Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve...

242
REVISTA DA ACADEMIA GOIANA DE LETRAS

Transcript of Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve...

Page 1: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

REVISTA DA

ACADEMIA GOIANA DE LETRAS

Page 2: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

DIRETORIA DA AGL – BIÊNIO 2015/2017

PRESIDENTA Lêda Selma de Alencar

VICE-PRESIDENTE Licínio Leal Barbosa

SECRETÁRIO-GERALMiguel Jorge

PRIMEIRO-SECRETÁRIOEmílio Vieira das Neves

SEGUNDO-SECRETÁRIO Edival Lourenço de Oliveira

PRIMEIRO-TESOUREIRO Waldomiro Bariani Ortencio

SEGUNDO-TESOUREIROEurico Barbosa dos Santos

DIRETOR DE BIBLIOTECA Delermando Vieira Sobrinho

CONSELHO FISCAL

TITULARESAlaor Barbosa dos Santos

Maria do Rosário CassimiroMoema de Castro e Silva Olival

SUPLENTESAugusta Faro Fleury de Mello

Eliezer José PennaKléber Branquinho Adorno

DIRETORA DA REVISTA DA AGL Lena Castello Branco Ferreira de Freitas

DIRETOR DA CASA DA CULTURA ALTAMIRO DE MOURA PACHECO

Antônio César Caldas Pinheiro

CONSELHO EDITORIAL DA REVISTAEurico Barbosa dos SantosJosé Ubirajara Galli Vieira

Lena Castelo Branco de Freitas – Presidente

Page 3: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

REVISTA DAACADEMIA GOIANA DE LETRAS

Fundada em 29-04-1939

Nº 31 – Dezembro / 2016

Academia Goiana de Letras

Page 4: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

Copyright © 2016 by Revista da Academia Goiana de Letras – AGL

Editora KelpsRua 19 nº 100 – St. Marechal Rondon

CEP 74.560-460 – Goiânia-GOFone: (62) 3211-1616 Fax: (62) 3211-1075

E-mail: [email protected]: www.kelps.com.br

RevisãoLena Castelo Branco de Freitas

Sandra Rosa

DiagramaçãoVictor Marques

CapaVictor Marques Ubirajara Galli

DIREITOS RESERVADOS

É proibida a reprodução total ou parcial da obra, de qualquer forma ou por qualquer meio, sem a autorização prévia e por escrito da instituição. A violação dos Direitos Autorais (Lei nº 9.610/98) é crime estabelecido pelo artigo 184 do

Código Penal.

Impresso no BrasilPrinted in Brazil

2016

rev Revista da Academia Goiana de Letras. n.31 / Academia Goiana de Letras – AGL. – Goiânia: Kelps, 2016.

242p.

ISBN: 978-85-400-1939-3

1. Poesia. 2. Prosa. 3. Revista. I. Titulo

CDU: 821:(051)-1

CIP – Brasil – Catalogação na FonteBIBLIOTECA PÚBLICA ESTADUAL PIO VARGAS

A Academia Goiana de Letras não se responsabiliza por ideias expressas pelos autores nos textos publicados na Revista.

Page 5: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

SUMÁRIO

Lêda Selma de AlencarApresentação ............................................................................................................. 7

ESTUDOSAlaor BarbosaA literatura e o Partido Comunista do Brasil em Goiás nas décadas de 1940 e 1950 .............................................................................................................. 11Antônio César Caldas PinheiroDom Antonio Ribeiro de Oliveira – Arcebispo Emérito de Goiânia .............. 35Brasigóis FelícioUm poeta incomum ............................................................................................... 49Itaney F. CamposZequinha, sua gaita e as oligarquias goianas ....................................................... 53José FernandesA terceira margem do silêncio .............................................................................. 62

Maria Augusta de Sant’Anna MoraesOs primeiros memorialistas das terras do Anhanguera .................................... 89Martiniano J. SilvaOrigens, conceito e sistemas racistas ................................................................. 108Miguel JorgeNelly Alves de Almeida: a estrutura fundamental da literatura feita em Goiás, em dez movimentos, como se fossem sinfonia de palavras, na vasta lentidão do tempo ............................................................................................... 114Nasr Fayad ChaulCatalão e a República do trem de ferro ............................................................. 131

ROMANCEEdival LourençoCenas de uma negociação ................................................................................... 155

CONTOSHélio MoreiraRosa Amélia, a que faz o sereno cair da flor ..................................................... 171José Mendonça TelesO homem ............................................................................................................... 180

Page 6: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

Maria do Rosário CassimiroA sucuri .................................................................................................................. 183Ubirajara GalliMonólogo vermelho ............................................................................................. 185

CRÔNICASGetulio Targino LimaConfidências da sinceridade ............................................................................... 191Lêda SelmaEstresse Divino ..................................................................................................... 194Luiz de AquinoA crônica, modo de fazer .................................................................................... 198

POEMASAugusta FaroSinete ...................................................................................................................... 203Derlemando VieiraBalada de um homem só ..................................................................................... 204Geraldo Coelho VazO circo .................................................................................................................... 208Iúri RIncon GodinhoSem sexta ............................................................................................................... 209Moema de Castro e Silva OlivalPoema-síntese da estética de Proust .................................................................. 210Paulo Nunes BatistaTeu nome ............................................................................................................... 212Ursulino Leão(Salmo) 43 ............................................................................................................. 213

ANO CULTURAL BARIANI ORTENCIOLena Castello BrancoSessão comemorativa do Ano Cultural Bariani Ortencio ............................... 217

Relatório de Atividades – 2016 ........................................................................... 223

Acadêmicos: Cadeiras - Patronos - Titulares .................................................... 229

Page 7: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

7

APRESENTAÇÃO

A Revista da Academia Goiana de Letras, já não fosse exigência estatutária, seria um apelo natural da Instituição, pois trata-se de um acervo de memórias, haja vista ser a guardiã de sua história, contada em prosa, verso e imagens fotográficas. Publicá-la, uma das propostas da atual Diretoria.

As dificuldades conhecidas por nós, acadêmicas e acadêmicos, cavaram um enorme hiato temporal (10 anos) e impediram a Revista de seguir seu caminho, tanto como difusora das atividades da AGL e dos feitos literários dos acadêmicos, quanto como promotora de intercâmbio com outras academias, universidades, entidades culturais. Felizmente, embora muitas dessas dificuldades ainda persistam, a Revista renasce, agora, modesta, pequena em tamanho, mas grande em conteúdo, e com a força e objetivo de suas antecessoras.

Muita perseverança e longas horas de trabalho foram necessárias. Nenhum empecilho ameaçou a realização do projeto. Todavia, sem a atuação marcante da Diretora da Revista, acadêmica Lena Castello Branco Ferreira de Freitas, e do empenho dos dedicados colaboradores, acadêmicos José Ubirajara Galli

Page 8: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

8

Revista da Academia Goiana de Letras

Vieira e Eurico Barbosa dos Santos, além, é claro, da participação, com textos, das confreiras e confrades, a Revista seria, apenas, espectro de sonho a vagar, uma vez mais, por nossa frustração. Portanto, aplausos e reconhecimento da Diretoria ao entusiasmo e determinação desse dinâmico trio que, em nenhum momento, abriu espaço ao desânimo.

Dois agradecimentos especiais pela ajuda imprescindível: à Regina Moessa, funcionária da AGL, aposentada há alguns meses, mas que não economizou esforços e boa vontade, ao perceber a inexistência de funcionários na Casa, e, assim, continua em atividade. À Dra. Cinthia Regina de Alencar que, voluntariamente, e em detrimento de suas tarefas pessoais, tem dado assistência ampla à AGL, além de colaborar para a publicação da Revista e feitura do Site, outra proposta da Diretoria, também concretizada.

A sensação de uma meta alcançada é a mais genuína recompensa. E esta Diretoria, em seu primeiro ano de mandato, sob as graças de Deus, unge-se com essa sensação para dar as boas-vindas ao número 31 da Revista da Academia Goiana de Letras! Que o Pai continue a abençoar-nos!

Lêda Selma de Alencar

Presidenta

Page 9: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

ESTUDOS

Page 10: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

10

Page 11: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

11

A literatura e o Partido Comunista do Brasil em Goiás nas décadas de 1940 e 1950

(Prática heroica e fim melancólico e dramático de uma filosofia de engajamento político de intelectuais, escritores e poetas marxistas, em Goiás.)

Alaor Barbosa

Prefácio poético

Começo esta nota contando uma curta história de amor. De tão bonita que é, não sei se devo dizê-la história ou estória. Vá lá: história. História da instantânea descoberta mútua de um rapaz e uma moça. Que se tornaram, a partir desse epifânico encontro romântico, ela, a mulher amada, a exata e perfeita companheira da truncada existência daquele talentoso moço que não alcançaria realizar-se; e ele, o homem amado, o homem da vida inteira (esperaram os dois) daquela mocinha independente e corajosa.

Desclieux Crispim, todos os que o conheceram proclamam ter sido um bom talento literário – uma legítima vocação de escritor. Escrevia contos. Que eu saiba, apenas alguns poucos foram publicados, presumo que em jornal. Ignoro qual. Talvez o jornal do Partido Comunista do Brasil de Goiás, O Estado de Goiás, que circulou nos últimos anos da década de 1940 e nos primeiros da de 1950. Não li nenhum deles. Não sei, portanto, se eram contos escritos com intenção de denúncia e de protesto, na linha da estética naturalista preconizada pelo marxismo nacional. Morto há mais de quarenta anos, nunca os amigos, nem os parentes, cuidaram de lhe reunir a produção literária em livro e publicá-lo. Não é hábito dos goianos, esse de parentes e amigos cuidarem

Page 12: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

12

Revista da Academia Goiana de Letras

da memória póstuma do falecido. Posso citar vários exemplos de vítimas da incúria goiana para com os seus mortos valorosos: Félix de Bulhões, Henrique Silva, Americano do Brasil, Guilherme Xavier de Almeida, José Xavier de Almeida Júnior, Haroldo de Brito Guimarães. O caso de Xavier Júnior é decepcionador: ele deixou um romance inédito depositado na Academia Goiana de Letras para ser publicado – pela Academia – depois da morte dele. A Academia cometeu o erro de não lhe cumprir essa disposição de última vontade, atendendo provincianas e estreitas razões alegadas pela família de Xavier Júnior.

Caso relativamente recente, eu me lembro de que nos primeiros dias após a morte de Haroldo de Brito amigos dele prometeram que diligenciariam lhe publicar em livro os poemas que deixou escritos. Nunca vi ou ouvi notícia de que essa justa promessa não tenha sido completamente esquecida. Esse é um dos traços negativos do caráter goiano, e que revela uma triste falta de autoestima coletiva.

Se Desclieux fosse mineiro, ou paulista, ou gaúcho, provavelmente os seus escritos inéditos já teriam sido, há muito tempo, reunidos em volume bem-editado, com informação biográfica e avaliação crítica. Atestam também amigos e admiradores de Desclieux Crispim que ele, além de literariamente talentoso, era um homem honesto, bom, coerente: portanto, um integral valor humano. Não o conheci. Durante a vida dele em Goiânia, eu era menino em Morrinhos; depois, por um ano, adolescente em Goiânia; em seguida, adolescente e jovem no Rio de Janeiro; os anos que ele residiu em Brasília, eu os vivi no Rio e, quando ele morreu, de morte bastante estúpida, aqui na Capital Federal, em 1960, eu, jornalista e candidato a voltar a ser estudante, ainda morava no Rio.

Page 13: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

13

Revista da Academia Goiana de Letras

Dizem que ele podia ter escapado ao infarto que o atacara, se tivesse sido atendido a tempo no hospital a que fora levado à pressa. No hospital, o atendimento tardou demais, por causa de tremenda e criminosa lerdeza burocrática. Contam que não foi por falta de pedir que o atendessem que ele veio a falecer. Esse pormenor agrava ainda mais a delituosa incúria da gente do hospital.

Mas não é da morte e sim da vida de Desclieux Crispim que eu quero falar. De um momento da sua vida. Talvez o mais importante. Aquele – repito – em que ele achou a mulher amada, realizando o grande milagre, raríssimo, referido em um mito de Platão, do homem que se completa ao recuperar a sua metade perdida-e-procurada.

Outros poderão contar melhor esse episódio tão bonito da vida de Desclieux Crispim. Tendo sido a personalidade que muitos dizem que ele foi, Desclieux merece ser biografado algum dia. Isso pode vir a acontecer, mesmo em um ambiente cultural avesso à generosidade das biografias. E a biografia que dele se escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora.

Um dia, acho que de manhã, estava o jovem estudante comunista do Liceu de Goiânia (o Liceu e a Faculdade de Direito constituíam os dois principais centros de discussão e atuação política da juventude de Goiânia naquela época), Desclieux Crispim, parado à porta do Grande Hotel, na Avenida Goiás, quando viu descendo a avenida uma linda moça que ele não conhecia. Ela também o viu (e ela também era comunista? Não sei. Acho que sim). E os dois, olhando nos olhos um do outro, em êxtase de um mútuo embelezamento entusiástico que os fazia

Page 14: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

14

Revista da Academia Goiana de Letras

andar suspensos do chão, encontraram-se e se deram as mãos, e, transportados a indizíveis páramos desconhecidos, continuaram a andar, mãos dadas, definitivamente adunados.

Isso aconteceu talvez em 1949. Ou em 1950. Viveram juntos até que a morte de Desclieux os separou.

O grupo do Partido Comunista

Foi Élbio de Brito Guimarães – um dos homens mais sensíveis e honestos que conheci até hoje – quem me narrou, durante um dos nossos longos diálogos na prisão em 1964, esse tocante acontecimento lírico. Ao ouvir a narração de Élbio, exclamei, com uma ponta de inveja (sempre fui um incurável romântico) de Desclieux: Que beleza! Uma beleza que se realçava mais ainda pelo fato de que aquele episódio aconteceu numa terra então impropícia a tais comportamentos poéticos. Dois jovens se descobrirem um ao outro assim, num maravilhoso feito de almas predispostas ao milagre do amor, no momento em que se viram pela vez primeira, era caso impensável numa cidade onde o amor ainda esbarrava em multimilenares defesas de preconceitos e ritos: entrega, só no casamento contratual sacramentado em igreja. Vi nesse acontecimento, protagonizado por dois jovens estudantes da recém-nascida Goiânia, um valor simbólico da alma poética e da consciência ética de uma notabilíssima geração de rapazes e moças que desabrochavam (permitam-me o lugar-comum) numa pequenina capital do sertão brasileiro.

Essa geração, posterior a 1930, convivia com outra, mais velha, no âmbito de um mesmo grupo – o do Partido Comunista do Brasil de Goiás. As duas gerações se imbricavam. A mais

Page 15: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

15

Revista da Academia Goiana de Letras

idosa era constituída de homens e mulheres nascidos bem antes de 1930. O mais velho deles era o poeta, contista e romancista Bernardo Élis, nascido em 1915; o segundo mais velho, o poeta, contista e romancista José Godoy Garcia, de 1918; um poeta que não escrevia, apenas vivia, Alberto Xavier de Almeida, nascera em 1922. Do sênior Bernardo Élis ao júnior da turma, Élbio de Brito Guimarães, mediava uma distância de cerca de vinte anos – quase uma geração, se se considera de vinte e cinco anos o espaço que separa uma geração da outra.

Nenhum deles nascido em Goiânia; mas em Goiânia reunidos logo depois de tornar-se Capital do Estado. Goiânia naquela quadra fulgurava na mente de toda a gente goiana (e mesmo de fora de Goiás) como o lugar para onde inevitavelmente deviam convergir indivíduos e famílias desejosos de se instruir e se educar e progredir na vida. Resplendente foco de luz que surgiu inesperadamente e subitamente entre grandes matas, extensos cerrados e retorcidos campos na região sul do Estado, Goiânia atraía ambiciosos e esperançosos: homens e mulheres aspirantes a ganhar dinheiro ou realizar poesia – poesia no estilo de viver, ou escrita ou falada. Goiânia se tornou, muito depressa, a cidade que mais crescia no Brasil. Dizia a notícia – propagada em Goiás todo, de cidade em cidade, de esquina em esquina, de casa em casa, de rodinha em rodinha –: “Em Goiânia se constroem nove casas por dia!” E o interlocutor ficava de olho parado, imaginando aquilo… Nove casas por dia! A boa fama de Goiânia alcançava todo o Brasil. Quando saiu da prisão, que durou onze meses de ingênua passividade, Graciliano Ramos (foi a viúva dele que me contou, em Goiânia, na casa de Janaína Amado, filha de James Amado), quis mudar-se para Goiânia, pois não gostava de cidade grande (ele estava no Rio de Janeiro) e ouvira falar que Goiânia era

Page 16: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

16

Revista da Academia Goiana de Letras

uma cidade de muito futuro. Um outro comunista – fundador do partido –, aliás, Cristiano Cordeiro, para escapar de perseguições veio morar em Goiânia, não me lembra em que ano do decênio de 1940. Foi bem acolhido pelo Interventor Pedro Ludovio Teixeira, que o nomeou professor do Liceu de Goiânia. Goiânia seguia, assim, a tradição de homiziar perseguidos políticos. A família Barros Loyolla descende, em Goiás, de um revolucionário da Revolta Praieira, de Recife, que para cá fugiu à repressão contra os participantes dessa revolta. E o famoso Doutor Sabino, da célebre revolta batizada com o nome dele, a Sabinada, que ocorreu na Bahia no final da primeira metade do século XIX, também se escondeu da perseguição policial contra ele aqui em Goiás, antes de internar-se, bem mais para longe, em Mato Grosso. Aquele pequeno bando – inteligente, ruidoso, sofrido, corajoso e heroico, desprendido e abnegado e por isso admirável – que era o Partido Comunista de Goiás, foi, durante quase vinte anos, a alma e o coração de Goiânia: o motor das mais importantes mobilizações políticas e intelectuais coletivas que aconteceram na “Capital Caçula” do Brasil; e por isso mesmo se salientava como uma das seções estaduais do Partido mais atuantes, mais valentes, mais aguerridas no esforço e atuação de desferir murros-em-ponta-de-faca contra a ordem social e jurídica estabelecida. Ordem que eles certamente consideravam antes uma desordem estabelecida, como disseram o francês Mounier e o brasileiro Euclides da Cunha.

O Partido Comunista do Brasil de Goiás compunha um feixe de perfeitíssimas contradições. Um partido de operários numa terra onde não existiam manufaturas. O único operário do Partido, recrutado entre gráficos, mandado estudar na União

Page 17: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

17

Revista da Academia Goiana de Letras

Soviética, voltou uns dois anos depois me parece (ele nunca foi explícito a respeito desse ponto nos nossos diálogos) que meio desiludido do regime que conheceu lá. Um partido de camponeses (vocábulo estranho ao meio cultural goiano) revolucionários numa terra onde só existiam roceiros e tabaréus broncos e analfabetos. Alguns roceiros se tornaram militantes do Partido a partir da resistência de Formoso e Trombas e, assim, suponho, “desligaram-se da produção”, como se dizia no jargão do Partido. Um partido dominado por intelectuais, jornalistas, escritores e poetas de classe média, porém de origem social e economicamente mais ou menos latifundiária (ou feudal, como se dizia no mesmo jargão), senão nas posses, ao menos na mentalidade.

Bernardo Élis pertencia à família Fleury Curado, de Corumbá – e dizer isso diz tudo; José Godoy Garcia nasceu em uma família de um povo afazendado no município de Jataí; Alberto Xavier de Almeida era neto do Coronel Hermenegildo Lopes de Morais, o maior latifundiário do estado de Goiás na sua época; o pai dele fora Presidente do Estado e se casara com uma filha do Coronel Hermenegildo e em consequência se tornara um poderoso latifundiário no município de Morrinhos; Haroldo de Brito Guimarães era filho de Francisco de Brito Guimarães, um dos próceres da UDN – partido que mesclava elementos, bacharéis principalmente, representativos do pensamento democrático liberal com elementos da reação conservadora, fazendeiros e capitalistas integrantes do “poder latifundiário” e do “poder financeiro”. Todavia, note-se que Francisco de Brito salvava-se em parte do “abismo reacionário” quase unânime em que se converteu a UDN, quase completamente dominada por um agressivo e furibundo jornalista e vereador (e, no fundo,

Page 18: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

18

Revista da Academia Goiana de Letras

visceral aspirante a escritor, que não conseguiu ser integralmente) e deputado fluminense-carioca a partir de 1954.

A pequena, bucólica e retilineamente moderna Goiânia, desenhada pelo comunista Atílio Corrêa Lima, com os seus cinco dez, vinte, trinta, quarenta mil habitantes dos anos 1940 e da primeira metade dos anos 1950 do século XX; essa Goianinha tão estremecida que esperneava ousadamente para não ser provinciana; essa Goiânia que, conforme expressou meu grande e inesquecível amigo José Leão Filho, foi uma espécie de “reação do sertão contra si mesmo”; aquela capitalzinha quieta e sossegada só largava de ser quieta e sossegada, só via turbada a sua paz-de-domingo, nos momentos em que os rapazes e as moças ainda adolescentes, juntamente com os homens e as mulheres já adultos, do Partido Comunista do Brasil, agitavam-na com o ardor e o alarido das suas ações desesperadas, angustiadas, impotentes, sonhadoras e generosas: desvairamentos de quem queria o impossível – consertar o mundo, salvar a Humanidade. Que belas aspirações!

Mas não posso me mostrar ingênuo nem fingir ignorar certas realidades. Por trás de toda ação idealista e de todo comportamento altruísta e abnegado, existe quase sempre uma distinta motivação íntima: a busca de um sentido para a vida e de um antídoto à solidão. Os jovens do decênio de 1940 – aqueles que viviam em cidades, pertenciam principalmente à classe média e eram suficientemente instruídos –, no mundo inteiro, eram muito angustiados. A angústia é um sentimento que ataca homens e mulheres em quase todos os lugares em todas as épocas: ela provém, em parte, do inevitável “sentimento trágico da vida” que deu título a um famoso livro do grande Miguel de Unamuno.

Page 19: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

19

Revista da Academia Goiana de Letras

Angústia: tédio: spleen: o sentimento da falta de sentido da existência, do ser, do Mundo, da Vida, da vida dos entes humanos. O “sentimento trágico da vida” costuma exacerbar-se nas ocasiões de maior estupidez dos homens: em época de guerra. Nos anos de 1940, esse terrível fator de angústia – a guerra – assolava o Mundo com os seus indizíveis e insuportáveis horrores e suas dilacerantes sequelas. A angústia individual e coletiva gerada pela Segunda Guerra Mundial está muito bem documentada na literatura produzida durante ela e depois dela. É ler os romances (a trilogia, que devia ser tetralogia, Os caminhos da liberdade), os contos, o teatro e os livros de filosofia de Jean-Paul Sartre; ver o cinema neo-realista da Itália, o cinema da nouvelle vague francesa.

No Brasil, um dos documentos literários da angústia da Segunda Grande Guerra é o romance O encontro marcado, de Fernando Sabino (sobre esse romance, dizia eu ao terminar a segunda leitura, em 1960, que o epílogo certo e verossímil seria que Eduardo Marciano desembocasse no marxismo engajador e solidário e não no catolicismo absenteísta e autossatisfatório).

Aqueles jovens rebeldes que infundiam heroica e abnegada vida ao Partido Comunista do Brasil em Goiás, sustentando-lhe as numerosas atividades rebeldes, não se engajaram na luta política pela Revolução apenas por amor à Humanidade: mas essencialmente por amor a si mesmos. Eles queriam salvar-se da angústia, do tédio, do sentimento trágico da vida, do sentimento do non sense da existência das coisas. Pensando que lutavam pela redenção da Humanidade, perseguiam um objetivo “sagrado”: a Revolução. Vistos a distância no tempo, eram todos alheios às verdadeiras realidades do mundo socioeconômico-político-cultural do Brasil, de Goiás e de Goiânia, incompatíveis com as

Page 20: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

20

Revista da Academia Goiana de Letras

quimeras que os embalavam. As ideias e os ideais que adotaram flutuavam então no ar das cidades do mundo. Eram ingênuos; na ânsia de pureza moral e na vocação para o martírio. E não viam os seus próprios erros. Alguns – uns mais, outros menos – só vieram a enxergar tais erros bem depois, por causa de acontecimentos ocorridos fora do Brasil e de Goiás, sobretudo na “pátria do socialismo”, a União Soviética. Falando em erros, penso na defesa do “partido único” como nova igreja dirigente e construtora da Parusia enfim chegada; no “centralismo democrático” dentro desse partido único; e, também, na apaixonada defesa que fizeram, por muito tempo, do implacável arquiditador Joseph Stalin. Eram bem-intencionados, quase todos eles – devemos admitir e constatar. Porém, boa intenção – bem sabemos – não impede erros nem assegura acertos. Tanto que, assim o diz um lugar-comum já bastante surrado, delas anda repleto o inferno.

Quadro das opções políticas da época

Para bem compreender aqueles quase todos jovens integrantes do Partido Comunista do Brasil, é preciso ver o quadro das opções políticas que se apresentavam aos povos e aos indivíduos nas décadas de 1930 e 1940. No Brasil, os caminhos abertos à opção e à participação política (essa, até 1945, quase toda na clandestinidade jurídica) eram estes: 1) socialismo revolucionário de caráter estalinista, representado pelos partidos comunistas vinculados ao Partido Comunista da União Soviética por intermédio de uma organização denominada Kominform; 2) socialismo revolucionário de caráter trotskista, representado pela IV Internacional Socialista, e que atuava paralelamente

Page 21: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

21

Revista da Academia Goiana de Letras

ao Partido Comunista; 3) socialismo democrático de caráter marxista, representado pelos vários partidos socialistas existentes em numerosos países, e de que era modelo o Partido Socialista espanhol, cujo estatuto, aliás, foi redigido pelo próprio Karl Marx; 4) socialismo cristão, na linha do pensamento do filósofo Emmanuel Mounier e dos padres-operários, um dos quais, o dominicano frei Thomas Cardonnel, viveu no Brasil em 1960. Eu o conheci, no Rio, no Convento dos Dominicanos do Leme. Por acaso. Fui conversar com frei Pedro Secondi, o abade do Convento, e ele me apresentou a frei Cardonnel. Acho que posso dizer que nos tornamos amigos. Há no meu livro Confissões de Goiás, editado em 1968 pela Editora Oriente, de Goiânia, um eloquente, comovido depoimento sobre ele; 5) democracia-cristã, semelhante ao trabalhismo britânico, de tendência socializante, na linha estabelecida pelas encíclicas do Papa Leão XIII e Pio XI e pelo cardeal francês Mercier, e cujos representantes leigos eram os filósofos Jacques Maritain e seus discípulos; 6) democracia capitalista, ou liberalismo burguês, de que era modelo o liberalismo da democracia norte-americana e da democracia britânica não trabalhista; 7) reação conservadora, de cunho católico, na linha do catolicismo tradicional do filósofo existencialista de direita, Gabriel Marcel; 8) reação conservadora fascista, que no Brasil se organizou no Partido Integralista, fundado e dirigido por Plínio Salgado.

Um período rico em acontecimentos

O período que vai da inauguração de Goiânia, em 1942, ao golpe político-militar de 1964, ou de 1942 a 1960, foi bastante rico em ações políticas e culturais em Goiás. Tentemos relacioná-los.

Page 22: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

22

Revista da Academia Goiana de Letras

1º) O “Batismo Cultural”, em 5 de julho de 1942, no qual se inaugurou o Cine Teatro Goiânia e se lançou o primeiro número da revista Oeste. O Batismo trouxe a Goiânia muita gente de fora de outros Estados, um numeroso grupo de intelectuais que desfrutavam de boa reputação nos respectivos campos de atuação.

2º) A fundação, durante o “Batismo Cultural”, da revista Oeste, que circulou em 23 números, embora se anunciasse mensal, não saiu regularmente. Vamos transcrever um trecho do depoimento de Oscar Sabino Júnior sobre essa revista: “É importante assinalar que do grupo da revista “Oeste” nasceu uma nova geração de escritores goianos. Esse pequeno núcleo, inicialmente formado por Bernardo Élis, José Décio Filho, Domingos Félix de Souza, José Godoy Garcia e outros, oriundos da revista “Oeste”, concorreu para a renovação de valores em nossos quadros literários. A abertura operada por esse grupo, em 1942, contribuiu para o rompimento com o sistema cultural dominante, embora seus propósitos só tempos depois viessem a consolidar-se”.

3º) A criação da Bolsa de Publicações Hugo de Carvalho Ramos pela Município de Goiânia, em 1944, na gestão do prefeito Venerando de Freitas Borges. A Bolsa começou a atuar com o livro de contos Ermos e gerais, de Bernardo Élis. Editou em seguida a Antologia goiana, de Veiga Neto; e em 1948, um dos mais importantes livros de poesia da literatura goiana, Rio do Sono, de José Godoy Garcia. Em 1954, Gente de rancho, contos, de Léo Godoy Otero.

4º) A redemocratização do Brasil em 1945, que restaurou a liberdade de criação de partidos políticos. Surgiram então vários novos partidos, correspondentes a forças sociais fortemente atuantes na sociedade brasileira: a União Democrática Nacional

Page 23: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

23

Revista da Academia Goiana de Letras

(UDN), no início um conjunto de correntes de esquerda e de liberais oponentes à ditadura do Estado Novo; o Partido Social Democrático (PSD), um partido muito heterogêneo, em que se mesclavam elementos progressistas, liberais, com elementos comprometidos com o regime político do Estado Novo, e cujas bases municipais eram principalmente poderosos proprietários rurais, tal como a UDN; o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), fundado por Getúlio Vargas e composto por representantes da ideologia política do trabalhismo de inspiração britânica; a Esquerda Democrática, que virou o Partido Socialista Brasileiro (PSB), em Goiás chefiado por Domingos Velasco; o Partido Social Progressista (PSP), fundado por Ademar de Barros, ex-interventor do Estado Novo em São Paulo; e, além de outros pequenos partidos, o Partido Comunista do Brasil, que dezessete anos depois se fracionaria em dois, o Partido Comunista Brasileiro, dirigido por Luís Carlos Prestes, e o outro, de Pedro Pomar e Maurício Grabois, que conservou o nome original e persiste até os dias atuais.

5º) As eleições de comunistas para o Congresso Nacional em todo o Brasil. Em Goiás, as de deputados à Assembleia Legislativa do Estado de Goiás.

6º) A proscrição, em 1947, do mesmo Partido Comunista do Brasil, com as cassações dos mandatos eletivos dos comunistas eleitos na onda da redemocratização de 1945.

7º) A atuação, daí em diante, clandestina e dissimulada, dos comunistas, os quais, em Goiás, eram os mais talentosos dos nossos intelectuais e artistas.

8º) A fundação e circulação por alguns anos, do jornal comunista O Estado de Goiás (nele, eu me lembro de ler, aos

Page 24: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

24

Revista da Academia Goiana de Letras

dez anos de idade, os proprietários rurais eram chamados de terratenentes…), dirigido e dizem que sustentado financeiramente pelo secretário-geral do Partido, Alberto Xavier de Almeida. Muita gente afirmava, maismente em Morrinhos, que Alberto acabou, em poucos anos, no jornal do Partido e na ajuda financeira a camaradas necessitados, com a herança recebida da mãe.

9º) A morte do jornalista Haroldo Gurgel, em 8 de agosto de 1953, assassinado, de dia, junto à Praça do Bandeirante, ao lado do Lord Hotel, por elementos de confiança de um destacado membro do Governo do Estado, o diretor do Departamento de Energia Elétrica, Pedro Arantes. A morte de Haroldo Gurgel foi aproveitada, poucos instantes depois que ocorreu, pelo Partido Comunista, para uma comovida movimentação popular contra o Governo do Estado. Os fatos ressoaram até mesmo fora do Brasil.

10º) A realização, em janeiro de 1954, em Goiânia, do Primeiro Congresso Nacional de Intelectuais. Dele participaram dois escritores estrangeiros muito importantes: o poeta chileno Pablo Neruda – um dos mais conhecidos intelectuais comunistas do mundo naquela época; e o romancista americano John dos Passos – o qual, deve-se depreender, ainda não abandonara os ideais socialistas que defendeu nos seus principais romances, quase todos, senão todos, já então traduzidos no Brasil. Dos brasileiros, o mais conhecido e mais ativo participante do Congresso foi Jorge Amado. E, pelo que eu sei e presumo, ele e o irmão James, também romancista, foram os principais organizadores do Congresso. Em que lugar da cidade se realizou? Quantos dias durou? Quais os escritores – de Goiás e de outros estados – que compareceram? Que temas foram discutidos? Que resoluções foram tomadas? Onde

Page 25: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

25

Revista da Academia Goiana de Letras

está a declaração final, que todo congresso costuma emitir? Onde estão os anais desse Congresso? As respostas a essas perguntas precisam ser conseguidas por nossos historiadores, especialmente os literários.

11º ) A organização, de 1954 a 1956, pelo Partido Comunista do Brasil, de Goiás, da resistência armada dos posseiros de Formoso e Trombas contra a tentativa de grileiros de lhes tomar as terras que possuíam. Desse movimento de resistência armada, participaram, em segredo, intelectuais e comunistas de Goiânia e de outras cidades goianas, não só para ministrar orientação política e ideológica, como também para fornecer armas aos posseiros. Desses, vários, adrede catequizados, se fizeram membros do Partido Comunista. O mais conhecido, José Porfírio, anos depois se elegeu deputado à Assembleia Legislativa de Goiás. Cassado o seu mandato em 1964, refugiou-se em vida clandestina, até se tornar, em 1972 ou 1973, um dos desaparecidos “sem deixar rastros” do regime militar-tecnocrático.

12º) A participação do poeta Haroldo de Brito Guimarães, em 1955, em Varsóvia, capital da Polônia, no Festival da Juventude, tradicionalmente organizado pela Juventude Socialista da União Soviética e dos chamados “países satélites”.

13º) A fundação, em 1957, e a circulação regular durante uns dois anos consecutivos, do Jornal Oió, fundado e financiado principalmente pela livraria (Av. Anhanguera, 79, endereço que não esqueço, pois ali iniciei a minha eterna relação com livrarias) denominada Bazar Oió, de um baiano, Olavo Tormim, que vivia e se casara em Goiás. O Jornal Oió merece ter uma reedição fac-similar, tal como as que se fizeram do jornal Matutina Meiapontense e da revista Informação Goiana.

Page 26: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

26

Revista da Academia Goiana de Letras

14º) A publicação, em 1958, no jornal Paratodos (em cuja redação eu conheci o poeta Afonso Félix de Souza), fundado no Rio de Janeiro por Jorge Amado, de um caderno dedicado à literatura goiana.

15º) A criação da Universidade Federal de Goiás, em 1960.16º) A criação e instalação, em 1962, pela Universidade

Federal de Goiás, da Imprensa Universitária, que representou a atualização de Goiânia em matéria de indústria gráfica e que pouco a pouco se foi convertendo, de moderníssima gráfica, em editora mais ou menos sintonizada com a produção intelectual de Goiânia.

17º) A criação, pela Imprensa Universitária, do jornal 4º Poder, com orientação francamente inovadora e reformista, revolucionária mesmo, não só em política como em artes. No 4º Poder se congregou bom número de intelectuais e escritores, muitos deles novos. (Da sua orientação política houve uma eloquente demonstração de que participei: a publicação de um artigo meu – “José Godoy Garcia, um poeta revolucionário” – sobre o livro Rio do Sono. Esse artigo, originalmente escrito para a agência de notícias cubano-mexicana “Prensa Latina”, que o publicara em Cuba, no México, na Argentina e na Argélia, contribuiu, em muito, para tirar a poesia de Godoy do injusto e errôneo esquecimento em que jazia sepultada).

Façanhas de corajosos e abnegados

Histórias de façanhas e ousadias dos comunistas de Goiânia naquele período heroico de 1940 a 1957 são inúmeras. Muitas ouvi eu contadas por Alberto Xavier, em Morrinhos. Durante

Page 27: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

27

Revista da Academia Goiana de Letras

dez anos de intermitentes confidências (convivíamos apenas durante as minhas férias de Rio de Janeiro, as quais eu passava invariavelmente na minha terra), Alberto me familiarizou com a história do Partido Comunista de Goiás, desde a fundação, em Goiandira, por Isaac Abrão. Muita história me contou também Élbio de Brito Guimarães, a partir – e principalmente durante ela – da nossa convivência de mais de duas semanas na prisão: na Escola General Fico, no 10º Batalhão de Caçadores de Goiânia. Outras muitas, narradas por Bernardo Élis e por José Godoy Garcia.

Eles pichavam muros, faziam comícios, distribuíam panfletos e exemplares do jornal do Partido (que editavam com sacrifícios fáceis de imaginar), enfrentavam a polícia em refregas sustentadas corpo a corpo, não se encolhiam e não se dissimulavam. Eram conhecidos na cidade. A casinha da redação e oficina do jornal do Partido, O Estado de Goiás, era um reduto de propaganda política comunista, de catequização marxista-leninista-estalinista, de resistência à repressão policial. Uma vez, acho que em 1953, meu irmão Eurico presenciou, casualmente, o poeta José Godoy Garcia correr da polícia; querendo escapar da iminente captura, Godoy Garcia escalou afobadamente um muro, e saltou do outro lado, e caindo no chão de mau jeito, quebrou a perna. Em outra ocasião, durante uma escaramuça direta com gente da Polícia, acho que na Praça Cívica (corrijam-me os que souberem o lugar e a data!), a mulher do Alberto Xavier, ela também comunista e filha de comunista, atirou-se sobre o corpo dele caído no chão para protegê-lo contra os tiros de fuzil que um soldado se aprestava para lhe desferir; e ela salvou a vida do marido. Contam de um comício do Partido na Praça do Bandeirante, no âmago do coração de Goiânia, em que Alberto Xavier fez um discurso que a todos

Page 28: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

28

Revista da Academia Goiana de Letras

pareceu inesquecível: acho que foi na campanha d “O petróleo é nosso”. Alberto Xavier adquiriu, nessa fase da sua vida, fama de corajoso e eletrizante orador, um dos melhores de Goiás – ele que era irmão de dois oradores considerados eloquentes, Guilherme Xavier de Almeida e José Xavier de Almeida Júnior. Depois que abandonou o PC, em 1957, Alberto nunca mais proferiu um discurso, eclipsando-se na obscuridade e num indiferentismo muito mais boêmio do que filosófico.

O PCdoB e a literatura em Goiás

As principais criações literárias, de Goiás, de 1940 a 1960, foram feitas por essas consciências comunistas. Nelas, os autores se empenharam em realizar a concepção literária marxista de um realismo ou naturalismo denunciador de problemas sociais e de protesto contra injustiças. (Nesse naturalismo foram eles precedidos por um escritor goiano que escreveu mais no Rio de Janeiro e que morreu – um ano antes de se fundar o Partido Comunista no Brasil, em 1922 – muito jovem: Hugo de Carvalho Ramos. Isso pode ser conferido no pequeno romance Gente de gleba, que integra, com uma maioria de contos, o livro Tropas e boiadas. Nessa narrativa, Hugo se apresenta quase panfletário ao denunciar a violência da organização latifundiária de Goiás. Terá ele sofrido alguma influência do maximalismo (tradução vernácula de bolchevismo) que, por volta de 1915 chegava ao Brasil? É lícito e lógico presumir que, se Hugo tivesse sobrevivido a si mesmo e alcançado os quarenta, cinquenta anos de idade, teria talvez radicalizado suas denúncias da iníqua (des)ordem social brasileira. Ele não era mais velho do que Graciliano Ramos.)

Page 29: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

29

Revista da Academia Goiana de Letras

Literatura escassa em quantidade, mas de considerável qualidade em ao menos dois casos, na década de 1940: Ermos e gerais e Rio do Sono. Ermos e gerais, o livro de estreia de Bernardo, representa, com a mais franca e chocante crueza naturalista, a realidade do sertão goiano, tecida de violências e injustiças, de ignorância e atraso, de exploração e opressão. Na década seguinte, Bernardo Élis escreveu quase todos os seus demais livros de ficção e poesia: Primeira chuva, O tronco, A terra das carabinas, presumo que Caminhos e descaminhos e Veranico de janeiro. Em todos eles, uma objetiva denúncia das opressivas relações entre as classes sociais na sociedade sertaneja de Goiás, particularmente dentro dos latifúndios que a Bernardo, assim como a Hugo de Carvalho Ramos, provocavam indignação e revolta. Por essas notáveis e chocantes características, são a um tempo paradigmáticos e inexcedíveis o romance O tronco e o conto A enxada, que integra o livro Veranico de janeiro – o mais original e permanente livro de Bernardo Élis.

A mesma intenção e tônica de denúncia e protesto existe, candente, na poesia – Rio do Sono – e, menos explícita, no romance primeiro e único – O caminho de Trombas –, de José Godoy Garcia. O caminho de Trombas, escrito com bastante vagar e somente publicado em 1966, no Rio de Janeiro, quando Godoy já não pertencia ao Partido Comunista, mas do qual conservava relações de amizade que explicam a edição do livro por uma editora, a Civilização Brasileira, politicamente engajada, do Rio. Nos livros seguintes, a poesia de Godoy se especializa numa espécie de lirismo e bucolismo com que o poeta enxerga e canta tipos humanos e coisas do sertão, da zona rural, dos pequenos burgos, numa visão panamorosa do mundo e da vida. Principalmente em Araguaia mansidão (que eu datilografei em 1971), muito bem-

Page 30: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

30

Revista da Academia Goiana de Letras

elaborado, maduramente realizado, e que aprofunda tendências e aspectos da poesia de Rio do Sono: o lirismo, repito, panamoroso que Haroldo de Brito, meio brincando, julgava essencialmente cristão… (a brincadeira residia no paradoxo de ser José Godoy Garcia um poeta materialista, marxista ortodoxo (se o estalinismo puder ser considerado uma espécie de ortodoxia). Nos poucos poemas de Haroldo de Brito que eu conheço, noto um esforço de expressar uma visão humanitária e solidária do Homem com uma percepção lírica da realidade e de equilibrar protesto com lirismo; estou me referindo aos poemas “De um modo patético” e “Canto a Nikos Belloyanis”. Por se encontrarem esparsos e, por enquanto, perdidos os poemas de Haroldo, não se tem deles uma visão de conjunto. Uma pena!

Presumo que, quando se desencantaram do Partido Comunista, aí por volta de 1956, esses escritores e poetas muito sofreram. Sobretudo com o remorso de terem malbaratado muito do irrecuperável tempo em errôneas ações e em enganos intelectuais e políticos. Muita energia criadora desperdiçaram eles em atividades que subitamente se revelaram inúteis. Grande parte dessa energia, de caráter braçal: em pichações de muros e paredes. Aqueles talentos perderam muito tempo “de semear”, como diria Carlos Drummond de Andrade.

