Revista Estudos Hegelianos n.10 - Completa

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REHRevista Eletrônica Estudos Hegelianos

(Revista Semestral da Sociedade Hegel Brasileira - SHB)

Ano 6nº 10 , Junho - 2009

ISSN 1980-8372

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REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 6, Nº 10, JUN -2009

ExpedienteRevista Eletrônica Estudos Hegelianos - ISSN 1980-8372

Sociedade Hegel Brasileira - SHB

Sede: Av. Acad. Hélio Ramos, s/n - 15º andar - Cidade UniversitáriaCEP 50740-530 RECIFE - PE (Depto. Filosofia-UFPE)

Redação: Rua Salvatore Renna - Padre Salvador, 875 - Santa Cruz(antiga Rua Presidente Zacarias de Góes)CEP 85015-430 - GUARAPUAVA/PR - Brasil (Depto. Filosofia-UNICENTRO)

Editor: Manuel Moreira da Silva (UNICENTRO-PR)

Conselho editorial

Alfredo de Oliveira Moraes (UFPE), Agemir Bavaresco (PUCRS), Denis Lerrer Rosenfield (UFRGS), Draiton Gonzaga de Souza (PUCRS), Marcos Lutz Müller (UNICAMP), Manuel Moreira da Silva (UNICENTRO-PR), Marly Carvalho Soares (UECE), Paulo Gaspar Meneses (UNICAP), Konrad Christoph Utz (UFC)

Conselho científico

Diogo Falcão Ferrer (Universidade de Coimbra), Edmundo Balsemão Pires (Universidade de Coimbra), Jean-Claude Bourdin (Université de Poitiers), Jean-Louis Vieillard-Baron (Université de Poitiers), José Pinheiro Pertille (UFRGS), Hans-Christian Klotz (UFG), Leonardo Alves Vieira (UFMG), Manfredo Araújo de Oliveira (UFC), Marco Aurélio Werle (USP), Silvio Rosa (UNIFESP), Miguel Giusti (PUC-Peru), Marcelo Fernandes de Aquino (UNISINOS), Jean-François Kervégan (Université Patheon-Sorbonne - Paris I)

Secretário de edição/Diagramação: Matheus Barreto Pazos de Oliveira (RDT)

Editor de web: Danilo Vaz Curado (Grupo Hegel/Neal-PE)

Revisão: André Luís Tavares (RDT); Márcia Isse; Jeferson da Costa Valadares; Clemilson Pereira Teodoro.

Revisão geral: Manuel Moreira da Silva (UNICENTRO-PR)

Indexação: QUALIS, Capes, Brasil; LATINDEX, México; SUMÁRIOS, Funpec-RP, Brasil;DIALNET, Espanha.

Materiais assinados são de inteira responsabilidade de seus autores, assim como as idéias e conceitos expressos nos mesmos ou as figuras e imagens aí utilizadas.

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SUMÁRIOEditorial

Hegel e o Hegelianismo ortodoxo (1820-1860) na aurora do séculoXXI: A restauração digital das obras e a reabilitação de Hinrichs, Gabler e GöschelManuel Moreira da Silva ................................................................................5

REH. Nota sobre o número 10Manuel Moreira da Silva ...............................................................................23

REH. Nota adicionalManuel Moreira da Silva ...............................................................................25

ArtigosSobre a (in)certeza sensível em HegelAna Paula Repolês torres ..............................................................................27

Sobre a tradução do termo “Knecht”Matheus pelegrino da silva .........................................................................35

O Desejo e seu OutroLuiz Henrique Vieira da Silva .....................................................................47

Hegel e a crítica ao estado de natureza do jusnaturalismo modernoCesar Augusto Ramos ...................................................................................61

A Lei de Talião e o princípio de igualdade entre crime e punição na Filosofia do Direito de HegelMelina Duarte .....................................................................................................75

Da “Syn díkei” à lógica da Corporação – a superação da Tragödie im sittlichen na filosofia de HegelSergio Portella ...................................................................................................87

Estética e Consciência infeliz na filosofia hegelianaLincoln Menezes de França .......................................................................109

Hegel e Hamann: alguns diálogosIlana Viana do Amaral .................................................................................123

Normas de submissão (Versão resumida).............................................137

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Hegel e o Hegelianismo ortodoxo (1820-1860) na au-rora do século XXI: A restauração digital das obras e

a reabilitação de Hinrichs, Gabler e Göschel

Manuel Moreira da SilvaDEFIL – UNICENTRO/PR

I. Considerações preliminares

Trata-se de uma questão no mínimo inusitada para boa parte dos hegelianos da época atual, a saber: o lugar e a função do Hegelianismo orto-doxo enquanto momento necessário do desenvolvimento interior do Sistema da Ciência entre 1820 e 1860, bem como seu significado, relevância e atuali-dade no tempo da chamada Pós-Modernidade. Vale dizer: em um tempo no qual, por um lado, se afirma não poder mais haver hegelianos e, por outro, se apropria justamente de instâncias hegelianas para a solução de problemas que teimam em sobrepujar os diferentes modelos e graus de racionalidade aceitos ou tolerados enquanto propriamente científicos e, por isso, passíveis de certa consistência e validade nos limites da Ciência e da Filosofia con-temporâneas. Esse o tempo mesmo de uma transição sem precedentes e de uma revolução jamais esperada: o tempo da virtualização do Atual ou, o que não é necessariamente o mesmo, o tempo da atualização do Virtual1; por-tanto, embora isso ainda se apresente como algo controverso, o tempo em que emerge uma nova esfera do Real, a qual, numa linguagem idealístico-especulativa, pode ser designada a do Lógico-efetivo. Esfera essa que, como tal, expressa justamente aquilo que outrora Hegel designara “a unidade do pensar e do tempo”, permitindo assim, entre outras coisas, a restauração digital de documentos impressos entre outros, sobretudo de obras científicas e filosóficas, em domínio público, até então deixadas à crítica removedora do tempo “sem repouso e sem pausa”, eliminando, por conseguinte, o próprio tempo ou possibilitando que o Conceito suspenda sua forma-de-tempo2. Eis aí, pois, ao fim e ao cabo, uma revolução comparável apenas àquela em que o mundo da oralidade sucumbiu ao da escrituralidade; mas uma revolução que, à diferença daquela, restaura as obras espirituais elas mesmas, inclu-sive reabilitando o Espírito que as habita – no caso presente: o Hegelianismo ortodoxo e seus principais expoentes.

1. No que respeita à relação entre o Virtual e o Atual, veja-se, P. LÉVY, O que é o virtual? Trad. Paulo Neves. São Paulo: 34, 1996, p. 15-25. No concernente à relação entre o Real e o Virtual, ver, J-L, WEISBERG, Real e Virtual. In: A. PARENTE (Org.). Imagem máquina. – 3. Ed. – São Paulo: 34, 1999, p. 117-126. Para mais detalhes, veja-se mais abaixo. 2. Veja-se, G. W. F. HEGEL, Phänomenologie des Geistes (1807). Neu hrsg. von Hans-Friedrich Wessels u. Heirinch Clairmont. Mit e. Einleitung von Wolfgang Bonsiepen. Hamburg: Meiner, 1988, p. 524-525, p. 527. Versão brasileira: Fenomenologia do Espírito, Trad. Paulo Meneses. Petrópolis: Vozes, – 2. Ed. –, 2003, § 801, § 803. Texto citado de ora avante pela sigla PhG, seguida dos números dos parágrafos, tal como na versão brasileira, mas com a paginação do original utilizado, no caso: PhG, § 801, § 803; p. 524-525, p. 527.

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Em um sentido meramente formal, vale dizer imediato, o Virtual con-stitui-se como determinação de uma nova dimensão do Real e não apenas enquanto um novo modo de perceber este último. Desse modo, o termo ‘Virtual’, aqui, apresenta-se, pois, como determinidade do próprio atuar de tudo que é em ato; “ser em ato” este, por seu turno, que se diz mediante o termo ‘Atual’ – o mesmo valendo, por conseguinte, para os derivados de ambos. Em suas origens, de um lado, o conceito do Virtual está ligado à inerência do predicado no caso das verdades de fato em Leibniz, devendo ser entendido, segundo Deleuze, “não como o contrário de atual, mas como significando ‘envolvido’, implicado’, ‘impresso’, o que de modo algum ex-clui a atualidade”3, estando, portanto, envolvido, implicado, impresso no próprio Atual. De outro lado, em sentido mais estrito, a constituição do Vir-tual enquanto esfera específica do Real parece ter como ponto de partida a determinação kantiana do conceito infinito ou limitativo e do juízo infinito como tais4, os quais, em sua retomada e desenvolvimento por Hegel, na perspectiva do Idealismo especulativo, não se mostram senão – dentre out-ras determinações – como o Conceito livre ele mesmo em sua Singularidade e “a reflexão da Singularidade dentro de si mesma”5. Entretanto, partindo igualmente de Kant, mas também de Jacobi, foi Friedrich Ludwig Bouterwek (1766-1828) quem primeiro concebeu a Idéia de uma Virtualidade absoluta, a qual, por um lado, conforme citada por Hegel, compreende “a unidade eterna, absoluta e pura” do sujeito e do objeto “não precisamente por meio de conceitos e silogismos, senão imediatamente por meio da força, a qual constitui por si mesma nosso ser-aí e nossa natureza racional”; do que re-sulta, para Bouterwek, ainda citado por Hegel, o fato de que o conhecimento do todo, inclusive de Deus, “escapa às possibilidades de qualquer mortal”6. Por outro lado, segundo Bouterwek, no dizer de Michelet, “a Virtualidade absoluta, na qual tudo finalmente se reúne, não é objeto (Objekt) do Saber e nem assunto da Fé; ela é enquanto atua (wirkt): ela é e atua (wirkt): na Ciência e na Fé”, as quais “são modos opostos do reconhecimento da Virtu-alidade absoluta”7. Contudo, ainda para Bouterwek, e conforme Michelet, a Virtualidade como tal apresenta-se, nos quadros de nossa realidade prática,

3. G. DELEUZE, Diferença e Repetição. Trad. Luiz Orlandi e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1988, p. 22, nota 7. Ver também, G. W. LEIBNIZ, Discurso de Metafísica. Trad. Marilena de Souza Chauí Berlinck. In: NEWTON - LEIBNIZ. São Paulo: Abril Cultural, 1974, p. 82 (= DM, § 8).4. Ver, G. DELEUZE, Diferença e Repetição, op. cit., p. 22, nota 7. Ver também, I. KANT, Crítica da Razão Pura. Trad. Valério Rohden e Udo Baldur Moosburguer. São Paulo: Abril Cultural, 1980, p. 70, p. 76, p. 325 (= KrV, B 96-98, 111, 684).5. G. W. F. HEGEL, Wissenschaft der Logik. Zweiter Teil: Die subjektive Logik oder Lehre vom Begriff (1816), herausgegeben von Friedrich Hogemann und Walter Jaeschke. Hamburg: Felix Meiner, 1981 [GW, Band 12], p. 70. De ora avante, citar-se-á esse texto como segue: WdL, II, 1816, p. 70 (paginação da edição crítica). Seguiremos o mesmo procedimento para as edições das doutrinas do Ser e da Essência de 1812 e 1813 (GW 11) e a Doutrina do Ser de 1832 (GW 21). Confronte-se com G. DELEUZE, Diferença e Repetição. op. cit., p. 199, p. 201-202.6. F. L. BOUTERWEK, apud G. W. F. HEGEL, Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie III. Werke in zwanzig Bänden. Band 20. Auf der Grundlage der Werke von 1832-1845, neu edierte Ausgabe. Redaktion Eva Moldenhauer und Karl Markus Michel. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1970, p. 419. Essa edição das Werke será indicada de ora avante pelo termo ‘Werke’, antecedi-do do título da obra citada e seguido do número correspondente e das respectivas páginas.7. C. L. MICHELET, Geschichte der lezten Systeme der Philosophie in Deutschland von Kant bis Hegel. Erster Theil. Berlin: Duncker und Humblot, 1837, p. 397.

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tão só enquanto uma espécie de unidade de força e resistência, uma uni-dade de forças opostas, sendo a Virtualidade absoluta nada mais que a uni-dade virtual de todas as forças, isto é, o Incondicionado8.

Ainda que não seja aqui o lugar de um aprofundamento quanto ao tema da Virtualidade, mediante, por exemplo, o confronto de Kant, Hegel, Bouterwek, Deleuze, etc., não é fora de propósito afirmar que o tempo pre-sente (já de certo modo prenunciado em Kant, Hegel e Bouterwek) passa por uma revolução bastante semelhante àquela que transformou o mundo da oralidade entre os gregos antigos no mundo da escrituralidade em que hoje ainda vivemos e que, por isso mesmo, é parte integrante essencial dos programas de disciplinas as mais diversas e dos currículos de vários cursos universitários. A revolução do tempo presente a que aqui se refere é preci-samente a da virtualização e das tecnologias do Virtual, que tem na Inter-net a sua face mais próxima e, portanto, na qual as suas conseqüências se fazem presente de modo mais imediato em muitas áreas da Filosofia, assim como, por conseguinte, na própria Filosofia em seu conjunto. No entanto, como foi dito mais acima, aqui não se discutirá essa última revolução nela mesma e nem o seu desdobramento no âmbito disso que se tem designado Internet, mas tão somente um único de seus muitíssimos aspectos: o efeito restaurativo (a um tempo atual e virtual) que ela exerce sobre as obras de todas as áreas e de todos os tempos enquanto estas são passíveis de se-rem fotocopiadas – mais especificamente: as obras filosóficas, sobretudo, conforme o escopo deste trabalho, as obras de alguns filósofos hegelianos cuja posição tem-se denominado Hegelianismo ortodoxo. Essa a posição que, em se desenvolvendo mediante o próprio Hegel, toma forma entre 1820 e 1831, constituindo assim, a partir de 1826 e 1827, respectivamente, com a fundação da Sozietät für wissenschaftliche Kritik e dos Jahrbücher für wissenschaftliche Kritik, o núcleo duro da Escola Hegeliana, a qual, não obstante, logo após a morte de Hegel, se divide em diversas posições (1832-1846), terminando por dissolver-se entre 1847-1860; o que, em vista de um complexo de questões históricas, políticas e religiosas, assim como de certa alteração na maneira de pensar em filosofia inaugurada em fins do século XVIII na Alemanha e, enfim, da mudança dos interesses e da constituição da época, condena ao ostracismo e, portanto, ao esquecimento os fautores do Hegelianismo ortodoxo, retirando deste inclusive seu lugar e seu momento no desenvolvimento do Idealismo absoluto tal como concebido por Hegel nos últimos anos de sua vida, e isso como que em colaboração com alguns de seus discípulos filosoficamente os mais próximos, em especial Karl Friedr-ch Göschel. Esse que teve a imagem a mais desfigurada entre os Hegelianos ortodoxos pelos editores de publicações políticas e literárias influentes da época; a título de exemplo: o ultraconservador (e em parte aliado político) Ludwig von Gerlach9 e o defensor da emancipação feminina Theodor Mun-8. C. L. MICHELET, Geschichte der lezten Systeme der Philosophie…, op. cit., p. 395-396.9. De acordo com Gerlach (em 1828), Göschel lhe “nega toda faculdade especulativa” porque ele se queixa do fato de que Göschel “perde, por seus pensamentos confusos, a consciência da existência”; todavia, o próprio Gerlach explica que isso ocorre pela razão de, segundo Göschel, Gerlach ele mesmo não ser “inclinado a deixar as representações materiais” e Göschel pelo motivo de aí, nas representações materiais, não permanecer. Ver, L. V. GERLACH, apud J.-L. GEORGET, “A Schwob em Berlin”: Hegel et le pouvoir prussien. [Avant-propos a Écrits sur la

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dt10, autores cujos pontos de vista, embora não fossem os dos hegelianos, nem os de seus adversários no plano filosófico11, terminaram por prevalecer mesmo nos quadros da chamada historiografia hegeliana12. Algo plenamen-te explicável em vista de Göschel ser considerado muitas vezes fora de seu contexto histórico; fato que só agora começa a mudar, justamente em fun-ção da disponibilização de suas obras em formato digital (bem como das de outros autores de sua época) e, de modo concomitante, com a reimpressão dos originais.

A rigor, além de Hegel, são os seguintes os principais adeptos do Hegelianismo ortodoxo: Hermann Friedrich Wilhelm Hinrichs (1794-1861), Georg Andreas Gabler (1786-1853) e Karl Friedrich Göschel (1781-1861). Esses os únicos discípulos verdadeiramente diretos de Hegel, os quais man-tiveram com ele certa intimidade filosófica; isso, a ponto deste: (1) escrever um importante prefácio à Die Religion im innern Verhältnisse zur Wissen-schaft, publicada por Hinrichs em 182213; (2) enviar carta – datada de 04 de março de 1828 – com elogios calorosos14 ao System der theoretischen Philosophie, publicado por Gabler em 182715 e, de modo particular, ao seu mérito em esclarecer as dificuldades que se apresentam no terceiro capí-tulo da Fenomenologia do Espírito, intitulado Força e Entendimento, mais especificamente, no primeiro momento da relação entre a força e sua exte-riorização16; assim como (3) publicar uma recensão17 e fazer três remissões – em uma carta a Ravenstein (de 29 de maio de 1829)18 e em duas de suas obras mais importantes19 – aos Aphorismen über Nichtwissen und absolutes

religion (1822-1829)]. In. G. W. F. HEGEL, Écrits sur la religion (1822-1829). Avant-propos de Jean-Louis Georget, introduction de Philippe Grosos et traduction de Jean-Louis Georget, Intro-duction de Philippe Grosos. Paris: Vrin, 2001, p. 29.10. Nas palavras desse autor (em 1840), “Göschel queria tudo ensinar: a Bíblia e Babel, Hegel e Não-Hegel, a lógica e o livro de música, Goethe e Herrnhut, e por isso entrou em uma mística de tonalidades doces” (T. MUNDT, apud J-L. GEORGET, op. cit., p. 29), Georget as interpreta como significando que Göschel era um pensador trapalhão (ver J-L. GEORGET, op. cit., p. 29).11. Sobre este ponto, veja-se, J. FOCK, Karl Friedrich Göschel (1781-1861): der Verteidiger der spekulativen Philosophie. Lengerisch: Lengericher Handelsdruckerei, 1939, p. 6.12. Ver, J-L. GEORGET, op. cit., p. 28ss.13. Ver, G. W. F. HEGEL, [Vorwort zu Hinrichs’ Religionsphilosophie]. In: H. F. W. HINRICHS. Die Religion im innern Verhältnisse zur Wissenschaft. Mit einem Vorwort von Georg Wilhelm Friedrich Hegel. Heidelberg: Groos, 1822, p. I-XXVIII. Veja-se, ainda, G. W. F. HEGEL, Vorrede zu Hinrichs’ Religionsphilosophie [1822]. Werke 11, p. 42-67.14. Veja-se, G. W. F. HEGEL, Briefe von und an Hegel. Band III: 1823-1831, Hg. von Johannes Hoffmeister, Berlin: Akademie Verlag, 1970, p. 224-225 (citado de ora avante, para os três tomos utilizados, conforme o modelo: Briefe, III, p. 224-225).15. Ver, G. A. GABLER, System der theoretischen Philosophie. Erster Band. Die Propädeutik der Philosophie Erste Abtheilung. Die Kritik des Bewusstseins. Erlangen: Palm, 1827. Nova edição: Kritik des Bewusstseins - Eine Vorschule zu Hegel’s Wissenschaft der Logik. Hrsg. von G. J. P. J. Bolland. Leiden, A. H. Adriani, 1901.16. Veja-se, G. A. GABLER, System der theoretischen Philosophie, op. cit., § 89 A. [1827: p. 246-256; 1901, p. 136-141.].17. G. W. F. HEGEL, Aphorismen über Nichtwissen und absolutes Wissen im Verhältnisse zur christlichen Glaubenserkentniss. Von Karl Friedrich Göschel [1829]. Werke 11, p. 353-389.18. Briefe, III, p. 254-255.19. Ver, G. W. F. HEGEL, Vorlesungen über die Beweise vom Dasein Gottes, Werke 17, p. 381. Ver ainda: G. W. F. HEGEL, Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse (1830), III. Die Philosophie des Geistes. Werke 10, p. 374. Versão brasileira: Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio (1830), III. A Filosofia do Espírito. Trad. Paulo Meneses e Pe.

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Wissen im Verhältnisse zur christlichen Glaubenserkentniss, publicados por Göschel em 182920.

Justamente por esses motivos e em certo sentido mais que os outros membros da Escola Hegeliana, tais filósofos levam a cabo a tarefa não só de uma defesa intransigente do Sistema de Hegel, mas também, sobretudo, a de um diálogo coerente – a partir e em função dessa defesa – com os críti-cos daquele Sistema no sentido de uma compreensão adequada do pensa-mento científico, filosófico, político e religioso de seu tempo. Não obstante, embora respeitados em vida, esses filósofos foram rapidamente esquecidos e postos à margem da História da Filosofia em geral e do Hegelianismo em particular; isso, em parte devido à pecha de pouca profundidade filosófica, em parte por suas posições políticas e religiosas liberais conservadoras ou reformistas – contudo, mais em razão destas que por seus pontos de vista filosóficos –, o que, inclusive no interior do Hegelianismo, resultou na desau-torização dos mesmos, em especial de Gabler e Göschel, como intérpretes e continuadores legítimos de Hegel. Considerados integrantes da ala dos Velhos Hegelianos e, mais precisamente, da Direita Hegeliana, tais filósofos podem ser mais bem compreendidos em sua posição filosófica tão somente no caso de sua distinção em relação aos demais hegelianos de direita e aos de centro. Neste sentido, partindo diretamente das posições assumidas por Hegel a partir de 1817 e, sobretudo, de 1820, assumindo para si a correção e o rigor, a validade e a verdade das teses então professadas pelo filósofo de Berlim em seu significado o mais elevado possível, essa posição se apresen-ta enquanto Hegelianismo ortodoxo.

Neste sentido, a título meramente introdutório, apresentar-se-á, a seguir, em que consiste o Hegelianismo ortodoxo, o significado histórico da restauração digital das obras de seus principais representantes e o renasci-mento do espírito que as habita. Igualmente, por-se-á em questão o ponto de partida histórico-sistemático de tal posição, seu desenvolvimento espe-culativo nos quadros do embate interno e externo da Escola Hegeliana pela herança filosófica de Hegel entre 1832 e 1846, bem como sua dissolução, simbolizada com a interrupção da publicação dos Jahrbücher für wissen-schaftliche Kritik, em 1846, e com o início da publicação de Der Gedanke, em 1860, a partir de um novo programa para filosofia hegeliana – a qual, desde então, se poderia considerar pura e simplesmente acadêmica. Enfim, mostrar-se-á a necessidade de uma correta apreciação do legado hegeliano ortodoxo a fim de que se ilumine de modo mais adequado o desenvolvimen-to, assim como os acertos e os desacertos do próprio Idealismo especulativo em sua elaboração hegeliana e nas vicissitudes históricas desta.

José Machado, São Paulo: Loyola, 1995, p. 347. [De ora avante citada pela inicial ‘E’, seguida de ‘§§’, para os parágrafos correspondentes, e, quando for o caso, de ‘A’, para a respectiva Ano-tação (Anmerkung); ‘Ad.’, refere-se ao adendo (Zusatz) do “§” em tela]. (= E, 1830, III, § 564 A.). Esse também o modelo seguido para a citação das outras partes desta e para as edições anteriores da Enciclopédia.20. Ver, K. F. GÖSCHEL, Aphorismen über Nichtwissen und absolutes Wissen im Verhältnisse zur christlichen Glaubenserkentniss, Berlin, Franklin, 1829.

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II. O Hegelianismo ortodoxo, a restauração digital de suas obras representativas e o seu renascimento espiri-tual

Considera-se aqui Hegelianismo ortodoxo a posição assumida por Hegel ele mesmo e emergida com a publicação das Linhas fundamentais da Filosofia do Direito em 1820 (datada de 1821). Tal posição apresenta-se intermediária entre aquela fundada na concepção fenomenológica do Ele-mento especulativo, portanto, justificada pela Fenomenologia do Espírito de 1807, e o ponto de vista propriamente especulativo puro. Esse que Hegel não chegou a desenvolver nem mesmo em suas linhas gerais, dele apresen-tando apenas indicações e aproximações aqui e ali, especialmente na Enci-clopédia de 1817 e na de 1830, bem como na Filosofia do Direito (1821) e na Ciência da Lógica de 1832. Com isso, sobretudo entre 1820, ano da efetiva publicação da Filosofia do Direito, e 1830, quando da terceira edição da Enci-clopédia e do início das revisões da Ciência da Lógica em vista de uma expo-sição mais plástica do Especulativo puro, os desenvolvimentos sistemáticos que nesse meio tempo tem lugar nem se reduzem à concepção fenomeno-lógica, nem avançam ao Especulativo puro; desse modo, eles constituem uma segunda determinação deste, a qual, na falta de melhor nome é aqui designada Hegelianismo ortodoxo. Na medida em que se distingue tanto da concepção fenomenológica do Especulativo puro (a primeira determinação deste), quanto da concepção puramente especulativa do mesmo (sua ter-ceira determinação) e, portanto, como a segunda determinação do próprio Especulativo puro, o Hegelianismo ortodoxo tem de ser reconhecido como uma concepção distinta das duas outras e assim investigado como tal.

Assim, no que tange ao Hegelianismo ortodoxo, seu núcleo principal parece ser a Filosofia do Direito (1821), as Preleções sobre a Filosofia da Re-ligião [em especial aquelas em torno da Religião consumada] pronunciadas em 1821, 1824 e 1827, bem como a segunda edição da Enciclopédia publica-da em 1827. Seu desenvolvimento, embora se situe no âmbito da superação especulativa das instâncias fenomenológicas, com o que o Especulativo puro é entendido como o Místico, confere a estas – no plano da representação – como que certa autonomia e realidade, confundindo-se assim, a expensas do próprio Hegel, (1) o fenomenológico e o efetivo, assim como a realidade e a efetividade e (2) estes e o chamado Elemento especulativo ele mesmo. Essa a concepção que, assumida e desenvolvida por Hegel, Hinrichs, Gabler e Göschel enquanto determinação fundamental do próprio Absoluto, não fez mais que introduzir no Sistema da Ciência um elemento de desintegra-ção estrutural e provocar nos adversários e mesmo nos simpatizantes do Idealismo absoluto em geral e de Hegel em particular o estranhamento em relação ao Sistema e a recusa em discutir com seus defensores. O que, não obstante, não retira disso que aqui se tem designado Hegelianismo ortodoxo o caráter de uma premissa fundamental da Filosofia especulativa pura pro-priamente dita; isso, da mesma forma em que também o é a concepção que se exprime na Fenomenologia do Espírito e em seu auto-anúncio, ambos de 1807, assim como na Ciência da Lógica de 1812-1816, sobretudo na Lógica

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objetiva. Tal compreensão, no entanto, ainda permanece bastante marginal no âmbito dos estudos hegelianos; o que se justifica tanto pela dificuldade em se encontrar os originais dos principais representantes do Hegelianismo ortodoxo, inclusive em condições de serem manuseados, pois quase não existem edições posteriores de suas obras, quanto pelo preconceito em re-lação às suas posições – o mesmo ocorrendo com certas instâncias do pen-samento do próprio Hegel.

De qualquer modo, pode-se dizer que esta situação ou está se modi-ficando ou está em vias de uma modificação substancial que traz em si não só a realidade da restauração de tais obras, mas também a possibilidade de uma reabilitação de seus autores; inicialmente, essa restauração apresenta-se sob a forma de disponibilização on-line dos textos aludidos, o que, de um modo ou de outro, tem contribuído para o surgimento de novas edições impressas, mas também de reimpressão das originais. Essa disponibilização on-line, ao dar a conhecer o conteúdo efetivo das obras em questão, torna possível uma reavaliação das mesmas sem subordiná-las a aspectos exte-riores e contingentes, sejam estes relativos à época em que tal conteúdo se desenvolvera, sejam referentes às diversas tomadas de posição em relação ao mesmo. As interessadas e os interessados na investigação on-line dos representantes do Hegelianismo ortodoxo, assim como na de outros autores cujos originais – sobretudo aqueles em domínio público e, portanto, passíveis de download – estejam disponíveis na Internet, podem contar atualmente com três ferramentas: (1) o Google Books <http://books.google.com>, do Google, (2) o Internet Archive <http://www.archive.org>, vinculado à Mi-Mi-crosoft Corporation, responsável pela digitalização de boa parte dos livros aí então disponibilizados, e (3) a Gallica, vinculada à Bibliothèque nationale de France, <http://gallica.bnf.fr/>. Esses três projetos respondem hoje pela maioria dos livros digitalizados e disponibilizados em diferentes tipos de bi-bliotecas digitais ou arquivos on-line pelo mundo afora: fundado em 1996, o Internet Archive disponibiliza espaço para livros (em diversos formatos digitais) e outras formas de arquivos – como, por exemplo, arquivos de áu-dio e outros (inclusive versões de links já mortos) –, incluindo materiais de usuários anônimos e do próprio Google (no caso os livros disponibilizados por este, alguns dos quais ainda não visualizados no books.google.com e seus espelhos)21; por seu turno, gestado de certo modo também a partir de 1996, mas passando por fases preparatórias específicas, as quais incluem pesquisas com “técnicas de digitalização não-destrutivas” e parcerias com bibliotecas in loco vinculadas às principais universidades dos Estados Unidos da América e da Inglaterra, como Harvard, a Universidade de Michigan, a Biblioteca pública de Nova York, Oxford e Stanford, cujos acervos combina-dos alcançam aproximadamente mais de 15 milhões de volumes, o Google Lança seu Projeto Biblioteca em 200422. Por seu turno, a Gallica “se define

21. Para mais informações, ver: INTERNET ARCHIVE. About the Internet Archive. Disponível em: <http://www.archive.org/about/about.php>. Acesso em outubro de 2009. Para verificar os materiais do Google aí disponibilizados há que se fazer a busca pelos itens desejados.22. Para mais informações, veja-se: GOOGLE BOOKS. Histórico da Pesquisa de Livros do Google. Disponível em: <http://books.google.com/intl/pt-BR/googlebooks/history.html>. Acesso em outubro de 2009.

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como o portal de acesso às coleções francesas digitais”, mantendo, contudo, um rico acervo de coleções digitalizadas “pela Biblioteca nacional da França, dentro do quadro de seus programas de digitalização em massa e/ou de proteção”, chegando atualmente a quase 800.000 documentos impressos dentre outros e a mais 8.000 bibliotecas parceiras23. A digitalização em mas-sa e a disponibilização on-line de obras em domínio público mostra-se como algo revolucionário justamente pelo fato de, muitas vezes, certas obras não estarem disponíveis fisicamente em seu país de origem ou, mesmo que es-tejam, podem não haver exemplares em número suficiente e os existentes não estarem em condições de manuseio por um público mais considerável. O que significa, enfim, que mesmo em seu país, isto é, no caso dos autores aqui considerados, a Alemanha, o acesso às suas obras impressas não mais editadas é muito restrito ou praticamente nulo; portanto, dificultando qual-quer avaliação mais sensata ou pelo menos o desenvolvimento e a aceitação de pontos de vista menos restritivos em torno dessas obras e seus autores.

Pode-se dizer que, entre outras coisas, o advento da Internet e das bibliotecas digitais está literalmente revivendo ou fazendo renascer o espí-rito já morto que outrora habitou a Filosofia em sua forma a mais elevada ou, antes, libertando e liberando tal espírito da clausura em que o mesmo se encontrava até então. Esse o caso inclusive de Hegel, cujas obras origi-nais – ou, antes, originárias (bem entendido: aquelas cujos volumes foram publicados por ele próprio ou ao menos preparados para publicação pelo mesmo quando ainda em vida) – muito dificilmente se faziam disponíveis sob a forma impressa, mas principalmente as de Hinrichs, Gabler e Gös-chel. Todavia, como nenhum desses pensadores foi capaz de fornecer uma elaboração plenamente especulativa do Especulativo puro, e isso a começar pelo próprio Hegel24, assim como a época em que eles a deram à luz já não estava solícita e benevolente a um desenvolvimento imanente do ponto de vista especulativo, sua contribuição ou foi interpretada pura e simplesmen-te como peça de um quebra-cabeça político (começando por Hegel mesmo a partir de 1822, sobretudo em sua relação com Hinrichs, bem como nos desdobramentos da filosofia deste)25 ou foi posta de lado e mesmo acusa-da de acrítica e medíocre (como nos casos de Gabler e Göschel)26 ou ainda atrapalhada e confusa, assumida por Hegel tão só em face da estatura e do reconhecimento político de seu autor (como em Göschel)27. Interpretação e acusação estas que, embora perdurem ainda hoje e mesmo exprimam certa consistência, tem sido colocadas em xeque pelo simples contato – ainda que indireto – com aqueles autores e suas obras segundo o ponto de vista que lhes é próprio28; o que permite a ilação segundo a qual o acesso de um nú-

23. Para mais informações, veja-se: BIBLIOTECA NACIONAL DA FRANÇA. O acervo da Gallica. Disponível em: URL = <http://gallica.bnf.fr/content?lang=pt#stats>. Acesso em outubro de 2009.24. Sobre esse ponto, veja-se, WdL, I, 1, 1832, p. 10.25. Ver, J.-L. GEORGET, op. cit., p. 23-28.26. Veja-se, J. E. TOEWS, Hegelianism: the path toward dialectical humanism, 1805-1841, Cambridge: Cambridge University Press, 1980, p. 87.27. Ver, J.-L. GEORGET, op. cit., p. 28-32.28. Veja-se, a título de exemplo, V. HÖSLE, O sistema de Hegel. Trad. Antônio C. P. de Lima. São Paulo: Loyola, 2007. No que tange a Gabler: p. 30, nota 8; p. 78 (nota 78, iniciada à p. 77); p.

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mero maior de estudiosos às obras desses e de outros autores de sua época poderá finalmente esclarecer seus acertos e desacertos segundo o contexto mesmo de sua elaboração. Algo plenamente plausível, sobretudo na medida em que várias editoras estão relançando tais obras e autores, basicamente por meio de reimpressão dos originais digitalizados e disponíveis on-line, dado o número crescente dessas republicações29.

Entretanto, isso não dissolve por completo a interpretação e a acu-sação acima aludidas, pois em última instância as mesmas se dirigem antes de tudo ao modo como o Elemento especulativo fora expresso em Hegel ele mesmo. Quer dizer: (1) em 1816, Hegel afirma que a Ciência da Lógica é a Ciência absoluta e, como tal, é tanto anterior quanto posterior às ciên-cias reais, assumindo, por conseguinte, o conteúdo destas em sua esfera a mais elevada; (2) já em 1817, em suas Preleções sobre Lógica e Metafí-sica, Hegel afirma explicitamente que (a) “o Lógico é o conteúdo universal de tudo” e que (b) o elemento concreto do saber, isto é, o Espírito, não é nem o Universal nem o Concreto da Lógica, mas é tanto o Universal quanto o Concreto; isso ao mesmo tempo em que, ainda nestas Preleções, (3) ele nos diz que “a Lógica não será considerada enquanto Ciência absoluta, mas simplesmente como uma ciência pela qual o Universal é determinado sepa-rado do concreto”30. Ora, Hegel mantém esse procedimento formal (aliás, pedagógico-literário) praticamente até o fim de sua vida, atuando, porém, sobretudo nos planos da Filosofia do Direito e da Filosofia da Religião, como se aí a Ciência absoluta estivesse perfeitamente consumada, portanto, como se esta já tivesse perpassado aquelas em sua totalidade, as assumindo e mantendo dentro de si mesmo em sua perfeição como Teologia especulati-va; isso, como que já assumindo e mantendo tanto a determinação da Ciên-cia da Lógica entendida como Ciência universal-formal, subjetiva e primeira e como Ciência universal-real, objetiva ou última31. O que, em todo caso, ele jamais chegou a elaborar conceitualmente após o período de 1816-1817.

Embora seja aquele também o modo de atuar dos discípulos mais diretos de Hegel, à diferença do procedimento formal deste e de sua própria atuação, tal modo, nos discípulos, abrange ainda os procedimentos peda-gógico-literários e científicos propriamente ditos, seja na interpretação e na leitura das obras de Hegel, seja nos desdobramentos e nas conseqüências teórico-práticas (ou especificamente especulativas) resultantes da amplia-

305, nota 213; no tocante a Göschel: p. 108. 29. Ver, a título de exemplo: Die hegelsche Philosophie, de Gabler, reimpresso pela Bibliolife, 2009; Geschichte des Rechts- und Staatsprincipien, de Hinrichs, pela Adamant, em 2002, além de várias obras de Göschel, a começar por Hegel und seine Zeit, reimpresso pela BiblioBa-zaar, 2009. Esses e outros materiais podem ser tanto consultados on-line como adquiridos por livrarias virtuais como a Amazon.30. Veja-se, G. W. F. HEGEL, Vorlesunguen über Logik und Metaphysik (Heidelberg 1817). Mitgeschrieben von F. A. Good. Herausgegeben von Karen Gloy, unter Mitarbeit von Manuel Bachmann, Reinhard Heckmann und Rainer Lambrecht. Hamburg: Felix Meiner, 1992, p. 24 (= VLM, 1817, ad § 17, p. 24).31. Ver, G. W. F. HEGEL, Encyklopädie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse (1817). In: G. W. F. HEGEL, Encyklopädie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse und andere Schriften aus der Heidelberg Zeit, neue herausgegeben von Hermann Glockner, Heidelberg: Frommanns Verlag, 1956, p. 37-38. (= E. 1817, § 17, A.).

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ção do referido modo de atuar enquanto tipicamente místico-especulativo32. Pode-se dizer, então, que enquanto Hegel procede formalmente ao nível da Lógica concebida como Ciência primeira (na qual o Universal é tomado como separado do Concreto), mas atua ao nível da mesma enquanto Ciência últi-ma (que tem por resultado a assunção e a manutenção da “riqueza real” pelo Universal33, mas que não consumou ainda esse resultado – portanto, apenas como tendo em vista a Teologia especulativa), seus discípulos assumem para si a unidade de ambas as ciências, tendo, pois, que proceder à elabora-ção ela mesma dessa Teologia especulativa34; no que, infelizmente, ao não terem plena consciência de sua tarefa, eles fracassam. Por isso, apesar da consistência da interpretação e da acusação acima aludidas, estas resultam em grande parte de mal-entendidos – tanto de Hegel e dos hegelianos orto-doxos, quanto de seus adversários ou intérpretes e mesmo comentadores –, em suma, do pensamento (Denkkraft) ainda não exercitado, nem livre35.

III. O ponto de partida histórico-sistemático do Hegelia-nismo ortodoxo, seu desenvolvimento e sua dissolução

Pode-se dizer que o ponto de partida histórico-sistemático do He-gelianismo ortodoxo – no sentido aqui entendido – esteja na compreensão da unidade do Lógico ou do Racional e do Efetivo. Isso foi expresso primei-ramente, em sua forma articulada, no Prefácio às Linhas fundamentais da Filosofia do Direito, bem como no primeiro (juntamente com a Anotação e os adendos à mão e oral a este) e no último parágrafo dessa obra; os quais se mostram articulados a partir daquilo que Hegel escreve, no § 2 e seus respectivos adendos (oral e à mão), em torno do começo e do resultado da Ciência36. O que só mais tarde (em 1827) ganha uma redação mais formal – especificamente na anotação ao § 6 da segunda edição da Enciclopédia –, a qual retoma justamente a divisa anunciada no Prefácio à obra de 1820 e, como tal, em linhas gerais, é mantida na Enciclopédia de 1830.

No § 360 da Filosofia do Direito, partindo, pois, do fato de que a verdadeira reconciliação torna-se objetiva quando “o presente se desfaz de sua barbárie e de seu arbítrio contrário ao direito e a verdade se desfaz de seu caráter de além e de sua violência contingente”, Hegel afirma que

32. G. W. F. HEGEL, Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse (1830), I. Die Wissenschaft der Logik. Werke 8, p. 47-49, p. 177-179. Versão brasileira: Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio (1830), I. A Ciência da Lógica. Trad. Paulo Meneses e Pe. José Machado, São Paulo: Loyola, 1995, I, p. 44-46, p. 167-169. (= E, 1830, I, § 6, A, § 82, Ad). Confronte-se com: K. F. GÖSCHEL. Der Monismus des Gedankens, Naumburg: Zim-mermann, 1832, p. 21-22, p. 55; G. A. GABLER, Die Hegelsche Philosophie: Beiträge zu ihrer richtigeren Beurtheilung und Würdigung, Berlin: Duncker und Humblot, 1843, p. VII, p.9-10ss, p. 159ss; H. F. W. HINRICHS, Die Religion im innern Verhaltniss zur Wissenschaft, Heidelberg: Groos, 1822, p. 194ss.33. WdL, II, 1816, p. 198; E. 1817, § 17, A.34. Sobre este ponto, ver: B. BAUER (Hrsg.). Zeitschrift für spekulative Theologie (1836-1837), Berlin: Dümmler, 1836 e1837. (Volumes: 1 e 2).35. WdL, I, 1, 1832, p. 41.36. Veja-se, G. W. F. HEGEL, Grundlinien der Philosophie des Rechts oder Naturrechts und Staatswissenschaft im Grundrisse, mit Hegels eigenhändigen Notizen und den mündlichen Zusätzen. Werke 7, p. 24-25, p. 29-34, p. 512 (= GPhR, Prefácio, p. 24-25; §§ 1-2, § 360).

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essa reconciliação ela mesma desdobra o Estado até à imagem e à efeti-vidade da Razão, quando a autoconsciência encontra no desenvolvimento orgânico a efetividade de seu saber e de seu querer substanciais, tal como [também] encontra na religião o sentimento e a representação desta sua verdade como essencialidade ideal, embora seja na ciência que ela encontra o conhecimento livre, conceitualizado, desta verdade, enquanto ela é uma e idêntica em suas manifestações que se completam, o Estado, a Natureza e o Mundo ideal”37. Algo muito próximo disso, quando não o seu próprio desenvolvimento interior na efetividade destas “manifestações que se com-pletam”, pode ser lido já nas primeiras linhas do Prefácio de Hegel à Religion im innern Verhaltniss zur Wissenschaft, de Hinrichs, publicada em 1822, o mesmo ocorrendo no caso da recensão38 dos Aphorismen publicados por Göschel em 1829 e nas duas referências de Hegel a estes, a saber: uma na Enciclopédia de 183039 e outra nas Preleções sobre o ser-aí de Deus40, obra em fase final de preparação para publicação quando a morte surpreende seu autor em novembro de 1831. Nestes três casos, assim como nas duas obras de seus discípulos aqui aludidas, o problema em tela é justamente o da unidade, ou da verdadeira reconciliação tornada objetiva, do Além e do Aquém, isto é, do elemento eclesiástico que degrada a existência de seu céu em Aquém terrestre e em mundanidade vulgar, portanto na Efetividade e na representação41, assim como do elemento mundano que eleva a cul-tura de seu ser para si abstrato ao pensamento e ao princípio do ser e do saber racionais, por conseguinte à racionalidade do direito e da lei42. O que, longe de se impor como fundamento de uma atitude pura e simplesmente interessada, se mostrou como a imposição de uma experiência escatológica fundamental e como a exigência mesma da realização desta no Aquém; algo passível de explicar de modo plausível e sensato não apenas os desenvolvi-mentos especulativos da chamada Direita Hegeliana ou dos Velhos Hegelia-nos, mas também, em certo sentido, a dos hegelianos de esquerda, i.é, dos Jovens ou Novos Hegelianos.

Aqui, no entanto, não é possível desenvolver esse aspecto no sen-tido estrito de um desenvolvimento comum da Escola Hegeliana em seu conjunto; importa, pois, simplesmente destacar o elemento da experiência escatológica enquanto o motor que impulsiona ambos os movimentos, tanto em sua relação um com o outro, quanto em sua dinâmica interna43. Essa mesma que, no caso dos Velhos Hegelianos, implica em reconhecer a exis-tência de um Centro e de uma Direita, assim como no dos Novos Hegelianos, a de uma Esquerda e, de certo modo, de uma Extrema esquerda; da mes-ma forma, também se pode determinar de modo mais ou menos rigoroso a

37. GPhR, § 360.38. G. W. F. HEGEL, Aphorismen…. Werke 11, p. 353-389.39. E, 1830, III, § 564 A.40. G. W. F. HEGEL, Vorlesungen über die Beweise vom Dasein Gottes, Werke 17, p. 381.41. Para essa questão em especial, confronte-se: G. W. F. HEGEL, Aphorismen…, op. cit., p. 377ss; K. F. GÖSCHEL, Aphorismen…, op. cit., p. 113ss.42. GPhR, § 360. Confronte-se: G. W. F. HEGEL, [Zum Mechanismus, Chemismus, Organismus und Erkennen]. In: WdL, II, 1816, GW 12, Beilagen, p. 259ss.43. Veja-se, a respeito, J. GEBHARDT, Politik und Eschatologie. Studien zur Geschichte der He-gelschen Schule in den Jahren 1830-1840. München: Beck, 1963, p. 69-152.

