si era difícil desterrar los días festivos religiosos, más difícil todavíaera combatir el San Lunes. Éste afectaba el buen funcionamiento delgobierno, del comercio, y por puesto de las escuelas. El presidente JoséJoaquín de Herrera explicó que “deseando [...] no fomentar, ni aunindirectamente, el inmoral vicio del juego, en que por abuso muylamentable han degenerado las fiestas de la Pascua de Espíritu Santo, enla ciudad de Tlalpan”, todos los burócratas y militares tendrían quereportarse a sus oficinas el lunes y martes “de dicha pascua” y desdeluego no prestarse al “ejercicio indecoroso de tallador” (Circular 16 de

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mayo de 1849, Dublán & Lozano, V, 1876-1904, p. 561). Por supuesto,esto incluía a los maestros pagados por el gobierno. En 1854 hizo faltaun oficio donde expresamente se prohibiera a los alumnos de SanIldefonso asistir a los juegos de azar y bailes en Tlalpan (Oficio deTeodosio Lares a Sebastián Lerdo de Tejada, rector de San Ildefonso,14de mayo de 1854, Caja 15, RS0-1025, Catálogo ordenes dirigidas alColegio, p. 507, Centro de Estudios Sobre la Universidad, UniversidadNacional Autónoma de México, en adelante CESU, UNAM). Ese año elcalendario escolar correría entre el primero de enero y el 15 de noviembre,con las usuales ausencias en Cuaresma y Pascua, Todos Santos, el 11,16 y 27 de septiembre. La lista no era excluyente, pues dejaba entreverla existencia de más fiestas nacionales (Instrucción Pública, vol. 65,f. 62, 28 de septiembre de 1854, AGNM). La Guía de forasteros anotabaocho días de guardar, además de los domingos. A pesar de haber abolidola clasificación de individuos por su origen étnico desde 1822 (Ordende 17 de septiembre de 1822, en Dublán y Lozano, I, 1876-1904, pp. 628-629), todavía se hacía una excepción para los indios, que sí podíantrabajar esos días y no escuchar misa (Galván Rivera, 1854, pp. 7-27;Fernández de Lizardi, XII, 1991, pp. 553-554)4. Sin duda, la intenciónera sacarles el mayor provecho posible. En la década de los cincuenta,el régimen de Antonio López de Santa Anna, en una vuelta a lastradiciones, hizo hincapié en la observancia de las costumbres religio-sas. Impuso media hora de estudio diario del catecismo de Ripalda yotra media hora de historia de la Iglesia de Fleury en las escuelaselementales (Decreto 31 de marzo de 1853, Dublán & Lozano, VI, 1876-1904, pp. 351-352), exigió fe de bautismo a los maestros y envió a todala República un regaño por “el olvido en que han caído las varias leyesvigentes que prescriben la cesación de toda clase de trabajo en los díasde festividad religiosa o nacional”. Mandaba Su Alteza Serenísima ob-servar las disposiciones escrupulosamente y castigar a los infractores

4. A José Joaquín Fernández de Lizardi le llamaba la atención esta gracia concedido alos indígenas, por ser neófitos o cristianos nuevos, y preguntaba hasta cuándo seles seguiría considerando aparte del resto de la población.

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(Circular del Ministerio de Gobernación, 2 de julio de 1853, Dublán yLozano, VI, 1876-1904, pp. 580-581). Otro indicio de esta mentalidadmuy observante de las formalidades religiosas se encuentra en el decre-to que designó festividad nacional el 8 de diciembre “para perpetuardignamente la memoria de la solemne declaración dogmática de laInmaculada Concepción” de María (Decreto 21 de abril de 1855, Dublán& Lozano, VII, 1876-1904, p. 468). Había sido festejado durante elvirreinato y todavía estaba incluido en el breve pontificio de 1835, perohabía desaparecido en el de 1839. El gobierno santannista se inmiscuíahasta en los detalles de la vida ritual de los colegios. Señaló el viernesde Semana Santa para la comunión obligatoria de los alumnos del Insti-tuto Nacional del Espíritu Santo (antiguamente Colegio del mismonombre) y el traje talar para los internos (Oficio 10 marzo 1855,Instrucción Pública, vol. 85, ff. 67-69, AGNM). El no presentarse en lasfestividades ordenadas por el gobierno, como el cumpleaños de DoloresTosta, joven esposa de Santa Anna, ocasionaba severas reprimendas.Fue requerida la presencia del rector de San Ildefonso en palacio paraesa ocasión (Oficio de Teodosio Lares a Sebastián Lerdo de Tejada,rector de San Ildefonso, 29 de marzo de 1855, Caja 16, RS0-1053, Ca-tálogo de órdenes dirigidas al Colegio, p. 521, CESU, UNAM).

El calendario escolar no resentía únicamente las festividades. Sepodía matricular en los colegios de segunda enseñanza en cualquiermomento. Por ejemplo, en el examen anual de latín celebrado en 1850en el Colegio Clerical de Campeche, aprobaron jóvenes que tuvierondos, tres, seis y diez meses de estudio respectivamente; en otro caso,con siete meses de asistencia los jóvenes aprobaron sintaxis española ylatina, las oraciones y los primeros tres libros de las fábulas de Fedro;otro joven después de seis meses de matrícula supo todo lo anterior máslas fábulas de Esopo y la oración de Cicerón contra Catilina. Otro másestuvo en el colegio un mes y presentó un examen sobre sintaxis y la IXoración de Cicerón (Alcocer Bernés, 1997, pp. 147, 157, 175, 186). Eltiempo de matrícula no guardaba proporción con el grado de avance delos conocimientos. Los alumnos podían estudiar en casa y presentarsecuando sentían que dominaban la materia.

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Lo que parece indicar un cambio es el hecho de no permitir a losalumnos matricularse cuando quisieran. A partir de 1854, en los colegios25 faltas en el año llevaría a la expulsión (Artículo 50, Plan General deEstudios, 19 de diciembre de 1854; decreto 22 de septiembre de 1855,Dublán & Lozano, VII, 1876-1904, pp. 350 y 563-564)5. El tiempo habíaadquirido otra dimensión, se había vuelto una unidad no sólo mediblesino limitante para el alumno. Sin embargo, nueve meses después sederogó este plan, regresando a usos y costumbres anteriores. Estoscambios en el calendario no fueron permanentes. En 1861, el año esco-lar terminaba el 15 de septiembre, así que hubo otro ajuste (Decreto 23de febrero de 1861, Arrillaga, XII, 1834-1850).

Las quejas fueron muchas y perennes por la reducida duración delaño escolar, por lo poco que aprendían los alumnos, por sus faltas deasistencia y por la ociosidad de la población. Fue un problema de largaduración. Lo mismo se escuchaba en la gran ciudad que en la provincia.La escuela municipal de Tlacotlalpan, Veracruz, avisaba al ayuntamientodel “culpable abandono en una gran parte de los padres de estos niños,que mejor consienten que anden de ociosos por la calle y lugares públi-cos donde no aprenderán otra cosa que vicios y malas costumbres, quetener cuidado de hacerlos concurrir con puntualidad...”. Los padres luegoculpaban a la escuela de que no progresaban los niños. El maestro de laescuela estaba “cansado de mandar infinidad de listas a las autoridadeslos años pasados y principios del presente sin resultado alguno favorable”(Escuela Municipal de Varones, 31 de enero de 1860, Archivo Históricode Tlacotlalpan, Veracruz). Ni padres ni autoridades tomaban suficien-temente en serio el aumentar la asistencia a la escuela. Intentaron reducirel número de festividades para que no hubiera pretextos, pero no sepudo motivar a las familias ni a los alumnos a entregarse a las laboresescolares con dedicación. Todo el mundo tenía la culpa. La Iglesia por

5. El 11 de septiembre era para festejar la derrota de Isidro Barradas en su intento dereconquista española en 1829, victoria con la cual se adornó Antonio López deSanta Anna.

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las festividades religiosas, el gobierno por las cívicas, los padres defamilia por la inasistencia. Una constante fue el resultado pronosticado:no lograr los sueños de un país moderno, poblado de ciudadanos ins-truidos, educados, responsables.

Ni el orden y progreso del porfiriato fueron suficientes para resolverel problema de los tiempos escolares. Todavía no se ponían de acuerdoen cuanto a los horarios, planes de estudio, método de enseñanza etc.(El Partido Liberal, 10 de junio de 1890 citado en Meneses Morales,1983, p. 448). En 1908 un artículo de periódico señalaba que “las familiasprotestan por las consecuencias de las inexplicables vacaciones que or-dena el secretario después de las fiestas patrias. No hay ninguna razónpara tal descanso que perjudica las labores escolares”. Nuevamente sepensaba mover el calendario escolar; el gobierno ahora quería quecoincidiera con el año fiscal, corriendo las vacaciones hasta junio. Habríaclases en invierno, con los fríos tan perjudiciales a la salud de los niños,justo cuando las buenas familias con recursos buscaban climas más be-nignos (El Diario del Hogar, 23 de septiembre de 1908, citado enMeneses Morales, 1983, p. 579).

Desde los primeros tiempos de la independencia, se entendía quehabía que trabajar más. Fernández de Lizardi decía que “ciertamente lamultitud de días de fiesta es muy dañosa, en especial a los pobresartesanos que no tienen otro patrimonio para subsistir diariamente consus familias sino el trabajo de sus manos, de manera que el día que notrabajan empeñan, o se endrogan o ayunan” (Fernández de Lizardi, XII,1991, p. 555). Sólo le faltaba agregar que tampoco iban a la escuela lospocos alumnos inscritos en las escuelas. Las enseñanzas sacadas de es-tas festividades públicas no concordaban con las virtudes de moralidady orden que tenían que ser la base de la educación mexicana. Al contra-rio, “en tales días, por ejemplo, en los de Corpus, Todos Santos, NuestraSeñora de Guadalupe, etcétera, etcétera, se aumentan las diversiones, sepueblan los paseos, se venden más licores, entran más heridos al Hospi-tal de San Andrés y más presos a las cárceles. El desenfreno de laspasiones siempre es fruto de la ociosidad” (Fernández de Lizardi, XII,1991, p. 555). La queja se repetía a lo largo del siglo XIX y del siguiente.

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¿En qué gastar el tiempo? Los alumnos de las escuelas mexicanas logastaban en vacaciones, en asistir a ceremonias religiosas o cívicas, enesperar mientras sus compañeros presentaban sus exámenes, en festejaral maestro y al director, en quedarse en casa por enfermedades ocompromisos familiares. A pesar del esfuerzo por reducir el número defestividades eclesiásticas y nacionales, el número real de días de asistenciay horas verdaderamente aprovechadas en el estudio parece haber sidopoco. Si descontamos el tiempo dedicado a memorizar los textos y defi-nimos el proceso de aprendizaje como el de explicación y exposición,se reduce todavía más el tiempo que tuvieron los jóvenes para entenderel mundo que les rodeaba.

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Apéndice

DÍAS FESTIVOS Y VACACIONES

Festividades

Ascensión de laVirgen (15 de agosto)

Circuncisión (1° de enero)

Corpus Christi

Cuatro días rogativos

Domingos

Epifanía

Nacimiento de la Virgen

Del 24 ó 25 dediciembre al 1 de enero

Dos días de Carnaval

Dos días de Carnaval yel Miércoles de Ceniza

Tres días del Carnaval yel Miércoles de Ceniza

Del Domingo de Ramosal Domingo de Pascua(Semana Santa)

Del Domingo de Ramosal martes después dePascua

6. Dublán & Lozano, I, 1876-1904, p. 599.7. Idem, p. 6008. Idem, pp. 49-534.9. Escriche, 1996, pp. 200-201.10. Únicamente se refiere al estado de Puebla. Puebla. Colección de decretos, 1850,

p. 344.11. Se trata de la Universidad de Mérida. Artículo 19, Reglamento de la Universidad

de Mérida, Mérida, Tipografía de Rafael Pedrera, 1851, en Instrucción Pública,vol. 88, f. 102, AGNM.

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18226 1824-18267 18358 18379 1839 1844 184910 185111 1854

(continua)

de cuándo a cuándo 221

A Únicamente en la capital del país. Dublán & Lozano, VII, 1876-1904, p. 350.

(continua)

(continuação)

Festividades

Domingo de Ramos,Jueves y Viernes Santo

Jueves y Viernes Santo

Del Viernes Santo alsiguiente martes

Viernes Santo, Sábadode Gloria y Domingo deResurrección

Diez días deResurrección

Tres días de Cuaresma

Purificación de la Virgen

Purísima concepción

San Felipe de Jesús(5 de febrero)

San Hipólito

San Juan Bautista

San Pedro y San Pablo

Santa Rosa de Lima

Todos Santos

Virgen de Guadalupe

Virgen del Carmen(16 de julio)

Virgen de los Ángeles(2 de agosto)

Virgen del Pilar(12 de octubre)

Virgen de los Remedios

24 de febrero

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*A

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1822 1824-1826 1835 1837 1839 1844 1849 1851 1854

222 revista brasileira de história da educação n° 8 jul./dez. 2004

B Se trata del plan provisional de arreglo de estudios de 1834. Dublán & Lozano, II,1876-1904, p. 761.

C El Colegio de Minería de la Ciudad de México quiso adoptar también este períodoen 1843. El Observador Judicial, IV, pp. 208-209.

Festividades

2 de marzo

11 de septiembre(Derrota de Barradas)

16 de septiembre(Grito de Dolores)

27 de septiembre(Entrada del EjércitoTrigarante)

4 de octubre(Promulgación de laConstitución de 1824)

Del 28 de agosto al 18de octubre

Del 15 de noviembre al31 de diciembre (períodovacacional en Oaxaca)

Del 16 de noviembreal 1° de enero

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*B

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*C

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1822 1824-1826 1835 1837 1839 1844 1849 1851 1854

(continuação)

de cuándo a cuándo 223

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Tiempo y sociedad, en el RealSeminario de Minería,1792-1821

Eduardo Flores Clai*

La industria de metales preciosos, oro y plata, a finales del siglo XVIII, recibió un granimpulso de la corona española. Para ello, intentó modernizar el sistema productivo de laminería con el fin de aumentar la recaudación fiscal. El Real Seminario de Minería(RSM) fue un engranaje más de esta maquinaria que tenía como objetivos difundir losconocimientos científicos, instruir a la juventud novohispana en las técnicas más mo-dernas de explotación y refinación de minerales. En esta historia queremos llamar laatención sobre la vida académica.ESCUELA MODERNA; HISTORIA; INDUSTRIALIZACIÓN; JUVENTUD;MODERNIZACIÓN.

At the end on the 18th century, the precious metal industry, gold and silver, received agreat impulse from the Spanish crown. For this, it needed to modernize the productivesystem of the mining with the purpose to increase the fiscal collection. The Real Seminaryof Mineração (RSM) was a strategy that had objectives to spread out the scientificknowledge, to instruct new Hispanic youth in the most modern techniques of explorationand mineral refinement. It is on this history that we want to call the attention of theacademy.MODERN SCHOOL; HISTORY; INDUSTRIALIZATION; YOUTH; MODERNIZATION.

* Doctor en historia por El Colegio de México. Profesor investigador del Departa-mento de Estudios Históricos del Instituto Nacional de Antropología e Historia.Entre sus artículos se encuentra La educación minera en México, Los amantes dela ciencia. Una historia económica de los libros del Real Seminario de Minería yotros.

226 revista brasileira de história da educação n° 8 jul./dez. 2004

La industria de metales preciosos, oro y plata, a finales del sigloXVIII, recibió un gran impulso de la corona española. De hecho, lapolítica borbónica se convirtió en una fuerza de arrastre de la economíacolonial que tenía como finalidad solventar las necesidadespresupuestarias de la metrópoli. Para ello, intentó modernizar el sistemaproductivo de la minería con el fin de aumentar la recaudación fiscal1.El Real Seminario de Minería (RSM) fue un engranaje más de esta ma-quinaria que tenía como objetivos difundir los conocimientos científi-cos, instruir a la juventud novohispana en las técnicas más modernas deexplotación y refinación de minerales, incorporar a cuadros cualificadosque se encargaran de la dirección de las empresas y diseñaran políticasde desarrollo en las oficinas de gobierno2.

Desde mucho tiempo atrás, diversos autores habían señalado queuno de “los males más graves” que aquejaban a la industria minera eraprecisamente la escasez de trabajadores “instruidos”. Se sabía que unsin número de obras de infraestructura habían fracasado por falta deplanificación, la ignorancia de sus ejecutantes y los “vicios” de losoperarios. La impericia de los trabajadores se demostraba en distintosniveles: los empresarios invertían cuantiosas sumas y, ante la frustraciónde los trabajos, se arruinaban; los pueblos mineros eran incapaces deaprovechar los recursos minerales y vivían en una constante decadencia,y la Real Hacienda dejaba de abastecer de recursos a la metrópoli con locual se empobrecía irremediablemente. Estos mismos autores coincidíanen que era imprescindible aprovechar los conocimientos acumulados enla industria minera centro europea y difundirlos a través de los centroseducativos. De esta manera, la capacitación para el trabajo dejaría de ser

1. Entre otros, véase David. A. Brading, Mineros y comerciantes en el Méxicoborbónico, México, Fondo de Cultura Económica, 1971; Cuauhtémoc Velasco Ávilaet al., Estado y minería en México (1767-1910), México, Fondo de CulturaEconómica, Secretaría de Energía, Minas e Industria Paraestatal, 1988.

2. Santiago Ramírez, Datos para la historia del Colegio de Minería, México, Univer-sidad Nacional Autónoma de México, Sociedad de Exalumnos de la Facultad deIngeniería, ed. facsímil, 1982; José Joaquín Izquierdo, La primera casa de lasciencias de México; El Real Seminario de Minería, 1792-1811, México, EdicionesCiencia, 1958.

tiempo y sociedad 227

una instrucción meramente empírica, se le reconocería como unaactividad de gran mérito y nobleza, se apegaría a las normas escolares ypostulados científicos3.

En general podemos decir que el despotismo ilustrado y los sectoresinteresados en la industria minera tenían urgencia de capacitar a los jóve-nes novohispanos con el fin de renovar el conjunto de técnicastradicionales4. En esta historia queremos llamar la atención sobre un temamuy significativo en la vida académica del RSM: nos referimos a laconcepción del tiempo. En este trabajo, el tiempo es una representacióncolectiva del ritmo de vida escolar. De hecho, es la estructura queorganizaba al conjunto de actividades colectivas y se manifestaba pormedio de un calendario que determinaba los ritmos periódicos de laboreseducativas, las fiestas, las ceremonias y los ritos. Intentamos resolver:¿Cuáles fueron las mediciones del tiempo en el Seminario de Minería?¿Existió una diferencia tajante entre el tiempo cronológico y el tiempoescolar? ¿En qué medida el tiempo fue un factor determinante para cumplirlos objetivos de capacitar a los jóvenes novohispanos en las áreas que laindustria minera demandaba? ¿Las representaciones del tiempoconstituyeron un sistema normativo que permitió disciplinar el comporta-miento de los actores involucrados en el proceso de enseñanza minero?

El tiempo todo lo descubre

En siete años, el Seminario de Minería tenía la obligación de formar“peritos” en las áreas de explotación y beneficio (refinación o metalur-

3. Entre otros podemos nombrar a: Juan Lucas de Lassaga y Joaquín Velázquez deLeón, Representación que a nombre de la minería de esta Nueva España, hacen alrey nuestro señor. Los apoderados de ella..., introducción de Roberto Moreno delos Arcos, ed. facsímil, México, Universidad Nacional Autónoma de México, So-ciedad de Exalumnos de la Facultad de Ingeniería, 1979; Francisco Xavier Gamboa,Comentarios a las Ordenanzas de minería dedicados al católico rey nuestro señordon Carlos III..., México, obra reimpresa por Díaz de León y White, 1874.

4. Al institucionalizar la enseñanza del trabajo minero, el conocimiento empírico quedóal margen y fue menospreciado, aunque prevaleció en los centros mineros y compitiófuertemente contra el conocimiento científico.

228 revista brasileira de história da educação n° 8 jul./dez. 2004

gia) de minerales. Los alumnos recibirían una instrucción teórica duran-te cuatro años para enseñarles las ciencias (matemáticas, física, químicay mineralogía) y las artes mecánicas (dibujo, delineación, maquinaria,entre otras). Asimismo, los estudiantes pondrían en práctica susconocimientos durante tres años en los reales de minas del virreinato yelaborarían una tesis para que se les expidiera el título correspondiente5.Pero de hecho, las mediciones del tiempo de enseñanza sufrieron unaserie de modificaciones a lo largo del tiempo. Como bien afirma JoséJoaquín Izquierdo, biógrafo de esta institución, “el plan académico sefue creando [a lo largo de su vida]”6.