É preciso conhecer bem esse período histórico

Tudo isso precisa ser contado, estudado, memorizado. Eu gostaria que esta nota deflagrasse um esforço – um processo – plural, cooperativo, de busca de conhecimento mais extenso e mais profundo desse período muito importante

Page 31: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

31

Revista da Academia Goiana de Letras

da evolução e desenvolvimento da literatura goiana, ou, se se preferir (e muitos são os que preferem), da literatura brasileira elaborada em Goiás. Um espaço de tempo de vinte e dois anos. Com mais rigor, pode-se notar uma fase dentro desse período. Uma fase que se inicia em 1956 e se arremata em 1960. Foi quando a força ideológica dos intelectuais mais notórios do Partido Comunista entrou a diminuir e a arrefecer, por causa, principalmente, de dois acontecimentos. O primeiro, a divulgação, no mundo inteiro, do famoso “Relatório Kruschev”, de janeiro de 1956, em que foram denunciados oficialmente pelo mesmo Partido Comunista soviético os inúmeros e gravíssimos crimes e erros cometidos por Joseph Stalin.

No Brasil, o Partido Comunista, por decisão de Luís Carlos Prestes, proibiu o debate interno a respeito desse assunto. Uma ala que não aceitou essa proibição, chefiada por Agildo Barata, abandonou o Partido; e fundou um jornal (que não durou muito tempo), O Nacional – do qual, estudante no Rio, me lembro bem. Os membros desse grupo nunca mais se reencontraram consigo mesmos, me parece. (Dele fazia parte um goiano de Morrinhos, ex-tesoureiro do Partido durante muito tempo, Áulio Mendes Diniz. Eu o conheci no Rio, em 1957, procurando um novo caminho na vida. Ele vivera, até então, da ajuda-de-custo (não sei como se chamava – salário não era) que lhe pagava mensalmente o Partido e, de repente, viu-se desprovido de receita.

Em janeiro de 1957, o secretário-geral do Partido em Goiás, Alberto Xavier de Almeida, deu uma drástica, radical guinada na direção da sua vida: abandonou o Partido Comunista e tudo o mais em Goiânia e mudou-se para Morrinhos. Foi nessa ocasião que eu o conheci, junto à cerca do campo de futebol local. Fazia um ano que, morrendo-lhe o pai, recebera a segunda metade da sua valiosa

Page 32: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

32

Revista da Academia Goiana de Letras

herança. Alberto foi morar no Sobrado, o sólido e respeitado Sobrado construído pelo avô, o argentário Hermenegildo Lopes de Moraes. Naquele auto-exílio morrinhense, ele espalhava a impressão de que sua vida perdera o sentido. Repartia o tempo em ler Carlos Drummond de Andrade e Vinicius de Moraes, andar de córrego em córrego, de ribeirão em ribeirão e de rio em rio em pescarias regadas a cerveja e cachaça, em discutir futebol em bares e esquinas (era torcedor do Vasco da Gama, do Rio de Janeiro), bebendo sempre. Ele se sentia a maior parte do tempo (disse-me um dia), “um carioca exilado em Morrinhos”. Seu viver quotidiano era uma autofágica dispersão de energias, interesses, empenhos: ele se desgastava e se consumia, perigosamente, melancolicamente, tragicamente.

Ação semelhante – sair de Goiânia, mudar de cidade e de propósitos na vida – escolheu e fez José Godoy Garcia. Percebendo na construção de Brasília uma ótima oportunidade para se recuperar do tempo perdido em não trabalhar para ganhar dinheiro, montou banca de advogado na nova capital que se construía em ritmo aceleradíssimo, e ausentou-se de toda atividade partidária.

O golpe definitivo na ideia e ação de engajamento político revolucionário daquele grupo partidário foi desferido pelo poeta Haroldo de Brito Guimarães, em 1960. Ato varonil – intelectualmente honesto, moralmente corajoso, politicamente coerente: veiculou em um ou em mais de um jornal de Goiânia uma nota assinada por ele em que publicava não ter, doravante, nenhuma relação ou vínculo (não conheço a nota) com o Partido Comunista do Brasil. Embora individual, esse ato de Haroldo de Brito Guimarães assinalou uma desistência política – um

Page 33: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

33

Revista da Academia Goiana de Letras

desencanto ideológico das duas gerações surgidas depois da revolução soviética de 1917. O sentimento revolucionário que impulsionara a maioria dos intelectuais e artistas comunistas de Goiás entrou em processo terminal de morte. Com as “defecções” ou “deserções” (notem bem as aspas) de Alberto Xavier de Almeida, José Godoy Garcia, Haroldo de Brito Guimarães e mesmo de Bernardo Élis, principiou a encerrar-se, tristemente, um ciclo da influência do ideário marxista sobre a vida intelectual de Goiás.

Bernardo Élis e José Godoy Garcia publicaram mais livros do que antes, sem abandonarem o protesto e a denúncia; mas se comportando, com cautelosa dissimulação, ou simplesmente calando opiniões políticas e procurando apresentar-se publicamente como “literatos puros”, sem a antiga eiva ideológica. A colaboração no processo revolucionário (na acepção marxista de revolução) passou a fazer-se quase metaforicamente. A influência do pensamento marxista, com sua estética, quis readquirir força e influência no curto período de intensiva mobilização e libertação de forças sociais transformadoras que foi o governo de dois anos e meio de João Goulart. Em Goiás, o influxo federal foi fortissimamente coadjuvado pelas instigantes atuações do governo estadual de Mauro Borges Teixeira e da administração – agudamente criadora e positiva – do reitor da Universidade Federal de Goiás, Colemar Natal e Silva.

Apareceu nova safra de jovens revolucionários. Quase todos produtos do entusiasmo infundido em almas e consciências pela Revolução dos Jovens Barbudos de Cuba. Esse entusiasmo achou ambiente propício para atuar no breve, mas intensivo, período do Governo João Goulart. Parecia que tinha chegado também

Page 34: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

34

Revista da Academia Goiana de Letras

para o Brasil a hora da Revolução redentora da Humanidade. Muitos intelectuais, escritores e poetas que emergiram com essa safra se organizaram dentro dos “centros populares de cultura”, filhotes do Centro Popular de Cultura, da UNE, do Rio. Eles não tiveram, contudo, tempo para produzir literatura de acordo com as regras e sugestões da “cultura popular”. Em abril de 1964, aconteceu o terrível impacto mortal do Golpe. Os marxistas e seus assemelhados, assustados com o impacto de uma violência que já não esperavam (os partidos de esquerda viviam uma espécie de legalidade de fato) refluíram para posições de extrema prudência e autodefesa, e todos abandonaram os preceitos da “arte popular”.

Page 35: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

35

Dom Antonio Ribeiro de OliveiraArcebispo Emérito de Goiânia

Antônio César Caldas Pinheiro

As datas marcantes da existência de um indivíduo são oportunidades importantes para celebrarmos a vida e proclamarmos os feitos que porventura tenha realizado. Celebrar a vida das pessoas que se consagraram ao serviço de Deus, amando o bem e a justiça, é testemunhar a graça divina que age e impulsiona os que, arrostando todos os percalços e indiferentismos desse mundo, perseveram na missão para a qual o Senhor os escolheu: “Não fostes vós que me escolhestes; ao contrário, Eu vos escolhi a vós e vos designei para irdes e dardes fruto, e fruto que permaneça” (João 15:16). O Criador é sempre mais louvado nos atos praticados em seguimento ao Seu Filho e o exercício quotidiano da vivência evangélica é luzeiro a atrair os homens e mulheres de boa vontade para as fileiras daqueles que pelejam pela construção do Reino de Deus.

Os noventa anos de Dom Antonio Ribeiro de Oliveira, arcebispo emérito de Goiânia, é momento propício para proclamarmos as ações de Deus por meio de seu ministro ordenado. Sua história de vida é permeada por abundantes graças, que devem ser proclamadas para a honra e glória Daquele que o escolheu do meio de seu povo e o constituiu sacerdote.

Este relato resumindo a vida laboriosa de Dom Antonio, desde o nascimento em Orizona aos dias atuais, não quer outra coisa a não ser, lembrando Santa Terezinha do Menino Jesus,

Page 36: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

36

Revista da Academia Goiana de Letras

cantar o que se deve cantar eternamente: As misericórdias do Senhor (Salmos 89:1).

Família

A família é um fundamento indispensável para a sociedade e os povos, assim como um bem insubstituível para os filhos, dignos de vir à vida como fruto do amor, da entrega total e generosa dos pais. Como pôs em evidência Jesus, honrando a Virgem Maria e São José, a família ocupa um lugar primário na educação da pessoa. É uma verdadeira escola de humanidade e de valores perenes. Ninguém se deu a vida a si mesmo. Recebemos de outros a vida, que se desenvolve e amadurece com as verdades e os valores que aprendemos no relacionamento e na comunhão com os demais (Papa Bento XVI).1

Dom Antonio Ribeiro de Oliveira é oriundo de uma família profundamente cristã e honrada de lavradores do município de Orizona, a antiga Campo Formoso, cidade que fora conhecida, primeiramente, por “Capela dos Correias”. Sua família é pioneira do município, estando, inclusive, ligada à mudança do primitivo nome da localidade.

Conta-nos o historiador Olímpio Pereira Neto2 que o Padre Simeão Estilita Lopes Zedes, parente da família de Dom Antonio, indo em visita a eles que residiam na fazenda “Pontinhas”, admirou-se com a paisagem da região, formada por campos quase sempre cobertos com “capim do cacho branco”. Celebrando missa na capela do lugar, sugeriu que o nome “Capela dos Correias” 1 Cf. Homilia na Santa Missa por ocasião do V Encontro Mundial das Famílias, Valença, 9 de julho

de 2006. 2 PEREIRA NETO, Olímpio. Orizona, Campo e Cidade. Orizona, S/E, 2019, p. 159.

Page 37: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

37

Revista da Academia Goiana de Letras

fosse mudado para “Campo Formoso”, nome mais bonito e de forte apelo local. Dessarte, a “Capela dos Correias” passou a ser conhecida por Campo Formoso, nome que perdurou até 1944, quando foi mudado para Orizona.

Dom Antonio nasceu na fazenda Pontinhas, distante nove quilômetros da sede municipal, a 10 de junho de 1926, filho de José Ribeiro de Oliveira e Luíza Marcelina de Castro, casal unido, temente a Deus, que chegou a comemorar 62 anos de feliz união matrimonial, criando dez filhos: João Batista Ribeiro, Maria Ribeiro de Oliveira, Irmã Geralda Ribeiro de Oliveira (salesiana), Ana Maria Ribeiro, Irmã Maria Luíza Ribeiro de Oliveira (salesiana), Manoel Ribeiro de Oliveira, Antonio Ribeiro de Oliveira, Irmã Terezinha Ribeiro de Oliveira (carmelita), Luzia Ribeiro de Oliveira (falecida com a idade de cinco anos), e Afonso Ribeiro de Oliveira. Dom Antonio, foi, portanto, o sétimo filho de uma prole de dez, e começou, ainda criança, como costume naquele tempo, a auxiliar a família nos trabalhos do campo, cuidando das plantações diversas, de arroz, café ou milho, campeando vacas pelos pastos da fazenda de seus pais ou como “candeeiro”3, conduzindo o velho carro de boi da família pelas estradas sertanejas de Orizona. De seus pais, Antonio herdou a piedade e o temor de Deus, acrisolando em seu pequeno coração de menino os mais caros valores cristãos.

José Ribeiro de Oliveira, juntamente com sua esposa e filhos, participava das principais celebrações da paróquia de Orizona. Homem morigerado, auxiliava a vida paroquial no que fosse necessário. Aos vizinhos de fazenda, prestava zelosa assistência,

3 Há, também a variante “candieiro”. Indivíduo que, armado de vara de ferrão, segue à frente da junta de bois. Cf. ORTENCIO, Bariani. Dicionário do Brasil Central, Goiânia, 2ª edição, Insti-tuto Brasil de Cultura, 2009, pp. 154 e 155. Geralmente, nas comitivas familiares, os filhos mais novos desempenhavam essa função.

Page 38: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

38

Revista da Academia Goiana de Letras

principalmente em caso de enfermidade. Sem se descurar da assistência religiosa à sua numerosa família, pela dificuldade de locomoção à época. Dona Luíza, sua esposa, era a catequista dos filhos, ensinando-lhes os primeiros passos da vida cristã.

Primeiros Estudos

Em Orizona, Antonio iniciou os estudos com o tio materno, Samuel Fernandes de Castro, na escola rural do lugar, constituída de uma única sala de aula, com alunos de diversas idades. Nessa escola, passou um ano aprendendo as primeiras letras, vivendo, é claro, os folguedos próprios da idade com os amigos e parentes da região, que também ali estudavam. O professor, como soía ocorrer naquela época, cuidava com afinco da disciplina dos alunos e, como advertência, pendurada em uma parede a temida palmatória, que o mestre quase nunca usava, por desnecessário, visto contar com a boa índole e obediência de seus alunos.

A Vocação para o Sacerdócio

A paróquia de Orizona, ainda que contasse com párocos residentes, era, de tempos em tempos, visitada pelos Missionários Redentoristas, filhos de Santo Afonso, do convento de Campininhas. Um desses missionários, o padre Nestor de Souza, despertou no pequeno Antonio, então com 8 anos, o desejo de ser padre. Na realidade, Nosso Senhor o chamava, e Sua voz poderosa despertava em Antonio o desejo de O servir. O Senhor o chamava, e sua resposta seria “sim”, um “sim” perseverante, decidido.

Page 39: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

39

Revista da Academia Goiana de Letras

Antonio Ribeiro repetiria com o profeta Jeremias a exclamação: Seduziste-me, ó Senhor, e deixei-me seduzir (Jr 20:7), e esse amor pelo Mestre seria para toda a vida, assumindo o chamado sem olhar para trás.

Seguindo seu coração, Antonio manifestou ao pai, o senhor José Ribeiro, o desejo de ser padre. Religioso como era, seu José assentiu ao desejo do filho. Apresentado a Dom Emanuel Gomes de Oliveira, então arcebispo de Goiás, esse prometeu que assim que fosse reaberto o seminário de Silvânia, ele seria chamado. Passados dois anos, o vigário da Paróquia de Nossa Senhora da Piedade, de Orizona, padre José Trindade da Fonseca e Silva, transmitiu ao vocacionado o chamado de Dom Emanuel para ingressar no Seminário Santa Cruz, em Silvânia. Era o ano de 1936. Em Silvânia, teve como colegas os alunos João Botelho, Isócrates de Oliveira e Nelson Rafael Fleury, que terminaram os estudos e se ordenaram presbíteros. Outros cinco colegas não lograram terminar os estudos: Lindolfo Louza Filho, José Nascimento, Alair, Geraldo da Paixão e Hermelindo de Siqueira.

Os Estudos Eclesiásticos

Os sete primeiros anos de estudos se deram em Silvânia e Mariana. Até que se concluísse a então chamada 6ª série, Antonio Ribeiro teve como reitores os padres Abel Ribeiro Camelo – goiano, que mais tarde seria bispo de Jataí e, posteriormente, da Diocese de Goiás; e José Lázaro Neves – mais tarde bispo de Assis, em São Paulo.

Seguindo os estudos, de 1943 a 1944, cursou Filosofia no Seminário Central da Imaculada Conceição, no Ipiranga,

Page 40: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

40

Revista da Academia Goiana de Letras

na capital paulista, sob o reitorado do padre Manuel Pedro da Cunha Cintra, mais tarde bispo de Petrópolis. Em São Paulo, o seminarista Antonio Ribeiro permaneceu dois anos, sempre aplicado aos estudos.

Terminado o curso de filosofia, retornou a Mariana para cursar Teologia no Seminário São José, durante quatro anos, de 1945 a 1948. Seu reitor era o padre José Lázaro Neves, que conhecera como reitor do Seminário Santa Cruz de Silvânia.

Ordenação Presbiteral e Ministério

No dia 02 de abril de 1949, em Mariana, das mãos de Dom Helvécio Gomes de Oliveira, arcebispo daquela arquidiocese e irmão de Dom Emanuel, recebeu a ordenação sacerdotal. Contava apenas 22 anos, mas recebera licença especial do Santo Padre Pio XII para sua ordenação antes da idade canônica. Retornando a Goiás, cantou a sua primeira missa em sua terra natal, na Matriz de Nossa Senhora da Piedade, a 5 de junho de 1949.

Assumindo as funções inerentes ao sacerdócio, no mesmo ano tornou-se coadjutor da Paróquia Nossa Senhora Auxiliadora de Goiânia, o primeiro templo religioso da nova capital, que existiu na Rua 19, nos fundos da catedral, onde hoje se encontra o Edifício Dom Abel.

Sempre pronto para o serviço, neste mesmo ano de 1949, foi professor de Latim e secretário da Faculdade de Filosofia de Goiás, recém- fundada por Dom Emanuel Gomes de Oliveira. Em 1950 foi nomeado reitor do Seminário Santa Cruz, em Silvânia, permanecendo no reitorado por 5 anos. Concomitante, atendia a

Page 41: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

41

Revista da Academia Goiana de Letras

paróquia de Vianópolis, juntamente com o padre Nelson Rafael Fleury, seu amigo e companheiro desde a época do seminário menor, e o padre José Lima.

Foi designado Cônego Honorário do Cabido de Mariana em 1954 e, em abril de 1955, o cônego Antonio Ribeiro de Oliveira retornou a sua terra natal, Orizona, nomeado vigário da Paróquia Nossa Senhora da Piedade. Permaneceria em Orizona até julho de 1957, transferindo-se para Goiânia a chamado de Dom Fernando Gomes dos Santos, primeiro arcebispo da recém-criada arquidiocese, para assumir o cargo de vigário da Catedral, a partir de 1º de agosto de 1957. Em 1958, elevado à dignidade de monsenhor, foi nomeado vigário geral da Arquidiocese de Goiânia, função que desempenhou até o ano de 1975.

Exerceu as funções de vigário da Catedral até setembro de 1961, tendo prestado inestimável contribuição para o término das obras da sé goianiense, que se arrastavam desde a época de Dom Emanuel.

Bispo Auxiliar de Goiânia

Em agosto de 1961, foi nomeado bispo titular de Arindela e Auxiliar de Goiânia, pelo Papa João XXIII, tendo desempenhado importantes missões nesse pastoreio, que exerceu por 14 anos. Foi ordenado bispo por Dom Fernando Gomes dos Santos, na Catedral de Goiânia, a 29 de outubro de 1961. Foram consagrantes, Dom Abel Ribeiro Camelo e Dom José Lázaro Neves, ambos reitores de quando fora seminarista. Foi pregador, Dom Hélder Câmara. Dom Antonio era, naquele momento, um dos mais novos bispos do episcopado católico.

Page 42: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

42

Revista da Academia Goiana de Letras

Esteve presente, em 1965, no encerramento do Concílio Vaticano II, participando de sua última sessão. Esse episódio nunca seria esquecido por Dom Antonio, deixando imorredouras recordações da epopeica demonstração de fé dos padres conciliares reunidos em torno do Santo Padre, chefe visível da Igreja Militante. Foi apresentado pessoalmente ao Santo Padre Paulo VI, durante a audiência concedida aos bispos latino-americanos, momento do qual não se recorda sem se emocionar.

Lembrando o Concílio que tanto bem fez à Igreja e ao mundo, Dom Antonio recorda sempre a impressão que lhe causou a presença dos 2.400 bispos reunidos na basílica de São Pedro, oriundos de todas as partes do mundo, de todas as raças e de todos os idiomas vivos. Naqueles dias emocionantes, a universalidade da Igreja Católica se comprovava em toda sua realidade, no episcopado mundial.

Totalmente devotado à Igreja, em 1966, com a morte de Dom Abel, bispo da Diocese de Goiás, foi designado para administrador apostólico daquela Diocese, sede primacial da Igreja Goiana. Nesse pastoreio, permaneceu por um ano, entregando a Diocese a Dom Tomás Balduíno, o novo bispo nomeado. Foi também administrador apostólico da Diocese de Itumbiara, após a morte de seu primeiro bispo, Dom José Veloso, administrando a Diocese de maio de 1972 a agosto de 1973, quando tomou posse o novo bispo Dom José Lima.

Em 1965, Dom Antonio foi escolhido para presidente do Conselho Estadual de Educação. Prestou inestimável serviço à Educação no Estado de Goiás, atuando no Conselho de Educação por duas décadas.

Page 43: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

43

Revista da Academia Goiana de Letras

Bispo de Ipameri

Em 19 de dezembro de 1975, o Papa Paulo VI nomeou Dom Antonio para bispo da Diocese de Ipameri. Sua posse se deu no dia 14 de março de 1976, contando com a presença de Dom Fernando Gomes dos Santos. De certa forma, o bom filho à sua terra retornava, já que Orizona é uma das muitas paróquias da Diocese de Ipameri.

Pastor zeloso, Dom Antonio imprimiu em seu pastoreio um cuidado especial pela formação do clero. Construiu o Seminário Maior da Diocese de Ipameri, Seminário Mater Eclesiae, inaugurando-o a 21 de abril de 1980, em cerimônia presidida por Dom Fernando. Esteve sempre junto ao seu rebanho, não poupando esforços para o progresso espiritual e o bem social da porção do povo de Deus a ele confiado.

Dom Antonio e Dom Fernando cultivaram sólida amizade, que foi crescendo à medida que passavam os anos. Dom Antonio, até a sua nomeação para bispo de Ipameri, esteve sempre ao lado de Dom Fernando, como vigário da Catedral, vigário geral da Arquidiocese e bispo auxiliar. Foram 18 anos na Arquidiocese de Goiânia, ao lado de Dom Fernando. A transferência para Ipameri não diminuiu os fortes laços que os uniam. Encontravam-se sempre, aconselhavam-se e cuidavam cada qual da missão que o Senhor lhes confiara.

Arcebispo de Goiânia

Em 1985, a Igreja de Goiânia se vestiu de luto pelo falecimento de seu primeiro arcebispo. Após a morte de Dom Fernando, Dom Antonio foi chamado pelo Papa João Paulo II

Page 44: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

44

Revista da Academia Goiana de Letras

para outra importante missão. No dia 30 de outubro de 1985, Dom Antonio foi nomeado arcebispo metropolitano de Goiânia, Igreja particular que conhecia como ninguém, não somente a sua história, mas também os frutos da evangelização, seus problemas e desafios.

Tomou posse da Arquidiocese a 12 de janeiro de 1986, em concorrida celebração realizada ao ar livre, em frente à catedral. Homem de oração e reflexão, Dom Antonio deu continuidade ao trabalho pastoral de Dom Fernando. Assumiu as CEBs, como eixo da caminhada pastoral da Arquidiocese, e apoiou em todos os sentidos a reunião do 6º Encontro Intereclesial de CEBs, realizada em Trindade, e que tinha sido assumida por Dom Fernando. Também deu continuidade às Assembleias Arquidiocesanas, organizando quatro delas durante o tempo em que foi arcebispo de Goiânia.

Teve especial carinho com o Seminário Santa Cruz, fazendo-se presente junto aos seminaristas e incentivando os estudos e a prática pastoral nas comunidades. Como resultado de sua atuação na formação de novos presbíteros, foram ordenados trinta e cinco padres durante seu episcopado.

Logo no início de seu pastoreio em Goiânia, com espírito desprendido e prenhe de ação evangélica, dom Antonio coordenou os trabalhos para a entrega de 526 lotes a famílias carentes que haviam invadido área pertencente à Arquidiocese, onde hoje se localiza o Jardim Dom Fernando.

Trabalhou sempre em sintonia com o clero, conclamando a todos e não poupando esforços para que a Igreja Arquidiocesana se posicionasse sempre em favor dos mais humildes.

Reformulou os Estatutos da então Universidade Católica de Goiás, contando, nesse talante, com a colaboração de seu vigário

Page 45: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

45

Revista da Academia Goiana de Letras

geral, padre José Pereira de Maria. Com isso, houve uma maior aproximação da Universidade com a vida pastoral da Arquidiocese.

Fato inesquecível foi a visita do Papa João Paulo II à Arquidiocese de Goiânia. Na tarde do dia 15 de outubro de 1991, João Paulo II presidiu a Celebração da Palavra e fez uma bonita reflexão sobre a comunidade eclesial. A vinda de João Paulo II à Arquidiocese confirmou a caminhada da Igreja do Regional Centro-Oeste. Dom Antonio se recorda emocionado daquele dia:

Tive a graça de como Arcebispo de Goiânia em 1991, receber a visita pastoral de São João Paulo II. Foi uma grande bênção para nós da Arquidiocese e para todo o Estado de Goiás. Lembro que o Regional Centro-Oeste havia pedido que, numa segunda viagem do Papa ao Brasil (a primeira acontecera em 1980), Goiás fosse contemplado com sua visita. E assim aconteceu. Por causa de uma agenda muito intensa, nossa capital o receberia por poucas horas. Aqui ficou estabelecido, pela comissão preparatória de viagem, que haveria uma Celebração da Palavra. Aprovado o roteiro, uma comissão organizada pelo Governo do Estado e pela Arquidiocese, começou, desde janeiro de 1991, os preparativos. Escolhido o local, na área externa do Estádio Serra Dourada, ali se montou todo o necessário para acolher Sua Santidade e para receber a multidão que o encontraria4.

No dia 15 de outubro, à tarde, chegou a Goiânia o Santo Padre, em voo especial, acompanhado de outro avião, que trazia a imprensa internacional. No avião papal, uma grande comitiva de membros da Cúria Romana e da CNBB.

4 PINHEIRO, Antônio César Caldas (org.). Dom Antonio: noventa anos. Goiânia: Editora da PUC Goiás, 2016, p. 31-32.

Page 46: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

46

Revista da Academia Goiana de Letras

Foi feito um desfile rápido do Aeroporto Santa Genoveva até o local da celebração, passando pela BR-153. Sua Santidade aparentava certo cansaço e pareceu um pouco apreensivo. Ao chegar à Praça fronteira ao Estádio, uma multidão, calculada pela Polícia Militar em 350 mil pessoas, aplaudia emocionada e frenética o ilustre visitante. Ao se deparar com aquele entusiasmo, João Paulo II se alegrou, toda aquela apreensão inicial se transformou em alegria. Era o pai feliz com a acolhida filial. Sua Santidade presidiu a Celebração e na homilia falou-nos sobre a Comunidade Eclesial. Foi uma grande exortação paternal que nos confortou e confirmou a caminhada5.

Arcebispo Emérito

Dom Antonio enfrentou lutas e inúmeros trabalhos, gastando-se pela causa do Reino. Serviu à arquidiocese de Goiânia até sua renúncia, aos 75 anos. No dia 8 de maio de 2002, foi anunciada a nomeação de Dom Washington Cruz para arcebispo de Goiânia. Dom Antonio entregou a Arquidiocese ao seu novo arcebispo no dia 14 de julho de 2002.

Retirando-se para a paróquia de Inhumas em julho de 2002, assistindo os paroquianos com dedicação e espírito de serviço evangélico, passou a exercer a sua vocação primeira, a de padre, junto do seu povo.

Retornou a Goiânia em 7 de setembro de 2012 e, como arcebispo emérito, continua a auxiliar a arquidiocese, seja na celebração de missas, aconselhamento pastoral e como pregador

5 Idem.

Page 47: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

47

Revista da Academia Goiana de Letras

de retiros. É reconhecido como exímio orador, tendo uma prodigiosa memória, enorme capacidade de síntese e organização de ideias.

Dom Antonio, do alto de seus 90 anos, não cantou o seu Nunc Dimittis. Incansável no trabalho na vinha do Senhor, coloca-se, com toda a sabedoria dos anos, a serviço do Reino, na pregação e vivência evangélicas. Sua visão profética é atualíssima. Esteve sempre do lado dos excluídos, por entender que o amor cristão é misericordioso e que a misericórdia é o rosto de Deus. Nisso está em perfeita sintonia com o Papa Francisco que, pela bula Misericordiae Vultus, proclamou o Ano Santo da Misericórdia.

O testemunho de Dom Antonio é semente fecunda que germina e frutifica na vida da Arquidiocese de Goiânia. Sua regra de vida pode ser resumida nestas palavras recolhidas pelo monsenhor Luiz Gonzaga Lobo6, palavras embebidas de fé perseverante e operosa:

Deixar de lado o serviço aos pobres é um contratestemunho. A doação aos pobres, a opção evangélica pelos excluídos é sempre o sinal que mostra, ao Brasil e ao mundo, a identidade da Igreja de Cristo. Precisamos repetir a prática da misericórdia. Misericórdia gratuita, imensa, inesgotável, como nas primeiras comunidades cristãs, que não tinham entre eles nenhum necessitado.

6 IN AGUIAR, Alaor Rodrigues de. (Org.) O Profeta de Bengala. Goiânia: Gráfica América, 2008, p. 100.

Page 48: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

48

Revista da Academia Goiana de Letras

Bibliografia

AGUIAR, Alaor Rodrigues de. (Org.) O Profeta de Bengala. Goiânia: Gráfica América, 2008.

__________. Memórias históricas de Dom Antonio Ribeiro de Oliveira – Homem de oração e comunhão, de fé e de atitudes. Goiânia: Editora..... 2015.

ORTENCIO, Bariani. Dicionário do Brasil Central. Goiânia, 2ª edição, Instituto Brasil de Cultura, 2009.

PEREIRA NETO, Olímpio. Orizona, Campo e Cidade. Orizona, S/E, 2019.

PINHEIRO, Antônio César Caldas (org.). 50 anos de vida episcopal de Dom Antonio Ribeiro de Oliveira. Goiânia: Editora da PUC Goiás, 2011.

__________. (org.). Jubileu de Prata da Ordenação Episcopal de Dom Washington Cruz 1987 – 2012. Goiânia: Editora da PUC Goiás, 2012.

__________. (org.). Dom Antonio: noventa anos. Goiânia: Editora da PUC Goiás, 2016.

Page 49: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

49

Um poeta incomum

Brasigóis Felício

Helvécio de Azevedo Goulart, ou simplesmente Helvécio Goulart, como assinava seus textos literários: eis um poeta marcado pela singularidade de uma linguagem que, sendo especialmente sua, é comunicável em sua universalidade, mesmo remetendo o leitor sensível a uma atmosfera lírica incomum, muito longe do trivial. Foi mantendo-se sempre igual a si mesmo, que esse mineiro de Itajubá construiu uma história literária em terras goianas, pontificando como dos maiores poetas brasileiros escrevendo em nosso rincão.

Seu currículo literário é vasto, expressivo. Mas foi ele também um homem público de destaque. Ocupou cargos públicos de grande responsabilidade, e em todos demonstrou grande valor e dignidade. Foi Ouvidor Geral do Estado de Goiás, atuou junto ao tribunal de Contas do Estado, Foi chefe do gabinete civil do Governo Leonino Caiado e da gestão de Índio Artiaga, à frente da Prefeitura de Goiânia.

Homem culto, dotado de refinada sensibilidade estética, ao poeta de A janela azul horrorizava toda e qualquer espécie de vulgaridade ou concessão ao mau gosto. Sua poesia tem apreciadores fiéis, cultivadores de sua imagética afeita aos devaneios descritos por Gaston Bachelard. A atmosfera de seus poemas, de um acento marcadamente surrealista, conservou-se a mesma, desde seu livro de estreia, até sua última publicação em poesia. Exemplo de seu lirismo aberto, aparentemente fácil, mas

Page 50: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

50

Revista da Academia Goiana de Letras

recheado de imagens de grande força metafórica: Só os que amam compreendem/ só os que amam/ loura fonte da vida/ Eles se deitam no deserto estendido no chão para dormir/ deserto de grandes dunas/ do peito dos amantes das gargalhadas/ das lágrimas/ dos telhados amarelos da noite/ do olho dos pássaros ocultos nos verdes beirais do sono/só os que amam [...].

Em nossos encontros na Academia, eu sempre lhe dizia que, quando minha atmosfera mental necessitava, para alimentar-se do poético, de beber da fonte de uma poesia pura, voltava a ler os seus livros. E volto a dizê-lo. Pois só se pode dizer que um fazedor de versos é grande poeta, da classe dos verdadeiros vates, quando outros poetas se inspiram em seus poemas. Poema que não inspira outro poema é um fruto peco, falhado, maduro à força – não tem o potencial criador e criativo de grande obra de arte.

Vejamos os versos de um de seus poemas: Toco as romãs/ com as mãos de meu filho/ o mundo se revela/ enquanto as janelas se fecham. Em seu livro Poemas reunidos, da coleção Vertentes (Editora da UFG) podemos ler esta beleza de composição: Fica onde estás/ com o teu silêncio e o meu/ a estreita ponte de palavras. Leiamos mais de seu lirismo encantador: Cada um gasta seu tempo/ em ciladas temerárias/ como punhais de ouro/ e gestos de silêncio. Quer maior verdade dita com tamanha beleza? Pois é sabido que a pátina dos dias lança muitos anzóis à passagem dos navegantes humanos – e é preciso lucidez e temperança, para não sucumbirmos ao fascínio dos abismos que o cotidiano lança aos nossos sentidos.

Em outro poema, o poeta nos conclama: Observa os objetos:/ de todos eles/ emanam respostas do efêmero/ [...] Expressam-se todos em silêncio/ a lembrança do tempo/ que

Page 51: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

51

Revista da Academia Goiana de Letras

não cessa de rodar/ suas pernas de mármore/ e de ver a morte/ através de cada coisa/com grandes olhos de veneno/ e de fogo/ invisíveis, abertos para sempre.

Helvécio Goulart é autor de uma poesia sensível, mesmo tendo vivido em um tempo anestesiado para a sensibilidade em relação às coisas que de fato importam na vida. Drummond o disse: As coisas/ que tristes são as coisas/ consideradas sem ênfase. Pois que mesmo a poesia da vida em todas as coisas e em todos os momentos, é preciso ter olhos de ver, e ouvidos de escutar a canção da infinita, a vibrar em tudo o que é efêmero, na pele das coisas e nos rios do devir.

Embora assumindo-se como poeta de inspiração surrealista, sua poesia não se assemelha à dos corifeus desta vertente estética: é toda dele. Helvécio não foi caudatário nem diluiu ninguém. Só um poeta original e autêntico, enquanto criador, publicaria um livro com o título A janela azul – pois assim ele inverte a direção comum do olhar, que vai da janela para a paisagem, e não o contrário. Outra mostra de sua dicção particularíssima: Os cavalos sabem a solidão da noite/ e talvez nem escutem/ o ruído escuro que fazem/ no silêncio incomunicável à solidão dos homens.

Em texto publicado no DM revista, em setembro de 1977, o poeta Gabriel Nascente assim se expressou, sobre a obra poética deste autor: Falo de uma poesia que tem idoneidade estética, equilíbrio temático, elegância imagética, esmero, acuidade artesanal, arte, imaginação e fulgor. Sobretudo bom gosto, requintada, jorrante. Da Janela azul à Memória das águas, um rio de imagens, de um poeta que propugnava pela aristocracia do espírito. Com a palavra o poeta que nos deixou enquanto criatura física, mas que deixou

Page 52: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

52

Revista da Academia Goiana de Letras

como legado uma riqueza poética que será mais e mais admirada, quanto mais tempo se passar sobre os mortos e os vivos:

Sobre a mesa o aroma dos pinheiros ficava repousadonela depositavam-se coisasvinhos frutas pratosas sementes do ventoos olhos acesos da vigília.A hora armava espaços na mesa.

Page 53: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

53

Zequinha, sua gaita e as oligarquias goianas Itaney F. Campos

Um músico popular autodidata, de apelido Zequinha, entrou para o imaginário coletivo da pequena cidade de Uruaçu, no norte de Goiás, mercê de seu talento, presença de espírito e natureza boêmia. Os anos marcantes de sua presença naquela comunidade foram as duas primeiras décadas da segunda metade do século passado.

Nascido no ano de 1922, recebeu na pia batismal o nome de José Fernandes de Carvalho, sendo filho do coletor de impostos Antonio Fernandes de Carvalho e de Leonor Ribeiro de Freitas, membros de tradicionais famílias da região, oriundos da Vila de São José do Tocantins, atualmente Niquelândia, e do arraial de Traíras, hoje Tupiraçaba. Segundo se comentava, e ainda se comenta, Zequinha tinha duas paixões na vida: a gaita de boca, made in germany, e uma cachaça da boa, de alambique. Na gaita, executava valsas e modinhas, para o deleite dos que tinham paciência com ele. Na cachaça, desfilava trôpego pelas ruas da poeirenta e caliente cidade de Uruaçu, em busca de outros botecos e também de alguém que, embevecido pela música, lhe pagasse uma dose da branquinha. Era manso como um bezerro. Encharcado, distribuía trocadilhos pitorescos: “O objeto que fura e o soldado, formam a arma alongada, duas e duas”. Depois que o freguês, embatucado, desistia, dava a solução: “Espinguarda”, e disparava a rir, feliz com a própria espirituosidade.

Seus ascendentes mais destacados, os coronéis José Fernandes e Gaspar Fernandes de Carvalho, eram originários da

Page 54: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

54

Revista da Academia Goiana de Letras

velha São José do Tocantins, para onde os antepassados imigraram, nos princípios do século XVIII, em busca das minas de ouro, miríades proclamadas nos sertões da Bahia e nos povoados do interior da província de São Paulo. O arraial de São José tem, pois, sua origem ligada às atividades mineradoras, iniciadas naquela região por Manuel Rodrigues Tomar, um paulista de origem espanhola que viera para as regiões centrais na bandeira de Bartolomeu Bueno Filho, primeiro superintendente das Minas de Goiás, havendo com ele se desentendido e se dirigido às regiões de garimpo do interior do sertão, no ano de 1737. O arraial de São José, bem como o de Traíras, a poucos quilômetros do primeiro, floresceram rapidamente, tornando-se esse último um dos mais importantes do período colonial. Em determinada época, diz-se, atuavam em seu foro mais de trinta advogados.

Esgotado o ouro de superfície, nos finais do século XVIII, os membros da família dedicaram-se às lides da roça, compartilhando também os cargos públicos em São José, juntamente com a família Francisco da Silva, e, eclodidos os conflitos políticos decorrentes das lutas abolicionistas e republicanas, transferiram-se, ao depois, para o município vizinho de Pilar de Goiás, acossados pelos adversários políticos na Vila de São José. Demoraram-se pouco na sonolenta Vila de Pilar, cuja fama se concentrava no imenso sino de sua Igreja Matriz. No ano de 1909, os Fernandes adquiriram, dos mineiros Mendes da Silva, uma fazenda com área de dez mil alqueires de terra, nas proximidades do rio Maranhão. Lançaram ali as bases para a formação de um novo arraial, que tomou o nome de Santana do Machambombo, em decorrência do ribeirão do mesmo nome que cortava a fazenda.

Em 1924, o povoado foi erigido à condição de Distrito do município de Pilar de Goiás. Era ali que Zequinha – José

Page 55: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

55

Revista da Academia Goiana de Letras

Fernandes de Carvalho – desfilava pelas ruas a sua figura franzina, meã, inofensiva, de tocador de gaita. Quando preciso, tocava também clarinete, nas funções religiosas. E ainda arranhava violão, nos saraus familiares. Perguntado sobre o número de instrumentos que tocava, respondia orgulhoso: “Gaita, clarinete, violão, cavaquim e outros contringentes musicais”, e desatava a rir a sua risadinha miúda como ele próprio. Esse dom natural não impediu, entretanto, que se dedicasse, horas e horas, tanto à pratica musical quanto ao cultivo do gosto pela cachaça e pelo conhaque. Mas uma coisa, segundo ele próprio afirmava, jocoso, não bebia de jeito nenhum: era chumbo derretido!

Prestativo, era convocado para os saraus familiares, para as festividades religiosas e festas de casamento, isto é, estava sempre em algum convescote e, portanto, antes ou depois, degustando uma dose da “danada”. A verdade é que apegou-se à pinga. Inebriado, mostrava-se alegre, desinibido, contador de casos engraçados e ainda mais hábil no clarinete e na gaita. As valsas e modinhas brotavam facilmente, encantando as reuniões de família com as melodias: “Saudades de Ouro Preto”, “Saudades do Matão”, “O último beijo”, “Luar do sertão” e tantas mais. Consta que compôs uma modinha em homenagem aos seus antepassados de Niquelândia, intitulada: “Atravessando o rio Maranhão, sem canoa”.

Zequinha se alimentava de modinhas, conversas aladas e cachaça. Por que você gosta tanto assim da pinga, Zequinha? Ele, no ato, pontificava: “Cachaça é bom pra vista, limpa a garganta e clareia os dentes!”. Suas histórias permeavam a realidade de toques fantásticos. Sobre a origem de nossa cidade, relatava que houvera ouro em abundância no rio Maranhão e que à margem desse rio

Page 56: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

56

Revista da Academia Goiana de Letras

estabelecera-se, no século XIX, um imigrante português, com o estranho nome de Manuel K-O-S-US Pereira Machambombo. O sobrenome desse garimpeiro incorporou-se ao ribeirão que tinha curso na fazenda e, posteriormente, ao arraial que ali se formou: Santana do Machambombo. Acrescentava que um lustro depois, o lusitano teve de retornar à terra natal, intempestivamente, e deixou ali enterrado, nos arredores do seu casebre, nas proximidades de um pé de angico, um saco abarrotado de ouro, parte do volume que extraíra do leito do rio. “Inclusive – enfatizava, para dar foros de verdade à sua narrativa – Dito de Jesus tem conhecimento do local desse pé de angico”. Dando asas à sua imaginação fértil e provocado pelos estudantes, Zequinha contava que havia tanto ouro na região, tanta abundância do minério que no arraial de Traíras, nas procissões para o batizado dos infantes, os pais, os padrinhos e o povaréu iam em séquito e, à frente, furando covas e plantando ouro, iam os escravos da família. Ante os risos incrédulos, Zequinha afirmava enfático que se tratava de um ritual para assegurar prosperidade na vida do infante. E, para o espanto geral, acrescentava: “Naquele tempo, o ouro não valia nada”. Os circunstantes riam a mais não poder. E Zequinha ingressava, também, nas risadas, para, em seguida, tocar mais uma música, pedir uma pinga e lamentar uma paixão perdida.

