Revista Dr 01

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DR é uma revista de política e de cultura feita por mulheres.

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  • 1nmero 01

  • 2 poltica e mdia

  • 3 dossi: subjetividades,

    poltica e mdia

  • 4editorial

    Divas Revolucionrias

    Ana Kiffer

    Barbara Santos

    Fernanda Bruno

    Mariana Patrcio

    Oiara Bonilla

    Tatiana Roque

    Thamyra Thamara de Araujo

    ColaboradorasAna Lucia Enne - Professora do Departamento de Estudos Culturais e Mdia (PPCULT - UFF)

    Artionka Capiberibe - Professora do Departamento de Antropologia (IFCH-Unicamp)

    Correspondentes

    Natacha Rena (Indisciplinar_UFMG)Rosana Pinheiro Machado (Oxford University)

    Projeto Grfico(Indisciplinar-UFMG)

    Andr Victor Luiza MagalhesOctvio MendesSarah Kubitschek

    Fotgrafa ColaboradoraLeandra Lek

    Revista DRwww.revistadr.com.br ifacebook.com/RevistaDRdivas

    [email protected]

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    DR uma revista de poltica e de cultura feita por mulheres. Surgiu da dificuldade de discutir poltica com homens e do desejo de conver-sar sem colocar o pau na mesa.

    No colocar o pau na mesa dis-cutir poltica sem ter que ganhar a discusso ou deter a razo final. Tambm no somos uma revista acadmica feita por especialistas. Desejamos falar daquilo que no sabemos e dialogar com um pblico mais amplo. A poltica concerne a todos e se diz de muitas maneiras.

    Nossa DR anti-capitalista.

    O capitalismo no independente das produes subjetivas que en-gendra, dos usos da linguagem, das

    formas de vida que impe. Por isso mesmo, construir alternati-vas tambm prefigurar outras formas de falar e de se relacionar.

    DR uma proposta de conversa atenta ao tom, na qual seja pos-svel ter voz sem precisar incorpo-rar a linguagem da verdade. o desejo de falar num tom que no necessariamente feminino (de fato no sabemos exatamente o que isso significa), mas que re-cuse a autoridade e a expertise que so, de fato, hoje (ainda) exercidas majoritariamente por homens.

    E, j que somos historicamente tachadas como emotivas, lou-cas e manacas por DR, vamos

    fazer DR mesmo! E afirmar o senti-do poltico dessa prtica

    Como em toda DR, no sabemos exatamente aonde isso vai dar. Mas s se faz DR com quem a gente se importa, e sobre assuntos que nos so cruciais. Nos importamos com o efeito de nossa fala, sabendo que sempre possvel retornar sobre as palavras, reconhecer seus equvo-cos, prestando ateno ao modo como afetam o seu destinatrio. Isso tambm fazer poltica. Fazer DR , portanto, buscar se colocar em posio de igualdade diante dxs outrx, apostar que a relao o que importa.

    Um cuidado, uma devida ateno s conexes

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    mapeando

    dossi

    DR com...

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    GOSTOSAS DA VEZEntrevista com Isabelle Stengers e Vinciane Despret

    ALGORITMO DA FELICIDADEFernanda Bruno

    H UM PSSARO AZUL EM MEU PEITO Anna Lucia Enne

    OS NOVOS MOVIMENTOS SE CONSTITUEM A PARTIR DE DIAGRAMAS (E NO DE PROGRAMAS)Tatiana Roque

    DO MEGAPHONE AO IPHONE NAS VIELAS DA FAVELAThamyra Thamara de Araujo

    ISOLADOS OU CADASTRADOS: OS NDIOS NA ERA DESENVOLVIMENTISTA Oiara Bonilla e Artionka Capiberibe

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    SUBJETIVIDADES, POLTICA E MDIA

    NIETZSCHEMariana Patrcio

  • 6Mariana Patrcio

    Diva, doutora em literatura, Professora do CCE da PUC, Pesquisadora do Temas de Dana, se sentindo meio Diva atualmente e me de uma criatura incrvel.

    Tatiana Roque

    Diva, professora, escreve artigos, acadmicos mas gosta mesmo de pensar e fazer poltica, canta e toca pandeiro nas horas vagas.

    Thamyra Thmara de Araujo

    Diva, Anastcia contempornea, fotgrafa, jornalista, pesquisadora e queima panelas nas horas vagas.

    Fernanda Bruno

    Diva in progress, professora, pesquisa mquinas, corpos e mentes do tempo presente, blogueira eventual e me do A.

  • 7Barbara Santos

    Diva-Negra expressa em imagens, palavras, sons e atu-aes. Teatro como espelho e como escolha. Arte dedicada Luta!

    Oiara Bonilla

    Diva, antroploga, pesquisadora, professora, tradutora, me de duas figuras, desenha e anda pelo mundo nas horas vagas.

    Ana Kiffer

    Professora pesquisadora escritora sem livros e trovadora. Me de C. Ex-combatente. Sempre ensasta.

  • 8DR: A revista que no coloca o pau na mesa.

  • 9Discutir a relao, falar de poltica e cultura com uma ateno ao tom, um cuidado com as conexes.

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    gostosas da vez: entrevista DR

    com Isabelle Stengers e Vinciane Despretentrevista feita por Oiara Bonilla e Tatiana Roque

    Faire des histoires uma expresso difcil de ser traduzida para o portugus. No uso co-loquial, quer dizer criar caso, criar problema onde no tem, implicar, encher o saco, pegar no p. Um pai pode dizer para o filho: pare de faire des histoires!, se o filho estiver fazendo birra, gritando, rolando no cho. Um homem diz para a mulher: no invente histrias, no crie caso, pare de reclamar toa! No livro de Vinciane Despret e Isabelle Stengers, Les fai-seuses dhistoires, a expresso remete ao pa-pel das mulheres na universidade e a todas as pequenas diferenas em relao s posies ocupadas pelas mulheres: ao fato de que no chegar ao topo da carreira se deve, em muitos casos, a uma repartio desigual das tarefas familiares, opo de ter ou no filhos, por ex-emplo. A inspirao vem de Virginia Woolf, que sempre desconfiou da oferta feita s mulheres para que entrassem na universidade: no de-vemos, dizia Woolf, engrossar essas fileiras de homens cultos, cheios de honras e responsab-ilidades. A universidade diz para as mulheres: vocs so bem-vindas, pois este um espao democrtico, mas desde que no criem proble-ma, no criem caso com essas questes meno-res (vous tes les bienvenues condition de ne pas faire des histoires...). No livro, as autoras transformam esse lugar, designando-se como as fazedoras de histrias, as criadoras de

    caso, de situaes, o que pode ter um papel afirmativo como constituio de um novo lugar, uma nova relao com o pensamento: o que as mulheres fazem com o pensamento?

    DR - Bonjour!Essa entrevista sobre mulheres e poltica. Aqui no Brasil, desde as manifestaes de junho de 2013 at recentemente, no perodo da Copa do Mundo, experimentamos algumas dificuldades em criar uma continuidade para os movimentos. Nessas manifestaes, alm dos movimentos or-ganizados, estavam presentes tambm muitos outros sujeitos, que no pertenciam a nenhuma organizao poltica. Em seguida, nas tentativas de organizao que surgiram dali, tornou-se um problema a quantidade de disputas, de brigas. Nesse cenrio, experimentamos algumas dificul-dades, que acabamos associando posio das mulheres. Acabou que ns, que nunca fomos feministas, de repente tivemos esta ideia de faz-er uma revista s com mulheres. Porque comea-mos a sentir dificuldade em discutir poltica com homens.

    VD - Concretamente, que dificuldades eram es-sas?

    DR - Eles parecem dar lio o tempo todo. Se voc concorda tudo bem, mas se quer colocar

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    um ponto que no est na pauta, no prestam ateno.

    VD - No h como discutir...

    DR - E tem todo o lado afetivo, que queramos colocar em certo momento Por exemplo, houve uma grande represso aos protestos durante e depois da Copa, com pessoas presas, e quise-mos escrever uma carta para a Dilma [Roussef]. Queramos adotar um tom mais afetivo. Para a gente, a questo do tom era importante. Escre-vemos a carta, circulou muito, achamos que at a Dilma leu, mesmo que no tenha respondido. Mas, durante o processo, foi difcil dar um tom afetivo tal carta. Escrevemos junto com homens que partilhavam totalmente da nossa posio poltica, mas no eram sensveis questo do tom.

    VD - Quais eram os argumentos para recusar o tom afetivo? Chegaram a dizer no, no podem-os falar assim?

    DR - No exatamente, mas disseram que no te-ria efeito poltico se no fosse mais argumenta-tiva. Se no trouxesse um discurso mais slido.

    VD - Sim, isso pra eles no tem efeito pragmti-co. O argumento falar afetivamente no tem efeito poltico.

    DR - Isso mesmo, preciso explicar, dar argu-mentos, mobilizar a histria ou a teoria.

    IS - Como se as manifestaes que permitiram que muitos homens teorizassem sobre elas no tivessem sido afetivas...

    VD - Ou talvez haja uma separao. Para a man-ifestao o gesto do corpo. Depois se raciona-liza.

    DR - E no foi s a, experimentamos a mesma dificuldade em outros grupos. Ento decidimos criar um grupo de mulheres e fazer uma revista chamada DR, que quer dizer discutir a relao. Se h um problema no casal, por exemplo, e se quisermos discutir a relao, isso costuma ser mal visto pelos homens. Eles dizem ah! L vm essas mulheres querendo discutir a relao, Que chatas...

    IS - Achei o Brasil mais machista que outros pases. Na Europa no se ousaria dizer ah, as mulheres, talvez entre homens, mas nunca na frente de outras mulheres.

    VD - O machismo, no nosso caso, passaria por questes acadmicas. A diferena tambm se-ria ressaltada, mas no com um homem dizen-do ah, as mulheres, pois os poderes se des-locaram. Por outro lado, seria ainda mais forte nas questes acadmicas, porque um homem diria academicamente no se pode escrever assim. Nesse caso, lida-se com uma fora ainda maior pois se trata da excluso produzida pelo bom academicismo.

    DR - Ento, uma de nossas inspiraes para pensar esse problema o livro de vocs, Les faiseuses dhistoires - que font les femmes la pense? . Agora surge a questo sobre os mo-dos de se discutir e de se fazer poltica, depois de todos os movimentos que ocorreram no Brasil. Fazer poltica como universitrias, mas fora da academia. No conseguimos mais faz-er nosso trabalho do mesmo modo que antes. Achamos uma excelente ocasio que a primeira entrevista seja com vocs...

    IS - Vamos em frente! DR - Passemos s perguntas ento. At que ponto, o fato de sentirmo-nos solicitadas pela

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    A reflexo sobre o modo de inter-pelar o outro uma discusso psi-

    colgica ou uma discusso poltica? Comearia por a. Se a psicologia se

    apropriou das emoes, por exemplo, e dos modos de afetar, de sentir, de expressar, ela moldou os modos de ser do povo que se expressam nas

    manifestaes e nas revoltas.

    necessidade de prestar ateno ao modo de dizer em um discurso poltico significaria ocu-par um lugar de mulher? Para ns, no basta que um discurso poltico seja justo para que mobilize o engajamento de todo mundo, pre-ciso tambm um trabalho sobre o tom, sobre os modos de dizer. Mas como conseguir o recon-hecimento de que essa uma questo poltica em si? Essa dificuldade nos parece ligada a uma longa tradio na qual a discusso poltica uma atividade reservada aos homens.