A grandes líneas, en el debate pedagógico afloraron dos posicionesirreconciliables. Por una parte, algunos funcionarios reales y represen-tantes de los comerciantes de la Ciudad de México manifestaron unaconcepción utilitaria de la educación; partían de una idea simple: el RealSeminario tenía características similares a un negocio. En otras palabras,la educación demandaba cuantiosos recursos económicos y los estu-diantes invertían mucho tiempo en su preparación. Por lo tanto, la escueladebía de proporcionar utilidades en el corto plazo y los alumnos tendríanque ser recompensados por su dedicación. Con el fin de acortar losestudios o inclusive de cerrar la escuela, advertían que entre losnovohispanos existía una falta de interés por el estudio de las ciencias.Los datos de ingreso eran más que concluyentes: de 1792 a 1821, sematricularon 323 jóvenes y sólo lograron graduarse 42. Con base enestos resultados, afirmaron que la educación minera era un “bellísimoproyecto que sólo sirve para estamparse en el papel y arrancar al lectorun ojalá tan fervoroso como estéril”7.

Por otra parte, un grupo de mineros, que tenían una gran influenciade las distintas escuelas mineras europeas8, consideraba que la educa-

5. Archivo General de la Nación México (en adelante AGNM), Minería, vol. 11, exp. 2.6. Izquierdo, op. cit., pp. 41-43.7. Archivo General de Indias (en adelante AGI), México, 2237, “Sobre el cierre del

Colegio y la desaparición del Tribunal de Minería, datos del gasto del Colegio, elrecorte presupuestal y plan de gastos del Real Tribunal y colegio en 1814”.

8. Nos referimos principalmente a la escuela de Almadén, al Real Seminario Patrióti-co Bascongado y a la Escuela de Freiberg, en Sajonia.

tiempo y sociedad 229

ción era una pieza clave para resolver los problemas técnicos queenfrentaban y el ciclo escolar se podría prolongar hasta por diez años omás si era necesario. Fausto de Elhuyar, quien fuera el primer directordel RSM, señaló respecto a este punto que la educación se iniciaba en elseno de las familias, continuaba en la escuela, proseguía en el trabajo yla vida entera era insuficiente para cultivar con plenitud las ciencias.Ante la imposibilidad de que los estudios se prolongaran al infinito,introdujo dos cambios sustanciales: por una parte, propuso que losestudios teóricos comprendieran cinco años, por el bajo nivel académi-co de los alumnos9, y en segundo término, las prácticas de campo seredujeran a sólo dos años10.

En general, entre 1792-1821, el ciclo educativo, en términos formales,abarcó siete años11. Sin embargo, las condiciones para llevar a cabo loscursos en los plazos fijados no se cumplieron por una amplia gama deproblemas de diversa índole. Por ejemplo, la infraestructura de la escuelafue inadecuada; el suministro de profesores españoles no se realizó enlos plazos señalados y principalmente a causa del atraso de los alumnosque fueron incapaces de terminar en el tiempo fijado y requirieron hastanueve años para culminar sus estudios12.

De hecho, podemos señalar que el tiempo otorgado para el cicloescolar minero no se basó en los propósitos académicos, tampoco en elnivel educativo de los alumnos y mucho menos en la preparación de losprofesores, sino que estuvo inmerso en una serie de intereses que dictaron

9. Archivo Histórico del Palacio de Minería (en adelante AHPM), caja 52, doc. 1.“Instrucción sobre la constitución y estado actual del Real Seminario de Mineríade México” (1791).

10. AGI, México, 2238, “Testimonio del plan propuesto por el Tribunal de Mineríapara el gobierno del Colegio Metálico o Seminario, que debe establecerse en virtudde la Real Orden”.

11. AHPM, caja 52, doc. 1, “Instrucción sobre la constitución y estado actual del RealSeminario de Minería de México” (1791).

12. Las causas del abandono de los estudios fueron diversas: iban desde los asuntosfamiliares, pasando por la falta de recursos económicos e incluso por no aprobarlas materias. En general, los alumnos tuvieron muchos problemas deaprovechamiento en la clase de matemáticas, como ocurre hoy en día en distintoscentros escolares.

230 revista brasileira de história da educação n° 8 jul./dez. 2004

las políticas educativas, diseñaron la vida interna de la escuela, propor-cionaron los recursos económicos indispensables y por lo tantodeterminaron los tiempos de la enseñanza.

En esta escuela concurrían distintos actores cuyos tiempos estabancondicionados por sus intereses inmediatos y de largo plazo. Muchosmaestros y alumnos vivían fuera de tiempo, se atrasaban o adelantaban,se enfermaban y sanaban, interrumpían sus estudios y los continuaban,ingresaban o se jubilaban, sostenían la idea de un porvenir promisorio oveían su futuro con nubarrones. No obstante, contra esta diversidad laescuela imponía su tiempo, homologaba las diferencias y le asignaba unsentido coherente, con el fin de ubicar al Real Seminario de Minería enel tiempo histórico13.

En términos generales, podemos decir que la educación minera nofue ajena a los calendarios de otras instituciones similares de su época14.Como principio político se intentó un equilibrio entre el tiempo dedica-do a las labores de la enseñanza y el tiempo destinado a otro conjunto deactividades cotidianas. En este sentido, por el hecho de vivir en comuni-dad, el tiempo de la escuela tendía a homogenizar el ritmo de vida;como bien dice Jacques Attali,

todos y cada uno deben vivir en horas idénticas o, en todo caso, coherentes

entre sí; todos y cada uno deben estar rodeados de un tiempo definido, toma-

do al segundo, para interiorizarse de la nueva disciplina15.

13. Adolfo Carrasco Martínez escribió que “el tratamiento del tiempo histórico a lolargo de la evolución de la historiografía nos revela las discontinuidades de laactitud hacia el pasado, precisamente porque el diálogo entre la experiencia y lasexpectativas no ha empleado siempre el mismo código” en: “La trama del tiempo.

14. Las Constituciones o reglamentos de las escuelas de internado eran muy similaresen Nueva España y en Europa, lo cual hace pensar que al elaborarlos, se copiaranlas ideas de unos a otros, inclusive en la forma de distribuir el tiempo. Véase JorgeRené González y Ma. Magdalena Ordóñez, Colegio Seminario de Tepotzotlán parainstrucción, retiro voluntario y corrección de clérigos seculares, México, InstitutoNacional de Antropología e Historia, 1993.

15. Jacques Attali, Historias del tiempo, México, Fondo de Cultura Económica,1985,p. 201.

tiempo y sociedad 231

Tiempo antes

El calendario del RSM no fue común, la distribución del tiempocronológico se llevó a cabo teniendo en cuenta las distintas actividades,tales como: el desarrollo temático de cada una de las materias impartidas,los sistemas de evaluación, las fiestas religiosas, las ceremonias civilesy, como hemos dicho, los intereses políticos. El año escolar comenzabacon el año calendario, en las primeras semanas de enero; sin embargo,el inicio de las clases oscilaba y no existía un día prestablecido. Losalumnos se incorporaban con cierta parsimonia, los que vivían enprovincia regresaban de sus casas entre la segunda y la tercera semanaya iniciadas las clases. El año se dividía en dos grandes periodos teniendoen cuenta los cambios de clima o estación del año; el primero abarcabade enero a abril y el segundo iba de mayo a final de año. Podemosseñalar que, al transcurrir los meses, el ritmo de trabajo iba aumentan-do; primero se interrumpía por la celebración de la Semana Santa (defecha móvil entre marzo y abril) y posteriormente por los exámenesprivados que se realizaban entre junio y julio. Enseguida se iniciaba unaetapa menos dinámica y culminaba con los exámenes públicos llevadosa cabo entre octubre y diciembre16.

Los ritmos y calendarios de las escuelas europeas eran diferentes,como por ejemplo: el Seminario Patriótico de Bergara, que disfrutabade vacaciones veraniegas entre el 8 de agosto al 1° de octubre17. El RSM,en sus primeros tres años, no tuvo descanso alguno, las lecciones seprolongaron hasta diciembre y el tiempo les fue insuficiente para practicaren los reales mineros. Sin embargo, los profesores fueron adquiriendoexperiencia y los cursos posteriores se terminaron entre septiembre yoctubre.

16. AHPM, caja 120, doc. 9, Reglamento sobre asuetos que debe haber en el RealSeminario de Minería con distinción de sus clases, 6 de septiembre de 1806.

17. Inés Pellón y Ramón Gago, Historia de las cátedras de química y mineralogía deBergara a fines del siglo XVIII, Gipuzkoa, Ayuntamiento de Bergara, 1994, p. 39.Cabe aclarar que Koldo Larrañaga afirma que las vacaciones se iniciaban el 18 deagosto, Día de la Asunción, y se prolongaban hasta el 18 de octubre, Día de SanLucas; véase Las manifestaciones del hecho ilustrado en Bergara, Bergarako Udala,Ikerlan Saila, 1991, pp. 42-43.

232 revista brasileira de história da educação n° 8 jul./dez. 2004

En 1795, debido a que se había cumplido con el calendario, eldirector, Fausto de Elhuyar, aprovechó la ocasión para introducir unnuevo cambio; solicitó ante el Tribunal de Minería que se les perdonaranlas prácticas, tanto a los profesores como a los alumnos, con el fin deque pudieran disfrutar de un reposo merecido. De hecho, los profesoresestaban cansados de lidiar con los jóvenes y, en su mayoría, eran hombrescasados y tenían que atender a sus familias. Este periodo vacacional lespermitiría tener desahogo y podrían usar el tiempo a su arbitrio, paravolver con ánimo a la fatiga del año próximo18. Asimismo, las vacacionestenían un sentido pedagógico. Elhuyar consideraba que el tiempo deconvivencia de los alumnos resultaba muy prolongado y por tanto eranecesario cambiar de aires y de ambiente social. Aunque existía un factorextra académico, el director hizo énfasis en que las prácticas de campoimplicaban un mayor gasto económico, pues era necesario cubrir el costode transporte y la manutención de profesores y alumnos19.

Hasta ahora no sabemos cuál fue el factor que determinó la aceptaciónde un periodo vacacional. Pero dedicarle tiempo al descanso se considerócomo una medida prudente y muy provechosa. Para los alumnos,representaba la posibilidad de visitar a sus padres (en su caso tutores) yprolongar su convivencia para que hubiera un mayor acercamiento fa-miliar. A los que tenían un origen minero, se les recomendó queinspeccionaran las obras de las minas y las haciendas de beneficio, conel fin de formarse algunas ideas sobre lo que debe explicárseles en elcurso próximo, como también repasar lo que en este año han estudiado20.Cabe añadir que las vacaciones también eran vistas como un castigopara los alumnos flojos, aquellos que habían reprobado alguna asignaturay durante ese periodo debían ponerse al corriente. En realidad, los díasde descanso tenían el carácter de premio para los estudiantes mássobresalientes y aquellos que habían mostrado un “medianoaprovechamiento”.

18. AHPM, caja 76, doc. 13, “Vacaciones para los colegiales”, 26 de octubre de 1795.19. AHPM, M.L. 90 B, “Libro de oficios 1789-1800”, pp. 126-128v.20. AHPM, caja 76, doc. 13, “Vacaciones para los colegiales”, 26 de octubre de 1795.

tiempo y sociedad 233

Por otra parte, los días de fiesta eran abundantes, y en general estabandestinados a reforzar la fe en los dogmas católicos. En este renglón, elRSM, a pesar de su carácter ilustrado, midió fuerzas con las institucio-nes, no sólo educativas, que imponían el ritmo de vida en el virreinato yque estaban fuertemente consolidadas, detentaban fueros poderosos yrepresentaban profundas tradiciones de la cultura novohispana. Por talmotivo, el colegio minero se vio inmerso en las prácticas socialesprexistentes y fue incapaz de imponer su tiempo, aunque logró introduciralgunos cambios que arrebataron parte del tiempo destinado a lasceremonias religiosas.

Las conmemoraciones autorizadas eran las relacionadas con la vidade Jesucristo y María Santísima, y con todos aquellos miembros de laCorte celestial que se contaban entre las preferencias devocionales delos novohispanos. Sólo por poner un ejemplo, en 1808 hubo cuarenta ydos fiestas religiosas y cinco ceremonias de carácter “civil”21. En el mesde enero, las celebraciones más importantes fueron la Circuncisión delSeñor y el Día de Reyes o Epifanía. En febrero se conmemoró laPurificación de Nuestra Señora Candelaria y se recordó a dos Santosque tenían estrecha relación con Nueva España, reunían los atributos dejuventud y castidad y por tanto eran buenos ejemplos para los estudian-tes: Felipe de Jesús y Sebastián Aparicio22.

Marzo se esperaba con los brazos abiertos por el desenfreno y eljolgorio del Carnaval y las Carnestolendas23. Inmediatamente despuésvenía la reflexión; la Cuaresma se iniciaba con el Miércoles de Ceniza yse prolongaba durante cuarenta días. Además, en este mes se recordabaa San José, patrono de Nueva España, la Encarnación del Verbo y a los

21. En las fiestas civiles se contemplaban los cumpleaños del rey, el director del RSM,el administrador del Tribunal de Minería, el rector y vicerector del RSM.

22. Albert Cristian Sellner, Calendario perpetuo de los santos, Buenos Aires,Sudamericana, 1994.

23. Carnestolendas, los tres días de carne que proceden al Miércoles de Ceniza, en loscuales se hacen fiestas, convites y otros juegos para burlarse y divertirse. Diccionariode Autoridades, Madrid, Gredos, ed. facs, Biblioteca Románica Hispánica, 1964,tomo 1, p. 188.

234 revista brasileira de história da educação n° 8 jul./dez. 2004

Santos Casimiro, Tomás de Aquino y Eulogio, quienes tenían los atribu-tos de la juventud, la castidad, el estudio y la enseñanza de la fe.

Como mencionamos, el ciclo sufría su primer interrupción considera-ble durante la Semana Santa que se prolongaba desde el viernes deDolores hasta el tercer día Pascua de resurrección. Alumnos y profesoresdisfrutaban de vacaciones cortas y tenían el derecho de pasarlas al ladode sus familias o podían quedarse en las instalaciones del Colegio. To-dos aquellos que no salían, se ocupaban de sus obligaciones académicasy religiosas; en general tenían permiso para abandonar el edificio du-rante las tardes. El Jueves Santo se modificaba la rutina; los alumnospermanecían en la calle para realizar la visita de las siete casas y teníanpermiso de regresar hasta las ocho de la noche24. Asimismo, estudiantesy profesores participaban en la procesión del Cristo de Santa Teresa yen la peregrinación al Santuario de Nuestra Señora de los Remedios.

A principios de mayo se festejó la Santa Cruz, el día 26 se asistió alSantuario de Nuestra Señora de Guadalupe y al final del mes se celebróel Día de San Fernando, en honor al cumpleaños del Príncipe de Asturias.Para junio las celebraciones fueron la Pascua, el Corpus Christ, SanJuan y San Pedro y San Pablo. En julio se festejó a Nuestra Señora delCarmen, a Santiago patrono de España y a la Señora Santa Ana; tam-bién se efectuó una fiesta por el armisticio con Inglaterra25. El mes deagosto se recordó a Nuestra Señora de los Ángeles y se paseó el pendónel Día de San Hipólito. Asimismo se festejó a San Lorenzo, SanBartolomé, Santa Rosa de Lima y la Asunción. Por la invasión francesaa la península ibérica y el golpe de estado contra el virrey Iturrigaray, seefectuaron rogaciones públicas con el fin de que hubiera una tregua y“el nuevo aire trajera la paz”. Durante septiembre se continuaron lasoraciones públicas y se reforzó con un novenario a Nuestra Señora deGuadalupe. Y celebraron la Natividad de Nuestra Señora, a San Mateo ySan Miguel Arcángel.

24. Santiago Ramírez, op. cit., p. 271.25. El 31 de ese mes era la fiesta de San Ignacio de Loyola, pero suponemos que a raíz

de la expulsión de los jesuitas no se conmemoró oficialmente. Hernández y Dávalos,1889, p. 321.

tiempo y sociedad 235

En el último trimestre del año, las fiestas religiosas eran menosfrecuentes y se asomaba el fin de las clases. En octubre se recordó a SanFrancisco de Asís, Nuestra Señora del Pilar, San Calixto Papa y SanJudas Tadeo. Noviembre iniciaba con la ceremonia de Todos Santos yDifuntos y se llevaba a cabo la fiesta de uno de los patronos de losmineros: San Andrés. En diciembre se conmemoraba a la PurísimaConcepción y se efectuaba la fiesta más grande del año en honor a NuestraSeñora de Guadalupe, en la que participaban todos los funcionarios delTribunal de Minería26. Y el año cerraba con otra gran celebración queera la Natividad.

Esta situación en algunas escuelas europeas podía adquirir tintesmás dramáticos. Como por ejemplo, el testimonio de un estudiante de laUniversidad de Valencia arroja luz sobre la diferencia entre el tiempo defiesta y los días de estudio:

En esta Universidad donde algunos amigos y yo hemos sacado el cómputo,

del que resulta que el año se dan cincuenta y cinco a cincuenta y seis clases,

y si no, saque usted del diez de mayo hasta el cuatro de noviembre que la

puerta permanece cerrada, saque un mes en derredor de Navidad, a que un

mes por Pascua, saque quince días por Carnaval, saque usted los jueves,

fiestas de misa y precepto, todos los días de un poco de frío y de agua y verá

lo que queda del año. Los días de clase se tendrán tres cuartos de hora a lo

más; los unos fuman, otros hablan, otros cantan, y lo que quieren los maes-

tros es que los estudiantes sigan tan burros como ellos mismos27.

En el caso de la Nueva España, la situación no era muy distinta, losfuncionarios del Tribunal de Minería manifestaron una gran molestiaporque los días de asueto representaban la “cuarta parte año”, lo que

26. La fiesta de Nuestra Señora de Guadalupe era la más fastuosa del año y en ella sellegaba a gastar una suma considerable. Sabemos que en 1792 ascendió a 423 pe-sos. AHPM caja 56, doc. 1, “Comprobantes de las cuentas del Factor” (1792).

27. Citado por Baldó i Lacomba, Marc, Profesores y estudiantes en la época romántica,La Universidad de Valencia en la crisis del Antiguo Régimen (1786-1843), Valen-cia, España, Ayuntamiento de Valencia, 1984, p. 37.

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traía como consecuencia un atraso considerable en los estudios de losalumnos y un despilfarro de las arcas mineras. El calendario era tanamplio y las tradiciones estaban tan acendradas que poco se logró eneste renglón. El director, Fausto de Elhuyar, se encargó de reglamentarel tiempo con el fin de reducir los días de fiesta y las horas muertas. Losdías de fiesta fueron divididos en tres categorías, con el fin de restringirlas salidas de los estudiantes a la calle y evitar la vagancia. En estesentido aún los días asueto, los alumnos tenían que dedicar una hora porla mañana y otra por la noche para repasar sus clases. Se estableció queen los días de fiesta, en lugar de dedicarse a la enseñanza de la “doctrinacristiana”, utilizaran el tiempo para estudiar algún tema pendiente desus asignaturas. Esta regla se exceptuaba el día domingo. Por último, sebuscó darles mayor libertad a los jóvenes a fin de que pasearan hastaanochecer y por ello la hora nocturna de estudio variaba de acuerdo conlas estaciones del año28.

Las horas pasan ¿lentas o veloces?

Las aulas del RSM dieron cabida a tres tipos de estudiantes, quienesse distinguían por el tiempo dedicado a los estudios en el interior de laescuela. Los alumnos de dotación, becarios, estaban bajo el régimen deinternado y pasaban largas temporadas bajo la vigilancia de las autori-dades del seminario. En segundo término estaban los “pensionistas”,quienes realizaban todas las actividades escolares al igual que los ante-riores, pero se diferenciaban porque sufragaban los gastos de sumanutención y dormían en sus casas. Por último, se encontraban los“externos”, los cuales mantenían una débil relación con la escuela, vivíanfuera del recinto y sólo asistían a las horas de clase29. De igual manera,

28. AHPM, M.L. 90 B, “Libro de oficios 1789-1800”, pp. 129-131.29. Ordenanzas de minería y colección de las leyes y ordenes que con fecha posterior

se han expedido sobre la materia, compilada por el licenciado José Olmedo yLama, México, Imprenta de Vicente G. Torres a cargo de Mariano García, 1873,pp. 41-43.

tiempo y sociedad 237

los profesores residían fuera de las instalaciones de la escuela y sólotenían la obligación de dictar su cátedra, pero algunos de ellos pasabanlargas horas con los estudiantes y aprovechaban la biblioteca, loslaboratorios y gabinetes para desarrollar sus temas de investigación30.