Solteirão beato, dele diziam, pândegas, “casara-se com a pinga”. Ele acrescentava: “E com a gaita”. Zequinha – José Fernandes de Carvalho (mais um José!) – era um dos filhos do casal Antonio Fernandes de Carvalho e Leonor Ribeiro de Freitas. Seu pai era o quinto dos onze filhos de Manuel Epiphanio de Carvalho, que foi casado com Francisca Ribeiro Cortes (ou Freitas). Seu avô Manuel Ephipanio era, por sua vez, um dos treze filhos do casal Francisco

Page 57: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

57

Revista da Academia Goiana de Letras

e Ana, entre os quais se incluía também Gaspar Fernandes de Carvalho, conhecido mais tarde como coronel (da Guarda Nacional) Gaspar, que viria a ser o fundador oficial da cidade de Uruaçu. O temperamento dócil, avesso aos embates políticos e à união familiar eram as qualidades mais notórias dos membros da família Fernandes, uma das mais influentes daquela região do meio norte goiano. Isso pode ser constatado no episódio dos conflitos políticos ocorridos em São José do Tocantins, no final do século XIX e inícios do século XX, quando, elevando-se a temperatura dos antagonismos políticos, na briga pelo poder local, alguns Fernandes foram alvos de atentado a bala, apontando-se como agressores os jagunços que se achavam a serviço dos membros da família Curado e Taveira.

Era o prolongamento dos conflitos das eleições à Assembleia Constituinte, em 1896, quando tombou morto um aliado dos Fernandes, Antonio Martins, alvejado por balaços de mercenários da ala política adversária. Em junho de 1909, os alvos foram o juiz municipal Joaquim Fernandes e o seu suplente Aristides Ribeiro, quando atravessavam a Praça da Matriz, em plena luz do dia, perseguidos que foram por balaços traiçoeiros, só não sucumbindo aos tiros porque fugiram às carreiras, abrigando-se nos fundos da Igreja Matriz e dali alcançando a residência do irmão João Fernandes.

Segundo relata Cristovam Francisco de Ávila, descendente dos Fernandes e autor do livro História do Município de Uruaçu, até o ano de 1880 as famílias Francisco da Silva e Fernandes de Carvalho mantiveram relação harmônica, no plano político, no município de São José do Tocantins, então uma cidade importante, entre as poucas existentes no médio norte goiano.

Page 58: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

58

Revista da Academia Goiana de Letras

Os cargos públicos eram divididos igualmente entre as facções políticas dominantes na localidade. Com o surgimento das campanhas pela abolição da escravatura e a instauração do regime republicano, emergiram as divergências entre os grupos locais, reproduzindo as desavenças políticas em curso na cidade de Vila Boa, então capital do Estado. A família Fernandes de Carvalho, liderada por Francisco Fernandes, pai de Gaspar, seguia as diretrizes traçadas pelo irmão desse, Joaquim Fernandes de Carvalho, figura proeminente na política vilaboense. Sobre esse personagem, escreveu Sebastião Fleury Curado, em seu livro Memórias Históricas:

Quem se lembra hoje de Joaquim Fernandes de Carvalho? Morava na rua da Pedra. Humilde professor de primeiras letras, foi subindo no conceito público e chegou a vice-presidente da Província. Homem inteligentíssimo, fez fortuna por seus esforços; nunca se casou e se tornou a mais importante influência do norte de Goiás, quando do advento da República.

Os conflitos locais repercutiam as brigas pela hegemonia política instaladas na capital do Estado, entre as oligarquias dominantes, representadas, de um lado, pelos Jardins e, de outro, pelos Bulhões. Segundo registra Cristovam de Ávila, no citado livro:

Do lado do Cel. José Joaquim residiam em Goiás (ex-Vila Boa) o seu neto Marcelo Francisco da Silva, Eliseu José Taveira e outros, originais igualmente da hoje Niquelândia. Na capital, os Bulhões, apoiados por Antonio Caiado e Guimarães Natal, tomaram partido

Page 59: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

59

Revista da Academia Goiana de Letras

dos adeptos dos abolicionistas e republicanos. Os Jardins, os Rochas Lima e outros se batiam pela conservação da Monarquia. Joaquim Fernandes e seus amigos aderiram aos Bulhões, considerados liberais-republicanos, enquanto que Marcelo, Eliseu e outros de São José, descendentes do Cel. José Joaquim, se puseram ao lado dos Jardins, identificados como Conservadores.

No período republicano, foram eleitos os deputados à Constituinte estadual, figurando entre eles Joaquim Fernandes, eleito presidente da Comissão. O Executivo protelava deliberadamente a data da abertura da Constituinte, provocando a reação dos deputados que, à revelia do Presidente Ribeiro da Maya, reúnem-se e elaboram a Constituição Estadual. A reação do Executivo foi imediata, determinando a prisão de Joaquim Fernandes de Carvalho, presidente da Assembleia Constituinte e o não cumprimento da nova Constituição, além de determinar fossem cassados e processados os deputados eleitos.

No curso desses tumultuados acontecimentos políticos, exasperaram-se as crises em decorrência da renúncia do Marechal Deodoro da Fonseca. Leopoldo de Bulhões manipulou habilmente a situação, logrando obter de Antonio José Caiado, escolhido pelo Centro Republicano para presidir Goiás, a carta de renúncia, em seu favor. Depois de preterido, por mais de uma vez, para assumir a Presidência do governo do Estado, sendo atropelado pelos interesses da oligarquia que apoiava, Joaquim Fernandes renunciou à Diretoria do Centro Republicano, alegando motivos de saúde, quando, na verdade, estava em pleno vigor de suas forças, como registra a historiadora Maria Augusta Sant’Anna Moraes, em História de uma oligarquia: Os Bulhões.

Page 60: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

60

Revista da Academia Goiana de Letras

O declínio do prestígio de Joaquim Fernandes, na cúpula da oligarquia, reverberou em São José, quando a família passou a ser alvo de perseguição, sendo alijada dos cargos públicos e até ameaçada. Alvo de retaliações, pressões e até ataques a mão armada, sem respaldo político junto ao Governo do Estado, o grupo familiar sentiu-se fragilizado, sem outra opção que não abandonar maciçamente a velha cidade josefina.

Correspondendo ao conceito de se tratar de um grupo avesso ao confronto direto, a família, ao invés de revidar e instalar um clima de maior tensão e rivalidade, abdicou dos cargos públicos e deliberou por transferir-se daquele município, adquirindo uma grande fazenda, de cerca de dez mil alqueires, nas proximidades do rio Maranhão, no vizinho município de Pilar, uma das mais antigas cidades goianas, cuja formação estava também ligada às atividades mineradoras. O arraial formou-se em torno de uma capela construída por Enéas Fernandes de Carvalho, filho de Gaspar, e dedicada a Nossa Senhora Santana, donde lhe adveio o topônimo Santana do Bom Sucesso, designação dada ao Distrito e também, depois, em 1931, ao município. Nessa cidadezinha simples, cravada nos sertões de Goiás, floresceu o clã e cresceu o menino Zequinha, cujo extraordinário talento para a música, tornou-o admirado pelos familiares e, mais tarde, pelos chegantes, em sua maioria retirantes nordestinos que ali encontravam facilidade para comprar um terreno e erguer seu barracão.

Em microdimensão, Zequinha era o nosso poeta; em uma família de coronéis, optou pela profissão de músico, exercendo seu talento com espantosa habilidade, que unia a uma humildade comovente e uma alegria contagiante.

Page 61: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

61

Revista da Academia Goiana de Letras

No seu sossego, no seu desapego aos bens materiais, no seu amor à música brasileira de raízes lusitanas, tinha para a juventude estudiosa local a dimensão de um Verlaine. Na sua boemia inconsequente, deixou o exemplo de um camarada que nunca desejou ou fez mal a qualquer pessoa. Morreu aos setenta e dois anos, sem um gemido, como um passarinho, sozinho, no barracão em que morava, numa ponta de rua.

Bibliografia

ÁVILA, Cristovam Francisco de. Reminiscências da família Fernandes e a fundação de Uruaçu. Kelps Editora. Goiânia, 2005.

________. História do Município de Uruaçu. Kelps/ Prefeitura Municipal de Uruaçu. 1993.

CAMPOS, Francisco Itami. Coronelismo em Goiás. 2a ed. Vieira Ed., 2003.

FREITAS, Lena Castello Branco Ferreira de. Poder e paixão. A saga dos Caiado. Cânone Ed. Goiânia, 2009.

MORAES, Maria Augusta Sant’Anna . História de uma oligarquia: Os Bulhões. Oriente. Goiania, 1974.

PALACÍN, Luiz. O Século do ouro em Goiás. Oriente/INL. s.d.

Arquivo de Cristovam Francisco de Ávila.

Arquivo particular do autor.

Page 62: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

62

A terceira margem do silêncio

José Fernandes

Era meu desejo conhecer o sentido e a essência do eu, para desprender-me dele e para superá-lo. Hermann Hesse

Muito se tem falado sobre o conto A terceira margem do rio, de Guimarães Rosa. Muito se falará sobre o enigma de se colocar em viagem sem se ir a parte alguma. Trata-se de uma narrativa rica, aberta a inúmeras perspectivas do pensamento, seja sociológico, antropológico, filosófico, teosófico, estético, poético, seja linguístico, simbólico, metafísico. Por isso, ainda se tem muito a falar sobre ele, sobretudo porque acreditamos que a terceira margem é muito mais profunda do que propuseram os críticos e hermeneutas até o momento. Não cremos que se trate de uma margem física, de uma profundidade que tenda para baixo, mas de uma profundidade vertical, tendente para o alto, que diz respeito a uma disposição metafísica do ser de que a personagem é um protótipo e, em certo sentido, até um arquétipo. Em decorrência, não podemos proceder a uma análise que se prenda apenas à superfície dos signos, mas temos de empreender uma leitura que chegue às camadas mais fundas da linguagem e da estrutura do discurso e que, em decorrência, examine aquela mensagem que se encontra mais no nível dos símbolos incorporados pelos objetos ao longo do tempo que pela expressão linguística que eles adquiriram enquanto língua. Assim, cremos, podemos atingir a essência desta narrativa intrigante, de personagens sem nome e de ato inconsequente, consoante a perspectiva dos olhos da matéria.

Page 63: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

63

Revista da Academia Goiana de Letras

1 – As personagens

Entendemos por personagem de ficção o ser que age e pensa na qualidade de sujeito e de objeto da narrativa ou apenas o ser que, como objeto da história, é o foco dos fatos narrados, mas que, por alguma razão ôntica ou ontológica, não se manifesta em própria fala. Quando a personagem se posiciona como sujeito e como objeto, normalmente é também o ser que narra, que faz e é feito pela história, que domina a palavra, pois o tamanho do ser é o tamanho de sua linguagem. O pai, assim entendido, funciona como a personagem principal de A terceira margem do rio, mas, pelas suas circunstâncias existenciais, não exercita uma fala autêntica, não dispõe de linguagem, uma vez que sua história é feita por outro, por um narrador que, a despeito de participar diretamente dos fatos, não alcança bem a razão de eles acontecerem daquele modo, consoante os propósitos do pai.

Chama-nos a atenção, também, neste conto, o fato de o narrador e de a personagem principal não serem nomeados, não disporem de um nome que os identifique. Se o nome confere essência ao ser nomeado, como já o dissera o velho Platão, não ter nome é o mesmo que encontrar-se destituído de essência. A atitude do pai — entrar em um barco para não ir a parte alguma — explica a necessidade imperiosa de imprimir um sentido à existência, de procurar uma forma de encontrar a sua identidade, de se afirmar como ser humano e assumir a subjetividade da história, mesmo sem narrá-la. As razões de ele não ter nome, na construtura da narrativa, se justificam pelo fato de o pai, a partir daquele momento, não encerrar apenas a personalidade de um ser determinado, mas de todo aquele que se propõe às mesmas condições existenciais: viajar à terceira margem, à verticalidade,

Page 64: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

64

Revista da Academia Goiana de Letras

à transfiguração e à transcendência do ser. A personagem, deste modo, insere-se numa dimensão simbólica, metafísica, sem os caracteres de um ente colocado no nível do meramente ôntico, do meramente físico.

O fato de o pai não receber nome, entretanto, não elimina uma interpretação antropológica, ôntica, uma vez que, se efetuarmos uma leitura subliminar, veremos na decisão de tudo abandonar, uma revolta contra a postura autoritária e nulificante da mulher. Assim, a consciência de uma ação inédita, conflitante com o senso comum, insensata, e empreender uma viagem inteiramente incompreendida, revestem-se de um duplo sentido. Para uns, apegados a uma percepção material da existência, ao lado visível da ação, apenas uma forma de perda do senso, uma forma de loucura. Estes são a maioria avassaladora; tanto que ninguém, nem mesmo o filho, compreendeu a sua atitude: colocar-se dentro de um barco para andar rio afora, rio adentro, sem um destino definido.

Entanto, se interpretarmos esta viagem a nenhum lugar físico determinado como aquela viagem invisível ao interior de si mesmo, vista sob uma ótica metafísica, o ato de viajar, no sentido físico, se reveste de implicações mais profundas, pois insere a personagem, mesmo destituída de nome, numa dimensão que ultrapassa o meramente material e físico e introduz todas as atitudes do pai na Grande Viagem, a que os judeus chamam nasa’, (sn. — peregrinação ao interior de si mesmo), percebida somente através de uma visão ontológica da existência. É sob esta perspectiva que o pai assume o status de personagem, de sujeito e de objeto da história. Posição incompreendida por todos os partícipes da narrativa, pois o homo viator, a despeito de ser

Page 65: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

65

Revista da Academia Goiana de Letras

uma condição do ser humano, em nenhuma narrativa literária e, notadamente, na realidade, é compreendido por seus semelhantes.

Neste sentido, é preciso sentir a narrativa e perceber a personagem dentro de uma tradição cultural e teosófica, em que a viagem física, ou o estar em viagem, em peregrinação, implica uma travessia, uma transformação ocorrida, não, em dimensões físicas, mas em uma dimensão ontológica que compreende o ser em sua totalidade. Não é sem motivo que o filho, ao ver o pai erguer-se dentro do barco, percebe-o transfigurado, como se viesse do além. Ora, o estado de ser do pai desnorteia o personagem-narrador, à medida que ele se imaginava na hora de substituí-lo, mas não entendera as razões de ele haver se posto em viagem. Em decorrência, não percebera o ato de ele se pôr em pé. A confirmação da verticalidade metafísica o assustara de tal modo que ele se colocara em fuga, apavorado, pois pensara o pai apenas em sua velhice e, jamais, em uma dimensão que ultrapassasse os limites da matéria e chegasse ao sublime, entendido como superlativo do humano e, portanto, próximo ao divino.

Para melhor entendermos a subjetividade do pai e, em decorrência, a sua transformação, temos de verificar que a ausência de nome, a despeito de manifestar um estado de ente, no caso desta personagem, demonstra que a busca da identidade e, em consequência, do nome, implica um ato. Ora, o ato implica sempre a noção de vontade, de volição; mais que isso, de consciência plena do que se está fazendo ou buscando. É neste sentido que o pai não conquista um nome, mas uma condição que suplanta o nomear, à proporção que atinge a essência do ser. Ser e essência no fundo são a mesma coisa, uma vez que tanto o substantivo quanto o verbo são esse, ser, naquele sentido empregado por Iavé: Eu sou aquele que é, Ego sum qui sum.

Page 66: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

66

Revista da Academia Goiana de Letras

Se a personagem, representada pelo pai, configura um estado de ser que ascende à transcendência, a despeito da ausência do nome e de não assumir uma fala autêntica, o filho, por sua vez, dispõe de linguagem e registra a história do pai. Todavia, podemos dizer que ele se identifica como contraponto desarmônico do pai, à medida que, ao assumir a condição de sujeito da história, não o faz na plena consciência e no pleno domínio dos fatos; não adquire a estatura de personagem, entendida como aquele ser que evolui ao longo da narrativa. Configura-se, na verdade, como persona. A única ação que ele pratica com certa consciência, sem contrariar os desejos da mãe, é prover o pai do necessário à alimentação. Entretanto, se o não fizesse, não alteraria a decisão do pai, porquanto ele procura um outro tipo de alimento, uma outra dimensão de ser que não se insere na percepção e na compreensão do narrador, uma vez que sequer sabe como ele retirava o alimento do local em que o colocara. Esta percepção dos acontecimentos se fundamenta no fato de o narrador-personagem contraditoriamente relatar que o pai nunca mais saíra da barca. Ele não evolui ao longo da narrativa. Sequer no momento em que deseja substituir o pai, não o faz sabendo as razões de ele ter ficado no barco todo aquele tempo, uma vez que, para ele, tudo se passara em nível físico, em nível de ente, de objeto.

As ações do personagem-narrador se realizam no nível da matéria, como ser ôntico. Em momento algum ele pensou o pai em busca da terceira margem da existência. Se soubesse a necessidade da essência, o pai tê-lo-ia deixado segui-lo no instante da partida. Mas, sua solicitação não mereceu resposta. Necessitava de transformar-se em ato, em necessidade de haver a quididade, de dirigir-se à margem vertical do ser. Seria necessário que ele

Page 67: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

67

Revista da Academia Goiana de Letras

não se estarrecesse ante a atitude do pai. Ademais, a conquista da essência é inteiramente individual e, por isso, única.

O susto que tivera no momento em que o pai se levantara, transformado e transfigurado, em vez de fazê-lo finalmente compreender as razões que o levaram àquele ato aparentemente insano, fá-lo cometer um desatino: sair correndo e abandonar a sua oportunidade de conquistar a essência do ser. Mesmo tendo a consciência do erro claro, mediante o pedido de perdão, ocorrido tempos depois, não elimina o seu estado de ente, de objeto, porquanto não dispôs da sabedoria e da disponibilidade necessárias à condição de assumir a subjetividade. Em consequência, não adquiriu a densidade ontológica necessária para exercer e exercitar a função de personagem. A despeito de ser o narrador, age e pensa como uma persona, como um objeto, tanto que, em um único momento de consciência metafísica, sente que é o que não foi, o que vai ficar calado. Pior, percebe que é tarde para tomar qualquer atitude existencial e, sobretudo, essencial. Resta-lhe pedir que, após a morte, depositem-no em uma canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras, pois não atingiu a profundidade do rio existencial.

Acontece, porém, que a conquista da essência não se faz com a ajuda de ninguém. Ela tem de ser ato, e ato compreende a participação direta da vontade que se renova a cada momento de ser. É algo continuado, como ocorreu a Riobaldo em Grande sertão: veredas. Ele começa sua transformação com a travessia do São Francisco, ainda menino, e a conquista durante toda a existência, até a descoberta total da essência, na travessia do Liso do Sussuarão. Ao narrador-personagem de A terceira margem do rio foi concedida esta possibilidade, como ocorre a Govinda, em

Page 68: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

68

Revista da Academia Goiana de Letras

Sidarta, mas, ao contrário da personagem de Hermann Hesse, ele não a enxergou, não se deu conta de que possuía uma dimensão metafísica que necessitava ser conquistada. Por isso, não obstante dizer e, eu, rio abaixo, rio afora, rio adentro — o rio, não atingirá a terceira margem, porque falido em suas tardias pretensões, falido em sua dimensão ontológica. O rio para ele se compõe apenas de duas margens e, em decorrência, não vivifica a existência e, muito menos, leva a personagem à essência.

Se apenas na ótica da personagem, a narrativa já se revela extremamente profunda, na perspectiva da linguagem, responsável por essa revelação do enigma e do encanto de ser, ele se torna realmente singular, pois demonstra verdadeiramente o talento de quem sabe mistérios e encantamentos de palavras. Passemos e passeemos por esta transfiguração de ser em linguagem.

2 – A linguagem

A linguagem, além de ser a maior invenção humana, é matéria de Ser e de Arte a ser lapidada ou apenas esculpida segundo necessidades impostas pelo próprio estado de ser e de arte a revelar-se ou a (des)velar-se. Há discursos literários que nos intrigam pelo jogo que o narrador faz com a linguagem a fim de que ela materialize um determinado estado de ser ou de existência do personagem. No caso de A terceira margem do rio, somos tocados, de imediato, pela troca inopinada dos pronomes de primeira pessoa do plural com a primeira pessoa do singular. Por que o narrador utiliza o pronome possessivo nosso, se o foco narrativo se centra no pronome eu? Seria apenas uma

Page 69: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

69

Revista da Academia Goiana de Letras

forma de o narrador falar em nome da família e da sociedade que presenciou os acontecimentos? Primeiramente, temos de observar que a primeira pessoa do plural, nas circunstâncias vivenciadas pelo narrador, constitui uma forma aparente de ele dividir a responsabilidade do relato e, em decorrência, também a responsabilidade da verdade inerente aos fatos e o estupor por ela provocado. Entretanto, trata-se uma tentativa frustrada, pois, ao final da narrativa, o falimento, verdade referente à pessoa e à essência do narrador, recai sobre o ente por ele materializado.

Verificamos, deste modo, que, se o pronome de primeira pessoa do plural, nosso, representa a dissolução dos eus: o do narrador, o da irmã, o do irmão e o da própria mãe, coloca-os no mesmo nível de desentendimento e de reificação, quando relacionados ao pai. E, no caso do narrador, o vocábulo nosso revela a incapacidade de ele compreender o que se passa no íntimo do pai, ou de ver o invisível lado ontológico da existência, visualizado pelo abandono de tudo e pelo inteiro voltar-se para o lado metafísico, simbolizado pela ascensão à terceira margem.

O pronome de primeira pessoa do singular, por sua vez, vai correlacionar-se a uma tentativa de assumir a subjetividade da história e, em decorrência, de narrar sob a condição de sujeito. Entretanto, como o narrador não compreende a atitude do pai e, como consequência, não empreende a viagem ao interior de si mesmo, o pronome de primeira pessoa em vez de afirmar a subjetividade do narrador e, em consequência, ser a confirmação do sujeito falante, revela-se como a sua total negação, à medida que quem fala não é aquele que dispõe de essência, no sentido de compreensão e de assunção de um acontecimento que envolve a totalidade do ser. Principalmente, não é aquele que dispõe

Page 70: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

70

Revista da Academia Goiana de Letras

de identidade, de quididade metafísica. O filho narrador não compreendeu a atitude do pai, porque não dispunha de alcance ontológico para entender a terceira margem do ser, só possível mediante uma visão vertical da existência, voltada exclusivamente para a essência.

Aliado à primeira pessoa do plural, mas ainda mais impertinente e, por isso, mais reificante e até nulificante, coloca-se a expressão a gente, diluindo totalmente a individualidade do narrador e, consequentemente, a sua responsabilidade, como se ele tentasse narrar, mas sem assumir a culpa por não haver entendido o que o pai realmente desejava com aquela atitude. Ao colocar-se em terceira pessoa, através da utilização da expressão pobre e indeterminante do eu, a gente, o narrador dilui a essência do falante e, consequentemente, passa a reproduzir uma fala irresponsável, in-autêntica. Em decorrência, também ele se insere na comunidade dos que não captaram o significado de alguém, à semelhança do que aconteceu com alguns santos, como São Francisco, abandonar tudo e viver apenas em função de um ideal de plenitude, de conquista da essência e da transcendência no Sublime.

Para melhor compreendermos o que se passa com a utilização dos pronomes pelo narrador, temos de verificar as poucas palavras pronunciadas pela mãe ao saber da decisão do marido. A incompreensão da mãe e a consequente distância que se estabelece entre ela e o marido estão materializadas no vocábulo você. Quando ela diz Cê vai, ocê fique, você nunca volte!, observamos que a forma popular Cê materializa, semântica e socialmente, grau elevado de intimidade. Por outro lado, a expressão ocê, a despeito de encerrar poucas variações semânticas, se comparada

Page 71: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

71

Revista da Academia Goiana de Letras

com a primeira, colocada na sequência, já demonstra certo distanciamento íntimo entre marido e mulher. A forma culta, você, usada em contraposição à linguagem popular, objetiva um estado de frieza, de afastamento que implica rompimento entre mulher e marido. Consequentemente, entre o pai e a família.

Deste modo, ao contrário do que costuma acontecer, quando se utiliza o tratamento de terceira pessoa, verificado na forma verbal, a fala da mulher não reserva nenhuma condescendência ao marido. O pronome você, aliada ao crescendum vocabular, resultante das apócopes e da determinação colocada na forma imperativa do verbo, nos fonemas que os constituem e também no crescendum silábico, em que o fonema [o] se avulta, em decorrência do fonema lateral [l], antecedido do advérbio de negação não, em que a nasal se alonga — Ce vai, ocê fique, você não volte —, além de demonstrar a autoridade da mãe, própria de uma sociedade matriarcal, consubstancia a total incompreensão do ato decisivo do marido e a impossibilidade de retorno, mesmo sendo sua decisão resoluta e irrevogável: buscar a terceira margem do rio da existência.

A materialização do rompimento, grafada em negrito, manifesta também o estado de ente da mãe, à medida que a gradação vocabular, em vez de diminuir a pessoa do marido, coloca-a em um patamar que a mulher não consegue alcançar. A linguagem, no caso, exercita uma semântica contrária: a mulher se distancia do marido, à medida que pronuncia o pronome parte da síncope para a inteireza vocabular, e o ser do marido se essencializa, se transubstancia, mediante a essência da palavra que se avoluma e que encerra um simbolismo primordial, porque relacionado à grafia primeira: o hieróglifo.

Page 72: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

72

Revista da Academia Goiana de Letras

A fórmula sincopada Cê se compõe de dois fonemas que, segundo sua origem hieroglífica, se ligam à semântica do seco e do sopro. A letra [c], ao simbolizar as transformações por que o homem deve passar em sentido simbiótico e, no caso, inteiramente metafísico, a despeito de pronunciada pela mãe, materializa o estado de ser do marido. Antes, destituído de essência, mas que, em decorrência de uma viagem inteiramente voltada para o interior, alcança a terceira margem. Com relação à mulher, embora a semântica substantive a intimidade, traduz, na verdade, a insensibilidade com que se dirige o marido e, sobretudo, em relação ao que sua decisão representa em termos simbólicos. Sintomaticamente, a letra [e] consubstancia o significado de terceira margem, uma vez que ela simboliza a união do plano físico com o metafísico, a fim de se buscar um terceiro, relacionado ao sublime, ao teosófico. O acréscimo da letra [o] gerando o pronome pessoal, em sua conformação popular, ocê, confere à palavra e, como consequência, ao ser nomeado, a disposição necessária à recepção das forças cósmicas imprescindíveis à realização da tarefa ingente de superar o estado de matéria e inserir no transcendente. A regressão operada na formação do vocábulo, com o acréscimo da letra [v], confirma o estado de ente da mulher e o estado de ser em essência, do marido, pois esta letra possui os mesmos simbolismos que a letra [o]. Além disso, os dois fonemas acrescidos ao pronome cê possuem, intrinsecamente, o simbolismo do úmido inerente ao rio, à água. Ora, na concepção metafísica do conto, o úmido constituirá exatamente o estado de conformação da essência a que o pai está procurando e que não chega a ser entendida pelos familiares e pela vizinhança. O resultado é a partida sem resposta à ordem da mulher. Uma

Page 73: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

73

Revista da Academia Goiana de Letras

atitude seca que antecede à transformação do homem em ser úmido propício ao ser em essência.

Percebemos, deste modo, que o problema do ser, por se relacionar diretamente à viagem e ao mergulho dentro de si mesmo, em um discurso artístico, implica também uma travessia de linguagem pouco ou nada percebida em uma leitura de superfície. A terceira margem, simbolizada pelo rio, exige também uma terceira margem materializada em linguagem, uma vez que ela, além de revelar o ser, constitui o diálogo dele consigo mesmo na profundeza da própria substância do humano, pois o que existe é homem humano: travessia.

Em termos de linguagem e de revelação, o contraponto estabelecido entre a família, a comunidade e o pai, atinge a dimensão do tudo e do nada, do ser e do não-ser, porquanto o narrador, no momento duro da despedida, ao final da narrativa se descobre falido e se revela por intermédio da palavra falimento. Percebida sob uma ótica metafísica, trata-se de uma palavra extremamente forte, impiedosa, malevolente, à medida que se refere a um estado de ente, de objeto, que não conseguiu se construir, que não ascendeu à condição de sujeito da existência, que não soube viajar à própria essência e, em decorrência, não alcançou o nível do ser. No caso específico do narrador, não teve competência para entender e compreender, como ocorrerá com Sidarta, em relação a Govinda, a atitude de tudo abandonar, para mergulhar em si mesmo e empreender uma peregrinação dentro de si mesmo. Daí a confissão patética e tétrica feita por intermédio de uma linguagem violenta, malvada e maldita; mas suficiente para expressar e materializar o estado de ser da personagem-narrador: falimento. A pior sensação transmitida pelo narrador,

Page 74: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

74

Revista da Academia Goiana de Letras

com este vocábulo, prende-se à noção de que ele não é digno de crédito, de confiança, porque, além de não penetrar nas intenções do pai, abandonou-o exatamente quando ele o acreditava pronto a substituí-lo na conquista, unicamente sua, da essência.

Para uma narrativa profunda, uma linguagem igualmente profunda, porque espessa, carregada de simbolismos e de densidade ontológica. Exatamente por isso que não pode ser desbravada apenas em sua configuração física e, muito menos, em sua dimensão construtural, própria dos aspectos morfológicos, sintáticos e semânticos; mas na face oculta e mágica do metafísico e do estético, em que o homem ascende ao sublime.

3 – Linguagem simbólica

A linguagem literária não se define apenas como um conjunto de signos engenhosamente utilizados pelo ficcionista ou pelo poeta, a fim de produzir o belo e o prazer da leitura; compreende também uma gama de símbolos que se incorporam aos signos e os retira de sua órbita de palavra e os insere em uma dimensão simbiótica e semiosférica. O objetivo é produzir significados que se desprendem de construturas que ultrapassam os limites da palavra. A linguagem assim entendida pode atingir uma esfera que extrapola os níveis do discurso em si, uma vez que cada palavra-símbolo extravasa os limites do signo e se eleva à semiosfera do metafísico. Assim, o impacto causado à família no momento em que o pai abandona tudo e entra em um barco para ir a parte alguma, leva-nos a inferir que a palavra barco e o veículo por ela representado se revestem de um simbolismo singular e,

Page 75: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

75

Revista da Academia Goiana de Letras

por isso, inusitado. O barco passa a ser um instrumento simbólico de travessia existencial ao interior de si mesmo e, não, um mero meio de transporte às margens direita e esquerda do rio. A terceira margem a que ele leva não poderia ser captada por pessoas alheias ao processo, que viam nele apenas um veículo físico, uma forma inexplicável de o pai viver no rio, alheio ao que se passava com a família e com a sociedade. O barco, nas circunstâncias da narrativa, se converte em veículo da existência e, em decorrência, em objeto simbólico, necessário à transformação do ser, mediante uma viagem essencial.

A divergência entre o pai e a família se deve à falta de alcance e de consequente percepção da resolução tomada e do ato a ser praticado pela personagem. No momento em que o homo viator encalça o chapéu confirma-se a ação anunciada e o afastamento definitivo do pai, uma vez que o chapéu lhe confere, pelo seu simbolismo, uma posição superior e, em decorrência, ininteligível às pessoas ligadas apenas à matéria do existir. O chapéu, na simbologia assumida no discurso, representa justamente o homem que pensa e que traduz o pensamento em ação e em ato de ser e, não, mero objeto de proteção contra o sol ou a chuva. Assim, a prerrogativa de ser em essência, como implica a necessidade de a personagem pensar-se e pôr-se em viagem, exige o uso do chapéu, como a diferenciar o ser em travessia dos entes que apenas estão em existência.

O uso do chapéu ressaltado pelo narrador evidencia o caráter iniciático da viagem, uma vez que ele, conforme nos expõe Chevallier e Gheerbrant (1988, p. 222) se liga à imagem de raios e de luz, imprescindíveis a quem se propõe uma mudança existencial, como o faz a personagem deste conto. A luz, como se

Page 76: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

76

Revista da Academia Goiana de Letras

verá ao final, constitui exatamente a comprovação, aos olhos do narrador, de que alguma coisa incomum acontecera ao pai. Uma transfiguração que assustará tanto o filho, que ele se colocará em fuga, apatetado.

Ao ligar-se simbolicamente àquele que tem cabeça e capacidade de pensar, o chapéu distingue o pai dos demais membros da família, notadamente da mulher e do narrador, à medida que, sem dar-lhe qualquer explicação parte em busca de sua identidade, mesmo que para isso tenha de passar anos dentro do barco, a fim de proceder à travessia e, de forma indireta, verificar se é possível que alguém capte as razões de seu aparente desatino. A relevância do pensamento, além de afastar o marido da mulher, leva também o narrador à incompreensão dos fatos narrados, porque incapaz de atinar com a verdade que impulsiona o pai àquela viagem a lugar algum. A verdade, também simbolizada pelo chapéu, fica clara, à proporção que ela encerra predicados só inerentes a quem pensa a existência. Por isso, a verdade da mãe e do narrador, principalmente, não é a verdade do pai, colocado em um nível realmente distinto das personas e figurantes que perfazem a história registrada. O jogo simbólico da narrativa atinge as personagens e, de certa forma, também o leitor, perplexo ante uma atitude que lhe parece inconsequente.

A verdade do pai se revela tão sólida que, mesmo após anos dentro do rio, permanece com o chapéu na cabeça, como a dizer que nada mudou em relação às suas pretensões e, sobretudo, com relação aos seus pensamentos. Era uma espécie de senha dirigida principalmente ao filho que, mesmo passado o tempo, continuava sem entender as razões que levaram o pai àquela decisão. O simbolismo do chapéu, nestas circunstâncias, torna a linguagem

Page 77: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

77

Revista da Academia Goiana de Letras

mais densa e, em decorrência, ontológica, e confere ao discurso um status inexistente apenas no nível do signo verbal.

A superioridade metafísica do pai pode ser verificada, ainda, pela maneira como ele parte, sem nada responder às palavras duras da mulher: Cê vai, ocê fique, você não volte, como se elas não lhe dissessem respeito. Elas manifestam exatamente o seu estado de ente, voltado apenas para a dimensão ôntica da existência. Ao negar resposta à mulher e à família, à medida que todos esperavam que falasse alguma coisa, que justificasse a sua atitude, deixa claro que suas palavras seriam inúteis, pois ninguém as compreenderia. Não se devem jogar palavras fora. A sua mudez prova que o ato de colocar-se em travessia explica-se por si mesmo, pois é absurdo aos olhos de quem o vê partir para lugar algum. Despedir-se somente do filho, pondo-lhe a bênção, confere a ele uma espécie de deferência. Mesmo sem nada entender, irá registrar o acontecido, a fim de que este fato incomum seja conhecido por outras pessoas que poderão compreendê-lo em outros tempos e lugares. A despeito de o filho ser o narrador, narra como se fosse mudo, porque suas palavras soam como se não fossem pronunciadas. Esta dimensão do discurso condiz com o absurdo da situação, uma vez que, como bem o diz Albert Camus, o absurdo trata de ser mudo. Posição confirmada pelo pai, que não emite palavra alguma, como a falar para dentro, na dimensão do pensamento, da essência da linguagem.

A escolha efetuada pelo personagem, colocar-se em uma canoa, dentro de um rio, demonstra um saber que só ele possuía, a sabedoria do rio, o eterno fluir das águas em direção ao mar, à existência em plenitude. Se em Grande sertão: veredas, Riobaldo atravessa o São Francisco de uma margem a outra e se transforma, perdendo o medo de enfrentar os perigos do existir, em A terceira

Page 78: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

78

Revista da Academia Goiana de Letras

margem do rio, permanecer no rio, sem ir a parte alguma, representa uma travessia maior, verificada, no caso de Riobaldo, somente no ocaso da vida. O pai sabia-se em transfiguração, em conjunção com as águas que levam a margem terceira do rio existencial, pois é ele um Caronte que transporta a si mesmo ao mundo dos que captam a plenitude do ser: aquele que é, no sentido tomista de esse e, não, de ens, de coisa.

O interessante nessa narrativa são as direções diversas materializadas pelo rio. Enquanto, para o pai, ele simboliza a passagem para um estágio superior do ser, o fluir para a essência; para o filho, o símbolo se coloca em uma posição contrária, a permanência do estatus quo, ou seja, uma viagem efetuada post mortem, sem a vivificação e a transfiguração do ser, porque permaneceu na mesma margem existencial.

É assim entendido que o pai não irá a parte alguma, porque este barco não o leva ao outro lado do rio, mas ao outro lado de si mesmo. A passagem, neste sentido, não se opera em termos físicos, mas em uma dimensão que compreende uma viagem a um mundo diverso do meramente material. O resultado é a transfiguração, palavra que envolve forte simbolismo, uma vez que revela a outra face do ser que ultrapassa os seus limites e se insere na esfera do sublime, à medida que transcende o estado de coisa, de objeto, inerente à condição humana. A elevação do ser a um plano metafísico é percebida pela estupefação e pelo desatino causado ao narrador ao perceber que o pai parecia ter vindo da parte de além:

Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n’água, proava para cá, concordado. E eu tremi, profundo, de repente: porque, antes ele tinha levantado o braço

Page 79: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

79

Revista da Academia Goiana de Letras

e feito um saudar de gesto — o primeiro, depois de tamanhos anos decorridos! E eu não podia... Por favor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado. Porquanto que ele me pareceu vir: da parte de além. E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão.

A luminescência, própria de quem está no além, demonstra

as transformações por que o pai passara. O estar no rio fora apenas o ritual para que a passagem se processasse. Além da transfiguração, assustadora aos olhos e às palavras do narrador, o fato de ele ficar em pé, após tantos anos, materializa, como que com o dedo, a verticalização, a transcendência, a sublimização do efêmero, do limitado. A verticalidade, aliada à luz, configuram a ascensão do ente, do objeto, ao ser, à essência. Este estado de ser, para o filho, que se encontra no nível da matéria, é apavorante, a ponto de ele se colocar em fuga desatinada.

Sob este aspecto, o símbolo maior do conto, sem dúvida, é o rio, à medida que ele representa, em uma espécie de imagem hídrica, a caminhada do ser humano dentro de si mesmo, porquanto as águas sempre vão e voltam, como se não saíssem do lugar. É exatamente por isso, que a personagem entra no barco para não ir a parte alguma, uma vez que caminha dentro de si mesma, como o fazem as águas do rio. O sentido simbólico desse conto é realmente profundo, realmente metafísico e, por isso, incompreendido pelo filho, pela família e pela sociedade que pensa apenas a superfície do ser. É por isso que o narrador narra apenas o acontecido, sem entender a fundura de seu registro verbal, sem captar a essência de sua linguagem.

Page 80: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

80

Revista da Academia Goiana de Letras

4 – O narrador Os pronomes e expressões de tratamento utilizados na

narrativa fazem do narrador de A terceira margem do rio uma figura intrigante e, sob certo sentido, insólita. Ele narra como se não quisesse ou não pudesse narrar, mediante a utilização do pronome possessivo nosso. Não bastasse o sentido coletivo do vocábulo, acrescenta, logo ao início, a opinião das outras pessoas sobre a figura do pai: [...] pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informação. Decorrência da incompreensão da decisão do pai, viajar sem ir a parte alguma, ele narra como se tivesse medo de revelar alguma coisa interdita, medo de proferir alguma palavra que ferisse a verdade ou que dissesse o que não deveria ser dito. Narra, jogando a responsabilidade do relato de episódios ou da própria personalidade do pai sobre a família toda e até sobre pessoas que conviveram com o pai ou que eram mais velhas, e podiam confirmar o seu relato. O desconhecimento da verdade que envolve o acontecimento sobre que narra e, principalmente a ignorância de si mesmo, implica também a incerteza relativa aos fatos, obrigando-se a valer-se de opiniões alheias. Este procedimento constitui uma forma inteligente de eximir-se da verdade, porque a dilui nas várias “fala” de que sabemos através do próprio narrador e, ao mesmo tempo, condensa-a na pessoa do pai que apenas navega no rio adentro, no rio afora de si mesmo.

Não bastasse este procedimento, ele ainda se exime da responsabilidade do discurso, ao utilizar a deplorável expressão de tratamento a gente, que indetermina a identidade e a subjetividade do falante. A expressão a gente, em termos ontológicos, representa

Page 81: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

81

Revista da Academia Goiana de Letras

a mais concreta e perceptível forma de reificação, à medida que o narrador, ao proferi-la, pratica o ato da fala como se o não praticasse, porque não se revela na qualidade de sujeito de uma fala autêntica.

Como se trata de um narrador que não dispõe de subjetividade e é obrigado, pelas circunstâncias dos acontecimentos, a narrar em primeira pessoa do singular, procura, na medida do possível, fugir dela ou assumir, de fato, o estado de objeto que se reconhece ser. Em decorrência, o uso do pronome pessoal eu em vez de recuperar-lhe a posição de sujeito do discurso e permitir-lhe falar como aquele que sopra, que emite parcelas de alma a cada palavra pronunciada, nega-se. Ou melhor, afirma-se como objeto, como o que não foi, o que vai ficar calado. Trata-se, porém, de uma afirmação que é insólita negação, porquanto revela um estado consciente de quem reconhece a incapacidade de ser. Neste sentido, a linguagem que seria a revelação do ser, passa a ser a revelação do não-ser, do nada, sendo e existindo.

Este estado de não-ser se revela, primeiramente, pelo fato de o narrador não entender o que se passa com o pai, dando a conhecer apenas superficialmente o que lhe ocorrera, deixando escapar as razões que o levaram ao extremo de viver dentro de um barco. Mais que isso; não sabe a fundo os motivos de uma viagem tão importante como remar e perscrutar os meandros do rio da existência. Quando a memória se revolveu e percebeu que alguém poderia revelar detalhes do que levara o pai a solicitar a fabricação de um barquinho de nada, o carapina já havia morrido, levando consigo a verdade. Segundo, falta densidade metafísica ao narrador, porque, quando decide assumir o lugar do pai, não o faz porque houvera entendido as razões que o levaram a viajar pelo

Page 82: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

82

Revista da Academia Goiana de Letras

rio, à procura de sua terceira margem, mas porque o acreditava já velho e destituído de forças para remar. Não entendia que remar a existência não é a mesma coisa que remar pelo rio. O ato de remar era muito mais profundo do que ele podia supor. Remar pelo rio é dirigir-se à terceira margem, é mergulhar dentro de si mesmo, procedendo a peregrinatio, como o fizeram todos os grandes heróis das grandes mitologias e da literatura.

A existência do narrador se revela em total falimento, porquanto viveu apenas para atender ao lado material do pai que, ao partir, não revelara qualquer preocupação com a subsistência. O narrador não enxergou nada de superior no ato de ele assumir as bagagens da existência e navegar com elas rumo à terceira margem. Pensava que entraria no barco apenas para substituir o pai, que imaginava já sem forças para remar e, não, para transfigurar-se, para verticalizar-se. Por isso, tremeu e fugiu não tanto pela responsabilidade de entrar no barco, mas porque o pai pareceu-lhe vir da parte do além. Só neste momento é que ele percebeu que o pai se transformara, procedera a uma travessia que implicara uma transfiguração, uma viagem ao interior de si mesmo.