    VD - Eu comearia assim, mas realmente uma maneira de comear pelo exterior. A reflexo sobre o modo de interpelar o outro uma dis-cusso psicolgica ou uma discusso poltica? Comearia por a. Se a psicologia se apropriou das emoes, por exemplo, e dos modos de afetar, de sentir, de expressar, ela moldou os modos de ser do povo que se expressam nas manifestaes e nas revoltas. Os homens civ-ilizados se expressam atravs de uma racio-nalidade sobre a qual, invariavelmente, todo mundo deveria estar de acordo, pois todo mun-do racionalizado. De um lado, isso um pens-amento masculino, pois a psicologia segue com os homens veem de marte e as mulheres de vnus. Quero dizer, mesmo na Europa, supe-se que ningum use argumentos machistas, mas ainda devemos nos submeter aos discursos sobre um estilo. Nas revistas pretensamente emancipadoras femininas, ainda h as mul-heres so mais sensveis ou as mulheres pens-am mais em um discurso afetivo, o que muito perigoso de dizer, pois se se faz disso uma psi-cologia, torna-se uma maneira de desvalorizar e de dar razo aos que detm a racionalidade. Ento, como tomar um discurso afetivo para fazer dele um discurso? No um discurso afe-tivo, um discurso sobre a afetividade, sobre o

    corpo, sobre os modos de fazer, de maneira que isso se torne um modo poltico de engajamen-to? a primeira coisa que eu diria, enquanto os homens no aceitarem, e mesmo as mulheres, alis, pensar que a prpria maneira de carac-terizar os modos de fazer so questes polti-cas, ou seja, maneiras construdas, nas quais nos construmos pensando pragmaticamente no que eficaz, no que d forma a uma outra poltica, ainda no comeamos realmente, pois essa questo ser sempre rebatida para o lado da psicologia, bem, so mulherzinhas, ora!.

    IS - Sim, acredito que em uma assembleia es-teticamente masculina, e eventualmente tam-

    bm majoritariamente masculina, uma mulher sozinha que tente transmitir o afeto ser irre-mediavelmente psicologizada, no vai con-seguir. Por outro lado, isso seria possvel com um grupo de mulheres que tenha se preparado para fazer uma interveno, justamente porque um coletivo, porque elas juntas se tornaram capazes de fazer essa interveno. Poderamos dizer fazer disso toda uma histria, criar um caso, criar uma situao. No digo que as-sim tero sucesso necessariamente, mas no se poder dizer que simplesmente um prob-lema psicolgico. Pois essa dimenso da pro-duo coletiva de um afeto tem relao com a

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    dimenso poltica. Acredito que o feminismo comeou quando as mulheres conseguiram produzir grupos consistentes para intervir com um estilo que era o delas e que se tornou, en-to, irredutvel psicologizao.

    VD- E que passa explicita e claramente por um estilo escolhido e construdo. Logo, todos os termos como autenticidade e espontanei-dade so termos venenosos. Se as pessoas imaginam, por exemplo, que vocs tm um dis-curso espontneo, vocs esto ferradas! Porque o discurso espontneo pode permitir remeter natureza das pessoas ou psicologia. Eu con-tinuaria ento o que a Isabelle disse: a forma como a gente se produz uma aprendizagem, de modo que aquilo que estamos produzindo no possa, em nenhuma hiptese, passar por algo que emanaria da natureza das mulheres,

    da natureza das dominadas. Tem que aparecer realmente como algo combinado, algo constru-do e elaborado conjuntamente.

    IS E por isso que nos momentos em que o feminismo foi inventivo, a ideia de mulheres bruxas estava to presente. No sentido em que as bruxas so tambm aquelas que sabem se reunir para preparar coisas. Sair. So aquelas que sabem que preciso se proteger da inter-ferncia para serem capazes de sair, de produzir uma diferena. DR Queramos falar tambm de algumas pequenas armadilhas que sentimos na dis-cusso. Vocs falam de uma recusa ativa de um gnero de pensamento que desconfia das mul-heres, como se elas fossem incapazes de levar a srio os problemas que transformam o pens-

    isabelle stengers

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    amento em campo de batalha, uma recusa em deixar que um falar verdadeiro barre o camin-ho de um falar bem. Em que medida esse falar verdadeiro se infiltra, s vezes de modo muito sutil, nos discursos irnicos, indignados, e perpassam as polmicas que esto na moda em toda discusso poltica. Esses modos, dis-farados de maus modos, porque revoltados, no levam tambm a reafirmar posies j con-stitudas, paralisando justamente a capacidade que o falar pode ter de estabelecer conexes?

    IS Que sempre estiveram na moda nos grupos estritamente militantes. Quer dizer que toda interveno que complique, que abra, difcil. Qualquer ao para complicar as coisas, a fim de permitir que outras coisas entrem em jogo, que no esto na pauta, ser vista como algo que pode enfraquecer a causa. DR Sentimos que isso acontece muito nos dis-cursos de intelectuais. No somente militantes, mas intelectuais sofisticados, que fazem hoje um monte de discursos irnicos e indignados, o que tambm um modo de criar um grupo fechado no qual ningum mais pode entrar, so-bretudo os que no so suficientemente inteli-gentes para entender ironia.

    IS Sim, mas a ideia de grupo militante, a ideia de militncia, tem sempre intelectuais frente. Quando se tem um coletivo de trabalhadores em greve, diferente. Grupos militantes tm sempre idelogos no comando. Logo, no se pode produzir diferena, o intelectual est sem-pre pronto para tomar o comando e dar a boa direo. VD Dar o tom.

    IS - Logo, no se surpreendam, quero dizer, desse ponto de vista que falamos, os intelectu-ais esto sempre no seu lugar, no para abrir, mas para mobilizar e dar a verdade. A verdade sobre o que est acontecendo. E sempre as-sim: ns no somos cegos, somos os que veem a verdade!, devemos cassar as iluses que le-vam a pensar de outras maneiras!. Assim, um tipo de radicalizao que atua como se o fato de no ser cego, de enxergar a verdade, fosse a fora do movimento, como se a verdade con-tra a cegueira fosse a arma principal daqueles que se revoltam. tambm uma velha teoria da alienao, o intelectual aquele que luta contra a alienao que faz com que as pessoas aceitem suas amarras, suas correntes. Ele en-to aquele que quebra as correntes. E a, efeti-vamente, o sentimento, a intuio, o afeto, no entram, como se no tivessem nada a ver. DR No sabemos se vocs observam algo par-ticular com respeito indignao. Nas redes so-ciais, por exemplo, h muito discurso indignado, e sua repercusso muito fcil, discursos com esse tom se reproduzem com uma facilidade in-crvel. Mas j diferente nos movimentos, por exemplo, o movimento dos indignados...

    IS - H diversos tipos de indignao. No movi-mento dos indignados, na Europa, h realmente uma indignao afetiva: Assim no d!, Esse mundo no d mais!. E isso permitiu reunir to-dos aqueles que, por seus pontos de vista, eram mais pluralistas do que indignados, ao menos na Europa. J a indignao na boca de uma s pessoa se torna rapidamente designar a ver-dade por trs da indignao. verdade que pode haver uma...como dizer? Algo que no est no coletivo, s no orador, em quem pode acontecer uma escalada da indignao: quanto

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    mais ele fala, mais ele goza da indignao que o toma! Acho que h uma possibilidade bizarra de construo de uma posio mais e mais indig-nada. Nos movimentos, por exemplo, no mov-imento dos indignados foi muito diferente. Era uma tentativa de produo de transversalidade, de todas as razes de se estar descontente. E foi frgil por isso: porque depois da indignao, preciso criar relaes que permaneam, que se segurem. preciso mostrar uma consistncia, um movimento ou relaes que possam durar. Ento, os intelectuais dizem: a verdade que faz durar... (risos).

    VD Para completar o que diz Isabelle, o que observo nos discursos indignados, no no senti-do da indignao afetiva, que a verdade um tipo de discurso que s faz denunciar a mentira. incrvel o nmero de mentem para ns! etc. Como se esperassem que nos digam a verdade. Como se esperassem, por exemplo, que as companhias petrolferas nos digam a verdade. Claro, e aqui acho que onde a esquerda no faz seu trabalho, no sentido de Deleuze: denun-ciar a mentira pode ser uma etapa necessria, mas parar a se recusar a pensar. Ao passo que, o que eu gostei naquilo que Isabelle diz em La Sorcellerie Capitaliste, livro escrito com Philippe Pignarre, que no exatamente a mentira que devemos visar, pois, mentira s poderemos responder com uma verdade. Isso problemtico. Se h uma mentira, porque h uma verdade correspondente. Logo, a gente permanece em um sistema binrio que no faz pensar. Por outro lado, no belo movimento de que falava Isabelle, encontra-se o tempo todo questes como o que uma captura capital-ista?, o que estar em um dilema infernal?. Encontramos o tempo todo essas frases, ou

    deslocalizar ou diminuir seus salrios, mas no se trata de uma questo de mentira ou ver-dade. verdade, ou se deslocalizam (as empre-sas) ou... No vamos dizer que so mentirosos. Assim, podemos dizer que no h mentira, mas h uma alternativa que no permite escapar, e a maneira de lutar no denunciar a mentira por trs da alternativa, e sim no cair na arma-dilha que a alternativa coloca. Logo, o discurso indignado pode ser perigoso na medida em que se focaliza em uma relao estritamente binria entre verdade e mentira, que remete de novo racionalidade. A indignao est a para dar fora iluminao da verdade.

    DR Para pensar os desafios polticos de nosso tempo, reconhecemos a pertinncia e mesmo a urgncia de recorrer a conceitos filosficos ou tericos que no so evidentes. s vezes isso significa sobrecarregar a linguagem, torn-la incompreensvel. Alguns conceitos se tornam quase clich, como rizoma, multido, ou mes-mo antropoceno. E so ideias de que gostamos, conceitos potentes que se tornam, muitas vez-es, palavras de ordem vazias, assunto de inicia-dos. Como conciliar esse excesso da linguagem com a necessidade poltica de se fazer com-preender por todos? Notamos um desinteresse dos intelectuais por se fazer compreender que no proporcional importncia que fingem atribuir aos outros.

    IS Mas esse todo o problema! Quando con-heci Flix Guattari, ele trabalhava com psiqui-atria alternativa e quando ele falava, no usava slogans. Toda a inteligncia que os conceitos que ele inventava lhe tinham dado era coloca-da em prtica na situao. Deleuze dizia que os conceitos devem ser instrumentos, preci-so se apropriar deles, mas a situao que d

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    sentido aos conceitos. No so os conceitos que do sentido s situaes. Nesse momento, a inteligncia que se pode criar em uma situ-ao, pertence a todos. E depois podemos dizer pera, isso o que Deleuze chama..., mas nin-gum liga porque se tornou algo que pertence situao. Quando escrevo textos, tento citar muito pouco. Em La Sorcellerie Capitaliste sabia que, se citasse, se dissesse como disse Deleuze etc., as pessoas pensariam ah, no li Deleuze, ento no vou entender. Ento, s vezes, ten-tei transmitir os gritos, mas nunca algo como preciso saber que Deleuze etc.. H um uso dos conceitos que separa as pessoas, mas se us-armos os conceitos na situao, no precisare-mos mais citar o autor. Nunca deveramos citar.