Por los testimonios sabemos que el tiempo era utilizado de una for-ma intensiva y las tareas de cada uno de los miembros de la instituciónestaba normada de manera exhaustiva. En otras palabras, la vida diariaestaba regida por un horario que marcaba en forma estricta las horas declase, estudio, ejercicios cristianos, distracciones, alimentación y aseopersonal. Esta división era un reflejo de la enseñanza integral que seimpartía; cada una de estas actividades nos remite a un tipo de educa-ción en distintas áreas, pero englobaba todos los aspectos indispensablesen la formación del nuevo sujeto ilustrado de finales del siglo XVIII.Pero al mismo tiempo no se diferenciaba de la distribución temporalaplicada en otras instituciones con mayor tradición.

Durante las dieciséis horas “hábiles” que tenía el día, se destinaba enforma prioritaria la impartición de clases y el estudio individual de losalumnos. Con esto se cumplía el principal objetivo, es decir la forma-ción de los jóvenes. En segundo lugar el tiempo se dedicaba a larecreación. Ésta se realizaba en distintas modalidades que incluían elejercicio físico, la sociabilidad, la aplicación del ingenio e intelecto o lasimple ociosidad; sobra decir que las autoridades procuraban manteneruna vigilancia sobre cada una de estas prácticas. En tercer lugar, la ali-mentación y el aseo de los educandos ocupaban otra parte importante desu tiempo, pero se aprovechaba para inculcar las reglas de urbanidad enla mesa y la higiene. En cuarto lugar, se cultivaba el espíritu de losjóvenes; a lo largo del día, en forma individual y colectiva, se llevaban acabo una serie de ritos religiosos. Por último, se destinaban al de descan-so nocturno, ocho horas, para un buen rendimiento físico e intelectual.

Para mostrar con mayor claridad la distribución del tiempo diario,según el primer reglamento, elaboramos el cuadro 1º.

30. AHPM, M. L. 89B, “Libro de oficios 1801-1808”.

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CUADRO 1º

DISTRIBUCIÓN DEL TIEMPO DIARIO

Distribución Horas Porcentaje

Clases 5 31%

Estudio 3.5 22%

Recreación 4.25 26.5%

Alimentación-Aseo 2 12.5%

Religión 1.25 8%

Total 16 100%

Durante todo el día, se intercalaban actividades de los tipos antesdescritos en una forma armónica; el descanso iba a continuación de unperiodo de actividad intensa; la recuperación del desgaste físico selograba con la ayuda de la alimentación. El estudio de la ciencia sealternaba con la doctrina cristiana. Y las necesidades fisiológicas, casitodas, se atendían a su debido tiempo.

Las actividades se regían por los instrumentos de medición deltiempo, tales como el reloj mecánico de la oficina del director, el relojde sol del patio y al alcance de todos y, sobre todo, el tañer de la campanade la escuela31. Ésta marcaba el horario puntualmente de cada una de lasactividades y establecía el ritmo cotidiano de todos los moradores delrecinto. Pero las campanas no sólo eran el instrumento que regía la vidadiaria de los estudiantes sino que tenían una función social de mayortrascendencia. Como ha escrito Anne Staples,

la iglesia ha reservado las campanas para el uso ritual, ligado a momentos

específicos de la vida litúrgica, pero tradicionalmente han servido también

31. En el Real Seminario de Nobles de Madrid, la campana se tocaba sólo cuatro vecesal día, para anunciar la primera clase de 7 ½ de la mañana, el inicio de las clases dehabilidades a las 9 ½ de la mañana, para rezar el Rosario de las 11 de la mañana ypara anunciar la clase de la tarde de 5 ½. Archivo Histórico de Madrid, SecciónUniversidades, Real Seminario de Nobles, legajo 689, expediente 3, “Actividadesde los alumnos”, 8 julio de 1792.

tiempo y sociedad 239

para marcar el horario de las actividades seculares. Inclusive, en vez de hablar

de cierta “hora”, se acostumbraba hablar de cierto toque, como “después de

ánimas”, reforzando así el aspecto ritual de la vida cotidiana. [En los colegios

y universidades] tenían varias campanas en el campanario, de modo que un

acontecimiento extraordinario podría provocar un tremendo coro de tañidos

vibrantes32.

Por lo que sabemos, las labores se iniciaban a las seis de la mañanacon una oración, seguida del aseo de cara y manos y el desayuno. Acontinuación, se dedicaba una hora al estudio individual y posterior-mente se asistía a misa33. Con el espíritu fortalecido, concurrirían a loscursos principales y después tenían un tiempo de recreación. Antes de lacomida, dedicaban una hora más al estudio individual para repasar laslecciones o preparar las disertaciones. Para reposar sus alimentos y hacerla digestión, contaban con un periodo de descanso, que podían aprovecharpara dormir la siesta. Antes de reiniciar las clases vespertinas, teníanotro momento de estudio individual y, después de dos horas, disfrutabande un lapso más de recreación, durante el cual recibían un estimulantechocolate. Esto les daba la energía necesaria para dedicar otra hora alestudio y culminar con alguna de las clases auxiliares antes de rezar elRosario. Finalmente se dirigían una vez más al refectorio para recibir lacena, y acabando con el examen de conciencia se acuestan los quequieren, y los que no, se quedan en tertulia o conversación con el rectory vice-rector hasta las diez, a cuya hora se recogen todos. El directorconsideraba que mandarlos a la cama sin que tuvieran sueño se prestabapara que tuvieran malas ideas y alguna alteración en la decencia y buenascostumbres34.

32. Anne Staples, “El abuso de las campanas en el siglo pasado” en Historia Mexica-na, octubre-diciembre de 1977, p. 178.

33. Al parecer este horario tuvo una vigencia muy larga. Sólo hemos encontrado unamodificación aplicada a partir de enero de 1819, cuando el director determinó queel día se iniciara a las 6:30h con el oficio de la misa.

34. AHPM, caja 52, doc. 1, “Instrucción sobre la constitución y estado actual del RealSeminario de Minería de México” (1791).

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Este horario era el que regulaba todos los días de la semana, pero nose aplicaba de manera uniforme debido a todos los imprevistos y cambiosen el plan de estudios; sin embargo se conservó su estructura general.En general, casi en todas las semanas existía un día destinado a lacelebración de una fiesta religiosa y, cuando no era el caso, las autorida-des del Colegio permitían a los escolares salir a pasear por la tarde delos jueves35.

El Día del Señor o la “dominica” (el domingo) eran días dedicadoscasi por entero a las actividades espirituales; las horas de estudio sesustituían por pláticas y sermones, ya fuera en la sede de la escuela o enlas iglesias vecinas. Asimismo, de manera colectiva tenían la obligaciónde frecuentar los autos sacramentales en los distintos templos de la ciudad.Después de cumplir con los rituales, podían utilizar sus horas libres enpaseos, visitar a sus amistades y parientes. En estas salidas, se lesproporcionaban dos reales con el fin de que pudieran comprar susgolosinas preferidas. Eso sí, tenían que regresar a las siete, para partici-par en la oración, estudiar por una hora más, prepararse para la cena,apagar las velas y dormir36.

El tiempo huye irreparable

En este trabajo he presentado de manera breve los elementos mássignificativos de las mediciones del tiempo del RSM en tres niveles. Enprimer lugar, el ciclo escolar, que daba lugar a la formación de distintasgeneraciones que se sucedían. Cada una de ellas tuvo sus diferenciasrespecto al tiempo que vivieron en la escuela. La primera generación

35. A grandes líneas, hemos encontrado que en muchas escuelas los jueves eran consi-derados como fiesta de guardar. Es posible que esta situación se deba a que en lareligión cristiana el jueves se instituyó el sacramento eucarístico, en la cena quetuvo Cristo con sus apóstoles para celebrar la Pascua.

36. A petición del director José Francisco Robles, en 1828 se presentó un informe en elque se critican las horas de estudio de los domingos; al parecer los estudiantes nolas cumplían. AHPM, caja 52, doc. 1, pp. 53-55, “Instrucción sobre la constitucióny estado actual del Real Seminario de Minería de México” (1791).

tiempo y sociedad 241

abrió el camino y fue la que se enfrentó a los problemas más serios entérminos de la organización académica, la distribución del tiempo e in-clusive la aceptación social. En segundo término, el estudio del tiemponos muestra hasta donde la doctrina cristiana formaba parte de la educa-ción de los jóvenes novohispanos; era una enseñanza ineludible quenormaba la educación moral y regulaba la conducta de los alumnos.Establecía los límites de lo permitido e inculcaba un sistema de valoresdonde reinaba el sometimiento y la disciplina. En tercer lugar, ladescripción minuciosa de las prácticas llevadas a cabo de manera coti-diana distingue la vigilancia estrecha que se tenía con cada uno de losactores involucrados en el proceso educativo. Como afirma MichelFoucault,

se trata de establecer las presencias y las ausencias, de saber dónde y cómo

encontrar a los individuos, instaurar las comunicaciones útiles, interrumpir

las que no lo son, poder en cada instante vigilar la conducta de cada cual,

apreciarla, sancionarla, medir las cualidades o los méritos [...] La disciplina

organiza un espacio analítico37.

Otro de los problemas planteados es la relación existente entre tiempoy conocimiento. Aquí las dificultades académicas son dejadas de lado ylo que prevalece son los intereses políticos. La urgencia de formar téc-nicos mineros con el fin de aprovechar al máximo los recursos mineralesy crear fuentes de riqueza era la misión a cumplir. En esta relación tiempo-conocimiento, se pone en juego el principio de la educación como palancadel progreso, esta idea tan difundida en nuestro país a lo largo del sigloXIX por los liberales. Sin embargo, se nota una contradicción entre eltiempo de la sociedad o más bien dicho la demanda social y la forma-ción y consolidación de las instituciones educativas, las cuales tuvieronun ritmo diferente que las mantuvo rezagadas y muy a largo plazo seconvirtieron en elementos de transformación social.

37. Michel Foucault, Vigilar y castigar: nacimiento de la prisión, México, SigloVeintiuno Editores, 1976, p. 147.

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El RSM era una institución letrada, impregnada de modernidad, quehabía abrevado de los principios ilustrados, pero fue incapaz de imponerun nuevo tiempo. En realidad, se plegó al ritmo de las institucioneseducativas que le precedieron. Siguió la tradición y contribuyó a que secontinuara con la mitificación de la cotidianidad. La representación deltiempo se expresó a través de símbolos y ceremonias ritualizadas.Escenarios donde se teatralizaban los debates intelectuales y los logrosobtenidos para demostrar públicamente la utilidad pero a la vez ensancharel abismo entre los letrados y los analfabetos por medio de las prácticasculturales. Según Roger Chartier, “la representación se transforma enmáquina de fabricar respeto y sumisión, en un instrumento que produceuna coacción interiorizada, necesaria allí donde falla el posible recursoa la fuerza bruta”38.

Finalmente, la planeación detallada de cada una de las actividades yla vigilancia estrecha en la distribución del tiempo en el proceso educa-tivo tenían como principal enemigo a la ociosidad. Era imprescindiblemantener a los educandos ocupados todo el tiempo con el fin de evitarfisuras que pudieran acarrear desvíos que dieran pauta al cultivo de lapereza. El ocio era considerado un veneno que podía convertirse en uncaldo de cultivo que generara prácticas delictivas, con lo cual echaríapor la borda toda la labor y principios de la educación. Por esta razón, setenía que vigilar el tiempo y castigar su desaprovechamiento.

38. Roger Chartier, El mundo como representación. Historia cultural: entre práctica yrepresentación, Barcelona, Gedisa Editorial, 1992, p. 59.

De jóvenes a estudiantes

La forja del tiempo y el orden escolares

Antonio Padilla Arroyo*

Una de las dimensiones culturales más significativas de las formas del tiempo social loconstituye el tiempo escolar, el cual se convierte en un instrumento primordial en los“procesos civilizatorios” en la medida en que regula las actividades que el niño y eljoven necesitan realizar en un espacio como la institución educativa. Esto implica laorganización de los hábitos del trabajo escolar mediante una disciplina que incorporaincentivos, estímulos, saberes, sentimientos, conductas, habilidades, valores e ideas,todo ello en un marco de regulaciones y controles específicos, cuyo objetivo es laconfiguración de una naturaleza humana.TIEMPO SOCIAL; TIEMPO ESCOLAR; CULTURA ESCOLAR.

One of the more significant cultural dimensions of the social time pertains to schooltime, which converts into a primordial instrument in the “process that civilize” and atthe same time it regulates the activities that the child and the young need to carrythrough in a space as the educative instruction. This implies that the organization habitsof the school work by means of one of the disciplines that incorporate incentives,stimulus, knowledge, feelings, behaviors, abilities, values and ideas , all that in landmarksof regulations and specific controls whose objective is the configuration of a humanbeing.SOCIAL TIME; SCHOOL TIME; SCHOOL CULTURE.

* Doctor en historia por El Colegio de México. Profesor investigador de la Universi-dad Autónoma del Estado de Morelos, México. Autor de libros y artículos de historiade la educación y de la cultura, así como del pensamiento social en los siglos XIXy XX.

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Tiempo social, tiempo escolar

En la actualidad, el tiempo social y las formas de medirlo, calcularlo,regularlo y fragmentarlo tienen relación directa con los procesoshabituales del ciclo escolar, esto es, con definiciones ocupacionales pre-cisas del tiempo y con una disciplina específica que se producen y seconcretan en la vida escolar. El tiempo social, sobre todo en las etapasde la vida de los individuos definidas y delimitadas como infancia,adolescencia y juventud, se impone como una estrategia necesaria parainculcar y regular las actividades que los actores están obligados adesplegar en espacios específicos, la escuela, y, en una duración deter-minada, el tiempo escolar. Esto significa estructurar los hábitos del trabajomediante una labor metódica que incluye la enseñanza y el aprendizajede normas, ideas, creencias, valores, incentivos, estímulos, saberes,sentimientos, conductas, actitudes y habilidades físicas y mentales, enpocas palabras, sujetarse a un proceso civilizatorio de amplia duracióncon ritmos fijados por la institución escolar, así como por sus actores,con regulaciones y controles específicos, cuyo objetivo primordial esinducir una naturaleza humana.

Dicho proceso se percibe, se experimenta, se vive y se representa,en un primer lapso, como experiencia e imposición externa, en aparienciaobjetiva, que pertenece al mundo físico, pero que en realidad es unaconstrucción y representación socio-cultural. En tanto figura objetiva,la escuela se concibe como una serie de dispositivos que inducen ciertotipo de acciones a partir de rutinas sensoriales, mientras que, considera-da como producto social, es, en realidad, un sistema organizado de talmodo que los individuos están impelidos a aprender comportamientos ya construir con base en sus experiencias modelos de conciencia yautocontrol (Whitrow, 1990, p. 237).

Este proceso conlleva la necesidad de establecer disciplinas y eta-pas en un espacio social, la institución educativa, que producen unaeconomía organizada y regulada para garantizar sus propósitos. El tiempoy la distribución escolar contienen dos símbolos con significados preci-sos: el reloj y la comprobación de los conocimientos obtenidos. De estemodo, una categoría fundamental del tiempo es la duración porque

de jóvenes a estudiantes 245

encierra las notaciones de proceso, ciclo, curso, periodo, sucesión,secuencia y graduación, en otras palabras, de principio y final que, a suvez, modulan y dotan de sentido no sólo las experiencias adquiridassino el mismo orden en que éstas habrán de adquirirse, así como loslímites que las acotan (Illescas Nájera, 1995, pp. 24-25).

De acuerdo con Norbert Elías, el reloj se convierte en el símbolomás importante porque cumple con la función de situar y orientar losintercambios entre los hombres y de estos con la naturaleza,transformándose en una herramienta mental y física para propiciar losprocesos sociales y naturales. Permite organizar y regular las actividadeshumanas. El tiempo social, su construcción cultural, adquiere entoncesun sentido preciso al facilitar que los individuos se ubiquen en el mun-do y organicen los modos de convivencia en etapas y periodos regula-dos para su existencia. Ejemplo de esto son el calendario, las fiestas,las celebraciones, los periodos vacacionales, los cursos, los exámenes,las etapas de escolarización de la infancia y la juventud (Elías, 1997,pp. 12-13).

Por lo tanto el proceso civilizatorio se fundamenta, entre otrasdimensiones, en la posibilidad de habilitar a los individuos para amol-darse a tiempos, ritmos y rutinas según quehaceres particulares y buscaimponer una autodisciplina en cada uno de los sujetos que los ponga enconformidad las relaciones entre individuo y sociedad. Esta prepara,según la tesis clásica de Emilio Durkheim, a aquellos para integrarlos auna red de determinaciones temporales, que configuran el tiempo so-cial, con el propósito de crear una personalidad que entraña una “finísimasensibilidad y disciplina del tiempo”. Esto significa, para retomar a Elías,un proceso continuo, constante, externo, que se desplaza de la organiza-ción social al individuo, hasta convertirse en hábito, costumbre y com-portamiento interno. Su manifestación más acabada es: “La transforma-ción de la coacción externa de la institución social del tiempo, en unapauta de coacción que abarca toda la existencia del individuo, es unejemplo gráfico de la manera en que un proceso civilizatorio contribuyea modelar una actitud social que forma parte integrante de la estructurade la personalidad del individuo”. Así, es posible estructurar y organizar

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una segunda naturaleza como un destino que todos los hombres debenasumir (Elías, 1997, p. 20).

Con base en estas consideraciones y en algunas tesis sugerentes deE.P. Thompson, quien explora la naturaleza y el significado del tiempoindustrial, puede comprenderse la labor primordial de la institución edu-cativa, esto es, modificar el sentido de los tiempos, individuales ocolectivos, para hacerlos converger precisamente en el tiempo escolar,lo que explicaría su eficacia y permanencia como una dimensión funda-mental de las sociedades modernas. La escuela ha jugado un papel cen-tral en la disolución de los tiempos individuales, si bien en un haz deaproximación y coexistencia, en medio de tensiones y conflictos productode las trayectorias personales y sociales con el fin de tejer un tiempoescolar homogéneo y sistemático puesto a disposición de la institucióny compartido por los individuos congregados y recluidos en ese espaciode intercambios y vivencias, discursos y representaciones comunes, peroque tienen lecturas y significaciones múltiples como consecuencia delos orígenes sociales, culturales, geográficos de los actores educativos,lo cual no contradice la intención de formar entre ellos una identidadcolectiva con normas y estilos de vida por medio del trabajo y del tiempoescolares (Thompson, 1984, pp. 241-242; Viñao Frago, 1998, pp. 5-6).

El tiempo escolar es el eje en torno al cual se origina y se organiza elespacio, lugar y territorio que ocupan los actores, donde, a su vez, seproducen y reproduce la cultura escolar, es decir, las normas y las prác-ticas que inducen percepciones, ideas y actos por medio de la apropia-ción, la enseñanza y el aprendizaje, cuya condición es la disposición yla sucesión temporal de los saberes y de las maneras a inspirar. Desdeluego, la escuela ha demostrado su capacidad a lo largo de su constitu-ción para alterar las diversas nociones del tiempo y de espacios y, porañadidura, hacer posible el aprendizaje de nuevos tiempos y de espacios,así como de sus usos. Por eso, la distribución y el arreglo del tiempoescolar son fundamentales, aunque no sólo por ello.

Al convertirse en la institución portadora y transmisora de saberes yconocimientos seleccionados, está forzada a incluir disciplinas especí-ficas en su currículum, en sus planes de estudio, para mantener el pres-

de jóvenes a estudiantes 247

tigio y la legitimidad social y cultural, así como a diversificar los nive-les educativos y, al mismo tiempo, expandir su influencia para incorpo-rar y reclutar un mayor número de poblaciones para su escolarización,al mismo tiempo, que selecciona y excluye a individuos y grupos socialesparticulares por medio de instrumentos con supuestas cualidades objeti-vas e imparciales, como el examen. Todo esto explica la complejidaddel tiempo y la necesidad de reorganizarlo para posibilitar el orden y elfuncionamiento de la vida escolar, circunstancia que se devela en laimposición de una idea del tiempo mismo, esto es, la graduación yprogresión que se justifica en el dominio de la razón y de la perfecciónhumana.

Entonces la escuela expresa una relación entre la medición, la distri-bución del tiempo y los usos diferenciados de los espacios escolares,tanto físicos como simbólicos, en los cuales se ejecutan con regularidady en etapas bien delimitadas. Por ejemplo, el tiempo de aprender, recitary leer, ya sea en voz baja o en voz alta, el catecismo religioso o el polí-tico que se enseña y se aprende en la institución educativa que serátransformado en el tiempo social de la recitación de la lectura o de laoración cívica en el espacio público del que participa. De este modo, lalectura ajusta los tiempos individuales a las necesidades y convencionesdel tiempo escolar, lo que implica adecuarse a los actividades que sonprescritas no sólo a los alumnos sino a los maestros, es decir, se imponecomo una exigencia ineludible del tiempo regulado. Esto supone que eltiempo escolar se ordene a otros tiempos, y la más clara expresión deque esto ocurre es la doble posición que tiene la institución escolar, estoes, espacio público y espacio privado.