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existência de um Hegelianismo ortodoxo, de um lado, e, de outro, a de um Materialismo histórico. Ambos, em certo sentido, apresentando-se (1) como resultantes da cisão originária disso que, ao nível do projeto fenomenológi-co (1807-1816)44, se mostra enquanto uma concepção ingênua do Método especulativo e do Sistema da Ciência enquanto tais, mas também (2) como o ponto de partida e o ponto de chegada da dissolução do Hegelianismo em seu contexto histórico inicial, ou ainda como os resultados primeiro (a desintegração estrutural do Sistema da Ciência) e último (a inversão ma-terialista do Método especulativo) das opções de Hegel documentadas em textos datados de 1817, 1821, 1822 e 1827; essas das quais, embora de cujos problemas o filósofo de Berlim torne-se consciente já em 1829, este jamais conseguirá se libertar. Exemplo disso mostra-se no problema da re-lação entre o Conceito e a Representação [em sua imanência], mais especi-ficamente, o caso da passagem do primeiro a segunda e o da determinação da esfera desta como a da realização [Vollbringung] do Conceito; relação essa corretamente apreendida e desenvolvida por Göschel à luz da Filosofia especulativa pura – ainda em 182945 – e que, de certo modo, impactou o próprio Hegel, levando-o a reconhecer a insuficiência de sua exposição de tal relação46. O mesmo ocorre quando, ainda em 1829, Hegel tem sob os olhos o livro intitulado Über den gegenwärtigen Standpunkt der philosopphischen Wissenschaft, de Christian Hermann Weisse47, assim como uma carta deste, datada de 11 de julho48, em torno da Enciclopédia de 1827.

Em sua carta, Weisse como que justifica o ponto de vista desenvolvi-do em Über den gegenwärtigen Standpunkt der philosopphischen Wissens-chaft sobre o Sistema de Hegel e condensa as críticas à elaboração deste, tal como levada a cabo na Enciclopédia de 1827, em duas objeções fundamen-tais: (1) no que tange à passagem da Idéia lógica absoluta aos conceitos de espaço e tempo e à Natureza: o caráter exterior da Natureza em relação à Idéia lógica absoluta49; (2) no que diz respeito à conclusão do todo: aqui, em retornando ao Começo lógico abstrato, o Sistema terminaria por se fechar em si mesmo e, assim, com a admissão de um círculo [vicioso] no qual o que há de mais elevado retornaria ao que é mais pobre, não significando senão a recusa de toda atividade – inicialmente pressuposta – e a afirmação de um quietismo absoluto, negando assim o método mesmo que o anima e que

44. Sobre o chamado projeto fenomenológico, veja-se: M. M. DA SILVA, A “Phänomenologie des Geistes” de Hegel e a insuficiência do chamado sistema-fenomenologia: Limites e alcances da concepção fenomenológica do Especulativo puro. In: E. F. CHAGAS; K. UTZ; J. W. J. DE OLIVEIRA, Comemoração aos 200 anos da “Fenomenologia do Espírito” de Hegel. Fortaleza: UFC Edições, 2007, p. 105-125.45. K. F. GÖSCHEL, Aphorismen…, op. cit., p. 114-115. Ver também, K. F. GÖSCHEL, Beiträge zur spekulativen Philosophie von Gott und dem Menschen und von dem Gott-Menschen. Berlin, Duncker und Humblot, 1838, p. 182ss.46. G. W. F. HEGEL, Aphorismen…, op. cit., p. 378. Neste caso, confrontem-se as versões de 1827 e de 1830 do § 573 da Enciclopédia. Para a edição de 1827, seguimos aqui: G. W. F. HE-GEL, Encyklopädie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse. Zweite Ausgabe. Heidel-berg: Osswald, 1827. Confrontem-se ainda, E, 1827, Vorrede, p. XIX; WdL, II, 1816, p. 55ss.47. C. H. WEISSE, Über den gegenwärtigen Standpunkt der philosopphischen Wissenschaft, in besonderer Beziehung auf das System Hegels, Leipzig: Joh. Ambr. Barth, 1829.48. Briefe, III, p. 259-263.49. Briefe, III, p. 260.

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nele se ampliaria50. Conforme dito em outro lugar51, enquanto referem-se à auto-exteriorização da Idéia absoluta na Natureza e ao seu retorno dentro de si a partir do Espírito, essas objeções parecem justificar-se, sobretudo, no fato da subtração do § 17 (em especial de sua anotação) e dos §§ 475-477 da Encyklopädie de 1817 na de 1827. Desse modo, no caso da primeira objeção, Weisse sugere que, ao invés de se mostrar como algo exterior à Idéia lógica absoluta, a Natureza teria que ser tanto o aprofundamento quanto o enriquecimento daquela52; já no caso da segunda, a restrição da conclusão do todo ao que é dito no § 574 na Encyklopädie de1827 – sem os silogismos da Filosofia apresentados nos §§ 475-477 na edição de 1817 e nos §§ 575-577 na de 1830 – termina por impedir a suprassunção dos mo-mentos anteriores do Sistema, bem como seu prosseguimento ascendente e seu aprofundamento em si mesmo53. Enfim, as objeções de Weisse parecem atingir o ponto, pois (1) embora na mesma época, junto com as recensões de 182954, Hegel planeje recensear o livro Weisse, o filósofo de Berlim como que aborta este projeto e, ao que parece, jamais responde à carta de Weis-se55.

Com isso, de modo mais preciso, pode-se afirmar que, ao dimanarem da cisão originária da concepção ingênua (de 1807-1816) do Método espe-culativo e do Sistema da Ciência como tais, embora o Hegelianismo ortodoxo resulte do ataque dirigido à Enciclopédia em geral e à Filosofia da Religião em particular, e o Materialismo histórico provenha do ataque à Ciência da Lógica em geral e à Filosofia do Direito em especial56, ambos originam-se primariamente da perda do caráter ativo do Método especulativo, de sua redução ao Método dialético e, por fim, da respectiva desaceleração deste na Enciclopédia de 1827. Estas as conseqüências as mais interessantes e as mais desastrosas resultantes das tentativas de Hegel em levar a cabo a equação já presente nas Vorlesungen über Logik und Metaphysik segun-do a qual “o Elemento concreto do saber é o Espírito”, que “não é nem o Universal nem o Concreto da Lógica” entendida como Ciência primeira, na qual o Universal se mostra separado do Concreto, mas é “tanto universal quanto concreto”57; uma primeira tentativa já se apresenta nessas próprias Vorlesungen, a saber, quando Hegel afirma: “o Conceito é o Universal, mas o Universal enquanto ativo, enquanto O que se põe e, como tal, o Efetivo simples que se põe a si mesmo, e este Efetivo é a Reflexão, o Um que põe na Universalidade, – unidade d’O que põe e do Posto”58. Tentativa essa que se prolonga nas Vorlesungen über Naturrecht und Staatswissenschaft de 1817-1818 e 1818-181959, que seguem praticamente o mesmo programa 50. Briefe, III, p. 261.51. M. M. DA SILVA, Sobre a determinação do objeto e o escopo da Wissenschaft der Logik de Hegel. In: Revista Filosófica de Coimbra. Coimbra, vol. 17, n° 34, 2008, p. 295-322.52. Briefe, III, p. 26053. Briefe, III, p. 261.54. Ver, Berliner Schriften, Werke 11, p. 390, nota 1 (do editor).55. Ver, por exemplo, C. H. WEISSE, op. cit., p. 4 ss., p. 210-212 ss., p. 219 ss.56. Ver mais abaixo.57. VLM, 1817, ad § 17, p. 24.58. VLM, 1817, ad § 31, p. 55.59. Veja-se, G. W. F. HEGEL, Vorlesungen über Naturrecht und Staatswissenschaft (Heidelberg 1817/18, mit Nachträgen aus der Vorlesung 1818/19). Nchgeschrieben von P. Wannenmann.

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daquelas, mas que tem uma reviravolta – ou mesmo um desvio – impor-tante nas Vorlesungen über Philosophie des Rechts de 1819-182060, i.é, as-sumir na Filosofia real a unidade do Universal e do Concreto, deixando-se de lado o seu desenvolvimento nos quadros da Lógica concebida como Filo-sofia especulativa pura e, mais rigorosamente, como Teologia especulativa ou enquanto a Ciência absoluta propriamente dita61; fato consolidado nas Grundlinien der Philosophie des Rechts (1820-1821)62 e que só voltará a ser considerado (embora de modo assaz tímido) quando da tematização do Es-pírito livre (em uma seção inédita, destinada especificamente a ele) nos §§ 481-482 da Enciclopédia de 183063. O que exigirá um novo estatuto, assim como um novo ponto de partida e um novo ponto de chegada para o Sistema da Ciência em geral e o Especulativo puro em especial, cuja tematização se apresentará então como a tarefa principal da Filosofia especulativa pura; a qual, não obstante, jamais se realizará.

Em vista disso, o chamado Sistema de Hegel ficara profundamente fragilizado, restando, pois, do ponto de vista hermenêutico, tão só o paciente trabalho de sua reconstituição histórico-sistemática ou pedagógico-literária e, do ponto de vista teorético, ou apenas a sua defesa ortodoxa (fundamen-talmente piedosa) ou a sua crítica filosófica a mais impiedosa. Neste sentido, aqueles ataques acima referidos tiveram como golpes mortais, respectiva-mente: (1) em 1829, o de Christian Hermann Weisse à Enciclopédia de 1827 (tal como já relatado) e, (2) a partir de 1835, ainda que indiretamente, com a introdução do ponto de vista mítico na consideração da história evangélica, o de David Friedrich Strauss à Cristologia hegeliana64, essa o núcleo duro do Sistema da Ciência em geral e da Filosofia da Religião em particular, que perdem então o elemento chave de sua autenticidade e de sua cientificidade no que tange ao conteúdo. O mesmo ocorre (3) de 1840 a 1843, com o ata-que de Adolf Trendelenburg, no que respeita à forma, ao (para ele suposto) procedimento científico da Dialética tal como concebido na Ciência da Lógica de Hegel65 e, enfim, (4) ainda em 1843 e 1844, o de Karl Marx ele mesmo à concepção hegeliana do Estado – ataque esse começado, mas não termi-nado66. Os três primeiros golpes tiveram como resultado certeiro: (1) a dis-

Herausgegeben von C. Becker ..., mit eine Einleitung von O. Pöggeler. Hamburg: Felix Meiner, 1983, p. 5-13, p. 269-280, sobretudo, p. 5, p. 8-9, p. 269, p. 273-275ss (= VNS, 1817/18, § 1, p. 5; §§ 5-7, p. 8-9; ad § 1, p. 269; ad § 5-7, p. 273-275ss).60. Veja-se, G. W. F. HEGEL, Vorlesungen über Philosophie des Rechts (Berlin 1819/1820). Nch-geschrieben von Johann Rudolf Ringier. Herausgegeben von Emil Angehrn, Martin Bondeli und Hoo Nam Seelmann. Hamburg: Felix Meiner, 2000, p. 3ss, p. 8-9, p. 205 (= VPhR, 1819/20, p. 3ss, p. 8-9, p. 205).61. Confrontem-se: WdL, II, 1816, p. 129, p. 197-199, sobretudo p. 198; E, 1817, § 17, A. Ver também, M. M. DA SILVA, Sobre a determinação ..., op. cit., p. 307-317.62. Ver mais acima, a partir da nota 30.63. Confrontem-se: E, 1817, §§ 399-400; E, 1827, §§ 481-482; E, 1830, §§ 480-483.64. D. F. STRAUSS, Das Leben Jesu. Erster Band. Zweite, verbesserte Auflage. Tubingen: Osian-der, 1837, p. Xss, p. 1ss.65. Vejam-se, a respeito: A. TRENDELENBURG, Logische Untersuchungen. Erster Band. Berlin: Bethge, 1840, p. 23-99, p. 100ss; A. TRENDELENBURG, Die logische Frage in Hegel‘s Sytem. Zwei Streitschriften. Leipzig: Brockhaus, 1843, passim. Veja-se ainda: A. TRENDELENBURG, Logische Untersuchungen. Erster Band. Zweite ergänzte Auflage. Leipzig: Hirzel, 1862, p.VIIss, p. 36-129. 66. Veja-se, K. MARX, Crítica da filosofia do direito de Hegel. Trad. Rubens Enderle e Leonardo

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tinção formal e real da Lógica como Filosofia especulativa pura e das outras ciências do Sistema enquanto Filosofia real; (2) a distinção entre o Lógico e o Real, assim como do Apriori e do Aposteriori ou, ainda, do Divino e do Humano; por fim, (3) a distinção entre o Sistema e o Método da Filosofia como tal – essa última levada a efeito pelo próprio Marx em seus Manuscri-tos econômico-filosóficos67.

Isso, de certo modo, explica a razão pela qual o ataque marxiano à Filosofia do Direito não fora consumado, o que ocorre pelo fato de Marx deixar de lado o Sistema da Ciência em sua elaboração hegeliana e assumir tão somente o Método entendido segundo seu momento dialético – mas este, enquanto tal, invertido materialista e historicamente; assumindo como que, de certo modo, também a tarefa de responder à intimação de um Tren-delenburg acerca da necessidade de uma execução científica68 do “método dialético do pensar puro” de Hegel para então se verificar em que medida este se constitui como um procedimento científico69 algo que, para Marx, só seria possível mediante a realização da Filosofia, vale dizer, da efetivação prática daquela emancipação teórica alcançada somente na Filosofia e pela própria Filosofia70. Atitude que, em permanecendo ao nível do pensamento puro, por conseguinte sem se descuidar do Especulativo puro, é também a de Hinrichs e Göschel entre outros, esses cujas obras publicadas a partir de 1843 procuram dar conta seja de certas instâncias mais concretas do Político71, assim como de problemas atinentes à Filosofia da Natureza72 e à Antropologia filosófica73.

de Deus, supervisão e notas de Marcelo Backes. São Paulo: Boitempo, 2005, p. 27-141. Veja-se ainda o apêndice a esta edição, o famoso artigo “Crítica da filosofia do direito de Hegel – In-trodução”. p. 145-156. Ver também, K. MARX, Para a crítica da economia política. Trad. José Arthur Giannoti e Edgar Malagodi. In: Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos escol-hidos. Seleção de textos de José Arthur Giannoti. Trad. José Carlos Bruni et alii. 2. Ed. – São Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 101-257, sobretudo, p. 116-123. 67. K. MARX, Manuscritos econômico-filosóficos – Terceiro manuscrito. Trad. José Carlos Bruni. In: Manuscritos econômico-filosóficos..., op. cit., p. 1-48, sobretudo, p. 32-48.68. A. TRENDELENBURG, Die logische Frage, op. cit., p. 29.69. A. TRENDELENBURG, Die logische Frage, op. cit., p. 26.70. Veja-se, K. MARX, Crítica da filosofia do direito de Hegel - Introdução, op. cit., p. 150-156.71. Veja-se, H. F. W. HINRICHS. Politische Vorlesungen. Erster Band. Halle: Schwetschke und Sohn, 1843, p. 1-17, no caso: a primeira preleção, em torno da liberdade e da emancipação política. Veja-se, igualmente: Zweiter Band: (1) da trigésima sexta à trigésima nona preleção – sobre o socialismo, o comunismo e a Filosofia do Direito de Hegel (p. 342-406); (2) da quadragésima terceira à quadragésima quinta preleção – que discutem as posições da Esquerda hegeliana (p. 450-479). 72. Veja-se, H. F. W. HINRICHS. Das Leben in der Natur. Halle: Schmidt, 1854.73. K. F. GÖSCHEL, Der Mensch nach Leib, Seele und Geist. Leipzig: Dörffling und Francke, 1856.

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IV. A guisa de conclusão Levados a cabo principalmente entre 1829 e 1843, os ataques e as distinções a que acima se refere desdobram-se de modo vertiginoso nos anos que seguem, como que dissolvendo por completo as instâncias e posi-ções do Hegelianismo ortodoxo. Isso explica o fato de, por um lado, os anos de 1830 se mostrarem os mais produtivos desta corrente, mas também, não obstante, o de sua produção sistemática e metódica apresentar-se es-sencialmente apologética; assim como, por outro lado, também explica o fato dessa produção praticamente paralisar-se após 1843, sendo retomada somente a partir dos fins dos anos de 1840, mas já sem a força e o vigor com que se mostrara desde os anos de 1820, esgotando-se por completo ao final dos anos de 1850. O que exige, por assim dizer, um novo ponto de partida para a Filosofia hegeliana em geral, justamente aquele cujas tarefas são apresentas em Der Gedanke, a nova revista que, sob a direção de Karl Ludwig Michelet, a partir de 1860, mas não sem dificuldades, cumprirá o papel de rearticular, embora mais histórica que sistematicamente, o legado hegeliano74. Isso, contudo, em um tempo cujo caráter próprio consistirá em que “a vida efetiva e o mundo do pensamento” que antes impulsionara toda uma geração que reivindicara para si o ponto de vista especulativo, “agora não mais seguem um ao lado do outro”75.

Não impressiona, portanto, que os adeptos dessa unidade da vida efetiva e do mundo do pensamento – inaugurada precisamente em 1819-1820 – sejam então, de ora avante, postos à margem do desenvolvimento da Ciência pela qual dispensaram os maiores esforços; de início por seus adversários, mas logo depois também por aqueles que, em certa medida, deveriam pelo menos investigar de modo mais cuidadoso esse período da Filosofia em geral e da Filosofia hegeliana em particular, o qual bem se pode-ria designar a época do Hegelianismo ortodoxo. Mas isso, em grande parte, não resulta senão de mal-entendidos e de desinformações; o que vale, antes de tudo, para o caso de Göschel, sobre o qual podem ser constatadas opi-niões as mais paradoxais – como o comprovam as atitudes de um Gerlach, sobretudo no que diz respeito à sua objeção aos pensamentos confusos de Göschel em 1828 e, em 1846, sua adesão à exigência göscheliana de que o discurso filosófico deva chegar a resoluções práticas, quando então, para Gerlach, a “expressão dantesca” de Göschel “o Estado se construindo de bai-xo para cima é a expressão do mandamento do amor ao próximo, a igreja de cima para baixo é a expressão do amor de Deus” “se aproxima da verdade”76 Algo já constatado por Georget, para quem Göschel – embora apresentado como um pensador trapalhão e com uma imagem desfigurada (décousue)

74. Veja-se, [K. L. MICHELET], Unser Program. In: Der Gedanke, Erster Band. Erster Jahrgang, (1860,1), Berlin: Nicolai, 1861, p. 1-8. Ver também, N. J. MONRAD, Ueber die gegenwärtige Stellung und Aufgabe der Hegel’schen Philosophie. In: Der Gedanke, Erster Band. Erster Jahr-gang, (1860,1), Berlin: Nicolai, 1861, p. 8-20. E ainda: K. L. MICHELET, Wo stehen wir jetzt in der Philosophie? In: Der Gedanke, Siebenter Band. Berlin: Nicolai, 1867, p. 1-23. 75. [K. L. MICHELET], Unser Program. In: Der Gedanke, Erster Band. Erster Jahrgang, (1860,1), Berlin: Nicolai, 1861, p. 1.76. Ver, J.-L GEORGET, op. cit., p. 31-32.

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pela posteridade hegeliana – seria na verdade, “tanto por seu estilo quanto por sua atitude em matéria de reflexão filosófica, parece comportar-se de forma extremamente firme e profissional”, sendo ainda, no plano político um contraponto de Hegel e ao mesmo tempo muito complementar77. Enten-dimento esse que não é, de modo algum, o de um Hösle, quem, passando por cima da contribuição de Göschel no concernente à representação, não só rechaça a exigência e a unidade acima referidas, mas antes considera que “a última palavra da Enciclopédia de Hegel é (...) a pura teoria do pensamento que se retira do mundo (...) – um gozo intelectual aristocrático, que não tem consciência de qualquer responsabilidade com o mundo, é aquilo em que a filosofia de Hegel culmina e necessariamente tem de culminar”78. Algo que, apesar dos desacertos de Hegel e seus discípulos mais próximos, não pode ser considerado senão como uma grave desconsideração dos verdadeiros objetivos de Hegel em Berlim e as conseqüências disso na formação da Filosofia hegeliana em geral, após 181879, e no desenvolvimento imanente desta nos quadros do Hegelianismo ortodoxo em especial.

De qualquer modo, o acesso on-line hoje permitido aos textos ori-ginais de Hegel, de seus discípulos diretos e demais obras vinculadas aos problemas dos quais eles se ocuparam possibilita ao estudioso do presente desfazer uma série de equívocos e preconceitos que, em grande parte pela desinformação e pela posição contrária esposada, levou o Hegelianismo or-todoxo ao desprezo e seus representantes ao silêncio quase absoluto. Não obstante haverem se limitado à defesa do Sistema de Hegel sem distingui-lo da forma de filosofia que o filósofo de Berlim intentava elaborar e, portanto, apesar de se reduzirem ao campo minado – portanto, inadequado, com-plexo e mesmo constrangedor – da apologia e da puramente negativa pars destruens, os hegelianos ortodoxos aqui considerados foram não só fiéis a Hegel e ao seu Sistema da Ciência no que tange à defesa intransigente des-tes, mas também contribuíram de certo modo para que a própria Filosofia especulativa pura se desenvolvesse mesmo no campo estéril da disputa e da apologia enquanto tais. O principal erro destes filósofos, por assim dizer, foi o de não terem assumido mais claramente a sua diferença para com Hegel ele mesmo, algo apenas em parte realizado por Göschel e Hinrichs, respec-tivamente: em Göschel, sobretudo no que concerne à Doutrina da Represen-tação objetiva80; em Hinrichs, especialmente em suas teses sobre o Pensar genético e o Pensar imanente81. Mas este nem em parte foi o caso de Gabler, que então, oficialmente se tornara em 1835 o diádoco de Hegel em Berlim; razão pela qual, em certo sentido, por ter se limitado pura e simplesmente a esclarecer e defender a filosofia hegeliana, seu silêncio a partir de 1843

77. J.-L. GEORGET, op. cit., p. 32.78. V. HÖSLE, O sistema de Hegel, op. cit., p. 108, p. 477.79. Sobre este ponto, vejam-se as cartas de Hegel ao Senado da Universidade de Heidelberg (essa de 21 de abril de 1818) e ao Ministério do Interior de Baden (também de 21 de abril de 1818), respectivamente, em: Briefe, II, p. 182-183, p. 181-182, bem como a carta do Ministé-rio prussiano dos Cultos a Hegel em 14 de junho de 1820 (Briefe II, p. 232-233) e a resposta de Hegel e este ministério em 21 de junho de 1820 (Briefe II, p. 234-235). Ver ainda: H. F. W. HINRICHS. Politische Vorlesungen, Erster Band, op. cit., p. VIss,80. Ver mais acima, na seção III deste trabalho, as notas 41, 45 e 46.81. H. F. W. HINRICHS, Grundlinien der Philosophie der Logik, Halle: Ruff, 1826, passim.

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na disputa com Trendelenburg em torno do Método dialético em Hegel pra-ticamente sela o destino do Hegelianismo ortodoxo. O que de modo algum parece invalidar a contribuição de Gabler ou, principalmente, as de Hinrichs e Göschel; além, é claro, das de outros hegelianos ortodoxos.

Isso pode agora ser verificado pelos que se interessam pelas ins-tâncias do Idealismo especulativo e, mais propriamente, pelas razões de sua perda de integridade estrutural em Hegel e no Hegelianismo ortodoxo, deixando-o inerte por quase dois séculos. Razões essas para cujo esclare-cimento, independente do seu valor teórico e de seu alcance filosófico, as contribuições de Hinrichs, Gabler e Göschel mostram-se fundamentais; o que se explica justamente pelo fato de serem estes os que mais empunha-ram armas em defesa do território conquistado por Hegel e então por eles herdado em comum, a saber: o ponto de vista especulativo puro. Só isso já bastaria para que o espírito que habita a filosofia destes filósofos fosse revivescido mediante não só a restauração de suas obras, mas também pela reabilitação dos mesmos segundo sua estatura própria, inclusive no que tange aos limites e ao alcance de suas contribuições.

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REH, NOTA SOBRE O NÚMERO 10

Manuel Moreira da SilvaEditor REH

Este número da Revista Eletrônica Estudos Hegelianos concentra-se em três grupos de questões. O primeiro grupo ocupa-se de alguns dos te-mas clássicos da primeira parte da Fenomenologia do Espírito, a saber: o da certeza sensível e o da dialética do senhor e do escravo; o segundo se volta para as questões do crime e da punição e da crítica de Hegel ao estado de natureza; por fim, o terceiro se reporta a questões atinentes às relações da filosofia de Hegel com a arte e a religião. Em todos estes casos o elemento unificador é a História, que se apresenta, de um modo ou de outro, como a plataforma a partir da qual as autoras e os autores levam a termo suas contribuições.

No que diz respeito ao primeiro grupo, “Sobre a (in)certeza sensível em Hegel”, de Ana Paula Repolês Torres, pretende demonstrar, através da análise da experiência da “certeza sensível”, a crítica que Hegel realiza à imediatez, o que leva a autora a ressaltar a relevância da negatividade, do ser-outro, no pensamento hegeliano, buscando compreender o que seja a unidade dialética, isto é, a identidade da identidade e da diferença. Já em “Sobre a tradução do termo ‘Knecht’”, Matheus Pelegrino da Silva discute o problema da tradução do termo “Knecht”; apresenta-se aí uma avaliação das opções de tradução do termo “Knecht” e uma tematização do termo “Sklave”, a fim de mostrar que estes dois termos se referem a um mesmo indivíduo. Enfim, “O Desejo e seu Outro”, de Luiz Henrique Vieira da Silva, analisa o movimento do desejo no Capítulo IV da Fenomenologia do Espírito de modo a evidenciar uma dialética transformativa do desejo em trabalho, permitindo assim entender como surge a temática do trabalho no capítulo e obra retrocitados.

O segundo grupo de questões acima aludido exprime-se nos artigos “Hegel e a crítica ao estado de natureza do Jusnaturalismo moderno”, de Cesar Augusto Ramos, e “A Lei de Talião e o princípio de igualdade entre crime e punição na Filosofia do Direito de Hegel”, de Melina Duarte. Em seu trabalho, Cesar Augusto Ramos pretende desenvolver três teses em torno da questão da exterioridade da natureza e das relações de dominação no cam-po político, nas quais os traços de naturalidade permanecem presentes nas concepções de estado de natureza da doutrina do Direito Natural, reforçando a idéia hegeliana de que a “coação é violência contra um ser-aí natural”, essa que assim se apresenta compatível com a determinação essencial da natureza e marca a condição da imediatidade do homem como ser natural, o qual, como tal, pode ser coagido. Por seu turno, em “A Lei de Talião e o princípio de igualdade entre crime e punição na Filosofia do Direito de He-gel”, de Melina Duarte, está em questão a tese da necessária existência de uma exata medida entre a negação e o restabelecimento da justiça, assim

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como o problema da insuficiência da igualdade de valor (enquanto distinta da igualdade específica) para, além de garantir a justiça na esfera teórica, estendê-la à esfera prática; algo possível em Hegel, segundo a autora, gra-ças à autodeterminação do espírito livre, i.é, a união dos âmbitos teórico e prático.

Enfim, no terceiro e último bloco de questões, “Da ‘Syn Díkei’ à Lógica da Corporação – A superação da Tragödie im Sittlichen na filosofia de Hegel”, de Sergio Portella, objetiva apreender as interfaces conceituais que habilitam conferir a unidade pretendida pela modernidade à cultura helênica ao incidir no pensamento de Hegel como a releitura da antiguidade greco-clássica à luz dos desafios legados pela filosofia kantiana. “Estética e consciência infe-liz na filosofia hegeliana”, de Lincoln Menezes de França, discute a oposição entre a finitude do homem e o pensamento do infinito enquanto essencial para a caracterização da consciência infeliz, a qual, enquanto consciência in-feliz da realização infinita do pensamento na finitude humana, se manifesta historicamente. Enfim, em “Hegel e Hamann: alguns diálogos”, Ilana Viana do Amaral busca explicitar o diálogo de Hegel com H. G. Hamann a partir da oposição, por este último, de uma idéia de razão mediada pela linguagem ao que ele nomeia, sob forma humorística, como a razão “purificada” resul-tante do esforço crítico kantiano. De acordo com a autora, a exposição tem o sentido de explicitar os termos nos quais a reflexão hamanniana sobre a linguagem aparece a Hegel como exposição da idéia subjetiva, exposição capaz, nos termos de seus Escritos sobre Hamann, de apresentar a crítica ao que Hegel chama de “entendimento seco”, para evidenciar tanto a sua verdade quanto o seu limite diante da exposição especulativa da mediação do Estado.

Como que se conectando a este último grupo de questões, concen-trando-se, porém, nas vicissitudes históricas dos principais representantes do chamado Hegelianismo ortodoxo, o Editorial, intitulado “Hegel e o Hege-lianismo ortodoxo (1820-1860) na aurora do século XXI: A restauração digi-tal das obras e a reabilitação de Hinrichs, Gabler e Göschel”, busca desen-volver uma nova compreensão em torno dessa corrente do Hegelianismo, seu lugar histórico-sistemático no desenvolvimento da Filosofia Hegeliana e, em certo sentido, sua atualidade. Compreensão essa que começa a se impor justamente a partir da restauração digital e da disponibilização on-line de obras fundamentais até então praticamente desconhecidas ou inacessíveis à grande maioria dos estudiosos da Filosofia especulativa pura em sua matriz hegeliana.

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REH10 – Nota adicional

Manuel Moreira da SilvaEditor REH

O número 10 da Revista Eletrônica Estudos Hegelianos estava prati-camente no prelo quando sobrevieram alguns problemas de ordem técnica, atrasando sua publicação por alguns meses. Em vista disso, como já se aviz-inhava o V Congresso Internacional da Sociedade Hegel Brasileira – SHB, o Staff da Revista considerou melhor disponibilizar o referido número depois do evento. Após a realização deste, algumas tarefas mais urgentes exigiram a atenção dos membros do novo Conselho Executivo, recém empossado; o que também fez com que a resolução dos problemas acima aludidos fosse protelada por mais tempo. Em todo caso, publicam-se agora os materiais anteriormente definidos, acrescidos de uma ou outra colaboração.

O V Congresso Internacional da Sociedade Hegel Brasileira realizou-se em Fortaleza/CE, no Ponta Mar Hotel, entre os dias 28 de setembro e 02 de outubro de 2009. O evento discutiu o tema A Noiva do Espírito: Natureza em Hegel e contou com a presença de renomados especialistas em Filosofia da Natureza em geral e na Filosofia da Natureza de Hegel em especial, entre eles: Alfredo Moraes (UFPE), Alfredo Pereira Jr. (UNESP), Anton Friedrich Koch (Heidelberg), Christian Iber (Berlim), Diogo Falcão Ferrer (Coimbra), . Dirk Stederoth (Kassel), Gilles Marmasse (Sorbonne, Paris), Manfredo A. de Oliveira (Fortaleza), Marcos Lutz Müller (UNICAMP), Klaus Vieweg (Jena) e Sebastian Rand (Atlanta). Ao fim do evento elegeu-se o novo Conselho Executivo (CE) – Gestão 2009-2011 – da Sociedade Hegel Brasileira, a sa-ber: Presidente: Márcia Cristina F. Gonçalves (UERJ); Vice-Presidente: Kon-rad Utz (UFC); Primeiro Secretário: Manuel Moreira da Silva (UNICENTRO/PR) Segundo Secretário: Verrah Chama (UFRGS; Secretário de Publicações: Hans Christian Klotz (UFG); Secretário de Finanças: Márcia Zebina (UFG).

Enfim, na qualidade de Editor da REH e de Secretário de Publicações da SHB, com este número também nos despedimos de nossos leitores e de nossos colaboradores, haja vista havermos abraçado outros desafios nas tarefas que o Idealismo especulativo hoje nos impõe. Esperamos que o tra-balho realizado nos últimos dois anos à frente desses cargos possa ter sido de valia para a consolidação deste importante veículo que, por suas car-acterísticas próprias e pelos conteúdos tratados em suas páginas, se apre-senta como sui generis em sua esfera. Desejamos muito sucesso e boa sorte ao novo Editor da REH e Secretário de Publicações da SHB, o Professor Hans

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Christian Klotz; que o mesmo possa dar continuidade ao que até aqui con-seguimos realizar.

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Artigos

Sobre a (in)certeza sensível em Hegel

Ana Paula Repolês Torres1

RESUMO: Pretendemos demonstrar, através da análise da experiência da “certeza sensível”, primeiro Capítulo da Fenomenologia do Espírito, a crítica que Hegel realiza a toda imediatez, o que nos leva a ressaltar a relevância da negatividade, do ser-outro, em seu pensamento. Buscamos também compreender, resgatando o legado platônico de Hegel, o que seja a unidade dialética, isto é, a identidade da identidade e da diferença.

Palavras-chave: Negação, Mediação, Identidade, Diferença, Dialética.

ABSTRACT: Based upon the experience of “sensible certitude” in the first chapter of the Pheno-menology of Spirit, we aim to demonstrate the critique of all kind of immediateness in Hegel’s thought, what permit us to focus the relevance of negativity in his work. We also intend to understand what means the dialectical unity, that is, the identity of identity and difference, showing the platonic heritage of Hegel.

Keywords: Negativity, Mediation, Identity, Difference, Dialectic.

Introdução

A certeza sensível, primeira figura da consciência natural que apa-rece na Fenomenologia do Espírito buscando provar, através de sua própria experiência, seu critério de verdade, qual seja, a imediatez do conhecimen-to, pode ser visualizada para além dela mesma, na medida em que o re-conhecimento da mediação, do ser outro, do próprio processo dialético de constituição do saber, que se torna manifesto nesse momento, pode ser tido como paradigma para se pensar todos as demais figuras da consciência em seu desenvolvimento posterior. Na verdade, o capítulo da certeza sensível pode ser visto como uma crítica a toda imediatez, o que nos faz retornar à certeza sensível quando chegamos ao final do caminho percorrido pela consciência, pois o próprio saber absoluto, ao postular uma igualdade entre sujeito e objeto, reconhece uma mediação nessa identidade.

Por outro lado, toda a questão religiosa que Hegel desenvolve já no Prefácio da citada obra pode ser resgatada para se demonstrar a im-portância que o trabalho do negativo, a dor, o desespero, o “calvário da mediação”(HYPPOLITE, 1999, p. 97) assume em sua obra. De fato, para He-gel, a substância teve que se tornar sujeito, Deus teve que se fazer homem para retornar a si mesmo, em outros termos, o absoluto, o incondicionado, não é alcançado de modo imediato por alguma intuição intelectual ou arte-fato místico, é necessária a mediação do conceito, por isso não se pode mais distinguir, tal como fazia Kant, o conhecer e o pensar, o entendimento e a

1. Doutoranda em Filosofia pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG, bolsista da FAPEMIG. Texto submetido em outubro de 2008 e aprovado em Maio de 2009.

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razão, pois o infinito está no finito, não sendo a Verdade algo a ser alcançado no final do percurso, mas sim o próprio movimento do saber.

O Verdadeiro é o sujeito ou conceito, o que equivale a dizer que ele pró-prio é esse movimento de tornar-se o que ele é, ou ainda de pôr-se a si mesmo. O Verdadeiro não é, portanto, o imediato, mas a ‘imediatez-que-veio-a-ser’ (HYPPOLITE, 1999, 96).

Se é uma necessidade da razão pensarmos o absoluto, Hegel nos mostra que é o próprio absoluto que movimenta o pensar, que nos faz ir além do dado, não aceitar os limites, nas palavras de José Henrique Santos, trata-se da “pulsão de liberdade que o espírito é chamado a efetivar” (SAN-TOS, 2007, p. 28). O absoluto então não significa saber tudo, a completude do conhecer, mas sim o seu devir permanente, a omnipresença do Tribunal da razão, em outros termos, diríamos, em consonância com toda uma tradi-ção que entende ser o saber filosófico inesgotável2, que a busca da verdade já é a própria Verdade, que não há um sentido último a ser alcançado, nas palavras de Slavoj Zizek, o saber absoluto é um buraco, “o vazio traumático em torno do qual se articula o processo significante” (ZIZEK, 1991, p. 14).

Sobre a (in)certeza sensível

A certeza sensível é a primeira figura da consciência natural na qual o sujeito ainda não se tornou o objeto da consciência (Consciência de si), o objeto de conhecimento então é algo exterior, independente, mesmo que nesse processo haja uma sucessão de experiências em que a consciência vai gradativamente relacionando a Verdade do objeto (Em si) com seu próprio Saber (Para si), até o momento em que a coisa em si kantiana é ‘exorcizada’, passando então a consciência a se reconhecer em seu objeto de conheci-mento. No início do processo de conhecimento, devemos afirmar então que a consciência se constituiu como tal a partir da separação entre sujeito/certeza e objeto/verdade, haja vista que “a alma que sente não se distingue ainda de seu objeto” (HYPPOLITE, 1999, p. 99). O fato é que a consciência separa o seu saber da verdade, postulando ainda uma igualdade, uma re-lação imediata entre sujeito e objeto. Entretanto, a própria distinção entre sujeito e objeto, um sendo essencial e outro não, como veremos em por-menores ao analisar a seguir a experiência da certeza sensível, pode ser vista como um desdobramento, como mediação, sendo esta, para Hegel, a “diferença capital” (HEGEL, 2008, p. 86).

A certeza sensível acredita que seu saber é rico porque o “aqui” e o “agora” podem abarcar qualquer dimensão do espaço ou momento do tem-po, mas “para nós”, que estamos rememorando os passos da consciência

2. Leo Strauss sintetiza bem essa compreensão da atividade filosófica, cuja origem remonta à Grécia antiga: “Philosophy is essentially not possession of the truth, but quest for the truth. The distinctive trait of the philosopher is that ‘he knows that he knows nothing’, and that his insight into our ignorance concerning the most important things induces him to strive with all his power for knowledge” (STRAUSS, 1988, 11).

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natural, trata-se de um saber pobre já que impreciso, incapaz de deter-minação. Ao tentar apreender o mais concreto, a certeza sensível cai num universal, sendo levada a reconhecer uma multiplicidade no que entendia unicamente singular. Vejamos quais são as experiências que a certeza sen-sível realiza para tentar provar seu critério de saber.

Num primeiro momento, o objeto é o essencial, onde se situaria a imediaticidade do saber, assim a certeza sensível realiza a experiência na perspectiva temporal, a afirmação do agora como noite é refutada quando se anota essa primeira verdade e se percebe que ela não permanece, que em outro momento o agora é dia; de modo semelhante, na perspectiva es-pacial também ocorre um deslocamento, pois o “isto é uma árvore” não se sustenta quando nos viramos e visualizamos o “isto é uma casa”. Dessa for-ma, ao buscar alcançar o agora, a consciência natural depara-se com todos os agoras, ao tentar capturar o aqui, ela se defronta, de modo semelhante, com todos os aquis. Em outros termos, diríamos que a consciência natural não consegue apreender o objeto em sua singularidade ao visá-lo como o imediato, como aquilo que é, que permanece sempre o mesmo (referência a Parmênides e Zenão que negam o movimento, afirmando o ser como re-pouso), pois o que se consegue nessa busca é um universal, a ausência de determinação.

Diante da frustração em captar o singular tendo o objeto como pa-drão de imediaticidade, a consciência natural realiza uma inversão, o obje-to passa a ser o inessencial e o sujeito/saber o essencial, trata-se de um momento reflexivo em que a certeza sensível é recambiada ao Eu, mas não ocorre aqui uma suprassunção, a imediatez ainda continua a ser o padrão de medida. A certeza sensível ainda persevera em seu discurso, situando a verdade não mais no objeto, mas no “meu” visar, no “meu” saber sobre o objeto, ou seja, não se fala mais no “agora é noite” ou no “isto é uma ár-vore” como algo que é em si, mas sim como um ser-para-mim. A certeza sensível acredita, nessa segunda experiência, que o sujeito, na imediatez do seu ver e ouvir, é o que permanece, é o que se mantém único, singular, no desvanecer do agora e aqui. Hegel então refere-se implicitamente à tese do homem-medida de Protágoras3 e à concepção de ciência como sensação dos sofistas. “A verdade é aquilo que experimento imediatamente enquanto a experimento” (HYPPOLITE, 1999, p. 109). Trata-se de uma concepção relati-vista que nos leva a aceitar toda opinião como verdadeira, não obstante uma se contrapor à outra, mas, como podemos apreender de Platão, não se trata de uma verdadeira contradição, o que só seria possível pela afirmação da possibilidade do falso4. Dessa forma, ao se tentar assegurar a singularidade e credibilidade de cada saber, de cada Eu, o que a certeza sensível consegue é o Eu como um universal.

3. Protágoras afirmava que “el hombre es la medida de todas las cosas; de las que son como medida de su ser y de las que no son como medida de su no-ser”(PLATON, 1973, 52).4. “Dizer que a opinião é sempre verdadeira significa dizer que o que importa é que aquilo que aparece é experimentado de tal ou tal modo, suspendendo a possibilidade de dizer a verdade compreendida como ‘dizer o ser’” (MARQUES, 2006, 120).

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O ‘visado’ pela certeza sensível, o eu singular, único, é negado então seja pela existência de outro Eu ou seja pela consideração de mim mesmo em outra ocasião. O fato é que a pluralidade dos eus nos faz já antever a noção de Espírito hegeliana: “Este eu que é um nós, este nós que é um eu” (HEGEL apud HYPPOLITE, 1999, p. 110). O gênero do outro, como podemos apreender da leitura do Sofista de Platão, é universalmente participado, isto é, o um está mediatizado por todos os outros, cada indivíduo é idêntico con-sigo mesmo e outro em relação aos outros. Dessa forma, não obstante Hegel se opor a qualquer tipo de dualismo, vemos que ele retoma o pensamento platônico no que se refere à afirmação de que tanto o ser quanto o não-ser, a identidade e a diferença, o repouso ou o movimento fazem parte do Ser. “O múltiplo eleático é a negação absoluta do Ser-Uno. O múltiplo platônico é a posição de um ‘ser-outro’, que torna possível a unidade distinta de cada Idéia” (VAZ, 2001, p. 50). Ressalte-se, todavia, que essa experiência da unidade, o terceiro momento dialético, faz com que abandonemos a certeza sensível, já que esta não reconhece a mediação do imediato, e passemos para a figura da percepção.

Podemos ver, ainda no Capítulo sobre a certeza sensível, uma refe-rência implícita a Aristóteles, quando o mesmo diz que a substância última, o indivíduo sensível, concreto e singular sobre o qual recaem as predicações só pode ser indicado pelo pronome demonstrativo - este homem, mas a pre-tensão de mostrar o concreto, por ser realizado por meio do logos universal, leva-nos à indeterminação, à indiferenciação5.

Dessa forma, como através do “isto” ou do “visar” a certeza sensível não conseguiu apreender a singularidade, sendo a universalidade a verdade de ambos, ela parte então para uma terceira experiência onde ainda defende seu discurso, qual seja, da imediatez da verdade, sendo que esta não será mais garantida pelo sujeito ou pelo objeto, mas sim pela relação que se constitui entre eles. Não há que se falar mais nem mesmo em essencialidade ou inessencialidade, negando assim a certeza sensível qualquer diferença, qualquer movimento. Como podemos ver no texto da Fenomenologia do Espírito, o eu “não se vira”, “não toma conhecimento de um outro Eu”, “não compara”, “se atém firme a uma relação imediata: o agora é dia” (HEGEL, 2008, p. 90).

Hegel passa então a nos mostrar como a certeza sensível constitui essa relação imediata entre sujeito e objeto, e será então ao nos indicar essa relação que a própria certeza sensível irá topar com o movimento do pensamento, a mediação que nega a sua própria verdade, forçando-nos a passar então para a nova figura da consciência, a percepção. Temos então a diferença entre o agora mostrado e o mostrar do agora, sendo que o primei-

5. Sobre o tema, interessantes são as seguintes palavras de Giorgio Agamben:“A cisão aristoté-lica da ousia (que, como essência primeira, coincide com o pronome e com o plano de ostensão e, como essência segunda, com o nome comum e com a significação) constitui o núcleo orig-inário de uma fratura, no plano da linguagem, entre mostrar e dizer, indicação e significação, que atravessa toda a história da metafísica e sem a qual o próprio problema ontológico perman-ece informulável” (AGAMBEN, 2006, 34).

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ro deixa de ser quando é indicado. Podemos visualizar assim o movimento dialético dessa indicação do agora: 1) O agora é – primeira verdade; 2) O agora não é, foi, não-ser do agora – negação da primeira verdade; 3) O agora é e não é – negação da negação, isto é, unidade da identidade e da diferença.

Nesse terceiro momento dialético constatamos a superação da pró-pria certeza sensível, pois a afirmação do agora não é mais imediata, o ago-ra é algo“que permanece no ser-Outro o que ele é” (HEGEL, 2008, p. 91). Podemos recordar, mais uma vez, do Sofista de Platão, onde se reconhece que o falso, o não-ser, a imagem, também é, mesmo não sendo verdadei-ramente, o que nos leva a afirmar que o passar pelo seu ser-outro é funda-mental para a constituição do aqui e do agora. Nesse sentido é que podemos entender o ceticismo amadurecido de Hegel, pois a negação não significa um “puro nada”, mas um “nada determinado” (HEGEL, 2008, p. 76), o que quer dizer que toda determinação é negação e toda negação é determinação.