    DR Nem empregar os termos, as palavras que eles usam...

    IS Depende das palavras. Porque h palavras que so simples e que aprendemos, graas a certo autor, a utilizar de um modo em que elas se tornam potentes. Ento podemos em-preg-las, mas no rizoma, no palavras que as pessoas no conhecem. Por exemplo, quan-do Deleuze diz: a diferena entre a direita e a esquerda que a esquerda precisa que as pes-soas pensem e a direita precisa que elas se sub-

    metam, que confiem. Isso, todo mundo pode entender (risos). H palavras que so para os que leram. Mesmo em um colquio como este para o qual viemos no deveramos empregar todas aquelas palavras, pois isso separa. como se tivssemos dado a soluo antes mesmo de comear a compreender a situao. Acho, por exemplo, no para criticar, mas se falam-os de guerra, todas essas mquinas de guerra de Deleuze e Guattari aparecem. Mas surgem como uma concluso. A questo seria fabricar a mquina de guerra e s ento dizer pera, o que Deleuze e Guattari chamam mquinas de guerra.... quem usa o conceito que tem que pagar primeiro. Pagar no sentido de tornar in-teressante o conceito que permite pensar. Mas a academia fabrica papagaios.

    DR Chamar nossa revista de DR uma maneira de dizer, de algum modo, que ns, as mulheres, estamos criando caso, inventando histrias (faire des histoires, como vocs dizem). Pare de inventar histrias, parem de criar caso, nos dizem os homens. E eles so avessos DR, discutir a relao coisa de mulher...

    IS Mas as mulheres vieram de Vnus, elas adoram discutir a relao !!! (risos fortes)

    vinciane despret

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    DR Estamos cansadas de trabalhar na uni-versidade com se nada estivesse acontecen-do, como se no tivssemos nenhum papel, o que uma tentao forte hoje em dia. Na linha das mulheres que cultivam a raiva e o humor para resistir, como vocs dizem no livro, deci-dimos fundar essa revista, apostando em uma reverso pelo riso. Dissemos, tem que ser en-graado!, seno no tem fora. Quando dize-mos DR, queremos reverter essa posio que nos atribuda, mas pelo riso. No sabemos aonde vai nos levar essa experincia, nem se vai nos levar mais longe do que esse rir juntas, porque verdade que quando nos reunimos gargalhamos muito, e ainda nem lanamos o primeiro nmero! Queramos terminar ento falando do riso e do papel do humor em relao ironia, que est associada ao falar-verdadeiro masculino.

    IS Acho que cultivar o riso sempre foi uma grande fora dos movimentos feministas. Mas tambm de mulheres juntas, independente dos devires polticos, porque o rir juntas um riso rico. Um riso de compartilhamento, onde um monte de coisas, que podem ter sido vividas por umas ou por outras de modos diferentes, se encontram no riso. Quando discutimos com as mulheres que participaram da segunda par-te do livro, em Paris, e que algum, no sei mais quem, disse que sempre se sentiu uma impostora, foi uma exploso de risos, e uma enxurrada de eu tambm!, eu tambm!. s vezes era diferente, eu assim, eu assado, mas no era uma crtica, e sim um enriqueci-mento. Havia uma espcie de se sentir juntas, no em nome de uma verdade, mas por causa de uma experincia da qual nos dvamos conta de a que ponto era compartilhada, e que podia

    dar consistncia a esse grupo. Ou seja, o fato de no se reunir por obrigao, mas sim porque esse rir juntas nos alimenta. Isso extrema-mente importante.

    VD A respeito do riso, estou pensando que faz anos que trabalho em uma universidade e no me sinto no meu lugar, sou impostora e serei descoberta! Vo me pegar! isso que desperta o riso. a que o riso extremamente saudvel, pois no temos mais medo de fazer rir. E se h algo nos meios acadmicos e/ou masculinos que toca os homens, e ao que eles so extrema-mente vulnerveis, que um homem tem medo de provocar o riso sem inteno, sem que seja de propsito. Mas quando digo vou ser pega! no estou tentando fazer rir, eu falo desse medo real. E logo, risos enlouquecidos! De re-pente isso desloca a situao, pois no lugar de ser vtima desse terror de ser uma impostora, eu me torno... A gente se produz como algum que cria o humor na situao, que capaz de fazer humor sem querer, sem fazer de propsi-to. Nos damos conta ento que fazer rir uma alegria, pois um riso de confiana. Os homens tm medo de fazer rir porque o riso associado ao ridculo, ao fato de que as pessoas, os que riem, vo se juntar contra aquele de quem se ri. Mas no nosso caso, cria-se uma cumplicidade com aquela de quem se ri e ela pode rir junto. Muda tudo. Nos demos conta, as mulheres, que um monte de coisas acontecia nas nossas vi-das por motivos sociais etc. E dissemos: pera, podemos fazer algumas coisas que os homens jamais teriam a liberdade de fazer, colocar as coisas rapidamente em uma relao pessoal, por exemplo.

    IS - Mudar a relao.

  • 18

    VD - Mudar a relao mesmo nas transaes comerciais, por exemplo. Uma anedota. Uma de minhas amigas que faz transaes comer-ciais (ela antiquria) reconhece imediata-mente pela internet quando lida com uma mul-her porque aparecem frases como ah, uma caixa de bombons, minha av tinha uma. Um homem nunca diria isso dessa forma e, imedi-atamente, a comunicao toma outro rumo, e depois volta. Essa flexibilidade, a capacidade de ultrapassar fronteiras e no consider-las como verdadeiras fronteiras. Acho que o riso isso, essa capacidade.

    IS - um dos motivos pelos quais essa ideia de bruxas importante. preciso criar espaos: no espaos protegidos, mas espaos onde nos protejamos para poder rir juntas, fabricar a fora desse riso. E logo sair, isto , transfor-mar essa fora em algo. Mas foi um escndalo, nos anos 70, as reunies que eram s para mul-heres, e por isso que se falava em bruxas. No era para excluir os homens, mas porque quando um homem chega, imediatamente tudo muda (risos). Depois, pode at haver grupos mistos, mas nos quais as mulheres cheguem com a fora que acumularam juntas. Ento, acho que o riso realmente um alimento para as mul-heres entre elas. E isso muito srio.

    VD - Pensando ainda na pergunta que voc aca-ba de colocar: por que uma mulher que partic-ipa de um grupo de homens assume posies que no so de destaque, por que ela se con-duz como um homem, ou faz tudo pra isso? porque ela est s. Ao passo que, quando um homem entra em um grupo de mulheres, ele no passa por nada disso, alguns sim, e com eles que se pode compor, mas geralmente o

    homem vai dizer que histria essa?, etc. Em vez de pensar estou numa situao particular, o que se espera que eu produza aqui?

    DR - E aqui eles sexualizam a situao tambm, dizendo ahhhh

    IS - Me lembro de uma reunio feminista, bas-tante tardia, na qual muito do que tnhamos aprendido j havia sido esquecido. Havia um homem e, de repente, ele tomou a palavra e disse eu gostaria que me explicassem os fun-damentos do feminismo. Imediatamente as mulheres se dividiram. Algumas queriam ex-plicar para ele. Outras diziam claro que no, no vamos parar tudo porque este senhor pede algo que ele pode aprender em outro lugar. E pronto, ningum mais ria. Bastou a interveno daquele homem para que todo o humor que podia se desenvolver ali parasse. a capacidade dos homens de dizer tenho o direito de me in-formarIS- ... do meu modo, no preciso tentar en-trar no evento do jeito que ele , participar do evento, surfar nele (risos) . No, eu paro as ondas, construo um muro, fico ao p dele e fao perguntas!. H algo a que preciso retomar. A mistura de gneros algo que se prepara entre mulheres! (risos).

    DR - Justamente, na revista haver homens, mas apenas convidados...

    IS - Isso. Mas preciso saber que existem povos, j que falamos muito em antropologia nos lti-mos dias [em Os Mil Nomes de Gaia], onde h o povo das mulheres e o povo dos homens, e os encontros so preparados.

    VD - Mas DR timo como nome de revista.

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    VD - Mas DR timo como nome de re-vista. muito bonito porque se algum me dissesse vamos discutir a relao, eu ficaria horrorizada, subiria pelas paredes se algum me dissesse isso, seriamente. J discutir, para mim se levado muito a srio, horrvel. Mas muito interessante a forma como vocs in-vertem essa expresso horrvel para torn-la objeto de humor.

    IS - E as bruxas, pessoas como Starhawk, que eu li muito, as ativistas em geral, aprenderam algo que inclusive os africanos sabem: nunca remeter - quando se discute a relao - in-teno. Sempre tentar dizer aqui voc me fe-riu. Isso no quer dizer voc quis me ferir. Mas se apresentar dizendo aqui, o que voc disse me feriu. Colocar essa ferida com, e no dizer voc quis me ferir e colocar o out-ro na defensiva.

    DR Por isso que o humor interessante. Dizemos DR e as pessoas reconhecem dis-cutir a relao, pois utilizamos essa abre-viao que todo mundo conhece. Mas dize-mos tambm: DR de Divas Revolucionrias... (risos gerais)

    IS - Em todo caso muito interessante e lhes desejamos muitas experincias belas.

    VD- Longa e risonha vida para DR, pronto!

    IS - Ah, e por favor, nunca com esprito de sac-rifcio ! Obstinao, coragem, mas que seja sempre uma alegria! (risos)

    DR - Obrigada!!!

    Vinciane Despret uma Filsofa e psicloga belga. Ensina na Universit Libre de Lige (ULg). Leitora de B. Latour e I. Stengers, entre outros, pesquisa nas reas da etologia, filoso-fia da cincia e psicologia humana. autora, com Isabelle, do belo livro Les Faiseuses dhis-toires, ce que les femmes font la pense, Les Empcheurs de Penser en Rond (2011).

    Isabelle Stengers uma Filsofa belga. Ensina na Universit Libre de Bruxelles (ULB). Inicial-mente estudante de qumica acabou se inter-essando pela filosofia da cincia, tornando-se uma referncia incontornvel nessa rea. Leitora de Whitehead, Simondon, Guattari, Deleuze e Starhawk, entre outros, pesquisa temas que vo da epistemologia crtica das cincias, psicanlise e poltica. autora, com Vinciane, do mesmo livro inspirador sobre o papel das mulheres na universidade.

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    marguerite duras

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    DO MEGAPHONE AO IPHONE NAS VIELAS DA FAVELAPor Thamyra Thmara de Araujo

    Esses dias caminhando pelo centro do Rio me deparei com um morador de rua nada tpico (bom, deixa eu tentar explicar) . Conheci o Elias em 2011, na poca participava de uma oficina de multimdia realizada pelo Viva Favela e es-tava participando de um trabalho de campo na Cinelndia. Ele tinha uma espcie de carrinho de mo todo equipado com som potente de fes-ta, o carrinho,os fios, a eletricidade, a acstica, tudo tinha sido feito por ele com materiais que encontrou nos lixos da cidade. Durante o dia, Elias trabalhava fazendo o papel de gari, catan-do papelo e latinha pelo centro, e a noite ele era o DJ dos bares. Parava nos restaurantes com seu som e tocava uma msica, depois pas-sava o chapu. Anos se passaram e o reencon-trei na Carioca, depois do horrio de almoo, tirando aquele descanso deitado no seu carrin-ho de madeira, assistindo ao jornal numa TV de plasma 40 polegadas embutida em seu equipa-mento de trabalho.