Ahora bien, esto no significa que el tiempo escolar se contraponepermanente y para siempre al tiempo social sino que en la medida enque se reconoce su importancia social y cultural se incorpora a éste ensu condición específica. Así, una vez admitida y lograda su singularidad,tanto en el tiempo como en el espacio sociales, se utiliza como un meca-nismo fundamental para transmitir una concepción del mundo y las prác-ticas sociales que involucran con el fin de hacer posible la reproduccióndel tiempo social en su conjunto.

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¿Qué existe detrás del papel que desempeña la escuela y su tiempoespecífico? ¿Qué más allá de la distribución del tiempo y de las rutinasescolares en relación con la sociedad? Las respuestas no son fáciles nisimples, si bien pueden sugerirse y ellas se orientan hacia los intentosde garantizar un orden, tanto empírico como simbólico, que posibilite laformación de un individuo apto para sujetarse a normas y estilos devida, de tiempos y espacios que inicialmente se perciben como exter-nos, aunque estas finalidades no están exentas de resistencias oapropiaciones sociales diferenciadas según los grupos sociales, lasedades, los géneros, los grupos étnicos, los sectores urbanos o rurales.Así, en esta dialéctica de la construcción del orden y de tiempo, lainstitución educativa, en particular la educación dirigida a los infantes ya los jóvenes, pretende lo que Foucault define como la fijación de losórdenes empíricos con los que logren orientarse, convivir y dentro delos que se reconocen con espacios, saberes y hábitos determinados segúnsu condición biológica, social y cultural. Así, la institución educativadispone y distribuye aprendizajes y códigos fundamentales de una cul-tura, de un lenguaje, así como esquemas perceptivos, jerarquías, técni-cas, prácticas y valores para que sean los individuos los que “ordenen”y ensamblen sus tiempos y sus rutinas.

El tiempo escolar resume la dinámica en que opera un conjunto demecanismos que refuerzan el orden, la disciplina y el tiempo social. Eléxito o el fracaso de los dispositivos, entre los cuales destacan los mo-dos en que se acondiciona el trabajo escolar, la segmentación y la frag-mentación de los espacios, las reglas, los rituales, en suma, la organiza-ción de la vida escolar, radica en la asimilación del orden, en general, ydel orden escolar, en particular, de los alumnos y de las alumnas, de lashabilidades y destrezas que ejerciten para reconocer y hacer explícitoun cierto orden, así como para representarlo y practicarlo sin impugnarlo.De acuerdo con Foucault, este “orden es, a la vez, lo que se da en lascosas como su ley interior, la red secreta según la cual se miran en ciertaforma una y otras, y lo que no existe a no ser a través de la reja de unamirada, de una atención, de un lenguaje; y sólo en las casillas blancas deeste tablero se manifiesta en profundidad como ya estando ahí, esperan-do en silencio el momento de ser enunciado” (Foucault, 1996, p. 5).

de jóvenes a estudiantes 249

Jóvenes y estudiantes

En gran medida, la historia de los sistemas educativos modernos esla historia de las tensiones entre el tiempo escolar y el tiempo social,entre la búsqueda de un espacio particular para la escuela como instituciónsocial frente a otras instituciones como la familia, las corporaciones, laiglesia, el Estado, las cuales se confrontan, polemizan y acoplan en unlargo proceso de conflictos y tensiones en la construcción de un campode fuerzas, tal y como lo es la educación formal e informal de la infanciay la juventud. Al parecer, esta circunstancia se revela con mayor claridaden la institución escolar primaria, donde el control del procesocivilizatorio del infante se pone en juego, por lo que ahí se presentan lasmás enérgicas negociaciones, resistencias y apropiaciones. Esta situaciónse presenta a la luz de la lógica en la que se sobreponen tiempos y for-mas que le impide a la institución educativa lograr, por un periodoconsiderable, el control de sus procesos y dispositivos internos.

La enseñanza y el aprendizaje del manejo del tiempo están íntima-mente vinculados con la construcción de las edades sociales, en especialde la infancia y la juventud. Las representaciones y las prácticas de lasedades se hunde en una raíz social y ontológica que se expresa en lajustificación y legitimidad de la vigilancia y la supervisión de los tiemposy los ritmos para disciplinarlas a lo largo de un etapa ordenada, metódica,la cual se deposita en la institución escolar, asumiendo que ese proceso esuna de sus funciones esenciales. Por eso en la medida en que la escuelalogra consolidarse y expandirse se estructura como una red completa ycompleja que se traduce en una organización del tiempo y de las rutinasimperceptibles, a la que deben habituarse todos los actores que participanen la institución. La eficacia de la distribución del tiempo escolar y de losespacios que involucra queda de manifiesto cuando cada uno de los indi-viduos están en condiciones de demostrar por si mismos que han asimiladodicha red mediante el ejercicio y el cabal cumplimiento de las tareas en-comendadas en los lapsos estipulados (Elías, 1997, pp. 20-21).

Si bien durante la infancia se refuerzan los primeros procesos deenseñanza y aprendizaje de los tiempos y las rutinas que le servirán paraorientarse en la vida pública y privada, la juventud no deja de ser una fase

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decisiva para fortalecer unos y otras. Esta etapa se ha asociado y se asociaa las instituciones de educación secundaria, en especial a los estudiosprofesionales y superiores. La “invención” o el “descubrimiento” de laadolescencia es un proceso que puede ubicarse entre los siglos XVII yXIX, el cual tuvo estrecha conexión con la fundación de institucionesescolares que extendieron los procesos de escolarización para un sectorreducido de la población. Sin embargo, uno de los mayores problemashistoriográficos es delimitar las edades, y aunque las fronteras biológicasy sociales son casi imperceptibles, puede situarse entre el rango de edadde los doce o catorce años hasta los 21 o 22 años, cuando ingresaban yconcluían sus estudios superiores y profesionales, lo que se les confería lacondición de jóvenes y estudiantes (Ariès, 1998, p. 191 y ss).

El tiempo de la juventud es, en gran medida, el tiempo para reclutar,formar y preparar a las elites culturales, de dotarlas de una identidad yde un sentido de comunidad. Así, la ampliación de la escolaridad está enrelación directa con la ocupación de los jóvenes en una etapa que seconsidera crítica. Conviene, por lo tanto, examinar las representacionesen torno a su naturaleza, así como en la función tanto social como personalque les atribuyen en su carácter de jóvenes y su papel de estudiantes.

Para ello se ha tomado, a manera de ejemplo y con todas laslimitaciones que esta elección supone, un discurso pronunciado por uncatedrático de uno de los establecimientos de educación secundaria enMéxico del siglo XIX y de la primera mitad del siglo XX, el InstitutoCientífico y Literario del Estado de México, el cual fue fundado en 1828.Tal alocución se pronunció a propósito de la apertura de los cursos esco-lares en el año de 1918, año que se singularizó por un conjunto de refor-mas que pretendían dotar de una nueva racionalidad al sistema educati-vo en el Estado de México, entre las cuales destacaban el objetivo deuniformar todo el aparato administrativo y articular todos los niveleseducativos mediante la creación de un órgano centralizado denominadoConsejo General Universitario con la publicación de una nueva LeyGeneral de Educación1.

1. Periódico oficial del Gobierno del Estado de México, Toluca de Lerdo, 17 y 27 deabril; 1 y 4 de mayo de 1918.

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La inauguración de los cursos era uno de los momentos más simbó-licos dentro de los rituales escolares a tal grado que lograba congregar alas más altas autoridades políticas y educativas, encabezadas por elgobernador del Estado, así como a representantes de distintos grupossociales, desde comerciantes, empresarios, obreros, gremios, hastaintelectuales y vecinos en general. En esa ocasión, uno de los profesoresde mayor trayectoria académica y profesional del Instituto, de acuerdocon los criterios que regían el nombramiento de la persona a quien tocabael honor de pronunciar el discurso correspondiente, presentó una seriede reflexiones y de imágenes acerca de la juventud, de su papel en lasociedad, de sus responsabilidades, así como de la labor que el plantelescolar tenía como formadora de ésta. Inició su disertación explicandola importancia que tenía el acto que los reunía, el principio de los cursosque representaba un suceso trascendental de “vuestra vida de estudian-tes”, es decir, esbozó una idea tanto del tiempo individual como deltiempo escolar de cada uno de ellos, lo que significaba “un nuevo triun-fo en vuestras lides escolares”. Enseguida refirió algunos de los atribu-tos que poseía la juventud: entusiasmo, fe, ilusiones y esperanzas.

A estas se agregaban, en su posición de estudiantes, el “amor por elestudio”, la voluntad inflexible, la perseverancia de sus convicciones yla claridad de su misión. Por su parte, la institución educativa contraía,en reciprocidad con estas cualidades, la obligación de garantizarles elconocimiento de las ciencias y la seguridad en el progreso, “la marcharectilínea que desde el nacer se trazara y en la que guían sus pasos”, esdecir, dos cualidades de la concepción general del tiempo: graduaciónde los conocimientos y el progreso personal y social2.

Del mismo modo, según sugiere Ariès, se develan una imagen y unamedida precisa del tiempo escolar, el curso como unidad esencial quecaracteriza la situación del joven como una etapa de la adquisición desaberes, de duración y de edad, esto es, el comienzo y el final de unciclo. Sí al principio del curso se ofrecen “las sabias enseñanzas de los

2. Archivo Histórico de la Universidad Autónoma del Estado de México (En adelanteAHUAEM), caja 167, exp. 6315, Toluca, 1º de febrero de 1918.

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doctos varones”, es decir, de los profesores y catedráticos quienes hanhecho de la enseñanza y de la difusión de la ciencia su sacerdocio, altérmino se cosechan los adelantos de la ciencia porque esta era laencarnación del orden mental, del amor y del progreso. También seesperaba que su espíritu se fortaleciera porque, en su condición de jóve-nes y estudiantes, buscaban impacientemente el mejoramiento social yel ascenso rápido “hasta la cumbre” para conquistar sus ideales (Ariès,1998, pp. 239-240).

Desde luego, la tarea del instituto era educar el espíritu juvenil y nosólo instruirlo, forjar generaciones e individuos “fuertes por su energía,grandes por su moralidad, respetables por su saber” con el objetivo deperfeccionar sus cualidades morales, intelectuales y sociales, hasta don-de fuera posible, porque el ser humano “nunca lo obtiene”. Más aún, unde sus grandes cometidos era moldear al joven en una etapa transitoria ydecisiva para que estuviera en aptitud de enfrentar su condición futurade adulto y desempeñarse con éxito en funciones de catedrático opublicista, en las tareas que demandaban los puestos públicos, en losdesafíos profesionales, en el campo o en la industria, esto es, en sucondición de miembros de las elites culturales. Esta fragorosa obracorrespondía fundamentalmente al maestro, quien era responsable demodelar y pulir los espíritus juveniles, “infiltrar ideas de orden, progresoy amor”, los cuales a su vez tenían el compromiso de cumplir con susfamilias y la nación”, al “orientar sus energías en el sentido del estudio”.Por último, en alusión a las reformas académicas y administrativasintroducidas en el sistema educativo, recordaba que tanto a los profesorescomo a los estudiantes les concernía comenzar una “nueva era en lahistoria de la instrucción”, la cual consistía en fundar el sistemauniversitario contribuyendo con ello a acrecentar las condiciones de la“clase estudiantil”3.

En suma, esas representaciones reforzaban la concepción de la ju-ventud como fase transitoria de la vida de los individuos que se situabaentre la infancia y la adultez, al mismo tiempo que la asociaban a su

3. Ariès, 1998, pp. 2-3.

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estado de estudiantes, cuya principal responsabilidad era formarse yeducarse para en el futuro ingresar al mundo de los adultos yprofesionistas. Asimismo, ejemplos de estas representaciones puedenleerse en una de las múltiples solicitudes enviadas a las autoridades edu-cativas del estado, así como a las autoridades del mismo Instituto paraque les fueran concedidas becas de gracia para realizar estudiospreparatorios y profesionales. Uno de los peticionarios, Tomás Tapia,expuso su interés por continuar sus estudios preparatorios una vez quehabía concluido su instrucción primaria superior obligatoria. Los argu-mentos que esgrimió para apoyar su solicitud fueron, primero, queestimaba insuficiente su instrucción primaria, porque la que habíaalcanzado no era “bastante para un joven como yo”, y, segundo, porqueaspiraba a “ser mañana útil a la sociedad y a mis padres”. En unaproyección del tiempo, con un claro juicio de su posición transitoria yen vías de convertirse en adulto, futuro próximo, requería de mayoreducación. Consciente de las responsabilidades que entrañaba su de-manda, se comprometía a “ser aplicado” y a “manejarse con la honradezque hasta hoy he observado”. Pasado, presente y futuro reunidos en unsolo instante, lo que evidenciaba la capacidad de la organización deltiempo escolar para inculcar las representaciones y los modos deasimilación para medir el tiempo universal.

En términos similares pero en su carácter de padre de familia, elprofesor Gregorio Becerril se dirigió al gobernador del Estado, FernandoGonzález, para solicitarle le fuera concedida una beca de gracia a suhijo. En este caso lo que llama la atención son las expresiones casiidénticas para caracterizar la condición de su primogénito como joven yestudiante, además de presentar alegatos acerca de los méritosacadémicos a lo largo de sus estudios primarios y secundarios. Porejemplo, consideraba que era “un deber de padre” garantizar que suvástago culminara la educación secundaria porque había demostradoaplicación, lo que se demostraba con los premios y distinciones acadé-micas que le habían conferido desde su ingreso al Instituto Literario.También, para el profesor Becerril, el desempeño escolar de su hijo, porsi hubiera dudas, era una prueba de las “muy buenas disposiciones para

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el estudio y el aprovechamiento”, lo cual justificaba a plenitud su petición,así como una respuesta favorable, lo que sería un acto de justicia4.

El último ejemplo corresponde a la demanda del joven Alberto M.Hernández, quien tan pronto concluyó sus estudios primarios superio-res, decidió solicitar su ingreso al Instituto, así como una beca de gracia.Hernández se encargó de redactar y presentar la petición ante el gobiernoestatal, en la que destacó su enorme disposición e interés por el conoci-miento y aseguró que durante sus estudios había procurado “no solamentecumplir como dominar los programas que la ley asigna”, sino atraer laconsideración de sus maestros y superiores. Más aún, estaba seguro dehaber descubierto “una verdadera vocación para cursar una carreraprofesional, lo que fácilmente podía comprobarse por la conducta quehabía mantenido, así como por su aplicación, cualidades que mantendríaen caso de otorgársele la beca, comprometiéndose a corresponder a “tanseñalado favor”5.

Rutinas y distribución del tiempo escolar

La institución educativa prescribe con minuciosidad cada una de lasactividades que deben realizarse en un tiempo determinado, esto es, entiempos medidos y segmentados que constituyen el tiempo escolar. Estosucede en el momento en que ésta alcanza cierto nivel de autonomía conrespecto al tiempo social “externo”. El detalle con que se elaboran loscalendarios escolares, los programas de estudio, los horarios, lasactividades cotidianas y los espacios en que se efectúan y desarrollanunos y otras son ejemplos más que evidentes de la necesidad y la impor-

4. Archivo Histórico del Estado de México, Fondo Educación, Sección Educación,Serie Secundaria y Profesional (en adelante AHEM, FE, SP), vol. 19, “Altas dealumnos de gracia y de distrito. Ciudadano Gobernador del Estado, GeneralFernando González, (de) Tomás Tapia, Villa Guerrero, Diciembre 15 de 1906”;“Ciudadano Gobernador del Estado de México. El que suscribe (Gregorio Becerril),Ixtlahuaca, 7 de mayo de 1907”.

5. Idem, ibidem, “Al Sr. Secretario General de Gobierno, (de) Alberto M. Hernández,Toluca, Calimaya de Díaz y González, 17 de diciembre de 1907”.

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tancia que tiene para la institución escolar de normar y regular el procesoeducativo. Al menos de esta manera puede comprenderse e interpretarseel diseño de los horarios en las instituciones educativas superiores.

Una muestra de ello es el “Cuadro de distribución del tiempo y deltrabajo en la Escuela Normal para Profesores”, anexa al Instituto Cien-tífico y Literario, de 1906, donde se especificaban los horarios y lasrutinas que debían cumplir cada uno de los estudiantes que habían ele-gido esta carrera. En él se estipulaban los tiempos dedicados a cadamateria de acuerdo con el año que estaban inscritos, las materias quedebían tomar según el tipo de escuelas que habrían de atender, escuelasrurales o escuelas urbanas y escuelas superiores, y los días de la semanaen los que se les impartirían6.

Un primer elemento que resalta es el tiempo que duraban los estu-dios según el tipo de escuela. Así, para aquellos que se dedicarían a la ins-trucción primaria en escuelas rurales, el plan de estudios se reducía ados años, en tanto que para los de escuelas urbanas tres años y los deescuelas superiores cinco años. Esta distribución estaba en función deque las autoridades estatales consideraban que en las primeras no eranecesario enseñar materias que no tenían mayor utilidad y provechopara los alumnos, mientras que en los otros dos tipos de escuelas, loca-lizadas en zonas de mayor actividad económica y social, era precisoresponder a las exigencias que demandaban una vida más activa y mo-derna7.

Con base en ello se establecía el plan de estudios y los horarios. Losalumnos concurrían a la escuela de lunes a sábado en un horario de 8 dela mañana a 5:30h de la tarde, con un intervalo de dos horas para sus

6. AHEM, FE, SP, vol. 15, “Cuadro de distribución del tiempo y del trabajo en laEscuela Normal para Profesores, año escolar 1906”.

7. “Estableciendo en la capital del Estado una escuela Normal para Profesores. El C.Lic. José Zubieta, Gobernador Constitucional del Estado Libre y Soberano de Mé-xico, á todos sus habitantes, sabed..., Toluca, 10 de abril de 1882”, en Colección deDecretos expedios por el Octavo Congreso Constitucional y por el Ejecutivo delEstado Libre y Soberano de México, en el periodo corrido del 2 de marzo de 1881al 2 de marzo de 1883, tomo IX, 1883, Toluca (México), Imprenta del InstitutoLiterario y de Pedro Martínez, pp. 89-92.

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alimentos. La distribución del tiempo se establecía de la siguiente manera:en el primer año y para todo tipo de estudiantes y escuelas, de las 8 a las9h se impartía la materia de matemáticas de lunes a viernes de manerainvariable; de 9 a 9:30h se abría un intervalo para la actividad denomi-nada estudio también en los tres planes y para todos los años; de 9:30 a10:30h daba inicio el segundo curso que de manera alternada eracaligrafía e idioma nacional, es decir, un día una y al día siguiente laotra, en el primer año, lo cual era una manifestación de la importanciaque se le otorgaba a ambas materias dentro del plan de estudios.Concluido este lapso, se daba un intervalo de 30 minutos, lo cual seconvertía en una regla, es decir, al finalizar cada curso se dejaba unespacio de 30 minutos dedicado al estudio en todos los años y los planesde estudio.

De esta manera, de 11 a 12h se impartía el curso fundamental depedagogía, tanto para las escuelas rurales como para las urbanas. Fina-lizada la sesión, se dejaba un espacio de dos horas para ingerir los ali-mentos y tras haber cumplido con este tiempo, se abrían de nueva cuentalas actividades académicas con los trabajos de estudio el cual seprolongaba durante una hora; de 3 a 4h de la tarde, se impartía en elprimer año y para las escuelas rurales la materia de geografía los díaslunes y miércoles, mientras que los martes y jueves se disponía para elcurso de solfeo y coros escolares, en tato que los viernes y los sábadosse destinaban a la enseñanza de los trabajos manuales. De 4 a 4:30h sehacía un paréntesis para estudio y de las 4:30 a 5:30h se impartían loscursos de ejercicios físicos, lunes, miércoles y viernes, metodologíaaplicada, martes y jueves, y finalmente, los sábados esta última hora sededicaba al estudio.