Em decorrência de seu falimento, o narrador deverá ser aquele que ficará calado. O que é ficar calado? É encerrar-se no próprio nada, sem condições de ascender à terceira margem, sem condições de ser e, portanto, de revelar-se. Por isso, em vez de assumir a sua viagem e construir o barco para a travessia, pede que lhe coloquem em uma canoinha de nada, após a morte. O barco que leva à terceira margem, porém, não deve carregar um morto, uma vez que o rio só pode vivificar o que está vivo e que tem consciência do viver e do ser.

Page 83: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

83

Revista da Academia Goiana de Letras

De qualquer maneira, o narrador, embora tardiamente, toma consciência da importância do rio e suas margens, notadamente a margem de dentro, aquela que sobe em direção ao além, ou à essência. Entanto, esta consciência remota não lhe resgata a positividade do eu, e a narrativa permanece nos limites do nada. Tanto que o narrador é inominado, porque inteiramente falido.

5 – A viagem

O tema da viagem, além de se aliar à trajetória existencial do ser, conjuga-se ao lado mais fundo do humano, à medida que se insere na dimensão ontológica dos símbolos. Na mitologia greco-latina, todas as almas empreendiam uma viagem sem retorno ao Hades, tendo de atravessar os rios Estige e Letes. Algumas figuras mítico-literárias, ainda em existência, viajaram, mediante um enigma tomado aos deuses, ou a si mesmas, e retornaram inteiramente outras, como ocorreu a Ulisses ou a Enéas nas epopeias clássicas. O próprio Cristo, herói épico e trágico por excelência, passou por lá após a morte e voltou inteiramente transfigurado e transubstanciado.

Com as mesmas singularidades míticas ou metafísicas, também as viagens pelos mares, pelos rios, pelos desertos ou pelo sertão, no sentido físico, irão inserir-se em uma dimensão ontológica que atinge toda a essência do ser viator. A travessia física implica uma viagem ao interior de si mesmo, uma peregrinatio, a que os judeus chamam nasa’, diferente da pessach, efetuada mais no sentido teosófico, para lembrar a travessia do Mar Vermelho Na literatura universal, obras inúmeras exploram este veio, como

Page 84: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

84

Revista da Academia Goiana de Letras

Sidarta, de Hermann Hesse. Temos a impressão, no entanto, de que o conto A terceira margem do rio, por ser mais denso e jogar mais com os simbolismos da linguagem, dos objetos e dos gestos, imprime à travessia um sentido ontológico mais profundo, graças, principalmente, ao contraste que se estabelece entre pai e filho, entre o que permaneceu imóvel e o que se empenhou em peregrinar por dentro de si mesmo, transfigurando-se, à medida que se tornou inteiramente outro.

A precariedade existencial da personagem-narrador se assemelha à de Sidarta, com a diferença de Sidarta ter medo de si mesmo e, em consequência, fugira de si mesmo para se encontrar, e o narrador não chegar a se compreender e, por isso, foge do pai, de sua transfiguração, de sua luminescência. A fuga é a imagem de seu falimento. A vida hedonista que Sidarta levara, após abandonar os samanas, vai levá-lo a encontrar o Om, a perfeição, enquanto o narrador, sem entender a viagem do pai à conquista da essência, foge desatinado. A personagem-narrador somente existiu, como as coisas existem. A simetria entre as quatro personagens se desfaz à proporção que Govinda e o pai operam uma passagem, uma transformação típica de seres que se transfiguram, enquanto Sidarta, mesmo no ocaso da vida, reconhece-se tolo, à medida que abandonara o que mais sabia fazer — jejuar, esperar e pensar — e inicia a sua travessia, o narrador nada faz. Apenas se acredita em condições de substituir o pai, mas sem saber como e por quê. Por isso, ao percebê-lo em uma outra dimensão, sente medo, coloca-se em fuga, apavorado diante da verticalização e das transformações por que o pai passara, ao ponto de parecer-lhe ter vindo da parte de além.

A personagem de A terceira margem do rio, ao empreender esta viagem, contra tudo e contra todos, procura o próprio centro,

Page 85: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

85

Revista da Academia Goiana de Letras

uma vez que as circunstâncias de conviver com pessoas que o não compreendiam, implicava-lhe a perda da essência, do centro sobre que o ser gravita metafisicamente. O encontro do ser com o centro ocorre mediante transformações operadas na quididade mesma da personagem. Como consequência, o narrador, como testemunha do fato, percebe-o em uma dimensão diversa daquela com que se acostumara.

Observamos, deste modo, que Govinda e o pai prepararam-se para chegar a um estado de ser em que cada um pode ser chamado aquele que é, porque não se contentaram apenas com o serem lançados na existência, com a condição de entes, de coisas-ante-os-olhos e se puseram à conquista do ser, da essência que os diferenciam dos demais entes. O narrador e Sidarta, por sua vez, não se prepararam. O primeiro, como se manteve no nível do ente, do objeto, foge à possibilidade de se colocar em vir a ser, enquanto o segundo, ao se pôr a remar, parte para a conquista da essência, pois não tivera medo de ver Govinda transfigurado e, muito menos, de substituí-lo na condução do barco.

O fato de o pai ser encontrado pelo narrador à distância de grito simboliza o final da viagem, uma vez que atingira o seu objetivo, mediante esse deslocamento ao longo do rio, para não ir a parte alguma, porquanto viajara em torno de si mesmo, ou dentro de si mesmo, como ocorre na metafísica oriental. Os anos que a personagem passara no rio, neste caso, funcionam como progressão ontológica, uma vez que a travessia não se opera em um átimo de tempo, mas demanda toda a existência; daí o sentido de peregrinação. Todas as personagens que empreenderam viagens ao interior de si mesmas, geralmente procederam a mais de um ritual, como o vemos nas epopeias antigas e modernas, como o

Page 86: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

86

Revista da Academia Goiana de Letras

próprio Grande sertão: veredas, em que Riobaldo empreende várias travessias, antes da grande viagem pelo Liso do Sussuarão. É por isso que o sertão, ser tão, é sempre, do mesmo modo que o rio, imagem presente em inúmeras obras literárias, além da guimarosiana, simboliza a viagem em si mesmo.

Esse conto, aparentemente, despretensioso, a despeito de possibilitar leituras várias, apresenta, segundo a nossa visão hermenêutica, uma profundidade metafísica singular, tanto pela dimensão metafísica da personagem, quanto, sobretudo, pela dimensão ontológica da linguagem, à medida que se tem um narrador que narra o que não sabe, mas registra, sem o querer, a história de um ser arquetípico, porque sem nome, que representa, de forma indireta, todo ser que empreende, de forma consciente, a viagem existencial em busca da essência, em busca da substância do humano. Isso é obra de quem realmente conhece a arte literária desde a sua essência, e o homem, desde dentro. Esse é Guimaraes Rosa!

Bibliografia

ADORNO, Theodor W. Notas de literatura. Trad. Manuel Sacristán. Barcelona: Ariel, 1962.

BOOTH, Wayne. A retórica da narrativa. Lisboa: Arcádia, 1972.

CAMUS, Albert. Ensayos. Madrid: Aguilar, 1981.

CASCUDO, Luis da Câmara. Geografia dos mitos brasileiros. Rio de Janeiro: José Olympio/INL, 1976.

CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1988.

Page 87: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

87

Revista da Academia Goiana de Letras

CIRLOT, Jean-Eduardo. Dicionário de símbolos. São Paulo: Moraes, 1984.

DURAND, Gilbert. Las estructuras antropológicas de lo imaginario. Madrid: Taurus, 1982.

FERNANDES, José. O poeta da linguagem. Rio de Janeiro: Presença, 1983.

________. O existencialismo na ficção brasileira. Goiânia: UFG, 1986.

________. Dimensões da literatura goiana. Goiânia: CERNE, 1992.

________. O poema visual. Petrópolis: Vozes, 1996.

________. O selo do poeta. Rio de Janeiro: Gallo Branco, 2005.

________. O interior da letra. Goiânia: UCG/SEMC, 2007.

GHYKA, Matila C. Le nombre d’or. Paris: Gallimard, 1959.

GOETHE. Fausto. Trad. Jenny Klabin Segall. Belo Horizonte: Itatiaia/Edusp, 1981.

GUÉRIOS, Rosário Farani Mansur. Dicionário etimológico de nomes e sobrenomes. São Paulo: Ave Maria, 1973.

HEIDEGGER, Martin. El ser y el tiempo. México: Fondo de Cultura Economica, 1962.

_______. Sobre o humanismo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967.

_______. Arte y poesia. México: Fondo de Cultura Econômica, 1982.

HESSE, Hermann. Sidarta. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.

HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo. Rio de Janeiro: Imago, 1991.

Page 88: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

88

Revista da Academia Goiana de Letras

JACOB, André. Introduction à la philosophie du langage. Paris: Gallimard, 1976.

LISPECTOR, Clarice. A partida do trem. In Os melhores contos brasileiros de 1973. Porto Alegre: Globo, 1974.

________. A partida do trem. In Onde estiveste de noite. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. p. 21-43.

MAGALHÃES. Adelino. Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1963.

NASCENTES, Antenor. Dicionário etimológico da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1952.

PEREIRA, Isidro. Dicionário grego-português e português-grego. Porto: Livraria Apostolado da Imprensa, 1976.

ROOKS, Conrad. Sidarta. Holyood: Conrad Rooks, 1972.

ROSA, Guimaraes. Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 2005.

SCHOPENHUAER, Arthur. O mundo como vontade de representação. Rio de Janeiro: Tecnoprint, 1965.

SOUZENELLE, Anncik de. La lettre chemin de vie. Paris: Dervy-Livres, 1987.

________. O simbolismo do corpo humano. São Paulo: Pensamento, 1995.

SPALDING, Tassilo Orpheu. Dicionário de mitologia greco-latina. Belo Horizonte: Itatiaia, 1965.

SWIFT, Jonathan. Viagens de Gulliver. Porto Alegre: Globo, 1971.

Page 89: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

89

Os primeiros memorialistas das terras do Anhanguera

Maria Augusta de Sant’Anna Moraes

Introdução

O processo da construção da maioridade da colônia portuguesa em terras da América do Sul aconteceu, paulatinamente, nos séculos XVIII e XIX.

Os acontecimentos que permearam os anos primeiros da terceira década do século XIX mostraram à Metrópole que o seu vice-reinado estaria pronto para constituir-se em Nação. Não obstante, após o “Independência ou Morte” proclamado por Pedro I do Brasil, as recém-criadas Províncias permaneceram, como antes, ilhadas, ilhas essas impostas pelas suas características geográficas, determinantes de suas vocações econômicas, sociais, culturais, envoltas nas desigualdades e dificuldades. E assim permaneceram no tempo e no espaço, com as suas variantes no transcorrer de continuadas décadas.

Nesse contexto de desigualdades, essa mesma gente dizia a mesma língua, professava a mesma religião, cumpria as mesmas leis, elos indispensáveis à nacionalidade de um povo.

As terras auríferas de Goiás inserem-se nesse conjunto, uma ilha dos sertões, sob a produção do ouro. Seus primeiros tempos foram de euforia, esperança de enriquecimento, ouro trasladado à Metrópole; e em seu âmago quase nada gravava, deixando atrás de si vidas ceifadas (em maior número as dos escravos das minas), doenças, em cada “casa um doente, já se lhe preparava a mortalha”;

Page 90: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

90

Revista da Academia Goiana de Letras

em meio ao ouro, à inflação, à pobreza, à fome, às doenças, à morte. Esse é o cenário de Vila Boa descrito por um missivista português nos anos 30 do Século das Luzes.

A história que se construiu nesta ilha cercada de terras é a dos ofícios do responsável pelos negócios de além mar, o Conselho Ultramarino, das comunicações aos Capitães Generais, dos regulamentos das minas de ouro e diamantes, do maior ou menor rendimento das extrações do ouro, do quintar as barras e transportá-las nos lombos das mulas1, do contrabando, da sonegação, das devassas às administrações, como a do Conde São Miguel, um Távora, e ou a dos Menezes.

As ações administrativas punitivas e espoliativas da Coroa, no transcorrer do tempo, geraram nos naturais da terra ojeriza aos executores portugueses. E, nos subterrâneos da terra de Pindorama, afirmaram-se os ideais separatistas. Em todas as ilhas os mesmos ideais. Ao se declarar a nossa nacionalidade, essas ilhas não deixaram de existir, como bem defendeu essa ideia Ledonias Franco, historiadora que ora referenciamos pela valorosa contribuição à História de Goiás.

Não havia como ser diferente. Após o Sete de Setembro, os caminhos trilhados pelos construtores do Império seriam árduos para vencer mais de 300 anos sob o sistema colonialista imposto pela Coroa Portuguesa e a acomodação ao trabalho escravo.

Octávio Tarquínio de Sousa, em sua obra Os Fundadores do Império Brasileiro, trabalho indispensável para se compreender o século XIX da história brasileira, mostra esses personagens e seus feitos.

1 O carro de boi só chegou a Goiás na terceira década do séc. XIX.

Page 91: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

91

Revista da Academia Goiana de Letras

1. Henrique Silva e o Curso de História e Geografia da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras

Considero Henrique Silva um dos precursores da pesquisa documental em Goiás. Goiano de Bonfim, jornalista por excelência, fundador e editor da histórica Revista Informação Goiana, editada no Rio de Janeiro, entre os anos de 1917 e 1935, ano de sua morte. Amou Goiás com visão científica; seu objetivo maior: divulgar a múltipla potencialidade de sua terra junto ao empresariado brasileiro.

A divulgação principal das duas memórias objeto de nossos estudos deveu-se ao gênio de Henrique Silva, que vasculhou os documentos da Biblioteca Nacional e os do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, para encontrar documentos referentes a Goiás, com o fim de eliminar erros e confusões havidos dos antigos historiadores goianos, e os que se seguiram continuaram a perpetrá-los. Henrique Silva preocupou-se com Goiás em todo o seu contexto, como reclassificar pontos controversos da geografia goiana, de sua história, divulgar suas riquezas e outras mais.

A partir da criação da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras (1948) pelos esforços do Bispo da Instrução, Dom Emanuel Gomes de Oliveira, o cenário cultural da nova capital – Goiânia –, gradativamente se reveste de novas cores nas diferentes áreas do conhecimento, revolucionando o ensino secundário.

Pode-se afirmar que os alunos e mais tarde professores de História estiveram na vanguarda desse movimento; alguns deles voltaram-se para a USP em busca de cursos de especialização, e neles fluiu o gosto pela pesquisa documental incentivados pelo Professor Sérgio Buarque de Holanda.

Page 92: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

92

Revista da Academia Goiana de Letras

E, através dos trabalhos de Henrique Silva, foi-lhes permitido conhecer as Memórias de Silva Braga e Urbano do Couto, integrantes da segunda Bandeira dos Anhangueras.

2. Silva Braga

O roteirista Silva Braga, ao escrever uma carta a um religioso, tornou-se o primeiro a relatar e elucidar as pegadas da Bandeira do Anhanguera, legendário aventureiro, considerado o descobridor de Goiás por haver iniciado o povoamento dessas terras.

Os relatos de Silva Braga merecem chegar às telas cinematográficas. Espelham os esforços de Bueno da Silva, filho, junto à Corte, enfrentando sua complexa administração para obter o autorizo à organização da bandeira. Aos peticionários somavam-se a animosidade dos governantes locais, as agruras e dúvidas à composição dos seus integrantes, que deveriam possuir bens e, por assim ser, também eram arbitrários e dispostos a fazer valer suas opiniões. Constituía-se a bandeira em sua maioria de portugueses, apenas seis nascidos no Brasil. Os serviçais, negros escravos e índios cativos, pertenciam aos integrantes da bandeira e representavam o grande capital da empresa.

Após as pompas e circunstâncias da partida, possíveis àquele tempo, a Bandeira do Anhanguera iniciou as entradas pelas matas; nelas as andanças sem rumo de três a quatro dias, que pareciam não ter fim; os pousos, de preferência às margens dos rios; as permanências, de até setenta dias em diferentes lugares com perspectivas sombrias; a riqueza da fauna, da flora, das águas que lhes ofereciam caça, frutos, raízes e peixes. Diante das dificuldades, a esperança do enriquecimento constituía o estímulo

Page 93: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

93

Revista da Academia Goiana de Letras

à contínua busca do ouro. Outro grande estímulo, a certeza de que, se derrotados, amargariam a pobreza e a desonra.

Em marchas e contramarchas pelos ínvios sertões e matas de difícil penetração, vencendo e ou contornando obstáculos, enfrentando os animais selvagens e peçonhentos e os gentios, únicos habitantes destas terras, os quais, já sofridos com as ações dos brancos, estavam dispostos a rechaçá-los para que não se apossassem de suas riquezas: as terras. Essa bandeira constituiu jornada épica, sem precedente.

Enfrentaram as águas dos rios em travessias perigosas, às vezes a vau, em leitos que de rasos pouco tinham; outras vezes, jogavam-se às águas amarrados a paus com cipós, sem mesmo saber aonde chegariam, ou então, improvisavam canoas ou arremedos de balsas.

Reinava insegurança em todos os componentes da Bandeira, cientes de que os gentios, espalhados pelas redondezas de suas jornadas, os acompanhavam. Uma constante ameaça. Nesses relatos vê-se o quanto os naturais agiam com esperteza.

O Roteiro de Silva Braga mostra existir um número grande de tribos, com centenas de componentes cada uma. Ao discorrer sobre elas e seus tipos, oferece substancial aula de Antropologia. Sobre a tribo dos Quirixá afirma:

(...) vive aldeiado, usa de flecha e porrete; é muito claro e bem feito; anda todo nú, assim homens como mulheres... desenove ranchos, todos redondos, bastantemente altos, e cobertos de palmito, com uns buracos juntos ao chão em logar de portas: em cada um destes viviam juntos 20 a 30 casaes, as camas eram uns cestos de buritis que lhes serviam de colchão e cobertas; eram pouco mais de seiscentas almas; estava situada toda esta aldeia junto dum grande corrego com bastante peixe e bom: no

Page 94: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

94

Revista da Academia Goiana de Letras

segundo dia que marchamos a busca-la, encontramos um rio caudaloso em que havia muitos peixes cayjús, palmito e muita e grande caça, que nos serviu de muito.2

Nesse roteiro, muitos outros acontecimentos e costumes indígenas estão registrados.

Nos encontros, melhor dito, enfrentamentos, ressaltam-se nos naturais da terra sua agilidade e estratégias de ataques, organização, brutalidade (maior arma de defesa). Exemplificando um desses ataques:

[...] de surpresa caiu sobre um branco [...] com tal ânimo que, lançando-lhe a mão à rédea do cavalo, lhe tomou a espingarda [...] e da cinta, o traçado, dando-lhe com ela um [...] golpe em um dos ombros e outro no braço esquerdo, fugiu levando-lhe as armas.3

Em seguida, em tempo mínimo, outro tapuia entrou em cena, ferindo-o no peito, e mais um acudiu-lhe com uma porretada na cabeça; a vítima sofreu mais uma agressão por um quarto índio, deixando-o como morto.4 Viu-se, então, uma agressão orquestrada.

Praticavam esses índios a antropofagia; de uma feita, diante do enterro de um componente da bandeira, morto por eles mesmos [...] procuraram em duas avançadas que nos deram a tirá-lo e comê-lo [...] rebatidos nos pediram por acenos que lhes déssemos ao menos a metade para comerem (...)5

2 A bandeira do Anhanguera a Goyaz em 1722, BRAGA, José Peixoto da Silva, in Memórias Goia-nas I, Universidade Católica de Goiás – Centro de Cultura Goiana. p. 17, 1982.

3 Idem, p. 154 Idem, idem.5 Idem, p. 16

Page 95: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

95

Revista da Academia Goiana de Letras

As índias que se aproximavam dos arranchamentos dos brancos informavam: os ataque dos da terra ocorriam mais por medo dos brancos, pois acreditavam que os queriam para comê-los. Evidencia-se que o medo acompanhava os atores em questão, gerando as agressividades mútuas.

O Roteiro registra a procura dos Guayazes, os conhecedores das minas de ouro, segundo Anhanguera, pai. Não obstante, após o retorno para o caminho do sul, sem mais a presença no grupo de Silva Braga, o ouro foi encontrado, e não há registro do encontro dessa tribo indígena. Existiram mesmo os goyazes?6

Em vários momentos do roteiro, a certeza de que se entregavam aqueles bandeirantes ao mister de prear os índios; também Bartolomeu Bueno mantinha a ambição de querer para si todo os gentio aprisionado, ambição essa que gerou mais discórdia entre os empresários bandeirantes.7

Os tapuias os seguiam à distância, negaceando o caminhar da Bandeira. Com o passar do tempo, o roteirista afirma que se humanizaram um pouco mais, às vezes, servindo-os sem arco e flecha e admirando suas armas.

Em determinada ocasião presentearam aos bandeirantes com “(...) dezesseis Índias, ainda moças, muito claras e bem feitas, não éramos mais os brancos, em sinal de amizade”, assim entendia Silva Braga aquele presente.8

Anhanguera não aceitou o presente, contradizendo todos os demais companheiros. Silva Braga colocou-se entre os que mais o persuadiram a aceitá-las para ter os seus serviços, ou seja, usando-6 O médico e estudioso dos documentos da História Colonial de Goiás acreditava que essa tribo

– os Guayazes, provavelmente não existiu, e que os índios encontrados pelo Anhanguera, pai, ao deparar-se com os alienígenas, pronunciavam a palavra Goia, referindo-se aos que haviam che-gado. Sugeriu-me o esforço de elucidar essa questão, por se encontrar doente e sem condições físicas de dar continuidade a esse estudo.

7 Idem, idem.8 Idem, idem.

Page 96: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

96

Revista da Academia Goiana de Letras

as como guardiãs, juntamente com os demais índios aprisionados. Essa a maneira mais fácil de chegar aos outros índios, conquistá-los, persuadi-los a lhes darem alguns deles para ensinar o verdadeiro caminho dos Guayazes.9

Tão sério quanto os imprevistos oferecidos pelos gentios e pela natureza eram os enfrentamentos entre os líderes da Bandeira e as tropas, que nem sempre caminhavam juntos. Muitos, os tumultos. O mais sério deles ocorreu ao se ter certeza de que Bueno se desculpava de forma injustificável para não fornecer o roteiro da viagem feita pelo pai quarenta anos antes. Alegava estar à espera de Ortiz que se distanciara do grupo, em nova reivindicação, outra desculpa.

Com o passar do tempo, abriu o jogo de maneira desastrosa: escusava-se em não fornecer a resenha porque...

[...] os Amboabas, assim chamados os reinóis, não era gente que lhe merecesse. Diante desta situação, uma completa desordem, muitos dos reinóis, e uns dos poucos paulistas decidiram retornar com suas tropas. João Leite conseguiu demovê-los com rogos e promessas, e muito mais com seu natural agrado, a que o não desamparassem [...]10

Bueno, em suas decisões futuras, demonstrará seu ódio aos Amboabas, contrariando-os em suas aspirações decisórias.

Também um dos missionários, Frei Antônio, optou por deixar o grupo, juntamente com alguns negros escravos, com o fim de deitar roças nas proximidades das margens do Meia-Ponte.

A seguir o memorialista afirma: “[...] reduzida, a tropa se pôs em marcha, depois de quinze dias de falhas, que se gastavam 9 Idem, idem.10 Idem p. 13

Page 97: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

97

Revista da Academia Goiana de Letras

nestas desordens [...]”11 Logo após, encontravam-se sem alimentos, comeram um cavalo e continuaram a marcha por insistência e ou determinação do Cabo.

Reinavam a insatisfação e o medo de que seriam os Amboabas assassinados por quem os odiava. Resolveram alguns deles interromper a caminhada, plantar e colher roças. Mais uma vez, João Leite os persuadiu a acompanhar a maioria.

Certo é que, após meses de procura, sem nada achar, viam-se em cada rosto cansaço, desânimo; avizinhava-se a fome, que se fazia presente quando faltava o socorro do anzol e da espingarda. Certos de que chegariam à inanição e à morte, tornavam-se obrigatórias as paradas para a feitura das roças e colheita.

Os encontros com os gentios e seus cachorros mostravam o seu modo de ser e de viver, sempre interessante. Os bandeirantes tentavam organizar estratégias para surpreendê-los, mas eles os esperavam com arcos, flechas, porretes; e assim, bem-armados, os recebiam.

As astúcias e os dribles expressavam a sabedoria dessa gente havida por selvagem e que tremia de pavor diante de uma arma de fogo; o homem branco tentava conquistá-la com os tradicionais agrados (utensílios, enfeites, canivetes, foice, machado etc.), que os gentios recebiam (os preferidos, machados e foices), para depois embrenhar-se pelos sertões e matas e não mais voltar. Em contrapartida, do que deixavam para trás em suas rancharias, como milho, batata, cachorros, araras e periquitos, apoderavam-se os bandeirantes para seu sustento; inclusive os cachorros e as aves; essas os regalos preferidos.

Muitos outros acontecimentos e costumes indígenas estão registrados, como o sentimento de posse em relação aos bens, como

11 Idem, idem.

Page 98: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

98

Revista da Academia Goiana de Letras

a produção do milho, animais e aves. Se ameaçados ou perdidos, exibiam garras com ferocidade para protegê-los ou reavê-los.

Entre as decisões arbitrárias de Bueno encontrava-se o rumar para o norte, decisão essa considerada erro.

Diante dessa decisão, os oito cativos a ele pertencentes fugiram-lhe, [...] publicando primeiro todos, que iamos errados por que os guayazes nos ficavam atraz [...]12

Esse considerado erro de Bartolomeu, que aproximou a Bandeira do Maranhão, pode ser interpretado como o procurar do Ouro dos Martyrios, audácia que desfalcou a Bandeira de homens pelas mortes e ou evasões.

Alguns paulistas e outros menos expressivos amotinavam-se a tramar o assassinato de Bueno e levantar seu irmão Simão Bueno a cabo, por ser de melhor e mais dócil índole. Segundo Silva Braga, ele também foi um dos que, junto ao grupo amotinado, esforçou-se para que abandonassem esse plano.13

Justifica essa atitude extrema a razão por que alguns de seus integrantes responsabilizavam Anhanguera pelo fracasso aparente da bandeira e seus descaminhos, mortes, fome, contrariedades e desentendimentos. Enfim, todos os desacertos ocorridos no transcorrer do tempo creditavam-nos ao Cabo.

Certo é que, após meses de procura, sem achar o ouro, viam-se em cada rosto cansaço e desânimo.

A bandeira dirigia-se cada vez mais para o norte, para depois mudar de

(...) rumo e seguir para o nordeste, quarta de norte [...] percorrendo mais de cento e muitas léguas [...] sem mais

12 Idem, p. 14.13 Idem, p. 13.

Page 99: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

99

Revista da Academia Goiana de Letras

sustento que o que dava o mato e esse pouco [...] nessa ocasião encontraram... grandes chapadas faltas de todo o necessário, sem mattos, nem mantimentos; com bastante córregos um que havia algum peixe...que foram todo o nosso remédio; alguns palmitos de que chamam jaguaroba [...] aqui começou a gente a desfalecer de todo... morreram-nos quarenta e tantos pessoas, entre brancos e negros [...]14

Miséria geral, fome, doenças. Em meio a essa situação, 16 homens avançaram deixando para trás os doentes, bagagens, e tropas para que deles cuidassem.

Silva Braga, entendendo que se encontravam perto do Maranhão, planejou deixar a Bandeira, queria [...] rolar rio abaixo, buscando alguma terra povoada para não perecer de fome e sede. 15

Arregimentou seis camaradas acompanhados de seus prestadores de mão de obra (índios e negros) e, juntos, partiriam com destino ao Pará, apesar da forte resistência do Anhanguera.

Das ações desse temido bandeirante, Silva Braga registrou as que se direcionaram a um de seus acompanhantes, e as suas reações para impedir que o Anhanguera conseguisse o seu intento.

João Alves e um seu irmão entraram naquela aventura com oito peças humanas. E por esta razão [...] repugnou o cabo a que sahissem comigo os dois irmãos sem que o primeiro lhe satisfizesse quarenta e seis mil reis que devia a João Leite [...] paguei por ele porque não vi outro remédio.16

João Leite, mais uma vez conciliador, procurou desfazer o que para Silva Braga era pura verdade, as arbitrariedades do Anhanguera, e assim conseguir a permanência do grupo dissidente na bandeira.14 Idem, p. 14.15 Idem p. 18.16 Idem, p. 19.

Page 100: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

100

Revista da Academia Goiana de Letras

Em resposta, Silva Braga pontuou serem atitudes e ações decorrentes das

[...] insolências do cabo [...] e que inclusive passara ele [...] ordem a um de seus Tapuias para matar ao Alves por uma bem leve couza [...] e ainda afirma [...] vendo o mesmo Anhanguera que o deixava me catequisou um negro [...] vendo-me sem ele voltei ao sitio [...] rogando-lhe que me restituísse o negro, respondeu-me [...] que o negro não estava em seu poder, nem mesmo sabia d’elle.17

João Leite, ao conhecer esses fatos, na tentativa de amenizar as ações do sogro, enviou a Silva Braga [...] um moleque negro que eu aceitei logo por ser preciso mais gente para remar [...] 18

Silva Braga não perdoa o Anhanguera, sempre denegrindo a sua imagem; assim registrou:

[...] publicando o cabo já que nós que íamos e o deixávamos, morreríamos naqueles rios e mattos [...] sendo que melhor seria o matar-nos que o deixar-nos perecer entre as aguas; não duvido que nos quizesse herdar os negros, como tinha feito a todos os demais sócios [...] 19

Todo o caminhar de volta da bandeira com destino ao sul integrou homens e objetos, ou seja, os restantes da opulenta Bandeira que saíra, sob aplausos, rumo ao ouro dos Guayazes. Viveram, neste retorno, sob a constante vigilância dos naturais da terra, chovendo sobre eles flechas e porretes.17 Idem, idem.18 Idem, idem.19 Idem, idem.

Page 101: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

101

Revista da Academia Goiana de Letras

3. Urbano do Couto

Com a debandada de nosso primeiro memorialista, tem-se em Urbano do Couto o arremate dos caminhos e feitos desta Bandeira, embora se entenda que seu registro não ocorreu simultâneo aos fatos.

O nosso segundo memorialista, Urbano do Couto, um jovem de 20 anos, português de nascimento, sentara praça de soldado aventureiro para que pudesse integrar-se à Bandeira do Anhanguera.

Inicia o roteiro registrando:

Em o tempo que andei explorando esta vastíssima campanha vi ouro em muitas partes, mas só três me pareceram de boa pinta. Coube a João Leite encontrar ouro em maior quantidade nas imediações onde hoje é o município de Palmeiras.20

Entusiasmado, reuniu-se o Conselho da Bandeira, que decidiu pela volta do descobridor a São Paulo, e dar conhecimento do feito. Apesar das cartas escritas, o ouro pesado (28/8), prontos para partir, Anhanguera embargou a viagem dizendo [...] não ser aquilo que se procurava.21 Novos desentendimentos, amenizados com novas descobertas. Vivia-se o ano de 1723.

E continua:

Em outra parte d’onde se viu ouro que me parece se não as maiores grandezas que haverá na comarca e fora délla é nas contra-vertentes do nome, e muitos outros que não estavam nos Araés. Nasce na divisão das águas em

20 Idem, p. 27.21 Idem, idem.

Page 102: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

102

Revista da Academia Goiana de Letras

campo limpo e por ele corre para o sul e se mette no Rio Grande e juntos vão à Colonia ou Buenos-Aires.22 Tem em seu nascimento uma pedra muito alta de várias cores; seu feitio é de uma galera sem mastros.23

Informa ainda que, desta galera ao norte

[...] rumo direto, no centro dos matos de Araés que me parece será ainda vista e povoado de muita gente e será rica [...] é uma perfeita obra da natureza, que se poderá ter uma das maravilhas do mundo; é a tal pedra redonda tão alta como dizem da Torre de Babel [...] tem da parte sul uma escada bem feita, obra da natureza, por onde se sobe e tem em cima um assento em que bem poderiam estar 20 mil soldados [...] da parte do norte nenhuma pessoa que mais animada que seja pode olhar para baixo que não tenha porque alcança com a vista o fundo: corre de leste a oeste uma serra tão alta parece ser fiadora de muitas riquezas [...]24

Nomina-a: Serra Escalvada. A região descrita abarca uma extensão de 15 a 20 léguas com uma planície de matos e

[...] nela há sinais de existirem dois rios ou ribeirões, tudo faz barra nos Araés, [...] onde estão 14 pilões e uma tapera antiga que foi do cunhado do Anhanguera, Manuel Pereira Calhamaro, que quando andava ao gentio ahi fazia escala, por ter roça e ajuntava o gentio para ir a São Paulo.25

22 Idem, idem.23 Idem, idem.24 Idem, p. 27 e 28.25 Idem, p. 28.

Page 103: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

103

Revista da Academia Goiana de Letras

Esses registros atestam que os paulistas conheciam bem, e muito bem, os sertões e as matas dos Goyazes e, ainda, Urbano, com seu entusiasmo vaticinara um grande progresso àquelas terras. Afirma que na altura da Serra Escalvada colocou ele uma cruz por ordem do cabo para posse da terra. Esta seria a primeira cruz fincada em solo dos Goyazes.

Observe-se que era função dos religiosos, entre outras mais, pregar aos integrantes da Bandeira. Urbano do Couto a eles se uniu e destacou-se entre os pregadores que, com a palavra, amenizavam o sofrimento daquela gente, renascendo-lhe a esperança.

Pelo que se deduz de suas leituras, os sermões religiosos constituíam bálsamo e estímulo aos caminhantes, que viam diante de si mais morte do que vida. Em cada dia, morriam de três a quatro deles, isto depois de consumirem todos os cachorros e alguns cavalos, sem mais o que comer, só lhes restava a morte. Urbano do Couto proferiu

[...] 35 sermãos para animar a eles e a si mesmo... Fazendo crer: [...] adiante dos rios muita caça, mel e gabirobas. Perguntavam os miseráveis: quando? E recebiam a resposta [...] nestes dias: e nestes permitiu Deus que chegássemos [...] e tudo se achou certo.26

A seguir, o roteirista, além de valorizar os efeitos dos sermões sobre os ouvintes, afirma que cessaram as mortes e apresenta um resumo de algumas ocorrências, inclusive que, nos vestígios dos 14 pilões, fora o local onde Calhamaro afirmara haver uma grande pedra na qual estavam esculpidos os Martirios 26 Idem, Idem

Page 104: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

104

Revista da Academia Goiana de Letras

de Christo. Este é o rio Pilões mas seu nome próprio é Araés: e eu nisso só posso falar e depois de Deus me favorecer tanto.27

Urbano do Couto radicou-se em Goiás, tornou-se proprietário de terras e fincou as raízes de uma das mais antigas famílias nas terras dos Goyazes. São juristas, médicos, professores, jornalistas e, de saudosa memória, a artista plástica, Goiandira do Couto, conhecida internacionalmente pela originalidade e beleza de seus trabalhos.

Na leitura desses roteiros firmam-se três personalidades, bem distintas entre os chefes e parentes entre si: as teimosias e arbitrariedade de Silva Bueno, disseminando constantes discórdias; a benevolência e, ao mesmo tempo, a firmeza de Ortiz e a moderação de João Leite, as quais, com suas ações e reações equilibraram os caminhos desses bandeirantes e sua gente. Outros participantes chamaram a si o direito de vez e voz pelos investimentos de seus teres e haveres no empreendimento. O esforço de equilíbrio sustentado por essas personalidades determinou o êxito empresarial da segunda Bandeira dos Anhangueras.

Apensado ao roteiro, há um documento datado de 30 de julho de 1750, diretamente do Palácio da Ajuda, que traz o nome do S.M.S.D. Mariana28, mulher de D. João V, que ordenou ser

archivado no Palácio da Capitania de Goyaz: Irão os meus novos bandeirantes dessas minas americanas pela picada da Bahia que vai para Goyaz ao lugar mais alto da Terra (chapadão do Coral) de onde emanam quatro ribeirões dos quais ficarão intitulados as suas cabeceiras,

27 Idem, Idem28 SMS D. Mariana: Sua Majestade Sereníssima, D. Maria Ana Josefa de Áustria, esposa do rei D.

João V.

Page 105: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

105

Revista da Academia Goiana de Letras

estas as principais do Rio Preto, no arraial dos Couros, São Bartholomeu, Paranam e Maranhão; nesta altura vão três lagôas em carreira, em campina clara, verão um posto sem praia, e nem alcance de fundo, verde cor do mar [...] desta altura verão um morro do feitio de uma canastra [...]29

E continua explicando que há um segundo morro, Três Irmãos e mais adiante situa-se um morro do feitio de um cruzeiro e pela parte da serra cacem e verão ouro bom e se acharem pela cinta e cabeça encontrarão grandeza tal que não terão visto em Goyaz.30

Os escritos que se seguem a esse documento são de lavra de Urbano do Couto, que foram autenticados por um habitante de Mestre D’Armas, sem explicitar por que interrompera o seu primeiro roteiro; e narra os últimos caminhos da Bandeira de Bartolomeu Bueno, o filho, em terras goianas.

Do ponto que a deixamos atraz, a bandeira seguia sempre o divisor, pela nascente e contornava os pontos do Mato Grosso desde o Chapadão do Capivary, entre Corumbazinho e Antas. D’ahi sempre se afastando do Matto Grosso foi ter a barra do Rio João Leite no Meia Ponte [...] procura a bandeira a Bocaína Velha do Anicuns passando pelas proximidades de Campininha Barro Preto e Allemão sempre bordejando o Matto Grosso [...] 31

Em Anicuns, encontram-se as certidões

[...] da passagem quarenta annos atraz local onde a bandeira do Anhanguera, pai, acampou e plantou roças

29 Idem, p. 29.30 Idem, p. 30.31 Idem, pp. 30-31

Page 106: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

106

Revista da Academia Goiana de Letras

[...]32 feito esse repetido pelo segundo Anhanguera que também armazenou mantimentos e [...], avançou, sem ao certo saber qual a direção a tomar, encontrou a chamada Pedra da Galera, nas cabeceiras do hoje Rio Claro, afluente do Paranaíba. Em seguida, a Serra Escalvada, que lembrava, segundo Urbano, a Torre de Babel, e desse local avistaram as matas do Rio Claro, ou dos Araés [...]33

Chegou às Torres de Rio Bonito; caminhou na direção que os levaria à atual cidade de Goiás. Atravessou as cabeceiras do Agapito, esteve perto do local que veio a ser no futuro o Arraial da Barra, alcançou os baixões do Araguaia, sempre contornando a Serra do Acaba Sacco, [...] indo aos baixões do Araguaia onde a serra se perde.34

Anhanguera e os homens restantes, os vencedores das vicissitudes, regressaram em seus próprios passos e, de permeio, dar-se-ão com as minas procuradas à beira do rio Vermelho, onde mais tarde veio a ser o Arraial de Sant’Anna.

Após algumas explorações e armazenamento do ouro, a bandeira preparou-se para voltar a São Paulo, passou pela região do hoje município de Catalão, onde se encontrava a primeira picada percorrida em terras goianas. Vivia-se o ano de 1725; sua chegada a São Paulo ocorreu em 21 de outubro daquele mesmo ano.

No ano seguinte, organizou-se nova bandeira, e Bueno da Silva retornou senhor absoluto das explorações, obviamente, desde que respeitasse os impostos da Coroa e acatasse as suas decisões.

32 Idem, idem.33 Há aqui um desencontro entre o que antes afirmara Urbano – ou seja, o rio dos Pilões era o

mesmo Araés. Idem pp. 28 e 30.34 Idem, 31

Page 107: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

107

Revista da Academia Goiana de Letras

Conclusão

Considera-se a bandeira do Anhanguera, pai, a 1ª de um conjunto de três. Nesse 3º retorno às minas dos Goyazes, após atravessar o Paranaíba, para alguns nas imediações de Goianira e ou Catalão, elevou-se a Cruz do Anhanguera. Como se observou nas narrações de Urbano do Couto, não teria sido essa a primeira cruz fincada nas terras dos Goyazes, visto que, nas redondezas da Serra Escalvada, ainda na 2ª viagem em terras banhadas pelo rio Pilar, erigira Urbano, por ordem do cabo, uma grande cruz para servir de marco de posse.35

O Brasil tem na Carta de Caminha a sua certidão de nascimento por um desembargador que mais tarde se tornou um religioso. Fora ele escolhido por D. Manuel para integrar a esquadra de Cabral por ser conhecedor das leis dos homens e de Deus. Assim sendo, após o encontro previsto de terras de além-mar, se necessário, atuaria junto ao papa que se revestia de poderes não só espirituais como temporais, inclusive os de distribuir a esse ou àquele as terras a serem descobertas.

A 2ª bandeira dos Anhangueras também se revestiu da firme intenção de descobrir as minas de ouro dos Goyazes e teve, por acaso, dois escribas entre seus componentes, que registraram alguns acontecimentos dessa odisseia cabocla. Seus registros se completam e são a certidão de nascimentos da colônia dos Goyazes.36

35 A história de Goiás não cultua Urbano do Couto como um explorador de suas terras, quando não deixou de ser um dos seus maiores bandeirantes.

36 Existem duas excelentes memórias sobre a Capitania de Goiás dos primeiros anos do séc. XIX, elaboradas por solicitação da Coroa Portuguesa com o objetivo de encontrar as causas de sua decadência e as possíveis estratégias à sua recuperação. Seus estudos já se encontram analisados e serão oportunamente publicados.

Page 108: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

108

Origens, conceito e sistemas racistas

Martiniano J. Silva

Convidaram-me, Carlos Augusto, doutorando na PUC-São Paulo e coordenador do curso de Direito da Faculdade FAMA, em Mineiros; Clementina, cognome “Tina”, professora de Direito Civil e coordenadora de Prática Jurídica da mesma Instituição, para proferir aula, espécie “Inaugural”, no dia 29 de janeiro de 2014, para professores, alunos recém-aprovados no vestibular e veteranos, tendo como foco: “Origens, conceito e sistemas racistas”. O animado evento cultural ocorreu às 19h30, num bonito Auditório da Faculdade, na Praça José Alves de Assis, Urbe Mineirense, onde fui surpreendido com a agradável notícia de que meu livro Racismo à brasileira: raízes históricas, em sua 4ª edição nacional, tinha sido escolhido como leitura obrigatória da Faculdade. Emoções à parte. Auditório repleto de alegre mocidade local e brasileira, comovendo-me, com a cara-metade, Chica, a expor o assunto.