    Em volta dele tinha um monte de gente parada abismada, se perguntando como que um cara que mora e trabalha na rua podia ter aquela TV. E de certa forma incomodados de ter que estar trabalhando enquanto o cara descansava em pleno horrio de trabalho, naquela confuso do Centro. Aquela imagem dele ali, descansan-do, enquanto todo mundo corria, me fez rir e

    me deu um pouco de inveja vendo ele aparente-mente vivendo tranquilo, trabalhando, mas tam-bm curtindo o lazer, indo na contramo do que seria o sensato dentro do sistema e se apossando da esttica do andarilho, daquele que s quer fla-nar pela cidade. Por outro lado, eu no conseguia deixar de pensar: o cara mora na rua e tem uma TV?, e a minha moral culpava a sociedade de consumo e de alguma forma achava aquela ima-gem bastante incoerente.

    Continuei caminhando pela cidade e pensando no Elias, pensando na conversa que eu tive com ele em 2011. Ele tinha projetado um aparelho de som bacana num carrinho de mo, levava a vida de forma digna, era super inteligente, entendia de mecnica, eletricidade, mas nunca tinha ido escola. Ele mesmo tinha inventado seu modo de produo e trabalho nas ruas. E agora eu estava ali, anos depois, pensando em como ele deveria gastar o dinheiro dele (me censurei na hora!), e resolvi mudar o foco da pergunta: At que ponto aquela TV tambm no tinha sido transformada num equipamento de trabalho? Antes ele tinha apenas um som, agora ele podia ter um karoke (pensei...). Junto com a minha breve moral querendo ditar as regras de como um pobre e morador de rua deveria se portar eu me lembrei das vezes que ouvi crticas aos leks da favela que tinham o melhor celular do ano, Iphone, com-

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    putador em casa, mas moravam de aluguel, ou andavam por a ostentando tnis de 300 conto e roupa de marca. E de como essas crticas me incomodavam em certo sentido. Por que eles no podiam?

    Nos ltimos 12 anos o poder de compra dos pobres aumentou. E aqui eu no estou falando de um nmero exato ou de uma pesquisa qual-ificada, mas de coisas que vemos no dia a dia. Lembro quando eu era criana/adolescente, computador em casa era coisa de rico, ter inter-net, ento, nem pensar. Hoje a gente brinca que tem yogurt grego em casa, queijo bola, TV com assinatura, wifi, viaja de avio, um monte de outras coisas que s a classe mdia fazia. cla-ro que eu ainda dependo do sistema pblico de sade que uma merda. A escola pblica conti-nua sem estrutura, a vala continua na porta de casa, ainda ficamos duas horas dentro do ni-bus para chegar no trabalho, voc pode correr o risco de ter sua casa removida e, noite, ainda d de cara com a polcia e um fuzil regulando a sua vida. No dia a dia e nos servios bsicos o pobre continua sendo o pobre. Porm, eu me pergunto se a insero do pobre na cidadania por meio do consumo s trouxe mais consumo ou produziu outros formatos de participao e representao dentro da cidade.

    Segundo uma pesquisa organizada pelo projeto Solos Culturais, vinculado a ONG Observatrio de Favelas, em 2012, em cinco favelas do Rio de Janeiro: Rocinha, Cidade de Deus, Complexo do Alemo, Complexo da Penha e Manguinhos - 90% dos moradores entre 15 a 28 anos tm acesso internet. Entre as redes mais usadas es-to: Facebook e Youtube. A internet usada por esses jovens tanto para baixar filmes e msicas como para veicular seus prprios vdeos, incen-tivando a transmisso e a produo cultural. O

    barateamento dos dispositivos eletrnicos nos ltimos tempos fez com que a maioria desses jovens de origem popular acessem a internet de seus prprios celulares ou das lan hous-es - que foram apontadas em 2007 como re-sponsveis por 49% dos acessos internet no pas, assumindo importante papel no debate sobre incluso digital no Brasil. O uso da inter-net e das novas tecnologias significa no apenas apropriao por parte dessa juventude favelada como tambm a possibilidade de ressignificar seu territrio, fortalecendo e dando visibilidade s suas prticas culturais.

    O fenmeno do passinho uns desses exem-plos do fluxo que comeou nos becos da fave-la e foi parar nas redes socias. Tudo comeou quando o jovem, codnome Gamb, da Ilha do Governador, morto tragicamente em janeiro do ano passado, conhecido como o rei do passin-ho e o jovem Cebolinha, de Cascadura, tido como um dos primeiros grandes danarinos do gnero, gravaram vdeos com seus passos, postaram no youtube e comearam um duelo entre si que inspirou outros jovens a fazerem o mesmo. Desde 2008 outros vdeos com a dana comearam a proliferar no Youtube. Por meio das redes o Passinho ganhou projeo, disputou esttica junto com outras linguagens da dana e mostrou que no era apenas uma modinha coreogrfica, mas que estava ali para se afirmar enquanto cultura refletindo diferentes formas de existncia e subjetividades.

    Alm de ser um dispositivo com inmeras pos-sibilidades de empoderamento e visibilidade, as novas mdias tem aberto tambm espao para novos formatos de atuao poltica e militncia na favela. Um dia desses, numa conversa com um amigo morador do Complexo do Alemo ouvi o seguinte: Durante muito tempo o que

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    sabiam sobre a favela era s o que aparecia na TV, ns vivamos a realidade daqui, eles s sa-biam do que passava na telinha. Agora nossa vez de fazer nois por nois, desabafou Raull San-tiago, cria do Complexo do Alemo e integrante do coletivo Papo Reto. Papo Reto um coletivo de comunicao independente composto por jovens moradores do Alemo e da Penha e tem como principal foco a comunicao dentro do morro: eventos, protestos, reivindicaes. O principal canal de divulgao do coletivo e seus fazeres a pgina no Facebook com mais de 2mil curtidas, alm de um canal no Youtube e conta no Instagram. Tudo que acontece no territrio passa pelas lentes do Papo Reto que busca fazer uma cobertura diferente da mdia corporativa, uma espcie de: do favelado para a prpria favela e nois por nois. O grupo comeou ps junho 2013 embalado pelos pro-testos no Complexo do Alemo e indignados com a forma que a grande mdia criminalizava os movimentos sociais, principalmente os de favela, associando manifestante com bandido e manifestao na favela com quadrilha. Re-solveram ento fazer NOIS POR NOIS.

    Outro integrante do coletivo, Eduardo Coutin-ho, fala que sua cmera fotogrfica sua arma. Eles fazem cobertura colaborativa, transmisso ao vivo, produo de vdeos retratando a favela com o olhar de quem vive dentro e sabe suas alegrias, dores e conflitos.Todos os integrantes do coletivo possuem celular com android, a maioria tem mquina fotogrfica profissional, tablet e conta no Facebook, Instagram e Twit-ter. Eles esto narrando suas prprias histrias e do seu territrio, se denominam como ativ-istas, militantes, comunicadores populares e independentes e se sentem participando e at-uando nos processos polticos da cidade. To-

    dos so favelados, eles continuam pisando nas valas nas vielas da favela mas, na mesma hora, a indignao vai para o Facebook. Quando fi-cam horas na fila para serem atendidos na UPA a reclamao se transforma num twitter para o prefeito. O tapa na cara do policial agora t gravado e postado no Youtube e Instagram. A rotina no mudou muito, mas o formato da luta sim e junto com ela uma gama de novas possi-bilidades de mudana. A classe C t compran-do Iphone (sim!) mas no deixou de reivindicar seus direitos. O megaphone na rua se transfor-mou num dispositivo bem mais elaborado. As lutas continuam se dando nas vielas, mas nas redes sociais que o jovem favelado as significa. no teclado que ele fala o que sente e pensa, produzindo um vdeo que ele encontra uma forma de denunciar a m conduta do policial. justamente no fluxo das redes e nas ruas que a favela reinventa sua forma de participar e lutar nos muros da cidade.

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    carolina de jesus

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    mes da praa de maio

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    ISOLADOS OU CADASTRADOS:Texto por Oiara Bonilla e Artionka Capiberibe

    Dilma pensa que, para ficarmos bem, precisamos ter bens, chuveiro quente, casa de alvenaria. Nossa lgica e nosso modo de vida so

    outros: qualidade de vida para ns liberdade, e liberdade ter nos-sos territrios livres de ameaas e invases para produzir sem destruir,

    como fazemos milenarmente. - Sonia Bone Guajajara.

    Marinalva Manoel, ndia kaiowa de 28 anos de idade, foi encontrada no dia 1 de novembro de 2014, morta a facadas na beira da BR 163, no municpio de Dourados, Mato Grosso do Sul. Ela acabava de voltar de uma viagem Braslia, com outras lideranas guarani e kaiow, para denunciar a situao dos ndios e de suas ter-ras naquele estado, e exigir a retomada, pelo (novo) governo, dos processos de reconheci-mento e demarcao de Terras Indgenas no pas. Como em outros casos de morte de lider-anas indgenas, este assassinato no foi bem esclarecido. Divulgado somente nos sites de notcias dos aliados da luta indgena, logo caiu em esquecimento. A morte de Marinalva veio se somar s mortes indgenas que crescem a cada dia e que, no entanto, no parecem sen-sibilizar a opinio pblica. O que se v uma crescente banalizao dessa realidade, assim como acontece em relao as inmeras mortes violentas que ocorrem nas periferias e comuni-dades pobres do pas.

    Assiste-se impassivelmente a uma exploso de violncia que atinge de forma cada vez mais direta e menos disfarada os povos indgenas ( importante apontar que quilombolas, ribei-rinhos e seringueiros, assim como pequenos agricultores que vivem nas fronteiras agrcolas do pas tampouco so poupados) [1], nos qua-

    tro cantos do pas acumulam-se ataques como aqueles perpetrados contra a populao Ten-harim no Amazonas, quando os habitantes da cidade de Humait depredaram prdios pblicos de servios aos ndios e ameaaram invadir uma de suas aldeias; como os ataques e ameaas aos Tupinamb no sul da Bahia; como a desocupao pelas foras policiais do canteiro de Belo Monte no Par ou da aldeia Maracan no Rio de Janei-ro e as desinstruses truculentas operadas pela Polcia Federal e Fora Nacional em terras retom-adas por ndios no Mato Grosso do Sul; como as invases de terras por garimpeiros e madeireiros nas terras Yanomami no Amazonas e Roraima, Munduruku no Par e Kaapor no Maranho; como a criminalizao em srie de lideranas in-dgenas (Tenharim, Tupinamb, e mais recente-mente Suru do Par) etc. Sem falar das violaes de direitos e ameaas das quais tambm so alvo os aliados dos ndios, aqueles que lhes do visibi-lidade (ONGs, jornalistas, pesquisadores, agentes da FUNAI e do MPF).

    Apesar de sua gravidade, acontecimentos deste gnero no costumam ser divulgados pelos grandes veculos de comunicao, ficando res-tritos a especialistas, apoiadores e simpatizantes da luta indgena. O desinteresse manifesto da grande mdia, sobretudo das redes de televiso, pelas questes de terra e populaes tradiciona-

    os ndios na era desenvolvimentista

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    is remete a disputas econmicas. O ndio que aparece, muito esporadicamente, o ndio isolado (aquele que recusa o contato com a sociedade nacional) ou de recente contato, que no tem chances de perturbar a ordem poltica e econmica do pas e que atrai audin-cia pelo seu exotismo e pela imagem construda de espelho da nao, como se fossem os ver-dadeiros brasileiros, os nicos a quem se deve preservar.