En el segundo año, para las escuelas rurales, se incluían las materiasde geografía, ciencias físico químicas y naturales, metodología aplicada,dibujo, ejercicios físicos, pedagogía e idioma nacional, historia patria,trabajos manuales y moral e instrucción cívica, perfeccionamiento desolfeo y coros. En este año, la materia de mayor importancia era la deciencias físicas y químicas, pues se impartía todos los días, con horariode 8 a 9h de la mañana, exceptuando martes y jueves que se dictaba de4:30 a 5:30h de la tarde. Geografía se dictaba dos días consecutivamen-

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te, otros dos se dedicaban a la historia patria y los restantes a moral einstrucción cívica, en el mismo horario, de 9:30 a 10:30h. En igual ordende importancia, al menos en cuanto hace al tiempo dedicado y la formade distribución de los horarios, se encontraban pedagogía e idioma na-cional, pues se alternaban los días: la primera se impartía los lunes,miércoles y viernes de 11 a 12h y la segunda los martes, jueves y sábadosa la misma hora. Dibujo y trabajos manuales y solfeo y coros compartíanhorarios e intercalaban días: el primero se enseñaba los días lunes,miércoles y viernes de 3 a 4h y trabajos manuales martes y jueves, mientrasque solfeo y coros los sábados en este mismo horario. Por último, de4:30 a 5:30h, se daba un respiro y un espacio al relajamiento de los estu-diantes en tanto que tocaba su turno a ejercicios físicos; éste curso sedaba los lunes, miércoles y viernes y el sábado se ocupaba para las clasesde solfeo y coros. La lógica de la distribución del tiempo de trabajo esco-lar era el eje sobre el cual se construía la representación de las tareas y lasrutinas que debían cumplirse, pero no se agotaba en esta distribución8.

Orden y disciplina

Había espacios de convivencia cotidiana que formaban parte funda-mental de la institución educativa sobre los que también era necesarioejercitar un control y un orden que moldearan las conductas de losalumnos. Fuera de los salones de clase, de las rutinas que marcaba elcalendario de los programas de las materias, de la graduación de losconocimientos, se estructuraban espacios sociales y simbólicos que losestudiantes debían aprender, respetar y reproducir. En este sentido, sevolvían aún más importantes que los tiempos formales dedicados a latransmisión de los conocimientos. Las normas que regulaban laconvivencia social de los diferentes actores involucrados en la institucióneducativa buscaban garantizar la plena y completa instauración de lavida social interna.

8. AHEM, FE, SP, vol. 15, “Cuadro de…”

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Un ejemplo de esta pretensión lo constituyen sin duda los diversosreglamentos internos que rigen las instituciones educativas. En el casodel Instituto Científico y Literario tenemos los reglamentos del interna-do de la Escuela Normal para Profesores de Instrucción Primaria vigen-te en 1905. Dicho reglamento se componía de 30 artículos y fijaba cadauna de las atribuciones y obligaciones de los actores: dirección, pre-fectura, administrador, médico, jefes de los alumnos y los alumnos. Laorganización del internado mantenía una fuerte estructura jerárquica ydependiente en relación vertical con cada uno de los actores. Natural-mente a la cabeza de este orden se encontraba el director de la institución,quien ejercía control y vigilancia del establecimiento educativo. Porprincipio, tenía a su cargo la admisión de los alumnos en sus diversasmodalidades, esto es, de gracia, de dotación municipal y pensionistas.Asimismo, tenía la facultad de conceder las licencias para que éstospudieran abandonar el local, aunque se le recomendaba no autorizarlascuando la petición fuera para salir después de la seis de la tarde o sehiciera con el propósito de no pernoctar dentro del plantel, salvo cuandose tratara de casos plenamente justificados y, de preferencia, se hiciera asolicitud de los padres o los encargados de los alumnos. De igual manera,tenía bajo su supervisión la higiene privada de los alumnos, así comovelar “empeñosamente por la moralidad y la buena disciplina de losalumnos internos”, lo cual le permitía imponer las medidas correctivasque considerara necesarias, si bien en este caso tenía la obligación deponerlas a consideración del gobierno estatal.

Inmediatamente después del director le seguían, en el ordenjerárquico, los prefectos, piezas centrales en la implantación de la vidaescolar. Éstos ejercían un control constante y una supervisión estrechasobre los estudiantes internos. A su cargo estaba garantizar el estrictocumplimiento de la ejecución de la distribución del tiempo y las rutinasescolares, desde la primera hasta la última actividad del día. Así, dentrode sus atribuciones destacaba vigilar que los alumnos hubieran aseadosus camas, antes de salir de sus dormitorios, y posteriormente practicaranel aseo de sus personas, advirtiendo que no podía permitirse que seinfringiera esta disposición. También tenía como encomienda cuidar “conempeño” que durante los tiempos y los espacios en que no estuvieran

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dedicados a las labores escolares, “fuera de las horas de sus distribucionesescolares”, es decir, en los descansos y los recreos, los alumnos mantu-vieran “una conducta moral y decorosa”, los cuales eran atributos de los“jóvenes decentes”. Esta medida se completaba con la obligación delprefecto hacer que los alumnos asistieran con puntualidad a las clases uocupaciones que les señalaba “el cuadro de distribución del tiempo”.

Más aún, estipulaba que en el tiempo destinado a los alimentos, losprefectos se colocarían en una posición “conveniente” para inspeccionarque se presentaran aseados, reiterando la prescripción de conducirsecon “buenos modales” y sobre todo conservar el “orden debido”. Nomenos importante era la atribución de vigilar que los alumnos no leyerano guardaran libros o impresos que se opusieran “a la moral y las buenascostumbres”, así como impedir “por todos los medios posibles” quetuvieran en sus manos armas o instrumentos que les pudieran causardaño. En igual sentido, los preceptos tenían la obligación de permane-cer día y noche en el establecimiento y llegado el caso, de dormir dentrode los dormitorios de los alumnos “a fin de hacer mas eficaz la vigilancia”.En resumen, el dispositivo de vigilancia sobre los alumnos internos teníaen el prefecto a su más eficaz medio. El artículo 4 no dejaba dudas alrespecto: “Siendo el internado una institución en la que los alumnosquedan enteramente confiados á la vigilancia de los superiores del plantel,la Prefectura tiene la estricta obligación de ejercer esta vigilancia de lamanera más activa y celosa en lo que se refiere á la aplicación, al estudioy buena conducta de dichos alumnos; por lo que en ningún caso omitiráncorregir las faltas que notaren, valiéndose de medios prudentes y segúnlas prescripciones reglamentarias, sin perjuicio de dar conocimiento dedichas faltas á la Dirección”9.

Bajo la lógica de este ordenamiento jerárquico, el papel estratégicode los jefes de los alumnos porque encadenaban y cohesionaban el dis-positivo que se ponía tanto al servicio del director como del prefecto en

9. AHEM, FE, SP, vol. 11, “Proyecto de Reglamento del Plantel. Internado. Reglamentodel internado en la Escuela Normal para Profesores de Instrucción Primaria”, p. 4,artículo 1º, fracciones I-VIII”. También artículos 2º a 4º. Estas disposiciones tam-bién regían en el internado del Instituto Científico y Literario ese mismo año.

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el orden interior. Quienes ocupaban este puesto eran alumnos que “porsu conducta” se consideraban “dignos de esta distinción”, a propuestadel prefecto y nombrados por el director. Dicho cargo era honorífico yde confianza, convirtiéndose en auxiliares del primero. Estos jefessustituían a los prefectos en sus faltas accidentales y sus funciones lasfijaban éstos de acuerdo con el departamento que tuvieran a su cargo. Entotal había siete jefes: de refectorio, de enfermería y botiquín, de ropería,de la sala de aseo y los baños, uno por cada dormitorio y uno más para lavigilancia del estudio. Sin embargo, el director podía nombrar a “cuantoscrea necesarios para la conservación del órden y observancia de lasdistribuciones reglamentarias”. Éstos garantizaban una mediación entrelas autoridades superiores y los alumnos, gozando de algunos privilegiosconferidos por el director del plantel, entre ellos salir a la calle sin permisoespecial a cualquier hora del día aunque con la obligación de cumplircon las distribuciones del tiempo escolar. En realidad, éstos representabanel modelo de alumno que se pretendía forjar, estipulando las normas deconducta que debía observar, es decir, desempeñar a cabalidad susobligaciones y deberes escolares. Por eso, debían ser “modelos de buenaconducta y exactitud en el cumplimiento de sus obligaciones”, lograr elrespeto, conducirse con benevolencia y aconsejar al resto, valiéndose dela persuasión y evitando imponerles castigos o correctivos pues esto haríaperder la confianza y la obediencia entre sus compañeros. Más aún,pondría en riesgo la atribución que era exclusiva de sus superiores. Deesta manera, se diseñaba y se ponía en práctica el dispositivo paragarantizar la disciplina escolar en el internado.

Por lo que respecta al actor sobre el que recaía la estructura real ysimbólica de los tiempos y las rutinas escolares, el reglamento dejabaver la intención primordial de formación que se deseaba. De este modo,los alumnos estaban obligados a asistir a la inauguración del ciclo esco-lar, disposición que sólo en apariencia parecía obvia, pero que elreglamento se encargaba de puntualizar. Asimismo, la observaciónpuntual de la distribución del tiempo era una obligación junto con elacatamiento “sin observaciones” de los mandatos u órdenes de sus su-periores, que si bien podían ser impugnadas no podían sino hacerlo ante“el inmediato superior gerárguico (sic)”. La obediencia a la jerarquía

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entonces se convertía en un elemento central de la imposición del tiempoy del orden. Negarse a admitirla era poner en juego el equilibrio de lavida social de la institución educativa.

Esta regulación de la vida social explica porque era indispensablesubrayar el comportamiento que tenían que seguir en relación con losotros actores y los espacios propios de su condición de alumnos y, sobretodo, de su futura actuación: portarse dentro como fuera del plantel “conla moralidad, buena educación, corrección en el lenguaje y modalespropios de jóvenes decentes” aseguraba la responsabilidad de éstos antela sociedad, honrando “á sus familias y al plantel en que se educan”. Deahí la prohibición de entablar relaciones de “familiaridad con lossirvientes” y el compromiso de emplear “las horas de asueto enrecreaciones lícitas”, así como abstenerse de emitir silbidos y gritos “es-candalosos”. Estas disposiciones se completaban con las relativas adenegar absolutamente la venta de cualquier objeto o realizar contratosque pudieran establecer los alumnos de su ropa, libros, útiles deenseñanza o aseo10.

Un aspecto que resultaba crucial en este orden escolar, como ya seha hecho notar sobre todo tratándose de la institución del internado, erael control de las salidas y entradas de los alumnos. De este modo, antesde salir los domingos y días festivos “a la calle”, es decir, al mundoexterior que representaba lo desconocido, lo incontrolable y, porañadidura, lo peligroso, los alumnos estaban obligados a presentarseante la prefectura para recoger una boleta que era expedida por el personalcorrespondiente y que tenía que ser devuelta a su regreso, medida quese completaba con la prohibición de no pasar la noche fuera del plantelescolar con excepción de la autorización de la autoridad superior y apetición de los padres o encargados del estudiante.

Por último, este orden fuertemente jerárquico no podía estar com-pletamente articulado sino mediante la imposición expresa de éste ordeny del reconocimiento del mismo por los actores, haciendo poco menosque imposible cualquier posibilidad de solidaridad horizontal, esto es,

10. Idem, ibidem, artículos 7-13; 18-19.

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que los alumnos pudieran crear espacios de discusión y organizaciónpropios. Así, para evitar una eventualidad de este tipo, el reglamento eramuy explícito en sancionar y prohibir “absolutamente” las reunionespara tratar “asuntos políticos, así como las manifestaciones en masa” y,no deja de llamar la atención, a esta disposición se sumaba aquella queimpedía los juegos de cartas, dados “y todos aquellos en que se presumaque versa algún interés”, a juicio de las autoridades.

Como corolario de este conjunto de medidas que ordenaban la viday los tiempos de la vida escolar, estaba la facultad de las autoridadeseducativas del plantel y de las estatales de expulsar a los estudiantes porfaltas graves que sin lugar a dudas ponían en peligro la vida interna,máxime cuando se reconocía la naturaleza del internado como institucióntotal. El artículo final era en realidad una declaración de principios, demedios y fines que perseguía esa institución: “Siendo el internado unainstitución que requiere una prudente severidad en la disciplina,cualquiera transgresión (sic) de ésta, será enérgicamente corregida segúnlas prescripciones del reglamento”11.

En pocas palabras, el joven estudiante debería adquirir una forma-ción y una educación integral en lo físico, lo intelectual y lo social paraque su carácter impulsivo, arrebatado e insolente fuera sosegándose yesto era posible a condición de establecer un régimen disciplinarioriguroso porque así lo exigía la convivencia de toda colectividad “sabi-amente establecida”. Así, una herramienta central lo constituía el tiempoescolar porque con este garantizaba forjar el “futuro escolar y elciudadano”.

Bibliografía

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11. Idem, ibidem, artículos 19; 25-26 y 30.

de jóvenes a estudiantes 263

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Tempos de aprender

A produção histórica da idade escolar

Maria Cristina Soares de Gouveia*

A emergência de um tempo escolar, nas sociedades ocidentais, com o advento da Mo-dernidade, relaciona-se com a definição de um marco cronológico no decorrer da vidado indivíduo, ao longo do qual este deveria inserir-se na escola, a chamada idade esco-lar. Esse marco constitui não um recorte absoluto, mas é fruto de uma construção histó-rica, ao longo da qual se modificaram os parâmetros de sua definição. Para analisar essarelação, cabe compreender a produção da representação da infância como período deformação para a vida adulta, no interior da instituição escolar, de acordo com princípiospedagógicos característicos de tal instituição. Princípios esses centrados no pressupostoda educabilidade desse período de vida. Tal pressusposto tornou possível a emergência,no decorrer do século XIX, em diferentes países, das leis de obrigatoriedade escolar,que conferiram visibilidade social à idade da meninice (por volta dos 7 aos 14 anos)entendida como idade escolar. Tendo como fontes primárias a legislação educacional e adocumentação referente à instrução pública, busca-se analisar, no contexto da provínciamineira, o significado da noção de idade escolar ao longo do período e suas caracterís-ticas, de modo que se apreendam suas permanências e deslocamentos.ESCOLA; CRIANÇA; TEMPOS; ESPAÇOS.

* Esse texto constitui parte da pesquisa: “A construção da infância escolarizada: acriança nos discursos e nas práticas pedagógicas na província mineira (1820-1906)”,desenvolvida no interior do GEPHE (Grupo de Estudos e Pesquisas em História daEducação da UFMG), que conta com o apoio do CNPq, através da concessão debolsa de produtividade. Insere-se também no Programa Internacional de PesquisaCAPES/GRICES: “A infância e sua educação: materialidades, práticas e representa-ções Brasil/Portugal (1830-1950)”.

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The emergence of a “scholar time” in occidental societies in modernity is related withthe historical conformation process of an “scholar age”. In this sense, its necessary tounderstand the construction of childhood as the period of life when the individuate mustbe prepared to adult society, according to pedagogical principles in a school institution.Those principles are centred on the idea of childhood specificity, there educability. Thatnotion turned possible the school, and the emergence of the “obligation scholar laws”,in differents nations, during the nineteen century, that institucionalized a scollar timeinto social time. Using as primary sources the scholar legislation and public instructiondocuments from this period, the paper analyses the meaning of scholar age in Minas’sprovince and its characteristics.SCHOOL; CHILDREN; TIMES; SPACES.

O século XIX afirma-se, em termos gerais, como período ao longodo qual se formularam, nos países ocidentais, políticas públicas de ex-tensão da instrução elementar ao grosso da população. Tais políticasconstituíam estratégia privilegiada de construção de uma ordem públicanos Estados–nações nascentes (Cambi, 2000). Esse movimento, eviden-temente, não se deu de maneira uniforme e unívoca. Os discursos epráticas de valorização da instrução básica como instrumento de nor-matização social foram apropriados pelos diferentes agentes históricosem contextos nacionais e regionais que imprimiram um significado di-ferenciado ao projeto de escolarização.

No interior de tal processo, assumiu destaque a conformação, emdiferentes países ocidentais, das leis de obrigatoriedade escolar. Leisque buscavam garantir a adesão social à educação escolar, através dadefinição de um extrato populacional a ser necessariamente submetidoà sua ordenação. É interessante observar que as leis de obrigatoriedadeescolar atravessaram diferentes contextos nacionais e regionais, pau-tando-se por dois elementos básicos em sua estrutura: a definição deuma idade escolar e a responsabilização dos pais ou tutores das criançaspelo envio destas às escolas de primeiras letras, sob pena de pagamentode multa1.

1. Não irei me ocupar, nesse texto, do estudo do processo de efetivação da lei deobrigatoriedade escolar, tema desenvolvido no interior do Grupo de Estudos e Pes-quisas em História da Educação por Cynthia Greive Veiga e Luciano Faria Filho.

tempos de aprender 267

No Brasil , é à luz de novos estudos desenvolvidos nos últimos anosque, apontam inúmeras fontes primárias ainda não contempladas, vempermitindo dar visibilidade ao projeto(ou projetos) de implementaçãoda instrução pública, bem como os embates, fluxos e refluxos nesse pro-cesso. Assim é que, ao refinar o olhar, e no acúmulo das pesquisas recen-temente desenvolvidas, é possível perceber que a institucionalização daforma escolar não constituiu um movimento ascendente de afirmaçãodo valor da escola e sua importância na formação das novas gerações.Ao contrário, verifica-se nos discursos das elites dirigentes, bem comonos mecanismos de implementação da educação escolar que essa se deuno embate com estratégias de formação da população a cargo de outrasagências, como a família e o trabalho, bem como na disputa entre asescolas públicas e particulares, em torno da oferta da instrução básica2.

As leis de obrigatoriedade escolar foram promulgadas pelas dife-rentes províncias, em períodos diversos, haja vista que o Ato Adicionalde 1834 imputou-lhes a responsabilidade pela oferta e ordenação dainstrução elementar. A semelhança do contexto europeu, nos textos le-gais, foi a identidade geracional que definiu o perfil do aluno das pri-meiras letras. No caso da província mineira, em 1835, a lei n. 13 e seuregulamento n. 3, assim determinava:

Art. 12: os pais de família são obrigados a dar a seus filhos a instrução primá-

ria de 1 grau ou nas Escolas Públicas ou particulares, ou em suas próprias

casas, e não os poderão tirar enquanto não souberem as matérias próprias do

mesmo grau.

A infração desse artigo será punida com multa de dez a vinte mil réis...

Art 13: A obrigação imposta no artigo precedente aos pais de família começa

aos 8 anos de idade dos meninos; mas estende-se aos que atualmente tiverem

14 anos de idade [no caso da população feminina a frequência não era obri-

gatória].

2. Cabe destacar que os termos público e privado assumem significados diferencia-dos no século XIX, demandando uma análise mais aprofundada acerca da caracte-rização desses dois modelos.

268 revista brasileira de história da educação n° 8 jul./dez. 2004

A identidade do aluno produziu-se superposta à identidade geracional,conferindo visibilidade e uma nova função social a idade da meninice, ouidade pueril. Cabe destacar que, no Brasil, essa questão tomou contornosparticulares, tendo em vista a composição da população, já que os escra-vos eram legamente impedidos de freqüentar a escola.

Busco aqui analisar a produção histórica da idade escolar no Brasil,ao longo do século XIX e, mais exatamente, entre 1830 e 18853, em umcontexto particular: a província mineira. Tendo como fontes primárias alegislação educacional do período, os relatórios dos delegados de ensi-no, os mapas de matrícula e freqüência dos alunos, tenho em vista in-vestigar como foi definida pela legislação educacional e apropriada pe-los professores e delegados a identidade geracional do aluno das escolasde primeiras letras da província mineira.

Para tal, recupero o percurso histórico de definição das diferentesetapas da existência humana nas sociedades ocidentais, para melhor si-tuar a apreensão histórica da idade da infância. A partir daí, situo a pro-dução de saberes sobre a educabilidade da criança, definidora de umaespecificidade da idade infantil, a partir da indicação dos principais tra-tados pedagógicos produzidos na Europa entre os séculos XVI e XVIII.Finalmente, busco analisar a produção histórica da idade escolar no con-texto brasileiro, ao longo do século XIX, voltando-me para o estudodocumental das fontes sobre a ordenação da instrução na província mi-neira.

As classes de idade

Ao resgatar a construção histórica da idade infantil, entendendo-acomo período de vida distinto cognitiva e afetivamente do adulto, derealização de aprendizagens sociais, nos remetemos à historicidade das

3. O recorte histórico foi definido a partir da data da promulgação da lei de obrigato-riedade escolar na província, em 1835 e na década de 1880. Como a pesquisa seencontra em andamento, ainda estão sendo coletados os dados acerca do períodoposterior.

Jheiny
Realce

tempos de aprender 269

representações sobre as idades humanas. Na verdade, o fluxo da exis-tência humana, suas rupturas e continuidades, constitui tema constantenas produções das culturas, em momentos históricos diversos. ParaFranklin Leopoldo Silva (2001, pp. 82-83): “sei o que é o tempo porqueele é o extrato mais fundamental do drama vivido pela criatura finita: asua transitoriedade”. As diversas culturas produziram recortes que de-marcavam os diferentes momentos no desenrolar da vida do indivíduo,construindo classes de idade, produzindo delimitações e rupturas ao longodo continuum da experiência humana.