Valendo-me de algumas fontes, disse-lhes que a origem do racismo é tema polêmico e complexo, podendo-se dizer que tem origem no etnocentrismo (tendência para considerar a cultura de seu próprio povo como a medida de todas as demais), que exclui outros grupos da economia, da história, da cultura ou da religião. Em 1939, o Partido Político Nazista, em nome da pureza racial, desenvolveu uma campanha contra judeus, católicos, comunistas, ciganos e todos que fossem contra a cultura alemã. No Brasil, tivemos o Integralismo discriminando negros, judeus e

Page 109: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

109

Revista da Academia Goiana de Letras

comunistas. Muçulmanos e judeus extremistas continuam em sua eterna luta. Tribos africanas provocam mais destruição entre si com seus ódios tribais, do que os antigos colonizadores.

No Dicionário Aurélio (1986), 2ª edição, o substantivo “racismo” vem de duas línguas, do inglês racism e o francês racisme, certamente porque seus dois principais teóricos tenham como lugar de nascimento a Inglaterra e a França, quais sejam: Houston Stewart Chamberlain e acredito o mais famoso, talvez no mundo; Joseph Arthur de Gobineau, sem se poder esquecer o alemão Richard Wagner, em auxílio ao arianismo, pelo qual se empenhou, sem poder omitir outras tantas fontes, como o consistente estudo feito pelo jurista e filósofo Norberto Bobbio e seus coautores N. Mateucci e G. Pasquini, do assunto no seu famoso Dicionário de Política (1983). Vinda de origem histórica, política, religiosa, científica etc., parece que a palavra raça data do século XVI, do latim ratio, significando “razão”, “ordem das coisas”, de onde se deriva, em âmbito linguístico, essa miséria chamada “racismo” que, assim como “raça”, está dicionarizada e conhecida na Europa a partir de 1932, estando também nos bons dicionários do Brasil e recentemente melhor estudada e compreendida em livros como Uma herança incômoda: genes, raça e história humana (2014), de Nicholas Wade, defendendo a ideia de que raças humanas podem existir, sem, necessariamente, justificarem o racismo, tendo como base os estudos do DNA.

Antes do conceito, residência das definições, é fundamental afirmar que o racismo não tem fundamentação científica, em lugar nenhum do mundo. Em que pese, existem pessoas tentando reerguê-lo, como Donald Trump, até escrevendo, desejando justificar o injustificável, que a ciência biológica, certamente, não

Page 110: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

110

Revista da Academia Goiana de Letras

confirma. Com relação ao conceito, que não tem como não ser assunto subjetivo, tormentoso, segundo fontes de que faço uso, é um conjunto de teorias e crenças que estabelecem uma hierarquia entre raças e etnias, podendo ser também uma doutrina ou sistema político fundado sobre o direito de uma raça (considerada pura e superior, eugênica), de dominar outras; podendo ainda se dizer ser uma crença na desigualdade das raças humanas, em nome das quais algumas delas e certas culturas encontram-se submetidas à exploração econômica, à segregação social e mesmo à destruição física. Na hipótese de o provável leitor desejar conhecer o assunto em maior profundidade, além do importante estudo de Bobbio (1983), ouso indicar o capítulo “Raízes históricas do racismo”, do livro citado.

Quanto aos Sistemas de Racismo, ouso abordar em espaço de jornal (DM, 5.02.2014), três deles, o sistema de racismo Jim Crow, dos americanos; o Apartheid, da África do Sul; e o mascarado Racismo à Brasileira, objeto do livro referenciado. O sistema Jim Crow foi praticado acentuadamente no Sul dos Estados Unidos antes das leis federais contra ele. A expressão Jim Crow – que também são as leis racistas da época – foi um desses apelidos pejorativos difundido por uma canção cômica de 1832, aplicado a qualquer negro nos Estados Unidos de então. Por bem dizer, um equivalente ao nosso zé-ninguém, assim se podendo dizer, as leis do zé-ninguém. Em alguns Estados os negros eram submetidos a um exame sobre a constituição, em outros exigiam que seus antepassados já tivessem votado uma vez, o que era impossível, por eles terem sido escravos.

O sistema Jim Crow ou leis do Jim Crow, são justamente as leis estaduais e locais decretadas nos Estados sulistas e limítrofes

Page 111: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

111

Revista da Academia Goiana de Letras

nos Estados Unidos, em vigor entre 1876 e 1965, afrontando e discriminando afro-americanos, asiáticos e outros grupos. A “época do Jim Crow” ou “era do Jim Crow”, vigorante 89 anos, refere-se ao tempo em que essa prática ocorria. As leis mais importantes exigiam que as escolas públicas e a maioria dos locais públicos (incluindo trens e ônibus) tivessem instalações separadas para brancos e negros. Não se podia confundir Leis do Jim Crow, com os chamados Black Codes (Códigos Negros), que restringiam as liberdades e direitos civis dos afro-americanos.

A segregação escolar patrocinada pelo Estado foi declarada inconstitucional em 1954. Todas as outras leis do Jim Crow revogadas em 1964, pelo que chama Civil Rights Act, podendo, assim, dizer que não existe mais sistema racista Jim Crow nos Estados Unidos, onde os negros, aproximadamente 10% da sua população, já conseguiram status social, econômico, cultural e sobretudo político (o presidente Barack Obama que o diga) superiores aos dos negros brasileiros, só recentemente tendo em seu favor as políticas afirmativas, existentes nos Estados Unidos há mais de cinquenta anos; notando-se que no Brasil, só recentemente, por ser gênio de Paracatu (MG), Pindorama e todas as diásporas, o negro Joaquim Barbosa conseguiu ser membro do Supremo Tribunal Federal, onde, queira-se ou não, ainda é visto meio de soslaio, para não dizer de esguelha.

O sistema Apartheid, na África do Sul, foi muito caro a Nelson Mandela, sem o qual, por certo, aquela nação não alcançaria vitórias e conquista já do conhecimento do mundo. Note-se que Nelson Mandela foi preso por 27 anos, combatendo esse sistema terrível de discriminação racial, assim fazendo até morrer. Apartheid vem da língua africâner, significando a política

Page 112: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

112

Revista da Academia Goiana de Letras

do governo sul-africano para com os direitos sociais e políticos dos diferentes grupos raciais desse país, tendo sido oficializado em 1948, ocasião na qual o Partido Nacionalista tomou o poder. Alguns fatores foram essenciais para reduzir e até mesmo eliminar o sistema racista do apartheid, dentre outros, o desmoronamento do colonialismo português, um plebiscito realizado em 1992, só para brancos, obtendo 69% dos votos a favor das mudanças. A efetiva e heroica participação de Nelson Mandela, sobretudo ao ser eleito presidente da África do Sul, em 1994. A lei de direito sobre a Terra, beneficiando centenas de famílias negras. Em junho de 1995, a pena de morte foi abolida. A promulgação da primeira Constituição democrática, em março de 1996, a bem pensar, consolida a convicção de que o racismo acabou na África do Sul, em que pese a existência dos seus inegáveis resquícios, como acontece em toda parte.

Sistema Racista à Brasileira, como demonstro no livro Racismo à Brasileira, pelo fato de ser incrivelmente mascarado e dissimulado, é o pior do mundo para ser detectado e combatido. Nas Américas e pelo mundo afora, essa modalidade deve ser a mais sutil e disfarçada, chegando a ser apócrifa, meio oculta. No capítulo “Características do racismo brasileiro”, digo que é realmente todo especial, engenhoso, até meloso e pegajoso, por esconder suas táticas e sua rigidez. Aliás, de tão estereotipado e hipócrita, deixa a impressão de não existir, como já aconteceu por algumas décadas e como se nada justificasse combatê-lo, já que existe até lei para conceituá-lo e defini-lo, inclusive como um crime imprescritível e inafiançável. De tão irônico e capcioso, esconde-se e se efetiva no próprio bojo e interior da “Democracia Racial”, justificando, inclusive, o nome deste livro. Note-se que,

Page 113: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

113

Revista da Academia Goiana de Letras

de tão incrível, conseguiu transformar o negro – sem desprezar o índio – em assunto de laboratório e tema para ser usado como material de estudo, sobretudo nos meios acadêmicos, onde, a partir de 1970, virou objeto de “preocupação teórica” em eruditas dissertações ou teses universitárias, onde, aliás, foi transformado em “preconceito de marca”, como se não fosse através da “marca” (preconceito contra a cor, modelo estético ou fenotípico), que se atinge a origem (preconceito racial ou genotípico). Vale dizer que só raramente aparece à luz. Torna-se surpreendente. Por isso, a recusa seria somente ao elemento físico, à cor, ao fenótipo. A origem estaria salva! Essa tese, porém, não realça a verdade. Não passa de uma bem-engendrada e perenizada desculpa com a qual se tenta justificar e, por efeito, negar a existência do racismo brasileiro. Quando o verdadeiro e incontroverso é que sempre houve um repúdio, uma dissimulada, mas inegável recusa ao povo negro. Aliás, em um país onde a cor branca continua como atestado de boa conduta, dissimulá-lo ou disfarçá-lo vem sendo uma de suas principais táticas e estratégias, tendo razão, portanto, o escritor Abdias do Nascimento – aqui merecidamente citado – ao compará-lo com as cores de um camaleão e admiti-lo como bem-eficiente nos seus objetivos, tendo como principal deles a erradicação e um lento genocídio da população negra, fenômeno ainda acontecendo neste país, onde o negro não pode ser Negro, uma História, uma Dignidade. Nem sua alma pode ser negra!

Page 114: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

114

Nelly Alves de Almeida: a estrutura fundamental da literatura feita em Goiás, em dez movimentos,

como se fossem sinfonia de palavras, na vasta lentidão do tempo

Miguel Jorge

1º Movimento:

“Era a minha infância que surgia, fresca e loira; os anos iam caindo como fileiras de cartas de jogar encurvadas, com que eu brincava em pequeno, e deixavam-me ver a nossa casa, a nossa família, as nossas festas” (Machado de Assis).

Poderia dizer, desse início do primeiro movimento, que a vida é eterna experiência, módulos qualificados para aceitação ou recusa nos tempos de hoje e de ontem.

Importante, mais do que parece à primeira vista, é notar e assinalar, a espontaneidade, inclusive espiritual, despojamento interativo, de Nelly Alves de Almeida, para escrever seu livro: Tempo de Ontem, Memórias e Estórias, limiar perceptivo da consciência psicológica na sucessão de fatos, principalmente da infância, à guisa de efeitos e compreensão de um tempo em que tudo era paisagem e descobertas.

Encontra-se, aí, a qualificação da escritora, tratado de afirmação de seu estilo único, inconfundível, como se fosse uma luz, iluminação definitiva sobre sua vida em família; a infância, avaliada em eternas descobertas, abrindo caminhos para novas perspectivas, com definição própria para dois mundos: o da cidade: convivência com aceitação de vida moderna, e o mundo rural, onde ela, em criança, passava férias na fazenda da família.

Page 115: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

115

Revista da Academia Goiana de Letras

Nesse tratamento de espaços surgem os sons, ruídos, composição de personagens rural de “extrema e complexa liberdade” da fala, costumes, da atmosfera de aventuras abertas com a chegada das pessoas importantes da cidade. Gente letrada, figuras de lendas, de aventuras que justificam o temor da aproximação, das conversas, das perguntas, meio que tímidas, meio que singelas, mas recobertas de extremada curiosidade.

Foi com essa casualidade que Nelly Alves de Almeida escreveu, em seu livro, Tempo de Ontem, à página 35, Imprensa da UFG, 1952, excelente relato contextualizado para o riso, o humorismo desinteressado, intitulado: Um Pouco de Humor.Trata-se de uma história típica de imagens possíveis, no espaço rural de outrora, onde uma menina analfabeta, aos oito anos, chamada Nelly ouvia a pergunta: – Nelly já saiu do abcê?

“Era o estribilho triste, agudo, doloroso que me feria os ouvidos e que eu adivinhava ressoando no ambiente”. Escrevia ela.

“Outra coisa que me irritava profundamente e me punha fora de mim era a grafia do meu nome com aquele y final que me encabulava e que meus irmãos e primos gritavam, em coro, soletrando como para me aborrecer, num ritmo cadenciado que me exasperava:

– Ne-li-nelêi-Ly pisssilone!Como me feria os ouvidos aquele pissilone!De outra feita, uma menina da fazenda, mais ousada, indagava:– De onde qui ocêis é?Pernóstica, entre desprezo e sapiência, respondi:– Do Brasil.E ouvi, orgulhosa, poderosa, a exclamação assombrada e coletiva:– Virge! É longe?E eu respondi, acompanhando-as na mesma linguagem,

desfiando os fios da minha mentira:

Page 116: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

116

Revista da Academia Goiana de Letras

– Deus me livre! Tem treis meis que s´tamos no caminho. Ocêis nem maginam os perigos que passamo.

“Quem nada tem a narrar sobre sua vida íntima é porque não a tem ou não a conhece” diz, Anatol Rosenfeld.

E Nelly Alves de Almeida retornou a sua vida íntima de infancia, na simultaneidade do convívio coletivo em zona rural para enfocar “estórias” que jogam com grandes espaços, o centro pessoal de sua vivência pródiga em acontecimentos inesquecíveis.

2º Movimento:

Pouco a pouco as palavras de Nelly Alves de Almeida, como se saídas das manhãs, se aproximam, em versos, das pessoas que lhe são caras.

A Dor da Perda, a Sensação Consciente de que o universo inteiro abria-se em lenta agonia para ela, como se fosse possível retirar de dentro de si, o sofrimento, um pequeno lance, possível que fosse, de abolir o que o destino lhe reservara.

Clássica no vestir, no falar, na existência em família: o marido Dr. Humberto Ludovico de Almeida; os filhos, Humberto Filho e Paulo Humberto; a nora Terezinha Ludovico de Almeida; a neta Clarissa Teixeira Ludovico de Almeida, no acordar para a vida.

Alma boa a abrir-se em enciclopédia para ajudar as pessoas, os iniciantes nas letras, a literatura a sair das sombras para iluminar caminhos, os seus caminhos e de tantas outras pessoas.

Nelly era assim: sorridente, amável, profissional, transparente em suas ações, sofrida na alma e no coração, a carregar consigo o sentimento da perda de uma filha, Heloisa Nelly, criança ainda a brincar no crepúsculo das tardes, na verde relva dos jardins, com a sensação consciente de ser-se criança, de ainda não saber o que se deseja da vida, mas que a sentia em seus dolorosos impactos.

Page 117: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

117

Revista da Academia Goiana de Letras

De Nelly, guardamos a clássica maneira de ser. De viver, de lidar com as pessoas que aportavam em sua casa. O tempo das orações, as palavras incentivadoras aos que necessitavam delas, os conselhos dados ao pé da mesa, a liberdade de ser-se o que é, ou de tornar-se livre dentro do seu próprio eu.

A professora de Filologia queria mostrar outro mundo para nós, ainda jovens estudiosos, agrupados em torno da ficção e da poesia. Corria o tempo do GEN (Grupo de Escritores Novos) aliás, Nelly Alves de Almeida, associava-se aos sonhos dos jovens escritores apontando caminhos, mantendo acesa a eterna inspiração do fazer literário. E, então, ela nos indicava o caminho interminável do saber aprender, a paciência de que tudo viria a seu modo e a seu tempo, com afinco, dedicação, estudos.

3º Movimento:

A Qualidade, o Prazer Peculiar de Quem descobre a Solidariedade, o humanismo existente na Literatura, mais ainda: A Literatura posta sobre a vida, ou ao encontro da vida, que Realidade e Ficção se mesclam na Duplicidade de sua origem, Como que Nutridas de sua Própria Essência.

Nelly Alves de Almeida era assim: meiga, às vezes dura, se necessário fosse, nos caminhos que habitava. “Não era breve sombra da estrutura de árvore”, era a árvore inteira em sua floração, sombra, frutos, morada de pássaros, borboletas, e por onde podia-se ver o céu em suas entonações de cores; a melancolia dos becos, das ruas da cidade que crescia, os momentos em que alguém por lá aportava em busca de abrigo, de uma palavra amiga. Saber ouvir ainda é uma das grandes sabedorias da vida. Assim era Nelly com suas amizades, suas queridas confreiras da AFLAG,

Page 118: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

118

Revista da Academia Goiana de Letras

principalmente, as idealizadoras daquela casa de cultura: Rosarita Fleury, Ana Braga. E, por convite de suas fundadoras, fiz-me presente à inauguração da Academia Feminina de Letras e Artes de Goiás. E lá marcaram presença vários escritores, testemunhas do surgimento de um novo espaço, matéria para sucessivas reuniões e trabalhos artísticos, em 9 de novembro de 1969: José Xavier de Almeida, Bariani Ortencio, Heitor Moraes Fleury, Nelly Alves de Almeida, Humberto Filho, Rosarita Fleury, Ana Braga, Dr. Jerônimo Geraldo de Queiróz, Durval Teixeira, Jerônimo Augusto Curado Fleury, Auristela Belém, Elizabeth Fleury, atual presidente da AFLAG, tão importante para o Estado de Goiás. Então, partiram elas para novas jornadas na literatura, artes plásticas, música. Abriam-se, assim, outras janelas para o monumento sensível da palavra, das tintas, das pesquisas, das notas musicais. Constava-se, então, o verdadeiro desejo das mulheres da AFLAG de ampliar, com seu trabalho artístico, o panorama das artes feitas em Goiás.

4º Movimento:

Revolucionária Forma de Viver em Plena Década de 60. Os Estudos Literários a Modificar a Violência, a Estupidez Humana, Seja de qual Espécie For. Os olhos viam, Mas As Palavras, Guardavam Comovidas, Memórias De Um tempo Em Que a Razão Justificava Crimes.

E mesmo com todos os afazeres domésticos, Nelly achava tempo para conversar, ouvir, aconselhar, tecer sua escritura, poemas, ensaios, oferecendo aos leitores novos postulados de crítica sobre escritores selecionados por ela.

A casa de Nelly e de Dr. Humberto Ludovico era chão de amabilidade e de cultura. Quem disse estar ali naquela casa,

Page 119: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

119

Revista da Academia Goiana de Letras

sentiria a aura de leveza, tenacidade, carinho, gestos, palavras de calor, sabedoria de quem deseja passar sensibilidade, o brilho invulgar da palavra. Era porto seguro para se livrar dos assombros da vida, para salvar o espírito de coisas pequenas.

Se fosse preciso orar, orava-se. Se fosse preciso se alimentar, lá estava a mesa posta com biscoitos, café, bolos, pão de queijo, doces. Faziam-se também pensamentos positivos, tomavam-se decisões importantes, que afinal, dizer-se o que de sonho se desejava, não era difícil, nem impossível.

Lêda Selma, no discurso de sua posse na Cadeira de número 14, ocupada antes por Nelly Alves de Almeida, evidencia as possíveis identificações na construção de suas vidas dedicadas à literatura. Transmite-nos, Lêda Selma, postulados de possibilidades “de uma nova transcendência”. E, em certa altura de seu texto, utiliza expressões que eu chamo de combinações afetivas, qualidades exclusivas de valores relacionados com sua mestra: “Nelly Alves de Almeida – ah, quanta saudade, mestra e amiga! – de quem só conheci o jeito carinhoso e terno, além da permanente disposição de orientar e sempre incentivar mesmo, quem, apenas tentava esboçar os primeiros passos em direção à caminhada literária. Nelly foi a última ocupante da Cadeira de número 14”.

E continua Lêda: “[...] E com a humildade dos grandes, com certeza, lá de um dos beirais do Parnaso, ela me abençoará com a generosidade do espírito altaneiro em festiva revoada”.

5º Movimento:

Nada me Concede Maior Prazer do que Antever Mudanças, Principalmente no que se Refere à Grandiosidade das Almas.

Agora, nesta homenagem centenária, prestada a Nelly Alves de Almeida, proposição feita pelo acadêmico Luiz de

Page 120: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

120

Revista da Academia Goiana de Letras

Aquino, traçamos, com a pluralidade de informações, o perfil da escritora: quem sabe a se imaginar a mulher vibrante, de personalidade forte, olhos acesos para os florescimentos tradicionais e modernos da literatura. Eu a imagino assim e sempre: pensamento elevado a Deus, a tirar grandes lições das coisas simples da vida, a saber usar a linguagem no ritmo de todas as esferas, a retirar as pedras estiradas no meio dos caminhos.

Há muito mais coisas nas entrelinhas do livro Quatro Regionalistas, escrito por Nelly Alves de Almeida, lançado em 1985, pela Editora da UFG. Nesse livro, Nelly estuda a obra de Bernardo Élis, Hugo de Carvalho Ramos, Carmo Bernardes e Mário Palmério. Nele se encontra o mapeamento caboclo dos sertões de Goiás e Minas Gerais. Há o linguajar daquela gente roceira, o longo caminho das boiadas, dos boiadeiros, a melancolia dos currais que cercavam os beirais das fazendas. O cheiro das matas, árvores, flores, frutos, a sabedoria de quem, a meu ver, tece, através de muitas imagens reais, seu discurso poético. E aí, nos sentidos e sentimentos dessas obras, vigora as catingas, o histórico de gente que habita os cerrados, hoje quase totalmente destruídos. Valho-me dos versos de João Cabral de Melo Neto para traçar o perfil do homem incrustado nos sertões deste imenso Brasil:

Daí porque o sertanejo fala pouco:as palavras de pedra ulceram a bocae no idioma pedra se fala doloroso;o natural desse idioma fala à força.Daí também porque ele fala devagar;

Page 121: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

121

Revista da Academia Goiana de Letras

tem de pegar as palavra com cuidado,confeitá-las na língua, rebuçá-las;pois toma tempo todo esse trabalho.

Então, esse era um tempo de indagações, de descobertas de crimes a se fechar no ritmo alucinado da literatura de Bernardo Élis, sua escritura forte definitiva, marcante em sua subjetividade e posicionamento social.

Quem pode se esquecer de Ermos e Gerais, primeiro e marcante livro do grande Bernardo Élis? Quem pode se esquecer dos personagens acentuadamente fortes, tecidos pela contingência fundamental de sua força criativa? Aí estão, vivos e muito bem-caracterizados: o Velho Januário, Camélia, Izé de Catirina, Inhola dos Anjos, Quelemente, Rosa, Piano, André Louco, Pai Norato e uma multiplicidade de figuras incorporadas à essencialidade de sua obra. Quem não leu e se encantou com Hugo de Carvalho Ramos, e seu Tropas e Boiadas, lançado em 1917: Rio de Janeiro, Revista dos Tribunais.

Quem não se emocionou com o conto: “Ninho de Periquitos”, narrativa de grande força expressiva, linguagem atada ao mundo externo, mas, também aprofundada nos sentimentos interiores do contista, em que entram como personagens o caboclo, o ninho de periquitos, a cobra. O desfecho, surpreendentemente realista, é algo que tira o leitor de sua cômoda passividade para fazê-lo refletir sobre o que se pode esperar dos bons escritores regionais.

Quem não se lembra de Carmo Bernardes? Regionalista por excelência, com seu longo e primoroso estudo das plantas do cerrado, o linguajar oralizado dos que habitam os grotões sertanejos? Quem não se lembra de Jângala? Rememórias? Pois é, Nelly debruçou-se sobre a obra destas grandes figuras e nos presenteou com a verdade de suas escrituras que “mescla a análise

Page 122: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

122

Revista da Academia Goiana de Letras

estrutural da obra literária com a busca por uma verdade mais ampla sobre o mundo, no caso regional, revelado no texto”. A autora analisa aspectos linguísticos e estilísticos desses escritores. Ainda devemos dizer que cada estudo acompanha um glossário de expressões próprias da literatura regionalista. Reputo como trabalho sério, de fôlego, pois “a literatura encarna sempre um pensamento sobre o mundo e sobre o que é humano, e a crítica pode fazer a mesma coisa”, no dizer de Todorov.

Ainda aí, nessa história das estórias goianas, Nelly introduziu em seus estudos, a figura mineira do regionalista Mário Palmério, autor de Vila dos Confins, Chapadão do Bugre, textos elaborados com a mesma disposição dos nossos autores, aproximando-nos da realidade rural goiana e mineira. Livros importantes, mais ainda nos dias atuais, pelo registro feito da maneira do ver, ouvir, viver, estar no mundo dos gerais.

Estudiosa, séria no fazer escritural e crítico, Nelly foi a fundo nas pesquisas, na associação de sentimentos nutridos por causa e pela causa de seus personagens.

6º Movimento:

O da Sabedoria, dos Estudos, o Cenário Descritivo dos Personagens que, de Certa Forma, Estão Entre Nós. Pois, são dos Desfalecimentos da Vida que o Escritor Busca sua Realidade, o Crer-se na Engrenagem de Seu Trabalho, que, enfim, são as Verdadeiras Regras do seu Viver.

Nelly, para se aprofundar em seus ensaios, estudou Geografia, as variações do linguajar sertanejo, entrou no mundo imaginário e real dos personagens, alicerçada por entrevistas, observações, pelo ajustamento de certas palavras certeiras, no rigor de sua evocação. Criteriosa na elaboração de seus livros, reconhecemos nela, reflexos dos caminhos impostos pela busca

Page 123: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

123

Revista da Academia Goiana de Letras

incessante da criação literária, seus desdobramentos, os caminhos secretos por onde o escritor pode trafegar com inteira liberdade.

Em Análises e Conclusões, 2º Volume, editado pelo CERNE, em 1988, Léo Godoy Otero, na orelha do livro diz o seguinte:

Análises e Conclusões (Estudos Sobre Autores Goianos) é obra de participação da vida cultural de Goiás, tendo também compromissos com a história e as angústias sociais pois é, na verdade, uma reflexão de todo um contexto a par de estudos mais atuais da teoria da literatura e da própria literatura em si, com os quais a autora se identifica e evidencia em seu trabalho de fôlego.

José Mendonça Teles, no prefácio, diz o seguinte:

Vivendo intensamente a vida interior, “a de mais batalha, de mais inquietação, de mais ânsia”, como diz Unamuno ao definir cultura, Nelly Alves de Almeida é uma dessas notáveis mulheres que constroem seu mundo literário na imensidão silenciosa de sua biblioteca.

Registro de uma obra, editado pelo próprio Humberto Ludovico, em 1994, Editora Kelps, traz opiniões e comentário de vários escritores da cena cultural de Goiás sobre as atividades literárias de Nelly Alves de Almeida. O livro foi prefaciado por Antenor Nascentes, filólogo, dialectólogo e lexicógrafo.

Humberto Ludovico, na apresentação da obra, diz o seguinte: “Pensei em reunir, em volume, estas páginas, valiosíssimas opiniões, assinadas por nomes de relevo, sobre o trabalho intelectual de Nelly”. O livro expõe pensamentos de Ana Braga, Victor de Carvalho Ramos, Moema de Castro e Silva Olival, Brasigóis Felício, Geraldo Coelho Vaz, Ercília Macedo, José Mendonça Teles, Altamiro de

Page 124: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

124

Revista da Academia Goiana de Letras

Moura Pacheco, Aidenor Aires, Lygia de Moura Rassi, Wendel Santos, Gilberto Mendonça Teles, entre tantos outros de idêntica significação e referência.

7º Movimento:

Emergem em Fragmentos os Acertos Aclarados do Coração, da Inteligência da Escritora. O Abrir-se de Portas para Novos Entendimentos. O Amor pelos Antigos Dias, As Vozes que se Juntam, Feito Sementes, na Paisagem Inquieta das Artes.

Assim foi, assim é, Nelly Alves de Almeida, em seu perfil de crítica, ensaísta, filóloga, cronista, poeta, historiadora. Quem sabe, talvez, porque assim ela entendia melhor sua relação com a vida, seus pontos de encontros e desencontros, sua visão renovada e renovadora de interagir com o mundo. Gostaria ainda de interferir na instrumentalização possível da filosofia, da espiritualidade, acrescida ainda do inconfundível sentimento de família, esposa, mãe dedicada, sempre presente.

Não deixa de ser também a visão aprimorada de uma época; registros das adversidades de um tempo intensamente vivido e estudado por Nelly à luz do modernismo que amplia um pouco o conceito de narrativa e de poesia; princípios de relações entre a realidade revisitada e o direcionamento possível de novas imagens; com a consciência de quem se liberta das formas rígidas, vendo aclarar-se diante de si novas possibilidades de liberdade criativa; da inevitável sinalização do leitor, agora colocado dentro de uma lógica reflexiva, indagadora, participativa.

Em registro histórico no livro: Memórias Goianienses I, organizado por José Mendonça Teles, há uma indagação sobre a Goiânia de Ontem como de Hoje. Não se pode negar o

Page 125: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

125

Revista da Academia Goiana de Letras

pensamento antecipativo e a leveza espiritual de Nelly. Então, ela deu sua resposta sobre Goiânia:

Vi-a, presenciei-a desde o vazio, quase indefinido. E minha grande emoção está em ter tido o privilégio de vê-la engatinhando, em assistir o seu abraço com a adolescência, agora, em acompanhá-la, já adulta, envolvida na maturidade e consciência de um progresso sempre renovado.

Dir-se-ia de Goiânia de agora, que a cidade caminha a passos apressados, ao alcance de suas botas largas, concretas, às vezes levada pela irônica ironia das anulações em face de um contemporâneo e violento progresso.

Digo ainda, em versos, sobre a grande Goiânia:

Emaranhados de fios e cobres, a cidade se cobre. Busca-se a virtude para se colocar nela. Coisa rara em se falando em virtude, ainda Mais daqueles que se dizem justos. Ajusta-se A consciência de conformidade com as horas. Horrorizam-se apenas por um segundo. Menos, talvez, uma fração de segundos. Ou nem tanto. Depois, manda-se os segundos À merda.

Há muito mais para se dizer dos estudos e pesquisas de Nelly Alves de Almeida, do esforço para manifestar-se concretamente, mesmo vendo a vida partir-se aos pedaços, por imposição do destino.

Fui eu seu amigo o suficiente para vê-la, em ternura, dedicação, a afirmar-se em todos os aspectos peculiares de sua

Page 126: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

126

Revista da Academia Goiana de Letras

vida: da violência da dor para o florescimento aclareado pela luz da filosofia, poesia, literatura.

8º Movimento:

O da Poesia. “Prouvera aos deuses, meu coração triste, que o Destino tivesse um sentido! Prouvera antes ao Destino que os deuses o tivessem!” Fernando Pessoa.

Segundo Antonio Silveira, “o poeta é um construtor, um criador. Pode espelhar-se nas coisas da natureza, ou em acontecimentos concretos. Quando não, criando a partir de uma idéia imaginária. Seu imaginário nasce de um ideal que todo ser humano busca.”

Ou, então, como diz John Keats: “ Se um pardal vem à minha janela, participo da existência dele e bico os grãozinhos de areia[...]”

Essa, talvez, e outras imposições criativas do momento, atravessam os caminhos poéticos de Nelly Alves de Almeida. A poeta que chamo de “emoção”, e que poucos conhecem, recria imagens quase simples do passado, para sair de dentro de si mesma, e assumir a essência poética, mesmo que permeada de profunda tristeza. A poeta, dona de singular criação rítmica de ternura, beleza, mergulha nas profundezas mais íntimas de seu ser, e traz de lá, a poesia da paixão triste pela perda, pelo vazio que persistia, indefinidamente, dentro dela. Assim é o seu:

Poema Triste. Nelly Alves de Almeida.

Hoje,estou tão tristeque minha tristeza contagiou os pássarose eles não cantam mais na manhã ensolarada...

Page 127: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

127

Revista da Academia Goiana de Letras

por que será, meu Deus,que o pesar inteiro do mundoeclipsou minhalma,nevando angústia em meu coraçãocristalizando saudade ao redor de mim?Por que será que estendo,em súplica, as mãose nada recebosenão esta chuva da angústiaque me inunda a alma inteira de melancolia?!Há vida lá forae há angústia aqui dentro.Uma angústia tão grande, Senhor,que seu reflexo vaza as paredes do quartome adormece a consciência,o peito,a carne,numa alucinação de coisa inatingívelIrremediável,perdida!Depois, vai refletir-se nas árvores,nas ruas,nas calçadas,num tom roxo de sofrimentoque tinge de desesperoos albores do dia claro...e a solenidade da tristezaque me invadeé tão eloquenteque sua ardência crepita vivamente,crestando o teto,

Page 128: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

128

Revista da Academia Goiana de Letras

as janelas,o chãoe enche o ambiente de um peso estranhoestranho e dolorosocomo a austeridade da morte!

Este poema triste nos surge como permanente sombra escura caída sobre o pensar da poeta. É caminho de quase crepúsculo, de versos regulares que, naquele momento, era o entardecer de todo um universo maternal, conteúdo pleno de coisas doloridas, sensações do consciente, que nem o tempo consegue apagar.

“Desenganos são experiências amargas que, contaminam esperanças. Quando a memória recorda desenganos, tampouco esquece a dor que os acompanhou. Assim o dualismo corpo e alma não pode prescindir das influências do corpo sobre a alma”, afirma Walter Benjamim.

E então, se diz, dizemos nós, a escritora Nelly Alves de Almeida deixou-nos suas indagações, seus conflitos, suas dúvidas, suas respostas, sobre a vida; despindo-se de sua pele, criando nova estrutura para a escritura de críticas literárias, crônicas, ensaios, poemas. Não se pode esquecer o passado sem comprometer o presente.

9º Movimento:

Ainda o da Poesia: Como no dizer de João Cabral de Melo Neto:

“pois nessa memória é que ela, (a poesia) inesperada, se incorpora: na presença, coisa, volume, imediata ao corpo, sólido”

Page 129: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

129

Revista da Academia Goiana de Letras

Ou ainda: Ela vai qual se a ralasse a lixa R da paisagem; ou qual se um corpo, despida, varasse a caatinga urtiga.

Era como se as palavras estivessem incorporadas ao corpo da poeta e seus poemas não eram mais do que a extensão dessa névoa, espaço para seus sentimentos. Pensamento/ coisa leve/ que voa não sei para onde/ buscando não sei o quê/ se engolfa em nuvens escuras/ em nuvens cinzentas/ brancas/ e traz por peito tristonho/ certeza de liberdade/ desejo de alegria.

Tudo se alinha, tudo se move, tudo toma forma: aspectos formais, imagens, o tom baixo de quem é somente sofrimento, as impressões estranhas à sua alma e por onde a alma se arrasta a tentar prender, ainda citando João Cabral de Melo Neto, todos os temas/ que pode haver no corpo frase.

10º Último Movimento:

Neste décimo e último movimento, dedico meus versos em homenagem a Nelly Alves de Almeida; talhados junto as vozes adormecidas da memória, as vozes adormecidas no tempo, como se vindas dos lugares, recantos desta cidade que sustenta, indiferente, o destino de seus poetas.

UM PENSAMENTO BRANCO NA LINHA VERTICAL DO HORIZONTE

Para Nelly Alves de Almeida

Porém, ela Nelly, com sua estrutura, naturalmente forte,acresceu-se de muitas coisas. O que sinto é que as mães

Page 130: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

130

Revista da Academia Goiana de Letras

lembram sofrimento, ao passar em alinhavo suas preces, quase sempre santas, muitas vezes humanas.Assim, vejo-a por inteiro no chão escolhido por ela.E mais a casa, seus moradores, a mistura de cores,e o Tempo de Ontem, agora mais sentido,(o fogo incessante da memória),Que pode alcançar os sentidosMúltiplos da vida.Nada foi consumido. Tudo permanece Nas transformações do tempo de agora.Os gestos filhos, a nudez das palavras,o haver-se , em duplo, entre corpo e espírito,a tocar no que de simples, se torna exagero da alma,Como se nova luz, descesse sobre o silêncio, Quem sabe, a conspirar algo novo sobre Antigas frases, imagens a entrelaçar memóriasAdormecidas no tempo.

Assim é Nelly Alves de Almeida,Ao fazer-se em várias, múltiplas,Em corpo, alma a atirar-se para o infinito de coisas, a dizer-seAve móvel, a desenhar obscuroSol de interna paisagem adormecidaNo incessante fogo da memória.

Goiânia, 10 de maio de 2016

Page 131: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

131

Catalão e a República do Trem de Ferro

Nasr Fayad Chaul

A estrutura política republicana, sedimentada pela “política dos governadores” na gestão de Campos Sales, correspon deu ao predomí nio dos cafeicultores, envolvendo, ideologi camente, os interesses do café como se fossem os da nação. Da crescente dívida externa já desde os fins do Império ao primeiro Funding-Loan, o café foi o produto básico de exportação em torno do qual girava praticamente a maior parte da economia nacional. Dentre as figuras básicas para a manutenção do palco político republicano estava a do coronel, uma das formas de poder que constituíam o mandonismo local. Assim,

visto como a evolução do mandonismo, o estudo do coronelismo passa a ser a história da formação da cidadania. Não há nada de errado nisto e é uma história que pode ser feita. Mas fica-se na impossibilidade de precisar as fases do processo, e mesmo seu ponto final, de vez que algum tipo de clientelismo, de controle eleitoral através da distribuição de bens públicos ou privados, dificilmente deixará de existir em país que se caracteriza pela pobreza da população e pela escas sez de empre gos...”1

Dessa forma, a análise do processo no qual o coro nelismo, como forma de mandonismo local, está inserido, passa pela compre ensão da política cafeeira sob a égide do setor agroexpor-tador, controlado principalmente pelos grupos dominantes ligados à cafeicul tura paulista. No caso de Goiás, não vamos encontrar

Page 132: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

132

Revista da Academia Goiana de Letras

uma hegemonia do café como produto de cultivo básico, apesar de ter desenvolvido essa lavoura.

Neste sumaríssimo painel de alguns pontos da Primeira República, vamos nos fixar nos reflexos para a política goiana, e em particular para Catalão, da hegemonia dos grupos políticos ligados à cafeicultura e de sua crise no final dos anos 20, procurando nos deter em um dos aspectos básicos de sustentação da política dos governado res, representado pelo poder coronelístico.

Notamos que a marcha do café, em conluio com a ascensão da urbanização e industrialização do centro-sul do país, reorientou e expandiu as bases econômicas de regiões que estavam interligadas ao processo nacional, como foi o caso de Goiás. A elevação dos preços e a ocupação das terras do centro-sul através da marcha do café fizeram com que, após a ocupação do sul de Minas e do Triângulo Mineiro, levas e levas de paulistas e mineiros penetrassem no território goiano com o intuito de adquirir terras a preços baixos para desenvol verem a agropecuá ria.

Para que o resultado dessa ocupação dimensionasse a inte-gração da economia goiana à produção mercantil, com fins à inserção definitiva no mercado nacional, urgia uma implantação de transporte que fizesse a ligação do promissor mercado goiano ao centro-sul.

Uma vez que a ocupação e incorporação de novas áreas que se encontravam fora da economia de mercado faz parte da própria estrutura do capitalismo, como fator essencial do pro cesso de reprodução, o próprio capital se encarregou de cons truir, a partir da segunda década do século, a principal via de transporte para o Estado: a Estrada de Ferro de Goiás.2

Page 133: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

133

Revista da Academia Goiana de Letras

Parece ser fato pouco questionável na historiografia goiana que os grupos políticos ligados ao poder domi nante pouco ou nada fizeram para incentivar os projetos ferroviá rios, uma vez que estariam ligados economicamente a um setor (pecuária) que os mantinha politicamente e que não requisitava, como a agricultura, meios modernos de transporte.

Alguns estudiosos procuram mostrar até mesmo a obstrução desses setores ao desenvolvimento de qualquer projeto que significasse a modernização, uma vez que estariam efetivando uma política de autonomia através da manutenção do atraso.

Portanto,a implantação da Estrada de Ferro de Goiás resultou primeiro do empenho de uma fração da classe dominante ligada a novos grupos oligárquicos que despontavam como força política no Estado e que contou com o apoio do capital financeiro internacional. Em segun-do lugar, como a ferrovia servia inteiramente aos interesses da economia capitalista, ou seja, à nova ordem econômica em expansão no país, este fator, direta ou indiretamente, pressionaria o governo federal a apoiar a cons trução da linha. As oligarquias, como já foi mencionado, não se empenharam pela construção da estrada, mas isto não quer dizer que alguns dirigentes e políticos a ela ligados não tenham se levantado em determinado momento em favor da edificação da linha, inclusive como oportunismo político-elei toral. O próprio Leopoldo de Bulhões, oligarca goiano que despon tara no cenário político nacional, depois de ter sido convencido da viabilidade econômica da estrada, oportuna mente passou a lutar por ela.3

Já em 1899, o Goyaz se referia à Estrada de Ferro notando que as dificuldades econômicas que o país atravessava eram

Page 134: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

134

Revista da Academia Goiana de Letras

responsá veis pelo atraso nos serviços ferroviários. O jornal observava que

Catalão, pequena cidade hoje em condições de crescer e desdobrar -se pela amenidade de seu clima, abundância e excelência de sua águas, é o entreposto natural do comércio do Norte e do Sul de Goyaz; nada mais lógico do que o imediato prolongamento, custe o que custar, da linha férrea a esta cidade. Só assim a Companhia (Mojiana) ressarcirá os prejuízos que lhe tem dado.4

Os 72 quilômetros que faltavam no prolongamento da Mojiana até Catalão eram reclamados incessantemente, uma vez que a estrada iria de Uberaba a Araguari, podendo chegar, tranquilamente, a Catalão. Para os defensores da ideia,

[...] o prolongamento da Mojiana a Catalão não visava servir unicamente a este município, mas direta mente a oito dos mais importantes e populosos do Sul goiano, a saber: Entre-Rios, Santa Cruz, Morrinhos, Piracanjuba, Bella Vista, Bonfim, Antas e Santa Luzia. Além de população relativamente densa e que dia a dia cresce com avultada demanda de fazendas para as extensas culturas e criação em larga escala, já possuem aqueles municípios indústrias criadas, cujo incremento apenas depende da facilidade de transportes de seus produtos para os mercados consumidores [...] A Companhia tem dado como razão de seu estacionamento em Araguary as despesas que lhe trará o prolonga mento a Catalão com custosas obras d’arte para vencer a serra e transpor o Paranayba.5

Page 135: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

135

Revista da Academia Goiana de Letras

Dentre as razões apresenta das pela Cia. Mojiana estava a não-vendagem das 200.000 ações para o traje to inicial de Uberaba a Araguari.

Mas, foi sob a liderança de Xavier de Almeida que se tentaram imprimir algumas ideias modernizantes na economia goiana, razão pela qual se uniram forças políticas heterogêneas para derrubá-lo. Foi sob sua liderança que os grupos dominantes no poder pressionaram os deputados goianos para que reivindicassem a ligação, por via férrea, de Goiás ao Rio de Janeiro e a São Paulo, além da concretização dos trilhos que ligaria Goiás a Cuiabá.