    O aumento da violncia direta e indireta contra os ndios vem sendo denunciada sistematica-mente pelas lideranas indgenas [2] e por seus aliados [3]. No h como deixar de notar que esta violncia tem como causa e consequncia a invisibilidade, o isolamento e o silenciamen-to histrico impostos s populaes indgenas. Isso diretamente apontado pela sociloga e militante aymara Silvia Rivera Cusicanqui as formas mais brutais de racismo quase sempre so guardadas, h formas sutis que se podem detectar na linguagem, no gesto, nas coisas rel-acionadas com a invisibilidade.

    A ideia de invisibilidade no nova, traduz a imposio colonial que, ainda hoje, os povos indgenas esto tentando romper. No preci-so um grande esforo para perceber como ela alimentada pela mdia e pelo prprio Estado.

    Atravs da escola, dos manuais didticos que expem aos alunos uma imagem genrica de ndio, enquanto suposto componente da de-mocracia racial brasileira, a diversidade indge-na apagada, restando em seu lugar uma ima-gem plida e prpria ao desaparecimento. Alm disso, principalmente nos discursos e atravs das prprias polticas pblicas que so desen-hadas em funo do mesmo formato genrico e uniformizador de alteridade que essa invisib-ilidade se acentua. A invisibilizao da luta in-dgena e a violncia consequente consolidam um desconhecimento que produz a indiferena generalizada em relao a essas questes. Isso tudo no novidade, apenas uma atualizao do modo histrico de se tratar a diferena no Brasil.

    Os povos indgenas enfrentam, hoje, duas guer-ras entrelaadas: a que mata na floresta e a que se trava nos corredores do Planalto. A violncia ligada aos conflitos de terra e ao preconceito contra os povos indgenas, cada vez mais des-carada [5], caminha junto com os retrocessos legais promovidos no mbito do legislativo e do judicirio, isso atestado pela quantidade crescente de processos, tentativas de projetos de lei e de emendas Constituio que visam subtrair direitos adquiridos [6]. Esses retro-cessos tambm so conduzidos pelo executivo

    Dia da criana em aldeia guarani de Paranhos (MS)

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    interessado em viabilizar e agilizar os grandes empreendimentos desenvolvimentistas do PAC, apresentados invariavelmente como incon-tornveis e prioritrios (usinas hidreltricas e estradas, explorao de petrleo e gs, miner-ao, construo de novas usinas nucleares etc) [7]. A questo : por que impactar a todo custo as terras indgenas para viabilizar um projeto nacional quando seria possvel evit-lo ? Essa pergunta vem sendo colocada pelos ndios e por pesquisadores de vrias reas desde o caso mais gritante de Belo Monte e voltou a ser pos-ta recentemente pela ex-presidente da FUNAI em relao hidreltrica de So Luiz do Tapajs (que vai alagar a terra indgena Munduruku, PA) ao explicar os motivos que a fizeram pedir exon-erao do cargo [8].

    A nica resposta possvel a de que, do ponto de vista do Estado-Nao, isso sequer parece

    ser uma questo, como se os ndios no fos-sem pessoas, povos, sujeitos com direitos e fundamentalmente com direito diferena. Si-lenciados e invisibilizados so dessubjetivados e, assim, acabam sendo objetificados, i.e. pas-sam a ser percebidos como coisas, meros ob-stculos para o desenvolvimento. Com isso, lhes vedado ocupar a posio de sujeitos e abre-se assim a possibilidade desenfreada das violaes, desrespeitos e preconceitos de que so alvo. H aqui uma afinidade com o movi-mento produzido na mdia, um processo duplo, de dessubjetivizao das minorias, por um lado, e de apagamento de suas diferenas e particu-laridades, por outro.

    Isso no se d por acaso, uma vez que a opo poltica dos ltimos governos a de transfor-mar a questo da diferena e do direito ter-ra e autodeterminao em um problema de

    Mulher kaiow recebendo cesta bsica

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    desigualdade social. Neste mbito, o problema se resolveria com polticas pblicas de assis-tencialismo e combate pobreza atravs da incluso dos ndios em programas sociais (Pro-grama Bolsa Famlia, Auxlio Maternidade, Pro-grama Luz para Todos, Programa Nacional de Habitao Rural) e sua consequente transfor-mao em potenciais consumidores.

    Na medida em que a poltica de demarcao de terras vai sendo abandonada, sobretudo a partir da segunda gesto do governo Lula, so-bram aos ndios estes programas assistencialis-tas, com visada universalista, que drenam sua populao para as cidades e para a economia de mercado. O resultado disso um crescimen-to da dependncia socioeconmica dos povos indgenas em relao ao Estado e ao capital e, consequentemente, uma crescente interveno dos governos nas dinmicas sociais internas das aldeia. o caso, por exemplo, das inmeras questes relativas infncia guarani e kaiow no Mato Grosso Sul, que hoje acabam sendo tratadas pelos assistentes sociais do governo cujo preparo nulo para lidar com questes in-terculturais.

    A criminalizao de lideranas indgenas que mencionamos acima participa do mesmo proces-so de neutralizao da diferena. Criminalizando a luta dos ndios e a ao de suas lideranas, o Estado e a grande mdia anulam sua especifici-dade e seu teor poltico. Assim, capturada pela lgica do Estado, a luta indgena transformada em um movimento criminoso qualquer, banal-izada, silenciada, dessubjetivizada, podendo ser mais facilmente retirada do cenrio para abrir espao ao desenvolvimentismo.

    Nessa longa histria de violncias, os anos 80

    significaram uma vitria sem precedentes para a luta indgena, que se deu principalmente em prol do reconhecimento e da garantia de sua dif-erena, materializando-se com a incluso de um captulo na Constituio Federal que lhes garante direitos fundamentais. A partir desse momento, o Executivo passou a demarcar as terras indge-nas, assegurando aos ndios uma melhoria na sua qualidade de vida e relativa segurana en-quanto povos autodeterminados.

    Um dos efeitos da segurana alcanada pela pos-se da Terra Indgena foi o crescimento da popu-lao indgena, fato que, por sua vez, pressionou diretamente interesses econmicos locais liga-dos terra e produo agropecuria, provo-cando nestes setores uma reao desmedida, que passou a se valer da desigualdade de foras para garantir seus privilgios. So esses interess-es contrariados que, a partir dos anos 2000, vo mobilizar sistematicamente a mdia e os poderes do pas contra os ndios. Um exemplo cabal desse tipo de violncia o leilo, destinado a comprar armamento e contratar seguranas privados, re-alizado por fazendeiros em Campo Grande (MS), em 2013, contando com o apoio de dezenas de deputados estaduais e federais, do senador Ronaldo Caiado (DEM-GO) e da senadora Ktia Abreu (PMDB-TO), atualmente ministra da agri-cultura do governo Dilma Rousseff.

    Para garantir sua sobrevivncia enquanto po-vos, os ndios enfrentam hoje uma luta em duas frentes: por um lado, continuam fazendo face ao processo de invisibilizao e de silenciamento para poder se afirmar como povos detentores de direitos diferenciados; por outro lado, lutam contra o projeto do Estado que visa transformar a diferena em desigualdade.

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    H uma percepo generalizada de que o Brasil est revivendo uma onda bandeirante. Mas, hoje, o bandeirismo tem uma cara nova, continua con-siderando os ndios como um empecilho ao desen-volvimento, mas o lugar que lhes concede dentro dessa ordem social o de pobres comuns, jamais o de povos singulares e autodeterminados. At aqui, estamos na mesma lgica que atravessou sculos, aquela que ao empobrecer e espoliar os ndios de suas terras destinou-lhes apenas o estatuto de miserveis. O Estado de hoje apresenta uma nova polarizao s j bem conhecidas cristo vs. pago e civilizado vs. primitivo, mais sutil que as polti-cas do passado, para ele parece haver duas nicas posies possveis: o ndio isolado e o ndio do Cadastro nico (cadastro do Ministrio do Desen-volvimento Social que identifica e caracteriza as famlias de baixa renda) . O destino desta posio o da incluso social cujo efeito inexorvel o do apagamento de suas diferenas e singularidades em benefcio de uma nacionalidade-cidadania atre-lada a uma condio social pr-definida.

    Colocando-se de forma assertiva como sujeitos e posicionando-se frente indiferena paternalis-ta dos governos e dos brancos, os ndios rompem a invisibilidade e o silncio aos quais esto con-finados e exigem que sua posio de sujeito seja claramente enunciada. As retomadas de terras, as ocupaes de oficinas em Braslia, de estradas, de canteiros de obras, do prprio Congresso Nacion-al, so meios para romper essa invisibilidade. Em setembro de 2013, os Guarani-Mby de So Paulo bloquearam a Rodovia dos Bandeirantes que at-ravessa suas terras, para exigir o reconhecimento legal destas e a suspenso de um projeto de reviso de seus limites. Simultaneamente, divulgaram um vdeo-manifesto no Youtube, realizado por jovens da aldeia onde explicam: Fizemos isso, para vocs brancos, saberem que ns existimos!. Em novem-

    bro de 2014, os Munduruku, ameaados pelos projetos hidreltricos do governo no rio Tapajs (e sistematicamente ignorados ao longo do processo), iniciaram a auto-demarcao de uma de suas terras que aguarda regularizao h mais de 13 anos.

    Retomando e ocupando espaos, se apropriando de novas tecnologias e recursos miditicos, adotam uma estratgia de des-invisibilizao. A luta por ter sua dignidade reconhecida, para que se possa enfrentar o inimigo, i.e., todo aquele que prope e age ativamente para a eliminao dos modos de existncia que no se enquadrem na ordem econmica, social, poltica e ambiental da chama-da sociedade ocidental. A luta dos povos indgenas (assim como a das comunidades ditas tradicionais quilombolas, seringueiros, ribeirinhos etc) por garantir um espao aberto existncia de modos diversos de ser e de estar no mundo.

    As demandas da luta indgena devem ser ouvidas no somente porque a Declarao Universal dos Direitos Humanos (1948) preconiza em seu prem-bulo que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da famlia humana e de seus direitos iguais e inalienveis o fundamento da liberdade, da justia e da paz no mundo, mas prin-cipalmente porque as populaes indgenas esto sendo/ou sero afetadas por um modelo de desen-volvimento com o qual no esto de acordo, um modelo que impe a predao do meio ambiental e que, com a lgica do consumo econmico nele embutido, leva degradao do meio social.

    Viver, existir, para as populaes indgenas no separar cabalmente a natureza da cultura, por isso que a terra um valor to importante. Essa noo surge nas vrias verses daquilo que se cha-ma de bem viver ou viver bem, um conceito que se apresenta de modo forte entre os povos

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    dos Andes (cujo termo vem do aymara, sumak quamaa, e do quechua, sumak kawsay), mas que comum a diferentes saberes e tradies indge-nas e que, no entanto, carrega uma multiplicidade de sentidos. Se no se pode separar a natureza da cultura, o humano tampouco pode reinar absoluto sobre a natureza.