Hegel também realiza a experiência da imediaticidade na relação en-tre sujeito e objeto na dimensão espacial, mas o aqui “visado”, imediato, não se mantém, sendo também ele um “múltiplo ser-Outro”, pois quando se indica este aqui, temos simultaneamente muitos outros aquis. Os termos utilizados por Hegel: “complexo simples”, “pluralidade simples de agora” , “multiplicidade simples de aqui”, mostra a articulação de elementos opostos: singular e universal, imediato e mediatizado, simples e múltiplo, ser e não ser, positivo e negativo, coisa que a certeza sensível não admite, sendo en-tão o resultado de sua experiência sua própria superação.

Ocorre que somos capazes, na medida em que rememoramos a ex-periência da certeza sensível, de constatar algo que a consciência ingênua não conseguia perceber, ou seja, resta clara “para nós” a existência de uma incompatibilidade entre sua opinião, seu critério de verdade, qual seja, a imediatez, e o resultado de sua própria experiência. A certeza sensível “quer dizer” o imediato, mas o “dito”6 a destrói, ou seja, ao buscar o singular, a certeza sensível alcança um universal, tornando o saber que se pretendia o mais concreto, um saber abstrato, indeterminado.

A referência aos mistérios de Eleusis, de Ceres e de Baco, revela-nos não só que o Espírito se presentifica pela aniquilação, negação, perda da naturalidade, mas também que a impotência do espírito para alcançar o singular não se deve à ele próprio, mas à própria natureza.

A verdade das coisas sensíveis é a contingência do desaparecimento que toda a natureza celebra, ao contrário do espírito, que paira sobre os abis-mos, acima de todo limite, porque ultrapassa tudo o que os sentidos ofe-recem. A força do tempo não tem poder sobre o espírito (SANTOS, 2007, p. 55).

6. “Hegel sabe, pois, que sempre dizemos demais ou de menos: em suma, algo diferente em relação ao que queríamos dizer; é essa discordância que constitui a mola do movimento dialé-tico, é ela que subverte toda proposição”(ZIZEK, 1991, 23).

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Em outros termos, diríamos que a natureza é sempre fugidia, sempre procura ocultar-se, sendo que toda apreensão da mesma é manifestação do Espírito, é transposição do dado, por isso Hegel busca “exorcisar” o objeto como algo outro que a consciência, como o “Em si”, diríamos então que é através do sacramento que o “comer o pão” e o “beber o vinho” podem permanecer para além da imediaticidade, podem ser apreendidos após a consumação do ato.

Para finalizar, diríamos, com Platão, que o Ser não pode ser alcan-çado pelo logos, que discurso é imagem, “é algo de outro e semelhante àquilo de que é imagem” (MARQUES, 2006, p. 325), dessa forma, a certeza sensível se desdiz ao passar para o âmbito da linguagem, ou seja, ao falar do ser-aí dos objetos externos, visando captar a singularidade dos mesmos, nada mais afirma do que a igualdade e não a diferença com relação aos outros objetos. Este pedaço de papel é todo e qualquer papel. Portanto, é a própria experiência da certeza sensível que nos leva para uma nova figura, a percepção, em que a particularidade é apreendida através de articulação de opostos, da singularidade e da universalidade, do imediato e do mediato.

Considerações finais

Podemos visualizar, nessa primeira figura da consciência natural, a certeza sensível, todo o movimento dialético de suprassunção que se re-produzirá em cada nova figura de manifestação do Espírito. Dessa forma, seja na dialética do objeto, onde há o desvanescimento do objeto exterior à consciência, seja na dialética do sujeito, onde a consciência passa a se reconhecer no objeto que ela própria produz, tornando-se o conhecer um reconhecer-se, o que temos é um processo de reflexão, de negação, em que o “ser em si” não deixa de ser idêntico a si mesmo ao passar pelo “ser-ou-tro”, na verdade, constatamos que a identidade só se alcança pela afirmação da diferença, que a independência da consciência de si requer certa depen-dência, requer o reconhecimento de outra consciência como um igual, nas palavras de Hegel, a “consciência-de-si só alcança sua satisfação em outra consciência- de-si”(HEGEL, 2008, p. 141).

Dessa forma, tal como Platão tenta conhecer o filósofo através da “caça” a seu ser-outro, o sofista, Hegel mostra-se toda a trajetória na qual a consciência percebe que a certeza de si mesma só será alcançada quando ela se defrontar com outra consciência de si, quando ela não mais negar esse ser-outro que é essencial para a constituição de sua própria identidade. Na verdade, o que Hegel nos mostra é que até mesmo a nadificação do outro, o torná-lo escravo, esbarra necessariamente na independência do objeto, em outros termos, diríamos, com La Boétie, que toda servidão é voluntária, pois uma consciência só consegue realizar na outra o que esta lhe permite fazer.

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Sobre a tradução do termo “Knecht”

Matheus Pelegrino da Silva1

RESUMO: Na Fenomenologia do Espírito de Hegel encontramos o emprego do termo “Knecht” fazendo referência ao indivíduo que perdeu uma luta e que então está sob o controle de al-guém. A palavra “Knecht” tem sido traduzida para outras línguas com diferentes termos, que usualmente são seguidos de justificações do termo selecionado. O propósito deste trabalho é analisar como o termo “Knecht” deve ser traduzido para o português, tentando encontrar qual é a melhor palavra para descrever o indivíduo chamado por Hegel de “Knecht”. Primeiramente, é apresentada uma avaliação das opções de tradução do termo “Knecht” que são apontadas por alguns tradutores e comentadores da Fenomenologia do Espírito. Em um segundo momento, considerando que Hegel faz uso do termo “Sklave” em outras obras, algumas passagens são citadas para apontar as semelhanças entre o sujeito chamado de “Knecht” e o sujeito chamado de “Sklave”, a fim de mostrar que estes dois termos na maior parte do tempo se referem a um mesmo indivíduo.

Palavras-chave: Hegel, Fenomenologia do Espírito, Escravo.

ABSTRACT: In Hegel’s Phenomenology of Spirit we find the use of the term “Knecht” referring to the individual that has lost a fight and now is under someone else control. The word “Knecht” has being translated to other languages with different terms, that usually are followed by justi-fications of the selected term. The aim of this paper is to analyze how the term “Knecht” should be translated to Portuguese, trying to find which is the best word to describe the individual cal-led by Hegel “Knecht”. Firstly, it is presented an evaluation of the options of translation to the term “Knecht” that are pointed by some translator and commentator of the Phenomenology of spirit. Secondly, considering that Hegel makes use of the term “Sklave” in others works, some extracts are quoted to point the similarities between the subject called “Knecht” and the subject called “Sklave”, in order to show that this two terms mostly refer to the same individual.

Keywords:Hegel, Phenomenology of Spirit, Slave.

I. Considerações preliminares

O termo “Knecht”, empregado por Hegel tanto na Fenomenologia do Espírito quanto em outros de seus textos2 se mostra claramente como obje-to de debate entre os tradutores, razão pela qual, neste texto, buscaremos apresentar algumas indicações sobre como tal termo deve ser compreendido e traduzido para o português. Com esse intuito, analisaremos, primeiramen-te, quais as sugestões de tradução apresentadas para o termo na Fenome-nologia. Em seguida, tomando em consideração o fato de que em outras obras de Hegel há o emprego tanto do termo “Knecht” quanto do termo

1. Mestrando do Programa de Pós-graduação em Filosofia da UFRGS. Texto submetido em Junho de 2009 e aprovado para publicação em Setembro de 2009.2. Para a identificação dos termos em alemão objetos da discussão do presente artigo, utiliza-remos a seguinte edição: HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Hegel Werke. Seitenangabe der Textvorlage Hegel Werke in zwanzig Bänden, Suhrkamp Verlag, 1970. Berlin, Hegel-Institut, Talpa Verlag, 2000. CD-ROM. Faremos referência a tal obra através da sigla HW. Uma exceção, porém, será feita à regra de utilizar essa obra, quanto referirmos o texto do Sistema da vida ética, o faremos a partir de outra edição, pois tal obra não consta na Hegel Werke.

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“Sklave”, verificaremos em que medida é possível compreender o termo “Knecht” como um sinônimo de “Sklave”. Como última tarefa, discutiremos a validade e os limites de uma possível justificação para a opção de uma tradução do termo “Knecht” por “escravo”.

II. Análise das alternativas de tradução do termo “Knecht” na Fenomenologia do Espírito

Alguns tradutores da Fenomenologia, quando iniciam a seção dedica-da à dialética do senhor e do escravo, indicam quais critérios utilizaram para decidir a respeito de qual seria a melhor tradução do termo “Knecht”. Nessa primeira parte do presente texto, consideraremos os argumentos de alguns tradutores a sobre esse tema3. Jean Hyppolite, na versão francesa da Feno-menologia, traduz “Knecht” por “escravo”, e sustenta sua opção afirmando que, ao empregar o termo “Knecht”, Hegel teria em mente a etimologia de “servus”. Hyppolite defende essa opção tomando em conta a afirmação, feita por Hegel, de que “o escravo é aquele que foi conservado (servare)”4. Assim, argumenta Hyppolite, a afirmação de que o escravo foi “conservado” indica que Hegel está pensando na condição de “servare”, “conservado”, logo, se houvesse escrito em latim, teria empregado o termo “servus”, para assim manter a ligação com o fato de o escravo ter sido “conservado”. Essa alter-nativa de tradução, proposta por Hyppolite, sofre de um problema relativo à justificativa da escolha de tradução, eis que se mostra um tanto arbitrário decidir traduzir “Knecht” por “escravo” simplesmente supondo que Hegel teria empregado o termo “servus” caso houvesse escrito a Fenomenologia em latim.

Uma segunda proposta de tradução é apresentada por Labarrière e Jarczyk em seu livro dedicado à dialética do senhor e do escravo. Nessa obra, encontramos a sugestão de tradução de “Knecht” por “vassalo”, sob a justificativa de que o par “Herr/Knecht” costuma ser traduzido, na tradição literária, por “mestre/vassalo [maître/valet]”5. Entretanto, posteriormente

3. É oportuno mencionar a maneira como o termo “Knecht” foi traduzido por Paulo Mene-ses, Marcos Lutz Müller e Arnold Vincent Miller, cabendo apenas destacar que as escolhas de tradução destes autores não foram acompanhadas de uma justificação. Em sua tradução para o português da Fenomenologia do Espírito, Meneses opta por traduzir o termo “Knecht” por “escravo”. Cf. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do espírito. [Trad. MENESES, Paulo] 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 147. HW 3/147. Marcos Müller, por sua vez, nas partes que traduz da Filosofia do Direito, traduz “Knecht” por “servo”, como pode ser constatado na observação ao § 57 do referido texto. Cf. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Linhas fundamentais da filosofia do direito ou Direito natural e ciência do estado em compêndio – primeira parte, o direito abstrato. [Trad. MÜLLER, Marcos Lutz] Clássicos da Filosofia: Cadernos de Tradução nº 5. Campinas: IFCH/UNICAMP, 2003, p. 56-7. HW 7/123-4. Por fim, na tradução inglesa de Miller o termo “Knecht” é traduzido por “bondsman”. Cf. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Phe-nomenology of Spirit. [Trad. MILLER, Arnold Vincent] New York: Oxford University Press, 1977, p. 115. HW 3/147.4. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Phénomenologie de l’Esprit. [Trad. HYPPOLITE, Jean] Paris: Aubier, 1939, t. I, p. 155, nota número 1. O texto entre parêntesis é um acréscimo feito por Hyppolite ao texto de Hegel em sua justificação da opção de tradução.5. LABARRIÈRE, Pierre-Jean. e JARCZYK, Gwendoline. Les premiers combats de la reconnais-sance. Paris: Aubier – Montaigne, 1987, p. 75.

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Labarrière e Jarczyk modificaram em certa medida sua posição a respeito da tradução do termo, uma vez que em sua versão francesa da Fenomeno-logia encontramos o termo “Knecht” traduzido por “servo”. Nessa obra, a justificativa apresentada para a escolha do termo “servo” se baseia no fato de que “Knecht designa mais propriamente aquele que está ao ‘serviço’ de um mestre”6. Assim, mesmo admitindo que o termo “vassalo” fosse apto a indicar essa condição do indivíduo, opta-se por “servo” em razão da proximi-dade do termo com a atividade própria do indivíduo, “servir”7.

Outra opção de tradução, que surge no período intermediário entre a obra de Labarrière e Jarczyk sobre a dialética do senhor e do escravo e sua tradução da Fenomenologia, é apresentada por Lefebvre em sua tradu-ção da Fenomenologia. Lefebvre sugere o termo “servo” e critica a escolha do termo “vassalo”, apresentada por Labarrière e Jarczyk, pois este possui “uma referência histórica ou antropológica excessiva”8, não ajustada ao con-texto em que o termo “Knecht” surge na Fenomenologia. Sobre a escolha do termo “servo”, Lefebvre argumenta que ele seria a escolha mais adequada tendo em vista uma conotação psicológica presente naquele indivíduo cha-mado de “Knecht”, o fato de ele “possuir um comportamento servil”9. Se tomarmos em conta a crítica apresentada por Lefebvre à escolha do termo “vassalo” para traduzir “Knecht”, podemos supor que tenha sido esta crítica a razão pela qual Labarrière e Jarczyk modificaram sua posição a respeito da tradução do referido termo.

A quarta posição a respeito da tradução do termo “Knecht” que en-contramos é a de Tinland, que em seu livro dedicado à analise da dialética do senhor e do escravo defende a escolha do termo “servo” por motivos diversos daqueles apresentados por Lefebvre ou Labarrière e Jarczyk. Tin-land observa que Hegel, em sua obra Lições sobre a História da Filosofia, faz referência à seção da Ética de Espinosa que possui o titulo original de “De servitude humana”, em alemão, como “menschlischen Knechtschaft”10. Assim, considerando que Hegel optou por traduzir o termo “servitude” por “Knechtschaft” e não “Sklaverei”, poderíamos concluir que a melhor tradução do termo “Knecht” seria “servo”, e não “escravo”. O argumento utilizado por Tinland, entretanto, não parece resistir a uma análise mais detida. Inicial-mente, caberia apontar que, do fato de Hegel ter optado traduzir “servitude” por “Knechtschaft”, ao invés de “Sklaverei”, não se segue que ele não consi-dere os dois termos sinônimos. Dada a opção de Hegel, a única alternativa eliminada é a de que Hegel não considere válida a tradução de “servitude” por “Knechtschaft”. Do fato de ter optado pelo termo “Knechtschaft” não se

6. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Phénomenologie de l’Esprit. [Trad. JARCZYK, Gwendoline e LABARRIÈRE, Pierre-Jean] Paris: Gallimard, 1993, v. 1, p. 700, nota 53.7. Cf. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Phénomenologie de l’Esprit. [Trad. JARCZYK, Gwendo-line e LABARRIÈRE, Pierre-Jean] Paris: Gallimard, 1993, v. 1, p. 701, nota 53.8. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Phénomenologie de l’Esprit. [Trad. LEFEBVRE, Jean-Pierre] Paris: Aubier, 1991, p. 150, nota número 3.9. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Phénomenologie de l’Esprit. [Trad. LEFEBVRE, Jean-Pierre] Paris: Aubier, 1991, p. 150, nota número 3.10. TINLAND, Olivier. Maîtrise et servitude. Phénoménologie de l’esprit B, IV, A. Paris: Ellipses, 2003, p. 25, nota 3.

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segue que não seja igualmente válida a tradução por “Sklaverei”. Além dis-so, ainda devemos levar em conta o fato de que as Lições sobre a História da Filosofia são uma obra posterior à Fenomenologia, bem como o conteúdo do texto de Espinosa, para tentar compreender o que Hegel está chamando de “Knechtschaft”. Na seção da Ética cujo título Hegel traduziu, encontra-mos trechos que se mostram de particular valor na determinação do que Espinosa apresenta como consistindo um traço da “servitude”: “chamo de servidão a humana impotência para governar e refrear as afecções. Com efeito, o homem, submetido às afecções, não é senhor de si, mas depende da fortuna”11. “O homem livre, isto é, aquele que vive segundo o ditame da Razão, não é levado pelo medo da morte”12. Considerando essas afirmações de Espinosa, podemos argumentar, contra Tinland, que Hegel optou por tra-duzir “servitude” por “Knechtschaft” pelo simples fato de que, quando na Fenomenologia tratou do “Knecht”, afirmou que tal indivíduo possuía um medo da morte e era incapaz de controlar seus desejos.

A última alternativa de tradução que consideraremos foi apresentada recentemente, na nova tradução para o francês da Fenomenologia do Espí-rito, elaborada por Bernard Bourgeois, e parte do seguinte argumento:

Nenhuma tradução francesa de “Knecht” se impõe ver-dadeiramen-te. Os termos mais fortes: “escravo” ou “servo” [serf], e os mais fracos: “vassalo” ou “criado” [domestique], remetem demasiadamente ao contex-to social (da cidade para a casa), [mais do] que Hegel atribuiu ao “espí-rito objetivo” e, na Fenomenologia do Espírito, ao “espíri-to”, de tal forma que, aqui, a relação do reconhecimento desigual mestre-servidor [serviteur] se situa em um nível mais elementar da existência humana, aquele da inter-subje-tividade essencial originária. É essa consideração, verda-deiramente negativa, que nos faz reter o termo “servidor” [serviteur] sem dúvida um pouco fraco – e, para traduzir “Knechtschaft”, o termo “servidão” [servitu-de], o qual, por sua vez, é um pouco forte – , termos cuja significação é, com efeito, mais indeterminada, abstrata e geral.13

Sobre esse argumento e as opções de tradução por ele defendidas, é necessário fazer alguns comentários. Primeiramente, é adequado reconhe-cer que o termo “servidor”, como reconhece Bourgeois, é fraco em relação à situação em que se encontra o indivíduo que perdeu a luta. Entretanto, esse termo pode ser classificado não apenas como “fraco”, tendo em conta as opções de tradução do termo “Knecht”, mas até mesmo constituindo em um eufemismo para designar a situação em questão. É preciso reconhecer que há algo em comum entre um “escravo” e um “servidor”, o fato de que ambos executam certas atividades em proveito de um terceiro, contudo, é bastante clara a inadequação do termo “servidor” para denominar um indivíduo que se encontra em uma circunstância tal que, se ele não executar aquelas ati-vidades que lhe foram exigidas, será punido com a morte. Em segundo lu-

11. ESPINOSA, Baruch de. Ética. [Trad. SIMÕES, Antonio] São Paulo: Nova Cultural, 1997, p. 341.12. ESPINOSA, Baruch de. Ética. [Trad. SIMÕES, Antonio] São Paulo: Nova Cultural, 1997, p. 391.13. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Phénoménologie de l’esprit. [Trad. BOURGEOIS, Bernard] Paris: Vrin, 2006, p. 206, n. 2.

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gar, a respeito da escolha do termo “servidão” para traduzir “Knechtschaft”, entendemos que seria mais adequado traduzir tanto “Knecht” quanto “Kne-chtschaft” com palavras que possuam uma raiz comum. Dessa maneira, tal opção fica condicionada à escolha de como traduzir o termo “Knecht”, se escolheremos traduzi-lo por “servo” ou “escravo”, e é a tal questão que nos ocuparemos a seguir.

Tendo em conta os argumentos até então apresentados, podemos chegar a duas conclusões: 1a Que o termo “vassalo” definitivamente não é a melhor opção quando tentamos traduzir o termo “Knecht”, tendo em conta o argumento apresentado por Lefebvre, de que o contexto no qual o Knecht é apresentado não parece ser condizente com o termo “vassalo”, que costuma estar circunscrito a um período histórico determinado; 2a Quanto à discussão sobre se a melhor opção de tradução seria aquela que empregas-se o termo “servo” ou o termo “escravo”, os argumentos apresentados até então não parecem ser suficientemente fortes para que haja uma decisão bem justificada em favor de uma das alternativas. Em razão desse resultado insatisfatório, propomos que a decisão sobre qual é a melhor alternativa de tradução seja condicionada à análise de outras obras de Hegel, nas quais fa-zem-se presente tanto o termo “Knecht”, objeto de nosso problema, quanto o termo “Sklave”, que, tranqüilamente, pode ser traduzido por “escravo”.

III. Análise do uso do termo “Knecht” em outras obras de Hegel

O primeiro texto de Hegel em que encontramos a presença dos dois termos, “Knecht” e “Sklave”, é o Sistema da vida ética. Nessa obra, em um primeiro momento Hegel apresenta uma caracterização de diversas situa-ções que envolveriam um Knecht, entretanto, em outro momento do texto encontramos o emprego do termo “Sklave”. Para avaliar de que modo os dois termos se relacionam, inicialmente exporemos como o Sklave é carac-terizado por Hegel, e, posteriormente, através da apresentação do Knecht analisaremos em que medida há uma correspondência entre os dois ter-mos.

Na terceira parte do Sistema da vida ética Hegel afirma que o “es-tado de escravo [Sklave] não é estado algum; com efeito, é apenas um universal formal. O escravo reporta-se ao senhor [Herrn] como singular”14. Uma primeira observação que devemos indicar concerne ao fato de que no trecho afirma-se que o escravo “reporta-se ao senhor [Herrn]”, ou seja, aqui encontramos o termo “Herrn”, senhor, relacionado com o termo “Sklave” ao invés de estar relacionado com o termo “Knecht”, como até então ocorria 14. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Sistema da vida ética. [Trad. MORÃO, Artur] Lisboa: Edições 70, 1991, p. 63, a partir de agora este texto será referido com a sigla SdVE. Avisamos, desde já, que todas as ocorrências do termo “Knecht” no texto em alemão serão traduzidas com o termo “escravo”, e não com o termo “servo”, como ocorre na tradução portuguesa. Utilizamos, como fonte dos termos do texto original, que indicaremos com a sigla SdS, a seguinte edição do texto do Sistema da vida ética: HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. System der Sittlichkeit. Hamburg: Felix Meiner, 1967, p. 63.

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no texto e como ocorre na Fenomenologia (“Herrschaft e Knechtschaft”). No trecho acima citado afirma-se que “o estado de escravo não é estado algum”, o que significa que a circunstância de um indivíduo ser um escravo, estar neste “estado”, nesta condição, não representa, em verdade, um “estado” do indivíduo, não há um tal “estado” de escravo. Para compreendermos tal afirmação, é necessário recuar um pouco no texto para verificar o que Hegel pretende dizer ao empregar o termo “estado” e como seu argumento funcio-na.

Hegel afirma que, “segundo o conceito verdadeiro de um estado, este não é uma universalidade que reside fora dele [do indivíduo], e algo de pensado, mas a universalidade é nele real”15. Um “estado” é algo que está no indivíduo, não é algo de que o indivíduo participa, o indivíduo não se in-clui em uma universalidade, mas, isto sim, ele constitui uma universalidade. Desse modo, podemos entender que quando um indivíduo está na condição de escravo, ele não se concebe e não é concebido como portador de um universal, como consistindo em uma totalidade na qual ocorre a “subsistên-cia de todas as potências”16 do indivíduo, quando na condição de escravo o indivíduo se vê limitado externamente, por outro indivíduo. A partir desses elementos podemos destacar um traço fundamental da caracterização do escravo (Sklave), o fato de ele não ter reconhecida a sua totalidade, de não constituir uma universalidade, de lhe ser negada a possibilidade de realizar algumas de suas potências.

Passemos agora a uma breve exposição da maneira como o Knecht é caracterizado. Hegel chama de relação de dominação e escravidão aquela relação em “que o indivíduo indiferente e livre é o indivíduo poderoso, pe-rante o diferente”17, portanto, o que distingue os indivíduos nesta relação, e determina quem ocupará qual posição, é o poder que cada um possui. Consideremos, então, o que é afirmado sobre a noção de “poder” e seu en-cadeamento com a noção de “indiferença”:

[...] o indivíduo vivo encontra-se perante o indivíduo vivo, mas com de-sigual poder da vida; um é, pois, o poder ou a potência para o outro; é a indiferença, enquanto o outro está na diferença; aquele comporta-se, portanto, em relação a este como causa; enquanto sua indiferença, é a sua vida, a sua alma ou espírito.18

Na relação de dominação e escravidão os indivíduos encontram-se, um frente ao outro, como diferentes, e esta diferença ocorre em razão de uma desigualdade de poder, quando um dos indivíduos possui um poder que o outro não possui. O indivíduo que possui o poder é indiferente, indiferente em relação a seu poder, e dizer que ele é indiferente significa dizer que em certa medida ele é igual a seu poder. Já o indivíduo que não possui o poder é diferente, é diferente daquele que possui, e por isto se diz que ele “está na diferença”. Aqui encontramos um traço comum à descrição do Sklave e

15. SdVE, p. 63. SdS, p. 63.16. SdVE, p. 63. SdS, p. 63.17. SdVE, p. 35. SdS, p. 34.18. SdVE, p. 35. SdS, p. 33.

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do Knecht, o fato de que o indivíduo envolvido na relação de escravidão e dominação, em ambos os casos, não é reconhecido pelo dominador como um semelhante. Tanto o Sklave quanto o Knecht é observado como um ser diferente, que, portanto, não deve ser reconhecido.

Prosseguindo na leitura do texto, encontramos uma passagem que a um só tempo consegue tornar problemática correspondência entre os ter-mos “Knecht” e “Sklave” e a tentativa de aproximar a noção de “Knecht” do que ordinariamente se compreende como consistindo em um escravo:

O escravo [Knecht] pode, enquanto todo da personali-dade, tornar-se pro-priedade, e assim também a mulher; mas semelhante relação não é o casamento, também não é um contrato com o escravo [Knecht] mas con-trato com outro a propósito do escravo [Knecht] ou da mulher; em muitos povos, a mulher era assim comprada aos pais. Com ela própria, porém, nenhum contrato é possível, pois por ter justamente de se dar livremente no casamento ela remove consigo mesma, e também o homem, a possi-bilidade do contrato.19

A primeira observação que se pode fazer, diante do exposto, é que há uma diferença substancial entre o escravo e a mulher que integra uma família. Apesar de ambos estarem sob o domínio de um senhor, o domínio não ocorre da mesma maneira. O domínio que o senhor tem sobre a mulher com quem é casado é um domínio como chefe da família, e, neste caso, a diferença de poder é relativa à capacidade de administração e liderança. Por ser essa a diferença entre os envolvidos, porque o senhor apenas é chefe da família se há uma família, se há uma esposa, e em razão de um casamento que apenas ocorreu pois a mulher aceitou livremente esta condição, o se-nhor não pode vender a sua esposa. O escravo, por sua vez, pode ser vendi-do, pois o senhor pode dispor do escravo da maneira que bem entender, ele não encontra qualquer limitação ao seu poder.

É interessante destacar que a apresentação que Hegel faz da domi-nação que ocorre na relação familiar parece destoar daquela relativa à domi-nação de um indivíduo que não integra a família. Apesar de Hegel continuar empregando o termo “Knecht” ao fazer referência ao dominado na relação familiar, neste contexto a dominação é muito mais branda que no contexto da relação entre senhor e escravo. Na relação familiar a dominação se esta-belece em razão de uma diferença de poder que é meramente formal, não se trata de o senhor ter posses que os dominados não têm, mas apenas de ele possuir uma capacidade que o distingue dos demais20. A relação de do-minação não surge de um carecimento material dos dominados, mas de um carecimento que poderíamos chamar de administrativo, uma incapacidade de administrar suas posses. Outra nota distintiva da relação de dominação

19. SdVE, p. 38. SdS, p. 37.20. “A diferença [entre os envolvidos] é a diferença superficial da dominação. O homem é o sen-hor e o intendente; não o proprietário por oposição aos outros membros da família. Como ad-ministrador, tem unicamente a aparência da livre disposição. O trabalho também está repartido segundo a natureza de cada membro, mas o seu produto é comum; cada qual elabora justa-mente graças a esta repartição um exceden-te, mas não como sua propriedade. A transferência não é uma troca, mas é imediata, comunitária em si e por si”. SdVE, p. 37. SdS, p. 36.

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familiar em comparação com a dominação de um escravo diz respeito à pos-sibilidade de vender o dominado, visto que o chefe da família não possui tal poder em relação aos membros da família, ao passo que o senhor do escravo o possui. Esses elementos nos levam a pensar que há uma diferença muito grande, quanto ao dominado, em função de ele pertencer ou não à família do dominador.

O trecho que acima citamos, além de ser importante para que se es-tabeleça uma distinção das espécies de dominação, também é de interesse pois, empregando o termo “Knecht”, Hegel afirma que é possível vender este indivíduo. Essa afirmação é relevante pois marca um traço comum entre o Sklave e o Knecht, a possibilidade de que tanto um como o outro seja ven-dido. Tal característica da condição de escravo parece não ser adequada à relação de servidão, pois esta não envolveria uma tal disposição do senhor sobre o servo, aquele que domina o servo não possui o poder de vendê-lo, como ocorre com o escravo. Assim, verificamos que a opção feita por alguns tradutores da Fenomenologia, ao traduzir “Knecht” por “servo”, não se mos-tra adequada. Hegel afirma que o Knecht pode ser vendido, e tal caracterís-tica não pertence à condição específica do servo. Portanto, o termo “Knecht” não pode ser traduzido, se quisermos manter o significado a ele atribuído por Hegel, com o termo “servo”.

Por outro lado, o fato de ser afirmado que o Knecht pode ser vendido não soluciona definitivamente a questão relativa à tradução deste termo, uma vez que sabemos que alguns indivíduos referidos por Hegel com o ter-mo “Knecht”, a saber, os membros de uma família, não podem ser vendidos. Nesse caso específico, tendo em vista a maneira como a relação entre do-minado e dominador é exposta, podemos concluir que o emprego do termo “escravo” não parece ser plenamente satisfatório. O problema, nesse caso particular, é que não parece ser válida a tradução do termo “Knecht” por “escravo”, ao contrário do que ocorre com as outras espécies de escravo (Knecht) que encontramos ao longo do texto do Sistema da vida ética. Con-siderando que não há em português um termo que traduza plenamente o significado do termo “Knecht” (servidor do trabalho), talvez a maneira mais adequada de referir aos dominados na relação familiar seja empregando o termo “servo”, que refere uma relação de dominação mais branda que aque-la contida no termo “escravo”.

Não obstante essas considerações, devemos ter consciência de que Hegel emprega o termo “Knecht” para designar mais de uma espécie de in-divíduo dominado21, e todas estas espécies encontramos encontram-se em acordo com a caracterização geral da escravidão feita por Hegel no início de sua análise do tema, em todos os casos o Knecht é produto de uma diferen-ça de um poder qualquer entre os indivíduos envolvidos, ou seja, ele não é

21. No Sistema da vida ética encontramos cinco espécies de escravidão, isto é, situações em que há um Knecht: 1a A escravidão que resulta de uma diferença de poder entre os envolvidos; 2a A escravidão dos membros da família ao chefe da mesma; 3a A escravidão do criminoso que roubou a propriedade de alguém; 4a A escravidão daquele que lesou a honra de alguém; 5a A escravidão daquele que lutou em uma guerra e foi derrotado.

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reconhecido pelos demais como um semelhante, como um universal. Tendo em conta que inclusive os demais membros da família são observados pelo chefe da família como diferentes dele, logo, não são por ele reconhecidos como seus semelhantes, portanto possuem o traço essencial à condição de Sklave, ou seja, mesmo nesse caso Hegel chamaria todo membro da família, exceção feita ao chefe da mesma, com o termo “Sklave”. Dessa maneira, não seria apenas o Knecht que não poderia ser vendido, mas também o Sklave, com ambos os termos haveria a referência a alguém que não pode ser vendido.

A conclusão final a que podemos chegar, considerando todas essas informações, é que tanto com a noção de “Knecht” quanto com a noção de “Sklave” Hegel designa indivíduos que, quanto pertencem a uma família e são dominados por pertencerem a uma família, não correspondem plena-mente àquilo que se entende por escravidão. Nos demais casos, parece ser claro que o termo “Knecht” refere àquela condição que claramente designa-ríamos com o termo escravo.

O segundo texto de Hegel pertinente ao nosso presente objetivo é a Filosofia do Direito. Nessa obra, mais especificamente na observação do parágrafo 57, verificamos que Hegel emprega o termo “Sklaverei” e, em seguida, faz referência à circunstância específica do indivíduo como consis-tindo naquela descrita na seção da Fenomenologia dedicada à relação de dominação e de escravidão:

O ponto de vista da vontade livre, com o qual principia o direito e a ciência do direito, já está para além do ponto de vista não-verdadeiro, segundo o qual o homem como ser natural e como conceito somente sendo em si é, por isso, suscetível de escravidão [Sklaverei]. Este aparecimento prece-dente e não-verdadeiro concerne só o espírito que ainda está no ponto de vista da sua consciência; a dialética do conceito e da consciência primeiro somente imediata da liberdade provoca aí a luta pelo reconhecimento e a relação do senhorio e da servidão [Knechtschaft] (vide Fenomenologia do Espírito, pp. 115 e ss. e Enciclopédia das Ciências Filosóficas [1817], §§ 325 e ss.) Mas que o espírito objetivo, o conteúdo do direito, não seja ele próprio de novo apreendido somente no seu conceito subjetivo e, por-tanto, que o fato, o de que o homem em si e por si não esteja destinado à escravidão [Sklaverei], não seja de novo apreendido como um mero dever-ser, isso tem lugar unicamente no conhecimento de que a Idéia da liberdade só é verdadeiramente como Estado.22

Nessa passagem da Filosofia do Direito é perfeitamente claro que Hegel se refere a um mesmo indivíduo, alternadamente, com os termos “Sklaverei” e “Knechtschaft”. No texto é afirmado que o sujeito “suscetível de escravidão [Sklaverei]” se envolverá em uma “relação do senhorio e da servidão [Knechtschaft]”.

22. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Linhas fundamentais da filosofia do direito ou Direito natural e ciência do estado em compêndio – primeira parte, o direito abstrato. [Trad. MÜLLER, Marcos Lutz] Clássicos da Filosofia: Cadernos de Tradução nº 5. Campinas: IFCH/UNICAMP, 2003. § 57, A. HW 7/123-4.

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Além desses dois textos em que encontramos uma correspondência entre os termos “Sklave” e “Knecht”, podemos ainda citar outras duas ocor-rências conjuntas dos dois termos, agora em textos que não foram escritos por Hegel mas sim constituem notas de suas aulas. Na Filosofia da História, ao tratar da escravidão do povo chinês, encontramos a seguinte afirma-ção: “A opressão que os pressiona de encontro ao solo, a eles parece ser seu destino inevitável; e não parece ser nada terrível, a eles, venderem-se como escravos [Sklaven] e comer o pão amargo da escravidão [Brot der Knechtschaft]”23. No mesmo sentido, e com importância ainda maior, é o texto do adendo do § 435 da Enciclopédia, no qual verificamos que os dois termos fazem referência, claramente, a um mesmo indivíduo:

A escravidão [Knechtschaft] e a tirania são assim, na história dos povos, um grau necessário e por isso algo relativamente legítimo. Aos que per-manecem escravos [Knechte], não se faz nenhuma injustiça absoluta; pois quem não possui a coragem de arriscar a vida pela conquista da liberdade, esse merece ser escravo [Sklave].24

IV. Considerações finais

Após termos analisado as ocorrências dos termos “Knecht” e “Skla-ve”, podemos apresentar algumas conclusões sobre o termo mais adequado para referir em português aquele indivíduo que Hegel chama de “Knecht”. O resultado a que chegamos, após analisar o texto do Sistema da vida ética, foi que o termo “escravo” parece ser a melhor alternativa de tradução, mas, com a necessidade de apontar que em um caso específico, aquele relativo à família, o termo “escravo” não se mostra em perfeita harmonia com a ca-racterização do Knecht, uma vez que tal indivíduo pode ser vendido, exceto quando possui tal condição por ser membro de uma família. Já o produ-to da análise do texto da Filosofia do Direito nos fornece um motivo mais forte para sustentarmos a opção de tradução de “Knecht” por “escravo”, e os textos dos adendos podem ser mencionados em apoio a essa opção. A conclusão final a que chegamos, se tomarmos em conta as informações de todos os textos analisados, é a de que com o termo “Knecht” Hegel refere, via de regra, aquele indivíduo que referiríamos com o termo “escravo”, mas, excepcionalmente, tal termo designa uma outra espécie de sujeição, que talvez possa ser chamada de “servidão”, dado que sua diferença, em relação à outra espécie de sujeição, é resultado de um menor grau de dominação.

23. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. The Philosophy of History. [Trad. SIBREE, John] Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1978. HW 12/174.24. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio. [Trad. MENESES, Paulo] São Paulo, Loyola, 1995. v. 3. § 435, Ad. HW 10/225.

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O Desejo e seu Outro

Luiz Henrique Vieira da Silva1

Resumo: Este artigo analisa os desdobramentos do movimento do desejo no Capítulo IV da Fenomenologia do Espírito de Hegel em todos os seus momentos para mostrar como o desejo na qualidade de movimento vai paulatinamente mudando sua característica enquanto movi-mento até atingir o ponto de sua transmudação. Esta transmudação evidencia uma dialética transformativa do desejo em trabalho e permitirá entender como surge a temática do trabalho no capítulo e obra retrocitados.Palavras-chave: Desejo, Trabalho, Consciência de si, Hegel.

Abstract: This paper examines the ramifications of the movement of desire in the Chapter IV of Hegel’s Phenomenology of Spirit in every moment of the process, in order to show how the desire as a moviment is gradually changing its caracteristics until reaches the point of its transmuting. This transmuting of desire puts in evidence a transformative dialectic of desire into work and it will allow to understand how the subject of work appears in the chapter and book already stated above.

Keywords: Desire, Work, Self-consciousness, Hegel.

I

O desejo (Begierde)2 consiste no movimento primordial da consciên-cia porque a põe como primeira forma de negatividade em relação à reali-dade que a cerca e seus objetos postos como independentes. Essa forma de negatividade leva à consciência a reflexão que traz à tona a realidade que a cerca como realidade viva e, conseqüentemente, a descoberta de que é consciência de si justamente porque existe outra consciência de si.

O processo dialético inerente ao próprio movimento do desejo (Be-gierde) gera a duplicação dos desejos que consiste na duplicação da consci-ência de si que, por sua vez, resulta na luta das consciências de si desejan-tes, a qual gera a divisão do conceito de desejo (Begierde) transformando-o em desejo (Begierde) e desejo refreado (gehemmte Begierde). O desejo re-freado (gehemmte Begierde) constitui o outro do desejo (Begierde) porque não consiste mais num movimento de pura negação que afirma a consciên-cia imediatamente no mundo; contudo, se constitui destarte na negação

1. Mestre em Filosofia (UFPR). Professor da Secretaria de Estado da Educação do Paraná – SEED/PR. Texto submetido em Junho de 2009 e aprovado para publicação em Setembro de 2009.2. A palavra alemã utilizada por Hegel para determinar o movimento inicial da Consciência no Capítulo IV da Fenomenologia do Espírito é Begierde. A palavra Begierde foi traduzida comu-mente para as línguas latinas (Francês, Espanhol e Português) como desejo, porém, a palavra desejo – no sentido geral e comum – em alemão é Wunsch; e a palavra Begierde em alemão é apetite. Manteremos aqui a tradução de Begierde como desejo, mas gostaríamos de alertar o leitor desse detalhe.

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oposta já que a sua negação consiste na transformação e produção do que lhe é dado como o oposto.

Porém, toda essa trajetória de movimento negador do desejo (Be-gierde) e as transformações geradas por ele não permitiram que o desejo (Begierde) – enquanto movimento – permaneça o mesmo, ou seja, do mes-mo modo que o desejo (Begierde) transformou os objetos que cercam a consciência de si, os objetos do desejo (Begierde) transformaram o desejo (Begierde) em um outro movimento. Ora, o que pretendemos no presente texto consiste em analisar as conseqüências do movimento do desejo (Be-gierde) sobre ele mesmo.

II

O desejo é apresentado por Hegel logo no início do Capítulo IV da Fenomenologia do Espírito como o caráter negador da consciência de si em relação à realidade que a cerca, que nada mais são que as experiências su-prassumidas pela consciência nas figuras que a precederam até aqui. Essa negação consiste na supressão entre o si da consciência e a realidade que a cerca.

Para a consciência-de-si, portanto, o ser-Outro é como um ser, ou como momento diferente; mas para ela é também a unidade de si mesma com essa diferença, como segundo momento diferente. Com aquele primeiro momento, a consciência-de-si é como consciência e para ela é manti-da toda a extensão do mundo sensível; mas ao mesmo tempo, só como referida ao segundo momento, a unidade da consciência de si consigo mesma. Por isso, o mundo é para ela um subsistir, mas que é apenas um fenômeno, ou diferença que não tem em si mesma nenhum ser. Porém essa oposição, entre seu fenômeno e sua verdade, tem por sua essência somente a verdade, isto é, a unidade da consciência de si consigo mesma. Essa unidade deve vir a ser essencial a ela, o que significa: a consciência de si é desejo, em geral3. (Hegel, G. W. F. Fenomenologia do Espírito. §167, p. 136, 2007).

A consciência desejante constitui a própria consciência de si e a trans-forma em um objeto duplo para si: a realidade que a cerca como oposição a ser negada e a própria consciência que se coloca como a verdade nessa oposição perante essa realidade que a cerca e da qual ela enquanto movi-mento deve suprassumir na busca da igualdade consigo mesma que é sua única verdade.

3. “Es ist hiemit für es das Anderssein, als ein Sein, oder als unterschiedenes Moment; aber es ist für es auch die Einheit seiner selbst mit diesem Unterschiede, als zweites unterschiedenes Moment. Mit jenem ersten Moment ist das Selbstbewusstsein als Bewusstsein, und für es die ganze Ausbreitung der sinnlichen Welt erhalten; aber zugleich nur als auf das zweite Moment, die Einheit des Selbstbewusstseins mit sich selbst, bezogen; und sie ist hiemit für es ein Beste-hen, welches aber nur Erscheinung, oder Unterschied ist, der an sich kein Sein hat. Dieser Ge-gensatz seiner Erscheinung und seiner Wahrheit hat aber nur die Wahrheit, nämlich die Einheit des Selbstbewusstseins mit sich selbst, zu seinem Wesen; diese muss ihm wesentlich werden; das heisst, es ist Begierde überhaupt.” (Hegel, G. W. F. Phänomenologie des Geistes, p. 121. 2006).

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A consciência tem de agora em diante, como consciência de si, um duplo objeto: um, o imediato, o objeto da certeza sensível e da percepção, o qual porém é marcado para ela com o sinal do negativo; o segundo objeto é justamente ela mesma, que é essência verdadeira e que de início só está presente na oposição ao primeiro objeto. A consciência-de-si se apresenta aqui como o movimento no qual essa oposição é suprassumida e onde a igualdade consigo mesma vem-a-ser para ela4 (Ibidem. §167 p. 136-137. 2007).

A consciência desejante inicia seu afã5: o desejo lança-se sobre a realidade circundante para marcá-la com a negação, ou seja, a consciência quer a todo custo suprimir esta realidade, esvaziá-la para poder encher-se dela, apropriar-se e tornar-se a sua verdade6. Contudo, a consciência desejante é movimento e, como todo movimento, constitui uma ação direta em seu objeto. Essa ação negadora do desejo desdobra-se no objeto que se reflete pela ação imposta a ele e, assim, como o desejo é reflexão sobre a consciência, ele traz essa reflexão ao objeto que já não constitui o que a consciência anteriormente o tinha conhecido. Esse objeto se apresentará à consciência como objeto vivo.

Para nós, ou em si, o objeto que para a consciência-de-si é o negativo, retornou sobre si mesmo, do seu lado; como do outro lado, a consciência também [fez o mesmo]. Mediante essa reflexão-sobre-si, o objeto veio-a-ser vida. O que a consciência-de-si diferencia de si como essente não tem apenas, enquanto é posto como essente, o modo da certeza sensível e da percepção, mas é também Ser refletido sobre si; o objeto do desejo imediato é um ser vivo7. (Ibidem §168, p. 137, 2007).

A vida tal como surge da reflexão causada pelo desejo pode ser en-

4. “Das Bewusstsein hat als Selbstbewusstsein nunmehr einem gedoppelten Gegenstand,den einen, den unmittelbaren, den Gegenstand der sinnlichen Gewissheit und des Wahrnehmens, der aber für es mit dem Charakter des Negativen bezeichnet ist, und den zweiten, nämlich sich selbst, welcher das wahre Wesen, und zunächst nur erst im Gegensatze des ersten vorhanden ist. Das Selbstbewusstsein stellt sich hierin als die Bewegung dar, worin dieser Gegensatz auf-gehoben, und ihm die Gleichheit seiner selbst mit sich wird.“ (Hegel, G. W. F. Phänomenologie des Geistes, p. 121-12. 2006).5. Utilizaremos o termo afã em troca da palavra trabalho ou lida compreendida em sua ma-neira comum e cotidiana.6. “Ora, o que é o Eu do desejo – O Eu do homem faminto, por exemplo – se não um vazio ávido de conteúdo, um vazio que quer preencher-se com o que é cheio, preencher-se esvaziando esse cheio, colocar-se – uma vez preenchido – no lugar desse cheio, ocupar por seu cheio o vazio formado pela supressão do cheio que não era o seu? Logo, de modo geral: se a filosofia verda-deira (absoluta) é – diferentemente da filosofia kantiana e da pré-kantiana, que são filosofias da consciência – uma filosofia da consciência-de-si uma filosofia consciente de si, prestando contas de si, justificando a si própria, sabendo que é absoluta e revelando-se como tal a si mesma, é preciso que o filósofo, é preciso que o homem seja, no fundo de seu Ser, não apenas contemplação passiva e positiva, mas também desejo ativo e negador.” (Kojève. A, Introdução à leitura de Hegel. p. 162. 2002).7. “Der Gegenstand, welcher für das Selbstbewusstsein das Negative ist, ist aber seinerseits für uns oder an sich ebenso in sich zurückgegangen als das Bewusstsein andererseits. Er ist durch diese Reflexion in sich Leben geworden. Was das Selbstbewusstsein als seiend von sich unterscheidet, hat auch insofern, als es seiend gesetzt ist, nicht bloss die Weise der sinnlichen Gewissheit und der Wahrnehmung an ihm, sondern es ist in sich reflektiertes Sein, und der Gegenstand der unmittelbaren Begierde ist ein Lebendiges.“ (Hegel, G. W. F. Phänomenologie des Geistes, p. 122. 2006).