Tal produção mostra-se ancorada em mudanças biológicas. Essas,no entanto, como domínio humano, passam a ser significadas pela cul-tura. Assim, as classes de idade afirmam-se como produção no entrecru-zamento da natureza com a cultura. Como nos alerta Elias: “não são ohomem e a natureza, no sentido de dois dados separados, que constitu-em a representação cardinal exigida para compreendermos o tempo, massim ‘os homens dentro da natureza’” (1998, p. 12).

A temporalidade da existência humana nas culturas tradicionais eraapreendida como um ciclo em que o início, a gênese, constituía tambémseu momento final, de acordo com uma concepção cíclica do tempo.Nessas culturas, tal apreensão só se fazia possível no interior de umciclo maior, o da natureza, cujo fluxo determinaria as diferentes formasde existência, definidas biologicamente pelo nascimento, crescimento,amadurecimento e drecrepitude do corpo.

Geertz, ao estudar a concepção de tempo dos balineses, vem falardas marcas coletivas do tempo, que inscrevem as vivências individuais.Schwarcz, ao analisar o trabalho do antropólogo, destaca que: “Geertzcomprova como existe um grande elo entre a concepção de um povo doque é ser uma pessoa e sua concepção da estrutura do tempo” (apudSchwarcz, 2001, pp. 18-19).

Elias chama atenção para o fato de que a associação entre a idade doindivíduo e o calendário mostra-se uma construção histórico-cultural.Segundo ele:

Nas sociedades desenvolvidas, parece uma evidência que um indivíduo sai-

ba sua idade. É com assombro [...] que descobrimos que existem, em socie-

270 revista brasileira de história da educação n° 8 jul./dez. 2004

dades menos avançadas, homens incapazes de dizer com precisão qual é a

sua idade. Na medida em que o patrimônio de saber compartilhado por um

grupo não inclui o calendário, é difícil, com efeito, determinar o número de

anos que se viveu. Não é possível comparar diretamente a duração de um

período de vida com o outro. Para tanto, é preciso tomar como quadro de

referência uma outra seqüência de acontecimentos cujas divisões repetitivas

sejam o objeto de uma padronização na escala da sociedade. Em suma, preci-

sa-se daquilo que chamamos calendário [1998, p. 10].

Pensando nas designações das diferentes etapas da existência hu-mana, nas sociedades tradicionais, verifica-se que, na Grécia antiga, acriança era designada por pais. Termo que se referia tanto a crianças,quanto a jovens de diferentes idades, no caso masculino, até chegar acidadania, e no feminino, até o matrimônio, sendo mais freqüente seuuso para designar filho ou filha e mesmo escravo ou escrava (Kohan,2003) . Não havia uma palavra específica para nomear alguma idadeparticular. O tempo do indivíduo era, portanto, entendido como umcontinuum.

Na Idade Média, foi conformando-se uma preocupação com a de-signação das diferentes etapas da vida humana, ainda inserida numaconcepção cíclica do tempo. Concepção que informava a construção deuma representação dos períodos da existência humana centrada na idéiade ciclos: as idades da vida, em que a lógica do seu desenrolar era defi-nida pela natureza. O homem era parte de um ciclo maior, o qual confe-ria sentido à experiência individual, demarcada pelas diferentes idades.Idades que, como destaca Ariés (1981), referiam-se não propriamenteao indivíduo, mas à vida, tomada como elemento autônomo. SegundoGélis:

Durante séculos, e apesar dos esforços da Igreja para aboli-la, predominou

na Europa ocidental o que podemos chamar de consciência “naturalista” da

vida e da passagem do tempo [...] cada indivíduo descrevia um arco de vida

mais ou menos longo, segundo a duração de sua existência; saía da terra

através de sua concepção e a ela voltava através da morte [1991, p. 311].

tempos de aprender 271

Para Ariés, na Idade Média, caracteristicamente, havia uma produ-ção em torno da definição e diferenciação dessas idades da vida, a qualse expressava em tratados “pseudo científicos”, que usavam a seguinteterminologia: infância e puerilidade, juventude e adolescência, velhicee senilidade (1981, p. 33) termos que depois foram incorporados aosenso comum. Nas diferentes definições das idades da vida, subjaziauma concepção que relacionava a biologia humana a correspondênciassecretas internaturais, como a associação das sete idades da vida aossete planetas então conhecidos, ou aos 12 signos do zodíaco, ou aosquatro temperamentos. Segundo o autor: “as idades da vida não corres-pondiam apenas a etapas biológicas, mas a funções sociais” (1981, p. 39).

Nas sociedades européias, lentamente foi sendo afirmada uma con-cepção do tempo definida não mais pela natureza, mas por uma culturaantropocêntrica. O tempo deixou de ser representado como cíclico, paraafirmar-se evolutivo e linear. No dizer de Marcio Silva:

Nas sociedades de tradição européia, uma concepção do tempo como um

meio contínuo no qual os eventos se sucedem em momentos irreversíveis

subjaz às noções de inovação social e mudança histórica, tão familiares entre

nós. Tal concepção de tempo se traduz numa cronologia, atividade do espíri-

to destinada a conferir uma determinada inteligibilidade aos acontecimentos

ordenado-os linear e progressivamente [2001, pp. 90-91].

Com isso, progressivamente, segundo Gélis (1991, p. 302): “umaconsciência mais linear, mais segmentária da existência sucede a cons-ciência de um ciclo de vida circular”.

As terminologias definidoras das diversas etapas da vida humanairiam subsistir, sendo, no entanto, redefinidas a partir do século XVI. Énesse momento que, com os tratados pedagógicos, surgem novos ter-mos para designar as diferentes idades da vida. Porém, para Ariés, umadefinição mais precisa da idade pessoal, marcando sua individualiza-ção, viria apenas com o século XVIII, através dos registros paroquiais,que passaram a demarcar a data correta de nascimento.

A consciência diferenciada da existência humana significou um des-locamento das formas tradicionais de aprendizado social. Não era mais

272 revista brasileira de história da educação n° 8 jul./dez. 2004

a natureza que guiava a transformação da criança em adulto, mas umaeducação racionalizada, capaz de refrear as forças dessa natureza, mol-dando-as aos limites da razão. É nesse contexto que surgem os primei-ros tratados pedagógicos. Erasmo, ainda no século XVI, no seu tratadode formação da infância: A civilidade pueril (1530) designava pueril acriança que já falava corretamente, com vocabulário adequado (Boto,2002), período ideal para realização dos aprendizados sociais. Nessesentido, a puerícia definiu-se como tempo do aprender. O sucesso daobra de Erasmo, sua circulação ao longo dos dois séculos posteriores,atestam que o autor não apenas contribuiu para a construção de um campode reflexões sobre a educabilidade da infância, mas também foi capazde dialogar com o “horizonte de expectativas” do leitor da época.

Podemos então compreender que, mais do que rotular o indivíduode pouca idade, foi a partir do século XVI que foi produzida nas socie-dades européias uma nova identidade infantil. Seus contornos foramdefinidos por educadores e estudiosos que construíram uma concepçãode criança como sujeito aprendiz, quer nos espaços familiares, quer nosescolares, percurso que cabe ser mais bem analisado.

Comenius, na Didática Magna, estabeleceu um diferenciação entrequatro períodos da existência articulados ao aprender, compreendidoscomo estágios de formação, geradores de quatro tipos de escola: infân-cia, até os 6 anos de idade, puerícia, dos 6 aos 12 (quando o autor pro-põe uma escola de língua nacional, em oposição ao ensino de latim,então em vigor), adolescência dos 12 aos 18 (quando deveria dar-se aaprendizagem do latim), juventude dos 18 aos 24 (período de entrada naacademia ou universidade). Essa, segundo o autor “deveria ser freqüen-tada apenas pelos engenhos mais selectos a flor dos homens; os outros(deveria) enviar-se – a para a charrua, para as profissões manuais, parao comércio, para que aliás nasceram” (1957, p. 39). Assim definiu aorganização de um sistema de ensino, no título de seu capítulo XXVII:“As instituições escolares devem ser de 4 graus, em conformidade coma idade e o aproveitamento”. Para tal,

tomamos para exercitar os espíritos, todo o tempo da juventude, desde a in-

fância até a idade viril, ou seja, 24 anos, repartidos em períodos determina-

tempos de aprender 273

dos os quais se devem dividir tomando por guia a natureza. Efetivamente a

experiência mostra que o corpo do homem, em geral cresce em estatura, até

a idade de 24 anos, e não até mais tarde; depois robustece-se, adquirindo

vigor. E esse crescer lento é de crer que a divina providência o tenha reserva-

do á natureza humana, precisamente para que o homem tenha todo o tempo

necessário para se preparar para realizar as funções da vida [1957, p. 410].

No seu tratado de educação escrito em 1685, intitulado A arte decriar bem os filhos na idade da puerícia, Alexandre Gusmão (2000),refere-se ao menino, na idade da puerícia e aos anos da adolescência,em que esse se tornaria mancebo. O tratado volta-se para a afirmação daeducabilidade da infância, a cargo de pais e mestres, incutindo a impor-tância da intervenção no período da puerícia, ou meninice, condição deformação de um adulto “morigerado”. Assim é que um dos capítulosintitula-se “Da obrigação que tem os pais de criar bem os filhos na idadeda meninice”, revelando como esse papel ainda não era socialmenteafirmado.

Locke, com seu tratado Some thoughts concerning education (1693),também afirmava a importância da educação da infância, voltando-separa a apresentação dos mecanismos de formação e instrução da crian-ça, condição de criação de um futuro gentleman (Cambi, 2000). Ao lon-go do século XVII e XVIII, filósofos e educadores voltaram-se para aconstrução de tratados pedagógicos centrados na discussão da impor-tância da educação para o desenvolvimento da natureza humana e parao processo civilizatório. Kant afirmava em 1776:

Homem é a única criatura que precisa ser educada. Por educação entende-se

o cuidado de sua infância (a conservação, o trato) a disciplina e a instrução

com a formação [...] o homem não pode tornar-se um verdadeiro homem

senão pela educação. Ele é aquilo que a educação faz dele [1996, p. 15].

Rousseau, ainda no século XVIII, construiu a obra Emílio, organi-zada e centrada na descrição das diferentes etapas cronológicassubsumidas na categoria infância, buscando delinear suas característi-cas, de forma que norteasse a ação educativa do adulto, de acordo com

274 revista brasileira de história da educação n° 8 jul./dez. 2004

as especificidades internas a cada etapa. Para o autor, o seu tema é o doestudo da “marcha da natureza” (1995, p. 4). A concepção de desenvol-vimento humano de Rousseau considerava-o marcado por três dimen-sões:

A educação vem da natureza, do homem e das coisas. O desenvolvimento

interno de nossas faculdades é a educação da natureza; o uso que nos ensi-

nam a fazer desse desenvolvimento é educação dos homens e a aquisição de

nossa própria experiência sobre os objetos que nos afetam é a educação das

coisas” [1995, p. 9].

No dizer de Boto: “Rousseau dando ênfase à demarcação de etapasda vida, salienta que há um tempo próprio para o ensino; para cadaensino” (2002, p. 52). O autor distinguia infância e puerilidade, sendo ainfância o período compreendido até os 7 anos, seguida da idade pueril,passagem demarcada pelo domínio da fala, até os 12, 13 anos, idade dapuberdade e posteriormente a adolescência. Para Rousseau, o períododa realização das aprendizagens seria a idade da razão situada entre os 7e 12 anos. Como afirma Boto:

O Emílo distingue como era hábito do século XVIII, a infância e puerilidade.

Nomeava-se infância apenas e exclusivamente o período compreendido até

os 7 anos, quando então se ingressaria na idade pueril pela mesmíssima pe-

riodização já contida na A civilidade pueril de Erasmo no “século XVI” [2002,

p. 49].

Para Foucault, afirma-se caracteristicamente no século XVIII, a con-cepção de um “ tempo evolutivo”, um tempo social que se expressavatambém nas técnicas administrativas e econômicas que manifestavam:“um tempo de tipo serial, orientado e cumulativo: descoberta de umaevolução em termos de progresso” (1986, p 45). Nesse tempo evolutivo,a criança constituiria o momento de gênese, e a intervenção no seu pro-cesso de desenvolvimento a garantia de progresso individual: “ pro-gresso das sociedades, gênese dos indivíduos, essas duas grandes des-cobertas do século XVIII são talvez correlatas das novas técnicas de

tempos de aprender 275

poder e, mais precisamente, de uma nova maneira de gerir o tempo torná-lo útil, por recorte segmentar, por seriação, por síntese e totalização”(1986, p. 45).

Retomando Foucault, foram as idéias de progresso e evolução queconferiram legibilidade, quer ao fluxo das experiências coletivas, querdas existências individuais. Com isso, as etapas da existência humanaforam definitivamente representadas como articuladas ao progresso eevolução, desde a incompletude da infância, até o ápice corporificadona racionalidade adulta.

O século XIX incorporou os discursos pedagógicos defensores daeducabilidade da infância, do papel civilizatório da educação e, no inte-rior dessa reflexão, da definição de um período ideal para a aquisição dainstrução elementar. Nos oitocentos, essa cada vez mais foi compreen-dida como devendo se realizar nos espaços escolares. Era à criança noperíodo da meninice, compreendida entre os 7 e 14 anos, que foramdirigidos os projetos de instrução pública. Porém, como destacaNarodowski (1994), operou-se um deslocamento dos estudos pedagó-gicos em relação ao século XVIII. Não foi mais a afirmação da educabi-lidade da infância que norteou a produção pedagógica do século XIX,mas a construção de estratégias de ordenação do espaço escolar, de ex-tensão da instrução mínima ao grosso da população, produçãocorporificada na criação e difusão dos métodos de ensino.

Subjaz a concepção de infância articulada ao espaço social da esco-la, a idéia de progresso e evolução, tornados possíveis pela aprendiza-gem ocorrida no interior dessa instituição. Se essa idéia de progresso eevolução já se fazia presente anteriormente, na segunda metade dos oi-tocentos, com as descobertas de Darwin, transformou-se em doutrinacientífica: o evolucionismo, a explicar a partir de um único eixo, a his-tória das espécies, das sociedades, dos grupos sociais e dos indivíduos,trazendo outra referência para os estudos sobre as fases da existênciahumana e sua gênese.

No entanto, é importante compreender que a construção de diferen-ciações ao longo do desenvolvimento humano não foi definida unifor-memente. As concepções de infância, puerícia e adolescência assumi-ram significações diversas, de acordo com a pertinência social do

Jheiny
Realce

276 revista brasileira de história da educação n° 8 jul./dez. 2004

indivíduo. Para Ariés, tais concepções teriam surgido nas camadas do-minantes, estendendo-se depois para as demais camadas sociais. Noentanto, Ariés enxerga tal movimento marcado pela undirecionalidade,em que as concepções geracionais seriam definidas pela progressivauniformidade, num recorte de longa duração.

A construção das denominações da infância no Brasil

Ao se analisar a história da escolarização da infância no século XIXno Brasil, cabe investigar o que se compreendia como infância no perío-do, ou mais propriamente a “meninice” , como era designado o períodode vida no qual o indivíduo deveria ser instruído. Para tal, cabe também,para melhor compreender o significado (ou significados) da infância noperíodo, buscar resgatar a historicidade da construção léxica, compreen-dendo que o termo infância possui uma historicidade que cabe ser des-tacada.

Nomear é atribuir significado, demarcar. Recorrendo ao DicionárioAurélio, é afirmado que nome é: “palavra que designa pessoa, animalou coisa”. Ou seja, ao designar o indivíduo por criança circunscrevem-se suas ações numa teia de significados remetidos à condição infantil.Nesse sentido, também recorrendo ao Aurélio, nomear é associado acriar, instituir, designar.

No Brasil, as concepções das idades da vida dialogaram com ospadrões europeus, ao mesmo tempo que seriam marcadas por recortesdiferenciados, tendo em vista os pertencimentos não apenas sociais, mastambém raciais, diversos dos europeus. Assim é que as várias denomi-nações dadas aos indivíduos de pouca idade revelam, por um lado, umaconcepção difusa das diferenciações internas às etapas da vida. Por ou-tro, a centralidade do pertencimento social e racial na percepção de taisindivíduos. Segundo Priori (2000), os termos criança, menino e adoles-cente já se faziam presentes nos dicionários de 1830. “Criança era defi-nida como cria da mulher, associando-se criança ao ato da criação, sen-do que apenas na primeira metade dos oitocentos o termo criança passaa se dirigir à espécie humana”. Leite (1997) aponta, entre as denomina-

Jheiny
Realce

tempos de aprender 277

ções dadas à infância, o termo: “desvalido de pé”, a designar aquelesque já andavam e poderiam desempenhar pequenas tarefas. Os termosdeslocavam-se, referindo-se não apenas à idade cronológica do indiví-duo, mas ao seu status social. Segundo a autora, os termos “cria” ou“moleque” referiam-se tanto a um tipo de criado, o moleque nascido emcasa do senhor, ou filhos de escravos. Moleque significava negrinho,como também indivíduo sem palavra, ou apenas menino de pouca ida-de, ou ainda escravo jovem recém-chegado da África.

É importante ressaltar que as formas de apreensão das diferentesinfâncias tinham em vista não apenas o momento cronológico do indi-víduo, mas sua identidade étnica, de gênero, grupo social. A definiçãode infância não assumiu um significado unívoco, remetido exclusiva-mente à faixa etária, ao momento de vida do indivíduo. A identidadeinfantil construiu-se associada à condição social da infância, à inserçãoda criança num grupo social, étnico e de gênero que se superpõe à con-dição geracional.

Leite, ao analisar a percepção dos viajantes acerca da criança brasi-leira, cita Luccock que, em 1810, comentava “[...] deve-se levar emconta a idade prematura em que as pessoas novas deixam já de ser con-sideradas como crianças” (1810-1817, p. 28 apud Leite, 1997, p. 28). Oviajante analisava as diferenciações internas à categoria infância a par-tir da observação do vestuário:

Tanto meninos quanto meninas vivem a trançar nus pela casa, até que atin-

jam cerca de 5 anos, e durante três ou quatro anos ainda, após essa idade,

nada mais usam que a roupa de baixo [...] quando em raras ocasiões têm que

ir à Igreja ou em visitas, vestem-nas com toda elegância rígida de uma época

que já passou; não há diferença, salvo nas dimensões entre os trajes, de um

rapaz que faz pouco adquiriu o garbo viril e os de seu pai, entre os de uma

menina e os de sua majestosa mãe [p. 28].

Ou no depoimento de Edgecumbe:

No Brasil não existem crianças no sentido inglês. A menor menina usa cola-

res e pulseiras e meninos de 8 anos fumam cigarros. Encontrei um bando de

278 revista brasileira de história da educação n° 8 jul./dez. 2004

meninos voltando da escola. Um pequeno de aparentemente 7 anos tirou do

bolso um maço de cigarros e ofereceu a cada um [1886, p. 47 apud Leite,

1997, p. 37].

No decorrer do século XIX, no Brasil, se diferenciaram as denomi-nações que designavam as divisões internas a esse período de vida. Taisdiferenciações, ao demarcarem fronteiras no interior da categoriageracional infância, demarcavam formas diferenciadas de apreensão dossujeitos, bem como estratégias e espaços sociais diversos de formaçãopara a vida adulta. Segundo Leite, “para o código filipino, que conti-nuou a vigorar até o fim do século XIX, a maioridade se verificava aos12 anos para as meninas e aos 14 para os meninos, mas para a IgrejaCatólica que normatizou a vida das famílias nesse período , 7 anos já éa idade da razão” (1997, p. 19).

Tempo escolar

Ao apontar as diferentes denominações e responsabilidades sociaisatribuídas ao indivíduo em função de seu pertencimento geracional,verificam-se a ambigüidade e a fluidez na definição das etapas da vidahumana. Porém, como apontado inicialmente, a produção histórica deum tempo da vida associado ao aprender, no interior da escola, contri-buiu para a conformação de uma especificidade do tempo da infância.

No Brasil, as leis de obrigatoriedade escolar estabeleceram parâ-metros para a identidade etária da figura do aluno, relacionando-a aoperíodo da meninice, ao mesmo tempo que fixando as faixas etárias foradesse limite (a população infantil), bem como os de mais de 14 anos (amocidade e idade adulta). A construção da figura do aluno na culturaescolar nascente foi entendida, portanto, como associada ao(à) menino(a),na idade da razão.

O tempo escolar introduz, na experiência de uma sociedade aindanão escolarizada, uma concepção de um tempo determinado, no dizerde Frago:

tempos de aprender 279

[...] lienal, rectilíneo, ascendente y segmentado en etapas o fases a superar

[...] el papel de la escuela como instrumento de inculcación de una noción

del tiempo baseada en la precisión de los encuentros, la sequenciación de

atividades la previsión, el sentido del progreso, y la idea del tiempo como um

valor en si mismo [1993, p. 21].