    O bem viver um ataque direto ao antropocen-trismo da ontologia ocidental e ele no pode existir sem garantia da terra. A deslegitimizao da luta indgena por meio da invisibilizao e da criminal-izao de suas foras polticas no novidade nem surpresa para ningum, o que novo aqui a ao do Estado que, preocupado em tratar a pobreza como um problema e um conceito universal, termi-na por neutralizar a diferena e a diversidade, trans-formando-as em mera desigualdade social. A invis-ibilizao somada neutralizao da diversidade favorece os esforos daqueles setores econmicos para quem a terra , como diz Davi Kopenawa, apenas um lugar do qual se arranca riqueza.

    Crditos das fotografias: Oiara Bonilla

    ______________________________________

    [1] O caso de Nilcilene Miguel de Lima que, em 2012, viu-se obrigada a abandonar sua comunidade no sul de Lbrea (Amazonas) para no ser assassi-nada por grileiros e madeireiros ilegais da regio exemplar dessas situaes, de como, mesmo sob proteo do Estado, a vida de algumas pessoas parece valer menos. Ver matria jornalstica aqui: http://apublica.org/2012/05/escolta-e-retirada-lid-er-amazonas-tem-deixar-sua-comunidade/[2] Ver entrevista de Snia Guajajara, uma das princi-pais lideranas do movimento indgena: http://www.

    bbc.co.uk/portuguese/noticias/2014/06/140607_copa_indios_protestos_entrevista_rb[3] O CIMI (Conselho Indigenista Missionrio) vem denunciando sistematicamente a escala-da da violncia contra os ndios, a nota pblica que lanou em novembro de 2014 bastante esclarecedora sobre os termos desta violn-cia: http://www.cimi.org.br/site/pt-br/?sys-tem=news&action=read&id=7848[4] Cf. entrevista completa em: http://bartoli-nas.blogspot.com.br/2011/05/entrevista-la-so-ciologa-silvia-rivera.html[5] Ver os pronunciamentos blicos e difam-atrios dos deputados Luiz Carlos Heinze (PP-RS) e Alceu Moreira (PMDB-RS), ambos lderes da Frente Parlamentar da Agricultura: https://www.youtube.com/watch?v=JAJRk8hH44I[6] Um quadro contendo projetos de lei, de-cretos e outros instrumentos legais relativos s populaes indgenas, publicado em 2013 pela revista Brasil de Fato (http://www.brasildef-ato.com.br/node/26920), d ideia do tipo de ataque aos direitos indgenas que vem sendo perpetrado sobretudo no Congresso Nacional.[7] Para um balano geral dos projetos desen-volvimentista do Estado em terras indgenas e de seus efeitos nas populaes impactadas ver: http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1308[8] Ver entrevista completa em: http://apublica.org/2015/01/a-funai-esta-sendo-desvaloriza-da-e-sua-autonomia-totalmente-desconsid-erada-diz-ex-presidente/

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    hey jean-paul!

    se liga na DR!

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    simone de beauvoir

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    OS NOVOS MOVIMENTOS SE CONSTITUEM A PARTIR DE DIAGRAMAS (e no de programas)

    Por Tatiana Roque

    Os protestos urbanos dos ltimos anos ir-romperam, se irradiaram e se multiplicaram de modo diagramtico. No passaram por um pro-grama poltico conscincia poltica ou repre-sentao passaram muito mais por uma di-menso micropoltica, afetiva, existencial.

    No se trata somente de uma ao espontnea. Houve a acusao de que os movimentos de junho no tinham pautas, o que sequer ver-dade. Reduo das tarifas, mais direitos e servios pblicos e desmilitarizao da polcia so s alguns exemplos.

    Tudo comeou por causa de 20 centavos. E foi uma reivindicao vitoriosa, sem que houvesse um programa por trs, reconhecido como tal pelas organizaes tradicionais, os partidos ou sindicatos. Alis, programas esto em desuso, basta constatar sua total irrelevncia nas lti-mas eleies.

    Ser que, diante disso, seria o caso de clamar por programas mais claros e definidos, como aqueles que delimitavam um campo de lutas h tempos atrs? No sem atribuirmos uma nova significao poltica a tais programas. O dia-grama uma tentativa nessa direo e parte da constatao de que o capitalismo atual funcio-na como regime semitico.

    O capitalismo hoje investe pesado na produo de signos e na constituio de um sistema ex-pressivo. O poder das marcas um exemplo. E as marcas no so somente aquelas que expressam nitidamente o poder do capital, das grandes cor-poraes e tal. Estamos imersos em um processo de produo de signos: ns tambm produzimos marcas, logos e palavras de ordem.

    O diagrama uma maneira de pensar a repartio entre expresso e contedo sem passar pela rep-resentao, no apenas no nvel poltico, mas no prprio mbito da linguagem. Quando dizemos algo (por exemplo, No vai ter Copa!) somos imediatamente interpelados a responder o que isso quer dizer. Isso quer dizer aquilo um modo de repartir a expresso e o contedo. Um modo que toma o enunciado como mediao, nada alm de um meio para alcanarmos o sig-nificado: aquilo que queremos dizer. Ao adot-armos esse regime expressivo, subscrevemos um mecanismo de representao.

    No importa, em um primeiro momento, o que o No vai ter Copa queria dizer. Idem para o no nos representa, indignados, somos todos x ou y, e tantos outros enunciados produzidos nos ltimos movimentos ao redor do mundo. So ex-presses que produzem elos, que ligam pessoas (virtual ou fisicamente), que produzem mobili-

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    zaes e protestos.

    Esses elos, pontes, conexes, so produtos de aes diagramticas, que se do em uma di-menso invisvel. Aqui, os estratos corporais e semiticos ainda no foram separados.

    O diagrama ignora a distino entre contedo e expresso. Falamos (e como!), produzimos uma infinidade de enunciados. A relao entre um enunciado e o que ele quer dizer depende da situao micropoltica em que tal enunciado se expressa.

    O diagrama diz respeito a graus de intensidade que pilotam a constituio de uma situao real. impossvel saber o que algo significa sem estar dentro da situao. Hoje, estamos aten-tos quando um homem vem dar lio de mor-al sobre movimentos feministas, um branco se posiciona contra uma luta dos negros, um het-ero avalia as pautas LGBTs etc. O lugar de fala j visto como algo importante. E h muitas variaes, dependendo de casos ainda mais singulares. As feministas mostram os peitos e escrevem somos todas vadias sobre o prprio corpo. Entendo plenamente o sentido dessa inverso, que acho potente. Mas h mulheres negras que contestam sua universalidade, pois no reconhecem em sua afirmao como vadias um movimento de emancipao em relao ao lugar que lhes atribudo.

    Claro que qualquer enunciado est inserido em um contexto, parte de uma posio social. Isso j sabemos. O que dizemos aqui est em uma dimenso ainda mais micro, mais sutil. Nor-malmente no prestamos muita ateno a este mbito de coisas, no qual a subjetividade ain-da no est formada, no qual o indivduo no uma unidade de conhecimento ou de afeto.

    Uma dimenso pr-individual.

    A lgica e a lingustica escolhem bem seus ex-emplos para que essa dimenso fique em se-gundo plano. Se digo tenho fome, claro que isso quer dizer algo, parece bem simples de entender. Mas h enunciados que no so to claros: se algum diz voc est diferente, o que essa pessoa quer dizer? Que estou gorda? Com rugas? No possvel saber antes de uma conversa (uma DR!). Nem seria preciso tomar uma fala to subjetiva... Mesmo quando afir-mamos que a gua ferve sempre a 100 graus, estamos diante de um enunciado tornado rel-evante por uma certa viso de mundo, aquela que instaurou a cincia tal como praticada at hoje.

    No h nada que queira dizer algo sem que se passe por agenciamentos, por relaes de fora, que esclarecem ou obscurecem o que dito, que tornam o enunciado relevante ou sem importncia. So essas relaes de fora que fazem com que a significao funcione, no h nada de arbitrrio nesse processo. A diagramti-ca uma recusa de rebater a enunciao sobre os enunciados, requer uma ateno constante s relaes de fora que esto em jogo, aos agenciamentos, s ligaes que se produzem.

    O diagrama um mapa das relaes de fora que se encarnam em situaes concretas. Or-denar, aconselhar, prometer, dar a palavra, elo-giar, levar a srio ou na brincadeira, tirar sarro, so aes diagramticas que fazem com que a mquina expressiva se coloque em marcha. Es-sas aes conectam, ao mesmo tempo, as ex-presses e os corpos.

    Os enunciados (em palavras, imagens ou o que quer que seja) so flechas lanadas ao vento.

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    Parece impossvel, hoje, no question-ar por meio de qual

    recorte podemos definir o antagonis-

    mo das lutas.

    Digo algo e isso me aproxima (ou me afasta) de algum. Um acontecimento se produz tanto na dimenso da expresso quanto na dos corpos, ao mesmo tempo. E assim captamos o sentido daquilo que dito.

    Pois bem, finalmente, comeo a falar da rele-vncia poltica disso tudo... Acredito que uma reflexo desse tipo necessria se quisermos pensar os novos tipos de orga-nizao capazes de reconstruir a luta poltica (em crise). E princi-palmente se quisermos entend-er os modos como o capitalismo se insere (sorrateiramente) nos prprios movimentos que dese-jam combat-lo. Parece impossvel, hoje, no questionar por meio de qual recorte podemos definir o antagonismo das lu-tas. O recorte de classe parece no dar conta (ao menos no por si s) da definio do sujeito revolucionrio. Por outro lado, h inmeros movimentos sociais, movimentos de minorias que parecem potentes, mas muito fragmenta-dos. As divises chegam a assustar, dentro de uma mesma luta de minoria h fraturas que parecem irreconciliveis.

    Por isso, insistirei sobre o tema das conexes, a necessidade de um cuidado das conexes. E claro que aqui no se tratam das conexes com fio ou sem fio que estabelecemos todos os dias pela rede. Falo dos laos que ligam movimentos de tipos diferentes, organizados a partir de in-teresses e problemas diversos.

    Uma maneira pela qual o capitalismo codifica as formaes sociais o corte entre o individual e

    o coletivo. Um movimento se constitui a partir da recusa de interiorizar essa diviso, pois todo o incmodo que parecia emergir do individual (familiar, conjugal, psquico) passa a se ligar a outras questes nada individuais (tnicas, raci-ais, sexuais, estticas).

    H, contudo, uma outra maneira pela qual o capitalismo codifica as formaes sociais de

    modo a integr-las em sua prpria dinmica: por meio da produo do isolamento e da fragmentao. O capitalismo pode at tolerar a dimenso coletiva e poltica das questes que preocupam uma minoria, contanto que ela no se conecte a outras minorias, a coordena-das transversais, ou seja, a lu-tas que parecem estrangeiras

    a uma determinada minoria. Isso leva alguns grupos a enxergarem suas reivindicaes como parte da esfera interna, como problemas que s concernem quela comunidade. O capitalismo lida muito bem com demandas minoritrias que sejam bem estabelecidas, que possam ser codi-ficadas, que tenham um estatuto particular.

    Claro que no mobilizaremos nenhuma fora subjetiva renunciando singularidade de cada grupo social. Mas tambm no d pra com-bater o cinismo capitalista entrando no gueto, falando somente uma lngua particular. sim, usando muito do gueto, de sua sensibilidade e seu dialetos prprios, mas para conect-los, para lig-los a outras lutas. Talvez s assim con-sigamos inventar um devir autnomo impre-visvel, passando por conexes transversais en-tre atores diferentes, lutas transnacionais. Uma nova internacional.

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    Depois de junho, os momentos de maior potn-cia dos movimentos foram aqueles em que diferentes lutas se encontraram, produzin-do mobilizaes imprevisveis (professores e black blocs; garis e movimentos culturais).