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tendida como retorno reflexivo do ser sobre si mesmo, isto é, a vida con-siste num infinito movimento de conservação e superação das diferenças, mas também geração e colocação das diferenças. A vida neste momento é o puro movimento das diferenças na unidade que as suprassume ou “a es-sência simples do tempo que tem, nessa igualdade-consigo-mesma, a figura sólida do espaço”8 (Ibidem, §169, p. 137. 2007). Entender a vida como o processo que resultou da reflexão causada pelo movimento do desejo sig-nifica compreender duas características de um único movimento: a ação conservadora que une e pacifica constitui-se na ação que separa, dissolve e põe o diferente. A vida fundamenta o ciclo do desenvolvimento gerando o desenrolamento evolutivo das figuras9.

Esse movimento unitário de suprassunção do diferente denominado vida nada mais é que o subsistir ou a substância das diferenças e, por isso, as diferenças nelas ocorrem como membros que portam o puro movimento da sua unidade em si mesmos e a diferença deles uns com os outros é o puro movimento. Os membros independentes da unidade da vida são para si ou movimento negativo, o que equivale a dizer: são outras consciências.

A consciência desejante na persistência do movimento de seu desejo continuará negando seu objeto para que possa continuar a busca pela sua verdade, mas quanto mais ela busca a satisfação do seu desejo mais ela ex-perimenta de si no outro. Esta experiência desencadeada com a ação nega-tiva do desejo traz cada vez mais à tona para a consciência a sua verdade. Porém, a consciência desejante ainda não se fez cônscia de que esse objeto vivo no qual ela imprime seu desejo para eliminá-lo como o outro entre ela e sua verdade é apenas outro que ela mesma, isto é, o único objeto vivo que tem a capacidade de suportar o desejo alheio e tornar-se reflexão a partir da consciência de si consiste em outra consciência de si. A experiência do desejo foi encontrar outro desejo, o que equivale dizer que a consciência experimentou a independência de seu objeto.

A consciência-de-si não pode assim suprassumir o objeto através de sua relação negativa para com ele; pois essa relação antes reproduz o objeto, assim como o desejo. De fato, a essência do desejo é um Outro que a con-sciência-de-si; e através de tal experiência essa verdade veio-a-ser para a consciência. Porém, ao mesmo tempo, a consciência-de-si é também ab-solutamente para si, e é isso somente através do suprassumir do objeto; suprassumir que deve tornar-se para a consciência-de-si sua satisfação, pois ela é sua verdade. Em razão da independência do objeto, a consciên-

8. “(...) das einfache Wesen der Zeit, das in dieser Sichselbstgleichheit die gediegene Gestalt des Raumes hat.“ (Hegel, G. W. F. Phänomenologie des Geistes, p. 122-123. 2006).9. Esta caracterização da interpretação da vida – do modo como Hegel a apresenta no capítulo IV da Fenomenologia do Espírito – de geração ou auto geração das figuras é evidente para Siep em seu livro sobre a Fenomenologia como vemos na seguinte passagem: “(...) Leben ist ein noch gegenständliche gedachtes »Unterscheiden des nicht zu Unterscheidenden «, ein Prozess des Gestaltens bzw. der (» autopoietischen «) Selbstgestaltungen und der Auflösung dieser Gestaltungen in den Prozessen der Selbsterhaltung und der Reproduktion der Gatung.“ (Siep, L. Der Weg der Phänomenologie des Geistes, p. 100. 2000). “A vida é um objetivo pensado da “diferença da não diferença”, um processo das figuras, isto é, da (“autopoiesis”) auto orga-nização e da dissolução dessa organização no processo de auto conservação e reprodução da espécie.” (Siep, L. O caminho da Fenomenologia do Espírito, p. 100. 2000).

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cia de si só pode alcançar satisfação quando esse objeto leva a cabo a

negação de si mesmo, nela; e deve levar a cabo em si tal negação de si mesmo, pois é em si o negativo, e deve ser para o Outro o que ele é. Mas quando o objeto é em si mesmo negação, e nisso é ao mesmo tempo in-dependente, ele é consciência10 (Ibidem §175 p. 141. 2007).

Agora, a consciência de si tem no seu objeto outra consciência de si ou o que equivale a dizer: o desejo tem por objeto outro desejo. Isto ocorre porque o desejo que consome o objeto (a coisa) não se satisfaz plenamente com isso por que essa coisa consumida some, deixa simplesmente de existir em si e não retorna. Este findar-se do objeto sem retorno impede a comple-ta realização da consciência de si que visa suprimir a realidade que a cerca para ser a verdade da relação com esta realidade. O desejo – este caráter negativo da consciência de si – busca na negação a relação da consciência de si para com o mundo. Ora, toda relação pressupõe duas ou mais partes iguais, o que significa que a busca do desejo ao consumir o mundo procura outro desejo diferente dele, mas que ao mesmo tempo seja igual a ele e, por isso, o desejo só se realiza em sua plenitude num outro desejo11.

A partir de agora temos uma consciência de si para uma consciência de si, ou podemos dizer que a consciência de si encontra sua realização efe-tiva mediante outra consciência de si. De acordo com Hegel (2007, p. 144), “por conseguinte, o agir tem duplo sentido, não só enquanto é agir quer sobre si mesmo, quer sobre o outro, mas também enquanto indivisamente é o agir tanto de um quanto do outro”12.

Dessarte, essa relação entre desejos desencadeia um novo momen-to reflexivo da consciência sobre ela mesma. Num primeiro momento, a consciência desejante reconhece outra consciência desejante e vice-versa

10. “Das Selbstbewusstsein vermag also durch seine negative Beziehung ihn nicht aufzuheben; es erzeugeugt ihn darum vielmehr wieder, so wie die Begierde. Es ist in der Tat ein anderes, als das Selbstbewusstsein, das Wesen der Begierde und durch diese Erfahrung ist ihm selbst diese Wahrheit geworden. Zugleich aber ist es ebenso absolut für sich, und ist dies nur durch Aufhe-ben des Gegenstandes, und es muss ihm seine Befriedigung werden, denn es ist die Wahrheit. Um der Selbstständigkeit des Gegenstandes willen kann es daher zu Befriedigung nur gelengen, indem dieser selbst die Negation an ihm vollzieht; und er muss diese Negation seiner selbst an sich vollziehen, denn er ist an sich das Negative, und muss für das andre sein, was er ist. In-dem er die Negation an sich selbst ist, und darin zugleich selbstständig ist, ist er Bewusstsein.“ (Hegel, G. W. F. Phänomenologie des Geistes, p. 126. 2006).11. “Para que haja consciência de si, para que haja filosofia, é preciso que haja transcendên-cia de si com referência a si como dado. E isso só é possível, segundo Hegel, se o desejo se dirige não a um Ser dado, mas a um não-ser. Desejar o Ser é preencher-se desse Ser dado, é sujeitar-se a ele. Desejar o não-ser é libertar-se do Ser, é realizar a própria autonomia, a liberdade. Para ser antropogênico, o desejo deve dirigir-se a um não-ser, isto é, a um outro desejo, a um outro vazio ávido, a um outro Eu. Pois o desejo é ausência de ser (ter fome é estar privado de alimento): um nada que nadifica no Ser, e não um Ser que é. Em outros termos, a ação destinada a satisfazer um desejo animal, que se dirige a uma coisa dada, existente, nunca chega a realizar um Eu humano, consciente de si. O desejo só é humano – ou mais exatamente humanizante, antropogênico – se for orientado para um outro desejo e para um outro desejo.” (Kojève. A. Introdução à leitura de Hegel. p. 162. 2002).12. “Das Tun ist also nicht nur insofern doppelsinnig, als es ein Tun ebensowohl gegen sich als gegen das andre, sondern auch insofern, als es ungetrennt ebensowohl das Tun des Einen als des Andern ist.“ (Hegel, G. W. F. Phänomenologie des Geistes, p. 129. 2006).

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porque ambas se encontraram na realidade que consumiam ou apropria-vam-se. Identificaram-se como semelhantes, mas semelhantes que tem a verdade de si no outro e conseqüentemente se apresentam como a media-ção para a realização do si do outro de modo recíproco e mútuo.

(...) Cada extremo é para o Outro o meio-termo, mediante o qual é con-sigo mesmo mediatizado e concluído; cada um é para si e para o Outro, essência imediata para si essente; que ao mesmo tempo só é para si através dessa mediação. Eles se reconhecem como reconhecendo-se re-ciprocamente13. (Ibidem §184 p. 144. 2007).

O movimento reflexivo que agora observamos nos põe em evidência o conceito de reconhecimento (Anerkennen). O reconhecimento (Anerken-nen), para Hegel, é o momento que traz à tona o conceito do espírito porque ambas as consciências de si consentem em se tratar como consciências de si iguais. Ao admitirem a igualdade uma da outra abre-se a possibilidade da liberdade pois só a liberdade torna possível a igualdade das consciências de si. Esse processo resulta em um silogismo no qual as consciências de si se apresentam como extremos livres sendo o termo médio entre eles o reco-nhecimento.

Contudo, o reconhecimento (Anerkennen) não traz consigo somen-te essa estrutura silogística de explicação da formação da consciência de si em um de seus movimentos dialéticos ou momento de reflexão sobre si mesma, mas, antes, carrega consigo todo um desenvolvimento histórico e função social de grande importância para Hegel. O conceito de reconheci-mento (Anerkennen) tem uma derradeira finalidade (télos) na filosofia de Hegel, porque envolve a compreensão do direito moderno, da moralidade, da religião e da política, o que equivale dizer: as figuras constituintes do espírito objetivo. Mesmo a Fenomenologia do Espírito sendo parte constitu-tiva do espírito subjetivo, ela traz em sua estrutura – em grande parte pelo conceito de reconhecimento – elementos do espírito objetivo14. Obviamente, os elementos de que falamos agora, não estão presentes em sua plenitude no capítulo IV da Fenomenologia do Espírito e, por vezes, estão apenas su-bentendidos na exposição do texto ou da argumentação hegeliana.

13. “(...) Jedes ist dem andern die Mitte, durch welche jedes sich mit sich selbst vermittelt und zusammenschliesst, und jedes sich und dem andern unmittelbares für sich seiendes Wesen, welches zugleich nur durch diese Vermittlung so für sich ist. Sie anerkennen sich, als gegensei-tig sich anerkennend.“ (Hegel, G. W. F. Phänomenologie des Geistes, p. 129. 2006).14. A tese de que o conceito de reconhecimento traz consigo elementos do espírito objetivo ou prático na Fenomenologia do Espírito – inclusive no capítulo IV, no qual o reconhecimento não se realiza plenamente – é evidenciada por Siep como podemos observar na seguinte pas-sagem: “(...) Die »Bewegung des Anerkennens« ist dabei nicht auf den Kampf um Anerkennung beschränkt. Sie ist vielmehr das »Telos«, das Ziel, das durch alle Entwicklungsstufen des prak-tischen Geistes erreicht werden soll und erst im letzten Kapitel der Phänomenologie jedenfalls in den Grundzügen erreicht wird. Historisch bedeutet das, dass Hegel in einem bestimmten Verständnis des modernen Rechts, der Moralität und der Religion den Begriff der Anerkennung verwirklich sieht.“ (Siep, L. Der Weg der Phänomenologie des Geistes, p. 98-99. 2000). ”(...) O movimento do reconhecimento não é apenas limitado pela luta por reconhecimento. Ele consiste, antes de mais nada, no télos, na derradeira finalidade, que deve ser atingida pelas etapas do desenvolvimento do espírito objetivo e apenas no último capítulo da Fenomenologia, pelo menos, em seu fundamento será alcançado.” (Siep, L. O caminho da Fenomenologia do Espírito, p. 98-99. 2000).

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Ora, se o conceito de reconhecimento traz consigo esta certa carga histórica e função social, ele não se reduz somente a uma estrutura lógica silogística assim como não é somente uma simples duplicação de consciên-cias, no sentido de uma pluralidade simples deslocada do real. No entanto, o reconhecimento requer uma pluralidade constituinte das consciências de si, uma relação entre eu e você ou entre nós e eu. “(...) Eu, que é Nós, Nós que é Eu.” (Ibidem §177 p. 142. 2007)15.

Esta relação constituinte das consciências de si consiste na formação da intersubjetividade da consciência de si16. A constituição desta intersub-jetividade da consciência de si recoloca consistentemente a função social implícita no reconhecimento porque põe recíproca e mutuamente a relação das consciências de si como coletiva e correspondente ao espírito. A corre-spondência ao espírito coloca a história, e a coletividade – a pluralidade de eus que se relacionam mútua e reciprocamente – coloca as relações sociais desenvolvidas pela humanidade (Menschheit) nas suas mais variadas for-mas.

Deste modo, a intersubjetividade trará à tona um momento outro que o reconhecimento. O movimento mútuo e recíproco entre as consciências de si juntamente com a carga histórica e a coletividade postas transformarão o reconhecimento no seu contrário, levando a consciência a experimentar as figuras das relações sociais desenvolvidas pela história humana (Men-schheitgeschichte) durante a sua jornada em busca da verdade de seu si ou a certeza de si mesma.

Essa busca da verdade de si no outro nos conduz ao segundo mo-mento que se caracteriza pela desigualdade entre eles. A desigualdade entre os desejos vem da sua própria característica negadora, pois os dois buscam ser reconhecidos como iguais no outro, numa relação que procura afirmar-se como verdade no outro pela supressão do outro. Ora, uma relação de afir-mação que requer a supressão ou negação do outro, não pode se estabelecer como igual ao outro, pois a sua igualdade está na supressão desse outro e, assim, este desejo de reconhecimento dos desejos transformar-se-á em seu contrário tornando-se disputa pelo reconhecimento, ou uma desigualdade impressora de igualdade.

Consideremos agora este puro conceito do reconhecimento, a duplicação da consciência-de-si em sua unidade, tal como seu processo se manifesta para a consciência-de-si. Esse processo vai apresentar primeiro o lado da desigualdade de ambas [as consciências-de-si] ou o extravasar do meio-termo nos extremos, os quais, como extremos, são opostos um ao outro;

15. ”(...) Ich, das Wir, und Wir, das Ich ist.“ (Hegel, G. W. F. Phänomenologie des Geistes, p. 127. 2006).16. Siep faz menção ao primeiro Fichte, da obra Grundlage des Naturrechts nach Prinzipien der Wissenschaftslehre von 1796/97, e apresenta semelhanças entre Fichte e Hegel na questão da intersubjetividade da consciência de si. C.f. (Siep, L. Der Weg der Phänomenologie des Geistes, p. 99. 2000).

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um extremo é só o que é reconhecido; o outro, só o que reconhece17 (Ibi-dem §185 p. 144. 2007).

Nessa busca dialética pelo reconhecimento os desejos se transforma-ram em impositores de reconhecimento, o que desfalece o reconhecimento enquanto tal e nos põe o seguinte impasse: como um desejo se realiza no outro se essencialmente seu puro movimento é o negar do outro? A alterna-tiva mais plausível para esse impasse consiste no enfrentamento dos dese-jos entre si, ou seja, eles devem levar a cabo a pura negatividade que são e um suprimirá o outro.

Esta apresentação é o agir duplicado: o agir do Outro e o agir por meio de si mesmo. Enquanto agir do Outro, cada um tende, pois, à morte do Outro. Mas aí está também presente o segundo agir, o agir por meio de si mesmo, pois aquele agir do outro inclui o arriscar a própria vida. Portanto, a rela-ção das duas consciências-de-si é determinada de tal modo que elas se provam a si mesmas e uma a outra através de uma luta de vida e morte18 (Ibidem §187 p. 145. 2007).

Esta luta que os desejos travam para realizarem seu movimento pela supressão do outro implicará na negação da essência do outro, isto é, eles lutaram visando a negação absoluta e completa do outro ou a morte do outro. O desejo somente será desejo se outro desejo não for mais desejo e a forma imediata do desaparecimento do outro desejo apresenta-se na forma imediata da morte. Ambos os desejos se apegaram na imediatez da forma da morte e se dispõem a matar o outro ou morrer e partem para a realização desta imediatez. Mas essa luta que põe em jogo a vida natural dos desejos pela forma imediata da morte e não realiza aquilo que o desejo quer, pois como vimos anteriormente, o desejo só se realiza em relação com outro desejo, isto é, uma consciência de si se relacionando com outra consciência de si. A morte, portanto, não realiza uma relação e sim a impede porque a morte do outro desejo traz à tona a total impossibilidade da relação, pois aquilo que é morto não se relaciona com nada. A morte não é o que o desejo da consciência de si deseja.

Entretanto, essa comprovação por meio da morte suprassume justamente a verdade que dela deveria resultar, e com isso também [suprassume] a certeza de si mesmo em geral. Com efeito, como a vida é a posição natu-ral da consciência, a independência sem a absoluta negatividade, assim a morte é a negação natural desta mesma consciência, a negação sem a independência, que assim fica privada da significação pretendida no re-conhecimento19 (Ibidem §188 p. 146. 2007).

17. “Dieser reine Begriff des Anerkennens, der Verdoplunng des Selbstbwusstseins in seiner Einheit, ist nun zu betrachten, wie sein Prozess für das Selbstbewusstsein erscheint. Er wird zuerst die Seite der Ungleichheit beider darstellen, oder das Heraustreten der Mitte in die Ext-reme, welche als Extreme sich entgegengesetzt, und das eine nur Anerkanntes, [das] andre nur Anerkennendes ist. (Hegel, G. W. F. Phänomenologie des Geistes, p. 129. 2006).18. “(...) Diese Darstellung ist, das gedoppelte Tun; Tun des andern, und Tun durch sich selbst. Insofern es Tun des andern ist, geht also jeder auf den Tod des andern. Darin aber ist auch das zweite, das Tun durch sich selbst, vorhanden; denn jenes schliesst das Daransetzen des eignen Lebens in sich. Das Verhältnis beider Selbstbewusstsein ist also so bestimmt, dass sie sich selbst und einender durch den Kampf auf Leben und Tod bewähren. (Hegel, G. W. F. Phän-omenologie des Geistes, p. 130. 2006).19. “Diese Bewährung aber durch den Tod hebt eben so die Wahrheit, welche daraus hevorge-

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Ao travar a luta de vida ou morte os desejos apenas realizam a ime-diatez da morte que nunca os levará à relação almejada por ambos, e um dos desejos intuirá essa impossibilidade de relação pela imediatez da morte e deixará de levar essa luta a cabo para se colocar fora da disputa e ceder de imediato ao outro desejo. Com essa decisão tomada por uma das consciên-cias desejantes, o desejo entrará numa outra dialética que consistirá em dois tipos de desejo: uma das consciências desejantes se mostrará apegada à negação imediata da realidade que a cerca e a outra consciência desejante se apresentará na forma reprimida, isto é, ao ceder à outra consciência desejante que se apegou à negação imediata da realidade, ela – consciência desejante cedente – ficou impedida de realizar a satisfação do desejo e, por isso, o reprimiu e não o realizou por completo. Essas consciências dese-jantes são respectivamente o senhor – consciência que realiza o desejo – e o escravo – consciência que foi obrigada a refrear seu desejo.

Nessa nova dialética das consciências de si, o desejo fará a experiên-cia da descoberta de transformação do seu outro porque uma das consciên-cias abriu mão da realização de seu desejo e já se pôs na forma de desejo refreado (gehemmte Begierde), ou seja, um desejo que já não é igual ao outro. Dessa maneira teremos dois movimentos distintos: uma consciência de si se afirmando a partir da negação imediata da realidade que a cerca e realizando sua satisfação no gozo desse movimento, e a outra reconhecendo essa consciência de si como legítima, mas impossibilitada de reconhecimento pela outra que a impediu de realizar seu desejo e, por isso, não a reconhece como desejo e sim como uma das coisas que foram negadas.

Quando as consciências de si se colocaram como extremos difer-entes assumindo as figuras de senhor e escravo, entramos num dos campos históricos sociais importantes para Hegel. Pela primeira vez, a consciência de si experimentará a si mesma e ao outro numa ação concreta de uma for-ma de relação social. Essa forma de relação social – senhor e escravo – per-mitirá a consciência de si realizar de maneira concreta tudo o que foi intuído no reconhecimento (Anerkennen) e nesse processo modificará a natureza do movimento do desejo (Begierde) transformando-o em um novo movimento vinculante com a realidade, que trataremos a partir desse momento.

III

A consciência de si desejante que se pôs na figura do senhor e apar-entemente se realiza no gozo e satisfação de seu desejo, constitui a consciên-cia desejante que mais se afasta do desejo de reconhecimento (Anerkennen) que a consciência desejante almejava: ser reconhecida por outra consciên-cia de si. Isto ocorre porque a consciência desejante do senhor se satisfaz com a mera negação imediata da realidade que é o consumo do objeto,

hen sollte, als damit auch die Gewissheit seiner selbst überhaupt auf; denn wie des Leben die natürliche Position des Bewusstseins, die Selbstständigkeit ohne die absolute Negativität, ist, so ist er die natürliche Negation desselben, die Negation ohne die Selbstständigkeit, welche also ohne die gefordete Bedeutung des Anerkennens Bleibt.“ (Hegel, G. W. F. Phänomenolo-gie des Geistes, p. 131. 2006).

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mas esse consumo simples que gera a satisfação imediata do desejo pelo gozo e afirma imediatamente a consciência faz justamente o contrário, isto é, não realiza o desejo de reconhecimento (Anerkennen) pressuposto pelas consciências porque não reconhece a outra como consciência e apega-se no gozo do simples consumo.

Esse apego ao gozo do simples consumo consiste na radicalidade mais contraditória em relação à essência da consciência de si porque no consumo simples a consciência realiza o desejo natural, ou seja, um desejo apegado ao mundo natural e, por isso, dependente dele20. Deste modo, o desejo que se satisfaz apenas com o consumo – simples negação da natur-eza – torna-se uma espécie de prisioneiro da vida natural, isto é, gera uma vinculação com o mundo que o cerca de maneira imediata (biológica), que se torna um ciclo vicioso de dependência com o mundo natural; e a cada satisfação e gozo permanece mais enraizado na natureza, na vida natural que desejava abolir.

A consciência desejante que figura como senhor torna-se o contrário daquilo que se pretende já que o movimento do desejo realizado por ela apresenta-se como um movimento de negação que afirma de imediato o contrário do que deveria ser: o caráter negador da consciência de si em relação à realidade que a cerca e a supressão entre o si da consciência e a realidade que a cerca. O desejo do senhor não se apresentou como o caráter negador da consciência em relação à realidade que a cerca, mas sim afirmou essa realidade de maneira imediata e ignorou o reconhecimento da outra consciência. O desejo, tal como se desenvolveu até a figura do senhor, apenas gerou para a consciência de si uma afirmação ou vinculo imediato para com o mundo que a cerca, contudo não suprimiu esta realidade para que a consciência realize seu si, ou seja, o desejo da maneira pela qual foi apresentado até aqui não constitui aquilo que a consciência de si é essen-cialmente.

Todavia, resta-nos analisar o desejo que se transformou em desejo refreado (gehemmte Begierde) durante esta dialética realizada pelas con-sciências. A consciência desejante que se apresenta sob a figura do escravo foi obrigada a renunciar o gozo e a plena satisfação do desejo já que não es-tava disposta a negar a vida na forma imediata da morte e, por isso, tornou-

20. “O desejo animal – a fome, por exemplo, e a ação dela decorrente – nega, destrói o dado natural. Ao negá-lo, ao modificá-lo, ao fazê-lo seu, o animal eleva-se acima desse dado. Se-gundo Hegel, o animal, quando come a planta, realiza e revela sua superioridade sobre ela. Mas porque se alimenta de plantas, o animal depende delas e, por isso, não chega a superá-las de fato. De modo geral, o vazio ávido – ou o Eu – que se reserva pelo desejo biológico só se pre-enche – pela ação biológica dele decorrente – com um conteúdo natural, biológico. O Eu, ou o pseudo-Eu, realizado pela satisfação ativa desse desejo, é, pois tão natural, biológico, material, quanto àquilo que atrai o desejo e a ação. O animal só se eleva acima da natureza negada em seu desejo animal para nela recair imediatamente quando satisfaz esse desejo. Assim, o animal só chega ao sentimento de si (Selbst-gefühl), mas não à consciência-de-si (Selbestbewusst-sein); isto é, ele não pode falar de si, dizer: “Eu...”. E isso porque ele não transcende realmente a si mesmo como dado, isto é, como corpo; ele não se eleva acima de si para poder voltar para si: ele não tem distanciamento em relação a si, para poder contemplar-se.” (Kojève. A. Intro-dução à leitura de Hegel. p. 163. 2002).

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se um desejo refreado (gehemmte Begierde). Ora, o início da consciência de si caracteriza o desejo como um movimento negador que busca inces-santemente a supressão do outro ou a realidade que cerca a consciência de si. A partir dessa caracterização do desejo, ele categorialmente não pode ser refreado porque um movimento negador consiste em aniquilar o que tenta refrea-lo, impedi-lo ou se opor a ele de alguma forma ou não seria movi-mento negador. Deste modo, este desejo que veio-a-ser refreado apenas assim tornou-se porque já se reconstituiu num outro movimento resultante da dialética anterior e, apesar de aparecer como um desejo requalificado, já não consiste mais como desejo.

Este outro movimento do desejo – o desejo refreado (gehemmte Begierde) – transformou-se em um movimento negador que se diferencia e realiza uma negação contrária à negação do desejo (Begierde). Esse novo movimento negador – desejo refreado (gehemmte Begierde) – estabelece uma nova relação com o objeto negado que o transforma e permite sua per-manência, isto é, ao negar o objeto, ele produz num novo objeto porque criou este objeto antes de consumi-lo, o que equivale a dizer: o desejo refreado (gehemmte Begierde) transformou-se em trabalho (Arbeit). O trabalho (Ar-beit) constitui essa relação negativa que cria uma relação permanente com a realidade em torno da consciência de si desejante; que estabelece uma relação vinculante com a realidade que, por isso, se torna a realidade da consciência de si e não apenas consumo imediato ou destruição da natureza como foi realizada pelo desejo, em sua representação máxima que consiste na figura do senhor, que não permite a relação permanente, mas apenas dependente e evanescente.

(...) No momento que corresponde ao desejo na consciência do senhor, parecia caber a consciência escrava o lado da relação inessencial para com a coisa, porquanto ali a coisa mantém sua independência. O desejo se reservou o puro negar do objeto e por isso o sentimento-de-si-mesmo, sem mescla. Mas essa satisfação é pelo mesmo motivo, apenas um eva-nescente, já que lhe falta o lado objetivo ou o subsistir. O trabalho, ao contrário, é desejo refreado, um desvanecer contido, ou seja, o trabalho forma. A relação negativa para com o objeto torna-se a forma do mesmo e algo permanente, porque justamente o objeto tem independência para o trabalhador. Esse meio termo negativo ou agir formativo é, ao mesmo tempo, a singularidade, ou o puro ser para si da consciência, que agora no trabalho se transfere para fora de si no elemento do permanecer; a consciência trabalhadora, portanto, chega assim à intuição do ser inde-pendente como intuição de si mesma21. (Ibidem, §195 p. 150).

21. “(...) In dem Momente, welches der Begierde im Bewusstsein des Herrn entspricht, schien dem dienenden Bewusstsein zwar die Seite der unwesentlichen Beziehung auf das Ding zugefal-len zu sein, indem das Ding darin seine Selbstständigkeit behält. Die Begierde hat sich das reine Negieren des Gegenstandes, und dadurch das unvermischte Selbstgefühl vorbehalten. Diese Befriedigung ist aber deswegen selbst nur ein Verschwinden, denn es fehlt ihr die gegeständli-che Seite oder das Bestehen. Die Arbeit hingegen ist gehemmte Begierde, aufgehaltenes Ver-schwinden, oder sie bildet. Die negative Beziehung auf den Gegensand wird zur Form dessel-ben, und zu einem Bleibenden; weil eben dem Arbeitenden der Gegenstand Selbstständigkeit hat. Diese negative Mitte oder das formierende Tun ist zugleich die Einzelnheit oder das reine Fürsichsein des Bewusstseins, welches nun in die Arbeit ausser es in das Element des Bleibens tritt; das arbeitende Bewusstsein kommt also hiedurch zur Anschauung des selbstständigen Seins, als seiner selbst.“ (Hegel, G. W. F. Phänomenologie des Geistes, p. 135. 2006).

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O conceito de desejo refreado (gehemmte Begierde) contido na fi-gura do escravo consiste dessarte no conceito de trabalho (Arbeit), pois o movimento de negação que nega o desejo por ser outro movimento negativo que não destrói simplesmente o objeto desejado, mas o transforma em algo novo permitindo sua durabilidade e assim criando um mundo para a consci-ência de si, apenas acontece quando se trabalha o objeto e não meramente o consome.

O trabalho (Arbeit) se constitui na transmudação do desejo (Begier-de), o que significa dizer: o trabalho (Arbeit) consiste no resultado da re-flexão da negatividade do desejo sobre si mesmo enquanto movimento ne-gador que ao negar seu objeto o transforma lhe imprimindo negatividade, e ele – desejo (Begierde) –, sofre o retorno do movimento que imprimiu ao objeto. Ora, se o desejo (Begierde) sofre as conseqüências da sua negativi-dade, ele deve transformar-se assim como os objetos que recebem sua ação negativa se transformam. Porém, como ele é movimento ativo, sua trans-formação não é apenas figurativa e sim uma passagem condicionante de sua ação transformadora, ou seja, trabalho (Arbeit) fornece aos objetos e, obviamente, à consciência de si uma nova relação de existência no mundo.

Deste modo, o processo dialético inerente ao próprio movimento do desejo ocasiona a duplicação dos desejos que consiste na duplicação da consciência de si; que, por sua vez, desemboca na luta das consciências de si desejantes, a qual gera a cisão do conceito de desejo divisando-o em de-sejo (Begierde) e desejo refreado (gehemmte Begierde). O desejo refreado (gehemmte Begierde) constitui o outro do desejo (Begierde) porque não consiste mais num movimento de pura negação que afirma a consciência imediatamente no mundo, contudo, se constitui destarte na negação oposta já que a sua negação consiste na transformação e produção do que lhe é dado como o oposto. Ora, tudo aquilo que constitui transformação, forma-ção, produção, etc., é trabalho (Arbeit) humano. O outro do desejo é o tra-balho (Arbeit)22.

Assim, a consciência de si desejante só se realiza como consciência de si em sua essência quando suprassume a forma do simples desejo – vín-culo aparente com o mundo – para a forma produtora do trabalho (Arbeit) – vínculo efetivo com o mundo da consciência de si – que intui e efetiva o si da consciência de si na realidade que a cerca.

22. A transformação do desejo em outro movimento, ou seja, em trabalho e o trabalho como formação em Hegel é assinalada por Berman no seu artigo “Formação e Romance de Formação” do qual reproduzimos apenas a seguinte passagem: “(...) « Dans la mesure où il forme (bil-det) la chose, dit le philosophe, il se forme lui même.» Le travail est donc, en tant que « désir empêché », Bildung”. (Berman, A. Bildung et Bildungsromam. p. 144. 1984) “(...) ‘’A medida que a consciência trabalha as coisas ao seu redor, ela forma a si mesma’.’ Por isso o trabalho é ‘’considerado desejo refreado’’, Bildung.” (Berman, A. Formação e Romance de Formação. p. 144. 1984).

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Obras Secundárias:

BOURGEOIS, B. Os Atos do Espírito. Trad: Paulo Neves. São Leopoldo: Edi-tora UNISINOS, 2004.

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Artigos Consultados em Periódicos:

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SUAREZ, R. Nota sobre o conceito de Bildung. Revista Kriterion, Belo Hori-zonte, n°112, p. 191-198. Dez/2005.

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Hegel e a crítica ao Estado de Natureza doJusnaturalismo moderno

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Resumo: Neste trabalho pretende-se desenvolver as seguintes teses: 1) No escrito sobre o Di-reito Natural, a questão da exterioridade da natureza já está presente, constituindo um atributo daquilo que é natural e que será desenvolvido de forma mais consistente nas obras posteriores de Hegel, sobretudo, na Enciclopédia com a formulação do conceito de natureza como a “idéia na forma do ser-outro (Andersseins)”. 2) Este modo de entender a natureza - segundo o ponto de vista de uma “outridade” que é exterior - servirá de referência às relações de dominação no campo político, nas quais os traços de naturalidade permanecem segundo o paradigma da dialética do senhor e do escravo, presentes nas concepções de estado de natureza da doutrina do Direito Natural, como a de Hobbes, reforçando a idéia hegeliana de que a “coação é violência contra um ser-aí natural.” 3) O sentido da coação como violência ou da subjugação legítima que se exerce contra aquilo que contém o elemento da exterioridade da natureza é compatível com a determinação essencial da natureza, e marca a condição da imediatidade do homem como ser natural (Naturwesen), o qual pode ser coagido.

Palavras-chave: Natureza, Jusnaturalismo, Coerção, Exterioridade, Liberdade.

Abstract: In this paper, the following theses are planned to be developed: 1) In the writing about Natural Law, the question concerning the exteriority of nature it is already present, constituting an attribute of what is natural and will be expanded in a more consistent mode in the posterior works of Hegel, especially in the Encyclopedia with the formulation of the concept of nature as a “idea in the form of other-being (Andersseins)”. 2) This way of comprehending nature – according to the point of view of an “otherty” that is exterior – will work as a reference to relations of domination in the political field, in which the traces of nature remain according to the dialectical paradigm of lord and slave, present in the concepts of state of nature of the Natural Law doctrine, just like the one in Hobbes, enforcing the Hegelian idea that “coercion is violence against one natural Being There”. 3) The sense of coercion as violence or the legitimate subjugation exerted in counter which contains the elements of exteriority of nature is compati-ble to nature essential determination, and assigns the condition of man immediacy as a natural being, which can be coerced.

Key-words: Nature, Jus Naturalism, Coercion, Exteriority, Liberty.

Em diversos momentos da sua obra, Hegel critica as teorias do Di-reito Natural Moderno. Um aspecto central destas teorias é a elaboração ficcional da condição humana num suposto estado de natureza. Para Hegel, esta ficção incorre na confusão entre aquilo que o homem é segundo o seu conceito e a sua condição natural, empírica, imediata. Se é possível falar de um começo - diz Hegel - ele se apresenta como um “estado de injustiça, de violência, de tendências não reprimidas, de atos e de sentimentos não humanos”.2

1. Professor da PUC-PR. Texto submetido em Outubro de 2009 e aprovado para publicação em Novembro de 2009.2. HEGEL, G.W.F, Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaften III. Frankfurt, Suhrkamp (Taschenbuch Wissenschaft), 1995, vol. 10, § 502.

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Esta primitiva harmonia natural enquanto condição, - continua Hegel - é uma existência que não é um estado de inocência, mas um estado de brutalidade, uma condição animal, um estado onde reinam os apetites, a barbárie. O animal não é nem bom, nem mau, mas o homem no estado animal é selvagem, mau; ele não é aquilo que deve ser; o homem no estado de natureza não é como ele deve ser; ele deve ser aquilo que ele é pelo espírito, pela luz interior, pela ciência e pela vontade daquilo que é o direito3.

O julgamento do filósofo do homem natural, como se vê, é bastante depreciativo, pois, quem obedece às suas paixões e instintos está submetido ao império do apetite, da brutalidade, do egoísmo, tem uma vida de depen-dência, de medo e quer apenas realizar instinto. Enfim, o “homem natural não é livre em relação a ele mesmo e à natureza,”4 e que a liberdade come-ça, precisamente, quando a condição natural do homem é negada.

A representação segundo a qual o homem supostamente viveria num pre-tenso estado de natureza (Naturzustand), no qual só teria carências assim chamadas naturais e só usaria para a sua satisfação meios que uma na-tureza contingente lhe outorgaria, segunda a qual viveria em liberdade no que diz respeito às carências, é uma opinião falsa5.

Segundo a sua existência imediata, o homem é nele mesmo algo natural, externo ao seu conceito; só e primeiramente pelo cultivo pleno do seu pró-prio corpo e espírito, essencialmente pelo fato de que a sua autoconsciên-cia se apreende como livre, é que ele toma posse de si mesmo e torna-se a propriedade de si mesmo e em face dos outros (...)6.

Em suma, a seguinte passagem da Enciclopédia das Ciências Filosófi-cas resume a posição crítica do filósofo a respeito do estado de natureza das teorias do Jusnaturalismo:

A expressão direito natural, que chegou a ser ordinária na doutrina filosó-fica do direito, contém o equívoco entre o direito entendido como existente de modo imediato na natureza e aquele que se determina mediante a natureza da coisa, isto é, o conceito. O primeiro sentido é aquele que teve curso outrora: assim que, ao mesmo tempo, foi inventado um estado de natureza, no qual devia valer o direito natural, e frente a este, a condição da sociedade e do Estado parecia exigir e levar em si uma limitação da liberdade e um sacrifício dos direitos naturais. Porém, em realidade, o direito e todas as suas determinações fundam-se somente na livre per-sonalidade: sobre uma determinação de si que é o contrário da determi-

3. HEGEL, G.W.F, Leçons sur la Philosophie de la Réligion. IIª Partie, (Tradução. J. Gibelin), Paris: Vrin, 1954, p. 27.4. Idem, IIIª Partie, p. 99.5. HEGEL, G.W.F, Grundlinien der Philosophie des Rechts oder Naturrecht und Staatswissen-schaft im Grundrisse, Frankfurt: Suhrkamp (Taschenbuch Wissenschaft), vol. 7, § 194, obs. A tradução dos parágrafos, anotações e adendos desta obra é de Marcos Lutz Müller, extraída das seguintes partes já publicadas: O Direito Abstrato, in: Clássicos da Filosofia: Cadernos de Tradução nº 5, IFCH/UNICAMP, Campinas, setembro de 2003; Introdução à Filosofia do Direito, in: Clássicos da Filosofia: Cadernos de Tradução nº 9, Campinas, outubro de 2003. A Socie-dade Civil, in: Clássicos da Filosofia: cadernos de tradução nº 10, Campinas, Agosto de 2005. Também foi utilizada a versão em arquivo eletrônico da tradução das Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito, disponibilizada pelo tradutor.6. Idem, § 57.

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nação natural. O direito da natureza é, por esta razão, o ser-aí da força, a prevalência da violência, - e um estado de natureza é um estado onde reinam a brutalidade e a injustiça do qual nada mais verdadeiro se pode dizer senão que é preciso dele sair. A sociedade, ao contrário, é a condição onde o direito se realiza; o que é preciso limitar e sacrificar é precisamente o arbítrio e a violência do estado natural7.

Contudo, nas Lições sobre a História da Filosofia, Hegel, citando o De Cive de Hobbes , afirma que o elemento hobbesiano de que ‘todos, no esta-do de natureza, sentem a vontade de atentar uns contra os outros’ e que o exercício da violência leva à situação de temor, é uma análise correta se um suposto estado de natureza for considerado. Diz Hegel: “Hobbes interpreta este estado em seu verdadeiro sentido e não atém num palavrório vazio acerca de um estado bom; o estado de natureza é pelo contrário, o estado animal, o estado da própria vontade não subjugada”8. O estado de natureza – continua Hegel – “é, portanto, um estado de desconfiança e de guerra de todos contra todos (bellum omnium in omnes).” O que Hegel quer salientar na referência a Hobbes é que a condição natural do homem é aquela em que “todos sentem o impulso de dominar uns aos outros”, sem que isso possa autorizar a passagem para o Estado mediante o procedimento empírico do contrato9. Há, aqui, um ponto importante que Hegel quer ressaltar na sua in-terpretação crítica do estado de natureza hobbesiano, claramente contrário à concepção do homem natural na versão do “bom selvagem” de Rousseau. Este ponto diz respeito à presença da violência neste estado, representada na luta pelo reconhecimento em relações de submissão a um senhor.

A luta do reconhecimento, e a submissão a um senhor, é o fenômeno (Ers-cheinung) do qual surgiu a vida em comum dos homens, como um começo dos Estados. A violência (Gewalt), que é fundamento nesse fenômeno, não é, no entanto, fundamento do direito, embora seja o momento necessá-

7. HEGEL. G.W.F. Enzyklopädie der Philosophischen Wissenschaften im Grundrisse, op.cit, § 502, obs.8. HEGEL. Lecciones sobre la Historia de la Filosofia. (Tradução de Wenceslao Roces), Vol. III, México: Fondo de Cultura Económica, 1995, p. 333.9. A relação de Hegel com o direito natural de Hobbes pode ser analisada a partir de alguns tex-tos que fazem referência explícita a esse filósofo, como é o caso das Lições sobre a História da Filosofia. Nessa obra, umas poucas páginas são dedicadas para comentar algumas passagens, sobretudo, do De Cive. Outros textos não são tão explícitos, mas a referência ao hobbesianismo é visível. Por exemplo, nos escritos juvenis Maneiras de Tratar Cientificamente o Direito Natural (1802/3), no Sistema da Vida Ética (1802/3), em algumas passagens da Fenomenologia do Es-pírito (1806/7), da Enciclopédia das Ciências Filosóficas (1817) e da Filosofia do Direito (1821). As Lições sobre a História da Filosofia, avaliando a obra política de Hobbes (O Leviatã, citado apenas no Cap. 13 e, principalmente, o De Cive), afirmam que ela “contêm pensamentos mais sãos acerca da natureza da sociedade e do governo do que aqueles que se achavam em curso na sua época [...]” (HEGEL. G.W.F. Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie III. Werke 20. Werke in 20 Bänden. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1971, p. 226). Estes “pensamentos sãos” constituem pontos importantes para a compreensão da política e do Estado que o filósofo inglês incorpora na sua doutrina, e que são “apropriados” por Hegel naquilo que se chamou da “correção especulativa do hobbesianismo”, na tese de Taminiaux. Alguns desses pontos são in-dicados de passagem nas Lições, outros aparecem de forma difusa no conjunto da obra de He-gel, como por exemplo: a dedução do estado político a partir de princípios imanentes inscritos na racionalidade da natureza humana, a idéia de que o estado de natureza constitui a condição natural do homem na imediatidade da sua vontade natural (sendo esta condição de violência e de domínio de uns sobre os outros), o abandono desse estado como exigência racional.

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rio e legítimo na passagem do estado da consciência-de-si submersa no desejo e na singularidade ao estado da consciência-de-si universal. É o começo exterior, ou o começo fenomênico dos Estados, não seu princípio substancial.10

Nesta passagem, e sem fazer menção explícita à sua presença, o es-tado de natureza caracteriza-se como momento marcado pela luta do reco-nhecimento, fenômeno que tem por fundamento a violência, cujo ponto de partida para o começo do Estado é meramente fenomênico. O aparecimento do Estado neste momento retrata a passagem da condição de dominação para a realização ética que tem por fundamento a liberdade, o direito e re-lações de reconhecimento que excluem a violência.

A questão da submissão e, portanto, do domínio de um homem sobre outro homem ou do soberano sobre os súditos envolve ações de coerção e, consequentemente, relações de externalidade ou de exterioridade que são próprias ao estado de natureza, pois, “a dominação e a servidão pertencem à natureza”11.

A relação do senhor ao escravo funda-se sobre uma desigualdade na força vital e é a pura particularidade – instância natural – que lhe é a essên-cia, pois o laço de dominação e servidão de uma necessidade puramente prática, isto é, daquilo que o senhor está na posse do que é fisicamente necessário à vida, enquanto que o escravo está destituído12.

Uma relação de domínio se dá em situações de exterioridade, ou que envolve a exteriorização, como, por exemplo, o corpo as posses materiais da pessoa, em relação às quais é possível exercer a violência da subjugação no sentido de dominar.

Como ser vivo o homem pode certamente ser subjugado (bezwungen), isto é, o seu lado físico e qualquer lado exterior seu pode ser submetido à violência de outros, porém a vontade livre não pode, em si e por si, ser coagida (gezwungen) (§ 5), a não ser na medida em que ela não se retira a si mesma da exterioridade (Äusserlichkeit) na qual ela é retida, ou da representação desta (§ 7). Somente pode ser coagido a algo aquele que quer se deixar coagir (zwingen)13.