A experiência escolar significou, na vivência das crianças que a fre-qüentaram ao longo do século XIX, a conformação de novos tempos eespaços da experiência da infância, que estendeu seus efeitos para outrasinstituições, como a família. Essa deveria reordenar a distribuição do tempoda criança, de forma que o adaptasse às exigências do tempo escolar.

A construção de um novo ordenamento do tempo marcou o cotidia-no infantil, ressignificando a construção biográfica do indivíduo crian-ça, bem como alterando outros espaços sociais. Na análise dos relató-rios dos inspetores de ensino, é constante a referência à tensão nadistribuição do tempo entre as atividades escolares e as demais respon-sabilidades imputadas à criança.

Tenho a honra de informar à V.Ex. que é proveitosa, tanto ao progresso da

mocidade como cômoda aos pais de famílias, uma só lição diária em cinco

horas continuas na escola de 2o grau desta Vila, a vista do que mostrou a

experiência no ensaio feito na mesma, apresentando mais a utilidade de evitar

falências de meninos pobres, cujos pais não lhes podem dispensar algum ser-

viço doméstico, porém é de se crer, que será melhor e mesmo de equid. que

em vez das cinco horas letivas se contasse das nove às duas, se desse princípio

às dez da manhã e terminasse às três da tarde, porque tinham tempo de prestar

o serviço mister daquele dia à sua casa e recebiam o alimento necessário para

estarem na aula as cinco horas, alias o prof. se vê na extrema necessidade de

atender aos vogos daqueles que vem para a aula sem o primeiro e necessário

sustento do dia, e embora com a condição que se lhes impõe de voltar, muitas

vezes isso não se realiza: o que não se deixa de cooperar para atrasamento dos

mesmos e por isso me parece razoável semelhante alteração4.

4. Fundo de Instrução Pública. S.P. 234 – 5/10/1839.

280 revista brasileira de história da educação n° 8 jul./dez. 2004

A noção de tempo produzida pela escola tem sua lógica referida auma racionalização da administração do cotidiano, facilitadora da pro-dução escolar que, como analisou Foucault (1986, p. 201), atravessoudiferentes instituições sociais: a prisão, o sistema judiciário, a escola.“lei fundamental da boa administração do tempo: a regularidade”. Nointerior desses espaços, a regularidade toma forma através da repetiçãode atividades distribuídas em horários predeterminados, marcando umanova vivência do cotidiano.

Mesmo que a escola tenha sido pouco presente no cotidiano dasMinas oitocentistas, a definição de um recorte geracional conferiu visi-bilidade social a um grupo específico de indivíduos: os meninos e meni-nas de 8 a 12 e, posteriormente, de 7 a 14 anos, anunciando, ainda quede forma pouco efetiva, uma idade escolar.

Porém, fica claro que a concepção de idade no período referia-senão a uma associação com o calendário anual como se afirmou ao longodo século XX, principalmente através dos estudos de uma psicologiagenética e com a conformação de uma escola seriada. O progresso indi-vidual, seu desenvolvimento, envolvia recortes geracionais mais difusos,no qual a idade da razão, período de realização da aprendizagem esco-lar, englobava um período de mais ou menos 7 anos de duração, unifor-me internamente quanto às possibilidades de aprendizagem.

No estudo da composição etária das salas de aula na província mi-neira, verifica-se a presença de alunos entre 5 e 14 anos, concentrando-se na faixa entre 9 e 11. Nos mapas de freqüência se faziam regularmen-te presentes registros de alunos menores de 7 anos, ao longo de todo operíodo investigado, estando registrados alunos de até 4 anos de idade,muito antes do momento de entrada na “idade da razão“, período consi-derado propício à aprendizagem das primeiras letras. Já os alunos demais de 14 anos tinham uma presença esporádica e ocasional, revelandoque a escola elementar era espaço da infância e meninice e não da moci-dade, provavelmente já inserida no mundo do trabalho5.

5. Os liceus, voltados para a formação secundária, eram praticamente inexistentes,sendo dirigidos à mocidade das classes abastadas.

tempos de aprender 281

Num dos relatórios analisados, o delegado assim apresenta a com-posição etária de uma sala de aula dirigida ao público feminino:

[...] Fala do exame das meninas, constando na lista o estado de adiantamento

das discípulas.

Grau de adiantamento tido:

14 anos – Aproveitada em todas as doutrinas marcada no artigo 6 e 12 da Lei

de 15/10/1827

8 anos – Lê e escreva mal

9 anos – Lê, sabe a taboada, soma e sabe princípios de doutrina

14 anos – Lê, escreve, sabe a taboada, duas espécie de contas, doutrina

14 anos – Aproveitada em todos os quesitos do Art. 6 e 12 da lei de 15/10/1827

6 anos – Lê sílabas

6 anos – Lê ABC

20 anos – Lê, escreve, sabe taboada, doutrina e cose6

Em outro relatório, um delegado analisa como a lei de obrigatorie-dade escolar era apreendida por alguns pais como definidora apenas docompulsório envio dos filhos com menos de 14 anos. Após essa idade,eram retirados da escola, independentemente das aprendizagens ali rea-lizadas.

Na escola de Santa Catharina se procedeu aos exames pelo Natal e se conhe-

ceu o adiantamento em 28 alunos que se apresentaram faltando grande nú-

mero comparativamente aos da matrícula e alguns pais tem tirado seus filhos

que tem completado a idade de 14 anos, a título de já se não acham compre-

endidos na letra da lei, o que eu entendo pelo contrário [...] Estou notificando

aos pais que tem tirado seu filhos das Escolas antes de haverem completado

a instrução primária, e na diligencia de o fazer a respeito que a não tem dado,

o que vou verificando por novas listas que exigi dos juízes de paz e que me

vão pouco a pouco chegando7.

6. Fundo de Instrução Pública, P.P.1/42 Cx.01 – 30/07/1830 Env. 34.7. Fundo de Instrução Pública, S.P. 232 – 25/03/1839.

282 revista brasileira de história da educação n° 8 jul./dez. 2004

Se era rara a presença de alunos com mais de 14 anos, os de menosde 7 anos, não previstos no texto legal, eram considerados aptos a fre-qüentarem as salas de aula. No dizer de um delegado:

[...] em que me pede informações dos habitantes livres que compreende este

arraial e seus subúrbios, ao que respondo que no arraial e suas vizinhanças

contém 557 almas livres e entre estas 135 meninos de ambos os sexos de 5 a

12 anos de idade quase todos sem saberem ler e todos estes podem vir à

escola8.

No Regulamento Escolar de 1884, a questão da idade prevista paraa inserção na escola já se mostrava mais precisa e restritiva. No artigo5o, claramente eram excluídos os menores de 5 e maiores de 14 anos:

A matricula estará aberta durante todo o anno.

§ unico: Não serão admittidos à matricula e à freqüencia da eschola:

1o – Os que soffrerem molestias contagiosas, ou repugnantes

2o – Os que não tiverem sido vaccinados, havendo pús vaccinico no logar

3o – Os menores de 5, e maiores de 14 annos

4o – Os escravos

Não havia uma distinção interna à categoria meninice, pela análisedos mapas, sendo essa faixa etária representada como homogênea quantoa suas condições e níveis de aprendizagem. Assim é que nas observa-ções sobre a aprendizagem dos alunos, não se estabelecia relação entreseu rendimento escolar e a idade. Apenas nos registros do aluno de 4anos, o professor observa: “é adiantado para a idade”9 demonstrandouma diferenciação entre a meninice e a infância, no que se refere a con-dições particulares de aprendizagem. Fizeram-se presentes dois únicosregistros de alunos com 20 anos de idade, mas em períodos anterioresao Regimento de 1884, sendo que num deles assim é descrita sua inser-

8. Fundo de Instrução Pública, S.P. 234 – 30/08/1839.9. Fundo de Instrução Pública, IP 13, caixa 25, 1832.

Jheiny
Realce

tempos de aprender 283

ção na escola: “Joaquim é o único de meus alunos que tem 20 anos,porém, não presta para nada porquanto apenas faz q.q. pequeno exercí-cio fica logo muito enfermo todos os mais alunos regulam de 17 parabaixo”.

Na verdade, no estudo das fontes primárias utilizadas, fica claro queo objeto de análise dos professores e delegados de ensino era o aluno,no exercício de seu ofício, tornado possível por sua capacidade e empe-nho em aprender e na freqüência cotidiana à escola. A sua identidadegeracional aparece subsumida à identidade de aluno, categoria a partirda qual se operava a percepção de sua individualidade.

No estudo dos dispositivos escolares de análise e avaliação dos alu-nos: os mapas trimestrais de freqüência e os relatórios dos inspetores deensino, verifica-se que é constante uma análise do grau de adiantamentodos alunos, em que os professores registravam o nível incial de aprendi-zagem e os progressos feitos. Tais progressos tinham em vista um talen-to inato para realização da aprendizagem escolar, não estando associa-dos à idade cronológica do aluno. Em todos os mapas de freqüência, otermo talento constituía a categoria que conferia visibilidade à sua pro-dução. Segundo um dicionário da época10, talento era: “habilidade, boadisposição natural para as ciências, artes. Enterrar os talentos, não oscultivar, sujeito de grande habilidade”. Assim é que o talento referia-seao contexto escolar, refletindo uma habilidade intrínseca ao indivíduo,que tornaria possível a aprendizagem. É interessante fazer notar que otermo inteligência pouco se fazia presente nos mapas analisados na pri-meira metade do século.

Já na segunda metade, a partir da década de 1860, os mapas passama registrar a inteligência do aluno, compreendida como habilidade ina-ta, expressando-a em termos como “medíocre”, “não tem”, “fraca”,“boa”, “muito boa”. No mesmo dicionário, a inteligência é assim com-preendida: “essência espiritual – os anjos são pura inteligência, faculda-de de entender, conhecimento, juízo, discernimento”. Verifica-se, por-

10. Dicionário da Língua Brasileira por Luiz Maria da Silva Pinto, Ouro Preto,Typographia de Silva, 1832.

284 revista brasileira de história da educação n° 8 jul./dez. 2004

tanto, um deslocamento na construção de critérios para aferir o desem-penho dos alunos, em que se foi constituindo progressivamente umaterminologia propriamente escolar, demonstrativa de uma cultura emconformação (Gouveia, 2003). Se o termo inteligência afirmou-se aolongo do século XX como fator explicativo dos desempenhos indivi-duais, tal termo se mostra ainda pouco presente ao longo do século XIX.A inteligência era entendida como faculdade espiritual, quando no sé-culo XX será compreendida como característica psicológica.

Um delegado se expressa num relatório:

Pede a criação de mais uma escola de 2o grau pois que não é possível ao

professor prestar toda a atenção no ensino das matérias que compõem o mes-

mo grau a 140 e mais alunos a seu cargo, do que resulta de que os mais

talentosos apresentam adiantamento porque não precisam de explicações tão

reiteradas, e os menos dotados das faculdades intelectuais, que necessitam

de muito trabalho e paciência por parte do mestre para os fazer compreender,

ficam atrasados, por isso dependem de muitos anos nas escolas.

Transparece a visão da existência de diferenças individuais nos alu-nos, em função do talento inato para aprendizagem, o que determinariauma duração diversa do tempo da escola, no exercício do ofício do aluno.

Ao longo do século XX, produziu-se progressivamente uma deter-minada consciência precisa, refinada e minuciosa de diferenciações nãoapenas biológicas,mas cognitivas e afetivas do indivíduo, a partir daciência da psicologia, fundada numa homologia entre o desenvolvimentobiopsíquico individual e uma cronologia fundada no calendário anual.Tal pressuposto que nos parece hoje “natural”, foi fruto de uma constru-ção histórica. Ao longo do século XIX, no contexto brasileiro, pareceque a diferenciações etárias não se referiam a uma cronologia anual,mas a ciclos maiores: a infância, a meninice, a mocidade, a idade adulta.Assim é que a concepção de idade referia-se a um período maior daexistência.

Em contrapartida, as diferenciações etárias entre os alunos não eraminicialmente percebidas como fatores relacionados a distintas e progres-

tempos de aprender 285

sivas capacidades de aprendizagem. Porém, ao longo do período anali-sado, foi aos poucos se delineando uma diferenciação entre as diferen-tes idades dos alunos, que deveria ser considerada na ordenação do co-tidiano escolar. Essa questão aparece claramente em alguns artigos doRegimento de 1884:

Art. 9o

O professôr, attendendo as distancias das residencias dos alunnos, suas ida-

des, e quaes quer outras conveniencias, dividirá os alunnos em duas turmas,

uma das quaes freqüentará a aula da manhã, e outra a da tarde.

Art. 15o

Havendo pateo ou area de terreno annexa á eschola, durante o intervalo, de

que trata o art. antecedente, poderão os meninos entregar-se aos brinquedos

proprios de sua idade, que concorrerem para o desenvolvimento physico,

sob a vigilancia do professôr.

Art. 17o

Os meninos menores de 7 annos, doentios ou mofinos, poderão ser despedi-

dos antes da hora regimental.

Art. 20o

As lições serão curtas e variadas, principalmente para os meninos de tenra

idade, a fim de evitar-lhes a fadiga, e o aborrecimento, causas da indisciplina

na eschola.

Embora as diferenciações etárias fosssem contempladas no regimen-to, como fator que influiria na ordenação das salas de aula, não eramdiretamente articuladas ao desempenho dos alunos, nem à apresentaçãodos conteúdos. Isso parece também ter ocorrido no contexto europeu,como aponta Chervel: “es de destacar que, hasta finales del siglo XIX,la consideración de la edad no influyó en absoluto en esta distribuición,ni la ensenanza primaria ni en la secundaria, pues en todas las classes sedaban diferencias de edad considerables, de hasta diez o doce anos”(1991, p. 82).

286 revista brasileira de história da educação n° 8 jul./dez. 2004

Conclusão

O estudo das transformações históricas da percepção social da in-fância revela que tais transformações não são nem ascendentes, nemuniformes num mesmo período histórico. Para conferir visibilidade àsdiferenciações presentes num mesmo período, bem como às mudançasoperadas ao longo dos últimos séculos, cabe resgatar a produção deteorias pedagógicas, compreendidas não como informações diretas depráticas de socialização da infância, mas como expressões culturais dasrepresentações históricas acerca da infância, ou como denomina Foucault“práticas discursivas”.

Para resgatar a complexidade e a multiplicidade de discursos e prá-ticas em torno da infância, cabe compreender como tais práticas discur-sivas dialogavam com outras práticas, situadas no âmbito institucional,buscando captar a polifonia de saberes e práticas em torno da criança.

Tais estudos nos permitem cada vez mais desnaturalizar concepõeshistoricamente situadas. Assim é que o debate contemporâneo acerca daorganização da escola fundamental, na oposição entre os modelos deescola seriada e a escola ordenada em torno de ciclos de aprendizagem,pode ser enriquecido na análise da construção histórica da idade esco-lar, associada à produção de saberes definidores das diferentes etapas daexistência humana. Mais exatamente, o estudo da composição etáriadas salas e a análise dos níveis de aprendizagem dos alunos ao longo doséculo XIX nos permite perceber que não havia uma relação direta entrea idade cronológica do indivíduo e suas progressivas condições de apren-dizagem.

A relação entre níveis escolares de aprendizagem e idade cronológi-ca, essa apreendida a partir do calendário romano, constitui uma cons-trução relativamente recente na história da escolarização no Brasil; bemcomo a produção de saberes sobre o desenvolvimento humano fundadonuma progressiva diferenciação biopsíquica anual constitui um recortetambém recente.

Como afirma Lloret, ao analisar o contexto contemporâneo: “maisdo que ter uma idade, pertencemos a uma idade. Os anos nos têm e nos

tempos de aprender 287

fazem; fazem com que sejamos crianças, jovens, adultos ou velhos [...]e isto nos situa uns e outros em grupos socialmente definidos” (1998,p. 14).

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Resenha

A educação dos negros: uma nova face doprocesso de abolição da escravidão no Brasil

autor Marcus Vinícius Fonsecacidade Bragança Paulistaeditora EDUSF

ano 2002

“Elucidar o sentido da questão educacional no contexto do pro-cesso de abolição do trabalho escravo e sua importância para a pro-posta de integração dos negros à sociedade como seres livres” (p. 11)é o objetivo de A educação dos negros: uma nova face do processo deabolição da escravidão no Brasil de Marcus Vinícius Fonseca.

Marcus Vinícius Fonseca graduou-se em Filosofia pela PUC-MG e fez o mestrado em Educação pela Faculdade de Educação daUFMG. É professor de Filosofia e História da Educação na FUMEC ena UEMG, e atualmente faz doutorado na Faculdade de Educaçãoda Universidade de São Paulo. Este trabalho vem acrescentar maisum título à importante série Coleção Estudos CDAPH, editada pelaEDUSF, que muito vem contribuindo para os estudos de história daeducação na atualidade.

Através da análise de fontes primárias como as Falas do Trono;relatórios e anexos de relatórios dos ministros e secretários de estadodos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas; os projetosde lei apresentados à Câmara dos Deputados sobre a Lei do VentreLivre e a própria Lei; anais de congressos agrícolas, que reuniramproprietários rurais; além de obras de ativistas políticos que milita-ram em prol da abolição; e embasado numa importante bibliografiasobre escravidão, história da infância e história da educação brasilei-ra, o autor pretende “realizar uma análise das concepções e práticaseducacionais em relação aos negros e que foram apresentadas comoessenciais para o encaminhamento da abolição do trabalho escravono Brasil” (p. 9), analisando de 1867 a 1889, sendo a ênfase dada àLei do Ventre Livre, de 1871.

290 revista brasileira de história da educação n° 8 jul./dez. 2004

Fonseca adverte que os sujeitos da pesquisa são políticos, inte-lectuais e senhores de escravos, “os indivíduos que mais diretamen-te se envolveram com o projeto de abolição da escravidão e aarquitetura jurídica construída para realizar essa tarefa” (p. 11). Fon-seca justifica a utilização da visão dos senhores, pois essa represen-taria “a tentativa de se produzir novas estratégias de dominação paraos negros durante os anos finais da escravidão”, já que ele entendeessa educação como “um mecanismo de dominação que permitissea manutenção da hierarquia social e racial” (p. 16). Mesmo sendo oobjetivo do autor tomar como pontos de vistas o dos opressores, fazfalta ao trabalho uma nota sobre a importância de se pensar na posi-ção dos próprios negros em relação à educação.

O livro se divide em três partes: “A educação dos negros nalegislação abolicionista: a Lei do Ventre Livre (1871)”, “Propostas epráticas educacionais em relação à educação de crianças negras de1871 a 1888”, e “Características das práticas educativas nas associa-ções para as crianças nascidas livres de mães escravas”.

Na primeira parte do Capítulo 1, “A Lei do Ventre Livre emmeio ao processo de abolição”, o autor realiza uma discussão sobrea historiografia da abolição e explicita sua posição: seu objetivo se-ria ressignificar a Lei do Ventre Livre, entendendo-a não apenas comoum instrumento usado pela elite, mas como possibilidade de “reco-nhecimento dos negros como elementos presentes na sociedade [...]como também de forjar resistências no cotidiano de uma sociedadeque se encontrava em transformação” (p. 29). Ele discute mais espe-cificamente a Lei do Ventre Livre na historiografia e o próprio textoda Lei, considerando haver nela uma intencionalidade pedagógica,que seria a concepção de liberdade associada a um modelo de socie-dade desejado pela elite brasileira, principalmente a agrária, que eraa detentora do maior número de escravos.

A segunda parte, “A educação como uma das condições para aabolição do trabalho escravo”, traça um panorama da situação brasi-leira no período da abolição. A estrutura escravista estaria sofrendopressões pela abolição: as internas – as mais variadas formas de resis-tência dos escravos, que o autor não aprofunda; e as externas repre-sentadas pela revolução no Haiti, presente no imaginário da elitebrasileira, revolução esta que coloca em cheque a noção de controlesocial sobre os escravos; a guerra civil americana, que teria mostrado

resenha 291

ao Brasil como a questão servil divide um país, e por último a pressãoinglesa pelo fim do tráfico, que ameaçava a soberania nacional. Essaconjuntura teria levado a que “o governo iniciasse um processo detratamento da questão da escravidão” (p. 41), momento em que aquestão da educação dos escravos aparece, já que para Fonseca eraum consenso entre o grupo analisado a necessidade de extinguir aescravidão lenta e progressivamente, de forma que não abalasse asociedade. A Lei do Ventre Livre, que previa que os filhos de escravanascessem livres mas sendo mantidos no mínimo até os oito anos deidade com os senhores, e caso estes desejassem, até os 21 anos, seriaa preparação dos negros para a liberdade, já que nesse tempo os se-nhores deveriam “crial-os e educal-os”. Fonseca resume: “a liberta-ção do ventre e a educação eram articuladas como dimensõesfundamentais na preparação dos negros para a liberdade” (p. 44).