    Precisamos urgente de novos parmetros para avaliar, de modo imanente, a efetividade das lutas e das organizaes desse ponto de vista. Que modos de existncia elas propem? Que modos elas encarnam? Qual o potencial de conexo dos problemas que colocam e das reivindicaes que trazem?

    O critrio dessa avaliao a aptido para conectarmo-nos com outras lutas, para ligar nossos problemas aos problemas de outros, ainda que muito distintos do ponto de vista das identidades. No dispensamos sequer uma boa DR: no foi bem isso que eu quis dizer a fala recorrente em uma boa dis-cusso de relao, na qual os lugares se rear-rumam, os elos (porventura machucados) se recompem.

    Falar outra lngua, no s a nossa. Manter uma variao contnua que no pare de ultra-passar o padro majoritrio. Criar uma figu-ra universal da conscincia minoritria, uma nova internacional, de tipo diagramtico. Linhas e traos que constituem o que h de minoritrio em todo mundo, em oposio aos princpios majoritrios de funcionamento do capitalismo.

    Incrvel como deixamos de lado o antagonis-mo em relao aos mecanismos sutis do capi-talismo (como se fosse uma fatalidade intran-sponvel) e, ao mesmo tempo, reforamos os antagonismos entre as diferentes formas de

    luta. Estamos sempre na defensiva...

    O capitalismo tem uma vontade deliberada de fixar, de barrar os fluxos, de substituir seus princpios de funcionamento s aes dia-gramticas que procuram escapar, fugir pelas beiras. Tal seria a funo de uma poltica dia-gramtica: operar por relaes transversais en-tre problemas distintos, a fim de barrar o modo como o capitalismo codifica as relaes sociais para integr-las, para faz-las funcionar ao seu modo e para os seus interesses.

    Trabalhar em termos de diagrama desenvolver uma heterogeneidade de posies. Posies de grupo, posies sociais e mesmo posies em relao a si mesmo.

    A dimenso diagramtica a dimenso do pos-svel que emerge de uma ruptura poltica. O que vivemos em junho pode ter sido dessa ordem, o desbloqueio de um possvel. Como o possvel nunca est dado de antemo, no se exprime pelas foras polticas existentes, somente um comeo, algo que modifica a subjetividade, faz-nos vislumbrar novos caminhos, ainda que a so-ciedade e as instituies continuem as mesmas. O prximo passo saber como esta mudana pode mudar tambm a sociedade, e aqui o prob-lema do programa e do projeto aparecem nova-mente, mas inseparvel do regime diagramtico.

    Que movimentos e que novas formas de luta seremos capazes de criar? Nenhuma instituio existente pode ajudar a responder. Nenhum governo ou partido. S um trabalho constante pela constituio de mquinas revolucionrias, polticas, tericas, libidinais, estticas...

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    hannah arendt

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    ALGORITMODA FELICIDADEPor Fernanda Bruno

    A felicidade, sabemos, uma armadilha. Pro-metida, doada, vendida, revelada, conquistada, sob prescrio mdica, entregue a domiclio, de volta em trs dias, em vida ou aps a morte, ela a isca sempre relanada a fiis, consumidores, pacientes, enamorados, trabalhadores, intelec-tuais, espectadores, internautas etc. Parece-me que eu estaria sempre bem a onde no estou (Baudelaire). O Facebook no poderia estar fora dessa. E nos apresenta, sem trair a sua duvidosa reputao, a sua verso da felicidade.

    Em meados de 2014, veio a pblico um controver-so experimento realizado pela rede social e am-plamente contestado por toda parte na web, de sites e colunas especializadas de grandes jornais a blogs e postagens no prprio Facebook e outras redes sociais. O experimento consistiu em manip-ular, ao longo de uma semana, o feed de notcias de quase 700 mil usurios, sem seu conhecimen-to, dividindo-os em dois grupos, diferenciados pelo tipo de contedo emocional visualizado. Um dos grupos recebeu em seu feed um filtro que reduzia os contedos emocionalmente positivos e o outro teve reduo dos contedos emociona-lmente negativos. Deste modo, o primeiro visual-izou mais contedos negativos e o segundo mais contedos positivos (tristes e felizes, respectiva-mente, segundo os parmetros do experimento). O propsito alegado era saber se o humor ou es-

    tado emocional desses grupos seria contaminado pelo contedo visualizado no feed. Para tanto, as atualizaes de status desses mesmos usurios foram monitoradas.

    Os resultados do experimento foram publicados na revista cientfica Proceedings of the National Acad-emy Sciences, sob o ttulo Evidncia experimental de contgio emocional em escala massiva atravs de redes sociais . Segundo os autores do artigo, a hiptese do contgio emocional teria sido confir-mada pelo experimento. Isto : os usurios repro-duziram, em suas atualizaes de status, o estado emocional preponderante em seus feeds: tristes ou felizes, conforme os grupos. Vale dizer que o maior impacto do experimento consistiu no taman-ho da amostra, supostamente a maior da histria dos experimentos psicolgicos, e no tanto nos efeitos mensurados, considerados estatisticamente baixos. Contudo, o que interessa discutir aqui no a validade cientfica do experimento, mas sim o que ele nos revela sobre o Facebook e o controle algortmico que pretende exercer sobre nossos afe-tos e nossa ateno.

    A controvrsia em torno do experimento envolveu, em linhas gerais, dois tipos de reao: aquela que denunciava uma falha na observao do cdigo de tica por parte dos cientistas que participaram do experimento e aquela que procurava mostrar a

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    falta de transparncia e escrpulos do Facebook com os seus usurios. O foco, em ambos os casos, era a manipulao do contedo do feed de not-cias dos usurios sem o seu devido conhecimento e consentimento. No caso da pesquisa cientfica com humanos, tal prtica eticamente condena-da, uma vez que o consentimento informado seria claramente necessrio no caso do experimento. No caso de empresas como o Facebook, o proble-ma tico seria mais vago, uma vez que no h reg-ulao precisa a este respeito e, do ponto de vista jurdico, a prtica seria aceitvel, uma vez que os termos de uso da rede social, que todos ns aceit-amos sem ler ao ingressar nela, prev o uso de nossos perfis e dados para pesquisa e outros fins .

    As duas crticas so obviamente pertinentes e po-dem se desdobrar em muitas questes relevant-es sobre as relaes complexas entre a cincia, o mercado, o marketing e os investimentos afe-tivos, cognitivos e subjetivos nas redes sociais e nos atrativos cientficos e monetrios do Big Data. De algum modo, contudo, parte significativa do debate acerca do experimento traava uma linha demasiadamente forte entre a prtica cientfica e a prtica empresarial, sob o argumento de que, uma vez ingressando no territrio da cincia, o cuidado e os limites ticos no poderiam ser franqueados. Ora, h pelo menos trs problemas neste argumento: a) supe que, se estamos fazen-do negcios, no precisamos levar to a srio os limites ticos de nossas aes; b) faz parecer que a cincia seria o domnio da segurana e da trans-parncia tica, o que no mnimo controverso; c) aposta numa separao muito ntida entre esses dois domnios a prtica cientfica e a prtica em-presarial o que cada vez menos evidente em diversos mbitos, especialmente no campo das pesquisas sobre dados e comportamentos on-line (sejam elas cientficas ou mercadolgicas).Ainda que seja importante questionar os prob-

    lemas ticos envolvidos nas alianas entre o Facebook, os cientistas, suas universidades, labo-ratrios e a revista acadmica que publicou o arti-go sobre o experimento, o problema bem mais amplo do que uma falha tica dos cientistas e das instituies envolvidas. Voltando ao nosso foco de interesse, o experimento e toda a controvrsia que ele gerou uma ocasio para compreender-mos o prprio Laboratrio-Facebook.

    Um aspecto relatado no artigo, ainda que de modo secundrio, nos aproxima do que interessa: alm de confirmada a hiptese do contgio, notou-se que os usurios expostos a notcias com conte-do emocional so mais ativos e engajados na rede social. O Facebook, ao que parece, deseja saber, atravs desse e outros experimentos, o que tor-na seus usurios mais atentos e ativos, o que os faz voltar rede mais e mais vezes e, preferivel-mente, jamais sair dela. As declaraes da empre-sa na ocasio dos calorosos debates em torno do experimento deixam clara esta motivao:

    Ns sentimos que era importante investigar a preocupao corrente de

    que a visualizao de amigos postando contedos positivos leva pessoas a se

    sentirem mal ou a sair do Facebook. Ao mesmo tempo, estvamos preocupados

    com o fato de que a exposio neg-atividade dos amigos poderia levar as

    pessoas a evitar visitar o Facebook. Ns no declaramos claramente as nossas

    motivaes no artigo.

    Pesquisas anteriores, mencionadas no artigo, in-dicavam que a exposio felicidade dos outros nas redes sociais on-line produziria estados de-pressivos nos usurios que, por efeito de com-parao, sentiriam-se sozinhos juntos (alone together ). A direo do Facebook temia que a

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    Entretanto, exatamente a que se expe o maior

    problema: no prprio fato de o Facebook desejar nos fazer

    felizes.

    alegria ou felicidade de tantos gerasse a triste-za ou infelicidade de outros montes de usurios; temia que estes, ao se sentirem tristes, indigna-dos, irritados ou chateados, se desconectassem da rede ou no voltassem com tanta frequncia. Tambm temia, por outro lado, como declarou Adam Kramer, pesquisador do Facebook e co-au-tor do artigo, que a visualizao de contedos emocionalmente negativos levasse os usurios a afastarem-se da rede social.

    Para a felicidade de todos, os resultados do experimento re-cusaram a tese da pesquisa mencionada e mostraram que o engajamento e a atividade na rede, bem como o contgio emo-cional, valiam tanto para conte-dos negativos quanto positivos. Havendo emoo, seja ela posi-tiva ou negativa, os usurios mantm-se ativos, atentos, engajados, conectados. Todos podemos ficar tranquilos. Afinal, sugere o Sr. Kramer, por que um experimento que objetiva, no fim das contas, assegurar a felicidade e o bom humor dos usurios, gerou tanta reao negativa? Nas suas palavras: In hindsight, the research bene-fits of the paper may not have justified all of this anxiety.