O direito a um tal bem inalienável é imprescritível, pois o ato pelo qual tomo posse da minha personalidade e da minha essência substancial, pelo qual faço de mim um ser capaz de direito e imputável, um ser moral, re-ligioso, subtrai essas determinações precisamente à exterioridade, que, ela só, as tornava suscetíveis de estarem na posse de um outro. ... Este retorno de mim em mim mesmo, pelo qual me torno existente enquanto

10. HEGEL, G.W.F, Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaften, op. cit. § 433, obs.11. HEGEL, G.W.F, Système de la Vie Éthique (Tradução J. Taminiaux), Paris : Payot, 1976, p. 140.12. Idem , p. 60.13. HEGEL. G.W.F, Philosophie des Rechts, op. cit., § 91. Ao ressaltar a “assimetria entre a vontade na sua relação interna a si e a vontade na sua relação a outras vontades , para as quais ela é no seu ser-aí”, Müller observa que esta assimetria leva Hegel “à distinção entre ‘subjugar’ (bezwingen) e ‘coagir’ (zwingen), segundo a qual o homem ‘enquanto ser vivo pode ser subju-gado’ (bezwungen), i. é, ele pode na sua exterioridade padecer violência física, ao passo que ‘a sua vontade livre não pode em si e por si, ser coagida (gezwungen)’ (§ 91)” (Analytica Revista de Filosofia, v. 9, nº 1, 2005, p. 27).

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Idéia, enquanto pessoa jurídica e moral, suprime a relação precedente e a in-justiça que eu e o outro tínhamos infligido ao meu conceito e à minha razão, em ter tratado e deixado tratar a existência infinita da autocon-sciência como algo exterior. – Esse retorno adentro de mim descobre a contradição de ter cedido a outros a posse daquilo que eu mesmo não possuía e do que eu, tão logo o possua, só existe por isso mesmo, es-sencialmente, como meu e não como algo exterior, a minha capacidade jurídica, minha eticidade, minha religiosidade14.

O adendo ao § 92/93 – 362 – (II, 343) traz a idéia de que a “coação é violência contra um ser-aí natural”, reforça a tese do sentido da coação como violência (Gewalt) ou da subjugação legítima que se exerce contra aquilo que contém o elemento da exterioridade da natureza. Isso porque

(...) a vontade somente natural é em si violência contra a Idéia sendo em si da liberdade, a qual tem de ser protegida contra tal vontade inculta e tem nela de se fazer valer. Ou um ser-aí ético já está posto na família ou no Estado, contra os quais aquela naturalidade é um ato de violência, ou só existe um estado de natureza, um estado de violência em geral, contra o qual, então, a Idéia funda um direito dos heróis15.

Como se sabe da análise hegeliana, há aqui dois aspectos impor-tantes. Um deles – a exterioridade (Äusserlichkeit) - merece ser destacado, ainda que represente um lugar comum na filosofia da natureza de Hegel. O outro, vinculado à característica da externalidade da natureza, diz respeito à relação de subjugação ou de domínio. Ora, a exterioridade, cuja caracterís-tica da externalidade permite a coerção, constitui a determinação essen-cial da natureza, e marca a condição da imediatidade do homem como ser natural (Naturwesen), propiciando a luta pelo reconhecimento na relação de senhorio e servidão.

A legitimação de uma dominação (Herrschaft) como mero senhorio em geral e todo o modo de ver histórico sobre o direito de escravidão e de senhorio, repousa sobre o ponto de vista que toma o homem como ser natural em geral, segundo uma existência (a que pertence também o ar-bítrio) que não é adequada ao seu conceito16.

No adendo a esse parágrafo, a posição de Hegel é bastante enfáti-ca:

O ponto de vista da vontade livre, com o qual principia o direito e a ciência do direito, já está para além do ponto de vista não-verdadeiro, segundo o qual o homem como ser natural e como conceito somente sendo em si é, por isso, suscetível de escravidão. Este aparecimento precedente e não-verdadeiro concerne só o espírito que ainda está no ponto de vista da sua consciência; a dialética do conceito e da consciência primeiro somente imediata da liberdade provoca aí a luta pelo reconhecimento e a relação do senhorio e da servidão.17

O elemento hobbesiano da violência, de relações de senhorio, de 14. Idem, § 66.15. Idem, § 93, obs.16. Idem, § 57, obs.17. Idem, § 57, obs.

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domínio, de submissão próprias da dialética do senhor e do escravo, e que se exprime por relações de exterioridade, já está presente no escrito juvenil Maneiras de Tratar Cientificamente o Direito Natural18. Neste texto, Hegel classifica três maneiras de tratar o Direito Natural: o modo “empirista” de Hobbes, Locke, Rousseau, o modo “formalista” de Kant e Fichte, e o modo “especulativo” que Hegel atribui a si próprio como a única maneira correta (científica) de tratar o Direito Natural, opondo-se, assim, ao empirismo e ao formalismo.

O resultado do equívoco metodológico das teorias do Direito Natural moderno repercute na concepção política, revelando-se na impossibilidade que estas teorias demonstram para se alcançar uma “totalidade orgânica” que sustenta relações de necessidade interna implícitas nessa totalidade. É, precisamente, o procedimento formal de separação que fixa determinidades atomizadas (próprias do modo de pensar a realidade, produzido pelo enten-dimento) que é preciso negar19. Fundar a sociedade civil ou o Estado sobre uma natureza absolutizada como essência a partir do aspecto empírico da exterioridade significa uma “ficção da imaginação”.

Certamente que Hegel sabe que o estado de natureza é apenas de uma hipótese para aqueles que, como Hobbes e Rousseau, usaram esse re-curso como artifício heurístico para melhor caracterizar a existência real do estado civil. O problema desta ficção é que ela não pode funcionar segundo a exigência a que ela se propõe: a de ser um recurso hipotético que se co-loca vicariamente no lugar da necessidade da realidade, pois, a necessidade não pode ser um atributo de uma ficção, mas o resultado da unidade entre a possibilidade e a realidade:

aquilo que, de um lado, é afirmado como inteiramente necessário, em si, absoluto, é, de outro lado, ao mesmo tempo reconhecido como algo de não real, de simplesmente imaginado e como coisa de pensamento, lá como ficção, aqui como simples possibilidade, o que é a contradição a mais tosca.20

Hegel critica a concepção de estado de natureza na epistemologia e na doutrina política do empirismo que pretende ser científico - a indicação não explicita a Hobbes não retira a referência a este pensador. A deficiência

18. Em colaboração com Schelling, o jovem Hegel edita o Kritische Journal der Philosophie durante os anos 1801/3, onde publica seus primeiros escritos importantes: Diferença entre os Sistemas de Filosofia de Fichte e de Schelling, Fé e Saber e o artigo que apareceu em 1802/3: Maneiras de Tratar Cientificamente o Direito Natural. 19. “Esta deficiência metodológica do empirismo repercute diretamente sobre o modo pelo qual ele aborda a problemática do direito natural: situando a origem da esfera ético-política num es-tado de natureza que, caracterizando a dispersão e/ou o antagonismo irredutível de indivíduos que se excluem mutuamente, ele não pode conceber a própria ordem política (a totalidade ética) senão como uma totalidade justaposta a esta dispersão originária e coagindo de fora, o que leva, pois, a separar radicalmente estado de natureza e ordem política” (GÉRARD, G. La naissance de l’État hégélien. Apropos d’un ouvrage récent de Jacques Taminiaux. In, Revue Philosophique de Louvain, 85, (1985), p. 243).20. HEGEL. G. W. F, Des Manières de Traiter Scientifiquement du Droit Naturel, (Tradução de B. Bourgeois), Paris:Vrin, 1972, p. 21.

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do modo empírico é, basicamente, de ordem metodológica. O procedimento empírico parte do pressuposto de que a realidade é constituída de uma mul-tiplicidade de aspectos, ou de uma diversidade de determinações separadas (o um e o múltiplo, o positivo e o negativo), sem nenhum vínculo orgânico e que são unidas pela necessidade formal de uma unidade externa imposta de modo arbitrário. A conseqüência deste procedimento é que os princípios, que decorrem de relações inicialmente tratadas como determinações sepa-radas e fixas, são arbitrários, pois recorrem à necessidade de um elemento externo unificador, e que é resultado de ações de domínio.

Esta doutrina repousa sobre o pressuposto de relações dispersas da multiplicidade de indivíduos opostos que estão em “conflito absoluto uns em relação aos outros” (idem). Acima desta multiplicidade deve ser criada uma unidade, “exprimindo-se como totalidade absoluta”21, mas que é estranha e que se realiza mediante o signo da exterioridade de algo que advém do “juntar-se como algo de outro e de estranho” (idem). A reunião que resulta da “harmonia informe e exterior, sob o nome da sociedade e do Estado”22 com o múltiplo (os indivíduos) realiza-se sob uma relação de dominação (Herrschaft): “o divino da reunião é algo de exterior para os múltiplos [ele-mentos] reunidos, que, com ele, não podem ser postos senão na relação de dominação, porque o princípio desta empiria exclui a unidade absoluta do um e do múltiplo”23.

Na interpretação de Hegel, o estado político hobbesiano – como re-Na interpretação de Hegel, o estado político hobbesiano – como re-sultado da passagem do estado de natureza e com o ditame das “leis da ra-zão” – surge como um estado de um soberano despótico, cuja vontade não é a vontade de todos, mas a vontade do soberano, o qual não é responsável perante os indivíduos. Essa questão, tipicamente hobbesiana, diz respeito ao caráter e à necessidade da dominação ou da irrenunciável força de coação inerente ao poder político, e o seu estatuto em relação à violência que ele pode, legitimamente, praticar.

A “relação de submissão absoluta dos sujeitos sob esse poder supremo”24 não resulta de uma relação identitária da totalidade ética, mas de um domínio exterior que se impõe sobre os indivíduos atomizados. A uni-dade (política) que se alcança é exterior, resultado da dominação por parte do soberano e submissão por parte dos súditos. Hegel. Ou seja, a idéia de que a dominação no modelo hobbesiano resulta de uma necessidade exter-na, e que é uma prerrogativa inerente ao soberano que a exerce sobre os indivíduos.

Pode-se perceber a relação entre esse modo empírico de entender a lei natural e o momento histórico (e a sua representação teórica na filosofia política de Hobbes) no qual ele foi formulado, ou seja, como a expressão do moderno Estado absolutista, no qual o soberano reina de forma absoluta na

21. Idem, p. 23.22. Idem, p. 24.23. Idem, p. 24.24. Idem, p. 24.

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sua divina majestade. Nesta forma de exercício de domínio, a liberdade do súdito constitui apenas fazer aquilo que o soberano (a lei) permite, reve-lando-se no estado civil a forma de uma liberdade que se apresenta, ainda, como ausência de impedimentos legais, possível naquelas esferas nas quais o Estado não exerce o seu domínio.

Argumentação análoga é desenvolvida na segunda parte do escrito Direito Natural, agora na crítica endereçada à noção de coerção (Zwang) em Fichte, como elemento essencial do direito. Para o modo de ver do “formalis-mo científico” deste filósofo, não obstante o apego a princípios aprioristícos e formais, a unidade do indivíduo (e da sua liberdade) com a realidade da vontade universal se dá pela mediação do caráter coercitivo do direito. Isso significa, mutatis mutandis, um procedimento parecido com o empirismo de Hobbes, isto é, a construção de uma unidade mediante uma relação externa de coerção, que acaba subjugando um dos pólos dessa relação, negando a liberdade do indivíduo que vê o seu arbítrio subjugado pela coerção, e ele só tem consistência dessa unidade mediante a intervenção externa da coação. Nesse caso, o “elemento ético que está posto, unicamente, segundo a rela-ção – ou a exterioridade e a coerção -, [se ele é] pensado como totalidade, suprime-se a si mesmo”25. Para Fichte, interpreta Hegel, no próprio conceito de coerção se põe algo de exterior à liberdade26.

Assim, o conceito fichteano de coerção só é aceitável naquelas situ-ações de externalidade, nas quais é possível o exercício de uma coerção forte, ou seja, aquela que se caracteriza como subjugação e que se aplica à liberdade do livre-arbítrio, uma forma de liberdade (empírica) que guarda elementos da naturalidade da particularidade, porque está submetida à “ne-cessidade empírica não separável dela”, e que, portanto, pode ser submetida ou sujeitada a uma força exterior. Ainda que Hegel possa admitir a presença de uma coerção fraca da não-dominação (não-subjugação) entre o indivíduo (e a sua liberdade individual) e a totalidade ética, ela deve ser a expressão de uma relação ética interna27.

25. Idem, p. 49.26. “Portanto, comenta Müller, a construção fichteana da liberdade universal por meio de um sistema da coerção recíproca universal das liberdade singulares que se autolimitam, não só compreende a liberdade ‘derivadamente’ a partir da relação entre unidade e multiplicidade, relação na qual liberdade universal e liberdade singular se opõem como determinações da re-flexão distintas, portanto não concebidas igualmente na sua indiferença/identidade, mas essa construção tem na sua base um falso conceito de liberdade, pois a coerção é externa e estranha à liberdade.” (MÜLLER, M. O direito natural de Hegel: pressupostos especulativos da crítica ao contratualismo, in: Filosofia Política, série III, n. 5 (2003), p. 51).27. Marcos Müller entende que o sentido do uso do termo coerção (Zwang) como relação exter-na que unifica a liberdade singular com a liberdade universal, procedimento esse que é comum a todo o jusnaturalismo, e que Hegel quer criticar. Entende que, diferentemente da liberdade empírica que pode ser coagida, pois é algo externo, a “liberdade pura” não pode ser coagida. Esta liberdade “que não é apenas a relação simples e vazia a si da universalidade abstrata oposta às determinações particulares, mas de uma liberdade que, na infinitude da indiferença absoluta em face destas determinações, está para além da exterioridade da coerção e da do-minação, pois ela é ‘subjugada’ pela universalidade concreta da totalidade ética, que se autodi-ferencia, se particulariza e se exprime nos modos de agir universal que não estão à disposição do arbítrio do indivíduo. Esta infinitude da indiferença absoluta, que suspende a coerção, e pela qual o indivíduo é subjugado na totalidade das sua determinidades, inclusive na sua sin-

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Contrariamente ao entendimento do empirismo e do formalismo, pelo qual o sujeito não está consigo mesmo, manifestando, assim, relações de sujeição e de dominação retratada pela filosofia política hobbesiana da sepa-ração entre o poder externo do soberano e a obediência dos súditos - a liber-dade, para Hegel, deve superar a determinação da exterioridade, própria da natureza. Para o filósofo, o que é fundamental, e que já está delineado de forma programática no escrito sobre o Direito Natural, é compreender que “a essência da liberdade e a sua própria definição formal é, precisamente, a de que não há nada de absolutamente exterior para ela”28.

No escrito sobre o Direito Natural, a idéia de “vida ética orgânica” se constitui num conceito diretor para se pensar a realidade política. E a “vida ética orgânica” não pode ser pensada nem traduzida por uma ficção metodológica. Aqui a pretensão é pensar “a idéia absoluta da vida ética” na unidade do estado de natureza e da majestade (do Estado), de tal modo que este último não é outra coisa senão “natureza ética absoluta”, e a singulari-dade não é nada, mas absolutamente uma com esta natureza. A totalidade orgânica da vida ética que se traduz na organização estatal da vida de um povo é definida por Hegel por uma unidade daquilo que o empirismo político hobbesiano havia separado: de um lado o estado de natureza, e de outro, o Estado. Isso só é possível se a realidade ética for pensada segundo a uni-dade de duas realidades aparentemente contraditórias: estado de natureza e estado civil (político). Mas, se essa unidade não for compreendida em termos artificiais do contratualismo, mas em termos organicistas que não permitem o isolamento e a disjunção daquelas duas realidades, o estado de natureza é subsumido na majestade do Estado, e este se identifica com a realidade dos indivíduos, deixando de haver entre a vida natural e a vida ética qualquer descontinuidade.

Assim, o organicismo especulativo do jovem Hegel induz à crítica do mecanismo de externalidade do estado de natureza para a dedução, por via negativa dessa externalidade, da origem do poder político. Critica, também, a forma artificial que o empirismo do direito natural emprega para unificar a vontade particular com a vontade geral, em que pese o caráter da consti-tuição de um corpo único de um Estado forte e poderoso, ou de um Estado

gularidade, revela-se, agora, como a negatividade imanente do próprio absoluto prático, a sua ‘forma absoluta ou infinitude” (O direito natural de Hegel: pressupostos especulativos da crítica ao contratualismo, op. cit., p. 54). Assim, Müller interpreta distintivamente as duas formas de domínio presente neste escrito: a coerção (Zwang) e a subjugação (Bezwingung). A primeira atinge “somente a exterioridade do indivíduo em suas determinações finitas” (p. 55), a segunda “que opera na negatividade infinita (‘infinitude negativamente absoluta’) da ‘liberdade pura’, visa a exterioridade no seu todo, a totalidade das determinidades e relações que constituem a vida enquanto tal, inclusive a singularidade da liberdade empírica.” (idem, p. 55) Na nota 4, Müller observa que, a tradução de Bezwingung por “subjugação” permite que este termo torne “mias visível a sua contraposição principal aos conceitos de ‘coerção’ e ‘dominação” (idem, p. 63). A partir dessa interpretação, é possível é possível dizer que a coerção supõe relações de externalidade (semelhantemente à idéia da coerção externa em Kant e, também, em Fichte) e a subjugação representa uma coerção interna (análoga à coercitividade interna na relação entre Wille e Willkür no análise kantiana). A primeira envolve a noção de domínio, a segunda não, porque é auto-coação, ou seja, a repressão ou a sujeição de alguém como o seu outro.28. HEGEL, Maneiras de Tratar o Direito Natural, op.cit. p. 49.

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como expressão da vontade geral. A conseqüência desse procedimento é a instauração de uma societas política marcada pela abstração de seu ato constitutivo, e a coerção do Estado um recurso que se cristaliza na figura do soberano que se opõe aos súditos, sem manifestar nenhuma coesão interna. O Estado permanece exterior e sujeito a constantes tensões que levam à instabilidade da vida política, a qual permanece apenas como o resultado de uma equação vantajosa tanto para o soberano como para o súdito, traduzida na mútua relação entre proteção que o primeiro oferece e a obediência que o súdito, em troca, lhe presta. Para que este Estado não se dissolva ele neces-sita de um lado da dominação que lhe é inerente e, de outro, da submissão obediente da condição do súdito.

A questão da exterioridade (Äusserlichkeit) de um estado de natu-reza retrata a intenção já presente no escrito sobre o Direito Natural de en-tendê-la na sua determinação essencial como algo exterior. A exterioridade constitui um atributo daquilo que é natural e que será desenvolvido de forma mais ampla e consistente nos escritos posteriores da obra de Hegel, a partir da Filosofia do Espírito de 1803-1804 com a concepção da natureza como ser-outro do espírito, alcançando, sobretudo, na Enciclopédia a formulação paradigmática do conceito de natureza como a “idéia na forma do ser-outro (Andersseins)”.

Visto que a idéia é assim como o negativo dela mesma ou exterior a si, as-sim a natureza não é exterior apenas relativamente ante esta idéia (e ante a existência subjetiva da mesma, o espírito), mas a exterioridade constitui a determinação, na qual ela está como natureza29.

Hegel entende a natureza como o “espírito alienado de si”, (§ 247, ad.), o “cadáver do entendimento”30. A idéia na figura desta exterioridade “se situa na inconformidade dela consigo mesma”31, ela é, então, o mo-mento da diferença, o ser-outro, o negativo da idéia, a “contradição não resolvida”32, porque a idéia, enquanto natureza, é exterior a si mesma. A

forma do ser-outro é a imediatez, que consiste em que o diferente sub-siste abstratamente por si. Mas este subsistir é só momentâneo, não um verdadeiro subsistir; só a idéia subsiste eternamente, porque ela é ser-em-si-e-para-si [Anundfürsichsein], isto é, ser-retornando-a-dentro-de-si [Insichzurückgekehrtsein]33

Falta à natureza a determinação auto-referencial daquilo que é livre e espiritual, ela encontra-se, assim, fadada, de um lado, às leis da regulari-dade da necessidade, e, de outro, às variações do acaso e de fenômenos marcados pela contingência. Contudo, “o conceito deseja romper a casca da exterioridade e vir-a-ser para si”34. Hegel termina a sua exposição sobre a filosofia da natureza recorrendo à metáfora da crisálida que morre para dar

29. HEGEL, G.W.F, Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaften, op. cit. § 247.30. Idem, § 247, ad.31. Idem, § 248, obs.32. Idem, ib.33. Idem, ib.34. Idem, § 251, ad.

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luz a uma nova forma de vida mais bela, representada pela borboleta:

sobre esta morte da natureza emerge deste invólucro morto uma natu-reza mais bela, sai o espírito...O fim [alvo] da natureza é matar-se a si mesma e quebrar sua casca do imeditato, sensível, queimar-se como fênix para emergir desta exterioridade rejuvenescida como espírito... A nature-za tornou-se para si algo outro, para de novo se reconhecer como idéia e reconciliar-se consigo.35

Ao recapitular o percurso da filosofia da natureza, o filósofo observa que o objetivo desta filosofia é “dar uma imagem da natureza para dominar este Proteu, nesta exterioridade achar só o espelho de nós mesmos, na na-

tureza ver um livre reflexo do espírito – conhecer a Deus, não na meditação do espírito, mas neste seu imediato ser-aí”36.

Essa forma de entender a alteridade - segundo o ponto de vista de uma outridade que é exterior - servirá de referência às relações de domina-ção, nas quais os traços da naturalidade permanecem segundo o paradigma da dialética do senhor e do escravo. Para além do modelo da externalidade do mecanismo da natureza, as ações mediadas pelo reconhecimento per-mitem uma forma de sociabilidade ético-política baseadas em relações da liberdade que excluem o domínio. O reconhecimento só é possível numa relação que exclui a dominação, isto é, quando o outro está “liberado” de qualquer sujeição, condição essencial para que o sujeito que os indivíduos alcancem a liberdade autêntica.

A autoconsciência universal manifesta-se como o solo de uma co-A autoconsciência universal manifesta-se como o solo de uma co-mum reciprocidade em que os sujeitos podem exercer o reconhecimento recíproco, permitindo aos agentes uma igualdade de direitos e de cidadania. E isso não é possível na relação senhor-escravo que pertence a uma cons-ciência ainda imediata e natural, marcada por interações de externalidade que propiciam a dominação. Compreender a racionalidade dos meus direitos e dos meus desejos, bem como a capacidade de agir segundo princípios são elementos que devem valer para todos como resultado de uma relação de mútuo reconhecimento.

No que diz respeito à relação entre autoridade e liberdade, o con-ceito de reconhecimento opera no sentido de buscar formas de legitimação da lei que não aquelas oriundas da coação externa do direito como para o Jusnaturalismo que, pela força ideal do contrato, se impõe como um dever (político-jurídico) de aceitação de normas que regulam a vida social. Esse modelo contratualista do jusnaturalismo é recusado por Hegel que recorre a um outro modelo para justificar a legitimidade da lei (e da soberania e da autoridade) diante da liberdade dos indivíduos. Esse modelo é o do reconhe-cimento intersubjetivo inexistente na perspectiva do contratualismo, seja ele hobbesiano, seja kantiano, vinculado ao mecanismo normativo da

35. Idem, § 376, ad.36. Idem, ib.

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externalidade coercitiva.

Para Hegel, determinadas atividades do espírito humano como a ami-zade, o amor e o patriotismo permitem a realização de formas de relações intersubjetivas – valores éticos-políticos destacados pela tradição republica-na - que impedem o jogo de forças estranhas que dominam. São relações que estão articuladas ao reconhecimento recíproco de sujeitos que buscam entre si o estar consigo mesmo no seu outro e, nessa reciprocidade, aban-donam qualquer pretensão ao domínio. A noção hegeliana da liberdade e de reconhecimento enseja a recusa a qualquer tipo de dominação ou de coer-ção não legítima, do contrário, as relações intersubjetivas se restringiriam à dialética do senhor e do escravo, limitando-se a uma luta por dominação mesmo que por meio de uma forma primitiva de reconhecimento.

A filosofia hegeliana, portanto, sustenta a tese de que de um esta-do de natureza é impossível deduzir uma teoria da igualdade dos indivídu-os, considerando-os como pessoas, e fundamentar uma teoria ético-política com base na liberdade. Contudo, muito embora o Estado seja pensado como a realização máxima do Espírito objetivo, a natureza, de certa forma, nele subsiste “espiritualizada” permanecendo no elemento da particularidade na-quilo que é humano, errático e contingente, sobretudo, na esfera da socie-dade civil, onde o conflito subsiste, necessitando da coação do Estado.

A sociedade, ao mesmo tempo em que promove uma igualdade - a do homem enquanto homem - prolonga e potencia uma desigualdade natu-ral de um suposto estado de natureza. É justamente essa “particularidade natural”, à qual se acrescenta uma “particularidade arbitrária”, que Hegel explicitamente chama de “resto do estado de natureza”37. Tudo indica que este estado refere-se a Hobbes, principalmente quando Hegel caracteriza a sociedade civil como o “campo de batalha de todos contra todos”38. Como reino do entendimento e da particularidade – um dos elementos da socieda-de civil presente na pessoa como uma “mistura de necesidade natural e de arbítrio” - esta sociedade conserva e suprime a natureza no seio da própria Sittlichkeit. Pelo concurso da cultura (Bildung) e pela mediação dos outros na satisfação social das carências, há um processo de superação da natu-reza que Hegel chama de libertação da necessidade natural. Mas, adverte o filósofo, “essa libertação é apenas formal, já que a particularidade dos fins continua sendo o conteúdo que lhe serve de fundamento”39.

Ao comportar elementos do “estado de natureza” e, ao mesmo tem-po, possuir na sua própria lógica contraditória uma racionalidade, embora astuciosa, a sociedade civil constitui o espaço que possibilita a mediação entre elementos considerados naturais (o conflito, a luta, a concorrência) de uma racionalidade negativa e o aspecto ético-político da racionalidade positiva do Estado.

37. HEGEL, G.W.F, Grundlinien der Philosophie des Rechts, op. cit., § 200, obs.38. Ibid., § 289, ad, cf. tb. § 198.39. Ibid., § 195.

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Ao interpretar a sociedade civil segundo alguns aspectos do estado de natureza hobbesiano, Hegel mantém o conflito como um fato estrutural e imanente a um momento da eticidade. Cabe à racionalidade do Estado, não como uma exigência de um ideal normativo, mas como uma necessidade histórica que os novos tempos revelam, e que a razão traduz como exigência conceitual, a resolução desse conflito. Por isso, o Estado pode fazer uso da dominação naquelas situações nas quais predomina o elemento da exterio-ridade da natureza. Em outras situações, a relação é de coerção, mas não de dominação repressiva, cujo modelo advém da ação formadora da cultura (Bildung).

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A Lei de Talião e o princípio de igualdade entre crime e punição na Filosofia do Direito de Hegel

Melina Duarte1

Resumo: “Olho por olho, dente por dente”. Se a célebre Lei de Talião nos aparece atualmente como uma fórmula cruel e bárbara, que descreve melhor a vingança do que a necessidade de se punir com justiça, é preciso, no entanto, que atentemos ao fato de que esta máxima é tam-bém baseada numa relação de equilíbrio entre o crime e a punição. Nesse sentido, o objetivo deste artigo é buscar na expressão teórica da Lei de Talião, a tese da necessária existência de uma exata medida entre a negação e o restabelecimento da justiça sem, contudo, confundir aquilo que é uma igualdade específica e o que é uma igualdade de valor. A igualdade de va-lor é suficiente para garantir a justiça na esfera teórica, mas insuficiente quando se pretende estendê-la à esfera prática, visto que nessa última, a igualdade só pode ser obtida em termos de quantidade e qualidade que variam conforme o tempo e cultura. Assim, a esfera prática de-veria ser um espelho da esfera teórica e seguir, da mesma forma, as exigências da razão. Esse procedimento será para Hegel possível graças a autodeterminação do espírito livre, a união dos âmbitos teórico e prático.

Palavras-chave: Justiça; Teoria da pena; Igualdade específica e Igualdade de valor; Espírito livre.

Abstract: ‘An eye for an eye, a tooth for a tooth’. If Lex talionis seems to us today a cruel and barbarian law, which describes better revenge than the need of punishment following justice, we should notice however, that this statement is also grounded in a balanced relatioship between crime and punishment. The aim of this paper is to search for the need of an exact relation-ship between the denying and the reestablishment of justice, following Lex talionis statement. However, specific equality and equality of value cannot be mistaken. Equality of value is enough to provide justice at the theoretical level, but not when it is extended to the practical level. At the practical level equality can only be obtained in terms of quantity and quality that vary ac-cording to culture and time. Thus, the practical level should be as a mirror of the theoretical one following the demands of reason. In Hegel, this procedure is possible due to free spirit self determination, which means the unity of theoretical and practical realms.

Keywords: Justice; Theory of punishment; Specific equality; Equality of value; Free spirit.

Se alguém furar o olho de um homem livre, nós lhe furaremos um olho; se alguém arrancar um dente de um homem livre, nós lhe arrancare-mos um dente.

Se a célebre Lei de Talião nos aparece atualmente como uma fórmula cruel e bárbara que descreve melhor a vingança do que a necessidade de se punir com justiça, é preciso, no entanto, que atentemos ao fato de que essa máxima é também baseada numa relação de equilíbrio entre o crime e a

1. Mestranda em Filosofia alemã e francesa no contexto europeu – Europhilosophie Ludwig-Maximilians Universität München. Texto submetido em Junho de 2009 e aprovado para publica-ção em Setembro de 2009.

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punição. Nesse sentido, o que a expressão “olho por olho, dente por dente” nos revela, antes, a ideia da necessidade de se obter uma exata medida entre a negação e a restituição da justiça. A própria palavra Talião, que vem do latim talio, significa “tal” ou “igual” e reforça essa tese, ao menos teórica, de equilíbrio. O problema é que nós não encontramos na prática esta mesma clareza da teoria e, por isso, a Lei de Talião assumiu posições bem mais pró-ximas de cada extremidade do que da exata medida que se buscava. Dessa forma, no decorrer da história ela permitiu prolongamentos ou demasiado agressivos, como na postura descrita no Antigo Testamento2, ou demasiado passivos, como no Novo Testamento3.

No seu desenvolvimento histórico, nós observamos que as punições mais grotescas e, também, as mais brandas foram evocadas sempre em nome da necessidade de punir para se realizar um bem aparentemente maior. A partir disso, constatamos que ela acaba então por perder seu fundamento mais valioso, a ideia de dar ao crime a punição na sua correta intensidade e de poder assim ser considerada justa. Isso tudo, como se a questão da justiça pudesse ser reduzida à uma questão entre o bem e o mal, tal como pressupunham diversas teorias da pena: da dissuasão, da prevenção, por exemplo para Beccaria4, mais tarde, da ameaça para Feuerbach5, etc.

Se essas teorias consideram o crime como um mal, elas consideram, em consequência, a dissolução do crime como um tipo de bem e, desse modo, a questão da justiça e da injustiça seria então substituída pela ques-tão do bem e do mal. O problema de transferir este debate é que, neste caso, nós acabaríamos por esquecer a objetividade da justiça, ponto que é primeiro e substancial para Hegel, na medida em que isso evitaria a separa-ção entre a lei e sua aplicação. Ao se substituir a questão, a subjetividade do criminoso, misturada com as suas representações psicológicas, seria então deixada em primeiro plano, uma vez que o bem e o mal seriam definidos nestas instâncias. Com a subjetividade em primeiro plano, a punição não poderia ser aplicada, pois, caso contrário, decorreriam dela sérias consequ-ências, tais como o impedimento do direito da liberdade do pensamento, da liberdade religiosa, etc. Assim, para Hegel “nessa discussão importa exclusi-2. Ver Êxodo 21, 23-25: “Mas se resultar algum dano, pagarás vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferimento por feri-mento, golpe por golpe.” Ver também Levítico 24, 17-21: “E quem matar alguém certamente morrerá. Mas quem matar um animal, certamente o restituirá, vida por vida. Quando alguém desfigurar o próximo, assim também lhe será feito: quebradura por quebradura, olho por olho, dente por dente. Como ele tiver desfigurado a algum homem, assim lhe fará. Quem, pois, ma-tar um animal, restitui-lo-á, mas quem matar um homem será morto”.3. Mateus 5-38-41: “Ouviste o que foi dito: Olho por olho, e dente por dente. Eu, porém, vos digo que não resistais ao mal; mas se alguém te bater na face direita, ofereça-lhe também a outra face; e, se alguém te obrigar a caminhar uma milha, vai com ele duas milhas”.4. C. Beccaria, Dos delitos e das penas. Tradução de Nelson Jahr Garcia, Edição Ridendo Cas-tigat Mores, 2001. XV Da moderação das penas. Sistematizando o pensamento da metade do século XVIII, o que Beccaria escreveu, influenciado também por Machiavel, representou para a Itália, o mesmo que Helveticus para a França. “Os castigos têm por fim único impedir o culpado de ser nocivo futuramente à sociedade e desviar seus concidadãos da senda do crime.” p. 85.5. E. Gans, In: G.W.F. Hegel, PD/Direito Abstrato (DA), sobre a teoria da pena de Feuerbach: “Essa teoria pressupõe o homem como não livre e ela quer coagir pela representação do mal.” Tradução de Marcos Lutz Müller, São Paulo: (IFCH/UNICAMP), 2003, §99 Ad, p.116.

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vamente que o crime tem de ser suprimido, e não enquanto produção de um mal, mas enquanto lesão do direito enquanto direito”6, i.e., é o direito que deve estar sempre em primeiro plano.

Antes de continuarmos, é preciso perguntar: por que a questão do bem e do mal não pode ser objetiva? Por que o crime não poderia ser a ob-jetivação do mal e a punição a restituição do bem? À primeira vista, parece que não haveria problema algum em assumir essa identificação ao dizer que o mal se objetiva através do crime. Mas o mal se exterioriza em tantas outras formas que não somente através do crime. Assim, essa identificação seria limitada, na medida em que o crime não seria então a objetivação do mal, e sim meramente uma objetivação possível do mesmo. De modo igual se passa no caso do bem, para o qual a punição não é sua única forma de manifestação. Desta pluralidade de sentidos surge um problema de repre-sentação, pois a objetividade que o mal adquire através do crime é somente uma forma mais efetiva, mas o critério de definição deste ainda não é obje-tivo. Dessa forma, o crime e sua anulação dependeriam de uma represen-tação subjetiva do que se considera – num determinado momento, sob um determinado ponto de vista – como bem ou mal. É preciso, portanto, que se tenha algo a mais para garantir a objetividade da representação do bem e do mal, pois é somente dessa maneira que poderemos definir o crime e aplicar a punição como forma de sua anulação. Este ‘algo a mais’ é o direi-to. Assim, para Hegel, o mal é a existência do crime e não do crime mesmo diretamente. Por sua vez, o crime é a negação do direito, ao mesmo tempo que a punição é a negação da negação do direito7.

Se nós atacarmos apenas a existência do crime ou apenas o crime mesmo, nós não cumpriremos a justiça, uma vez que não se pode punir a existência do crime sem o determinar, nem punir somente o crime sem considerar sua existência. É preciso então recorrer ao direito para garantir a efetividade da moral, mas é “a ação baseada no direito que é justa na medida em que ela pode ser verificada através da subjetividade de cada indivíduo”8. Dito de outra forma, é a vontade moral que deve dar à justiça a segurança do impedimento de que as normas jurídicas se tornem instru-mentos de dominação utilizados por grupos isolados.

O bem aparece quando o direito abstrato liga-se com a moralidade e, somente a partir da passagem para a eticidade e do desenvolvimento de seus momentos é que nós teríamos a afirmação do direito mais elevado em sua identidade com o maior e mais justo bem. Consequentemente, tería-

6. G.W.F. Hegel, PD/DA, Tradução de Marcos Lutz Müller, São Paulo: (IFCH/UNICAMP), 2003, §99 A., p.115.7. Não pretendemos aqui definir propriamente o que deve ser considerado como um crime e, por sua vez, como punição, visto que o objetivo do trabalho é apenas extrair o princípio de igualdade entre eles a partir da Lei de Talião, princípio que entendemos ser a primeira condição para se obter justiça nesta relação. No entanto, acrescentaríamos essa definição como uma segunda e terceira condição para a obtenção da justiça nos seguintes termos: que o que seja considerado ‘crime’ esteja de acordo com a justiça universal e, por conseguinte, que a pena aplicada esteja também de acordo com esta mesma universalidade.8. D.L.Rosenfield, Política e Liberdade em Hegel, 2ª Ed., São Paulo: Ática, 1995,p. 102.

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mos sua negação identificada com o mal de mesma natureza. Este bem é, contudo, o maior possível dentro da esfera do Espírito Objetivo, na qual se encontra a Filosofia do Direito. Nesse sentido, o bem é, para Hegel, mediado e isso é o que lhe retira da superficialidade. Contudo, mesmo as teorias que pretendem ter o bem mediado, i.e. que não tomam a punição no sentido que Hegel chama de superficial, de fazer um mal a alguém que fez um mal, como a teoria da cura de Platão em Górgias9 a teoria da expiação em Santo Agostinho10, nas quais o bem aparece sob a forma da cura do mal ou da li-beração da alma – acordam à punição um papel ainda insuficiente. Vejamos então de que maneira esta insuficiência se apresenta como um obstáculo ao cumprimento do ponto de igualdade que buscamos:

A principal diferença entre estas duas teorias é o seu ponto de parti-da e, em consequência, a finalidade de aplicação da pena. A teoria da cura toma para si o ponto de vista do paciente, que, por sua vez, vê a punição enquanto sofrimento e dor como aspecto principal e o dever como secun-dário. A tarefa da punição não seria outra que melhorar um mal estado ao qual o criminoso teria chegado – como uma doença que precisa ser curada. O problema desta teoria, segundo Hegel, é que a punição seria uma justifi-cação indireta das regras sobre às quais o criminoso estaria ligado quando ele as transgrediu e, desta maneira, a cura do criminoso não poderia mais depender de regras as quais ele negou anteriormente. A teoria da expiação toma o ponto de vista contrário: o do agente. Assim, o sofrimento e a dor deixam de ser a questão principal. Ela é substituída pela questão do dever, da observância das regras. A punição adquire assim um sentido de conde-nação, de sofrimento compensatório, de sacrifício moral, mas originária da solução que o criminoso mesmo se dá para se libertar de sua falta. Assim, a punição repousaria sobre um caráter interior das regras e na medida em que o criminoso é parte de uma comunidade contra qual o crime foi cometido, esta individualização da punição como liberação da alma é também proble-mática.

Portanto, seja do lado da cura ou da expiação, perdura o problema de encontrar um lugar apropriado a fim de garantir a justiça na relação entre crime e punição. E, para resolver esta dificuldade, Hegel reivindica o sentido de punição a partir dos dois caminhos citados. Dito de outra forma, ele considera, ao mesmo tempo, a punição sob o ponto de vista do paciente

9. Ver Platão, Górgias, Tradução de Alfred Croiset, Paris : Éditions du Passant, 2004, p.98-101. “Socrate(S) : L’effet produit sur l’objet frappé est donc conforme à l’action de celui qui frappe ? Polo(P) : Sans doute. S : De même, si une brûlure est faite, il y a nécessairement une brûlure subie ? P : C’est forcé. S : Et si la brûlure ainsi faite est violente ou douloureuse, l’objet brûle subit un effet conforme à la brûlure qu’on lui fait ? Qualité de l’effet correspond à la qualité de l’action. [...] S :Ainsi donc, celui qui paie sa faute est débarrassé par la méchanceté de son âme ? P : c’est exact.”10. Ver Santo Agostinho, Les Confessions précédées de Dialogues philosophiques, Œuvres I, direção de Lucien Jerphagnon, Paris : Gallimard, 1998, L’irruption de la faute – Les “charnelles corruptions”: “Du fracas de la chaîne de ma moralité, c’était le châtiment de l’orgueil de mon âme.” p. 805. /Le pèche de L’esprit – Le vol des poires: “Le vol, en tout cas, est puni par la Loi est par la Loi qui est écrite dans le cœur des hommes, et que leur inquiète n’abolit pas; car existi-t-il un voleur qui supporte avec sérénité de se faire voler? Non, fût-il dans l’opulence et son voleur traqua par l’indigence. » p. 809.

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e do agente. Nesta lógica, é preciso que um se coloque no lugar do outro. Contudo, esta exigência de “se colocar no lugar do outro” estava já presente na fórmula geral do imperativo categórico em Kant: “Age segundo a máxima que pode ao mesmo tempo se transformar em lei universal”11. Qual é então a diferença entre estas duas exigências de universalidade? Hegel considera insuficiente a fórmula kantiana na medida em que esta lei é ligada a uma ordem moral separada do direito, o que acarretaria consequências fatais à justiça no que concerne à sua objetivação, a seu devir, quando partimos da reflexão sobre o bem e o mal ao invés de partir do justo e do injusto.

Se a Lei de Talião não pode estar baseada, ao menos não direta e unicamente, na ideia do bem e do mal ao invés do justo e do injusto, ao menos o elemento de igualdade contido nesta lei está ainda presente, mas a partir daqui, ele deve fixar sua base no direito. Ele está ainda presente, porque a negação da negação do direito, i.e., a anulação do crime é cumpri-da somente na medida em que esta segunda negação é de mesmo tipo e de mesma intensidade que a primeira. Se o tipo ou intensidade da pena mudam em relação ao crime, ela é já considerada injusta.

A tortura admitida nos porões, a pena de morte, as prisões desuma-nas e outras penalidades impelidas ao extremo e hoje praticadas legalmente são as provas da necessidade de se relançar sobre esta discussão. Mas, se-gundo a tese de equilíbrio sobre a qual repousamos até aqui a possibilidade de justiça, nós podemos perguntar se um crime extremo não merece uma punição extrema e, em consequência, afirmar a utilização destes tipos de penas como instrumentos legítimos para se ter acesso à justiça e, assim, co-locar em cheque a pertinência de retomar este debate. Nós devemos admitir que, segundo este princípio geral de igualdade, um crime extremo é passível de uma punição também extrema, da mesma maneira que o crime mediano merece uma punição mediana e assim sucessivamente. Mas, desde que se integre o critério de definição de ‘extremo’ nos limites racionais de nosso tempo, i.e. desde que ele seja interpretado sob a perspectiva da finalidade especulativa última da história mundial, que é “o desenvolvimento necessá-rio [...] da consciência-de-si e da liberdade do espírito”12. Assim, se a racio-nalidade de nosso tempo está em acordo com a universalidade, o extremo vai ser definido claramente e a pena aplicada segundo esta racionalidade vai ser considerada de uma maneira justa.

Mas o problema não é assim tão simples e ele ainda não pode ser declarado resolvido, pois, deste ponto de vista, se é o acordo da pena com a racionalidade que nos mostra o justo, então a tortura, a pena de morte e as prisões desumanas podem ser consideradas, segundo Hegel, como penas apropriadas e mesmo justas, se o nível de racionalidade do povo que as aplica lhe seja correspondente. Esta questão não coloca somente o pensa-mento de Hegel à prova, mas também o nosso olhar sobre a civilização da

11. Ver E. Kant, Fondation de la métaphysique des mœurs, In : Métaphysique des mœurs, I, Fondation, Introduction, Tradução de Alain Renaut, 1994, p. 118.12. G.W.F. Hegel, PD/Estado, Tradução de Marcos Lutz Müller, São Paulo: IFCH/UNICAMP, 1998, §342, p. 144.

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atualidade, uma vez que a pena deve ser equivalente ao nível de raciona-lidade. Assim, se nós definimos o extremo de uma maneira bárbara como nesses gêneros de punições, nós temos de admitir também nossa barbárie. É claro que antes de nos acusar efetivamente de bárbaros, nós deveríamos demonstrar que as penas aqui citadas são mesmo bárbaras, visto que isto ainda não é evidente para todas as pessoas, nem para todas as nações. Isso quer dizer para nós que a sociedade contemporânea continua, de alguma forma, seguindo regras mal fundadas que acabam por distanciar a justiça de seu lugar apropriado, na medida em que esses tipos de punição não ocasionam outra coisa além da perda total do sentido racional originário da punição, a anulação do crime. E se nós já começamos a considerá-las como penas bárbaras, e esta prova não é mais necessária para várias pessoas, é porque nós estamos em um processo de racionalização que começa a se estabelecer. Sobre isso diz Hegel:

Enquanto o espírito livre é o espírito efetivo, os mal-entendidos a seu res-peito são de consequências práticas tão enormes, que nada há que tenha essa força irresistível – uma vez que os indivíduos e os povos captaram em sua representação o conceito abstrato da liberdade essente para si [...].13

Mas se nós admitimos um distanciamento entre o espírito livre e sua efetividade14, como sugere à primeira vista essa passagem, nós justifica-mos, por consequência, através do direito ligado ao seu tempo, verdadeiras atrocidades pertencentes à história mundial, tais como a escravidão, o terror jacobino, entre outras, e colocamos o espírito livre como um ideal inalcançá-vel. Para sair desta dificuldade, é preciso que busquemos elementos na ne-cessidade de realização do espírito livre. E, por isso, antes de dar a sentença a Hegel, é preciso buscar mais precisamente o que ele compreende por es-pírito livre. Sobre isso, encontramos uma formulação oportuna na seguinte passagem do Direito Abstrato: “O espírito livre consiste precisamente em não ser como o mero conceito ou em si, mas em suspender esse formalismo de si mesmo e, com ele, a existência natural imediata, e, em dar-se a exis-tência somente enquanto sua, enquanto existência livre”15. O espírito livre não é, como vemos, o simples conceito [bloβe Begriff] no sentido corrente de uma abstração do real para se obter uma classificação mais geral ou para nomear as coisas. Mas ele é o conceito mesmo, o que indica que ele busca constantemente ultrapassar a unilateralidade, a parcialidade, a determina-ção abstrata do entendimento, quando ele provém da unidade do espírito teórico e do espírito prático. Esta unidade não é, no entanto, produzida, pois se fosse, nós ainda poderíamos, por um lado, a partir da teoria de Hegel, justificar as atrocidades enumeradas anteriormente, assim como as penas que nós tomamos aqui como bárbaras. Ela não é produzida, porque para Hegel ela é desde sempre já realizada pelo espírito. Segundo Hegel,

o teórico está essencialmente contido no prático: isso vai contra a repre-

13. G.W.F. Hegel, ECF, Tradução de Pe. Paulo Meneses, São Paulo: Edições Loyola, 1995, §482, p. 275.14. Termo utilizado no sentido de Wirklichkeit e não de Realität.15. G.W.F. Hegel, PD/DA, Tradução de Marcos Lutz Müller, São Paulo: IFCH/UNICAMP, 2003, §57, p.74.