Na prática, isso significaria o prolongamento da Estrada de Ferro Mojiana e da Estrada de Ferro Oeste de Minas até o Centro– Oeste. Tais projetos remontavam ao Império que, através do

decreto no 862 de 16 de outubro de 1880, concedeu à Companhia E.F. Alto Tocantins o direito de construção de uma estrada de ferro desde a Vila de Catalão, no Sul do Estado, até a de Palma, ao Norte, quase à margem do Tocantins, garantindo juros de 6% sobre o capital de 3000$, papel, por quilômetro, durante 30 anos e privilé-gio de zona por 60 anos. O decreto concedeu ainda à Companhia Estrada de Ferro Mojiana o direito de prolongar seus trilhos de Jaraguá, onde se encontravam paralisados, a Catalão. Concedeu também à Compa-nhia Estrada de Ferro Oeste de Minas o privilégio de prolongar sua linha a partir da estação de Perdões, no Oeste de Minas, até Catalão. Este projeto ferroviário colocaria Goiás em contato direto com o Rio de Janeiro e São Paulo, e a cidade de Catalão seria um importante centro de entroncamento ferroviário do Estado.6

Page 136: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

136

Revista da Academia Goiana de Letras

Após várias modificações no projeto da Cia. Mojiana para o trecho Araguari-Catalão, a Estrada de Ferro de Goiás iniciou, com a aprovação do governo federal, a construção do referido trecho em 23 de dezembro de 1909. Três anos depois, os trilhos cruzaram o rio Paranaíba, implantando a primeira via de transporte considerado moderno em Goiás, uma vez que os trilhos que ligariam Formiga a Catalão, devido a inúmeros problemas, só seriam concluídos na década de 40. De acordo com um autor que trabalhou o tema,

a ponte sobre o rio Paranaíba foi o trabalho mais notável desta seção da estrada entre Araguari e Catalão. A obra era toda em estrutura metálica e foi fabricada e montada pela companhia franco-belga Nord de Liège. A ponte fica no quilômetro 53 da linha e mede 237,50 m de extensão total. Em 15 de agosto de 1912 passa solenemente o primeiro trem sobre a estrutura metálica, com um carregamento de trilhos testando a solidez da obra e para dar continuidade ao prolongamento da estrada que já se encontrava com 27 km de leito prontos além do rio Paranaíba, em território goia no. O trecho ferroviário entre Araguari e Roncador, incluindo o ramal de Goiandira a Catalão, de 23 km, o qual correspondia à primeira etapa de implantação da Estrada de Ferro em Goiás, foi construído num período relativamente curto, tendo em vista as condições técnicas de construção da estrada na época e a topografia da região, que parecia favorável. Contudo alguns tre chos cortados pela linha apresentaram certas dificuldades, prin cipalmente nas proximidades do rio Paranaíba, na serra de Araguari. Entre 1909 e 1914 foram construídos neste trecho 233,363 km de linha.7

Page 137: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

137

Revista da Academia Goiana de Letras

Após marchas e contramarchas, paralisações e discussões sobre traçados e projetos, a construção do ramal ferroviário que ligava Araguari a Catalão e que tinha em Goiandi ra seu ponto de entronca mento, foi obtida através do empenho de políticos e de protestos da imprensa.

A construção deste ramal vinha contra os interesses dos grupos econômicos do Triângulo, pois o prolongamento da linha Mojiana pela Estrada de Ferro Goiás rumo à capital do Estado arrancaria dos comerciantes de Araguari o controle sobre o comércio goiano, ou pelo menos sobre boa parte dele [...] tornam-se compreen síveis, portanto, as razões pelas quais os grupos econômicos de Araguari se empenharam pela manutenção da ponta dos trilhos naquela cidade do Triângulo e as pressões políticas no sentido de se alterar o traçado da Estrada de Ferro de Goiás. O objetivo destes grupos era justamente o de retardar o avanço dos trilhos até Goiás, o que significaria a garantia de continuidade dos privilégios econômi cos.8

Se as barreiras de toda ordem que obstruíam o prolongamento dos trilhos de Araguari a Catalão pela Estrada de Ferro de Goiás foram sendo vencidas, o mesmo não ocorria com o trecho de Formiga a Catalão.

A construção da linha tronco de Formiga a Catalão enfrentou inúmeros problemas, sobretudo de ordem econômica e política, fazendo com que esse trecho da estrada fosse concluído só na década de 40. Primeiro, o terreno por onde passaria a estrada era de uma topografia difícil e irregular, o que emperrou o desenvolvimento das obras de construção, principalmente na passagem da

Page 138: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

138

Revista da Academia Goiana de Letras

Serra do Urubu, entre Formiga e Bambuí [...] toda a serra é cortada por profundos grotões que exigem a construção de viadutos; o terreno tem forte inclinação transversal, exigindo o emprego frequente de muralhas, além de cortes profundos e de grande volume, alguns impondo a abertura de túneis, tal a sua altura [...] os problemas topográficos foram agravados por questões financeiras da compa nhia bem como por constantes pressões políticas de fazendeiros e comer ciantes do norte de Minas, no sentido de que a linha fosse desviada em direção a Araguari, passando por Estrela do Sul.9

No trecho de Formiga a Catalão, os trabalhos seriam desenvol vidos em duas frentes, uma dando continuidade do lado de Formiga e outra que, partindo de Catalão, objetivava uma maior rapidez na conclusão dos trabalhos.

No entanto, em 1916 as obras estavam praticamente interrompidas nas duas frentes de trabalho. A falta de pagamento a empreiteiros e subempreiteiros resultou em falências e mandatos judiciais, interrompendo os trabalhos em quase todo o trecho. Do lado de Formiga a linha não ultrapassou a cidade mineira de Patrocínio. Do lado de Catalão os trabalhos de construção da ferrovia foram interrompidos na estação de Ouvidor em 19151, depois de um violento conflito entre a polícia goiana e operários da Companhia, fazendo com que a ligação entre a Estrada de Ferro de Goiás e a Estrada de Ferro Oeste de Minas se conclu ísse somente na década de 40.10

1 É importante ressaltar que o referido conflito se deu no ano de 1916 e não em 1915, como se refere o citado autor.

Page 139: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

139

Revista da Academia Goiana de Letras

O referido conflito ficou conhe cido na história local como o “massa cre dos ferroviários”, do qual falaremos posteriormente.

Com relação à produção a ser escoada pela estrada de ferro, observamos que, conforme uma publicação de 1917, Catalão possuía, em 1902, uma ampla produção agrícola, sendo que

os seus principais centros importadores de cereais e outros produtos eram Araguari e São Pedro da Uberabinha em Minas Gerais. Para o estado de São Paulo exportava banha, toucinho, manteiga e charque, este destinado ao Porto de Santos.14

A tendência das relações comerciais com São Paulo e Minas era a de aumentar com o desenvolvimento das técnicas de plantio e com a dinamização dos transportes. Já no ano de 1917, podemos observar que

este popu loso e próspero município do Sul do Estado cultiva café, cana-de-açúcar, fumo, milho, mandioca, arroz, vinhas e fabrica vinho, aguardente, farinhas de milho e de mandioca, queijos, mantei ga, banha e charques. Possui charqueadas, engenhos de beneficiar arroz e uma colônia de 30 famílias de portugueses que se dedicam à cultura da vinha e do cafeeiro, cuja colheita excede 2.000 arrobas.”11

Tal produção derivava de um município com intensas relações comerciais com São Paulo e Minas Gerais.

Em Catalão, não notamos, no período, qualquer tendência política contrária à construção dos trilhos da estrada de ferro, nem qualquer aversão a tentativas de modernização, seja por parte dos partidos políticos: “papo roxo” e “papo amarelo”, seja por parte

Page 140: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

140

Revista da Academia Goiana de Letras

das famílias: Paranhos, Ayres, Cunha, Campos, Paiva, Sampaio ou Netto, que domina ram a política local no período estudado. Uma ou outra posição no sentido de aversão à modernização aparece em atitudes isoladas, fruto de uma mentalidade que se perdeu no trilho do tempo da História e que não pode ser generalizada. Representavam casos isolados de solidão política, como, por exemplo, o de Pedro Ayres, que, segundo João Netto de Campos, era atrasado ao ponto de não querer o Banco do Brasil e o 10o Batalhão do Exército em Catalão, sob a alegação de que as mulheres logo ficariam grávidas dos soldados e o Banco só serviria para quebrar as pessoas.12 Os dois foram então alocados em Ipameri. Os resultados futuros demonstra ram que, diante dessa aparente contradição, adveio uma realidade na qual tais ideias não poderiam ser consideradas tão “atrasadas”.

O próprio setor ligado diretamente à agropecuária obteve, com a estrada de ferro, um significativo aumento de suas exportações através de, entre outros fatores, a implantação de charqueadas nas cidades percorridas pela via férrea.

A exportação do charque e de outros subprodutos do boi, como o couro, o sebo, etc., passou a ocupar posição relevante na pauta de exportação do Estado. No ano de 1918, foram abatidas nas charqueadas de Catalão, Ypameri e Anhangüera, 8.096 reses e 1.390 porcos. No início da década de 20, em apenas uma charqueada de Catalão, pertencente à firma Vaz Fernandes e Cia., eram abatidas diariamente entre 50 a 60 reses durante o ano todo, números considerados relevantes para o municí pio na época.13

Em relação ao comércio da produção agrícola, esse foi, paulatinamente, crescendo. O arroz passou a liderar a pauta de

Page 141: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

141

Revista da Academia Goiana de Letras

exportações do gênero, ficando em segundo lugar nas exportações de cereais, perdendo apenas para o gado.

Na década de 20, fazen deiros dos municípios de Ipameri e Catalão cultivaram em média entre 10 e 20 alqueires de arroz, colhendo até 10 mil sacas por ano cada um. Grande parte da produção era exportada para Minas e São Paulo.14

Além do arroz, o Sul produzia milho e cana-de-açú-car. Com o advento dos trilhos, a criação de suínos aumentou consideravelmente.

Os porcos que não eram abatidos nas charque adas locais, bem como a banha e o toucinho, tinham no mercado de Araguari comprador certo. O município de Catalão produziu em 1920 mais de 15 mil toneladas de milho.15

Assim, a estrada de ferro foi o elo que faltava na corrente comercial de Catalão com o Triângulo Mineiro e São Paulo, para uma maior desenvoltura e um maior incremento. Como nos atesta um conhecedor do assunto,

os vínculos comerciais que Goiás mantinha desde o século XIX com o Triângulo Mineiro, limitados pela carência de transporte, se intensificaram com a substituição das estradas salineiras, como eram chamadas, pelos trilhos da Goiás. A via férrea, ligando-se com a Mojiana em Ara-guari, proporcionava a ampliação do comércio do Estado não só com o norte de Minas, mas também diretamente com São Paulo.”16

Page 142: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

142

Revista da Academia Goiana de Letras

Ou, ainda, segundo noticiava uma importante revista da época,

é espantoso o aumento que de mês em mês vão tendo os artigos de exportação goiana [...] pessoas vindas do Roncador informam que as estações da E.F. de Goiás estão abarrotadas de mercadorias que aguardam praça para os mercados consumidores de Minas, São Paulo e Rio.17

Assim vista, a economia com base na agropecuária dominante na região estava intimamente ligada a Minas Gerais através da comercialização das mercadorias produzidas. Pelo que se pode daí constatar, o volume maior de comércio se efetivou através do desenvolvimento da agropecuária estimulada pela estra da de ferro, que, também, dinamizou as relações comerciais de Catalão com o Triângulo Mineiro. Em todo esse processo, não nos parece evidente que os grupos políticos hegemônicos no Estado tivessem interesses diferentes dos grupos da região no que tange ao desenvolvimento de um meio de comunicação que traria ao Estado um sentido mais amplo de moderni zação. A modernização pelo viés da estrada de ferro de forma alguma impos sibilitou a hegemonia dos grupos que continuaram liderando a política goiana ao longo da Primeira República. Abriram, isto sim, uma perspectiva de maior participação política, forçada pelo desenvolvimen to econômico das regiões inseridas no percurso da estrada de ferro.

O que nos chama bastante a atenção é o fato de o desenvol-vimento econômico da cidade ser pouco condizente com sua partici pação na política do Estado, principalmente no que tange à economia e ao transporte, uma vez que esses desenvolveram e

Page 143: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

143

Revista da Academia Goiana de Letras

ajuda ram a modernizar a região. Como, então, se estabeleceram as relações desse desenvolvimento com a política local? Qual a política de compromis sos estabelecida com o poder estadual, sendo que o desenvolvimento econômico da cidade lhe garantia uma forte pre sença na produção global do Estado? Para que tais questões possam ser melhor compreen didas partiremos da análise do poder local ou do poder coronelístico em Goiás e procuraremos ver as relações que esse teve com a cidade de Catalão.

Com relação ao coronelismo, e tomando por base as análises de Itami Campos sobre o assunto, temos, em síntese, o se guinte: a) o autor parte da hipótese de que a situação de pobreza, atraso e isolamento em que se inseria o Estado de Goiás, o tornou inexpressivo politicamente no cenário nacional e que tal situação permitiu uma autogestão político-administrativa por parte dos chefes políticos estaduais. Seria a chamada autonomia através da manutenção do atraso. Assim, para o autor, é a situação periférica de Goiás no cenário nacional que vai levá-lo a uma maior autonomia interna. A predomi nância do setor ligado à pecuária sobre os demais leva a uma maior possibilidade de exer cício do controle político interno, bem como a uma intensa e prolongada estabilidade política; b) como elementos básicos para demonstrar a situação periférica de Goiás, o autor toma os indi cadores econômicos, demográficos, geográficos e de comuni cação, além de explicar a engrenagem política que fazia funcionar a máquina administrativa do Estado. Como elemento básico para a autonomia, além da já citada situação econômica, o autor observa o não atendimento do governo federal aos pedidos de intervenção no Estado, o que viria demonstrar o descaso do mesmo para com Goiás, fruto de sua parca situação econômica. Vamos nos ater a dois pontos que nos parecem básicos e interligados na proposta de trabalho feita: economia e comunicação.

Page 144: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

144

Revista da Academia Goiana de Letras

Quanto à economia estadual, não resta dúvida de que, tendo a pecuária como base, devido à carência de transportes, comunicação e mercado, e o gado se locomover indife rente aos meios de transporte, cabia à agricultura apenas uma lavoura de subsistência nos anos iniciais da República. Dessa forma,

a economia goiana não tinha destaque no âmbito nacional, pois além de não ter indústria, não dispunha de um produto agro pecuário de significação tal como o café para São Paulo e Minas Gerais, tal como o charque para o Rio Grande do Sul.”18

Assim, a pecuária era a responsável pela maior parte da arrecadação de tributos estaduais (por volta de 32%) em compa-ração com a lavou ra (6%), o que não pagava sequer o transporte nos anos iniciais da República.

O quadro econômico começa a demonstrar uma alteração a partir da instalação da via férrea. A região sul do Estado, mais próxima a Minas e São Paulo, servia de ligação de Goiás com o mercado nacional. Os municípios de Catalão e Corumbaí ba, que eram os dois maiores produtores agrícolas por volta de 1916, encontram-se em tal divisa. Portanto, as relações comerciais de Catalão com Minas e São Paulo eram naturalmente bem maiores do que com Goiás.

Itami Campos, analisando sua hipótese cen tral sobre o coronelismo em Goiás, destaca que, apesar de Goiás estar inserido no rol dos Estados “pobres” e “atrasados”, contava, porém, com um partido político solidamente estrutu rado. Tal destaque evidencia que os autores que distiguem os centros mais ruralizados o fazem com base na assertiva de que os coronéis empregam meios e recursos privados para a ascensão e proteção de seus interesses

Page 145: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

145

Revista da Academia Goiana de Letras

mediante a não existência de um sistema partidário coeso. Não é, como observa o autor, o caso de Goiás, onde o Partido Democrata foi forte e coeso o bastante para distinguir o coronelismo goiano de outros Estados “atrasados” e com deficiência na coesão partidária.

O referido autor toca numa questão básica quando afirma que

vale aqui ressaltar que os mais expressivos chefes políticos goianos foram responsa bilizados pelo atraso do Estado e mesmo de obstar o prolongamento ferroviário, especialmente até Goiás (a cidade e capital), daí poder ser considerada esta diretriz uma estratégia política.19

Para Catalão, torna-se bastante difícil tal comprovação, uma vez que a estrada de ferro e os vagões do pro gresso econômico e da modernidade que advieram sobre seus trilhos não nos confirmam tal afirmação. Em relação ao posicionamento dos chefes políticos goianos, a favor ou contra o prolongamento dos trilhos da estrada de ferro em direção à cidade de Goiás, a Informação Goyana destaca que

o Dr. Leopoldo de Bulhões, expres sivo chefe político da época, cujo prestígio no seio da política nacional é de todos conhecido, depois de reiterados protestos contra o novo traçado que vinha retardar a chegada da via férrea ao solo goiano, conseguiu do governo federal que fosse construído o ramal de Araguari a Catalão; continuando daí o prosseguimento da estrada de ferro para a capital do Estado de Goiás.20

No que tange à chegada dos trilhos a Catalão, é incontestá-vel sua realização e a ascensão produtiva, comercial e financeira

Page 146: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

146

Revista da Academia Goiana de Letras

que ela gerou. Apesar desse progresso, contudo, sua participação política nas raias do Estado continuou diminuta.

A engrenagem política citada pelo autor era um conjunto que tinha em seu bojo a comissão executiva do partido (Democrata), o Poder Executivo e as representações federal e estadual que, uma vez coordenadas, sustentavam tal engrenagem. Será através da engrenagem (com o apoio do sistema eleitoral) que iremos perceber o grupo político dominante no Estado. Devemos ressaltar que 55,2% dos representantes estaduais e/ou federais se compunham de fazendeiros. O restante dos elementos era direta ou indiretamente a eles ligados.

A história dos partidos políticos em Goiás na Primeira República tem seu início na cisão do antigo Partido Liberal. Seus membros passaram a formar o Partido Liberal Clubis-ta, dirigido pelos Bulhões, enquanto que o Partido Liberal Histó rico era comandado pelos Fleurys. Em 1887, é fundado por Guimarães Natal o Partido Republicano que, apesar da falta de expressão, entra em ascensão com a proclamação da República. Já em 1890, os Bulhões e seus coligados formam o Centro Republicano, que elegeu cinco de seus membros para a Constituinte da época. Na segunda cisão ou segundo cisma partidá rio, Bulhões, ao apoiar Prudente de Morais, viu-se derrotado pelos Fleurys, que apoiaram Deodoro. Esse se une ao Partido Católico, fundando em 1891 o Partido Republica no Federal. Com a ascensão de Deodoro da Fonseca, o Estado de Goiás se vê numa situação descon fortável: o presidente e o vice eram escolhidos pelo governo central e posteriormente eleitos pelo Partido Republicano Federal, enquanto a Assembleia era dominada pelo Partido Republicano de Goiás, mais conhecido como Centro Republicano.

Page 147: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

147

Revista da Academia Goiana de Letras

Em Catalão, como acontecia em todo o Estado, desde cedo houve a formação de Partidos, logo institucionalizados e estruturados, vinculados a coronéis locais. Em Catalão, notamos já nos fins do século XIX, a formação do “papo-roxo” e do “papo-amarelo”. O primeiro era liderado pelos Paranhos e ligado ao Centro Republicano, enquanto o segundo era dominado pelos Ayres e futuramente iria se articular com o Partido Democrata, a ser criado em janeiro de 1910. A nomenclatura desses dois partidos, ao que tudo indica, adveio das carabinas utilizadas na época, que traziam em suas coronhas tais cores.

Sem dúvida, Catalão era uma região que, ao longo dos anos 20, teve amplo progresso econômico, fato que trouxe o incremento das comunicações. Ali os coronéis estavam vinculados aos partidos políticos dentro de um contexto econômico que visava a caminhar no sentido da prosperidade e da modernidade, comparativamente a outras localidades do Estado. Em 1928, já observava A Informação Goyana que

o município de Catalão é o que está tomando a vanguarda na introdução da lavoura mecânica no Estado.21

A existência de uma Imprensa elaborada encontra justificativa no nível de preocupação da cidade para com a Educação. “Para dar idéia do que é o ensino em Catalão basta dizer que, para a manutenção do mesmo, a munici palidade dispende de 40% do seu orçamento, fato único em todo o Brasil.”22 Foram intensos os vínculos educacionais com o Triângulo Mineiro e Rio de Janeiro, para onde se deslocaram vários estudan tes em busca de sua formação.

Page 148: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

148

Revista da Academia Goiana de Letras

Como mola-mestra no funcionamento da estrutura partidária temos a política coronelística. A frase de João Netto de Campos sintetiza bem a política local: “Era só coro nel que mandava, quase todos eram coronéis [...] Demétrio, Augusto Netto, Pedro Ayres, Salviano e os Paranhos (Antônio e Alfredo).”23 O mandonismo local pouco foge à regra geral da política e à prática coronelística em seu reflexo imediato. Era o controle político através da barganha do voto e a violência como forma imperativa, até os anos 40, como requisito básico para controlar o poder. Não havia, ao que parece, entre os latifundiários catalanos, grande diferença de fortuna e menos ainda de tergiversações ideológicas.

Não tinha ideologia nenhuma, a disputa era pelo poder mesmo. Não tinha grandes fortunas. O sujeito só gastava, não ganhava nada. Não havia corrupção nem roubalheira. Era só sede de poder mesmo, pra dizer: eu mando aqui!24

Fica claro, pelo depoimento desse autor, que o político precedia o econômico. Havia em Catalão coronéis que eram parceiros e pares de igualdade econômica, uma vez que os latifúndios pouco os diferenciava, o comércio era equitativo, e a ideologia em nada os divergia. Restava então fazer a diferenciação através do controle político. A forma de diferenciação frente aos eleitores e ao governo, no contexto da política dos governadores, estava no viés do controle político da região, no domínio do mando.

Contrariando algumas teses sobre o coronelismo, a política executada na região visava, fundamentalmente, ao relaciona mento com o governo estadual e ao controle do eleitorado regional, bem como o controle da prefeitura, cartórios, coletoria, delega cia e

Page 149: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

149

Revista da Academia Goiana de Letras

outros cargos da esfera municipal, desde que tais relações ficassem na esfera administra tiva da municipalidade.

Assim, fica-nos menos difícil compreender porque a Estrada de Ferro e o ideal de modernização uniam os mandantes locais bem mais que os separavam. As transformações econômicas não comprome teriam o universo político, como prova a própria estruturação do progresso econômico-financeiro que a região experimentou desde a implantação dos trilhos.

Com o advento da República e a política dos governadores, o coronel ou mandante local ganha uma dimensão política maior, dependendo, porém, da arte de fazer favores. Em entrevista aos autores, Amélio Salviano da Costa conta que começou a votar em 1934, dentro já de uma perspectiva de voto secreto, com o voto sendo ainda totalmente, no caso dele, inconsciente, ou seja, votava-se no candidato que o pai determinasse. Outro expediente bastante comum na Primeira República, o curral eleitoral, foi utilizado no seu sentido mais explícito em Catalão. Conta-se que havia reuniões em véspera de eleições com bebidas e diversões, muitas vezes no próprio curral das fazendas dos candi datos ou dos chefes políticos locais, de onde os eleitores só saíam acompanhados de um jagunço para o exercício do voto.

Não é necessário observarmos mais demoradamente que Catalão não diferia da prática política de outras regiões quanto às fraudes eleitorais ou manipulações de votos. O que importa salientar é que o resultado do tipo de mandonismo local ali presente, tanto pelas entrevistas feitas quanto pelos docu mentos analisados, remete-nos à conclusão de que não era a situação econômica que determinava a vida política local. Não havia grandes fortunas e nem sempre o mantenedor do maior espólio econômico era o agenciador ou mentor político da região.

Page 150: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

150

Revista da Academia Goiana de Letras

Ao contrário do que Itami Campos observa para Goiás como um todo, ou pelo menos para o centro de poder político da Primeira República, em Catalão, não vamos encontrar muito facilmente mentalidades ou práticas de políticos avessos à modernização ou à prosperidade econômica do município.

No jogo político coordenado pelos dirigentes da política goiana, naquilo que Itami Campos chama de manutenção da hegemo nia através do atraso, Catalão e seu surto desenvolvimentista seriam a antítese do que os grupos dominantes locais gostariam que fosse o desenvolvimento de Goiás? Seria por essa razão que esses grupos políticos dominantes alijavam o Sul em grande parte e o Sudoeste de qualquer participação mais efetiva no controle político do Esta do? Acreditamos que não. As oligarquias não poderiam deixar de apoiar um projeto de modernização que reforçasse sua hegemonia de elite, pois seria o mesmo que abdicar de tal situação. Além disso, as relações econômicas eram bem maiores com Minas do que com o próprio Estado de Goiás. Aí, sim, reside a questão básica, pois os vínculos econômicos, sociais e até mesmo culturais eram mais intensos com Minas do que propriamente com Goiás. Dessa forma, o surto de desenvolvimento econômico de Catalão não ameaçaria a hegemonia dos grupos dominantes. Pelo contrário.

Por outro lado, o que também notamos é que os grupos políticos dominantes em âmbito estadual não tinham nos polí-ticos catalanos parceiros de seus interesses, uma vez que, principalmente para eles, o mundo girava em torno de suas famílias, de seus domínios, de seus interesses. Catalão não parecia fazer parte desse universo, embora fizesse parte da República da Estrada de Ferro.

Page 151: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

151

Revista da Academia Goiana de Letras

NOTAS

01. CARVALHO, José Murilo de. “Coronelismo”. In: Dicionário Histórico Bio gráfi co Brasi leiro: 1930- 1983. Rio de Janei ro, Foren se, Vl. 2, p. 932.

02. BORGES, Barsanufo Gomides. O Despertar dos Dormentes. Goiânia, Cegraf,1990. p. 54 (Dis-sertação de Mestrado).

03. Idem. Apesar de o termo oligarquia estar presente em algumas notas citadas, preferimos quali-ficar como “grupos políti cos dominan tes”, ao invés de oligarquias, os poderes repre sentativos no contexto históri co apresentado.

04. O Goyaz. 29 de março de 1889, n1 610.05. Idem.06. BORGES, Barsanufo. op. cit., p. 59.07. Idem, p. 67.08. Idem, p. 65.09. Idem, p. 65-6.10. Idem, p. 67-8.11. A Informação Goyana, n1 1. Vl. 1. 1917.12. Idem, ibidem.13. Conta-se que o referido chefe local, certa feita recebendo em sua casa o sena dor A. Ramos Caia-

do, o levou para uma visita no enorme quintal, rico em frutas. A certa altura do tinho so papo, come çou a armar um forte temporal e o senador, de baixo de um mamoeiro, olhando as nuvens carrega das exclamou: “a atmosfera está carregada!” No que lhe retrucou Pedro Ayres: “que nada, estes estão pequenos, o Sr. precisa de ver cada atmosferão que dá por aqui!”. In: João Netto de Campos, em entrevista aos autores, em 22 de junho de 1989.

14. BORGES, Barsanufo. op. cit. p. 102-3.15. Idem, p. 105.16. Idem, p. 106-7.17. Idem, p. 20.18. A Informação Goyana. 1918, p. 169.19. CAMPOS, Francisco Itami. O Coronelismo em Goiás. Goiânia, Cegraf, 1982, p. 28.20. Idem, p. 42.21. A Informação Goyana. 1918, n1 9, p. 104.22. A Informação Goyana, n1 2.23. Idem, Vl. 1, n1 4.24. João Netto de Campos em entrevista aos autores, 22.06.89.25. Idem.

Page 152: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava
Page 153: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

ROMANCE

Page 154: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava
Page 155: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

155

Cenas de uma Negociação(Trecho do segundo volume a sair do romance

Naqueles morros, depois da chuva)

Edival Lourenço

À mesa de negociações, no maior salão do palácio, rodeados por ampla assistência, entre curiosa e solene, encontram-se Dom Luís de Assis Mascarenhas de um lado e o capitão do mato Antônio Pires de Campo – o dito Pai-pirá – de outro, onde hão de medir-se, pelas próximas horas, num duro duelo negocial. O sol lá fora é inclemente, com seu poder redobrado pelo rebate da luz nas rochas escarpadas dos paredões ao redor e a dispersão no ambiente e não há benesses de um vento sequer, por anônimo que seja, cortejando pelas ruelas do arraial. Aquele calor abafadiço do meio da tarde faz a aglomeração de homens ficar possuída de quebranto e uma certa moleza, a ponto de quase se prostrar e assim, suarentos, exalam um forte ranço entre o miasma do mangue e a inhaca dos bodes no aprisco.

No entretanto, a curiosidade e o interesse no negócio são maiores do que qualquer mal-estar que o calor possa impingir a alguém. Maior até do que a necessidade de fiscalizar os feitores na condução das catas, pois como sabe vossenhor, é preciso vigiar o vigia. Caso contrário ele se mancomuna com os vigiados. E o que era para ser ganho acaba se convertendo em estragos.

Após os lanços inevitáveis do jogo de alinhamento de interesses, das alfinetadas recíprocas, de fingimentos, simulações e de algumas negaças do tipo “diga a sua oferta” e “faça a sua pedida”, que antecedem aos negócios, dos mais simples aos de

Page 156: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

156

Revista da Academia Goiana de Letras

especial monta e alto gabarito, como este, até que enfim Dom Luís apresenta o preço posto. A proposta inicial, balizadora ao forasteiro, que de forasteiros ambos ali têm suas cotas: meia arroba de ouro em barra pelo trabalho de horrorização dos gentios caiapós, sem dó nem ré. Mais um grama do metal de luz pelo conjunto de cada quinze pares de orelhas apresentados, em prova de cordão, no final da guerra, mais as pólvoras e os chumbos para munir os paus de fogo dos mercenários do empreiteiro. Além da munição de boca, qual seja, do legume para ser complementado pelo que as espingardas, os anzóis e os alça-pés derem conta. Mas que fique bem esclarecido, para que dissabores não sobrevenham ao que tratado for, a proposta para ser dada como boa, válida e avante andar, que a duração do trabalho a um ano não exceda e de preferência que seja concluído em seis meses ou até mesmo em faixa de tempo mais estreita ainda, sob pena de o contratante cobrar arras, com a glosa de 10% do valor do contrato a cada mês excedido. Se concluir em menos de seis meses, para alegria de todos nós, terá o empreiteiro um dividendo extraordinário, um luzente bônus de dois quilos de ouro.

Pai-pirá, escorregadio que só quem tomou banho em molho de quiabo, e como quem queira ganhar tempo para melhorar a própria condição, passa a língua áspera pela bochecha, na arcada superior, entre as gengivas e os couros dos beiços, retira um sovado palito de taboca que adrede acomoda ali. Com a esquerda mão enfia o palito nuns dois ou três vãos de dentes, do lado esquerdo da boca, depois repete o gesto no lado direito, para acomodar de novo o palito na bolsa marsupial das gengivas, para futuras palitadas. Com uma voz de muito pesar, entre fina e grossa oscilante, em nada parecendo a troante voz que usa por trivial, se

Page 157: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

157

Revista da Academia Goiana de Letras

diz decepcionado pra dedéu com a indigência da oferta e afirma com deselegância até que já se sente é arrependido de ter vindo de tão longe para prontamente atender ao chamado do governador, em busca de amarrar negócios. Alega que o serviço em comento é oneroso por demais, além de ser temerário sem conta, sobretudo quando se levar em consideração que eu, euzinho aqui, terei que empreender estratégia de emboscada, guerra de alicantina, ou de guerrilha, como preferem dizer os mui dignos reinóis, em desfavor da tribo dos pés virados, ou tribo das quatro mãos, como conhecida também é.

Dom Luís, por um momento, não sei se por descuido ou mesmo por manha sutil, faz cara de espanto e desconhecimento dessa tribo dos pés virados e o empreiteiro se anima um tanto demais. Sunga as abas do chapéu para descortinar o frontispício, mostrando que tem mesmo pinta de muito mau, como deve e precisa ser um legítimo capitão do mato. Cofia o bigode afastando os cabelos da boca com os dedos polegar e indicador da mão direita. Mão dura, cruel, de madeira. Madeira venosa e articulada, mas que deve ranger a pleno silêncio, na hora de acionar o gatilho da carabina, como se algum engonço apresentasse desengraxamento e emperro. Ajusta por conveniência, mas como se fosse por sestro, a guaiaca de torta cruz, pejada de cartuchos, aquela em forma de duplo xis que lhe enfeita as costas e o peitoral sobre a vestimenta empapada de suor. Com a esquerda mão ajeita a garrucha, o florete e a espada que na cinta se penduram, como se pênis suplementares é que fossem, e se empina nas próprias coxas, mais aproximando os traseiros ao espaldar da cadeira para melhor liberar o fôlego e ampliar a força retórica dos mais argumentos. Então, capitão-general, por descuido meu me esqueci que

Page 158: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

158

Revista da Academia Goiana de Letras

vossenhor é chegante novo nestas solidões do oiro. É certo que vossenhor nunca teria mesmo oivido falar da assombrosa tribo dos pés virados. Os canibais pavorosos, os ditos encoiraçados do Centro-Oeste! São índios de ferocidade extrema com capricho selecionados, que compõem o regimento de guerras especiais, dentro da nação dos próprios índios caiapós. Por que vossenhor pensa que os castelhanos, sequiosos por fortuna, não assumiram o comando destas paragens mais alongadas? Pensa que é por causa que respeitam os lusitanos, as alegações de algum tratado vetusto ou coisa assim? Qual nada! A organização e o espírito guerreiro desses malditos é um aranhol dos infernos e tem afugentado sem piedade quem queira por aqui se instalar.

O sistema deles é assim, preclaro governador: cada núcleo tribal tem uma cota de fornecimento, um tributo da tribo, conforme a política vigorante. Sabia que a palavra tributo vem da contribuição da tribo? Ninguém deu moral à sabedoria rudimentar, e ele continuou a explanação: Os indiozinhos mais parrudos, desinquietos, com pinta de futuros valentões, selecionados logo após o desmame, são entregues a um sub-cacique belicoso que irá inocular neles o sentimento de ódio e as malícias da guerra, como se fosse um seminário do mal. São alimentados com seiva de pau amargo e carne humana, temperada com pimenta de macaco e mel de abelha-caga-fogo. Se não têm carne humana podem comer carne de cobra cascavel sem apartar do veneno. Ainda criancinhas, com uma técnica de feitiçaria, torção muscular e emplasto de saroba e raizada, os pés dos indiozinhos são virados para trás, que dá até dó. Daí em diante os futuros guerreiros são submetidos a duros exercícios de recuperação e treinamentos para usar os pés como se mãos é que fossem. No entretanto, sem perder

Page 159: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

159

Revista da Academia Goiana de Letras

a condição de pés serem. São impedidos de qualquer atividade que seja ou substitua o transcurso sexual. Inclusive são proibidos do autofornico pelas próprias mãos ou pés, já que os pés deles são tão ágeis quanto as mãos e poderiam muito bem atuarem no lugar delas, dando firmeza e galeio nos movimentos. Mas o celibato é compulsório e seguido à risca, com pena de morte por silêncio para quem descomprimi-lo. E essa disciplina cruel de viverem apartados dos prazeres da carne atiça neles uma fúria permanente de cachorro doido e aviva a inteligência para a arte da guerra que lhes é ensinada, anos a fio, até a exaustão e passam a viver como se fazer a guerra fosse próprio da sua natureza e condição. Aprendem a transitar sobre mar de brasas, cavam buracos com as próprias mãos, caminham sobre as águas como se Jesus é que fossem e mergulham feito jacaré-de-papo-amarelo, ficando no fundo d’água por tempo de cansar o demônio. E se eu disser a vossenhor que eles podem voar como o gavião ou o beija-flor, eu estaria falseando, porque voar eles não podem. Mas eles podem saltar de uma árvore para outra e desta pra outra ainda e outras mais, com uma destreza de fazer inveja a qualquer bugio de rabo longo. Vão num movimento de meio círculo, de um lado e de outro, alternando pés e mãos numa velocidade que pode superar um urubu em voo de cruzeiro. E sem tirar o olho da atividade, sem distrair-se da guerra que enfrenta, sem perder o arco ou uma flecha sequer de sua aljava pendurada às costas.

Em estando prontos, os intragáveis guerreiros podem fazer com os pés tudo o que com as mãos fazem. Quando convém a eles, podem até voltar os pés à sua natural posição e caminhar direito. Assim conseguem enganar com naturalidade a perseguição dos seus rastreadores. Quando se julga que eles foram para o sul, eles

Page 160: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

160

Revista da Academia Goiana de Letras

estão no norte. Quando tudo indica que eles estão no leste é no oeste que estão. Mas isso não dá nenhuma certeza ao rastreador, pois no momento podem estar usando os pés na posição virada ou na posição certa. Quem poderia saber? Com a habilidade manual nos pés, esses guerreiros sobem em árvores e entre elas transitam pelos cipós sem usar as mãos, e pelos pés, ficam pendurados de ponta-cabeça, feito morcegos gigantes e traiçoeiros, camuflados entre os ramos das árvores, como se em trincheira estivessem. E de lá atiram, à sorrelfa, suas flechas de timbó ervadas, esse veneno que faz até o vento torcer de cólicas, com uma precisão de impressionar a Deus e estarrecer o demo. Aproveitam como eles só o favorecido ângulo pela copa das árvores, onde se amoitam, pois como vossenhor sabe, ou pelo menos pode deduzir com algum tirocínio, flecha de cima para baixo tem quatro vezes mais poder de trespasse do que quando desferida de baixo para cima. E duas vezes mais do que se atirada na linha horizontal. Até agora, capitão-general, os gentios caiapós têm usado apenas seus ordinários guerreiros para combater os invasores brancos, o ditos colonizadores. Mas não tenha dúvidas, assim que souberem que há um exército de bororos, seus inimigos figadais, no encalço para dizimá-los, eles não hesitarão em despejar (a palavra despejar soa muito mais terrível do que costuma ser, que até lembra Zumba Macubela com seu berro de voz dual: É morte, meu rei. Morte da grossa!) não hesitarão em despejar no front de guerra a sua reserva bélica mais encarniçada, o seu exército mais audaz que se conhece desde que o mundo é mundo. E é contra esse bando de facínoras implacáveis que vou ter que me virar. Será contra eles que vou aplicar de jeito toda a minha ardilharia. É deles, meu capitão-general, dessa legião dos pés virados, que vou proteger

Page 161: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

161

Revista da Academia Goiana de Letras

vossenhor e todos os vassalos envolvidos na extração do metal de luz, cujo o rei de Portugal tanto aprecia e até idolatra.

Dom Luís coça a cabeça com a mão esquerda, como que atarantado, ainda que por ligeiro, pela argumentação esperta daquele capitão do mato. Pai-Pirá sente cheiro de sangue da vítima e lança de imediato a contraproposta. Dá para aceitar o serviço com alguns ajustes, que posso prevenir a vossenhor que pequenos não são: as munições de arma e de boca, tudo bem, aceito nas condições apresentadas por vossenhor. Mas o preço, o mínimo que posso fazer, não é meia arroba de ouro, mas uma arroba e meia e o adicional por orelhas apresentadas tem de ser um grama, não por conjunto de quinze, mas por apenas cinco pares. É isso que tem de ser. E o botim da justa guerra, os índios não mortos, mas escravizados na peleja, será dividido parte a parte: metade da Coroa e metade para este pobre vassalo que vos fala. E mais, salienta o mateiro como se fosse o fecho de ouro de sua composição, tudo o que eu vier auferir deste negócio deverá ser perdoado dos reais quintos. Não cabe na cabeça de homem algum trabalhar para a Coroa e a Coroa entregar a paga com a mão direita e tomar com a esquerda mão.

E mais ainda queria: que ao final, ele, Antônio Pires de Campos, capitão do mato, o dito Pai-pirá, filho de pai do mesmo nome e da mesma profissão, teria de ser homenageado numa solenidade pública, político-religiosa, muito concorrida, com aplausos e ovações, inclusive com o pároco lhe enfiando hóstia consagrada na boca, o governador em pessoa gritando vivas e um coroinha ataviado lhe aplicando incenso nas fuças enquanto lá fora o dobre de sinos festivos ressoa pelos ares. E no auge da celebração, estando ele no poleiro mais alto da sacrossanta celebração, já

Page 162: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

162

Revista da Academia Goiana de Letras

comungado e limpo de qualquer pecado, receber com altivez e honras a Comenda do Hábito da Ordem de Cristo. Porque ele queria estar de boa com as autoridades da terra e também com as do céu. Um bom guerreiro não descuida nunca de seu corpo, mas de sua alma não descuida nunca um ótimo guerreiro, sentencia.

O capelão João de Deus Azpicuela, voluntarioso como costuma ser, levanta-se num salto, com ânimo de proferir um libelo contra as pretensões do capitão matador de índios, que ele acredita ser um sacrilégio contra a Santa Madre Igreja. No entanto, o governador coloca o dedo indicador da mão direita na vertical abaixo do próprio nariz como se o alongasse e sopra, pssssiu! de leve contra o dedo, como se alimária inquieta é que o padre fosse. O capelão ressenta na banqueta incômoda de pernas em xis e busca novamente os fios da rezas que urdia, contadas de uma a uma pelas 165 contas do rosário, feito de embiras de broto de buriti e caroços de lágrimas-de-nossa-senhora, colhidos de algum brejo da redondeza.

Dom Luís olha inquisitivo para o pároco, Dr. Matheus Machado Homem, que segue atento aos mínimos movimentos e responde de pronto. O pároco é daqueles que acreditam que havendo ouro não há nada impossível no mundo. Neste e no outro. Portanto convicto lhe assegura que não terá nenhum óbice de ordem prática em atender ao capitão do mato com o título de Comendador da Ordem de Cristo. Que tal honraria pode ser concedida antes e comunicada depois ao arcebispo, uma vez que a implementação da indústria aurífera se constitui nos superiores interesses da Coroa, os da Santa Madre Igreja, outros não podem ser. Além do mais, estando o fato consumado, qual seja, a comenda concedida, e o capitão já no mato com ela, onde

Page 163: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

163

Revista da Academia Goiana de Letras

não possa ser alcançado para dele reaver-se a comenda, o que pode fazer a autoridade de um bispo remoto, senão dizer que está tudo dentro dos princípios da conformidade e sacramentar nossas ações? Dom Luís assente num gesto moderado de cabeça. Por certo o encaminhamento é bom por resolver o problema na hora, mas seguindo como é o princípio da desobediência e da solução forçada, isso pode soar como um mau exemplo a ser transposto para outros contextos, como o da sonegação e do contrabando, por exemplo. Problemas que demandam providências de sua governação. Mas, vá lá, pau que bate João, bate Mané, se diz. Dom Luís complementa com gestos o que o pároco confirmou e o rosto do capitão do mato se ilumina numa satisfação contida.