    O Sr. Kramer sugere que, uma vez esclarecido que o experimento visava o nosso bem e a nos-sa felicidade, o problema estaria resolvido. En-tretanto, exatamente a que se expe o maior problema: no prprio fato de o Facebook dese-jar nos fazer felizes. Este o ponto a question-ar. Grande parte das crticas ao experimento, muitas bastante contundentes, no tocam neste ponto. Parecem supor que no haveria maiores problema em jogo se o consentimento informa-

    do tivesse sido solicitado. O problema, contudo, no para a e tem um alcance muito maior do que o experimento tomado isoladamente. De fato, o experimento serve para abrir a caixa-pre-ta do Facebook, ainda que timidamente, e explic-itar no um feito extraordinrio ou uma situao de exceo, mas o po nosso de cada dia nesta rede social. Todos sabem, ou deveriam saber, que procedimento padro do Facebook filtrar

    nosso feed de notcias de modo a visualizarmos, em mdia, en-tre 1.500 itens possveis, apenas 300, escolhidos segundo critri-os absolutamente obscuros. Os usurios no foram cobaias por uma semana apenas. O Facebook um laboratrio que funciona ininterruptamente e os seus experimentos operam cotidianamente e em cascata, le-

    vando em conta cada curtida, cada clique, cada compartilhamento, cada palavra que digitamos e mesmo aquelas que apagamos . No podemos dizer que um laboratrio a cu aberto porque apenas as cobaias, ou sujeitos (para usarmos a linguagem cientificamente correta da pesquisa experimental aplicada a humanos) esto expos-tos. Os instrumentos, os algoritmos, os critrios, as variveis, os propsitos, as bases de dados esto confinadas na caixa-preta, mas interferem diretamente em toda paisagem informacional, afetiva, cognitiva e poltica de nossas aes e conexes dentro e parcialmente fora do Face-book. Esta situao, extremamente assimtrica, j um imenso problema, e o fato de estar pre-vista nos termos de uso que aceitamos voluntar-iamente no o torna menor. O experimento nos ajuda a perceber que o laboratrio est em toda parte e ultrapassa os limites da pesquisa cientfi-ca e suas regulamentaes. Mostra que uma das

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    astcias do Facebook (e inmeras outras empre-sas do big data) explorar essas zonas de incer-teza entre o voluntrio (aceitamos os termos) e o involuntrio (no sabemos os critrios nem os fins dos termos que aceitamos); o comercial (o Facebook uma empresa, logo, no devemos ex-igir dela os cdigos de conduta que se aplicam cincia) e o cientfico (os servios prestados pela empresa dependem de experimentos cientficos para se aprimorar e a cincia depende do Face-book para ter dados ao mesmo tempo robustos e qualitativamente expressivos); a manipulao e o consentimento; a vida ordinria e o labo-ratrio; a mxima exposio (dos usurios) e o segredo (das regras e critrios da empresa) etc.

    Nota-se facilmente os inmeros problemas em jogo, mas retomemos o nosso ponto de partida e a uma das principais motivaes do experimento que nos trouxe at aqui. A felicidade algortmi-ca que o Facebook pretende nos oferecer. Este talvez seja o elemento mais escandaloso de toda essa histria. Importante dizer que o prob-lema no a de uma suposta falsa felicidade ou das verdadeiras intenes do Facebook, que seriam outras, voltadas para o crescimento ex-ponencial de sua moeda. Estas constataes po-dem fazer supor que haveria um bom modo de o Facebook nos fazer felizes, o que mais uma vez esconde o problema. Partamos do princpio, co-locado logo na abertura deste texto, de que toda oferta de felicidade um engodo e tentemos en-tender o modo prprio de o Facebook fazer isso, o que nos ajuda a compreender parte da nossa dinmica afetiva e cognitiva nas redes sociais on-line.

    Vimos que o importante no Laboratrio-Face-book manter seus sujeitos maximamente ativos, engajados, conectados. Todos os experi-

    mentos e aprimoraes dos servios, a includo o que vemos em nosso feed e o modo como nos-sas atualizaes de status so vistas pelos nos-sos amigos, procuram modular nossa ateno e nossos afetos de modo a garantir mais dedicao rede social. muito fcil perceber, por exem-plo, que usurios muito ativos e dedicados so recompensados com mais visualizaes e, con-sequentemente, mais compartilhamentos e cur-tidas, o que por sua vez alimenta a sua atividade. Qualquer um que fizer a experincia de ficar fora da rede um tempo razovel perceber, no seu retorno, uma queda nas curtidas bem como no-tar com estranheza o seu feed, que te parecer pouco familiar. No se preocupe, no h nada de errado com voc, mas o algoritmo da felicidade pune (ou, na melhor das hipteses, fica fora de forma) aqueles que no o alimentam como ele deseja. O investimento do Facebook em pro-mover estados afetivos seja ele a felicidade ou cargas emocionais fortes que aumentem o engajamento dos usurios torna ainda mais evi-dente algo bastante bvio e j sabido que o pri-mado do compartilhamento. O que importa no a felicidade ou outro estado emocional, mas qualquer motor que implusione o fluxo da pro-duo e circulao de informaes sobre nossos modos de vida, nossos humores, desejos, e que formam a mina de que se alimentam essas cor-poraes. Se a felicidade aumenta a atividade, a ateno e o engajamento na rede, ento, que se promova a felicidade, pois com ela sobe tam-bm o volume, a captura, a minerao e todas as transaes comerciais, polticas, cognitivas com os nossos dados. Isso por sua vez alimenta mais e mais pesquisas e testes no laboratrio e assim tudo vai bem.

    S no vale ser feliz sem compartilhar! E esta no apenas a perspectiva do Facebook; todos sabe-

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    mos que ela vale tambm para cada um de ns, em maior ou menor medida, e que nossos inves-timentos afetivos nesta rede social so modula-dos tambm por isso, ainda que, claro, no se esgote a. E pouco importa que as emoes com-partilhadas sejam verdicas, falsas, editadas, se-lecionadas. No disso que se trata, mas sim de perceber este modo sutil de controle, exemplar do capitalismo contemporneo, que se alimenta de nossos afetos, nosso engajamento emocion-al e cognitivo, nossa devoo.

    Lembremos que os nexos entre o poder e a gesto ou capitalizao dos afetos e da felicidade no so um privilgio do Facebook. Estes nexos tm uma longa histria no Ocidente, do poder pastoral s indstrias do consumo, da sade fsi-ca e mental, do espetculo e as mais recentes formas da felicidade tecnologicamente assisti-da, passando pela grande mdia, a publicidade, as redes sociais etc. Se tomarmos um exemplo mais remoto, o poder pastoral, lembramos que os investimentos na relao entre o exerccio do poder e a gesto da felicidade estavam atrela-dos, como prope Foucault, a prticas confes-sionais e a relatos sobre a vida ntima, enderea-dos ao pastor, que dirigia a conscincia e a culpa dos fiis. Tudo isso passava por um forte, e por vezes penoso, trabalho que o indivduo deveria fazer sobre si. Agora, os algoritmos do Facebook pretendem gerir a felicidade e as emoes sem que os indivduos em questo sequer tomem conhecimento disso. O controle algortmico da felicidade importa pelos seus resultados: mais e mais compartilhamentos, mais e mais dados, mais e mais perfis, mais e mais atividade e con-exo em modo non stop. Trata-se, para usar uma expresso do futebol, de uma felicidade de re-sultados.

    Esse controle algortmico, especialmente no Facebook, mobiliza as subjetividades de um modo bastante distinto do poder pastoral, ainda que possa encontrar nele uma linhagem histri-ca. E esta mobilizao est ainda por ser enten-dida, assim como as resistncias a esse controle esto por ser inventadas. Se considerarmos a dimenso laboratorial, seria fundamental redu-zir, em diversos nveis, a assimetria que aponta-mos acima. Mais transparncia e abertura dos dados, critrios, parmetros e algoritmos fun-damental para que este laboratrio se torne um espao de maior autonomia para os usurios. E isso no vale apenas, diga-se, para a pesquisa dita de mercado, mas tambm para a pesquisa cientfica, cujos mtodos experimentais mere-cem ser problematizados de modo a ampliar as margens de negociao com seus sujeitos, como bem prope Vinciene Despret. O princpio de que os sujeitos, para serem bem conhecidos, devem ignorar ou ser inteiramente excludos da definio dos parmetros da pesquisa, vale mais para reforar as redes de poder da cincia e dos laboratrios-empresa online do que para produ-zir um conhecimento suficientemente complexo acerca de ns mesmos. Tal reviso dos parmet-ros laboratoriais to mais urgente quando tal conhecimento modula significativamente o nos-so campo de ao individual e coletiva. Esta ne-gociao, contudo, talvez seja demasiadamente utpica. Restaria ainda fabular outras tticas. Aprendemos a driblar e contestar nossos pas-tores, pais, educadores, mdicos e toda sorte de pretensos diretores de conscincia. Imaginar uma sabotagem coletiva do controle algortmi-co da felicidade no Facebook uma bela tarefa.

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    beloved by DR

    toni morrison

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    virginia woolf

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    H UM PSSARO AZUL EM MEU PEITOTexto por Ana Lucia Enne

    O fardo da histria... Ta um peso injusto para as juventudes contemporneas. Os chamados jovens so acusados de serem alienados, apo-litizados, consumistas, viciados em tecnologia, individualistas, narcisistas, pouco solidrios... A comparao emblemtica: o parmetro so os jovens de 1968 e adjacncias temporais. Enfrentando os poderes institudos. Exigindo de-mocracia e participao na universidade. Desa-fiando os governos ditatoriais, os modelos sociais e culturais repressores.

    Evidentemente, sou f da gerao da contracultu-ra. Dos estudantes que tomaram as universidades e exigiram mais horizontalidade. Dos jovens que revolucionaram a msica. Que colocaram o cor-po em evidncia. Mais prazer, mais sexo, mais verbo, mais verso. Que preencheram muros, con-feccionaram cartazes, deixaram o cabelo crescer, criaram movimentos mltiplos, enfrentaram sculos de sociedade adulta, conservadora, que chegou na metade do sculo XX baseada no trip famlia-escola-estado para enquadrar seus jovens, mold-los, transform-los em adultos confor-mados e responsveis. Geraes de jovens, dos mais diversos lugares, das mais diversas matrizes culturais, tnicas, raciais, de gnero e de classe, enfrentaram preconceitos, foram se colocando como protagonistas de suas histrias e muda-ram o mundo, que no foi mais o mesmo aps os

    anos 1960. Mas acho que precisamos complexificar nosso olhar sobre os processos de constituio do que chamamos de juventude e jovens, para evi-tarmos simplificaes que no nos ajudam a com-preender as mltiplas formas de atuao e confor-mao de sentidos em torno desse tema.

    Escrevi um artigo mais detalhado sobre isso, caso algum se interesse (http://revistacmc.espm.br/index.php/revistacmc/article/view/203). Nele argu-mento que juventude foi um esprito do tempo da modernidade ocidental antes de mesmo de ser encarnado por um sujeito histrico, no caso o prprio jovem no sentido biolgico, atrelado a determinadas faixas etrias e condies histricas (mais precisamente, a chamada moratria social, ou seja, no ter constitudo sua prpria famlia, no precisar ainda se sustentar, ter maior flexibilidade em termos de compromissos sociais para poder ex-perimentar, escolher caminhos, montar trajetrias, indicando claramente um recorte de classe, pois estamos falando do jovem de classe mdia da modernidade ocidental). A partir de meados do s-culo XX, em especial no contexto do ps Segunda Guerra, esse esprito do tempo incorporado por estes sujeitos concretos, os jovens, dentro do recorte que indico acima, estabelecendo, a partir de suas performances, a concepo da juventude como um estilo de vida, em que alguns elementos ocupam papel central, por vezes complementares,

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    em outras contraditrios. Assim, o estilo de vida jovem envolveria descompromisso, hedonismo, imaturidade, irreverncia, sexualidade, incon-formismo, rebeldia, busca por experincias novas, vontade de mudar o mundo, tendncia gregria e tambm busca por individualizao, dentre out-ras caractersticas. O chamado mundo adulto manteve, frente a essa polissemia, reaes tam-bm polissmicas, a partir do momento em que o jovem, enquanto ser social, entrou pra valer em cena. A rebeldia juvenil, por exemplo, pode ser tanto percebida como ameaa, devendo ser reprimida; quanto como elemento poltico fun-damental para a mudana, devendo ser valori-zada. J o carter infantilizado, principalmente relacionado irreverncia e ao consumo, i