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sentação de que ambos estão separados, pois não se pode ter vontade alguma sem inteligência. Pelo contrário, a vontade mantém o [elemento] teórico dentro de si: a vontade se determina; esta determinação é, ini-cialmente, algo interno: o que eu quero, eu me represento, é objeto para mim16.

Em outras palavras, há uma identidade necessária entre o pensar e a vontade para Hegel, mesmo que os possamos analisar separadamente. As-sim, o espírito, mesmo se ainda abstrato, quando ele ainda não é a idéia17, “na medida em que ele existe como conceito diferenciado de sua objetividade”18, dá-se sua própria efetividade, no sentido que ele mesmo busca sua realiza-ção, baseado na ideia de que “ o conceito e sua existência são dois lados, separados e unidos, como o corpo e a alma”19. O espírito efetivo já tem em si esta potência e ele deve ser segundo o conceito. Desse modo, nós remarcamos que para Hegel a separação entre o conceito e sua efetivação não existe quando o sujeito é o espírito livre. E, se isso se mostra diferente-mente na realidade histórica, é porque o Estado está ainda à procura de seu conceito. Isso implica que o Estado funciona ainda numa “situação anterior ao direito que não deve existir”20. Assim, a existência histórica destes tipos de penas e atrocidades “fazem parte de um mundo em que uma in-justiça ainda é direito”21, que ainda não é universal.

A possibilidade de existência desta separação é concebida sobre a perspectiva natural do homem e da sociedade – que movidos por inclina-ções, pulsões e desejos – não devem ser passíveis de punição e, enquanto tais, não podem alojar a justiça que buscamos. Eles não são passíveis de punição, não porque ela não lhes seja necessária num estado natural, mas porque o homem não é visto enquanto alguém que tem igualmente direito à liberdade. Dessa forma, não há desde o início a possibilidade de igualdade. Sem a racionalidade, a lei válida é a do mais forte e nesta lógica absurda, junto à qual muitos pensam erroneamente se basear em Darwin, mesmo o Estado somente poderia garantir a anterioridade do todo e evitar a luta de todos contra todos através da linguagem comum entre homens naturais, a violência. Assim, justificam-se as penas violentas. É preciso, contudo, que a vontade natural se transforme e se reconheça como livre e, para isso, é preciso partir da ideia de que ela contém o racional em si.

Hegel pressupõe um Estado racional baseado na ideia de liberdade que deve conter todas as vontades particulares. Nesse sentido, assim que o criminoso pressupõe seu reconhecimento como livre, a pena é considerada 16. G.W.F. Hegel, Introdução à Filosofia do Direito, Tradução e apresentação de Marcos Lutz Müller, São Paulo: IFCH/UNICAMP, 2005, §4 Ad, p.48.17. Aqui no sentido hegeliano, idéia significa o conceito mais sua efetivação.18. G.W.F. Hegel, ESP (Encyclopédie des sciences philosophiques, Tome III – Philosophie de l’Esprit) tradução e apresentação de Bernard Bourgeois, Paris : Vrin, 1988, §113 A., p.241-242.19. G.W.F. Hegel, Introdução à Filosofia do Direito, Tradução e apresentação de Marcos Lutz Müller, São Paulo: IFCH/UNICAMP, 2005, §1 Ad, p.39.20. G.W.F. Hegel, PD/DA, Tradução de Marcos Lutz Müller, São Paulo: IFCH/UNICAMP, 2003, §57 Ad – Hm. 124-125 – (II, 336-337), p.75.21. G.W.F. Hegel, PD/DA, Tradução de Marcos Lutz Müller, São Paulo: IFCH/UNICAMP, 2003, §57 Ad – Hm. 124-125 – (II, 336-337), p.76.

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como um direito do criminoso de anular seu crime. Isto significa que mesmo enquanto criminoso, o homem deve ser respeitado como um ser racional. Por conseguinte, é pela honra acordada ao criminoso enquanto ser racional que nós honramos também o direito. Se permitirmos o inverso, ou em ou-tros termos, se o criminoso é tratado como um ser natural, então a raciona-lidade do direito e do Estado desaparece também. Esta separação existe em Hobbes, que afirma o Estado de direito como uma ruptura com o estado de natureza que o origina. Com isso, Hobbes coloca o Estado sobre uma base que, enquanto não-racional, tem somente uma força coercitiva, a partir da qual o acordo formado entre os homens é frágil e em constante risco de se desfazer. O Estado hobbesiano seria, então, contrário à realização da vonta-de individual e não, adequado a esta que o torna possível.

Ao não tomar o estado de natureza como ponto de partida, Hegel enfatiza a afirmação de uma necessária igualdade presente já sobre a forma racional da Lei de Talião, o que justifica nosso ponto de partida. Mas como nós não concebemos da mesma forma a expressão “olho por olho, dente por dente” e “vida por vida”, devemos ainda buscar esclarecer de que maneira esta igualdade se mostra como necessária. Como estas duas fórmulas não são de mesma natureza, ainda que tenham o mesmo ponto de partida, ve-mos que esta lei repousa sobre uma base frágil no que concerne ao funda-mento da punição. Então, mesmo que a dissolução do crime dependa inclu-sive de um tipo de Lei de Talião, ela não é suficiente para garantir a justiça, pois a determinação de igualdade presente nesta lei é uma determinação geral que pendula ao acaso entre o justo e o injusto.

Assim, nós vemos que a exigência de igualdade não pode ser defini-da segundo o “caráter específico da lesão”, pois, mesmo que isso signifique antes punir “roubo com roubo” como na forma figurativa “olho por olho”, isso significa também cair na armadilha de uma generalização perigosa ao assumir também, na mesma lógica, “vida por vida”. Esta igualdade não deve então repousar sobre o caráter específico da pena, mas seguindo a exigência da razão, sobre seu valor. É então a determinação do conceito que faz desta igualdade uma igualdade de valor, que consiste precisamente em compre-ender racionalmente a exata punição pelo crime que deve diferir da simples anulação de um mal por um outro mal, i.e., que deve distinguir a justiça da vingança legal.

No plano racional, nós pudemos então estabelecer a igualdade de valor como resposta à uma exigência da justiça. Contudo, assim que este plano busca sua objetivação, nós vemos que esta igualdade de valor tem de se manifestar no mundo. Mas neste plano, a manifestação é logo limitada. Analisemos esse ponto mais profundamente:

O suprimir do crime é retaliação, na medida em que ela é, segundo o [seu] conceito, lesão da lesão e, em que o crime, segundo o [seu] ser-aí22, tem uma certa amplitude qualitativa e quantitativa, na medida em

22. Segundo Timmermans, ser-aí (Dasein) significa « cet être saisi dans as différence, ou em-preint d’une certaine détermination ». In : B. Timmermans, Hegel, Paris : Les Belles Lettres,

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que, por conseguinte, a sua negação enquanto ser-aí, também tem uma amplitude”23.

A partir da citação acima, nós vemos que, sobre o plano dos eventos, um tipo de Lei de Talião mantém ainda em si uma exigência de igualdade entre e o crime e a punição na medida em que, enquanto conceito, ele busca sua realização efetiva. Mas assim que o crime enquanto ser-aí tem uma “certa amplitude qualitativa e quantitativa”, i.e. que ele prova um efeito que deve ser analisado segundo suas características e gradações, a punição que lhe é apropriada deve ter também esta mesma amplitude. Mas, como re-conhecer a mesma clareza do conceito no plano dos eventos? Para Hegel “é a identidade interna que, no ser-aí exterior, se reflete para o entendimento enquanto igualdade”24. Isso quer dizer que as determinações de qualidade e quantidade devem se dar na esfera do entendimento como uma exigência da razão, mesmo se elas se fazem presentes na exterioridade. Assim, é a partir dessa igualdade de valor, produzida inicialmente na razão teórica, que o efetivo deve se pôr, i.e. como um reflexo no qual a mesma igualdade da esfera teórica apareceria também na esfera prática.

Desse modo, após pretender ter estabelecido, através da extração do princípio de igualdade da Lei de Talião, aquilo que é a primeira condição para justiça na relação entre crime e punição, resta-nos ainda esclarecer o que isso significa. A partir deste princípio de igualdade, nós mostramos como a igualdade deve ser compreendida, a fim de evitar punições bárbaras em nome da lei, do direito e da justiça. Foi-nos preciso assumir que esta igualdade (de valor) não pode ser afirmada no mundo senão pela quanti-dade e qualidade, i.e., por seu ser-aí, por sua contingência exterior, por sua particularidade, a qual é variável segundo tempo e cultura. A solução que encontramos para poder afirmar a justiça no mundo foi de a indicar, mesmo na sua exterioridade, como uma exigência da razão segundo a autodetermi-nação do espírito livre que busca constantemente sua realização também no plano efetivo.

2000, p. 22.23. G.W.F. Hegel, PD/DA, Tradução de Marcos Lutz Müller, São Paulo: Paulo: IFCH/UNICAMP, 2003, §101, p.117. Sobre a tradução de Wiedervergeltung, encontramos várias sugestões: De-rathé, R. em sua tradução da Filosofia do Direito publicada pela Vrin em 1975, traduziu o termo pela expressão Loi du Talion, p. 144; Kérvegan J-F. em sua tradução da Filosofia do Direito publicada pela PUF em 2003, escolheu o termo représaille (represália), p. 201; Müller em sua tradução pela IFCH/UNICAMP utiliza a palavra retaliação, p.117; Rosenfield em Política e Liber-dade em Hegel utiliza a expressão Lei do Talião para apresentar a crítica ao estado de natureza hobbesiano, p. 103-104. Ainda é possível traduzir o termo por retribuição, mais isso confundiria a tese hegeliana acerca da punição com o retributivismo. Para os fins deste trabalho, nos é su-ficiente considerar o termo Wiedervergeltung em sua formação etmológica, no sentido em que wieder corresponde à novamente, de novo e Vergeltung à um tipo de vingança ou retaliação, visto que nós utilizamos a figura da Lei de Talião independentemente de sua explícita citação em Hegel. Além disso, nas anotações ao §101 , Hegel fala de “roubo por roubo, banditismo por banditismo, olho por olho, dente por dente”, na tradução de Müller, p. 117.24. G.W.F. Hegel, PD/DA, Tradução de Marcos Lutz Müller, São Paulo: IFCH/UNICAMP, 2003, §101, p.117.

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Para que este sistema funcione, no entanto, é preciso admitir como dado a existência de um Estado racional entre os homens, mesmo que ele esteja em constante processo de determinação. Mas, nesse sentido, seria suficiente para um ser ou para uma civilização racional se reconhecer ou não segundo o conceito? Não continuaríamos assim justificando a existência de penas bárbaras como simplesmente pertencentes ao âmbito do não-racional ou do que está em processo de racionalização? Basta-nos reconhecer o que faz ou não faz parte do direito somente em civilizações estrangeiras e/ou sempre no passado? É neste ponto que nós nos desprendemos, em certa medida, da filosofia hegeliana para pretender que a coruja de Minerva alce voo não apenas ao entardecer, i.e. que a filosofia não se volte apenas ao passado, mas que ela permita um olhar sobre a condição atual de nossa civilização. Afinal, somos ou não bárbaros? Se bárbaro é aquele que admite punições grotescas em nome da justiça e que não respeita o criminoso como um cidadão sendo que o crime, muitas vezes, é ocasionado pela insuficiência do Estado, então temos de nos admitir também como bárbaros. Temos de admitir que um Estado formado por bárbaros se aproxima mais do estado de natureza hobbesiano do que do Estado racional que pretendemos fundar. Nesse estado de bárbaros, assim como no estado de natureza, nenhuma punição pode ser aplicada na forma da justiça, mas somente na forma de uma vingança legal. O Estado se vinga ao agir com violência e, de volta à Hegel, acaba por negar a sua própria racionalidade ao negar a racionalidade ao criminoso.

Referências Bibliográficas

Obras de Hegel

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Da “syn díkei” à lógica da Corporação – a superação da Tragödie im sittlichen na filosofia de hegel

Sergio Portella1

Resumo: Este trabalho se detém às relações da filosofia hegeliana com a literatura trágica greco-clássica, ao caráter análogo da natureza sistemática da narrativa trágica à cosmovisão da razão finita temporal moderna imersa num sistema de fatos que a excede e desafia. A tan-to, analisa as interfaces do imaginário cultural da antiguidade e sua literatura, sobretudo com Ésquilo, com a filosofia de Hegel, quanto à relação da literatura trágica com a filosofia política compreendida em sua real-sistematicidade. Objetiva apreender as interfaces conceituais que habilitam conferir a unidade pretendida pela modernidade à cultura helênica ao incidir no pen-samento de Hegel como a releitura da antiguidade greco-clássica à luz dos desafios legados pela filosofia kantiana. O itinerário da noção de liberdade que, da observância à lei divina, tanto adentra os assuntos humanos como a lei dos homens quanto se mantém dissociada da mesma no caráter transgressivo do herói trágico, tem na pretensão moderna do Eu os limites da efi-ciência particular, bem como a superação desta finitude pela subjetividade infinita articulada à racionalidade do Estado ético. Tal itinerário nega o estreito horizonte do subjetivismo na passa-gem da Sociedade civil-burguesa ao Estado e caracteriza o fracasso do paradigma consciencial pela superação do cidadão à tragédia burguesa.

Palavras-chave: tragédia; liberdade; Hegel; burguês e cidadão.

Abstract:The present work aims to examine the relations of the hegelian philosophy with classi-cal greek tragic literature and also to examine the analogous character between the systematic nature of the tragic narrative and the world view (Weltanschauung) of the modern secular fi-nite reason immersed in a system of facts that exceeds and defies it. In such a way, this work analyzes the interfaces of the antiquity´s cultural imaginary and the literature, over all in Aes-chylus, and the relations that Hegel does between tragic literature and political philosophy un-derstood in its real-sistematicity. This work also intends to apprehend the conceptual interfaces which able us to confer the unity intended by modernity to the Greek culture as it was analyzed in Hegel´s thought, that is, the well kown relecture of the classical greek antiquity in the light of the challenges left by kantian philosophy. The itinerary of the freedom notion that, by the observance of the divine law, goes through the human subjects as the men law as much as it remains dissociated from the same law in the transgressive character of the tragic hero. This itinerary has in the modern tradition of the Self the limits of the particular efficiency as much as the finitude is surpassed by infinite subjectivity articulated with rationality of the ethical State. And is yet the same itinerary that makes the negation of the narrow horizon of the subjectivism in the passing from the Civil-society to the State and characterizes the failure of the paradigm of conscience by the overcoming of the citizen on the bourgeois tragedy.

Keywords: tragedy; freedom; Hegel; bourgeois and citizen.

1. Mestrando, Bolsista PROSUP/CAPES, em Filosofia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Texto submetido em Junho de 2009 e aprovado para publicação em Setembro de 2009.

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1 – Conflito e identidade na tragédia grega

Valéria Reis identifica na sociedade grega a coexistência de duas es-feras opostas, ainda que necessariamente complementares, uma mediante a qual a sociedade grega se mostra a totalidade orgânica orientada pela bus-ca à verdade nos debates públicos, outra referente ao “agonístico processo dos debates” (REIS apud RUBY, p. 32), onde alude à própria essência da formação política grega enquanto sustentada pelos embates dos cidadãos nos assuntos públicos. Identifica a historiadora que tal distinção jamais seria própria à consciência dos indivíduos. Ao cidadão grego era unívoca a noção de seu papel em excelência quanto à Pólis no tratante à participação nas de-cisões públicas mediante o uso da palavra a fins de superação das posições que lhe fossem contrárias. Aliás, esta contrariedade de posições integraria um mesmo anseio de permanência de algo coletivo que justamente subsiste neste metabolismo complexo. Considerar tal distinção que hierarquiza em esferas o que seria uma só estrutura, uma autópsia conceitual da hélade, será algo próprio aos modernos, que tomam as relações políticas como algo dado entre os homens, uma caracterização que distingue a práxis política da natureza que, aos gregos, seria imprópria. A noção de cidadania grega deve ser compreendida como atida à práxis política que requer tomada de posição e conflito (stásis) pelos cidadãos, conceito este a ser entendido à Grécia do século de Péricles. A presente seção visa oferecer conceitos que elucidem tal elaboração processual e demonstrem seu desenvolvimento.

1.2 O conflito como elemento da identidade do homem grego

Conforme Loraux (REIS apud RUBY, p. 19), hipostasiar a identidade política de um povo é igualmente assentir sua unidade e, por conseguinte, finitude como fenômeno cultural cuja elucidação discursiva histórica pres-supõe sua transcendência enquanto núcleo semântico. Tal, aos gregos, foi elaborado a partir da noção de conflito (stásis). Esta remete à harmonia do indivíduo ao grupo social pela construção particular da práxis política me-diante tomada de posição e conflito, o ipso facto da alteridade antropológica grega. Sua construção elaborou-se de modo escalar, contudo permanente, trazendo elementos constitutivos cuja significação foi incorporada à essência do espírito político grego.

Em Ésquilo, veja-se a coexistência no imaginário das noções de con-flito e unidade nos versos: “(procurando) dentre os citadinos, não só os que agiram justamente, mas os que agiram injustamente” e “Pesadas as pala-vras de maldição dos cidadãos que, retificadas pelo povo, cobram a dívida” (Agam., vv. 456-457). No primeiro dá-se a sugestão pelo coro dos anciãos ao rei que este distinga os cidadãos que permaneceram na cidade e agiram justamente; o segundo denota a cólera e a maldição do povo. Ambos os ver-sos denotam conflito, frente ao que a exposição segue denotando as noções de unidade e segurança: “(os deuses) depositam na urna o voto sem vacilo” (Agam., v. 815).

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Todavia, em Eumênides, Ésquilo alude à representação da unidade pela voz da maioria como algo possibilitador de conflitos. Nos versos 674 e 675, a deusa Palas Atena ordena o início da votação do julgamento de Ores-tes: “Ordeno aos de reta razão que tragam o justo voto como tenho dito insistentemente” (Eum., vv. 674-675), complementando que o empate dos votos “será pela absolvição de Orestes” (Eum., vv. 733-735). Dada a igual-dade dos votos dos juízes, a deusa proclama a vitória de Orestes. Seguida-mente, dirige-se às vencidas (Erínias) visando acalentar as partes e profere: “Não vos sentis vencidas, mas a justa igualdade dos votos sai verdadeira” (Eum., vv. 795-796).

1.3 O transcendente na efetivação dos negócios humanos

Pode-se aludir à unidade dentre os elementos sociais do imaginário grego no período em que Eumênides foi encenada (458 a.C.), dadas a ocor-rência da votação e a resultante expressão da maioria. Mas é a presença da deusa que legitima o resultado face à neutralidade consensual dos juízes. Percebe-se, assim, a visão de Ésquilo à tênue garantia da expressão da maioria à representação da unidade, a necessidade da legitimação externa à efetivação da identidade das partes. Logo, do necessário controle social à legitimação do poder, bem como de locais próprios à ocorrência dos pro-cessos sociais, dada a alusão às figuras próprias a sua execução, os juízes (isópsephos). Estes tomam a função do controle através da práxis da orató-ria, subjugando os indivíduos componentes da unidade pelo lógos. Mas, de todo modo, importa a unidade expressa no processo da votação que, qual na vitória de Orestes, deu-se mediante o sagrado, a intervenção da deusa. Mesmo os juízes perdedores se calam face à sentença uma vez esta se dar pela mão divina. Ilustra-se com isso o inquestionável senso de transcendên-cia que aos gregos era própria aos processos de representatividade políti-ca.

A intervenção da deusa na elaboração da regra de desempate aos votos e na contemporização das partes em conflito (Erínias) sugere a ima-nente oscilação da unidade expressa pela maioria. Equilíbrio e desequilíbrio são engendrados pelo mesmo voto que contrapõe as partes em conflito e ordena sua unidade. A práxis política não pode se isolar do sntido religioso, sob risco da inefetividade. As potências divinas gregas integravam o cenário humano compondo uma hierarquia que subordinava os mortais sob regras propedêuticas à coesão social. Mediante a inserção dos homens à Themis, a lei divina, o curso da natureza justifica-se como coerente à lei sagrada. Mas ainda não será a lei dos homens que os guiará à elaboração de ‘algo comum’. A ordem mostra-se em Ésquilo bem estabelecida sem requerer maiores ap-tidões humanas que a observância à Themis e o temor à cólera olímpica. As leis eram aplicadas aos homens tanto nas relações entre si como aos seres sobrenaturais, tornando as relações de poder e direito ações práticas. Tal prevalece desde o mundo arcaico de Homero: “A lei divina não me permite fazer mal aos que chegam” (Odisséia, XIV, v. 56); até três séculos depois

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com Ésquilo: “Primeiro saúde a primeira profetisa Gaia e depois a segunda Themis” (Eum., vv. 1-2).

1.4 Nómos, a lei dos homens enquanto costume

Referir à predominância da lei dos deuses (Themis) à lei dos homens (nómos) no período arcaico grego não significa afirmar sua inexistência. Esta estaria ainda no âmbito do costume, referindo a algo consagrado pelos antepassados. Comporia já em Homero um significado relevante à elabo-ração da legislação como expressão da justiça e eqüidade pelo conceito de eunomia. Em oposição, dá-se pela utilização do prefixo dys (dificuldade/privação) a noção de disnomia que, em diferentes elaborações, identifica que algo comum refere à má ordem ou legislação injusta. A disnomia em ocorrências literárias é identificada ao conflito através da figura desmedida do herói trágico. A ordem personificada da lei divina da Themis, quando as-solada pela ação desequilibrada do herói, sucumbe facilmente. Em Persas, Ésquilo propõe um rei Dário lamentoso pela derrota de seu exército devido à desmedida de seu filho Xerxes: “ao mortal empenhado à própria perda, os deuses apressam-se em ajudar” (Per., vv. 740-742). Veja-se que o termo que significa “apressar-se” (speudei) denota intencionalidade ao ato. Uma vez afrontada a ordem divina, os deuses corroboram pelo ato heróico como algo destrutivo. A eunomia, ainda que coerente à ordem, não é algo que se possa efetivar a menos que mantenha consigo uma noção que vislumbre uma ordem ainda ideal, um caráter transcendente consigo.

Esta investigação assente o cunho essencialmente religioso da práxis política grega, o sobrenatural como condição de efetivação da ordem social. Note-se que a coletividade incorpora neste grau da mentalidade grega um padrão que ultrapassa a expressão do cotidiano concreto dos indivíduos. O coletivo perfaz algo que avança ao somatório das partes, ainda que pelo caráter negativo do que se diria humano dentre o sistema de regras propos-tas. A desmedida hýbris do herói trágico ocorrerá como algo que interfere à ordem desejada na Pólis. A esta importará dos cidadãos que se pensem como partes dum todo, ao que lhe caberá compreendê-los neste todo pelo estabelecimento de leis coerentes. Neste sentido a proposta da isonomia po-lítica dos cidadãos dita-os equânimes perante leis agora humanas, ainda que dadas a fins dum modelo ideal pelo próprio princípio motor do estabeleci-mento prático da isonomia, a saber, a moderação (sophosyne). A idealidade da ordem que rege a cidade e o caráter sagrado do seu desvelo pelo legis-lador põem-se às vezes do transcendente que não se desfaz, mas funde aos assuntos humanos e torna divino o ato pré-político da fundação do direito.

1.5 A ascensão da coletividade isonômica à cidadania e o contraste à har-monia social pelo herói

A consideração do imaginário político grego pela noção de isonomia, ainda que presente desde a Grécia arcaica, já faz relação ao conceito de

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igualdade aos cidadãos da Política de Aristóteles2. No calar da individua-lidade face à ordem idealmente admitida percebemos o elemento trágico permanente ao pensamento grego contemporâneo a Péricles3. Pretendemos identificá-lo aos debates públicos onde a liberdade se estabelece pela ação e pelo discurso e dita o desprendimento às amarras essenciais da vida na ascensão à boa vida.

A moderação é requerida aos cidadãos da Pólis. A compreensão de Aristóteles de que o coro “imita menos” alude à pretensão formativa da sig-nificação universal à realidade histórica a ser identificada ao imaginário dos cidadãos pela Tragédia. O elemento consensual lhes é identificado na figura que não representa, não imita. Ainda que o conteúdo da Tragédia não trate de qualidades humanas, mas dos acontecimentos aos homens relacionados, suas ações e sua boa ou má sorte, a figura intangível e não universalizável do herói só será revelada na imitação (mímesis) de seus atos. Somente pela sua figura a Tragédia elabora-se como ação. Enquanto os elementos do coro seriam harmônicos à proposta vigente e compreensíveis pelo contexto polí-tico, a presença do herói é dotada de ação (drama) e discurso (lógos). Sua elaboração da própria história é uma busca particular à verdade (alethéia) e uma fuga à isonomia própria ao cidadão comum.

O herói trágico e o cidadão da Pólis são livres à medida do desprendi-mento que mantém às respectivas estruturas convencionais do agir humano. Ação e discurso são os termos próprios ao desprendimento à necessidade imediata. Contudo, unicamente a participação nos negócios públicos, o ab-dicar pelo cidadão ao conforto pelas conflitivas negociações em assembléia, confere à liberdade o reconhecimento público. Mas, mutatis mutandis, iden-tificam-se a figura do cidadão inserido às instituições democráticas e a figura do herói estranho às mesmas, dado o seu caráter pré-civilizatório, visto am-bos superarem a expectativa da vida limítrofe à necessidade. A cidade pela idealidade das suas razões significa a simples vida associativa ao tornar-se o espaço a uma liberdade não transgressora. O transcendente move mãos humanas e torna tão divina a participação do cidadão na assembléia quanto vil o seu repouso doméstico. Não está em Ésquilo a noção da democracia como ordem política institucional. Porquanto cabe aludir à expressão literá-ria do avanço teórico do papel dos cidadãos no processo de coesão social. A noção de isonomia será fator de importância maior ao desenvolvimento do pensamento político grego que ainda requererá a elaboração institucional da lei dos homens.

1.6 Díke, a lei institucional humana

O horizonte de Ésquilo não integra o conceito jurídico de fato social, a tomada à tutela de algo ao interesse do corpo político. Distingue-se de

2. Dos cidadãos, “apesar de toda diversidade de suas tarefas, querem defender todos a segu-rança do Estado; o que os une em uma comunidade é a constituição” (Aristóteles, Pol. II, 1276 b 29).3. Nas tragédias de Ésquilo o discurso em prol da moderação permeia a fala do coro e cala toda individualidade. Veja-se Suplicantes v. 992, Coéforas v. 140 e Eumênides v. 44.

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nómos, referente à tradição e à ordem justa e sagrada. Tampouco seria uma noção de justiça pública a ser efetivada na práxis dos tribunais. Sua elaboração conceitual, expressa por díke, sequer ocorre em Persas (472 a.C.), ocorre quatro vezes em Sete contra Tebas (467 a.C.) e nove vezes em Suplicantes (463 a.C.) (THELM, p. 44). Contudo, passa a ocorrer com maior freqüência no decurso intermédio aos períodos arcaico e clássico.

Díke expressa a inserção dos cidadãos às tomadas de decisão nos as-suntos públicos e ao cumprimento da lei estipulada em assembléia. Decorre da oposição à nobreza fundiária pelo rol dos cidadãos comuns que ansiavam por espaço de decisão. Nómos e díke não se opõem quanto à significação, mas quanto à ocorrência: nómos é oriunda do imaginário cultural, algo que estaticamente norteia posições sem permitir qualquer adequação circuns-tancial, uma vez assentada nos códigos de honra do período arcaico; díke se elabora como processo discursivo imediato, dá a cada um o que é devido à situação corrente (JAEGER, p. 73). Díke significa processo, decisão e pena. Opera diferentes circunstâncias da trama e instancia a ação da qual obtém sua verdade. Veja-se em Eumênides: “Como testemunha, expõe para mim, Apolo, se estava comigo a justiça quando a matei” (Eum., vv. 609-610). Díke como justiça dinâmica dirá própria a práxis dos tribunais através do prefixo syn, indicando syn díkei. Referirá à elaboração humana da justiça, seu de-sempenho institucional e discursivo nos tribunais.

A noção de koinonia, igualmente central, é diversamente significada na obra de Ésquilo. Sua apreciação semântica importa à compreensão do mecanismo humano que efetiva díke. Leiam-se os versos: “Dá-se o crime! Percebo os soluços do rei, unamo-nos e deliberemos” (Agam., v. 1374) e “Não carecendo de amigos, não só nos reuniremos, mas deliberaremos o acontecido” (Coef., vv. 717-718). O radical comum é diferentemente de-clinado no texto: koinosometha (voz médio-passiva), o unamo-nos no pri-meiro verso, e koinonéo (voz ativa), o reuniremos no segundo. São ambos utilizados pelo coro para informar a emergência de reunir os cidadãos, na primeira passagem para que deliberem acerca do assassinato do rei, na se-gunda para agregar um grupo baseado na noção de amizade (philia), para que, deliberando, estendam sua relação à união política. Nesta passagem encontramos o sentido de constituir a unidade política, quando naquela a unidade já é suposta. Denota-se em Ésquilo a noção de koinonia associada ao ato de deliberar (buléo) como o processo constitutivo de díke, bem como resultante da mesma. O sentido expresso por koinonia, assim, não expressa a união estática qual seria se pura koinosometha, mas sim um sentido forte e emergencial, o caráter relacional aos cidadãos. Estes são compelidos por necessidade a deliberadamente constituírem unidade (koinonéo) em prol do fim maior coletivo, dinâmica dos tribunais que interage às necessidades específicas.

Por conseguinte, dada a necessidade de deliberar sobre seus assun-tos, ocorrerá que os cidadãos irão interagir entre si nos tribunais. Estabe-lecem o instrumental institucional dado pela noção de syn díkei que permi-

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te de diferentes modos a ampliação da isonomia, noção esta que marca a verdadeira transição de conceitos de origem arcaica (mediante nómos), aos conceitos próprios ao século V a.C., que já tomam para si, a fins de justifi-cação, o poder (kratós) como princípio (arché) determinado.

1.7 A Pólis como a imortalização das virtudes humanas no paradigma an-tropológico

Nosso itinerário aliou o desenvolvimento institucional à constituição do imaginário do cidadão grego. Percebemos ser a identidade particular agente da coesão política, bem como o discurso trágico em Ésquilo per-meado por uma tensão que reencontra seu padrão de ordem (eunomia) no ato de reunir (koinonia) os cidadãos em sua tomada de posição mediante conflito (stásis). O voto que estabelece a unidade, contudo, será legitimado pela divindade (a Themis, lei divina transcendente, ou sua personificação em Palas Atena). Uma vez assentidos os costumes e leis (nómos), os cida-dãos sentem-se iguais face ao todo, e o caráter disto ser bom remete a algo divino. A Pólis, lugar da isonomia dos cidadãos, não é indiferente à vontade divina: qual o abalo da ordem pelo excesso do herói trágico, a omissão do cidadão ao papel conflitivo terá pela ordem transcendente suas conseqüên-cias.

O caráter trágico e necessário da ação, face à concepção arcaica do pensamento político grego, revoluciona a concepção do cosmos. A ordem mantém sua gênese transcendente, contudo, sendo agora instanciada na realidade como o ethos decorrente da ação conflitiva dos homens. Se a Pólis arcaica punha como obediência aos deuses a observância às leis, o caráter transcendente agora cede lugar à necessidade imanente atendida pelo cida-dão na retidão do seu agir face às leis. A efetividade expressa pela maioria nos pleitos assevera ser a vontade humana livre e compassada à vontade divina. A deusa se personifica no tribunal para ratificar a reta decisão da instituição humana. O otimismo do cidadão da Atenas do século de Péricles prevê sublime os cumprimentos institucionais como algo fundado no con-sentimento divino. Veja-se a Oração fúnebre de Péricles. Alude que “nossa Constituição chama-se Democracia [...] porque o poder está nas mãos, não da minoria, mas do maior número de cidadãos”, modelo este a ser levado como “padrão de referência” às demais cidades, visto que “há igualdade perante a lei”. A virtude no modelo político da Atenas do séc. V a.C. não era oposta à consideração política do cidadão estar imbuída de elementos fundados na poesia épica e na religiosidade. Dá-se o elogio à cidade pela nobreza humana e elevação das instituições, o que se funda na consciência do consentimento divino. “Mantém a ordem pública, asseguram autoridade aos magistrados, protegem os fracos e dão a todos espetáculos e festas que levam à educação da alma”. Sustentam a virtude dos guerreiros, uma vez que “prefiram morrer heroicamente a deixar que lhes tirem a pátria”.

Mediante díke a cosmovisão do cidadão grego transcende, sem rele-

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gar, considerações univocamente políticas. A atuação pública do indivíduo se justifica não mais no código dos antepassados ou na tradição religiosa, mas pelas instituições que afirma e que consigo constituem um universo integral. A Pólis deveria ser amada pelas leis e instituições, pois os deuses também as amam. O cidadão sacrifica a si em detrimento do todo não pelo critério negativo do temerário à Themis ou enquanto existência alheia que busca a imortalidade do seu nome, mas como detentor igualitário das instituições que acredita e que lhe garantem a compreensão do mundo.

2 – O fim da tragédia pela novela hegeliana

A ética qual concebida por Aristóteles goza do status de saber autô-nomo ao conferir ao indivíduo a condição de detentor das condições concre-tas de fundamentar o agir moral. A tanto, estabelece uma inflexão antropo-lógica à metafísica platônica: o homem que ruma aos primeiros princípios constrói um saber prático análogo à razão teórica. A busca pela felicidade é, por assim dizer, a construção da própria realidade em acordo ao conheci-mento obtido da ordem pela qual as coisas são postas. Cabe ater, portanto, à necessária relativização da práxis ao bem humano. Mas a autoconsciência moderna se vê impossibilitada de fundar o agir moral senão como o desem-penho da razão que pelo conceito formal desvalidou a experiência no âmago da razão prática. O bem agir performado segundo o princípio universal aves-so a todo conteúdo desfaz o caráter análogo da razão prática à razão teó-rica ao justamente equivalê-las. A noção cartesiana da idéia cujo conteúdo advém do objeto se torna pela revolução copernicana de Kant a apercepção transcendental que absolutiza o conhecimento (Verstand) na razão (Ver-nunft). Logo, funda a objetividade pela subjetividade para então resolver o discurso moral como um postulado da razão pura prática, a submersão da práxis à poiésis que dita o agir moral como o desempenho do conceito.

A geração posterior assumiu a tarefa de repensar o veto kantiano à tematização da coisa-em-si e a conseqüente indisposição desta como o télos do discurso moral. Hegel propôs sua reincorporação ao discurso filosófico sem romper à perspectiva crítica: uma lógica objetiva que toma por funda-mento a essência resultante da “medida” (Mass) do objeto é conduzida de modo a ampliar o conhecimento tido da coisa para ao cabo equivalê-la ao conceito. Logo, a revitalização da noção de substância, pressuposta à lógica subjetiva, vista como idêntica à objetividade. Nisto, Hegel inscreve-se à tra-dição filosófica neoplatônica ao conceber a dedução do real a partir de sua lógica, uma espécie de emanação.

2.1 O trágico nos Escritos de juventude e na Fenomenologia do Espírito

Em O espírito do cristianismo e seu destino [Der Geist des Chris-tentums und sei Schicksal] Hegel ataca o formalismo da filosofia de seu tempo mediante a oposição entre cristianismo e judaísmo. Este é definido

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pelas mesmas críticas postas à filosofia kantiana, a rígida cisão do humano ao divino, do particular ao universal. Jesus ao transpor esta cisão trazendo o mandamento objetivo à mediação subjetiva mostra-se o universal singu-lar. À consciência infeliz mundana restará elevar-se às falácias do Pastor ao perfazer os passos da Phänomenologie des Geistes para atingir o saber absoluto. Mas, nos marcadamente teológicos Escritos de juventude, Hegel apresenta a superação do formalismo pelas figuras do amor [Liebe] e do destino [Schicksal] como resultado da liberdade cristã que não encerra o homem na dominação. Se mal utilizada, a liberdade converge no crime e no pecado pelo indivíduo ignorante da necessária reconciliação da sua vida à vida universal. “O criminoso pensava haver com uma vida alheia, mas a que destruiu foi a própria, pois a vida não se diferencia da vida, já que descansa na divindade unida em si” (HEGEL, 2003, p. 263). Quando assim tomada, a culpa [Schuld] decorre da cisão da unidade da vida que pode, contudo, ser refeita. Ao trazer tal perspectiva à origem do cristianismo, Hegel coincide-o com a gênese da dialética. O destino em O espírito do cristianismo e seu destino é ilustrado com uma tragédia: Macbeth. Após o assassinato de Ban-quo, Macbeth não vê diante de si uma lei que lhe seja alheia, mas tem no espectro de Banquo a própria vida ferida.

(...) foi criada somente uma lei, cuja dominação começa agora; esta lei é a unificação – por intermédio do conceito de igualdade – da vida ferida, aparentemente alheia, e da própria vida, cuja autonomia se perdera. Só agora a vida ferida aparece como um poder inimigo, prejudicando-o do mesmo modo que ele a prejudicou. O castigo quanto ao destino é a reação idêntica ao ato do criminoso, reação de um poder que ele mesmo armou, de um inimigo que ele tornou hostil. (HEGEL, 2003, p. 322)

O conflito ontológico é sempre fatal à certeza subjetiva. Mas cons-ciência pode se reconciliar com seu destino no amor que é “a vida que se reencontra a si mesma” (HEGEL, 2003, p. 324).

O que diferencia os EJ da PhG é a nítida percepção nesta de uma compreensão sistemática de filosofia que, não obstante, atem-se à condição reflexiva da subjetividade moderna. O itinerário da PhG adéqua a certeza subjetiva à verdade objetiva no saber absoluto que é pressuposição subjetiva à exposição do sistema. Somente suprassumido no lógico o fenomenológico expressa o puramente inteligível, a forma do ético como ponto de partida ao discurso sistemático. “Figuras históricas... encarnam atitudes éticas típicas à lógica do processo de formação da consciência” (AQUINO, 2005, p. 315). Somente no saber absoluto à autoconsciência cabe dizer a manifestação conforme a necessidade sistemática. Mas previamente a consciência fará a injunção dos distintos momentos histórico-dialéticos, estabelecendo sua passagem à autoconsciência. Ao emergir da articulação destes momentos, o ético designa figuras sucessivas da liberdade subjetiva. Ao cabo do expe-rienciar das razões pressupostas à objetividade, a autoconsciência dispõe de um saber pressuposto à totalidade do real.

A filosofia hegeliana na PhG supera os paradigmas sobre os quais se constrói. A dialética do espírito na Moralidade da PhG efetiva o “Eu que é

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nós, o nós que é eu” [Ich, das Wir, und Wir, das Ich ist] (PhG § 177) da “cer-teza de si mesmo” e se põe como preâmbulo teórico da Ciência da Lógica. Ascende ao formalismo da filosofia kantiana sem negar sua universalidade: constrói-se na experiência do espírito pela autoconsciência, o escrutínio de razões pressupostas aos momentos histórico-dialéticos aos quais embateu. Tais razões aferem a necessidade do real, são, portanto, universais. Ao fim da PhG, a equivalência do conceito subjetivo das diversas autoconsciências constata não ser tal empresa mero formalismo, mas o desvelo da coisa-em-si. O espírito é unidade das autoconsciências que existem como substância absoluta. A PhG conclui no saber absoluto que reina na WL.

2.1.1 Cisão e reconciliação da consciência com o transcendente na PhG

O puro inteligível expresso pela PhG, ponto de partida ao sistema, excluirá toda pretensão de absolutização da particularidade. “O verdadeiro é delírio báquico, onde não há membro que não esteja ébrio; e porque cada membro, ao separar-se, também imediatamente se dissolve, esse delírio é repouso translúcido e simples” (PhG § 47). A subjetividade como infinita reflexão condiz ao projeto racionalista da filosofia pós-kantiana onde a sub-jetividade põe [setzt] a objetividade mediante o conceito universal. Diferin-do dos EJ, a PhG perceberá incidir o método dialético não mais somente ao Espírito Absoluto, mas igualmente ao itinerário do espírito finito. O método vale à construção gradual do conhecimento pela consciência e perpassa to-dos os âmbitos da vida. A condição moderna de superação do destino na unidade da vida pelo amor perpassa a autodeterminação do indivíduo que torna coesas as determinações outrora colidentes por ele mesmo postas. A reconciliação ao destino pelos “heróis” modernos dificulta-se dado que “es-tão desde o início em meio à amplitude de relações contingentes no interior das quais é possível agir dessa ou doutra maneira” (HEGEL, 2004, p. 264). De toda forma, o palco da Tragédia é a eticidade (Sittlichkeit) cuja forma originária foi concebida na antiguidade.

Veja-se o primeiro capítulo da seção O espírito da PhG, O mundo éti-co: a lei humana e a lei divina. Difere dos momentos anteriores, suas figu-ras são “espíritos reais, efetividades propriamente ditas; em vez de figuras apenas da consciência, figuras de um mundo” (PhG § 441). O mundo ético é então substância calma: seu devir é sua ulterior atualização das próprias potências. Toda ação na eticidade imediata da bela vida substancial helênica é regida pelo costume e dita o momento em que a singularidade se reco-nhece e realiza na universalidade. A substância é então “essência universal e fim, contrapõe-se a si mesma como à efetividade singularizada”, pelo que a consciência-de-si é “unidade de si e da substância” (PhG § 444). O “folclo-re feminino” (PhG § 451) que rege a atividade familiar encontra aporte em Sófocles: “(...) não é de hoje / desde os tempos mais remotos elas vigem / sem que ninguém possa dizer quando surgiram”. A família tem seu próprio espírito, o Penates do mito, mas se encontra num contexto mais amplo en-quanto determinante parcial do costume. Tal se expressa na equivalência do

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homem à comunidade e da mulher à família, cujo reconhecimento imediato (casamento) dita o elemento ativo da comunidade.

Mas a ação “(...) que só perturba a quietude da substância...” (PhG § 729) faz emergir o Si em sua potência negativa, tornando-se o próprio destino. Pelo homem se instaura a prova de morte (guerra) que faz sentir na lei humana a lei divina. A comunidade teme a perda dos seus e a família sente sua dependência à comunidade. O sentimento ascende da família à comunidade. Esta noção é lida à luz do capítulo A ação ética: o saber huma-no e o divino, a culpa e o destino, voltada ao como a “calma organização” (PhG §§ 464) da bela vida substancial “desvanece” (PhG § 476) mediante uma infindável sucessão de guerras. Elas teriam cindido o sentido até en-tão convergente dos interesses do cidadão, a fruição da vida privada aos ditames da lei divina, aos interesses do Estado, os deveres da vida pública conforme a lei humana. Nela, o “Si se tornou algo em-si-e-para-si-essente. Mas nisso, precisamente, a eticidade foi por terra” (PhG §§ 407). Este “uni-versal fragmentado” repercute na afirmação pela pessoa do “Eu essencial” (PhG §§ 478) que, contudo, será tido uma “efetividade abstrata” (PhG §§ 479), deslocada da efetividade. O dever (sollen) era até então dado em meio à realidade essencial, o que não condiz à condição da infinitude apreendida pela particularidade finita. O “eu essencial” marca o conflito do indivíduo com a divindade. Do fracasso da particularidade pretender abarcar o univer-sal, uma relação crítica à lei se instaura. O conflito resultante converte-se na violência (Gewalt) da oposição pelo indivíduo entre uma lei e outra. Ao cabo, será um “puro pensar” (PhG §§ 483) qual a “consciência estóica” (PhG § 479), o recolhimento da subjetividade outrora harmônica ao real. Eis o conflito entre lei divina e lei humana expresso por Antígona e Creonte.

A oposição do Estado, a vida ética na universalidade espiritual, à fa-mília como eticidade natural tem expressão acabada na colisão entre amor e lei [Gesetz]. A superação do trágico na leitura hegeliana é dada pelo forma-lismo [Formalismus] de Creonte face ao sentimento [Gefühl] de Antígona. É conhecida a trama do incesto de Édipo que, descoberta, resulta no exílio do herói cego em Colona. Exilado pelos filhos Etéocles e Polinices, Édipo lhes amaldiçoa a inimizade mortal. Para evitar os riscos predestinados, os irmãos acordam revezar o poder. Mas Etéocles não passa a coroa a Polinices que, fugitivo, pede auxílio a Adrastos, rei de Argos. Polinice conduz o exército de Argos contra Tebas e é morto em combate pelo irmão. Tal traz Antígona a Tebas para realizar os ritos fúnebres. Mas Creonte havia negado este direito ao invasor morto. Eis o dilema de Antígona, a impossibilidade de bem agir. Se coerente à cultura, descumpre as leis; as obedecendo, é omissa à ética e religião. Afinal, onde se embatem anseios públicos e privados, nenhuma éti-ca ou lei é verdadeira. A ordem do novo senhor da cidade, Creonte, é uma lei humana que se quer realizar, mas também um crime ao mandamento divino de honrar os mortos. Creonte é pai e marido, deveria respeitar a lei divina.