Vendo aquela ciganagem que vi, para cima do capitão-general, a quem devoto as melhores intenções de mim, de mim e da cobra Messalina de quem sou portador, para proteger, achei que era meu dever de honra e ofício não me tolerar calado e proferir alerta é o que devo. Como eu estou no ângulo de visão do secretário, Dr. Manoel Pedro de Macedo, e às amoitas do capitão do mato, estendo o braço direito e convoco o secretário com um nervoso aceno de mão, sem me preocupar se estou sendo estabanado ou mesmo insolente. Vindo até mim na maior sem-reserva, cochicho em seus ouvidos que a tal tribo dos pés virados ou como queira, de quatro mãos, é uma pilhéria, uma invencionice cabeluda de última hora daquele capitão matreiro, que esse regimento de guerra não existe na real, não existe nas lendas. Nem nos delírios mais agudos do capelão Azpicuela.

Dr. Manoel numa pose de contentamento me diz: Vosmecê é um mestiço de valor, se é que algo assim possa existir. Mas segura a onda de tua cobra, ó pá! O governador, mais do que homem

Page 164: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

164

Revista da Academia Goiana de Letras

nenhum, sabe ler gestos e pensamentos e percebe o quanto de patacoada e lenda vai pela fala desse fanfarrão bazófio das matas. Mas te digo, homem da cobra, o governador poderia pagar até o dobro da contrapedida que ainda sairia era barato. Essa cara de descontente, de perdedor é que é, que Dom Luís faz é apenas o seu ardil engenhoso para vencer, mas dando a dolorida impressão de que perde, para o júbilo do negociador ex adverso e a fiel execução do negócio que vier a ser contratado.

Os homens de prol, os de suposta fidalguia e os reinóis que a tudo assistem com elevado interesse, como se não fossem apenas beneficiários do negócio, mas fossem eles também os patrocinadores do investimento, fazem cara de magoados ou de pouco caso ao me verem cochichar no ouvido do secretário do capitão-general e ele, em contrapartida, cochichar no meu. Percebo nos gestos miúdos e nos esgares, nos olhares tortos trocados entre eles. Mas homem algum abre o bico em protesto, porque a gravidade do momento inspira certo temor de reverência.

Nesse instante, os propósitos engrenam de fato e fica estabelecida, portanto, a simetria pendular da boa negociação. A cada rodada de jogo, de proposta e contraproposta, o capitão do mato, com pesar dolorido, desce uma libra de ouro de sua pedida inicial e o governador, com dolorido pesar, sobe uma libra de sua oferta primeira. Os pares de orelhas por grama de ouro seguem o mesmo ritual de busca do ponto em comum. Vez ou outra o governador ameaça desistir da custosa peleja negocial como se o ataque dos caiapós fosse um fato de somenos importância e que até pudesse ser deixado pra lá, ou então que houvesse ali fora uma fila de capitães do mato com seus pelotões de mercenários, esperando por audiência, prontos para entrarem com propostas

Page 165: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

165

Revista da Academia Goiana de Letras

mais convenientes com o fim de promover a guerra aos aguerridos gentios. Com idêntica manha, o Pai-pirá de quando em vez se levanta irritado, como desistente é que fosse, e diz que já chegou no seu máximo limite, que não tem mais negócio a fazer, que o governador está querendo é explorá-lo como a um jumento de carga, como se o mercado estivesse fervilhando de governadores prontos a empreitar matança de índios. A negociação se constitui durante certo tempo uma finalidade em si mesma, feito um jogo de camaradas no início da noite ou em final de semana, buscando o prazer pela astúcia e velhacaria, em que o tino é testar os próprios nervos e a capacidade de ceder e resistir de forma conveniente e lucrativa. Tenho comigo que quem não dispõe deste pendor para o jogo, nem vislumbra prazer nessa lenta guerra de nervos, nunca deve sentar-se a uma mesa de negociação e diplomata de coisa nenhuma jamais deveria atrever-se.

Como era previsto, contudo, depois de rodadas tantas, de ameaças tantas, de tantas marchas e contramarchas, a negociação é concluída exatamente na linha de encontro que a simetria inicial prenunciava: uma arroba de ouro, mais um grama do mesmo produto por conjunto de cada dez pares de orelhas, a meação dos índios capturados, que foi acertada logo de saída, mais os legumes da tropa, não podendo a campanha exceder a um ano, mais ainda a munição das armas e a tão desejada Comenda do Hábito da Ordem de Cristo, a ser entregue com ritual e tudo. Achando-se justos e entendidos, Dom Luís repassa a tarefa de redigir os termos do pacto ao procurador da câmara, um certo Dr. João Lopes Zedes, e previne: Não mencione, pelo amor de Deus, o trato que fizemos da divisão dos índios capturados, nem o acerto de pagamento por conjunto de orelhas. Que isto fique

Page 166: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

166

Revista da Academia Goiana de Letras

em cláusulas secretas e nem sequer insinuadas, valendo aqui o fio de bigode, o aperto de mão, a palavra empenhada, sem jamais se recorrer a qualquer acareação, nem mesmo ao confirmo das testemunhas presentes. E onde tiver que escrever “dizimar ou horrorizar índios”, escreva “afugentar índios”, ou “aldear índios”. O que não quero eu de forma nenhuma é criar controvérsias nem quiproquós, pois vejo que já os tenho numa quantia superior ao que seria meu desejo. Não quero ter problemas com essa lei de maricas, tão arduamente defendida pelos padres jesuítas e outros celerados do reino. Essa lei que exige tratamento humanitário ao gentio, colocando a generosidade humana em sua defesa, como se esses tivessem alma, como se não fossem simulacros, e gente de verdade é que fossem.

Pai-Pirá, num modo automático, enfia a mão no bolso esquerdo da calça e num movimento preciso apanha seus petrechos de papa-fogo. Com destreza de mágico, ajusta as peças com as mãos duas e numa cutilada produz um relâmpago de muitas faíscas do atrito do fusível com a pedra de fogo, legítima banha de galinha. Um dos grãos de fogo, como tem de ser, cai de jeito no ninho de carvão de paina e logo germina, crescendo até ser uma mancha de fogo visuável à distância dela algumas braças, sem depender do cuidado de sopros suplementares. Segura os tarecos da binga com a mão esquerda e, com a direita, cata um guimba de charuto palheiro que repousa na alcova entre a orelha e a lateral do crânio, no encontro da aba com a copa do chapéu de mateiro. A sequência de gestos não deixa dúvidas de que é encenada para ganhar tempo enquanto aguilhoa ainda mais os nervos do outro negociador. No entretanto, ela faz tudo com gestos bem talhados, sem marcas de hesitação, que é para vender imagem de homem

Page 167: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

167

Revista da Academia Goiana de Letras

decidido, que entabula ações com golpes de acerto, sem fraquezas de ânimo. Como experiente tabagista que é, faz do charuto um canudo de sucção e puxa o fogo vivo com avidez, como se fosse bebê-lo de um só gole. Mas o que vem à sua boca não é fogo, mas uma ampla baforada de fumaça de fumo bem curado e ceroso, raro de se ver por cá, e antes mesmo de passear pelos labirintos respiratórios do fumante, espalha-se em nuvens pelo cômodo palaciano, diluindo-se como especial incenso, fazendo até minar água da boca dos que têm apego ao tabaco e dele estão privados por algumas horas, por exigência e força da reunião que se alonga.

O secretário do governador, sempre atado aos fatos, atento ao que foi, ao que é, ao que vai ser, ao que poderia ter sido e não foi e até ao que não deve nunca ser, me cochicha ao pé do ouvido outra vez mais para eu me grudar no procurador da câmara, feito carrapatinho no colhão de boi. A recomendação é para qualquer coisa que eu perceber de errado, ou de duvidoso que seja, na elaboração do instrumento, denunciar de pronto a ele, secretário, que ficará observando mais à distância, para interpretar também movimentos laterais que de eventual ocorram, a tempo de atalhar, sem prejuízo nem mesmo dos papéis usados na redação do contrato.

Levantados da mesa já estão, feito tropa policial depois do treinamento, em posição de descanso, com a pressão dos negócios aliviando feito um nó corrediço, com alguns dos convivas permitindo até o bocejo de bocão, com perdigotos e tudo o mais. Dom Luís se vira para Pai-Pirá, com ares de folgazão legítimo e faz uma recomendação por fim: se não for pedir demais, nobre capitão, ao cativar alguns desses guerreiros, que sei que há de cativar, do tal regimento dos pés virados, cuide bem deles, por favor, e me

Page 168: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

168

Revista da Academia Goiana de Letras

traga pelo menos meia dúzia de cinco ou sete em bom estado de conservação para incrementar o regimento de minha escolta. E, quem sabe, eu possa até encaminhar alguns deles ao reino, como peças de exótica admiração para ataviar o palácio de Dom João V.

O capitão do mato não se faz de rogado. Dá uma estilingada sonora de cuspe em pleno chão do palácio, sem o temor reverencial que o lugar inspira por costume, como se quisesse proclamar que não teme selvageria nem a civilização, atira o toco do charuto no assoalho, que cai perto da raja do cuspe, feito um corpo fumegante de borboleta sem asas, e com uma pisada torcida, uma só pisada e esgares de boca, esmaga a inteira tribo dos caiapós. E demonstrando ser de espírito ágil como ágil é seu dedo no gatilho, rebate à bazófia, falando alto, com ar travesso e um tanto lampeiro, como se engrenado em outro assunto já se encontrasse: Queira me desculpar, nobre Governador, não foi por maldade nem por velhacaria, mas me esqueci de um detalhe durante o negociamento; vou curtir o couro dos índios que morrerem na peleja, que é para repor a selaria de minha tropa, que vai gastando na faina e na refrega ainda mais. Esse proveito não divido com homem nenhum. Nem com vossenhor, nem com sua majestade, nosso rei distinto, que Deus guarde e tenha.

Por mim, que fique, capitão Pires. Pelo amor de Deus, diz Dom Luís, com certo ar de repugnância. Eu lá quero ver minha pessoa envolvida com negócios de courama de índio?!

O capitão do mato realinha-se grande e garboso, embutido no crespo figurino de mateiro, murchando a pança o quanto pode e estufando ainda mais a gaiola do fôlego, em ofício de pompa e petulância, com ar de quem venceu, não só a negociação, mas também a caçoada.

Page 169: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

CONTOS

Page 170: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava
Page 171: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

171

Rosa Amélia, a que faz o sereno cair da flor

Hélio Moreira

As notícias sobre as festas de São João, na casa de José Inacinho corriam mundo; não havia espigão-mestre, por maior que fosse, que impedisse o eco do recado: – sábado vai ter festa com fogueira, quentão, trovadores e, principalmente, ruge-ruge de saias no terreiro de chão de terra batida, o sanfoneiro, como estão comentando, será dos melhores.

A localização da fazenda “Mata da Fartura”, onde seria a festa, era estratégica e de fácil acesso, com estradas bem-batidas e bastante conhecidas por todos os vizinhos do José Inacinho; o único inconveniente sobrava para os que moravam lá pelas bandas do “Poleiro de Pomba”, um pequeno ajuntamento de casas (dez ou quinze?) que os seus moradores insistiam em nominar de vila, situado do outro lado do rio Muzambo.

Se chovesse, o rio costumava transbordar com grande facilidade e olha que não era necessário invernar para que isso acontecesse, o problema é que o “dito-cujo” recebia muitos afluentes importantes; felizmente não havia previsão de chuvas para aquela semana, como atestava a D. Donana, profunda conhecedora do tempo.

É preciso ter muita fé, aliada à perseverança, para cumprir o ritual da festa, entra ano, sai ano; José Inacinho, desde que perdeu o seu caçula, há muitos anos, justamente na semana em que se homenageia o santo xará do filho, mantém a tradição de nunca deixar passar em brancas nuvens a data do acontecimento que

Page 172: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

172

Revista da Academia Goiana de Letras

enlutou a família; uma semana antes do dia aprazado, sua esposa, D. Donana, já começava a preparar os comestíveis, felizmente, para ela, com a ajuda das filhas, algumas comadres e vizinhas mais amigas.

Rosa Amélia, a filha caçula de José Inacinho, era a mais entusiasmada e, também, a mais ansiosa pela chegada do grande dia, provavelmente pela expectativa da vinda de alguém que “cutucou com vara curta” seu coraçãozinho tão sem defesa e ainda sem nenhum pretendente; na verdade ela não sabia, ainda, do poder que sua formosura lhe outorgava.

Muitos rapazes que moravam na sua vizinhança haviam se encarregado de divulgar para outros que moravam mais longe a sua figura catita; um deles, de nome Alírio, não sabia o que fazer para chamar a sua atenção.

A primeira vez que ele a viu, estava no lusque-fusque da tarde, o sol teimava em não aceitar a imposição, ditada pela natureza, de se esconder por detrás das montanhas; seu disco de claridade ainda insistia, com teimosia, em clarear parte das encostas; parece que ele, o rei dos astros, também queria dar a última olhadela naquela criatura tão linda que, indiferente à sua presença, recebia a brisa da tarde no rosto meigo e gentil.

Alírio não teve coragem de se aproximar, de longe lhe abanou a mão e seguiu seu caminho; quando começou a subir a encosta, olhou para trás e percebeu que Rosa Amélia o procurava com o olhar; ficou feliz!

Rosa Amélia realmente merecia o frenesi que causava na rapaziada; devia estar com 15 ou 16 anos de idade, cabelos compridos, porém, presos com duas tranças que se juntavam no meio da cabeça, seu rosto se parecia com o de Nossa Senhora, como afirmou o Alírio mais tarde para um amigo: meigo e belo, sustentado por um pescoço angelical e gentil.

Page 173: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

173

Revista da Academia Goiana de Letras

Uma das coisas que mais entusiasmava a rapaziada, como diziam, era o seu andar, bambeando a cintura, parecendo o pisar de uma garça e obrigando os mortais que a espreitavam a pedir a misericórdia do perdão Divino pelo pecado que cometiam com os olhos.

Para ser fiel à narrativa, repito o que alguns deles, mais entusiasmados, diziam: despiam-na, por alguns segundos, no pensamento!

Havia, como se esperava, muita gente na festa da fazenda “Mata da Fartura”; Alírio chegou carregando seu violão nas costas, como prometera ao Sr. José Inacinho; sentou-se em um tamborete que estava debaixo de um enorme flamboyant e, logo em seguida vários amigos, fazendo jus a sua fama, rodearam-no com a expectativa de ouvi-lo tocar e cantar.

Parecia, no entanto, que as cordas do violão estavam em sintonia com o seu mestre: teimavam em ficar mudas; Alírio só se animou ao avistar Rosa Amélia entre algumas amigas; conhecendo a sua fama, uma delas pediu-lhe, voz em grito, que cantasse uma canção.

Com emoção na voz, breve trecho, ele cantou, olhando o tempo todo, não para quem lhe fizera o pedido, mas sim, para quem era dirigida a letra da música:

Se eu soubesse, se você me dissesseQue você me tem amor,Cairia nos teus braçosComo o sereno cai da flor!

Já era de madrugada quando a festa acabou, Alírio pegou seu violão e, na companhia de outros amigos, voltou para a Vila

Page 174: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

174

Revista da Academia Goiana de Letras

“Poleiro de Pomba”, onde morava, e não mais se viram; não por culpa dela, Rosa Amélia, mas sim, por interferência do destino, ajudado nesta empreitada pelas maledicências de alguns amigos e vizinhos.

Bem que ela tentava uma aproximação ou pelo menos uma troca de olhares, nem que fosse de longe; no entanto, sua pretensão, esbarrava na indiferença do Alírio, parecia que ele, propositadamente, procurava se afastar.

Quantas vezes, Rosa Amélia fingindo que estava pescando, sentava-se nos finais de tarde, no barranco do rio e ficava com os olhos fixos na sua curva localizada lá no final do seu olhar, na expectativa de que uma canoa trouxesse no seu bojo um passageiro especial; algumas vezes, essa pessoa veio, porém, exagerando na esquivança, a canoa procurava beirar o outro lado da margem.

Estranho o magnetismo do amor; parece que quanto maior é o desprezo, maior é a afeição e a insistência na procura da conquista; não sabemos se é uma tentativa de dar sobrevivência ao amor próprio que foi ferido ou a repetição daquilo que os namorados, secularmente fazem para conquistar o amor sublimado.

Rosa Amélia não desistia do seu intento de descobrir o que ocorrera com os sentimentos do autor de tão lindas estrofes por ele cantadas ao redor da fogueira, naquele São João da Fazenda Mata da Fartura; mal sabia ela que fuxicaram sobre sua vida nos ouvidos de Alírio.

Era uma tarde sossegada, mansa e silenciosa, dessas que só sabe avaliar quem mora no sertão; sentia-se, na face, a suavidade da aragem que soprava com mansidão e gentileza, agitando, na sua passagem, com carinho, os ramos e algumas flores que neles se agarravam como se fossem o último liame de salvação e na

Page 175: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

175

Revista da Academia Goiana de Letras

expectativa de não serem arrastados pelas águas do rio, imitando os náufragos que seguram, na tentativa de se salvarem, em qualquer objeto que aparece.

Se fôssemos dar ouvidos aos poetas, poderíamos repetir o que eles dizem: era um silêncio de morte!

Se estamos dando ouvidos aos poetas, ouçamos, também, os filósofos e coloquemos no pensamento de Rosa Amélia o que eles falariam: Quem está morrendo é a esperança!

A certeza deste seu pensamento ocorreu quando Alírio, sem nenhuma explicação, mudou o trajeto da sua canoa e passou bem perto da margem onde ela estava; com velocidade dada pela quase nenhuma correnteza, violão em punho, cantou com todas as forças do seu pulmão:

Lagoa de águas profundas Serve de pouso até para o pensamentoO que você pensa, moça,Deu-me notícias o vento

Rio que corre com águas sujasCanoeiro nenhum pode beberUm amor com tantos donosO melhor que faço é esquecer. Alírio ainda deu uma estirada de olhos para o lado do

barranco do rio, porém, com um olhar que não transmitia melúria; ficou de pé na canoa, manejou com força o varejão e singrou as águas sem olhar para trás; porém, levou-a, no pensamento, na sua companhia, sem saber responder a sua própria indagação:

Page 176: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

176

Revista da Academia Goiana de Letras

“Qual será o mistério que ela possui que me obriga a mantê-la na lembrança, não despegá-la do pensamento, fazer suposições de estar em sua companhia onde não estou?”

Não havia mais dúvida no espírito de Rosa Amélia de que a razão do afastamento do Alírio estava na própria letra da canção, envenenaram o seu espírito com inverdades – “O que poderia ser, minha Nossa Senhora da Luz?”.

Os dias passaram, Rosa Amélia não se recuperava da angústia que lhe esmagava o peito; não tinha para quem se queixar, pois, como sabemos, o mal de amor provoca feridas que cicatrizam sem a interferência de estranhos.

Não podemos dizer que Alírio, também, não sofria com essa situação, aliás, se ele fosse mais letrado, teria lido as palavras de apoio ao seu estado de espírito, escritas pelo genial escritor francês La Rochefoucauld: “O ciúme é, de qualquer maneira, justo e razoável, porque tende apenas a conservar um bem que nos pertence ou acreditamos nos pertencer”.

Por conhecer, como narrador, o desenrolar deste idílio, peço licença ao mesmo escritor acima mencionado para repetir, também, o que ele disse em outra oportunidade:

“É extraordinário como o ciúme, que passa seu tempo a construir pequenas suposições no falso, tem pouca imaginação quando se trata de descobrir o verdadeiro”.

Preocupa-me pensar que, na qualidade de narrador, não agi com a neutralidade esperada de alguém que deve se colocar, como observador dos acontecimentos, equidistante dos fatos narrados; divido minha culpa com Machado de Assis, pois sei que estava contaminado pela leitura de Dom Casmurro, onde o narrador-personagem Bentinho passou aos leitores uma imagem, no mínimo destorcida, a respeito da conduta de Capitu.

Page 177: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

177

Revista da Academia Goiana de Letras

Vou tentar desfazer esse mal-entendido, contando a sequência dos acontecimentos, segundo consegui apurar e, principalmente, tentarei evitar influenciar meus leitores no julgamento que serão tentados a fazer de Rosa Amélia.

Outras vezes, outras tardes-noite, Rosa Amélia voltou para a beira do rio, com olhos grudados lá onde ele fazia sua curva, aguardando alguém que seu coração teimava em dar-lhe esperança que voltaria; em silêncio, ela recordava, sem entender o significado, o último verso da canção que ele cantara, praticamente sem olhar-lhe:

Um amor com tantos donosO melhor que faço é esquecer. Rosa Amélia ainda se lembra de que, após cantar, Alírio

forçou a velocidade da canoa e partiu... “O que teria acontecido, minha Nossa Senhora da Luz!”. Ainda envolvida pelas recordações, nem percebeu que começava a escurecer; ela ainda viu alguma claridade lá na curva, seus olhos viam em linha reta e não conseguiram enxergar quem clareava aquela imensidão silenciosa da natureza: era o astro rei que não mais se mostrava, escondido que estava pela montanha; sua presença era apenas adivinhada!

Seus olhos se encheram de lágrimas e, sem autorização, desceram pelo seu rosto aos pares; Rosa Amélia agora chorava, choro doído, porém, benfazejo para o coração amargurado; choro de alguém que, pela primeira vez, sentia que suas forças emotivas estavam se esvaindo.

“Quem teria colocado essa dúvida na cabeça de Alírio, meu Deus do céu?”.

Page 178: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

178

Revista da Academia Goiana de Letras

Com a fuga da claridade do dia, a noite começou a ocupar o seu lugar e, com ela, o silêncio se fez presente; nestas horas, o pensamento não encontra desculpa para distrair com outros acontecimentos que não sejam os que dominam as preocupações; Rosa Amélia estava preocupada com a possível perda do seu amor!

Conseguia-se ouvir sem muito esforço porque um vento marulheiro tornava perceptível que a brisa agitava, com suavidade, a correnteza aveludada do rio; ao longe, quase que perdida no firmamento, avistou-se uma estrela, a primeira da noite; depois outra e mais outras começaram a brilhar, clareando o céu.

Rosa Amélia falava para si mesma: “Deve ter havido um desencontro, ele sabe como é querido!”.

Se Rosa Amélia conseguisse viajar nas asas do impossível e acompanhasse Alírio na sua volta para casa e, além disso, conseguisse entrar no seu pensamento, ela veria que o acontecido, como tudo na vida, tem uma explicação.

Foi o seu tio João Claro quem encheu sua cabeça; contou-lhe fatos com tanta convicção, que provocou comentários da sua mãe, que estava presente:

– Esta moça não serve para você, meu filho, quando o povo fala é porque tem alguma verdade; não existe fumaça sem fogo!

Para sermos justos é preciso que se diga que Alírio, mesmo atingido pela possível traição da amada, não aceitou, sem relutar, a versão que estava sendo exposta por interlocutores tão próximos da sua vida; durante vários dias conversava consigo mesmo na busca de um caminho a ser seguido. Debalde!

Um dia, sempre haverá, às vezes tardiamente, um dia, ele reencontrou Rosa Amélia; era uma tarde de domingo, como todas as tardes de domingo no arraial “Poleiro de Pomba”; os jovens

Page 179: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

179

Revista da Academia Goiana de Letras

estavam reunidos na porta da igreja; conversavam sobre tudo e sobre nada; digo-lhes porque sei, Rosa Amélia era a mais bonita de todas as moças que estavam ali.

Seu vestido era da cor do batom dos seus lábios, forte no vermelho, com alguns enfeites de rosinhas azuis e brancas nas barras da saia; no rosto se viam as marcas de ruge nas duas maçãs, cabelo com duas tranças que se abraçavam no meio da cabeça.

Primeiro foi ela quem o viu, todo garboso, trajando um terno de brim mineiro, escuro com riscas brancas, parece que feitas com giz, porém, bem-discretas, lenço branco no bolsinho do paletó, com algumas dobras, como era a moda, chapéu quebrado na testa, camisa branca de colarinho que dobrava sobre a gola do paletó.

Como muitas vezes acontece, o destino permitiu o reencontro, embora, sob meu ponto de vista, fora do tempo. Rosa Amélia tinha outro amor!

Mesmo assim, os dois se aproximaram e houve oportunidade de Alírio dizer-lhe:

– Como eu lhe queria bem! Eu era tão seu, e você era tão minha, no entanto, andamos cada qual para seu lado. Eu tive tanta saudade!

Rosa Amélia nada disse, teve vontade de abraçá-lo, porém, o tempo passou!

Quem estivesse mais perto deve ter observado que os dois choravam; por quê?

Como conheço a história, posso repetir o que Abelardo disse, no século XI, para Heloisa, seu amor impossível:

“Você era feliz? As pessoas não sabem quando são felizes, pelo menos não no momento em que são”.

Page 180: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

180

O Homem1

José Mendonça Teles

O homem aproxima-se da Praça do Bandeirante. Caminha em direção ao prédio do Banco do Estado de Goiás. Se vê reconhecido. E muitos o cumprimentam. Assenta-se na mureta do prédio, acende um cigarro e pensa na vida. Domingo, dezoito horas, o tempo parou para o homem que pensa. A multidão está na rua. O vaivém é constante pelas calçadas da avenida. As luzes brincam de apaga-acende no descortinar das janelas dos edifícios. O homem deixa de pensar para olhar. E como olha enigmático para os seres que transitam na sua frente! Seus olhos estão no meio da massa. O homem olha e pensa. Seus pensamentos vão além dos cérebros cansados que se envolvem na atmosfera pesada dos mil problemas. Cada pessoa que passa, vai levando o seu drama, o seu problema, a sua angústia. E o homem vai captando esses momentos que tomam forma diante de seus olhos parados, mortos-vivos: “E se o cheque for à compensação?”... “Amanhã vou chegar mais cedo ao serviço, preciso impressionar o chefe”... “Aquele vigarista me paga”... “Ah, meus trinta anos!”... “Onde andará Emília a estas horas?”... “Desta vez eu tenho que passar no vestibular!”...

– Engraxar, moço?Seus olhos descem vagarosos para o pequeno engraxate

postado a seus pés. Cede ao pedido do garoto como que arraigado ao ontem que jamais o abandona. Quantas vezes em sua infância balbuciara o “engraxar, moço”?1 Do livro de contos, Cidade do Ócio, primeiro do gênero de temática urbana publicado em Goiás.

Page 181: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

181

Revista da Academia Goiana de Letras

E o homem vai captando o momentâneo pensamento da multidão que simula despreocupação: “O remédio, o remédio, meu Deus!”... “Pode protestar, penhorar, pagar eu não pago, não tenho dinheiro”... “Protesta, protesta, seu...”... “Desta vez o imposto de renda tem que pegar aquele agiota”... “Coisa boa, agora quero ver deputado procurar emprego, suar feito a gente”... “Quatro meses, a barriga já começa a aparecer, preciso dar um jeito logo”... “O que adianta ter dinheiro, se o corpo já não tem mais fome?”... “Telefono para casa, dizendo que chegarei mais tarde e vou mais cedo para os braços de Emília”...

Desperta com o engraxate batendo com a escova na caixa, dizendo, autoritário:

– O outro.Tira o pé esquerdo e põe o direito sobre a caixa.O “outro”. Por onde andará o meu outro? Engraxate,

jornaleiro, vendedor de laranjas, carregador de frete, biscateiro, primeiro emprego fixo, o Tiro de Guerra, o descobrimento de meu narcisismo, o casamento, os filhos. O meu “outro” ficou, está comigo ou já passou?

– Pronto, moço!O engraxate levanta-se e espera o pagamento.Olha-o com carinho e pergunta:– Quanto é?– Cinquenta centavos.Tira do bolso uma nota de um cruzeiro e a entrega ao

menino.– O troco é seu.– Obrigado, moço.

Page 182: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

182

Revista da Academia Goiana de Letras

O homem levanta-se. Olha no relógio, espanta-se. “Puxa, mais de oito horas, como o tempo correu!”. Caminha apressado por entre a multidão. Precisa chegar logo em casa: a esposa e os filhos o esperam. Um novelo de pensamentos vai desfilando pela avenida à sua passagem. Quem os estaria, agora, sintonizando? “Amanhã é segunda-feira, preciso dar um jeito de arranjar dinheiro para cobrir o cheque...”.

– Uma ajuda, pelo amor de Deus.Olha zangado o pedinte e resolve seguir a morena de

minissaia que o fitou de soslaio.

Page 183: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

183

A sucuri

Maria do Rosário Cassimiro

A cidadezinha possuía três ruas paralelas: a de cima, a do meio e a de baixo. Terminavam as três no largo da igreja, onde também havia alguns estabelecimentos comerciais – vendas de secos e molhados – e uma escola, administrada por ilustre dama da comunidade.

A igreja, dedicada a N. Sra. D’Abadia, fora fundada pelos padres agostinianos, que há muito já se haviam ido. Agora, por lá, passavam anualmente, em santas missões, os padres da ordem dos redentoristas.

Perpendicularmente à rua de cima e à de baixo, algumas ruelas. A mais importante era o “Beco do Leite”, onde havia uma fábrica de manteiga e de onde, também, distribuía-se na cidade, em carroças puxadas por burro, leite para a freguesia.

Esses becos ligavam a cidadezinha à zona rural, formada por vários sítios e algumas fazendas de médio porte, de propriedade de cidadãos imponentes.

A rua de baixo localizava-se num descambado, para os lados do Ribeirão das Pedras, onde, diziam, habitava uma enorme e feroz sucuri, sempre atenta para laçar animais distraídos que viessem beirar as frescas pastagens que ladeavam o ribeirão. A sucuri era o “bicho-papão” da meninada.

Certa vez, meu primo Calixto passava por ali em busca de umas reses extraviadas da boiada que conduzia à sua fazenda, situada lá para as bandas do ribeirão Pirapitinga, quando deu de

Page 184: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

184

Revista da Academia Goiana de Letras

cara com uma cena inusitada: um boi, dos grandes, berrando e estribando ferozmente nas quatro patas, recusando-se com todas as suas forças a ceder ao violento puxado que parecia ser de uma corda, arrastando-o rumo às águas do ribeirão. Cautelosamente, Calixto apeou de seu cavalo e se aproximou daquela cena, sem entender o que se passava. Foi então que percebeu que a corda era alguma coisa viva, que puxava vigorosamente o enorme animal para dentro d’água. Ainda sem entender, e no intuito de livrar o boi daquele estranho laço, puxou do seu facão e cortou de um só golpe a tal corda. E qual não foi o seu espanto: o boi, então livre, foi jogado para trás por vários metros e rolou pela relva por mais outros tantos. A tal ‘corda’ lascou uma tamanha lambada nas águas do ribeirão. Somente nesse momento, ele percebeu tratar-se da tal sucuri que estava arrastando o boi para o seu bucho, e que tanta força fazia para se esticar que já se assemelhava a uma corda. Esse boi era um dos extraviados da manada do meu primo Calixto.

Page 185: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

185

Monólogo vermelho

Ubirajara Galli

Nunca fui de apanhar objetos no chão. Mas aquele foi irresistível, nem cheguei a pensar. Lá estava ele em minhas mãos. Depois desse dia, minha vida mudou. Hoje, estou submetido à porta invisível, entre minha alma e meu corpo, determinando onde e quando devo estar.

Ainda sinto o frescor, de tê-lo passivo, sedutor e maligno. Minhas digitais tremendo, saltitando como redes de picadeiro, suprimindo minha força, ante o inconcluso. Ele a minha frente, indefeso, ingênuo, determinado, compondo a visão íntima de mosteiro ou manicômio, onde os sentimentos caminham na clarividência das mesmices – rituais fálicos das vidas sem rumo.

No quarto, sentado à cama, olhando-me como se não me enxergasse, segurava-o. Como poderia segurá-lo, se ainda há pouco, estava em minhas mãos, e fora meu condutor àquele momento. Só poderia considerá-lo passaporte para o absurdo, Era a única e provável explicação entre o real e o imaginário. Agora sei que tudo é possível.

Admirava-o. Não perdi a admiração. Acredito que ela tenha aumentado. O curioso é que nunca cheguei a pensar como tudo havia acontecido. Eu era testemunha ocular de um gesto que o personalizou, ainda que não tenha tido a intenção, seu trabalho bastaria, como bastou. Porém, entre os estandartes da demência e da genialidade, fez-se eterno.

O vermelho deslizava-lhe pelo pescoço, avolumando pequenas poças, coágulos, gosmas, querubins malditos, formas

Page 186: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

186

Revista da Academia Goiana de Letras

mortas, abortos, abutres, assentados nos pelos da sua barba. Seu olhar fixo, sem nenhum tremor, como se nada acontecesse, e não fora ele o autor, intérprete, diretor, cenário e palco do monólogo vermelho. A colcha que cobria a cama ganhava nova coloração e forma, pintura primitiva, esvaindo-se das minas da carne, viscosa e quente, contrastando à indiferença do seu olhar, parede e alcova, da emoção. O corpo demonstrando declínio ante a dor não exposta e fraqueza natural, quedou-se devagarzinho, de encontro à cama.

O instrumento cúmplice, banhado de vermelho, parecia um bumerangue aborígene, pássaro apocalíptico da tríade desvelo. Nós éramos mórbidos epigramas do triângulo em gestação. Cortada pelo gélido pincel, sua carne foi dividida, lembrando o pão da Santa Ceia, às avessas. Ela estava arrancada dele, definitivamente separados. Não fiz nada. Senti que não deveria interferir. No entanto, não poderia abandonar aquele momento trágico e sedutor, sem pegar um souvenir.

Quanto tempo sonhei com aquela tarde no Louvre. Lá estava eu, entre dezenas de grandes mestres, todos fascinantes com seus estilos e rupturas que marcaram época, porém, queria encontrá-lo, devorá-lo ao vivo, longe das reproduções e slides, que durante anos estivemos juntos nas salas de aula. Somente ele, nenhum outro, de tal forma, conseguia desequilibrar-me, colocando-me à deriva emocional. Diante da sua arte, caminhava entre as plantações de trigos, girassóis e moinhos. Nessa viagem, delírio de quem parte sem ausentar-se, somente retomava a mim mesmo, quando os alunos em coro, chamavam-me.

Andando pelos corredores do Louvre, escamavam-me o olhar babando as gosmas saborosas das retinas. Delaroche,

Page 187: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

187

Revista da Academia Goiana de Letras

Velasquez, Picasso, até passar por Gaugain, que me provocou compreensível (breve) parada. Ele, de certa forma, bordava as lantejoulas do meu delírio. Continuei a busca, com a certeza da sua proximidade. Subitamente, como se algo chamasse-me a atenção, tocando-me às costas, virei-me, e o paraíso descerrou as cortinas – a luz amarela – estrela-d’alva da sua pintura, mergulhava na umidez semiletárgica dos meus olhos.

Ignorando as pessoas em volta, perdendo com mais intensidade a noção do tempo, ao êxtase tântrico pictórico, minha alma, já não era alma. Era um arco-íris pousando no útero da tela, onde fiquei, até que uma voz (sempre elas), trouxe-me de volta para o outro lado, ao insistir que estava na hora de fechar o museu.

Saindo do Louvre, meus olhos garimpavam o transe. Na indiscreta verticalidade do abismo, encontrei o metal cortante. Minhas náufragas, suadas digitais, revelaram a dissimulada atração. Ao guardá-lo, no bolso esquerdo da jaqueta, forte era a sensação de Ícaro, cujas asas a monotonia não mais haveria de derreter. No balanço do meu andar, o metal batia e voltava sobre meu coração, como chibatadas, açoitando a dolorida ansiedade.

A uma quadra do hotel, resolvi parar num café, escolhendo uma mesa na calçada. Após a primeira taça de vinho, vejo-me novamente em seu quarto. Ele com o instrumento em riste, no topo da orelha, nada falava. Os músculos da sua face e seus olhos eram os mesmos bailarinos paralíticos, completando a alegoria do hiato, antecedendo ao gesto. Sua mão, única expressão de vida, desceu num frêmito impulso guilhotinador. Em queda, as gotas de sangue eram filamentos de um pôr do sol andrógino.

Page 188: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

188

Revista da Academia Goiana de Letras

Sentado no café, o garçom perguntava-me se queria outra garrafa. Pedi a conta, ao mesmo tempo em que apalpava os bolsos da jaqueta.

Chegando ao hotel, peguei a chave, tomei o elevador. Dentro do apartamento, fui ao banheiro, postei-me frente ao espelho, retirando, primeiro do bolso esquerdo da jaqueta, o dócil cortante metal. Depois foi a vez do souvenir. Ao empunhar o metal sobre minha orelha, no canto esquerdo superior do espelho, Van Gogh, observava-me passivamente.

No mármore do lavabo, a orelha de Van Gogh já não estava solitária.

Page 189: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

CRÔNICAS

Page 190: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava
Page 191: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

191

Confidências da sinceridade

Getúlio Targino Lima

No final do ano de 1988, mais precisamente no dia 1° de dezembro, oferecia, num dos salões do Hotel Umuarama, na rua 4, um coquetel de comemoração pela minha posse, que acabara de ocorrer, na Cadeira nº 6 da Academia Goiana de Letras.

Família, amigos, alunos, acadêmicos, numa reunião feliz e agradável.

Ainda me perguntava se era verdade meu ingresso no mais alto Sodalício das letras goianas, para o qual fora trazido por nomes como Jerônimo Geraldo de Queiroz, Colemar Natal e Silva, José Luiz Bittencourt, Rosarita Fleury, Nelly Alves de Almeida e Regina Lacerda, entre outros. Presidia a Academia, então, o notável cronista da cidade de Goiânia, escritor José Mendonça Teles.

Naturalmente, procurava conversar com todos, tendo para cada qual um dedinho especial de prosa. Numa dessas idas e vindas, abordou-me um acadêmico, que me disse, num estalo:

– Targino, estou tomando seu whisky aqui, mas votei contra você.

Contemporizei: – Isto é normal, amigo. Cada qual tem o direito de fazer suas

escolhas, e elas devem ser respeitadas.Mais algumas idas e vindas e, de novo, o mesmo personagem: – Olhe, Targino, além de não ter votado em você, quero lhe

dizer que trabalhei contra você.Novamente contornei:

Page 192: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

192

Revista da Academia Goiana de Letras

– Caro confrade, quando se faz uma escolha, é natural que se lute por ela e, portanto, que se trabalhe contra o adversário.

Mais para o final da festa, o mesmo acadêmico me confidenciou:

– Olhe, depois de sua eleição fiquei de olho na posse. Tendo assistido a tantas posses, já havia ouvido muita coisa boa, mas muita coisa ruim também. Como não o conhecia queria ver o que você haveria de dizer no discurso solene. E quando você começou com aquela citação em espanhol, eu pensei: “Não vai prestar de jeito nenhum...”. Todavia, continuei ouvindo e, quando você terminou, pensei: “Faz muito tempo que não ouço um discurso de posse com este conteúdo, com esta mensagem”.

Era nada mais, nada menos do que BARIANI ORTENCIO, nome mais do que consagrado, mas com o qual não tinha tido, ainda, até aquela altura, oportunidade de um contato mais próximo.

Daí para a frente, estreitou-se a amizade, fortaleceram-se a admiração e o respeito mútuos. A sinceridade fez suas confidências.

Fui me encantando cada vez mais, com essa admirável polivalência cultural de Bariani: o romancista, o cronista, o letrista de tantas músicas gravadas por nomes de relevo nacional, o folclorista, o dicionarista e o admirável contador de casos.

Ouvir Bariani contar suas histórias, ou como ele gosta de dizer, seus casos, é uma delícia. A naturalidade e a despreocupação com que as expõe tornam o ouvinte cativo, hipnotizado pela curiosidade de tantos detalhes, tantos fatos desconhecidos que são expostos.

Significado de palavras de origem indígena, sentido de termos utilizados em diversas regiões do país, de tudo Bariani

Page 193: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

193

Revista da Academia Goiana de Letras

dá notícia... Até da verdadeira data de nascimento de Ursulino Leão. Aliás, os dois, sob as mais diversas justificativas, vão se dizendo apenas com 89 anos, mas a verdade é que cada um já alcançou os 90 anos, e ambos com boa saúde e muita disposição, graças a Deus!

E as receitas de pratos típicos e especiais?Bariani sabe de muitas e haja programa de televisão para

que ele possa contar como se faz, por exemplo, um peixe na telha, com direito a explicação do porquê deste nome para essa iguaria.

Sua contribuição foi e é tão válida que recentemente a Universidade Federal de Goiás lhe outorgou o título de Doutor Honoris Causa, e fique desde logo bem claro, Bariani não é líder ou dirigente político...

Histórias de vida, lições de comportamento, ensinamentos de humildade, sinceridade, desejo de bem servir... Casos como o da vida de Bariani Ortencio, paulista que adotou Goiás e por ele foi adotado. Coisa que já se via nas estrelas, fato que estava escrito, que tinha que ser assim. Ou melhor, como você gosta de dizer, Bariani: maktub!

Page 194: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

194

ESTRESSE DIVINO

Lêda Selma

Já que Deus estava em férias no Brasil, a convite de João Ubaldo, aproveitei a deixa e pedi ao Criador que ficasse um tempinho mais por aqui. Queria que visse os desdobramentos que deram à Sua criação. Mas, Deus me livre, ou melhor, Ele me livre de colocá-Lo em perigo!

Uma espiadinha aqui, ali, acolá, pensei, não Lhe fará mal algum. Além do mais, Ele saberá proteger-Se, naturalmente. Apesar disso, não me omiti, ao contrário, disse-Lhe das distorções que o homem impingiu a Seus feitos e também dos riscos que rondam o ser humano permanentemente. “Não sou humano, sou Divino e Onipotente”, lembrou-me. Isso me tranquilizou.

Baita susto tomei quando soube de Sua intenção: um passeio noturno, a bordo de uma robusta camioneta preta, cabine dupla. De pronto, desaconselhei tão arriscado desejo; e o fiz sob os argumentos conhecidos por qualquer brasileiro. Desatendida, cruzei os dedos, fechei os olhos, rezei à Maria Santíssima (mãe é mãe!) e, na falta de um substituto do  porte de Deus, já que ainda estava em férias – que situação! –, o jeito, apelar aos orixás, até por conveniência própria: seria eu a cicerone...

– Assalto! – vociferou o bandido.– O quê?! – perguntou a voz Divina.– Além de idoso é surdo ou sonso, hem?!Tentei interferir, claro, mesmo petrificada pelo tremendo

susto de carne, osso, ousadia e revólver em riste. Afinal, onde já se

Page 195: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

195

Revista da Academia Goiana de Letras

viu falar de modo zombeteiro com Sua Divindade!? Mas só tentei: minha voz escondeu-se atrás do medo que, não tardou, escorreu-me pernas abaixo.