Por fim, “Criação e educação: entre o público e o privado”, tratada discussão sobre a quem recairia a responsabilidade de educar ascrianças nascidas livres. O autor mostra que a Lei do Ventre Livretrouxe um problema: os filhos de escravas nasceriam livres, mas se-riam mantidos até os oito anos com os senhores, portanto seriam edu-cados como escravos. Fonseca recupera os debates acerca do projetoda Lei do Ventre Livre e identifica a intenção de alguns setores deatribuir aos senhores a obrigação da educação das crianças negras,enquanto os setores afinados com os proprietários desejavam que oEstado se incubisse da tarefa. Fonseca mostra que a Lei ganhou umcaráter dúbio, já que a palavra “educar” foi trocada por “criar”, exi-mindo os proprietários da obrigação legal de destinar instrução paraos escravos nascidos após 1871. Segundo o autor, essa troca se deveuà negociação feita entre parlamentares e senhores de escravos paraque a lei fosse aprovada, já que “criar e educar eram praticamentesinônimos no domínio social” (p. 53). Fonseca considera, portanto,que há uma cisão: as crianças que fossem mantidas pelos senhores até21 anos, como a lei previa, seriam tratadas como escravos, não rece-bendo instrução; as que fossem entregues aos Estado aos oito anos,estariam ligadas à educação escolar. A distinção entre educar e criarse daria, portanto, pelo acesso à instrução. Ele finaliza o capítulo seapropriando do termo cunhado por Célia Maria Marinho de Azeve-do, a pedagogia da transição, que trata de como se deu o processo deabolição no Brasil, que foi direcionada para a manutenção da ordem

292 revista brasileira de história da educação n° 8 jul./dez. 2004

vigente. Para Fonseca, mesmo que nem todas as crianças nascidasapós 1871 de mãe escrava tivessem acesso à instrução, o debate gera-do acerca da importância desta mostra que a educação “foi defendidacomo uma estratégia voltada [...] para a manutenção da hierarquiaracial construída ao longo da escravidão” (p. 59).

O capítulo 2 começa com a subdivisão “A educação das crian-ças nascidas livres de mãe escrava de 1871 a 1879”, em que Fonsecaretoma a discussão sobre a ambigüidade da Lei do Ventre Livre acercados padrões educacionais destinados às crianças nascidas livres. Istoé, as entregues ao Estado, sendo instruídas e as mantidas pelos se-nhores, educadas nos moldes escravocratas. Para ele, 1879 é ummarco, pois nesse ano os proprietários deveriam optar por entregaras crianças, recebendo uma indenização por elas, ou mantê-las emseu poder até os 21 anos. O autor acompanha as discussões efetua-das durante o período, mostrando a preocupação do ministro da Agri-cultura com o destino das crianças: o governo não teria recursospara indenizar os senhores se uma grande parte deles optasse porentregar as crianças, e também não haveria instituições educacio-nais suficientes para receber as crianças, caso isso ocorresse. Eleanalisa os debates do Congresso Agrícola do Rio de Janeiro e o Con-gresso Agrícola do Recife, realizados em 1878, como um espaço dediscussões do governo com os senhores de escravos. A principal preo-cupação presente neles seria a “crise na lavoura”. No congresso rea-lizado no Rio de Janeiro, a carência de braços era identificada comouma das preocupações, assim como a carência de capitais. Essesproprietários reivindicavam a necessidade de investimentos e a imi-gração externa. No congresso realizado em Recife, a crise seria umproblema de capitais, com os proprietários de terra reivindicandofinanciamentos, sendo desfavoráveis à imigração. Segundo Fonse-ca, todos esses agricultores apresentavam opniões favoráveis à edu-cação dos ingênuos, mas uma educação voltada para o trabalho, comum caráter agrícola, o que para o autor teria levado à geração depropostas de criação de escolas agrícolas, mas que se dividiria emdois sistemas diferenciados: “um, voltado para os filhos dos pro-prietários, verdadeiros centros de excelência que propiciariam a ab-sorção e a introdução de técnicas modernas na agricultura brasileira;e outro, uma rede de escolas-orfanatos, colônias ou escolas primá-rias, que propiciariam a habilitação profissional dos ingênuos e dos

resenha 293

pobres de uma maneira geral” (p. 84); sendo que Fonseca entendeque a educação dos ingênuos para os agricultores da região Norteseria uma parte da preparação da chamada mão-de-obra nacional,enquanto para os da região Sul, seria um estágio de preparação paraa introdução do trabalho estrangeiro no país. Além disso, a educaçãoagrícola representaria um modo de prender os ex-escravos ao cam-po, evitando a fuga para os centros urbanos que seria mais um fatorde perda de trabalhadores para a agricultura. O autor finaliza o capí-tulo mostrando que toda essa preocupação com uma pretensa educa-ção diferenciada para os nascidos livres (a “instrução”) não se con-cretizou plenamente, já que houve uma prática generalizada de manteros menores até 21 anos, uma forma de manter uma mão-de-obrabarata e acessível. Apresentando um relatório do ministro da Agri-cultura de 1885, Fonseca mostra que menos de 1% das crianças fo-ram entregues ao Estado, o que para ele representa que “a maioriadas crianças que nasceram livres de mãe escrava após 1871 forameducadas, ou criadas, pelos senhores de suas mães e não necessaria-mente a partir dos padrões educacionais que os debates em torno daLei do Ventre Livre haviam sugerido como necessários à transiçãopara a sociedade organizada a partir do trabalho livre” (p. 98).

No item seguinte, “A educação das crianças nascidas livres demãe escrava de 1879 a 1888”, Fonseca analisa a educação das crian-ças entregues ao governo a partir das instituições que as receberam.Esse período seria de refluxo nas preocupações acerca da educaçãodas crianças negras, a relação do Estado com as instituições criadaspara receber as crianças teria mudado: antes de 1879 estas instituiçõeseram incentivadas, recebiam apoio financeiro, eram objeto de preocu-pação do Estado. Com a verificação de que a quantidade de criançasentregues fora abaixo das expectativas, a preocupação com essas crian-ças muda. A questão dos ingênuos teria se deslocado do lugar de ori-gem: da questão abolicionista para a questão da infância desamparada.Segundo ele, essa inversão seria uma “forma promissora descobertapelos senhores para resolver os problemas relativos à falta de mão-de-obra” (p. 113). Essas crianças, depois de passarem pela educação emdeterminadas instituições – especialmente agrícolas –, seriam apro-veitadas como “agregados” que virariam mão-de-obra gratuita e fiel.Fonseca analisa alguns casos de asilos e colônias agrícolas criadasnesse período em diferentes estados (Goiás, Rio de Janeiro, Pernam-

294 revista brasileira de história da educação n° 8 jul./dez. 2004

buco) para mostrar isso, entretanto deixa de lado possíveis especifici-dades de cada região e das instituições. Mas ele mostra como criançaspobres, vindas ou não do cativeiro, foram igualmente utilizadas parasuprir a falta de mão-de-obra no período. Para ele, a questão da educa-ção dos ingênuos foi sendo “rapidamente diluída em meio aos proble-mas da infância pobre, que passa a ser o lugar onde as questões relativasàs crianças negras serão tratadas durante o final do século XIX e, pos-sivelmente, nas décadas iniciais do século XX” (p. 115).

No capítulo 3, a primeira parte constitui-se de “A condição ra-cial dos alunos das associações para educação dos filhos livres damulher escrava”, em que Fonseca discute a terminologia “libertos”utilizada para as crianças nascidas livres, que segundo ele “revela oslimites da definição da liberdade contida na lei, reafirmando, no pla-no social, a condição de escravidão dessas crianças” (p. 118), já queem tese elas nasceriam livres, não podendo, portanto, ser chamadasde “libertos”. Analisando estabelecimentos voltados para a educa-ção de crianças pobres, ele conclui que se não eram explicitamentedestinadas às crianças negras, a maior parte de sua clientela o era.

A seguir, Fonseca passa às “Características das práticas pedagó-gicas das associações para educação das crianças nascidas livres demulher escrava: instrução, moral e trabalho”. Ele analisa os três ele-mentos colocados em destaque pelos programas de ensino das insti-tuições que se voltaram para a educação daquelas crianças: a educaçãopara o trabalho, a educação moral de caráter religioso e a instrução.Mostrando que os dois primeiros elementos seguiam parâmetros daescravidão, serviam para formar seres úteis à sociedade, isto é, bonstrabalhadores que teriam virtudes como paciência, humildade, re-signação, submissão. Segundo o autor, a instrução elementar foi oúnico elemento novo, a valorização da escrita e da leitura teria sido“apresentada como um fator importante no período de transição paraa sociedade livre” (p. 139), sendo mesmo cobrada pelo Estado àsassociações ou aos particulares que recebiam tutelas de crianças en-tregues. Infelizmente, ele não se pergunta por que essa instrução nãoera cobrada dos senhores que mantinham as crianças, já que a divi-são estanque sugerida entre criar (senhores) e educar (Estado) o im-pediu de procurar ações diferentes, pois sabe-se da existência decrianças mantidas em poder dos senhores e que tiveram acesso àeducação escolar. Mesmo considerando a instrução um elemento de

resenha 295

“vantagem” (p. 126) das crianças entregues ao Estado sobre asmantidas pelos senhores, ele demonstra que “o discurso educacio-nal em relação aos negros e sua liberdade nada tem de revolucioná-rio e de transformação radical” (p. 142). A educação vinculada àabolição da escravidão na verdade seria responsável por conservaros negros como trabalhadores subalternos, como base da pirâmidesocial: a educação foi reivindicada com propósitos claros de mini-mizar o processo de transformação da sociedade e conservar a or-dem herdada do período escravocrata” (p. 142).

O terceiro capítulo é finalizado com “A infância negra no pro-cesso de abolição do trabalho escravo”. Para o autor, a criança negraseria uma métafora do trabalhador ou da sociedade futura, as discus-sões que a cercaram não tinham como prerrogativa sua proteção ou adefesa de seus direitos, mas sim faziam parte de “uma proposta maisampla de reorganização da sociedade” (p. 143). Através dos debatesrealizados entre juristas, políticos e intelectuais do período acercados termos atribuídos às crianças negras (filhas de escravos e ex-escravos) Fonseca conclui que o fato de serem tratadas como ingênu-os ou libertos demonstra o espaço social a que esses indivíduos sãorelegados, trariam o estigma da escravidão, o que inviabilizaria osurgimento de uma sociedade igualitária. Fonseca considera o perío-do que analisa como um momento de ressignificação da infância es-crava: haveria uma mudança de atitude em relação a essas crianças,cuja principal caracterísitca seria a importância dada à educação, evi-denciada nas críticas que as práticas educativas em relação a elascomeçaram a sofrer a partir de vários setores da sociedade. Para isso,ele analisa o romance As vítimas-algozes: quadros a escravidão, de1869, escrito por Joaquim Manoel de Macedo, que criticaria a educa-ção recebida pelas crianças escravas no cativeiro e defenderia a ne-cessidade de que elas recebessem uma educação que as preparassepara a liberdade, o que para Fonseca “levou para o texto literárioaquilo que se encontrava como uma preocupação fundamental dosarticuladores da Lei do Ventre Livre, de que era preciso não só pensaras formas mais convenientes de se colocar fim na escravidão masprojetar estratégias que preparassem os negros para a liberdade e com-batessem os vícios que eles traziam da escravidão” (p. 166). Fonsecaanalisa a mudança do estatuto das crianças negras, que de um “ades-tramento” que recebiam durante a escravidão teriam passado a “edu-

296 revista brasileira de história da educação n° 8 jul./dez. 2004

candos” ou “alunos” nas instituições que os receberam, assim comouma mudança nos ciclos de idade, diferentemente do que ocorria nocativeiro, quando a partir de 7 ou 8 anos já recebiam atribuições eresponsabilidades de escravos. Fonseca retoma a discussão da fusãoda questão da criança negra com a questão da criança pobre e desam-parada, mostrando que a especificidade das primeiras seria o precon-ceito racial que elas sofriam. Seu intuito não é aprofundar a questão,mas ele mostra uma relação interessante entre educadores e higienis-tas, sugerindo que a relação entre higienismo e práticas discriminató-rias na educação que vigiriam no início do século XX são resultadodesse amplo processo, quando os negros são percebidos como umproblema a ser enfrentado pelos interesses da pátria.

Apesar de alguns problemas pontuais citados durante essa rese-nha (generalizações partindo de algumas instituições específicas econsiderando-as para todo o país; uma divisão muito estanque entrecriar e educar, não levando em conta que crianças mantidas pelossenhores também tiveram acesso à escolarização; desinteresse emtentar apreender a percepção que os próprios negros tiveram do pro-cesso estudado e os diferentes modos como a educação foi recebida eusos que dela podem ter feito os próprios escravos e ex-escravos),Marcus Vinícius da Fonseca realiza um trabalho de peso sobre a edu-cação de escravos e ex-escravos, um assunto ainda pouco estudado eque merece a reflexão dos pesquisadores, pois diz respeito direta-mente à formação da nação brasileira. Durante todo o trabalho, Fon-seca chama a atenção para a importância de novas pesquisas sobre oassunto, concluindo que “ao contrário do que se possa pensar emrelação à educação enquanto mecanismo de uma possível promoçãosocial dos negros em uma sociedade livre e de um discurso transfor-mador, o que encontramos foi a construção de sofisticadas estratégiasde dominação, cujo aspecto mais relevante foi a tentativa de estabele-cer uma linha de continuidade com a sociedade escravista” (p. 184).

Surya Aaronovich Pombo de BarrosMestranda no Programa de História e Historiografia da Educação

da Faculdade de Educação da Universidade de São PauloE-mail: [email protected]

Nota de Leitura

História da Educação e da Cultura en Galícia

autor Antón Costa Ricocidade Galíciaeditora Vigo Edicións Xerais de Galíciaano 2004

Este sugestivo e ambicioso título encabeça uma obra de nadamenos que 1.245 páginas, recentemente lançada na Espanha, maisprecisamente na região da Galícia. Escrito em galego, com o fito decontribuir para a normalização do idioma, como confessa o autor, olivro combina a busca da identidade cultural da Galícia a um sériotratamento historiográfico, cujas filiações são estabelecidas com a NovaHistória francesa e a História Cultural.

Construída em três planos que se interpenetram e se completam –a Europa, a Espanha e a Galícia –, a obra se estende do século IV, coma configuração do território galego do ponto de vista social e político,ao século XX, com a análise do contexto educacional dos anos 1990.Ao longo do texto, acompanhamos a tessitura de uma história dosprocessos educativos na Galícia do legado clássico ao medievo, darenovação cultural renascentista à ilustração, do Antigo Regime aoEstado Liberal, das inovações técnico-científicas à Escola Nova, atra-vessando os vários níveis e modalidades de ensino, sempre a partir deuma perspectiva comparativa que ao mesmo tempo que destaca assingularidades da cultura escolar galega, constantemente examina acorrespondência e as inter-relações entre o panorama educacional daGalícia e o espanhol e europeu.

Assumindo como proposta escrever “uma história que toma emconsideração a Galícia como sujeito histórico e cultural e aos galegoscomo atores fundamentais”, Antón Costa Rico percebe homens, mu-lheres e crianças como personagens privilegiados da narrativa histó-rica e procura recuperar as estratégias de escolarização masculina,feminina e infantil empreendidas na longa duração. Nesse sentido,recusa-se a elaborar uma história das idéias pedagógicas e das políti-

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cas educacionais tout court, almejando adentrar os processos educa-tivos na percepção das inteligibilidades internas dos discursos e prá-ticas tomados historicamente.

O texto condensa e reelabora os investimentos anteriores de pes-quisa do autor na arena historiográfica. Nele reencontramos, dentreoutros, os aportes de seu doutoramento, Mestre e escolas, publicadoem 1989, sobre a escola primária galega entre 1900 e 1936, no qualas teorias e práticas escolares escolanovistas são visitadas. RevemosLa educación de la ninez y de la juventud, em colaboração a MariaÁlvarez Lires, compilação de textos escritos pelo monge beneditinoMartin Sarmiento, no século XVIII.

O volume se completa com mapas, ilustrações e tabelas e reúneíndices analítico e onomástico, de instituições educativas e obrascitadas, tornando aprazível a leitura e facilitando o acesso às infor-mações coligidas e aos entendimentos construídos.

É um trabalho de fôlego, tramado com erudição e argúcia. Porcerto, como assume o próprio autor, traduz uma história militante daGalícia, elaborada, entretanto, sem perder de vista o rigor histórico eteórico. Porta-se, aliás, como toda boa história: apresenta seus com-promissos com o passado e os laços que a prendem ao presente,assentando as análises sobre o terreno da sólida pesquisa em fontese apoiando a escrita na requintada arte de narrar.

Diana Gonçalves VidalProfa. Dra. de História da Educação da

Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo

Orientação aos Colaboradores

A Revista Brasileira de História da Educação publica artigos,resenhas, traduções e notas de leitura inéditos no Brasil, relacionadosà história e à historiografia da educação, de autores brasileiros ouestrangeiros, escritos em português ou espanhol, reservando-se o di-reito de encomendar trabalhos e compor dossiês. Os artigos devemapresentar resultados de trabalhos de investigação e/ou de reflexãoteórico-metodológica. As resenhas devem discorrer sobre o conteúdoda obra e efetuar um estudo crítico, além de poder versar sobre textosrecentes ou já reconhecidos academicamente. As notas de leitura de-vem trazer uma notícia de publicação recente.

Seleção dos trabalhosOs artigos são submetidos a dois pareceristas ad hoc, sendo ne-

cessário a aprovação por parte de ambos. No caso de divergência dospareceres, o texto será encaminhado a um terceiro parecerista. A pri-meira página deve trazer o título da matéria, sem indicar nome e in-serção institucional do autor. Deve conter também o resumo emportuguês ou espanhol e o resumo em inglês (abstract), com exten-são máxima de sete linhas, e cinco palavras-chave em português ouespanhol e em inglês. Em folha avulsa, o autor deve informar o títulocompleto do artigo em português e em inglês, seu nome, titulação einstituição a que está vinculado, projetos de pesquisa dos quais parti-cipa, endereço, telefone e e-mail.

As resenhas e notas de leitura são avaliadas pela Comissão Edi-torial.

Normas gerais para aceitação de trabalhosOs originais devem ser encaminhados em três vias impressas e

uma cópia em disquete, observando-se o formato: 3cm de margemsuperior, inferior e esquerda e 2cm de margem direita; espaço entrelinhas de 1,5; fonte Times New Roman no corpo 12.

Os trabalhos remetidos devem respeitar a seguinte padronização:Extensão mínima e máxima, respectivamente:

• Artigos – de 30 mil caracteres a 60 mil caracteres (aproxima-damente de 15 a 30 páginas). Cada resumo que acompanharo artigo deverá ter, no máximo, 700 caracteres (contando

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espaços). Para contar os caracteres no Word, no item “Ferra-mentas”, a opção “Contar palavras”. Para as palavras-chave,consultar as Bases de Dados: Lilacs, Medline, Sport Discus.

• Resumos e abstracts – os resumos e abstracts dentro decada artigo não devem ter mais de 4 linhas cada.

• Resenhas – de 8 mil caracteres a 15 mil caracteres (aproxi-madamente de 4 a 8 páginas).

• Notas de leitura – de 2 mil caracteres a 4 mil caracteres(aproximadamente de 1 a 2 páginas).

As indicações bibliográficas, no corpo do texto, devem vir noformato sobrenome do autor, data de publicação e número da pági-na entre parênteses, como, por exemplo, (Azevedo, 1946, p. 11). Asreferências no final do texto devem seguir as normas da ABNT NBR6023:2000. Notas de rodapé, em numeração consecutiva, devem tercaráter explicativo.

Vale notar que todas as citações devem vir entre aspas e nãodevem estar em itálico, salvo trechos que se deseja destacar.

A Comissão Editorial não aceitará originais apresentados comoutras configurações.

A revista não devolve os originais submetidos à apreciação. Osdireitos autorais referentes aos trabalhos publicados ficam cedidospor um ano à Revista Brasileira de História da Educação.

Serão fornecidos gratuitamente aos autores de cada artigo cincoexemplares do número da revista em que seu texto foi publicado.Para as resenhas e notas de leitura publicadas, cada autor receberádois exemplares.

Os originais devem ser encaminhados à Comissão Editorial, comsede no Centro de Memória da Educação – Faculdade de Educação,Universidade de São Paulo. Av. da Universidade, 308 – Bloco B –Terceira Fase – Sala 40, CEP 05508-900, São Paulo-SP.

Informações adicionais podem ser obtidas no e-mail:[email protected] ou no telefone (11) 3091-3194, das 13h

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EDITORIAL 7

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