O herói trágico, cindido entre duas leis, difere do indivíduo vivo e ple-no da obra de Homero. A substância não é mais o imanente a ser decriptado

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pela autoconsciência heróica do cidadão cujo debate conflitivo se legitima no interesse público, mas o transcendente cujo desvelo infindadamente re-mete à insuficiência do sujeito. Logo, ao sofrimento da “infinita separação entre o Subjetivo e o Objetivo” (HEGEL, 2004, p. 252). Tal cisão se resolverá pela mostração histórico-dialética do espírito no mundo cristão. A violência [Gewalt] pelo herói resultante da fragmentação da unidade ética grega terá seu veto no homem cindido com o mundo no cristianismo romano. Ainda, terá sua reconstrução como poder [Macht] pelo homem que no trabalho constrói sua realidade e efetiva sua subjetividade infinita. Percorrerá a ne-cessária unificação destes momentos deflagrada pela Revolução Francesa como a emersão da vontade particular no mundo construído sob a cisão da subjetividade abstrata ao Absoluto.

No capítulo O Estado de Direito, que finda a Parte I intitulada O Espírito Verdadeiro da seção O espírito da PhG, o “puro pensar” da consci-ência decorrente da cisão da “bela vida” helênica é lido à luz do itinerário histórico-dialético. A pretensão de vontade da pessoa que se toma como “Eu essencial” se torna uma escravidão: ela se pôs deslocada da efetividade, ainda que permaneça dependente desta à realização da sua vontade. Isso se converte num formalismo do direito semelhante à consciência cética. Pois o direito é “vazio” neste deslocamento para com a vontade do cidadão. Não é sua realização, mas condição externa. Toma por seu conteúdo a “posse” da pessoa, então, como o “universal formal” [abstrakte Allgemeine] (PhG § 480) da propriedade. Ou seja, é posta a figura da pessoa de direitos em sua liberdade negativa, limite externo às investidas de terceiros e demarcação dum domínio natural próprio à fruição. Ainda, estabelece um reconhecimento abstrato às pessoas particulares pelo Estado que não converge suas efetivi-dades à unidade da “riqueza universal” (qual afirmada no capítulo posterior, A liberdade absoluta e o terror). Este Estado não é o espírito. Mantém uma relação negativa à pessoa ao arbitrariamente tomar seu conteúdo. Põe-se como o “Senhor do Mundo” [Herr der Welt] (PhG § 481), potência universal que contém o conteúdo da essência, pois estaria nele a superação do reco-nhecimento formal. Mas não a atualiza, mantém relação abstrata à pessoa que então percebe que ser efetiva no Estado é ser sem essência. Julga sua consciência algo desnecessário.

Esta apresentação da PhG alude à formação do pensamento jurídico abstrato no Império Romano. A ela segue a seção A cultura e seu reino da efetividade, quando a pessoa cria para si um “reino efetivo” (PhG § 488) pelo trabalho, já que é pelo resultado deste que é reconhecida. Tal figura carac-teriza as monarquias absolutas da Idade Moderna. A subseção do capítulo conseguinte, A fé e a pura intelecção, aborda a crença [Glaube] do indivíduo em sua pretensão ao conhecimento universal dada na confiança à relação pessoal com o Absoluto. O indivíduo encerrado na consciência julga poder tomar seu pensamento como universal. Mas tal figura é suprimida pelo “puro pensar”, “a consciência do conceito de si próprio” (PhG § 529) que afirma que nada vale pelo conteúdo particular, mas pelo valor universal. A figura da “pura intelecção” [reine Bewußtsein] alude à filosofia de Descartes.

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Vimos o trânsito do formalismo das relações pessoais entre proprie-tários no Estado de Direito à auto-efetivação particular pelo agir poiético em seu reino da efetividade; este pretende imediatamente pôr o próprio pensamento como Absoluto, enquanto Eu “envaidecido” que já recebeu do Estado o “benefício” (PhG § 525) na forma de “riqueza” [Vermögen] (PhG § 526), para então ser deflagrado irracional pelo “puro pensar”. Nisto lemos a compreensão de Hegel dos efeitos da falência da unidade orgânica da política clássica. Esta era dada sobre a noção de conflito pelos pares po-líticos que mediavam suas diferenças na esfera pública como condição ao ganho privado. Sua falência permitiu a ascensão do Império Romano, cujas conquistas resultam no acolhimento da religião e do pensamento cristão, a idealização de um homem transcendente e desinteressado à política, de fácil manejo e controle pelo Estado. Tramita-se do paganismo ao cristianismo, do espírito de um tempo livre que voltava os homens ao Estado ao espírito de um tempo que impunha sua submissão ao mesmo. Pois, se nas religiões pagãs os deuses reinavam apensas sobre a natureza, deixando os homens livres à política, a díke como processo da Themis, a religião cristã teria vindo à Roma arruinada por um povo decadente, substituindo o querer pela prece. O histórico das conquistas de Roma, suscitando que a entrega da liberdade particular traria riqueza e segurança, resulta na morte da virtude e do apego individual para com o todo. Na degradação do homem pela religião positiva vê-se a relação com o poder despótico das monarquias modernas pelo indi-víduo subserviente que desconhece a política como a efetivação da sua von-tade. A religião cristã, promotora da despolitização, pondo-se aos préstimos do poder despótico, imbuía no indivíduo a turva impressão de conduzi-lo da particularidade à universalidade do reino transcendente. Cria quando julga-va saber, não compreendia as relações que de fato definiam seu meio. Não mediava, mas aceitava o que uma realidade inefetiva lhe trazia, pois julgava tal a realização concreta do universal. Na ilusão de que pela “prece” rumaria ao reino dos céus, o indivíduo é embusteiramente conduzido a enriquecer o reino da terra pelo trabalho. Caberia mediar estes reinos.

Mas veja-se: trata-se do indivíduo submisso cujo intelecto passivo aceita por verdades meras impressões advindas do meio caótico no qual crê. Contra tal pretensão de tomar o imediato inefetivo pelo Absoluto surge a atividade do “puro pensar” cartesiano, a construção das próprias verdades tendo por critério o Eu penso. No capítulo posterior, A ilustração, justamente o “pensar” terá por critério o “útil” [nützliche] (PhG § 561) ao conferir forma racional ao conteúdo antes afirmando no âmbito da crença. Sem preten-der aprofundar estes argumentos, tenha-se que pelo “útil” Hegel refere ao pensamento iluminista, à tomada da política pela racionalidade poiética ou, tomando a expressão própria ao “pensar” cartesiano, à tomada da realidade política pelo Eu como o objeto da idéia à qual é criadora. A política retorna ao palco da razão que, como episteme demonstrativa, requer dos objetos a gênese discursiva que encontra no assembleísmo de Rousseau sua mais adequada formulação.

É o auge do pensar, mas, pela figura conseguinte, o “terror” [Schre-

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cken] (PhG § 582), também sua falência. O “terror” decorre da reconciliação da consciência com sua obra enquanto universal. A vontade particular se pretende uma liberdade absoluta: tudo determinou para se igualar à von-tade universal. Mas não resta qualquer objeto indeterminado ao qual recai-ria a vontade universal do Eu poiético que então se põe em amarras. Sem mediação, resta a destruição, o “terror” pelo governo que fixa a vontade universal. Este governo não resiste. Mas pelo “terror” a consciência denota sua máxima positividade: destruída a substância ética, a efetividade subs-tancial é mantida pelas consciências particulares. É o auge da eticidade, pois a consciência nada mais requer da vontade universal (a segurança ao Estado despótico, os céus à fé, etc.). Reconciliam-se os reinos, “o céu baixou e se transplantou para a terra” (PhG § 581) e o ser encerrado na consciência-de-si é agora completo.

Esta formulação remete à compreensão por Hegel da insuficiência do critério do “útil” em fundamentar a realidade política. Atido ao referencial cartesiano, seu critério de universalidade é limitado à forma da objetividade dedutível pela razão particular, um universal formal que finda no horizonte da própria fruição. A liberdade negativa, a limitação de terceiros à fruição em primeira pessoa, quando afirmada, não saberia compor os próprios li-mites: a desnaturalização posta como uma segunda natureza ao objeto de fruição veta toda vontade e, face a isso, negativizar a liberdade de terceiros mediante quaisquer barreiras será empreendimento vão. O Estado deverá diferir da sociedade civil. A condição burguesa construída na égide da liber-dade negativa não eleva a vontade particular à “totalidade”, mas a torna opositora do Estado. A Revolução Francesa bem o mostrou.

2.4 O retorno do espírito à unidade consigo e seu itinerário na tragédia bur-guesa

A reconciliação da vontade particular à vontade universal será o tema da seção A sociedade civil-burguesa (SCB) da Philosophie des Rechts. A SCB estabelece o desprendimento do indivíduo à substancialidade ética imediata que lhe era própria enquanto membro da família. Enquanto pessoa concreta e privada, insere-se no nexo social a fins estritos de prover a própria satis-fação. É a indiferença recíproca e a apatia entre os particulares proprietários que caracteriza a sociabilidade burguesa, o que Hegel tomará como a “etici-dade perdida nos seus extremos” (PhR § 184). Mas a eticidade igualmente orienta-se à “idealidade” de um Estado racional, não limitado à garantia institucional de segurança e propriedade (jusnaturalismo contratualista), mas comprometido com a participação dos indivíduos aos assuntos públicos enquanto cidadãos. Na suspensão dialética da família pela SCB, o indivíduo é isento de participação à imediata substancialidade ética à situação de ter que “valer por si próprio” (PhR § 255). O fará integrando-se ao sistema de mútua dependência entre particulares pelo qual suas necessidades se-rão condicionados pela mediação social. Se tal constitui a suspensão pelo particular da eticidade imediata, natural, a uma reflexiva, universal formal (“sistema de dependências omnilateral” - PhR § 183), significará igualmen-

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te a determinação do querer e do saber singular em conformidade a essa mediação. Ou seja, se ao particular é conferido o “direito de desenvolver-se para todos os lados”, à universalidade é dado o “direito de demonstrar-se como fundamento e forma necessária da particularidade” (PhR § 184), que a conduz, assim, à mediação social dos seus próprios fins e à elevação de sua subjetividade.

Tal é o mecanismo que estabelece o “entrelaçamento multilateral” (PhR § 199) dos homens em suas atividades, que causa a conversão do “egoísmo subjetivo” em “contribuição à satisfação das carências de todos” e possibilita a cada um o acesso à “riqueza permanente, universal”. Igual-mente, dada a divisão técnica e social do trabalho e a multiplicação das necessidades, a satisfação das carências é levada ao “refinamento” (PhR § 191), um “ir além” (PhR § 190) às restrições à “libertação” (PhR § 194) das necessidades naturais. Contudo, igualmente resultando da divisão do trabalho e das necessidades, tem-se que as relações sociais dos indivíduos se tornam mais abstratas. Pois, se a divisão do trabalho progride a fins de atender o refinamento das carências, noção moderna de consumo pela qual o homem consome “produções humanas” (PhR § 196), tal amplia a “de-pendência e relação recíproca” (PhR § 198) dos trabalhos dos indivíduos. O trabalho é “mais mecânico” (PhR § 198). Os meios de satisfação às ne-cessidades se multiplicam, ao passo que “não é tanto o carecimento, mas a opinião a ser satisfeita” (PhR § 190 A). Socialmente mediadas, as carências particularizam-se e dão-se mais abstratas.

Em O sistema das necessidades [Das System der Bedürfnisse,§§ 189-207], primeira subseção da SCB, o indivíduo articula-se ao “nexo social abstrato [abstrahere]” (PhR §186) a fins estritos de atendimento às próprias carências (esfera do mercado). A abstração do nexo social progride à medi-da da multiplicação das relações entre os homens na produção e consumo. Seu reconhecimento recíproco, enquanto “pessoas proprietárias em suas esferas de liberdade negativa” (MÜLLER, p. 16), igualmente abstrai-se no caráter instrumental da mediação social em sua dinâmica própria. A perso-nalidade burguesa constituída na esfera da propriedade pela noção da liber-dade negativa não constitui por si própria condições de restabelecimento da unidade ética cindida. A particularidade autônoma e a universalidade formal, princípios da SCB, permanecem dissociadas e a sociabilidade burguesa não ultrapassa o estágio conceitual da “eticidade perdida nos seus extremos” (PhR § 184).

O Estado, para Hegel, a partir da sociabilidade burguesa estabelecida na liberdade negativa da propriedade, concatena as vontades particulares à própria racionalidade, a “autoconsciência particular erguida à universa-lidade do Estado” (PhR § 258). Mas como estabelecer a liberdade positiva do cidadão a partir da liberdade negativa do burguês sem suprimir esta por aquela? Urge lembrar que a reconciliação da fruição burguesa ao dever cidadão refere à reconstrução hegeliana da fragmentação da unidade ética greco-clássica em sua organicidade e conflito, logo, ao término da violência

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(Gewalt) característica à SCB como o “resto do estado de natureza” (PhR § 200), ainda, à conciliação moderna entre lei divina e lei humana, liberdade e necessidade. Ou seja, à cidadania heróica cuja auto-realização decripta as razões pressupostas à trama ética e supera a peripatéia trágica do próprio destino.

A resposta de Hegel consiste em situar o Estado no interior da SCB (“Estado exterior” - PhR § 157), como espaço público-político da cidadania avesso à “desorganização” (PhR § 255 A) imanente à estrita dinâmica social. O Aufklärer que na PhG dispensou o Pastor não dispensa a graça na PhR na dialética cristã da condição subjetiva à liberdade objetiva. A racionalidade estratégica dos proprietários terá concomitante a si um espaço não mais meramente privado, mas público e cuja racionalidade supera a lógica de mercado. O Estado atua na SCB a fim de universalizar a liberdade negativa que, como direito de todos, é condição à autonomia subjetiva do cidadão. As seções seguintes, A Administração do Direito [Die Rechtspflege, B §§ 208-28] e A Polícia e a Corporação [Die Polizei und Korporation, C §§ 231-256), situam as medidas administrativas do Estado auto-pressuposto na socieda-de civil a fins da “regulação” (PhR § 236) da emancipação da particularidade autônoma e da decorrente dinâmica social antagônica. Cabe à Administra-ção do Direito garantir a propriedade, pois o “homem trabalha” e “os meios para tanto têm de lhe ser assegurados” (PhR 208 Z). Torna inexistente a contingência à atribuição do que é devido a cada indivíduo ao anular a lesão cometida à personalidade. A tanto, confere-a do “reconhecimento legal”, a importância de “coisa universal” (PhR § 218) que conduz o direito da pessoa ao reconhecimento pelos demais enquanto fundado na racionalidade univer-sal que lhe condiz como Estado exterior. Promotora da ordem social, a Polícia desempenha o que Hegel tratou por “tarefas universais” (PhR § 235), o con-trole à educação, iluminação pública, à criminalidade, a “regulação do mer-cado” (pois a “liberdade de empreendimento não deve ser tal que ponha em perigo o bem geral”), etc. A Polícia indistintamente estabelece aos indivíduos certa participação à riqueza social para além das “contingências de habilida-de, saúde e capital” (PhR § 236). Nisto, instaura grau de racionalidade que supera a dinâmica social-burguesa, pela qual o indivíduo é “abandonado” (MÜLLER, p. 31) às engrenagens do sistema de trabalho e consumo que ele próprio produz. Ou seja, eleva-se a condição social do indivíduo pelo Estado auto-pressuposto na SCB à consideração de “indivíduo universal” (PhR § 236).

Contudo, mesmo que tais medidas administrativas do Estado sejam amplamente referidas a todos os indivíduos, não significarão senão numa “união relativa” entre a universalidade formal e a particularidade autônoma, dado o caráter de “ordem externa” [äußerliche Ordnung - PhR § 229) que comportam. A capacidade administrativa do “Estado exterior” é insuficiente à eticização da SCB. Hegel apresenta, assim, na segunda subseção da ter-ceira seção (C) da sociedade civil-burguesa, A Corporação (§§ 250-54), as organizações sociais próprias ao estamento [Stand] industrial. Elas têm por função aglutinar o elemento comum dos interesses particulares em “siste-

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mas particulares de carências” (PhR § 201). São responsáveis pelo estabe-lecimento de uma eticização “concreta” da sociedade por partirem de uma “universalidade ínsita” (PhR § 229), comum a certa parcela da sociedade, permitindo que “a singularidade do interesse se organize” (PhR § 251 A). Ou seja, tiram o indivíduo do estrito horizonte dos fins egoístas, promovendo sua defesa pelo socorro mútuo, dignidade profissional e certa estabilidade aos azares do mercado. Estabelecem que a importância à providência às necessidades do particular não relevará mais somente a si, mas a todos os demais que em reconhecimento de igualdade social consigo se organizem corporativamente. Em Corporação, o indivíduo assume seu lugar no Estado, pois o indivíduo “particular necessário é o particular enquanto universalmen-te válido” (PhR § 201 A). Tal é o que permite ao Estado organizar-se enquan-to “todo articulado nos seus círculos particulares” (PhR § 308 A 2). Contará com indivíduos reconhecidos nos seus meios particulares, cônscios de que seus interesses próprios são promovidos e garantidos pelo Estado. Assim, a vontade egoísta burguesa em Corporação eleva-se à “disposição de ânimo comunitária” (MÜLLER, p. 34), a reintegração do indivíduo ao todo ético.

2.5 Entre o bourgeois e o citoyen: a dura passagem à universalidade singu-lar do cidadão

A filosofia hegeliana como o projeto de superação da cisão kantia-na entre coisa e coisa-em-si que não cinde ao propósito crítico afirmado por Descartes, Kant e Fichte, tem na elaboração sistemática suas condi-ções de realização. Cabe ater à exposição sistemática a partir da “divisão” [Einteilung] proposta por Hegel que cada momento não traz mais do que uma “antecipação” [Antizipiertes], algo de “incorreto” [Unrichtige - Enz. I § 18] que só se resolve no fechamento do sistema. À afirmação do sistema como o “círculo dos círculos” [Kreis von Kreisen - Enz. I § 15] subjaz a no-ção dos momentos se construírem como desenvolvimentos que resguardam resultados intrínsecos a serem integrados somente ao cabo do sistema. À elevação dos momentos parciais que integram o “círculo de objetos” [Kreis von Gegenständen] a cada um pertinente à unidade condiz a “satisfação” [Befriedigung - Enz. I § 8] do espírito que “ganha o pensar por seu objeto” [das Denken zu seinem Gegenstande gewinne - Enz. I § 11]. O que equivale à mostração de toda necessidade exterior [Notwendigkeit] como necessi-dade imanente [Bedürfnis], a conversão do ser ao pensar mediante sua articulação junto ao fundamento comum pressuposto. Mas o “começo da filosofia” [Anfang der Philosophie], atido aos referenciais das “ciências em-píricas” [empirische Wissenschaften - Enz. I § 7], tem-nos como momentos extrínsecos. Cada um, em sua pretensão epistêmica, não é mais do que um “pensar abstrato”, o “pensar fixo na universalidade das idéias” [das Denken bei der Allgemeinheit der Ideen stehenbleibt] e a “imediatez própria, refle-tida sobre si e, portanto, dentro de si mediatizada, do pensar (o a priori) a universalidade” [eigene aber, in sich reflektierte, daher in sich vermittelte Unmittelbarkeit des Denkens (das Apriorische) ist die Allgemeinheit - Enz. I § 12 Z].

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“Imediatez” e “mediação na consciência”, “princípios” [Prinzipien], respectivamente, da “revelação no exterior” [Offenbarung im Äußeren] da imediatez e do pensar universal, terão pelo “conceito” [Begriff] no “sentido especulativo” a “resolução de suas próprias contradições” [Widersprüche - Enz. I § 11]. “A Lógica especulativa contém a Lógica e a Metafísica de outro-ra” [Die spekulative Logik enthält die vorige Logik und Metaphysik - Enz. I § 9]. Esta “resolução”, que só será levada a cabo na Filosofia do Espírito pela passagem da SCB ao Estado, a partir dos momentos cindidos, elucida seus papeis sistemáticos como Ciência da Lógica e Filosofia da Natureza. Os den-sos dezoito parágrafos da Einleitung da Enciclopédia justificam estas afirma-ções. Neles Hegel antecipa a gênese do “conceito” ao afirmar a admissão do conteúdo empírico como co-originário à subjetividade (Enz. I §§ 10-12), lançando luz aos conceitos lógico e real-sistemático do espírito que ditarão, respectivamente, a Lógica do Conceito e a Filosofia do Espírito Subjetivo. Igualmente, desautoriza a pretensão de verdade à filosofia não sistemática (Enz. I § 14), elucidando-a como a “totalidade” avessa à cisão da imediatez à mediação que será expressa na resolução entre corpo e alma que traz a natureza ao pensar como condição da conceptualidade fenomenológica que anuncia o “conhecimento conceituante” [begreifenden Erkennen - Enz. III § 465 Z] da Psicologia da Filosofia do Espírito Subjetivo.

Neste sentido, à Ciência da Lógica incide a afirmação do subjeti-vismo que lhe é própria. Subjaz à equivalência da pressuposição do todo indeterminado ao nada determinado a atribuição de um papel sistemático à perspectiva subjetiva. Pois, qual o meditador cartesiano libera seus pensa-mentos no intuito de uma primeira verdade relativa estando ciente de que a suspensão da dúvida requererá uma propedêutica intrínseca à dinâmica do real, o “sujeito filosofante” hegeliano a terá na passagem da logificação da natureza à naturalização da lógica operada em foro subjetivo que, portanto, ainda requererá seu empenho real-sistemático. À luz da primeira certeza metafísica, a filosofia hegeliana dispõe sua primeira determinidade, que, às vezes da primeira verdade ao sujeito, advém como uma liberdade no mun-do. Como a pedra de toque da objetividade espiritual pela subjetividade au-toconsciente, a elevação do fenomenológico ao lógico mediante a passagem do lógico ao noológico, no Espírito Subjetivo o limite do conteúdo do saber é o da objetividade fenomenológica afirmada na relação sujeito-objeto. “A enérgeia do espírito prático é finita porque ainda não tem como seu con-teúdo a razão plenamente desenvolvida, aquela que cumpre a unidade de espírito subjetivo e espírito objetivo” (AQUINO, 2007, p. 33). A pretensão do espírito livre de dispor do real como autoconsciência que pressupõe seu pensar à coisa, às vezes da essência desta, é algo ainda subjetivo. Logica-mente, tal perfaz a afirmação de um fundamento real pressuposto a ambos, ao pensar e à coisa, condição da sua comunicabilidade própria ao método dialético. Mas, fenomenologicamente, a afirmação desta condição anterior à relação epistêmica alocada ser o suporte à pretensão do salto [Sprung] do subjetivismo elucida o limite do pensar no Espírito Subjetivo como mera unidade originária da subjetividade absoluta.

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Na Ciência da Lógica, a Existência como primeira imediateidade-me-diada trouxe à luz o Fenômeno como “coisa” [Sache] que pela Exposição do Absoluto teve, sem qualquer acréscimo de conteúdo, sua resolução como Substância causa sui, unidade autocausada. No Espírito Subjetivo, a objeti-vidade fenomenológica no Espírito teórico da Psicologia terá pressuposto ao seu conteúdo o pensar, quando será “coisa” [Sache], produto da inteligência que conjuga seu outro, então, enquanto Espírito livre que sabe a si mesmo ao ter por objetividade o “sentimento prático”, querer cujo conteúdo é idên-tico ao da razão. Em ambos os casos, essência e aparência ou pensamen-to e realidade, o Entendimento [Verstand] é categorialmente conduzido ao status de conteúdo co-originário à Razão [Vernunft], o ser como idêntico ao pensar.

Tal rejeição à absolutização do Entendimento dará mote aos mo-mentos da Filosofia do Espírito Objetivo. Percorridos como a Bilgung que na real-sistematicidade supera as etapas da epistemologia hipotético-dedutiva moderna, expressam a articulação entre ética e direito desenhada à luz do idealismo absoluto hegeliano: o Direito Abstrato como um modelo hipotético formal elaborado pelo indivíduo na égide da sua primazia ao todo dita o con-sentimento à alienação dos direitos naturais proposto pelo Direito Natural moderno. Como momento essencial, a Moralidade, segundo a perspectiva subjetiva do Eu transcendental kantiano, instaura a tomada pelo indivíduo das causas pressupostas à ordem externa que lhe é trazida, contudo, como a dedutiva particularização do universal própria ao entendimento diferencia-dor [Verstand] que a ela corresponde. Por sua vez, a Eticidade une ambos os princípios dos quais parte, objetivo e subjetivo, nómos e ethos, lei e moral: o burguês que tornou subjetiva a ordem externa que lhe foi imposta, contudo, enquanto causa eficiente estrita à realidade particular, ressignifica a obje-tividade segundo os referenciais extrínsecos do Estado exterior que então percebe e quer. Supera a Tragödie im sittlichen ao tornar suas as razões que fundamentam a realidade social e conferem ao seu destino um caráter ético. Noutros termos, a intencionalidade fenomenológica do fim burguês se eleva à racionalidade do Estado para condizer à passagem da subjetividade par-ticular à realidade ética. A realização teleológica da subjetividade particular remonta à mediação reflexiva pelo Conceito do conteúdo da Objetividade a qual tem como seu para-si, logo, sua passagem à Idéia, terceiro momento da lógica subjetiva na WL. A adoção da racionalidade do Estado como a es-sencialidade da mediação reflexiva torna a livre volição do burguês um ato de querer conforme o dever, a reta razão que atribui à universalização dos direitos humanos moderna a própria excelência conferida ao Ich will do mo-narca.

Conclusão

O presente itinerário teórico procurou equacionar a cosmovisão siste-mática da filosofia hegeliana e suas implicações ético-políticas ao imaginário cultural trágico greco-clássico. O ideário clássico da virtude que, da tragi-cidade do sistema de fatos pré-civilizatório adentra os negócios humanos,

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joga luz ao dignificar do burguês pelo status do cidadão cuja subjetividade infinita nas Corporações profissionais superou a insuficiência particular à necessidade imanente do conceito. Nesta ótica, a filosofia hegeliana afirma a vitória do herói institucionalizado no âmago das Corporações, a syn díkei da modernidade.

Uma questão permanece: a realização pelo espírito do seu conceito no tempo terá acabamento no Espírito absoluto (EA) como a suprassunção da Natureza. O trânsito do EO ao EA prevê o passar [übergehen] dos mo-mentos enquanto salto à unidade das razões. O que permanece é o próprio conceito no espírito enquanto subjetividade absoluta, “a inteligência, em-si livre... liberada em sua realidade efetiva para o seu conceito” (AQUINO, 2005, p. 333). O sujeito protagoniza o lógico e efetiva o conceito subjeti-vo. Ao cabo, sua inteligência equivale à idéia absoluta. Nisto subjaz que as configurações do ES e EO são meta-históricas, pressupostas ao agir ético se manifestar. A filosofia como um “projeto do passado” tem sua resolução quando este é igualmente resoluto. O sujeito é subjetivamente livre no ES, condicionadamente livre no EO para no EA ter seu agir propriamente livre na suprassunção da necessidade material, na idéia absoluta tendo face a si a realidade efetiva. O agir finito do EO no EA manifestará sua verdade na intuição da arte, na representação da religião e no pensamento da filosofia. Como síntese da síntese da materialidade, o EA é o triunfo da razão teórica. Ao cabo, a vontade livre que é consciência universal suspende sua intuição ao reencontrar na forma filosófica, artística ou religiosa o que outrora lhe era imediato. A “elevação do espírito a Deus está contida no conteúdo da razão prática” (AQUINO, 2005, p. 333) e Hegel louva a Kant por tê-lo afirmado (Enz. § 522).

Mas o modo sistemático pelo qual Hegel deriva da lógica sua compre-ensão ético-política permitiu que lhe recaíssem diversas críticas de necessi-tarismo. Uma sistematicidade que põe o real num ordenamento necessário enquanto fluxo de mediação que assevera a vivacidade do todo dispõe a par-te mediante argumentos que pretensamente lhe excedem a compreensão. O objeto posto à razão constitui à mesma um bem, o fundamento do discurso moral dado na justaposição do objeto à razão particular com vistas à equali-zação desta relação à dinâmica do todo. A constituição da objetividade pela lógica, sua anteposição ao real, tanto torna o caráter mediativo da positivi-dade conferidor da idéia de bem, quanto aporta aquilo avesso à mediação como o mal positivo. De outra forma, a resolução do particular (objeto) pelo universal (logicidade) tem desfecho no singular concreto (bem), relação esta cujo rompimento caracteriza um mal a ser extirpado do sistema.

As gerações posteriores a Hegel viram muitas de suas idéias serem integradas ao horizonte político alemão (quais as reformas trabalhistas e econômicas de Bismarck). A ascensão da quase medieva Alemanha, então potência européia, é assimilada à idéia de um Estado forte e presente. A culminância deste processo e seu fracassar pelo totalitarismo permanecerão na esteira de um mesmo prisma para pensadores que sofreram o holocausto

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e que no antisemitismo perceberam as tristes conseqüências da afirmação sistemática de um mal positivo. A crítica à logicização do real proposta por Adorno e Benjamin, seu caráter falacioso, e as conseqüências sociais e polí-ticas deste necessitarismo que ao cabo não convergiria à liberdade, hoje de-safiam o filósofo. Em suma, haveria dimensão libertária nas instituições que convergem a emersão da filosofia, religião e arte na imersão sistemática? Pois então seria a práxis cidadã a forma aparente de uma definitória poíesis burguesa? E, seguindo Brecht, o que resta quando a pretensão heróica foi assimilada como uma ferramenta de atualização do sistema?

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Estética e Consciência infeliz na filosofia hegeliana

Lincoln Menezes de França1

Resumo: A oposição entre a finitude do homem e o pensamento do infinito é essencial para a caracterização da consciência infeliz hegeliana, pois o pensamento do infinito só se realiza através da finitude humana. A realização da verdade só é possível, assim, na História onde o Espírito se manifesta. Segundo Hegel, arte, religião e ciência conciliam Idéia e Forma na História de acordo com as características de cada povo histórico universal. Nesse sentido, por exemplo, a arte consegue realizar essa conciliação imediata na Grécia Antiga, momento feliz da História. Entretanto, a arte não tem essa possibilidade de realização na modernidade, pois as necessidades do espírito são outras, não se encontram na sensibilidade, mas na razão, assim, somente a razão teria a condição de realizar essa reconciliação do espírito. A arte continuou buscando em vão essa reconciliação, sendo o romantismo expressão moderna fragmentada dessa impossibilidade, pois manifesta na própria arte a necessidade da filosofia. A consciência infeliz da realização infinita do pensamento na finitude humana se manifesta historicamente, sendo a arte romântica expressão disso.

Palavras-chave: Consciência Infeliz; Arte; História.

Abstract: The opposition between man’s finite and the thinking of the infinite is essential for the characterization of the Hegel’s unhappy conscience, because the thinking of the infinite only takes place through the finite human. The accomplishment of the truth is only possible in the History where the Spirit manifests himself. According to Hegel, art, religion and science reconci-le the infinite and the finite in the History in agreement with the characteristics of each universal historical people. In this way, for example, the art gets to accomplish that immediate concilia-tion in Old Greece, happy moment of History. However, art doesn’t have that accomplishment possibility in the modernity, because the needs of the spirit are another, they aren’t in the sen-sibility, but in the reason, in this way, only the reason would have the condition of accomplishing that reconciliation of the spirit. Art continued looking for that reconciliation in vain, being the romantism fragmented modern expression of that impossibility, because it manifests in the own art the need of the philosophy. The unhappy conscience of the infinite accomplishment of the thinking in the human finite manifests historically, being art romantic expression of that.

Key-words: Unhappy conscience; Art; History.

Introdução

Neste trabalho trataremos de alguns elementos da consciência infeliz na filosofia da arte hegeliana. A consciência infeliz é uma característica cen-tral do pensamento hegeliano, pois fundamenta a tarefa central de Hegel, qual seja, unir o que foi separado na história, finito e infinito, essa cisão entre finito e infinito, sensível e supra-sensível se evidencia na filosofia he-geliana por meio da consciência infeliz que propicia uma busca árdua do es-pírito no reconhecimento histórico racional de si mesmo em sua liberdade.

1. Mestrando em Filosofia na Unesp / Marília. Texto submetido em Julho de 2008 e aprovado para a publicação em Maio de 2009.

Revista Eletrônica Estudos HegelianosAno 6, nº10, Junho-2009: 109-121

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A arte, na filosofia hegeliana, apresenta papel fundamental no per-curso do espírito em seu reconhecimento, pois é uma primeira etapa do

Absoluto, que embora ligada às sensações e à intuição se diferencia da na-tureza, se coloca acima dela e se apresenta como elemento fundamental da vida do espírito que se realiza na História Universal. Uma característica fundamental da arte é sua ligação com a sensibilidade, sua imediaticidade.

Para verificarmos qual o estatuto da arte na filosofia hegeliana é preciso primeiramente considerar como Hegel concebe a arte bela em suas Lições de Estética (Filosofia da Arte) em sua avaliação da arte bela enquan-to objeto científico em suas diferenças em relação à natureza, enquanto manifestação do espírito. Assim, poderemos seguir nossas considerações enfocando a questão da consciência infeliz.

A arte enquanto manifestação do espírito

Nos Cursos de Estética, Hegel (1990, p. 28) já exclui de imediato o belo natural como objeto de investigação, não que não se possa referir a qualquer coisa natural como bela, mas Hegel justifica sua posição afirmando que o belo natural não é produção do espírito e a beleza do espírito se torna mais bela quanto mais distante está do belo natural. Pois o que é do espírito se relaciona com a liberdade e o que é natural não é livre por não ser por si mesmo, por não ser consciente de si.

Ainda no que se refere à superioridade do espírito Hegel mostra que só o espírito é o verdadeiro, pois é absoluto por abranger tudo em si mesmo. Assim, logo de início, temos uma concepção do belo referente a um belo en-quanto expressão do espírito. O filósofo insiste em mostrar que essa postura não é arbitrária, pois o belo artístico, enquanto manifestação do espírito, é distinto do belo natural, pois o primeiro tem relação fundamental com a liberdade.

Num debate com seus contemporâneos, Hegel busca analisar a natu-reza da arte para verificar a seriedade da mesma enquanto objeto científico. Numa primeira hipótese, o filósofo indica que aparentemente a arte não tra-ria nada de interessante à ciência, pois relacionar-se-ia com o entretenimen-to e com a ilusão, não tendo qualquer relação com a verdade da vida. Nesse sentido, considerando a arte numa relação com os fins sérios da vida, sendo mediadora entre razão e sensibilidade, Hegel questiona se a razão ganharia algo com essa mediação, já que entraria em contradição com os fins sérios, fazendo com que a arte possa não ser digna de tratamento científico, já que o belo artístico, por ser produção da imaginação se apresenta às intuições, sensações, à imaginação o que o diferencia do saber científico, estritamente racional.

Entretanto, essas características não dizem respeito à arte livre. Aqui temos uma característica interessante da arte enquanto espaço autônomo

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de realização do espírito, essa autonomia da arte já se colocava em Kant, entretanto, com o filósofo de Königsberg verificamos uma crítica da razão na analítica do belo, ou seja, a preocupação kantiana é verificar a faculdade de julgar enquanto característica racional, que todo ser racional teria po-tencialmente e isso possibilitaria o exercício da liberdade. Mas, do ponto de vista hegeliano a filosofia kantiana embora considere a arte como espaço de reconciliação entre liberdade e natureza, sensibilidade e conceito, ainda permanece subjetiva, portanto, unilateral.

Diante do que se coloca para ele, Hegel mostra as seguintes carac-terísticas da arte, agora já enquanto objeto científico. Como já observamos, a arte não é um produto da natureza, é produto da atividade humana e se liga aos seus sentidos, tendo uma finalidade em si mesma. A arte é produto da atividade humana que expressa o espiritual, o divino, para o homem, aos seus sentidos, atividade que não é uma mimese da natureza, mas expressão espiritual que a ultrapassa, que tecnicamente e por inspiração do gênio se configura na forma artística, expressando a particularidade de um povo na universalidade, expressando uma necessidade racional, da exteriorização da individualidade para a universalidade, levando-a a intuição do outro, po-rém, é preciso considerar que embora seja correto afirmar que a arte seja expressão da livre racionalidade humana ela apresenta limitações diante de outras formas de manifestação do espírito na história. A arte, desse modo, concilia o pensamento do infinito e a finitude humana de maneira sensível, imediata.

Assim, a arte como espaço autônomo de realização do espírito num primeiro momento, por expressar o que é do espírito não é tratada secunda-riamente na filosofia hegeliana, sendo que um aspecto fundamental dessa fi-losofia, a consciência infeliz é evidenciada nas lições de estética hegelianas. Mas, Hegel, antes disso, faz uma importante distinção da bela arte da arte fugaz, que se coloca como meio e não como uma finalidade em si mesma. Assim, a arte digna de ser tratada é a arte livre em seus meios e fins. Essa dupla característica da arte faz Hegel apreciar uma analogia com o pensa-mento, que pode ser livre, mas também servir como meio a determinados fins. Vejamos como Hegel em suas palavras caracteriza a arte livre, ou seja, enquanto expressão autônoma e faz essa analogia com o pensamento:

[...] o que nós pretendemos examinar é a arte livre tanto em seus fins quanto em seus meios. Que a arte em geral também atenda a outros fins e com isso possa ser apenas um jogo passageiro, esse aspecto ela possui em comum com o pensamento. Pois, por um lado, a ciência pode ser em-pregada como atendimento servil para fins finitos e meios casuais e assim não adquire sua determinação a partir de si mesma, mas a partir de outros objeto e relações; por outro lado, ela também se liberta dessa servidão para se elevar à verdade numa autonomia livre, na qual ela se realiza in-dependentemente apenas com seus próprios fins. (HEGEL, 1990, p. 32)

E chegamos a um ponto fundamental das considerações hegelianas acerca da arte. Com Hegel a arte ganha um estatuto sem precedentes na

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filosofia, pois considerada autonomamente, ou seja, livre, ela se situa no mesmo patamar da religião e da filosofia, por ser uma expressão da consci-ência e do divino, dos mais importantes anseios da humanidade e do espíri-to, ou seja, a arte manifesta verdades do espírito, sendo a arte uma chave fundamental para a compreensão do espírito de determinados povos, sendo às vezes a única chave compreensiva, pois a arte expressa, para Hegel, as intuições interiores e representações substanciais dos povos2.

Frente à filosofia e à religião a arte apresenta uma característica pe-culiar, já que apresenta o espiritual de forma intuitiva, sensível, aproximan-do-se, desse modo, da natureza, sendo que isso propiciará a reconciliação imediata para um determinado povo (o povo grego) entre Forma e Idéia. Hegel mostra que essa característica da arte expressa a profundidade do mundo supra-sensível, que tem relação com o pensamento, que é encarada pela consciência e pela sensação imediatamente como algo que está além, que não vê necessidade na finitude, assim, configura-se o corte da consci-ência em relação a si mesma, ou seja, a consciência se vê diante de si com uma liberdade infinita, mas que não se realiza sem a finitude, sendo a arte um primeiro elo de ligação, uma primeira maneira de cura do corte entre a sensibilidade finita e o puro pensar. Vejamos como o nosso filósofo configura esse processo na Estética:

Trata-se da profundidade de um mundo supra-sensível no qual penetra o pensamento e o apresenta primeiramente como além para a consciência imediata e para a sensação presente; trata-se da liberdade do conhe-cimento pensante, que se desobriga do aquém, ou seja, da efetividade sensível e da finitude. Este corte, porém, para o qual o espírito se dirige, ele próprio sabe o modo de curá-lo; ele gera a partir de si mesmo as obras de arte bela como o primeiro elo intermediário entre o que é meramente exterior, sensível e passageiro e o puro pensar, entre a natureza e a Efe-tividade finita e a liberdade infinita do pensamento conceitual. (HEGEL, Cursos de Estética, p. 32-33)

Assim, a arte seria o elo imediato entre o sensível e o supra-sensível e, por isso, é também expressão de um momento do espírito, de um estágio da verdade na história universal, pois sua forma se limita a um determinado conteúdo. Aliás, no que se refere à oposição entre forma e conteúdo, Hegel mostra que a aparência se caracteriza por expressar algo da essência, nes-se sentido, a forma e a aparência não podem ser desconsideradas, já que é por meio da forma que a coisa se apresenta para nós. Nesse sentido, a arte embora tenha como fundamento o que aparenta, ela apresenta algo da

2. A idéia de espírito de um povo é um fundamento importante da Filosofia da História hege-liana, pois considera os costumes de um povo, suas características peculiares enquanto ex-pressão do espírito, sendo que isso pode ser uma chave importante para o entendimento da concepção hegeliana da filosofia da arte, pois a história também é um fundamento importante do sistema hegeliano, já que é efetividade, frente à concepção formalista – do ponto de vista hegeliano – da filosofia kantiana, já que a vida de um povo é um conteúdo do qual Hegel não prescinde, além disso, cabe mencionarmos aqui nesse parêntese a concepção filosófica hege-liana enquanto sistema, isso tem fundamental importância, pois expressa essa necessidade hegeliana do absoluto, que abarque a totalidade, pois nada unilateral, do ponto de vista hege-liano, é totalmente verdadeiro.

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verdade, aliás, um estágio da verdade, por isso, a arte deve ser considerada cientificamente como expressão fundamental de um momento da história universal, no qual o absoluto torna-se consciente de si mesmo, esse mo-mento é o mundo grego. Assim, no mundo grego, a arte enquanto elo entre o sensível e o su-pra-sensível, com sua característica intuitiva é a consciência de si do abso-luto na sensibilidade, mas não a expressão mais alta dessa consciência, pois a forma artística não penetra no puro pensar, o que limita esse determinado momento do espírito. Como Hegel apresenta uma concepção universal de história na qual há estágios de desenvolvimento da idéia de liberdade (que é racional) e o mundo grego não é o momento mais alto desse reconhecimen-to do espírito na História até então, a arte, por expressar a consciência de si do mundo grego não expressa o momento mais alto do reconhecimento de si do espírito, mas a arte é a expressão mais alta do espírito de um momen-to fundamental da história universal, do ponto de vista hegeliano, que é o mundo grego.

A Filosofia da Arte hegeliana e a consciência infeliz

Vejamos agora como Hegel encara o desenvolvimento da arte na história e como a consciência infeliz se constitui. Para isso devemos ter em mente que, para Hegel, a arte é manifestação do espírito, sendo a história o palco dessa manifestação. A liberdade do espírito está em sua autoconsciên-cia que vai se constituindo na história universal em sua manifestação racio-nal no espírito dos povos. Em cada estágio do desenvolvimento do espírito, este se manifesta de maneira mais completa até chegar à consciência de si. A arte é expressão do primeiro momento de reconciliação do espírito numa determinação imediata. Ou melhor, o homem, em diversos momentos da história, apresenta uma dualidade, em que se vê cindido, pois a realização de si mesmo pode se apresentar num além da vida sensível, o que expressa uma consciência que se vê infeliz por ser finita e infinita. Assim, o homem tem consciência de sua condição na qual se vê numa razão infinita, que só pode vivenciar a finitude.

A arte é uma manifestação do espírito que tem uma finalidade em si mesma, suaviza a arbitrariedade, ao mesmo tempo em que expressa uma moralidade, sendo que essas duas últimas implicações não são finalidades mesmas da arte, pois ela não é um meio para outros fins, mas um fim em si mesmo. Assim, a arte, para Hegel, é uma expressão do espírito que tem a condição de unir o sensível e o supra-sensível de forma imediata, para a intuição sensível.

Há um povo específico na História Universal que se satisfaz com a plenitude da condição da arte de unir o sensível e o supra-sensível imediata-mente, o povo do qual falamos é o povo grego. E no decorrer do desenvol-vimento do espírito, a verdade se configura de outras maneiras, sendo que o momento subseqüente ao grego já expressava uma versão mais profunda de verdade, é a concepção cristã da verdade, que separa o mundo sensível

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do supra-sensível e a arte não consegue mais ser esse elo, não podendo mais satisfazer as necessidades do espírito, pois a modernidade não é mais capaz de “venerar as obras de arte como divinas” (HEGEL, 1999, p. 34). A arte, por ser espiritual expressa na forma sensível o conteúdo da Idéia universal que se configura no mundo, efetivando o que é divino, natural e humano.

Assim, é importante mostrar que a arte é uma manifestação do es-pírito que é por si mesma, mas não é suficiente para a satisfação de todos os povos na história, a arte consegue essa satisfação plena num momento específico da história na qual ela consegue a reconciliação intuitiva do sen-sível e do supra-sensível. As outras manifestações de reconciliação do espí-rito seriam a religião e a filosofia, esta seria o estágio, para Hegel, no qual a modernidade estaria e encontraria satisfação quando da reconciliação da subjetividade com a objetividade, sendo, por isso, que Hegel pratica uma filosofia da arte e por meio da filosofia a reconhece como manifestação do auto-reconhecimento da liberdade do espírito.