– Não foi para isso que o criei, filho!– Filho?! O senhor é de outro planeta, é caduco ou azoretado

mesmo?! E pode alforriar a alma, porque já vou despachar a tal pra Deus...

– Pra mim...?! Ora, francamente! Você é meu filho, sim, tenho certeza! Apesar de distanciado de minha imagem e semelhança. E quem corre o risco de ter a alma despachada é você. E o detalhe: sem burocracia!

Infarto?! Quase. No meu caso, bem-entendido. Também, pudera: além do diálogo perigoso, Ele, ou seja, Deus, num átimo, virou as costas ao meliante, pode? Cheguei a gritar, embora nem precisasse, valha-me, Deus!

Não me perguntem de que forma, mas o certo é que nos safamos da terrível situação que, segundo meu pânico, durou horas. Milagre?! Sabe Deus...

 Um pouco à frente, bela igreja. De bom tom visitá-la, pensei. Afinal, depois de tanto sufoco... Logo, um falso cego pediu: “Uma esmolinha, pelo amor de Deus!”.

– Pelo amor de quem...?! Isso é demais! Que situação a minha: metido em picaretagem! – esbravejou o Todo-Poderoso.

Mal entramos e o celebrante: “Falo em nome do Senhor. Coloquem na sacola o dinheiro, e Deus lhes pagará em dobro!”.

– Em meu nome?! Por acaso, passei alguma procuração a alguém? E, ainda por cima – que constrangedor! –, eu, às voltas com agiotagem!?

Page 196: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

196

Revista da Academia Goiana de Letras

À saída, disfarçado de paraplégico, um homem choramingou: “Ajude um aleijado carente, porque quem dá aos pobres, empresta a Deus!”.

– Quer dizer que o desonesto contrai dívida e o devedor sou eu, o responsável pelo pagamento? Providência, já! – indignou-Se meu ciceroneado.

Resolvi, para desanuviar o Pai, levá-Lo a um barzinho – a ideia, reconheço, foi estapafúrdia. Já à entrada, o garçom alardeou:

– A casa oferece, como cortesia, aquela cachaça especial, a melhor da cidade. E, olhem, até um pileque compensa, tamanha a gostosura.

– Não, obrigado, não bebo, respondeu-lhe Deus.– Escute, doutor, se é por causa da religião, pode ficar

tranquilo, Deus não faz conta desses pecadinhos.– Não me faltava mais nada: beber cachaça, ficar de pileque

e, para arrematar, fazer vistas grossas a ‘pecadinhos’! Realmente, não foi uma boa ideia, não, não foi; aliás,

péssima, confesso. Então, para me livrar do desconfortável constrangimento, quis mostrar-Lhe algo bem-descontraído. O zoológico, pronto! Bicho não fala, não mente, não pede. Tão logo chegamos, um político, todo sim senhor, do alto de um palanque improvisado (era época de eleição...), impostou a voz de falsete, mentiu promessas surreais e arvorou-se em candidato do povo, sob o slogan: “A voz do povo é a voz de Deus!”. Aí, não houve jeito, o Pai deu um basta:

– Tenho até porta-voz?! Chega! A terra não é meu lugar. Bagunçaram minha obra, esculhambaram com meus ensinamentos, instauraram a corrupção, a desonestidade, preciso tomar algumas providências. Voltarei ao céu. Partirei na primeira estrela disponível.

Page 197: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

197

Revista da Academia Goiana de Letras

Meu convidado estava atarantado com o que via e ouvia, com o uso do Seu santo nome em vão, com tanta malandragem. Mesmo ante sua decisão de ir embora, tentei desanuviar o clima, era domingo, dia de  ir ao estádio, então, sugeri-Lhe assistirmos a algum jogo, um jeito esportivo de distrair minha Divina companhia. Porém, era visível, Seu humor queria descanso.

–  Ao jogo?  Nem pensar!  Mesmo à paisana, seria logo reconhecido, invocado e, de imediato, tentariam o tal tráfico de influência, pois o brasileiro me tem como conterrâneo, e o torcedor, como companheiro de time. Além disso, a depender das circunstâncias e do time, só mesmo um milagre e dos grandes! E estou em férias! Deus, isto é, eu próprio, me livre de tamanha enrascada! Tenho uma Onipotência a zelar, ora! Estou de partida.

– Então, até um dia, Senhor, e não tenha pressa, pressa nenhuma, nenhuma, de promover esse nosso reencontro, certo? Vá com Deus, isto é, acompanhe-Se, amigo!

– Ah! É bom que saiba: amigos, amigos, alma à parte. O Paraíso? Só por merecimento, ouviu bem? E não tente suborno ou conchavo com meus auxiliares, está me ouvindo? Senão, facilitarei tudo para a concorrência. E aí, ficará do jeito que o Diabo gosta.

Page 198: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

198

A crônica, modo de fazer

Luiz de Aquino

Escrevo neste sábado, 31 de outubro, em 2015. Estou nas primeiras semanas de uma nova idade, muito feliz por ter vencido a surpreendida década dos 60 e, pelo óbvio, chegar à marca dos 70. Portanto, sou um septuagenário que dá graças a Deus e aos competentes anjos que tão bem me guardaram para atingir este feliz estágio.

No dia anterior, dia 30, por convocação da mui querida Maria de Fátima Gonçalves Lima, coordenadora do Mestrado em Letras da Pontifícia Universidade Católica de Goiás, participei de uma mesa-redonda para falar de crônica. Comigo, o guru Luiz Augusto Paranhos Sampaio, um homem de muitos títulos de professor (Português, Francês, Literatura Brasileira, Literatura Portuguesa, Literatura Francesa, algumas disciplinas de Direito no ensino superior, vereador e presidente da Câmara Municipal de Goiânia, Subprocurador Geral da República, assessor de destacados governadores e ministros etc. e tal, tal e tal!). E também a poetisa e cronista Maria Lúcia Félix, que entre suas referências pessoais, acrescentam-se as ligações sanguíneas com uma nobilíssima família de letrados (o pai Domingos, os tios Aída, Afonso e Manoel – respectivamente crítico literário, contista, poeta e compositor, mas todos eles com incursões nos demais gêneros literários – referi-me aos que mais se destacaram em cada um deles).

Falamos para uma plateia de estudantes e professores da PUC, sob a mediação do jornalista (e mestre e doutor em Letras)

Page 199: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

199

Revista da Academia Goiana de Letras

Rogério Borges. O colega, que por muitos anos atuou em O Popular, sempre com destaque na cobertura literária, é também professor na PUC. E em cada um de nós a alegria de discorrer sobre o ofício da escrita e o inexplicável prazer da crônica, da concepção, escrita, publicação e até a leitura, eis que somos todos dedicados leitores dos que registram o quotidiano e suas impressões várias.

Uma das mais indagadas questões ao cronista diz respeito à escolha dos temas. Acontece, às vezes, que algum leitor nos sugira ou mesmo peça algo sobre determinado assunto, mas até mesmo essa sugestão ou pedido implica não um desejo de ver o tema publicado – mas especialmente a opinião do escriba (Jô Sampaio, excelente cronista, além de poetisa, professora, crítica literária e contista, não gosta deste termo, acha que enquadra o escritor num time de maus escrevedores – mas acho eu que isso não nos diminui, não...). E é a opinião do escritor de sua escolha – razão porque sempre atendemos com alegria.

O ponto alto do nosso encontro ficou por conta justamente do meu confrade acadêmico Luiz Augusto P. Sampaio. Ele estreou no gênero em 1958. Foi ele o primeiro cronista de Goiânia a publicar um livro de crônicas e o fez num elevado respeito à jovem capital, pois o seu livro teve por título (e cenário) justamente o ponto alto da vida sociopolítica de então: “Café Central”.

Em Goiânia das primeiras cinquenta décadas, o Café Central (esquina da Rua 7 com a Avenida Anhanguera) estava para a capital como o Vaticano para Roma. Em lugar de tentar definir isso, sugiro ao leitor que procure ler esse livro, que saiu a lume em 1964 (há 51 anos, pois!), mas tem segunda edição publicada na Coleção Goiânia em Prosa & Verso, que era realizada pela Prefeitura, mas o atual prefeito demonstrou seu carinho para

Page 200: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

200

Revista da Academia Goiana de Letras

com as Letras e a História encerrando sua existência de modo arbitrário, como uma confissão de ignorância intelectual.

Luiz Augusto teve o mimo, ou o capricho, de delinear uma classificação para as crônicas, e as intimistas (e piegas) foi o degrau da escala (ou escada) que mais me intrigou. Sim, que a crônica, tida por acadêmicos de menor alcance de inteligência como um “gênero menor” ou mesmo um “subgênero”, é um segmento da escrita que resulta na narrativa curta e leve, muito próxima do conto – mas este pede mais profundidade ou peso – e praticada por quem tem, no mínimo, uma forte sensibilidade ante a história, o quotidiano, o social e o psicológico. Ou seja, não é para qualquer um! Conheço bons poetas e contistas aqui mesmo entre nós que se dobram de inveja dos que a praticam – e não o fazem por total incompetência, por lhes faltar a sensibilidade mínima e, em alguns casos, mais ainda, a verve poética.

Ninguém é bom cronista se não for, ao menos no íntimo, um bom poeta.

E aos incautos e precipitados, eu afirmo, com o coro dos de bom-senso: não existe gênero menor. O que existe – no romance, na crítica, na poesia, no conto e na crônica – é escritor não qualificado.

Page 201: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

POEMAS

Page 202: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava
Page 203: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

203

Revista da Academia Goiana de Letras

SINETE

Augusta Faro

Enquanto houver uma cigarra nas ramas,iluminando chegarem vozes e crianças,a tua ausência ficará na tardee permanecerá sobre o telhado.

Tu permanecerás como voz de silêncio,desespero e asa,na sombra úmida e fundade minhas ilhas e continente.

Tu permanecerás nas linhas das mãos,nos campos molhados,dessa vigília aurorescente.

Tu viverás silente em cada porta e nas altas árvores,será eclipse cortando o gumedesse tempo costurado de esperas.

Page 204: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

204

Revista da Academia Goiana de Letras

BALADA DE UM HOMEM SÓ

Derlemando Vieira

Alguns me procuram em lugares fartos de ruídos. No entanto, nunca estou onde deveria estar, quando eles, assim, me vêm. A tempestade, em que me habito, a eles, por certo, não pertence. Estou acostumado a conviver com as minhas tormentas, que não são poucas. Sei que eles, inocentes que são, se fazem sempre algures, nunca tristes, em seu coração1

de sarças incendiadas em vocábulos extremos,eivados de muita ternura.

Ninguém, decerto, há que me procurar nos meus vazios tão cheios de tudo. Ninguém!

As milhas de mar, em que navego, são trágicas e fugazes, como os gritos, talvez, agulhados e perdidos na multidão dos desertos meus.

Sem dúvida, alguns me têm chegado com suas flores nas mãos. São sinceros, todavia, e puros em suas palavras de contrita emoção. No entanto, eu, que estou acostumado a semear flores secas em desertos, entendo que a eles uma só palavra basta: há que haver, pelo menos, na paisagem desolada de

1 José Régio: Poeta modernista português, autor de Cântico Negro.

Page 205: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

205

Revista da Academia Goiana de Letras

seus olhos algum conforto, onde um gesto de amor, apenas, possa ser tão belo, e mais importante, que a mais sublime das intenções de ser amado e amar mais do que nunca!

Alguns, sem qualquer surdez de olvido, me têm chegado com suas conchas de escutar doçuras, ainda que em seus ouvidos de nada escutar exista uma ressaca de amaro-mar.

Todavia, nada de pêssego, ou amora, ressuma nos caixilhos de seus lábios, tão áridos, cansados de palavras vazias, abaixo dos céus e nuvens de estranho algodão.

Quem sabe, uma só palavra de alento ser-lhes-ia confortável, e seguro, talvez, ao sussurro dos ventos,

entre a dúctil fúria das colinas e os vales tomados de flores agrestes, regados a água de rubra fuligem e cânticos de brisa açoitada aos cutelos de uma atemporal tempestade. ao deserto de meu eu solitário. Anelde abandono, há muito deixei de ser meu único dono.

No entanto, é morada do esquecimento o que em mim liberta o dia ido,muito embora de memória faça a horaem meu passado esquecido,

pra além, muito além da mais longa espera!

Page 206: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

206

Revista da Academia Goiana de Letras

Eu sei: espelhos há em toda galeria do meu íntimo escarcéu.Contudo, é de não refletir nos meus olhosa leveza dos céus,

quando esses emigram de sua alvoradaa inundação do Nada

em toda a sua plenitude.

A casa, onde meu ser mora,é escura, não por dentro,mas por fora

de sua realidade;

e se uma só esperança de lograr toda fiança houver em meu caminho,é sinal de que sou multidão na balada de estar sozinho,assim, talvez, como uma andorinha e seu verão

sem futuro.

Sim, alguns me têm chegado, com suas flores colhidas na madrugada, ainda molhadas de orvalho, com seu sorriso e alegria juvenil. Porém, não é de luz o que me vem, em sintonia infantil,

com sua palavra, já que, ao fundo, sua ilusão não se mostra, pouco diz, engana o coração

daqueles menos avisados,

Page 207: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

207

Revista da Academia Goiana de Letras

distraídos de si e do que em redemoinhossegue à baila de uma farsae sua troupe de inimigos estrangeiros; e é de nau o que, afinal, navegano mar de meu desespero tamanho,

feito fosse o que não fossede perdição, ao balir de meu rebanho, sem destino, esquecido de vez, entregue ao vazio,tão cheio de dor neste mundo!

Alguns me têm, por aqui, à hora viva, à hora morta,expondo-me à falsa esperança de nenhuma porta,

aberta, sim, ao descaso,ao vazio,ao imenso tambor de uma dor e seu estio

na tarde, num mundosem Deus.

O José Régio, eu, que, enfim, não me entendo, ou sequer me rendo, às dores deste mundo, vivo, agora, esta balada só,sem fim, vazia, trágica e atada ao nó

de quem nunca, nunca mais, há que se soltar pra sempre,

libertar-se de sua súbita e branca solidão!

Page 208: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

208

Revista da Academia Goiana de Letras

O CIRCO

Geraldo Coelho Vaz

Mais tarde,os animais da infância.Todos juntos,sem liberdade,e a alegria de viver.Na jaula, bichos adestrados,prisioneiros das circunstâncias,da sociedadee de nós no nada.

A inquietação da belezae o sofrer inatingível.

Mais tarde,como os enjaulados,choro a ilusão de liberdade.

Page 209: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

209

Revista da Academia Goiana de Letras

SEM SEXTA

Iúri Rincon Godinho

segunda-feira entro na geladeira

terça-feira lambo as feridas

quarta-feira jogo fora a comida vencida

quinta-feira mudo de vida

sexta-feira - ah, foda-se a sexta-feira.

Page 210: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

210

Revista da Academia Goiana de Letras

POEMA-SÍNTESE DA ESTÉTICA DE PROUSTHomenagem à Semana Colemar Natal e Silva (24/08/08),

cujas palestras tiveram como tema Marcel Proust.

Moema de Castro e Silva Olival

Proust e a dimensão de sua subjetividade

História de uma obraHistória de uma épocaHistória de uma consciênciaForças em interação.É a memória afetivaRasgando o âmagoDe uma passada visão.

Proust: ser,Proust, não-ser.Proust pincelandoOs ingredientes da percepção. Evocando o passado,Traz profundidade a aspectos da almaE os dimensiona no seu toque particular.

Swann não pode ser só um caminhoUma soma de momentosMas um acervo de lembranças

Page 211: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

211

Revista da Academia Goiana de Letras

Trabalhadas pela subjetividade:Um toque do eternoÀs coisas perecíveis.

Proust achouO segredo da sensação;O persistir do perfumeNo perecível da florA verdadeira realidadeEstá na memória,Na imaginação.

Amor, amor de palavrasAbraçando almas.E é na perspectiva atualQue se processa Sua mirada fatal.

É o presente que tingeA lembrança do passado.Tantas são suas coresQuanto a pele que as recobre. A Arte é vida!...A Vida é arte!...

13/08/08

Page 212: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

212

Revista da Academia Goiana de Letras

TEU NOMEPara Alice Spíndola, como se fossem sonetos

Paulo Nunes Batista

Teu nome faz lembrar asas se abrindoo encanto azul da Flor ao Sol subindo.Teu nome lembra a doce serenata,Lua-cheia a brilhar por sobre a mata.Teu nome é como um beijo, uma meiguiceou ternura de Mãe, carinho, Alice.Nome que embala as pedras do Caminho,os arrulhos de Amor de cada ninho.Teu nome vibra como voz antigade ternura de Amor que a tarde abriga.Canto de Paz, Momento de Saudade,Beijo de irmão, sorriso de criança,que fica soluçando na lembrança,música, bênção divinal, que não nos cansa.

Anápolis, 14/12/2013

Page 213: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

213

Revista da Academia Goiana de Letras

(SALMO) 43

Ursulino Leão

Protegido pela capa Ideal

o homem a cavalo nota

que a chuva fina não o molha

mas lhe acorda as saudades.

Page 214: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava
Page 215: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

ANO CULTURALBARIANI ORTENCIO

Page 216: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava
Page 217: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

217

Sessão Comemorativa do Ano Cultural Bariani Ortencio

Mesa-redonda realizada em 18 de agosto de 2016

Lena Castello Branco

É para mim um prazer fazer uso da palavra neste momento, na Mesa-redonda que é parte das homenagens prestadas a Waldomiro Bariani Ortencio, nosso ilustre confrade – no ano de 2016, Ano Cultural Bariani Ortencio.

Muito se tem dito e escrito sobre a vida e a obra desse personagem invulgar, que reúne atributos, sensibilidades e realizações as mais diversas, sendo bem-sucedido em todas elas. Assim é que, como escritor, pesquisador, folclorista, compositor, empresário e ser humano Bariani Ortencio a todos nós encanta, seja pela luminosidade do seu talento polimorfo, seja pela cordialidade, alegria de viver e bom humor que o caracterizam. Atingindo a marca dos 93 anos, continua escrevendo e dando lições de vida – e, ainda ontem, em noite festiva, presidiu o lançamento de Minhas reminiscências, de sua autoria. Um alentado volume, certamente porque elas são muitas, as reminiscências, ricas e personalíssimas, cobrindo quase todo um século e perpassando por momentos decisivos – tanto para o autor, como para os brasileiros e a humanidade em geral.

E é como memorialista que desejo saudá-lo de maneira efusiva, caro Bariani Ortencio, pelo valor de sua contribuição também nessa área que subsidia a História e a aproxima da vida real e das personagens do cotidiano. Ao longo desses últimos 100

Page 218: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

218

Revista da Academia Goiana de Letras

anos, vivenciamos a transição do Brasil predominantemente rural para o Brasil marcadamente urbano, com todas as implicações decorrentes dessa mudança.

Em seu livro A Fronteira – com os subtítulos Revolução Constitucionalista de São Paulo e Minha vida de menino – o autor contrapõe as ambivalências que marcaram esse processo, ao evocar Igarapava e o interior paulista, antes, durante e depois daquele movimento armado, iniciado em 9 de julho de 1932.

A Fronteira remete primeiramente às divisas geográficas entre São Paulo e Minas Gerais, com o Rio Grande de permeio e, nele, a ponte metálica entre uma e a outra unidade da Federação. Remete igualmente à confrontação político-ideológica que afastava esses estados, ao iniciar-se a década de 1930, e mais acentuadamente em meados de 1932.

Textos sobre o bucolismo e o cotidiano de uma família ítalo-brasileira alternam-se no livro, que traz referências à pregação panfletária que arrastou os paulistas à revolução. Bariani Ortencio detém-se no fervor libertário dos constitucionalistas contrapondo-se ao Governo Provisório de Getúlio Vargas – que chegou a marcar a convocação de uma Constituinte, mas que exercitava o totalitarismo e tendia à ditadura, conforme haveria de confirmar-se cinco anos depois no Estado Novo. Refere também o autor ao discurso diversionista de Vargas que, acusando os paulistas de separatismo, visava a cooptar a adesão das demais unidades da Federação às fileiras do centralismo político. O estado de Goiás marchou com as forças legalistas – e Bariani refere-se ao batalhão de Ipameri, que lutou contra os constitucionalistas na fronteira mato-grossense.

A Fronteira foi premiado como “obra inédita” pela Academia Paulistana da História que lhe conferiu o 27º Prêmio Clio de

Page 219: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

219

Revista da Academia Goiana de Letras

História, em outubro de 2004. Editado nesse ano e reeditado (2005), o livro traz a “Apresentação de um menino para meninos e adultos”, na qual Bariani assinala:

Uma das coisas melhores da minha ótima infância foram os acontecimentos da Revolução, em 1932. Aquela movimentação de soldados em caminhões e trens de ferro, o receio ou medo e pavor de certas pessoas contra o entusiasmo de outras sobre a Guerra Paulista, era tudo bom demais da conta pra nós, a molecada entusiasmada, querendo ser gente grande pra desafiar os “mineiros” (p. 9).

Tem-se, portanto, a visão do menino Waldomiro (ou seria Waldo? ou Badu?) de nove anos, diante da guerra civil, cuja virulência fermentava em toda a sociedade, na família e até entre os colegas “da turma”. Não obstante, ali está a fruição da infância – não idealizada nem santificada, mas permeada de curiosidade, de criatividade e de transbordante energia que não se furtava a malfeitos e pecadilhos inerentes à condição humana.

Ali está presente, igualmente, o esforço de compreensão e interpretação da guerra civil, que levou irmãos a odiarem irmãos, amigos a renegarem amigos, vizinhos a digladiarem entre si. Com resultados trágicos, como registra Bariani:

A revolução durou 82 dias [...] Dos 7 milhões de paulistas (à época), 35.000 foram à luta, 630 morreram, 1.037 ficaram feridos e foram 170.000 as mulheres voluntárias como enfermeiras, cozinheiras, municiadoras, mensageiras, costureiras, atendentes e confortadoras das famílias enlutadas.

Page 220: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

220

Revista da Academia Goiana de Letras

É lembrada uma das vítimas indiretas da assim chamada Guerra Paulista, Alberto Santos Dumont, o Pai da Aviação. Como é do conhecimento geral, ele nasceu em Palmira (MG); era, então, o brasileiro de maior projeção internacional, dada a relevância de suas pesquisas e inventos, que culminaram com o 14-Bis voando sobre o campo de Bagatelle, em 1906, feito aplaudido e noticiado pelos maiores órgãos da imprensa mundial.

De sensibilidade extremada, consta que Santos Dumont não aceitou e condenou o uso de aviões em combate, porquanto seu trabalho direcionava-se para o bem-estar e o conforto da humanidade, jamais para matar beligerantes em guerra, como vira acontecer na Europa, durante a Primeira Grande Guerra Mundial (1914-1918).

Afetado por crises de depressão, depois de períodos de tratamento psiquiátrico em sanatórios da Suíça e da França, retornara Santos Dumont ao Brasil, passando a residir em São Paulo, de onde seguiu para o Guarujá.

Duas semanas depois de começada a guerra civil, quando governistas e revoltosos empregaram aviões de combate, inclusive com o bombardeio de populações civis, Santos Dumont suicidou-se em 23 de julho de 1932.

A morte deu-se por enforcamento, no banheiro do Grand Hôtel de La Plage – possivelmente com o uso de um cinto. A pedido da família, o laudo médico registra que ele faleceu vítima de uma parada cardiorrespiratória, com o que se tentaria abafar o escândalo e preservar a memória do genial inventor. Pesquisas recentes têm aprofundado buscas sobre a biografia de Santos Dumont, questionando-se o que seria a versão idealizada de seu suicídio.

Page 221: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

221

Revista da Academia Goiana de Letras

Como dito, em A Fronteira relatos da guerra alternam-se com memórias de infância de Bariani Ortencio – com saborosos textos que envolvem não somente o personagem/memorialista, mas toda a sua constelação familiar, com destaque para os avós italianos, assim como o pai (paulista de Cravinhos) e a mãe (paulista de Ribeirão Preto). O cenário desses relatos é inicialmente a Usina Junqueira, à época a maior do país; e Igarapava, ex- Porto das Canoas e/ou Santa Rita do Paraíso, à margem do Rio Grande, que dividia (ou aproximava) São Paulo de Minas Gerias.

Cidade pequena e pacata, em Igarapava vive-se o dia a dia do interior brasileiro e é lá que o menino Waldo descobre o mundo, a partir de seu núcleo familiar caloroso, em que ressaltam a proteção e as exigências maternas, que o marcaram profundamente.

É uma infância que se inventa a si mesma, em contacto com a natureza e no convívio com outros meninos que formam “a turma”, sempre disposta a brincar e aprontar... Infância distante no tempo e na feição, quase sem brinquedos “de loja”, sem superproteção nem tecnologia estrangeira.

Nessa rememória da infância, Bariani Ortencio vive alguns dos seus melhores momentos como escritor, compartilhando com o leitor sensações, deslumbramentos, frustrações, alegrias e tristezas, mas também o conhecimento muito próximo da natureza, ainda que, às vezes, de forma predatória e inconsequente. São narrativas impregnadas de autenticidade e forte conteúdo sociológico e antropológico, constituindo-se em suportes preciosos para estudos de História Social e Cultural.

O contraponto entre a infância e a guerra, a dualidade entre a realidade e o sonho, entre a vida e a morte – que paira como ameaça imediata nos dias da Revolução Constitucionalista

Page 222: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

222

Revista da Academia Goiana de Letras

– empresta contornos de poesia e de tragédia às evocações de Bariani Ortencio. Que trazem a marca registrada do autor: seu amor pela vida simples e pelo povo do sertão, que ele consegue transmitir sem concessões, enfeites ou preciosismos literários.

Isso sem falar em tantas outras obras publicadas, de cunho literário ou contendo pesquisas, relatos e verbetes – em livros, revistas, enciclopédias, coletâneas, mais a participação em programas de TV e realização de incontáveis palestras, sobretudo em escolas – nas quais Bariani Ortencio nos oferta a riqueza do seu mundo interior, armazenado e sobreposto como que em camadas de sabedoria e de telurismo.

Obrigada, Bariani.Maktub!

Fazenda Santa Cruz, 18 de agosto de 2016

Page 223: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

RELATÓRIO DE ATIVIDADES

2016

Page 224: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava
Page 225: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

225

Revista da Academia Goiana de Letras

• 4/2/2016 – Abertura das atividades culturais e lançamento do Ano Cultural Acadêmico Waldomiro Bariani Ortencio

• 11/2/2016 – Sessão Magna da Saudade do acadêmico Humberto Crispim Borges – Cadeira n° 3 – Patrono Pe. Luiz Gonzaga de Camargo Fleury. Panegírico – acadêmica Maria Augusta de Sant’Anna Moraes

• 3/3/2016 – Palestra do acadêmico Paulo Nunes Batista – Cordel e o Cangaço

• 10/3/2016 – Sessão Festiva em homenagem a Altamiro de Moura Pacheco

• 17/3/2016 – Palestra ministrada pelo acadêmico Hélio Moreira, em homenagem ao centenário do acadêmico José Normanha

• 31/3/2016 – Eleição da historiadora Lena Castello Branco Ferreira de Freitas para a Cadeira n° 30, vaga com o falecimento do acadêmico Cesar Baiocchi

• 7/4/2016 – Sessão Ordinária

• 14/4/2016 – Palestra do acadêmico Hélio Rocha em homenagem ao centenário de seu pai, acadêmico Odilon Rocha

• 28/4/2016 – Sessão comemorativa, no auditório da Justiça Federal, do aniversário de 77 anos da Academia Goiana de Letras

• 5/5/2016 – Eleição do historiador Nasr Nagib Fayad Chaul para a Cadeira n° 3, vaga com o falecimento do acadêmico Humberto Crispim Borges

Page 226: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

226

Revista da Academia Goiana de Letras

• 12/5/2016 – Sessão Magna da Saudade do acadêmico Mário Ribeiro Martins – Cadeira n° 37 – Patrono Crispiniano Tavares. Panegírico – acadêmico Licínio Leal Barbosa

• 19/5/2016 – Palestra ministrada pelo acadêmico Luiz de Aquino Alves Neto, em homenagem ao centenário do acadêmico José Sisenando Jayme

• 2/6/2016 – Sessão Ordinária

• 9/6/2016 – Sessão Magna de Posse da acadêmica Lena Castello Branco Ferreira de Freitas – Cadeira n° 30

• 16/6/2016 – Sessão Ordinária

• 23/6/2016 – Palestra ministrada pelo acadêmico Miguel Jorge, em homenagem ao centenário da acadêmica Nelly Alves de Almeida

• 1º/8 – Início da restauração e reforma da Casa Colemar, sede da AGL.

• 4/8/2016 – Sessão Ordinária

• 11/8/2016 – Eleição do poeta Itaney Francisco Campos para a Cadeira n° 37, vaga com o falecimento do acadêmico Mário Ribeiro Martins.

• 18/8/2016 – Sessão comemorativa ao Ano Cultural Waldomiro Bariani Ortencio

• 25/8/2016 – Sessão Festiva em homenagem ao aniversário do acadêmico Colemar Natal e Silva, no IHGG

• 1/9/2016 – Sessão Ordinária

Page 227: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

227

Revista da Academia Goiana de Letras

• 8/9/2016 – Sessão Magna de Posse do acadêmico Nasr Nagib Fayad Chaul – Cadeira n° 3

• 22/9/2016 – Sessão Ordinária

• 20/10/2016 – Sessão Ordinária

• 27/10/2016 – Sessão Ordinária

• 10/11/2016 – Sessão Ordinária

• 17/11/2016 – Sessão Festiva realizada na residência do acadêmico José Mendonça Teles

• 24/11/2016 – Sessão Magna de Posse do acadêmico Itaney Francisco Campos – Cadeira n° 37.

PARCERIAS CULTURAIS

• Palestras no Instituto Carlos André.

• Palestras nas Escolas Estaduais, promoção do Instituto Cultural Sicoob Unicentro Brasileira.

• Projeto Gelateratura (livros em geladeiras distribuídas nos terminais de ônibus) – Companhia Metropolitana de Transportes Coletivos – CMTC.

• Oficina da Crônica e da Poesia, na Livraria Leitura, projeto do Instituto Carlos André.

• Semana Nacional do Livro e da Biblioteca (palestras, varal de poesia, distribuição de livros) – projeto do SESI.

Page 228: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava
Page 229: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

ACADÊMICOS CADEIRAS - PATRONOS

TITULARES

Page 230: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava
Page 231: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

231

Revista da Academia Goiana de Letras

Cadeira nº 1Patrono: José Vieira Couto de MagalhãesTitular: KLEBER BRANQUINHO ADORNOTel.: (62) 3285-7238 / 9 8129-7631Rua A 19 Qd. 12A Lt. 4 – Jardim Atenas74.885-500 Goiânia - [email protected]

Cadeira nº 2Patrono: Constâncio Gomes de OliveiraTitular: AIDENOR AIRES PEREIRATel.: (62) 3246-0196/ 98156-6511Rua Monjola Q. B3 L.9 – Residencial Ipês – Alphaville – 74.584-585 Goiânia – [email protected]

Cadeira nº 3Pe. Luiz Gonzaga de Camargo FleuryTitular: NASR NAGIB FAYAD CHAULTel.: (62) 3246-2305 / 99120-9591Rua GV 1 Qd 15 Lt 26 – Res. Granville74.366-024 Goiânia – [email protected]

Cadeira nº 4Patrono: Antônio Félix de Bulhões JardimTitular: MOEMA DE CASTRO E SILVA OLIVALTel.:(62) 3241-3735 / 99972-7505Rua T-38, 722 Ed. Luchon Ap. 1001 – S. Bueno74.223-040 Goiânia - [email protected]

Page 232: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

232

Revista da Academia Goiana de Letras

Cadeira nº 5Patrono: Gastão de Deus Victor RodriguesTitular: ELIEZER JOSÉ PENNATel.:(62) 3215-7402Rua 9, 941 - 5º andar – S. Oeste74.120-010 Goiânia - GO

Cadeira nº 6Patrono: Raimundo José da Cunha MatosTitular: GETÚLIO TARGINO LIMATel.: (62) 3224-6762 / 99975-2004 Fax. 3223-9022Av. Anhanguera, 5674 sala 1504 Ed. Palácio do Comercio - Centro – 74.039-900 Goiânia – [email protected]

Cadeira nº 7Patrono: José Martins Pereira de AlencastreTitular: HÉLIO ROCHATel.: (62) 3877-4151Rua 27 esq com rua 7 n.º 1.152 – Ap. 904 – S. Oeste – 74.125-115 Goiânia - [email protected]

Cadeira nº 8Patrono: Alceu Victor RodriguesTitular: PAULO NUNES BATISTATel.: (62) 3321-5889Rua Benjamin Constant, 1.792 - Centro75.043-010 Anápolis – [email protected]

Page 233: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

233

Revista da Academia Goiana de Letras

Cadeira nº 9Patrono: Antônio Americano do BrasilTitular: WALDOMIRO BARIANI ORTENCIOTel.: (62) 3224-1706 / FAX: 3223-0330 / 99968-1241Rua 82, 565 - Setor Sul74.083-010 Goiânia – [email protected]

Cadeira nº10Patrono: Móises Augusto de Sant’AnnaTitular: LUIZ DE AQUINO ALVES NETOTel.: (62) 98418-7110Av. Rio Negro Q.D L. 10 - Condomínio Estância das Águas – 75.340-000 Hidrolândia – GO [email protected]://penapoesiaporluizdeaquino.blogspot.com

Cadeira nº11Patrono: Rodolfo Marques da SilvaTitular: GILBERTO MENDONÇA TELESTel.: (21) 2235-7454Rua Pompeu Loureiro, 36 Ap. 80222.061-000 Rio de Janeiro – [email protected]

Cadeira nº12Patrono: Inácio Xavier da SilvaTitular: MARTINIANO JOSÉ DA SILVATel.: (64)3661-1239 / 99989-1306 / 3224-69837ª Av., 72 – Centro – 75.830-000 Mineiros – [email protected]

Page 234: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

234

Revista da Academia Goiana de Letras

Cadeira nº13Patrono: Joaquim Bonifácio de SiqueiraTitular: EURICO BARBOSA DOS SANTOSTel.: (62) 3241-7181Rua 111-A, 3 – S. Sul – 74.085-140 Goiânia – [email protected]

Cadeira nº14Patrono: Hugo de Carvalho RamosTitular: LÊDA SELMA DE ALENCARTel.: (62) 3945-2193 /99979-8651Rua R-11, 48 Ap. 202 – S. Oeste74.125-100 Goiânia – [email protected]

Cadeira nº15Patrono: Manuel de Macedo C.J.Titular: ANTÔNIO CÉSAR CALDAS PINHEIROTel: (62) 3092-7029 / 99663-3296 Rua 21, 371 Ap 2021 – Centro 74.030-070 Goiânia – [email protected]

Cadeira nº16Patrono: Henrique José da SilvaTitular: LUIZ AUGUSTO PARANHOS SAMPAIOTel.: (62) 3229-0323 / 99907-6644 / 99195-7799RUA 31, 40 APTº 1401 - Centro – 74015-070 – Goiânia - [email protected]

Page 235: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

235

Revista da Academia Goiana de Letras

Cadeira nº17Patrono: Joaquim Maria Machado de AssisTitular: ANTÔNIO JOSÉ DE MOURATel.: (62) 3205-4325Rua Guilhermino P. Nunes Qd.Q4 Lt.48B Casa 3 (chácara) Vila Maria Rosa – 74685-670 Goiânia – [email protected]

Cadeira nº18Patrono: Olegário Herculano da Silveira PintoTitular: MIGUEL JORGETel.: (62) 3233-1969 / 3233-3724R. 229, 113 – S. Coimbra – 74.535-250 – Goiânia – [email protected]

Cadeira nº19Patrono: Joaquim Xavier Guimarães NatalTitular: JOSÉ UBIRAJARA GALLI VIEIRATel: (62) 3622-8821 / 99283-8821Rua 59-A, 735 Aptº 803 Ed. Sarah Mendes – S. Aeroporto – 74070-170 – Goiânia – [email protected]

Cadeira nº20Patrono: Luiz Antônio da Silva e SousaTitular: URSULINO TAVARES LEÃOTel.: (62) 3877-4017 / 99687-4551Rua 14, 95 Ap. 503 – S. Oeste74.120-070 Goiânia - GO

Page 236: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

236

Revista da Academia Goiana de Letras

Cadeira nº21Patrono: Egerineu TeixeiraTitular: JOSÉ FERNANDESTel.: (62) 3204-1078 / 99977-1094Av. Venerando de Freitas Borges, Qd.35, Lt.2 – S. Jaó – 74.673-010 Goiânia – [email protected]

Cadeira nº22 Patrono: Ricardo ParanhosTitular: EDIVAL LOURENÇO DE OLIVEIRATel.: (62) 3877-5972 / 99972-7110Rua T65, 700 Ed. Tulipa - St. Bueno 74.230-120 Goiânia [email protected]

Cadeira nº23 Patrono: Urbano de Castro BerquóTitular: IÚRI RINCON GODINHOTel.: (62) 3224-3737 / 99248-4011Rua 27 A, 150 - S. Aeroporto74.075-310 – Goiânia – [email protected]

Cadeira nº24Patrono: Hygino RodriguesTitular: HÉLIO MOREIRATel.: (62) 3225-9300 / 99971-1598 / Fax: 3224-8636Av. B, 435 – S. Oeste – 74.110-030 – Goiânia – [email protected]

Page 237: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

237

Revista da Academia Goiana de Letras

Cadeira nº25Patrono: Francisco Xavier de Almeida JúniorTitular: BRASIGÓIS FELÍCIO CARNEIROTel.: (62) 3251-8401/ 99352-6613Rua C-24 Q.22 L.18 – J. América – 74.265-140 – Goiânia – [email protected]

Cadeira nº26Patrono: José Xavier de AlmeidaTitular: AUGUSTA FARO FLEURY DE MELOTel.: (62) 3241-8424 / 99977-1875Rua Rua Samuel Morse Q. 169 L.1/5 Ap. 2104 – S. Serrinha – 74.835-080 Goiânia – [email protected]

Cadeira nº27Patrono: Bartolomeu Antônio CordovilTitular: EMÍLIO VIEIRA DAS NEVESTel.: (62) 3224-2163 / 99631-8905Av. Anhanguera esq.c/ Rua 7 Ed. Baiocchi Ap. 702-B - Centro – 74.043-011 – Goiânia - [email protected]

Cadeira nº28Patrono: Florêncio Antônio da FonsecaTitular: DELERMANDO VIEIRA SOBRINHOTel.: (62) 3225-4446 / 99388-0719Rua F-7 Q. 35 L. 3 – Setor Faiçalville74360-040 – Goiânia - GO

Page 238: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

238

Revista da Academia Goiana de Letras

Cadeira nº29Patrono: Luís Maria da Silva PintoTitular: NEY TELES DE PAULATel.: (62) 3242-1907 / 3216-2000 / 3216-2958Rua 1.142, 115 – S. Marista – 74.180-190 Goiânia – GO

Cadeira nº30Patrono: Demóstenes CristinoTitular: LENA CASTELLO BRANCO FERREIRA DE FREITASTel.: (62) 3294-5889 / 3294-8865Caixa Postal n° 101 – 75388-971 – Trindade - [email protected]

Cadeira nº31Patrono: Eurídice Natal e SilvaTitular: ANA BRAGATel.: (62) 3218-5687Rua 203, Q. N L. 25, 131- Setor Leste Universitário74.603-060 Goiânia – GO

Cadeira nº32Patrono: Francisco Ayres da SilvaTitular: JOSÉ MENDONÇA TELESTel.: (62) 3275-3268Rua 102, 89, St. Sul – 74.083-250 – Goiânia – [email protected]

Page 239: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

239

Revista da Academia Goiana de Letras

Cadeira nº33 Patrono: Antônio Eusébio de AbreuTitular: ALAOR BARBOSA DOS SANTOSTel.: (61) 346-0271 / (62) 3567-3112 (recado)Rua das Palmeiras Qd 47 Lt 9 – Aldeia do Vale – 74.680-390 – Goiânia – [email protected]

Cadeira nº34Patrono: Jarbas JaymeTitular: MARIA AUGUSTA DE SANT’ANNA MORAESTel.: (62) 3251-0807 / 99292-2269R. 15, 87 Ap. 1301 – S. Oeste – 74.140-035 – Goiânia – [email protected]

Cadeira nº35Patrono: Zeferino de AbreuTitular: LICÍNIO LEAL BARBOSATel.: (62) 3225-9333 / 3251-0425 / 99972-3448Av. Goiás, 310 – Conj. 707, Ed. Villa Boa – Centro74010-010 – Goiânia – [email protected]

Cadeira nº36 Patrono: Visconde de TaunayTitular: GERALDO COELHO VAZTel.: (62) 3214-2215Rua 14, 25 Ap.103 – S. Oeste74.120-070 – Goiânia – [email protected]

Page 240: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

240

Revista da Academia Goiana de Letras

Cadeira nº37Patrono: Crispiniano TavaresTitular: ITANEY FRANCISCO CAMPOSRua 12, 55, apt°. 301, Setor Oeste 74.140-040 Goiânia – [email protected]

Cadeira nº38Patrono: Bernardo GuimarãesTitular: MARIA DO ROSÁRIO CASSIMIROTel.: (62) 3214-3031 / 3092-3031 / 99243-3031Rua 10, 810 Ap. 701 – S. Oeste74.120-020 Goiânia – [email protected]

Cadeira nº39Patrono: Pedro Gomes de OliveiraTitular: FRANCISCO ITAMI CAMPOSTel: (62) 3956-0304 / 99977-4609Av. Floresta, s/n Qd 32 Lt 7-A – Res. Aldeia do Vale74.680-210 – Goiânia – [email protected]@unievangelica.edu.br

Cadeira nº40Patrono: Arlindo CostaTitular: GABRIEL JOSÉ NASCENTETel.: (62) 3223-3581 / 3223-0414 / 98427-8755Rua 25, 61, Ap. 403 Res. Rios das Garças - Centro74.015-100 Goiânia - [email protected]

Page 241: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava
Page 242: Revista da Academia Goiana de Letras 2016 · escrever contará, naturalmente, a história do breve momento de poesia que eu quero relatar agora. Um dia, acho que de manhã, estava

Em apoio à sustentabilidade, à preservação ambiental, a Pronto Editora Gráfica/ Kelps, declara que este livro foi impresso com papel produzido de florestas cultivadas em áreas não degradadas e que é inteiramente reciclável.

Este livro foi impresso na oficina da Pronto Editora Gráfica/ Kelps, no papel: Polen Soft 80g/m2, composto

nas fontes Minion Pro, corpos 8, 12 e 14Dezembro, 2016

A revisão final desta obra é de responsabilidade dos autores