Reiteramos que o belo artístico, para Hegel, tem caráter imediato, no sentido de não ser a Idéia enquanto tal, pois por ser imediata não é em si e para si mesmo, mas expressa universalidade que ainda não foi objetivada, por isso, se configura enquanto efetividade individual, pois o belo artístico configura a Idéia concretamente na efetividade em si mesma, determinan-do-se nesse momento como ideal.

Há circunstâncias históricas nas quais a arte apareceria deficiente, pois não há correspondência entre a Idéia e a Forma. A arte suprema con-seguiria exprimir essa correspondência na imediaticidade sensível sendo verdadeira em si e para si mesma numa totalidade, que se particulariza na concretude, evidenciando-se, assim, nessa correspondência o ideal. Há di-versas formas de se conceber essa relação entre Forma e Idéia na arte, que se configuram no desenvolvimento das fases das formas particulares. Nesse sentido, Hegel faz uma divisão que expressa três diferentes expressões des-sa relação entre Idéia e Forma na arte. A primeira é a Forma de Arte sim-bólica, a segunda é a Forma de Arte Clássica e a terceira é a Forma de Arte Romântica. Vejamos como Hegel concebe essa relação em cada um desses momentos e como a consciência infeliz aparece em um desses momentos.

Encarando a História da Idéia como teodicéia na qual o espírito vai se reconhecendo através dos povos, sendo a arte a expressão da relação do Conteúdo da Idéia com a concretude da Forma para imediaticidade sensível, o belo artístico só pode se revelar no desenvolvimento do espírito na Histó-ria.

[...]Reconocer que la historia universal es este curso evolutivo y la reali-zación del espíritu, bajo el cambiante espectáculo de sus acontecimientos, tal es la verdadera teodicea3, la justificación de Dios en la historia. Desar-rollar ante ustedes esta marcha del espíritu universal ha sido mi aspiraci-

3. Grifo nosso, para ressaltar que Hegel encara a História universal como teodicéia.

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ón. (HEGEL, 1989, p. 701)

A Idéia, em sua trajetória de reconhecimento, num primeiro momen-to é indeterminada e ao se configurar na concretude aparece numa deter-minidade abstrata, ou melhor, numa má determinidade, pois a Idéia é tão absurda em seu volume, que não é possível ser reconhecida. O Absoluto se apresenta nesse início enquanto abstração em relação à natureza, além de não se enquadrar à forma e acontecimento humanos, o que configura uma sublimidade, que expressa uma inadequação entre Idéia e Forma.

É importante encararmos a História como teodicéia, pois dessa ma-neira podemos compreender como se desenrola a divisão da arte hegelia-na. Assim, pensemos Deus num primeiro momento, enquanto totalidade e que por ser a totalidade não é possível ser reconhecida, pois a totalidade enquanto tal é inexprimível. Nesse sentido, a configuração artística dos pri-meiros povos expressa um panteísmo que se verifica na arquitetura, nos monumentos absurdamente grandiosos, que apresentam uma sublimidade na qual é impossível o reconhecimento, e por isso, a consciência ainda está num mero tatear da Idéia, que só vai se reconhecer quando da particulari-zação. Nesse sentido, a Idéia, por não se particularizar, aparece de forma sublime na arte, expressando uma total impossibilidade da realização do ideal, pois a concretude da Forma não corresponde à Idéia, o que configu-raria a primeira Forma de Arte, a arte simbólica, que se exprime por meio da arquitetura em grandes figurações tais como as pirâmides egípcias. Na forma de arte simbólica, a arquitetura é a expressão artística que expressa esse momento do espírito.

Na inadequação de uma contra a outra, a relação da Idéia com a objetivi-dade torna-se, por conseguinte, negativa, pois ela mesma, enquanto inte-rioridade, permanece propriamente insatisfeita com tal exterioridadee se estabelece de modo sublime sobre toda esta plenitude de configurações, que não lhe correspondem como a sua substância interior e universal. Nesta sublimidade, tanto o fenômeno natural quanto a forma e o aconte-cimento humanos são decerto tomados e deixados como são, para logo serem reconhecidos como inadequados no que diz respeito a seu signifi-cado, que se ergue muito acima de qualquer conteúdo mundano. (HEGEL, 1999, p. 92)

A reconciliação do Ideal que se expressa na concatenação entre Idéia e Forma se dá na segunda forma de arte, a arte clássica da Grécia Antiga. É preciso, atentarmos, no entanto, que a arte enquanto a expressão da re-lação do Conteúdo da Idéia com a concretude da Forma para imediaticidade sensível, não é a expressão mais alta do Espírito, mas consegue a reconci-liação no mundo grego.

A antropomorfização dos deuses gregos expressa a particularização do Absoluto, sendo que a arte, na forma humana da escultura consegue a satisfação do espírito na individualidade imediata grega na sensibilidade. Aqui temos o primeiro momento do reconhecimento do espírito no qual se expressa a felicidade grega, pois a arte como expressão do divino no hu-

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mano e no natural , em sua configuração sensível possibilitou uma harmo-nização da vida grega na relação harmoniosa entre Idéia e Forma. O grego encontrava em sua imediaticidade sua satisfação no belo artístico, sendo a escultura a expressão artística desse momento, no qual o templo, o edifício arquitetônico tinha como objetivo abrigar as esculturas do divino corporifi-cado na escultura.

Entretanto, os limites do sensível humano começam a se evidenciar mediante a eternidade do Absoluto, e eis que a arte por se relacionar dire-tamente com a sensibilidade não tem condições de satisfazer plenamente o que é do espírito. A reconciliação possível pela arte foi conseguida no mundo grego, a reconciliação possível da arte se relaciona imediatamente com o sensível, o que significa dizer que a arte a partir de então não conseguirá por si só satisfazer aos anseios do espírito em sua trajetória para o reconhe-cimento de si. Vejamos como Hegel, em suas palavras concebe essa relação da Idéia e da Forma na arte grega e como a arte se constitui enquanto insu-ficiente para os fins ainda mais altos do espírito:

A Forma de arte clássica, de fato, alcançou o ponto mais alto que a sen-sibilização da arte foi capaz de alcançar , e se nela há algo de deficiente, tal coisa reside na arte mesma e na limitação da esfera artística. Esta limitação deve ser identificada no fato de que a arte em geral transforma em objeto, numa forma concreta e sensível, o espírito que, segundo o seu conceito é a universalidade infinita e concreta, e apresenta no clássico a consumada formação unificadora [Ineinsbildung] da existência espiritual e sensível como correspondência de ambos. Mas, nesta fusão, o espírito não chega de fato à exposição segundo seu verdadeiro conceito. Pois o espírito é a subjetividade infinita da Idéia que, enquanto interioridade absoluta, não se pode configurar livremente para si quando necessita permanecer fundida ao corpóreo como sua existência adequada. (HEGEL, 1999, p. 93-94)

Por ser em-si imediata, a arte grega se liga à sensibilidade e enquan-to em-si não vai além desse si, mas o espírito não se contenta com esse em-si e, na arte expressa outra configuração que ultrapasse essa imediatez da sensibilidade e se dirija a uma interioridade autoconsciente. Nesse senti-do, o cristianismo tem profunda importância, pois os deuses gregos que se revelavam numa corporeidade humana expressavam apenas o espírito como individual e particular.

O cristianismo supera essa imediatez, pois representa Deus como espírito absoluto, que vai além da corporeidade humana, passando de uma sensibilidade da representação para uma interioridade espiritual. A forma de arte Romântica expressa esse momento do espírito artisticamente, arte essa que supera a si mesma nesse movimento, pois a arte tem relação com a imediatez da sensibilidade, mas na interioridade do espírito o romântico vai além do sensível e aqui se constitui uma espiritualidade livre que busca a reconciliação no interior, deixando o exterior inessencial. Isto é, a interio-ridade superou a exterioridade, sendo essa superação expressa na própria exterioridade, fazendo com que o fenômeno sensível perca seu valor. En-tretanto, a exterioridade é necessária para a manifestação artística. Essa

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inessencialidade da exterioridade é um problema, pois nessa contingência individual da interioridade abre-se espaço para a arbitrariedade, o infortúnio e o crime. A ironia enquanto expressão do romantismo revela esse caráter da cisão e da inadequação da Forma e da Idéia. Assim, nessa configuração a inadequação entre Forma e Idéia ressurge, mas de maneira mais profunda que na forma de arte simbólica pois não expressa na exterioridade o que vem a ela na interioridade. Aqui surge claramente a consciência infeliz na Estética hegeliana.

Por meio disso [o processo da configuração da forma de arte romântica] surge novamente a indiferença, a inadequação e separação entre a Idéia e a forma – como no simbólico -, mas com a diferença essencial de que no romântico a Idéia, cuja deficiência junto ao simbólico apresenta as defici-ências do configurar, deve aparecer em si mesma completa como espírito e ânimo. Por esta razão, esta perfeição superior se priva da correspondente união com a exterioridade, sendo que somente pode buscar e completar sua verdadeira realidae e aparição [Erscheinung] em si mesma. (HEGEL, 1999, p. 96)

A interioridade romântica é expressão de um momento importante do espírito no qual o Absoluto se singulariza em Cristo, vive a humanidade às últimas conseqüências chegando à morte. A morte de Cristo tem profun-das implicações na História universal que se revela no Romantismo alemão, entretanto, é importante atentarmos para essa singularização do espírito, que expressa essa interdependência de Deus em relação ao homem e vice-versa, sendo que essa relação de interdependência se configura na relação senhor-escravo na Fenomenologia, em que a consciência do Espírito busca a si mesma mas vê a necessidade do outro para a sua efetivação na realidade, chegando à infelicidade da consciência diante de sua cisão. As expressões artísticas da forma de arte romântica são a pintura, que se aproxima ainda da escultura; a música, que já dá um passo adiante e a poesia, estágio final da forma de arte romântica.

A relação senhor-escravo, em Hegel, expressa uma relação de in-terdependência do sujeito e do objeto, do homem (enquanto indivíduo) e a objetividade. É uma relação na qual a consciência toma consciência de si mesma no Espírito enquanto eu, ou indivíduo, mas que vê essa dependência no seu outro, no objeto. Isso porque o reconhecimento só é possível, para Hegel, no outro. É no outro que o em-si se reconhece enquanto ele mesmo. Sem o outro ele não é para si.

A separação das figuras (sujeito e objeto) é uma fatalidade da mo-dernidade, já que não é possível um mundo sem sujeito, sendo que sem a diferença não há reconhecimento. Entretanto, a permanência isolada das figuras não permite o reconhecimento das mesmas, pois necessita do outro e é isso que ocorre na forma de arte romântica.

Esse é um ponto central na configuração da filosofia hegeliana, pois, como veremos, é a partir da cisão que a filosofia hegeliana se impõe uma ta-refa, qual seja, a de unir o que foi separado, sensível e supra-sensível, finito

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e infinito, sujeito e objeto, já que a filosofia kantiana apresentou essa cisão, por conta da separação de númeno e fenômeno, mundo sensível e mundo inteligível, que fez abrir uma lacuna na história da filosofia, da qual Fichte e os românticos alemães tomaram consciência, buscando essa reconciliação. Schiller é o primeiro a tomar consciência dessa cisão. Schlegel, com seus fragmentos e sua ironia expressa a necessidade da reconciliação. Com Fi-chte, do ponto de vista hegeliano, a solução foi unilateral, pois se deu num processo dialético de caráter parcial, pois se configurou numa filosofia que considera a relação sujeito objeto de modo subjetivo e com Schelling isso se configurou no sentido inverso numa relação sujeito objeto de caráter objetivo.

Quando da transição histórica da Antigüidade para a Modernidade essa consciência visa-se separada de seu outro, o que a faz perder-se de si mesma, constituindo uma má consciência, pois está cindida de seu outro, portanto, cindida de si mesma, já que não se reconhece, sendo a morte do Cristo histórico, segundo Hyppolite (1999), um fato fundamental, pois o ro-mantismo teria consciência do supra-sensível como fundamental à sensibili-dade, mas que se vê cindido do supra-sensível por conta da morte do Cristo histórico. Assim, na interioridade se prendem à singularidade que já não mais vive. Essa reconciliação já não é mais possível na arte, pois é necessá-rio saber essa condição, sendo a filosofia o caminho para tal reconciliação.

O cristianismo, do qual o romantismo alemão pretende ser uma interpre-tação, é o sentimento – embora não seja ainda o pensamento – do infinito valor da existência singular. “Amai aquilo que nunca será visto duas ve-zes.” O que paradoxalmente se conjuga é esta situação particular da vida e esse termo transcendente que a consciência infeliz pusera inicialmente fora de si mesma. No entanto, a transição do “Uno além do ser” ao “Uno unido ao ser” efetuou-se. Com efeito, a consciência infeliz não está fixa-da em um dos pólos da contradição; descobre-se como movimento para transpor tal dualidade. (HYPPOLITE, 1999, p. 215)

Nesse sentido, Hegel capta uma cisão no mundo moderno, qual seja, a cisão entre sujeito e objeto, isto é, a cisão do sujeito em relação a si mes-mo, que se expressa na consciência infeliz, pois a consciência conscientiza-se de si mesma enquanto cindida do que lhe configura enquanto tal, o seu outro. A filosofia hegeliana ao captar essa cisão na história da filosofia que se revela de forma culminante nas filosofias de Fichte (sujeito-objeto sub-jetivo) e Schelling (sujeito-objeto objetivo) se imporá uma tarefa, qual seja a união do que foi separado, sujeito e objeto, na figura do espírito (santo) dialeticamente.

Hegel, na Fenomenologia do Espírito, descreve o processo de reco-nhecimento de si da consciência, na realização de sua liberdade. O reconhe-cimento da consciência se dá de forma mais completa quando não se vê cin-dida por si mesma e se reconhece no seu outro, numa completude absoluta, que, entretanto, necessita da diferença para se reconhecer e se reconhece na diferença.

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É uma consciência-de-si para uma consciência-de-si. E somente assim ela é, de fato: pois só assim vem-a-ser para ela a unidade de si mesma em seu ser-outro. O Eu, que é objeto de seu conceito, não é de fato objeto. Porém, o objeto do desejo4 é só independente por sua substância universal indestrutível, a fluida essência igual-a-si-mesma. Quando a consciência-de-si é objeto, é tanto Eu quanto objeto. (HEGEL, 2001, p. 125)

Nisso, vemos uma profunda diferença em relação a Kant, o filósofo de Königsberg constitui uma filosofia crítica que do ponto de vista hegeliano tem fundamental importância na história da consciência, mas que faz com que permaneça a cisão entre sujeito e objeto, entre mundo sensível e mun-do inteligível, que em Hegel não é possível, pois o reconhecimento do sujeito só é possível no objeto e vice-versa. Nas palavras de Hegel (2001, p. 126): “A consciência tem primeiro na consciência de si, como conceito do espírito, seu ponto de inflexão, a partir do qual se afasta da aparência colorida do aquém sensível, e da noite vazia do além supra-sensível, para entrar no dia espiritual da presença.”

O projeto hegeliano se desenvolve a partir das questões levantadas por Kant, filósofo este responsável por um importante movimento do espíri-to no qual, com a separação entre númeno e fenômeno, provocou uma cisão profunda entre ser e dever ser, entre finito e infinito. O romantismo alemão que sucedeu Kant promoveu a busca dessa unificação que se completou na filosofia hegeliana.

Hyppolite vê a cisão como característica romântica na filosofia hege-liana e aponta essa tarefa de unificação enquanto traço característico de sua filosofia e vai mais além nas origens da consciência infeliz, mostrando que no judaísmo e em parte da idade média a separação entre finito e infinito é evidente, há uma infelicidade na vida terrena pois aqui na Terra não é pos-sível a realização efetiva da própria vida.

[...] A consciência infeliz, que na Fenomenologia encontra sua encarnação histórica no judaísmo e em uma parte da idade média cristã, é com efeito, a consciência da vida como infelicidade da vida. O homem elevou-se acima de sua condição terrestre e mortal; ele não é mais que o conflito do infinito e do finito, do absoluto que ele colocou fora da vida, e de sua vida reduzida à finitude. Este conflito é a expressão do romantismo e da própria filosofia hegeliana, aquele que corresponde ao dilaceramento e à cisão e que pre-cede toda unificação e toda a reconciliação. (HYPPOLITE, 1971, p. 24)

Essa cisão, na filosofia hegeliana, expressa uma necessidade e será o fundamento da característica central da filosofia hegeliana, qual seja, a dialética e o desenvolvimento do espírito na história na busca do reconhe-cimento de si e sua liberdade que é atingida na reconciliação de si na sua consciência, na razão.

4. A consciência de si, para Hegel, é desejo, pois, num primeiro momento, a consciência-de-si, em sua independência, busca a nulidade de seu outro, mas, logo percebe que a satisfação desse desejo só se coloca por conta do outro.

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No que se refere à consciência infeliz na Filosofia da arte hegeliana a inadequação entre Forma e Idéia expressa no romantismo expressa o cará-ter sensível da arte, que por si mesma não consegue nesse momento

histórico fazer a reconciliação para a satisfação do espírito tal qual tinha conseguido na forma de arte clássica grega. Hegel sintetiza esse movimento nos Cursos de Estética (1999, p. 96) com as seguintes palavras:

Em termos gerais, este é o caráter da Forma de arte simbólica, clássica e romântica que implica os três tipos de relações da Idéia com sua forma no âmbito da arte. As três Formas consistem na aspiração, na conquista e na ultrapassagem do ideal como a verdadeira Idéia de beleza.

Considerações finais

Nos Cursos de Estética (Filosofia da Arte), Hegel demonstra a impor-tância da Arte na configuração do Espírito enquanto expressão do Absoluto, em que este se apresenta numa imediaticidade sensível, reconciliando Idéia e Forma na concretude histórica. Nesse sentido, a arte vai tomando diversas formas no decorrer do desenvolvimento do espírito, tendo como fundamento a relação Forma e Idéia. Num primeiro momento, na Forma de arte simbóli-ca, o Absoluto se apresenta por meio da arquitetura como sublimidade, su-blimidade que expressa a inadequação do Absoluto à forma nas expressões artísticas dos primeiros povos, exemplificado pelo panteísmo oriental.

O segundo momento da expressão artística é a forma de arte clássi-ca, na qual a arte reconcilia Idéia e Forma na intuição sensível.A arte chega a essa concatenação, mas a imediaticidade do sensível torna-se insuficiente para o espírito, que busca a reconciliação além dessa imediaticidade, na in-terioridade do romantismo. A interioridade romântica torna o exterior ines-sencial, o que configura a cisão em relação à unidade da arte clássica. Mas a arte, por se relacionar à imediaticidade do sensível não permite uma nova reconciliação. Assim, a arte romântica, ultrapassa o ideal pela própria forma artística, mas nisso se expressa a consciência infeliz, pois a exterioridade também é necessária para o seu reconhecimento. Essa impossibilidade de reconciliação é expressão da consciência infeliz na estética hegeliana.

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Referências

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HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Lecciones sobre la filosofía de la historia universal. Tradução: José Gaos. Alianza Editorial, S.A.: Madrid, 1989.

HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do Espírito. Tradução: Pau-lo Meneses com a colaboração de Karl-Heinz Efken. Editora Vozes Ltda.: Petrópolis, 1992.

HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Epítome. Volume I. Tradução: Artur Mourão. Edições 70: Lisboa, 1988.

HYPPOLITE, Jean. Introdução à Filosofia da História. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 1971.

HYPPOLITE, Jean. Gênese e Estrutura da fenomenologia do Espírito. Discur-so Editorial: São Paulo, 1999

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Hegel e Hamann: alguns diálogos

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RESUMO: O presente texto busca explicitar o diálogo de Hegel com H. G. Hamann a partir da oposição, por este último, de uma idéia de razão mediada pela linguagem ao que ele nomeia, sob forma humorística, como a razão “purificada” resultante do esforço crítico kantiano. Hegel incorpora, no desenvolvimento especulativo do conceito de espírito, essa reflexão hamanniana sobre a linguagem como objetivação histórica fundamental. A pensa, entretanto, como insufi-cientemente determinada para expor a conexão entre razão e história, avançando especulativa-mente até o conceito de Estado para expor a objetividade do espírito. Aqui, apresentaremos as reflexões de Hamann em seu diálogo com Kant diretamente remetidas à Metacrítica hamannia-na, embora seu conteúdo seja pensado já sob a mediação da sua recepção por Hegel. Partire-mos de uma citação de Hamann por Hegel na Filosofia da Natureza e dela nos remetermos aos Escritos de Hegel sobre Hamann. Articularemos, em seguida, estes Escritos a alguns momentos da Enciclopédia para daí, finalmente, nos remetermos a uma breve referência ao texto da Esté-tica. A exposição tem o sentido de explicitar os termos nos quais a reflexão hamanniana sobre a linguagem como objetivação fundamental da experiência humana aparece a Hegel como exposição da idéia subjetiva, exposição capaz, nos termos de seus Escritos sobre Hamann, de apresentar a crítica ao que Hegel chama de “entendimento seco”, para evidenciar tanto a sua verdade quanto o seu limite diante da exposição especulativa da mediação do Estado.

Palavras-chave: Hegel, Hamann, Metacrítica, Linguagem, História, Estado.

ABSTRACT: This article intends to make explicit Hegel”s dialogue with H.G Hamann. Taking as a point of depart the opposition made by the latest of an idea of reason mediated by language - which he calls, in humoristic terms, a “purified” reason, as a result of Kant’s critical effort – it is intended here to show how Hegel incorporates, in the speculative development of the concept of spirit, the hamannian reflection about language as the main historical objectivation. For Hegel, this reflexion in insufficiently determined to express the connection between reason and history, what leads him to the concept of State to unveil the objectivity of spirit. To achieve our purpo-ses, Hamann’s reflexions and his dialogue with Kant in Metacritics are presented throughout Hegel’s interpretation. We start with a Hegel’s quotation of Hamann - found in The Philosophy of Nature – to refer to the Writings of Hegel about Hamann. This Writings will be articulated to the Encyclopedia and a brief reference of the Aesthetics. It is sought here to show in what sense the hamannian reflexion on language as the main objectivation of human’s experience appears to Hegel as the exposition of the subjective idea. Such exposition, according to Hegel’s Writings about Hamann, allows to present a critique on what he calls a “dry understanding” in order to express its truthiness and limits facing the speculative exposition of the State mediation.

Keywords: Hegel, Hamann, Metacritics, Language, History, State.

Este texto constitui a primeira parte de uma exposição mais longa – composta também de uma segunda parte, ainda inédita – que visa apresen-tar e problematizar certo diálogo entre as reflexões de Hans Georg Hamann e a filosofia especulativa de Hegel. Faremos uma breve exposição introdutória do conjunto da problematização, apenas para tornar possível a compreensão do conjunto da proposta de articulação, sem perda de uma visão de totalida-1. Professora da UECE. Texto submetido em Outubro de 2009 e aprovado para publicação em Novembro de 2009.

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de. O conjunto do diálogo tem em seu centro a crítica hamanniana à Kant, mediada pela apropriação por Hegel desta crítica. Tal apropriação, se, de um lado, é positiva, de outro, demarca a insuficiência, segundo o ponto de vista especulativo, da reflexão hamanniana. Interessa-nos, nesse momen-to, evidenciar o problema fundamental: o limite, do ponto de vista Hegel, da crítica apresentada por Hamann – através da mediação da linguagem, exposta como única mediação capaz de apreender a razão humana em sua historicidade – à razão “purificada” ou abstrata em Kant. Essa insuficiência da crítica hamanniana é apresentada por Hegel pela exposição da mediação do Estado como mais determinada para a apreensão do desenvolvimento objetivo do espírito, mediação que assim se apresenta como condição para a apreensão conceitual da história. Tal problema nos leva a algumas das gran-des questões relativas ao sistema e particularmente à discussão da resposta conceitual de Hegel às relações entre razão, história e liberdade, constituída a partir de sua apropriação do estatuto da liberdade na modernidade. Nos parágrafos seguintes faremos uma breve exposição sintética do conjunto da articulação. Em seguida procederemos à exposição mais demorada do nosso objeto neste texto, o desenvolvimento da primeira parte deste percurso.

Na primeira parte – que está desenvolvida no presente texto – trata-se de explicitar que o diálogo de Hegel com Hamann parte da oposição, por este último, de uma idéia de razão mediada pela linguagem, oposição ao que Hamann nomeia, sob forma humorística, como a razão “purificada”, resultante do esforço crítico kantiano. Hegel incorpora no desenvolvimento especulativo do conceito de espírito esta reflexão sobre a linguagem como objetivação histórica fundamental. A pensa, entretanto, como insuficiente-mente determinada para expor a conexão entre razão e história, avançando assim até o conceito de Estado em sua exposição da objetividade do espí-rito. Nesta primeira parte apresentaremos as reflexões de Hamann em seu diálogo com Kant centradas na Metacrítica2 hamanniana sobre o purismo da razão. Tal crítica será tomada, do ponto de vista do conteúdo, com base em sua mediação pela recepção de Hegel. Partiremos assim, de uma citação de Hamann por Hegel na Filosofia da Natureza3 para dela nos remetermos aos Escritos4 de Hegel sobre Hamann, do período Berlinense. Articularemos em seguida tais Escritos sobre Hamann a alguns momentos da Enciclopédia (particularmente ao seu terceiro prefácio e à seção introdutória da pequena Lógica5, à discussão sobre a linguagem na seção do Espírito subjetivo6 e ainda ao mesmo §246, da Filosofia da Natureza), para daí, finalmente, nos

2. Hamann, J. G. Metacrítica do purismo da razão, in: Justo, J. M. (org.). Ergon ou energuéia. Tr. J. M. Justo. – Lisboa: Apáginastantas, 19863. Hegel, G. W. F. Enciclopédia das ciências filosóficas. V. II. Filosofia da Natureza. Tr. Pe. José Nogueira Machado. – São Paulo: Loyola, 1997, § 246.[no que segue: FN]4. Hegel, G.W.F. Les écrits de Hamann. Tr. fr. Jacques Colette. Paris: Aubier Montaigne. [no que segue, EH].5. Hegel, G.W.F. Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio, v. I – A ciência da lógica. Tr. br. Paulo Meneses com a colaboração de José Machado. São Paulo: Loyola, [no que segue, Pequena Lógica], 1995; Prefácio à terceira edição.6. Hegel, G. W. F. Enciclopédia das Ciências Filosóficas, III – Filosofia do Espírito. Tr. br. Paulo Meneses.São Paulo: Loyola, [no que segue, FE] 1995, (§ 456-460)

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remetermos a uma breve referência ao texto Estética7. Os passos desta primeira parte da exposição têm o sentido de explicitar os termos nos quais a reflexão hamanniana sobre a linguagem como objetivação fundamental da experiência humana aparece a Hegel como exposição da idéia subjetiva, exposição capaz, nos termos da sua resenha sobre Hamann, de apresentar a crítica ao que Hegel chama aí de “entendimento seco (trocken Verstand)”, para evidenciar tanto a sua verdade quanto o seu limite, diante da exposição da mediação do Estado.

O segundo movimento da articulação – a parte ainda inédita – busca evidenciar, a partir da explicitação do diálogo feita nesta primeira parte – e agora “por fora” da apropriação especulativa da obra de Hamann, embora ainda em permanente diálogo com ela – certos elementos que nos permitem pensar de modo problemático as questões centrais às quais a apropriação de Hamann por Hegel nos remete. Para esse segundo momento tomamos como ponto de partida uma questão da Estética8, presente na distinção hegeliana entre o humor subjetivo e a ironia, apresentadas como diferentes formas de aparição da negatividade da subjetividade na experiência moderna. Articu-lamos tal distinção à Filosofia do Direito9 no sentido de melhor delimitar os termos da relação entre a especulação hegeliana e a apreensão da lingua-gem por Hamann, para o que procedemos a certa explicitação mais especí-fica do conceito de razão neste último. Neste momento, voltamos também, pelo lado de Hegel, à Filosofia do Espírito, agora para nos reportar às rela-ções entre o cômico, o humor e o sentir (exposição apresentada por Hegel no adendo ao § 401), relações que nos ajudam, ainda que em negativo, a ressaltar a especificidade da reflexão de Hamann bem como o seu ‘lugar’ do ponto de vista especulativo.

Concluímos esses diálogos retomando, ainda uma vez, a Estética e a Filosofia do Direito, agora para articular, afinal, um problema e uma hipótese. O problema: a ausência da referência de Hegel a Hamann na seção dedicada ao humor subjetivo na Estética. A hipótese: de que a apreensão por Hegel do esforço de Hamann como marcado pela forma humorística justificaria a sua inclusão na seção do humor subjetivo das Lições de Estética, mas que a sua ausência nesta articulação conceitual do humor na modernidade por Hegel aponta certo embaraço especulativo diante da exposição subjetiva da idéia efetivada por Hamann sob a forma do humor. Esta apresenta, afinal, uma unidade negativa – porque subjetiva – de forma e conteúdo, aquela mesma que a crítica de Hamann a Kant requer como central à razão que se pensa mediada pela linguagem. Esta unidade negativa parece embaraçar a crítica hegeliana acerca do limite da negatividade da subjetividade na mo-dernidade. Para explicitar a questão, retomamos as reflexões apresentadas em torno das distinções hegelianas sobre o humor e a ironia, agora para

7. Hegel, G. W. F. Cursos de Estética, v. II. Tr. br. Marco Aurélio Werle. São Paulo: EDUSP, [no que segue Estética, v. II], 2000.8. Hegel, G. W. F. Cursos de Estética, v. I. Tr. br. Marco Aurélio Werle. São Paulo: EDUSP, [no que segue Estética v.I] p.81 et seq e Estética, v.II, p. 336 et seq..9. Hegel, G. W. F. Princípios da Filosofia do Direito. Tr. port. Orlando Vitorino. Lisboa: Guimarães, [no que segue FD], 1990, especialmente o §140..

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evidenciar que tal “embaraço”, provocado pela especificidade da negativida-de exposta na “forma Hamann”, na verdade expõe também as razões últi-mas da necessidade da crítica hegeliana ao limite especulativo da reflexão de Hamann sobre a objetividade da linguagem. Elas nos permitem situar a oposição por Hegel da mediação conceitual do Estado ao limite da mediação da linguagem a partir da necessidade, presente ao esforço especulativo, de concepção do Estado moderno como efetividade (Wirlichkeit) capaz de conter e suspender a subjetividade na sua particularidade. O problema – e o “embaraço” que afinal se apresenta – é que a negatividade da linguagem em Hamann, o humor, apresenta a subjetividade em conexão com uma re-cusa do Estado que se desdobra como ação e por isso requer a efetividade que ela nega, ao contrário da recusa à efetividade presente no ideal próprio à ironia romântica, que dela se exila. Esta implicação da efetividade, ainda que negativamente, re-posiciona o humor de Hamann diante da recusa por Hegel da negatividade irônica e também do limite do humor subjetivo. Essas considerações, afinal, permitem explicitar o não-lugar do humor hamannia-no na exposição sistemática de Hegel e dar as suas razões, pois se ele já não é arte e ainda não é conceito, e se Hamann é um “autor religioso”10, como pensa Hegel, nada neste humor autoriza a pensar o cristianismo, que é o seu leitmotiv, na correlação com o desenvolvimento da liberdade na esfera do Estado que o próprio Hegel estabelece, ao pensar a religião em sua relação com o desenvolvimento objetivo do espírito a partir da forma do Estado. Isso nos explica, afinal, por que a negatividade do humor de Hamann não pode se situar, como subjetividade determinada, em parte alguma da exposição sistemática. O não-lugar especulativo da forma-Hamann sugere, assim, cer-tas aporias do conceito (de sua apropriação da realidade como Wirklichkeit) diante da negatividade do humor hamanniano frente ao Estado. Este antes o toma como mera Realität, para usar a expressão hegeliana, mas não a partir de um ideal apartado da experiência, como ocorre com o ideal romântico, mas com base na negatividade imanente ã própria subjetividade inserida na concretude histórica e com ela confrontada a partir do logos cristão. Essas considerações permitem caracterizar, finalmente, desde o ponto de vista da negatividade apresentada por Hamann, certa retomada por Hegel, no con-ceito (e ainda que mediada pela ‘suspensão’ da particularidade operada na Wirklichkeit), de certa abstração “purificadora” da razão que exige a exclu-são (a priori e a posteriori) pela exposição especulativa de tal forma auto-contraditória da subjetividade, na qual esta se identifica inteiramente com a linguagem e a palavra, forma da qual o conceito não pode, afinal, suspender o caráter contraditório e sobre a qual, por isso mesmo, não pode construir uma narrativa sintética.

Partirei de uma citação de Hamann feita por Hegel no §246 da En-10. A expressão “autor religioso” é utilizada por Kierkegaard para apresentar a sua própria atividade como escritor. Estas reflexões sobre Hamann e Hegel se situam numa pesquisa mais ampla, desenvolvida em nossa tese de doutoramento, sobre Kierkegaard. Nela tomamos Ha-mann precisamente para pensar a especificidade da escrita do “autor religioso” como unidade de forma e conteúdo que permite explicitar a oposição de Kierkegaard a Hegel como uma reivindicação da fé em sua distinção do imediato ou da intuição. Cf. Amaral, Ilana. O conceito de paradoxo (constantemente referido a Hegel) Fé, História e Linguagem em S. Kierkegaard. Mimeo, PUC, 2008.

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ciclopédia. Diz Hegel, citando Hamann, que: “a natureza é palavra hebrai-ca, que se escreve só com as consoantes, à qual o intelecto deve apor os pontos”. No contexto desta citação Hegel prepara a exposição do conceito de natureza, que fará no § 247. A citação conclui o movimento que se ini-cia pela crítica, de um lado, da filosofia da natureza de Schelling – de sua apreensão da relação entre o pensamento e a natureza sob a determinação da intuição, que assim reenvia à esfera do mito tal conexão – e de outro, o entendimento kantiano, que por meio da oposição noumeno-fenômeno, opõe a racionalidade da forma – da subjetividade – à opacidade imanente do conteúdo – da coisa mesma –, reduzindo o conteúdo à pura fenomenalidade e a razão à simples forma. Hegel aponta, por meio desta citação e de modo aí não explicitado, aquilo que Hamann e sua reflexão podem significar em termos de uma prefiguração subjetiva do Espírito, capaz de superar estas duas unilateralidades do pensamento, conceito este – de Espírito – que só a própria especulação hegeliana desenvolverá em sua inteireza.

Em seus Escritos sobre Hamann, composto de dois artigos, apresen-tados em 1928 nos “Anais para a crítica científica” a título de resenha dos Escritos de Hamann – publicados em VII volumes entre os anos de 1821-25, reunião de textos e correspondências daquele autor –, Hegel apresenta um perfil deste pensador. Hamann foi um autor cuja influência em seu tempo, na Alemanha do final do século XVIII, alcançou pensadores como Goethe, Jacobi ou Herder, que a ele se referiam como a um mestre, bem como in-terlocutor de outros, como Kant, de quem foi amigo em Königsberg, cidade natal também de Hamann. Naturalmente, em sua resenha, Hegel não trata de apenas apontar curiosidades histórico-biográficas acerca de Hamann e do alcance e das especificidades das suas relações com a intelectualidade alemã de seu tempo (embora também apresente estas curiosidades), mas trata, fundamentalmente, de pensar o lugar e a contribuição intelectual deste pen-sador com base nos critérios impostos por seu próprio esforço especulativo. Assim Hegel, situando Hamann no contexto da ilustração berlinense, que ele vê caracterizada por uma secura do entendimento, apresenta Hamann como um autor capaz de, sob uma forma que se move entre a “máxima concentração e o “esfacelamento”, opor a idéia, ainda que sob um ponto de vista subjetivo, a isso que ele chama de “entendimento seco”11. Com essa designação Hegel visa muito particularmente àquelas “oposições do enten-dimento” próprias à filosofia kantiana que se expressam na cisão entre a universalidade da forma e a multiplicidade em si amorfa do conteúdo, que atinge de cheio a possibilidade de uma inteligibilidade do histórico. Hegel vê Hamann, como pensador movido pela crítica de inspiração religiosa à esta secura do entendimento, como uma expressão da “energia viva do presente espiritual”12.

O que significa, para Hegel, o reconhecimento de que Hamann al-cança em sua obra, que aqui apresentaremos a partir da crítica ao “purismo da razão” kantiano, a própria “ideia”, ainda que apenas do ponto de vista

11. Hegel, EH, p. 62 et seq.12. Ibid, p. 63.

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subjetivo”?13 Qual o alcance e qual o limite, segundo o ponto de vista es-peculativo, desta crítica hamanniana e o que ela nos pode dizer acerca da própria especulação, ou seja, sobre Hegel? Para melhor responder a estas questões, ainda que brevemente, acompanhemos o esforço hamanniano de crítica a Kant com o qual Hegel também dialoga na resenha.

Podemos apanhar o centro da crítica hamanniana a Kant na sua Me-tacrítica sobre o purismo da razão, crítica que aí aparece sob aquela “forma concentrada” que se limita com o “esfacelamento”, à qual Hegel se refere. Trata-se, afinal, de opor um pequeno texto de apenas sete páginas, escri-to sob uma forma humorística, ao esforço monumental da Crítica da razão pura. O centro ou o núcleo duro da crítica hamanniana a Kant está dado na objeção apresentada ao esforço kantiano de “purificação” da razão, isto é, na objeção àquilo que este esforço significaria aos seus olhos. Para Hamann o projeto crítico da filosofia transcendental consiste numa violenta abstração da razão e da subjetividade, pois nela a crítica do imediato – da qual o pró-prio Hamann, como depois Hegel, sem dúvida compartilha, pois é também da crítica do imediato que se trata, afinal, no esforço de apresentar a lin-guagem como mediação fundamental da razão – significa, ao mesmo tempo e necessariamente, a supressão da mediação significada pela linguagem (e assim pela história), em nome da completa abstração da subjetividade, agora apartada de tudo o que é lingüístico e histórico. Nos termos do próprio Hamann, como lemos na Metacrítica:

Depois de durante mais de dois mil anos se ter andado a procurar a ra-zão do lado de lá da experiência, eis que a Filosofia não apenas prescin-de duma assentada da via progressiva de seus precursores, mas, com a mesma insolência, promete também aos impacientes contemporâneos, e ainda por cima, para breve, a universal Pedra dos sábios, tão necessária ao catolicismo e imprescindível ao despotismo, à qual, de pronto, a Re-ligião submete a sua sacralidade e o poder legislativo a sua majestade, muito em especial nos últimos momentos de declínio de um século crítico, quando o empirismo dessas duas instâncias, atacado de cegueira, de dia para dia torna mais suspeita a sua própria nudez.14

A Crítica da Razão Pura visaria a uma purificação da razão humana, diz Hamann, “de toda transmissão (Uberlieferung), tradição (Tradition) e Fé (Glaube)”15, purificação que resulta na inteira perda do sentido da experiên-cia antes que na sua pretendida fundamentação, pois que ela apenas subtrai a subjetividade desta totalidade histórica e lingüística, da qual toda subje-tividade efetivamente provém, subtração que não pode se legitimar senão na medida em que se diz. Ora, este dizer-se da subjetividade em que con-siste a Crítica da Razão Pura já consiste numa recaída na linguagem – isto é, na história - que a filosofia crítica justamente pretendia justificar. A este procedimento, que Hamann denuncia na Metacrítica como um “hysteron-proteron”16, fazendo uma denúncia-piada “lógica” da auto-pressuposição não criticada da linguagem na Crítica da razão pura, ele justamente oporá 13. Cf. Ibid, p.92 et seq, especialmente p.102-3.14. Hamann, op. cit. p.52.15. Id, ibd.16. Id. p. 53

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a argumentação da implicação da constituição histórica da subjetividade por meio da linguagem – o pressuposto que é denegado na primeira Crítica kantiana – como aquele que determina um retorno pela porta de trás do que é expulso pela porta da frente. Como a linguagem, no seu uso histórico, é pressuposto de toda fala filosófica – uma vez não cumprida a fábula da sim-bolização universal da linguagem desejada por Leibniz –, a própria filosofia crítica deve introduzir a linguagem como âmbito pré-crítico, suspendendo a sua validade como idêntico ao imediato – em seu esforço de purificar a razão. Mas isso significa concretamente, para Hamann, o desmoronar da pretensão crítica na medida em que sua suspensão formal não elimina, mas apenas elide o caráter a-priorístico da linguagem. É por isso, que uma radi-calização do esforço crítico deve ajustar contas – o que pretende a reflexão Metacrítica hamanniana sobre a linguagem – com a necessidade do exame da linguagem, esta sim pensada como “primeiro e único critério da razão humana”17, associada por Hamann à experiência histórica, como adiante veremos.

Para tornar mais claro aquilo que é objeto desta crítica hamanniana ao esforço transcendental, diga-mo-lo numa proposição: para Hamann a filosofia crítica, no esforço de apresentar uma legitimação universal da ra-zão – que se apresenta como crítica da experiência enquanto experiência imediata – apresenta-se como uma suspensão não apenas da experiência enquanto esta é identificada com o simples imediato, mas tal suspensão – é ao mesmo tempo a abolição de toda a experiência (Erfahrung) já não apenas da imediata, mas também daquela experiência já mediatizada na história pela linguagem, por meio da qual precisamente a subjetividade e a razão humanas se constituem concretamente.

Aqui é possível já divisar o movimento que encontraremos, sob a forma sintética do conceito, nos § iniciais da Enciclopédia da Ciências Filo-sóficas quando acompanhamos a mesma crítica à filosofia transcendental apresentada por Hegel, que a apresenta nos termos de um equívoco que consistiria em pretender “aprender a nadar sem entrar na água”. O que He-gel aponta neste §10 da Enciclopédia é aquilo mesmo que na Metacrítica, se apresenta para Hamann como a brutal abstração ou abolição da experiência histórica operada pela filosofia transcendental, abolição das mediações lin-güísticas como mediações históricas, que é, afinal, a abstração da história ela mesma como automediação fundamental do processo de constituição da subjetividade. É exatamente a possibilidade apresentada por Kant de tema-tizar a subjetividade abstraindo-a do processo histórico por meio do qual em cada tempo esta mesma subjetividade se constitui concretamente (o que equivale, nos termos de Hegel a pretender “aprender a nadar sem entrar na água”), aquilo que no fundo determina para Hamann que o esforço kantiano de “purificação” da razão seja por ele apresentado (sob uma forma cômica), como um esforço destinado “a priori e a posteriori”18 a nada dizer de efetivo sobre a razão humana. A impossibilidade de um tal conceito, assim “purifi-

17. Id. p.5218. Id.p.55

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cado” não só da experiência imediata, mas de toda experiência, em dizer da razão humana não reside, assim, senão no profundo equívoco que permite a este esforço separador da filosofia transcendental quebrar a totalidade espiritual para apresentar o caráter constituidor da subjetividade apartado dos seus nexos com a linguagem e a experiência histórica, abolição que as-sim as desconhece como ‘automediações do espírito’, nos termos de Hegel, pelas quais, apenas, a própria subjetividade é sempre constituída e partir das quais apenas esta mesma subjetividade se forma como potência forma-dora.

Aqui é possível identificarmos a razão fundamental pela qual Hegel vê em Hamann um pensador capaz, nos termos da sua resenha, de opor ao “entendimento seco kantiano” a razão – ou a idéia. É que Hamann apresenta uma identidade entre espírito e verdade que será central também ao próprio Hegel. Diz Hegel nos Escritos, que é a “fé firme de Hamann na trindade” o que permite a este pensador opor a idéia (ou a razão entendida como experiência lingüística e histórica, isto é, como espírito), ao universalismo abstrato da filosofia crítica19. Hegel explicita na resenha algo que também é apresentado, em conexão com o desenvolvimento sistemático – e aí sem mencionar Hamann – no prefácio de 1830 à terceira edição da Enciclopé-dia20. No Prefácio, Hegel apresenta a filosofia especulativa como resposta de um lado, às oposições kantianas – as mesmas que ele pensa a partir da secura do entendimento – e de outro lado, à posição fideísta, que opõe a fé à razão. A fé de Hamann, ao contrário do fideísmo que opõe a fé entendida como um imediato à razão, compreende a fé em sua relação com a história e por isso mesmo pode por o Espírito –concretamente vivente na história – à secura do entendimento kantiano. Neste contexto da Enciclopédia, Hegel cita o evangelho de João 7, 38-39 sobre a verdade como espírito em oposi-ção à fé como imediato.

É esta apropriação da relação entre verdade e espírito – ainda que em Hamann tal apropriação se dê de modo estritamente subjetivo, como acrescenta Hegel – a razão pela qual Hamann pode apresentar uma formu-lação como aquela citada por Hegel na sua Filosofia da Natureza, sobre o intelecto ter de apor os pontos à natureza como palavra hebraica. Naquela citação o que vemos é precisamente a formulação, concentrada do ponto de vista da forma, da apropriação de algumas das determinações que serão desenvolvidas especulativamente no conceito hegeliano de espírito.

Quando, partindo daquela citação de Hamann por Hegel na Filosofia da natureza, nos voltamos para as conexões estabelecidas por Hegel no volume II da sua Estética21 entre as formas de arte simbólica, clássica e ro-mântica, conexões que são precisamente articuladas com base na constru-ção especulativa do espírito e entendemos que estas conexões são também e primariamente, assim como também o são e de modo mais determinado, as formas de liberdade apresentadas na formalização do Estado em cada 19. Hegel, EH, p.93-420. Hegel, Pequena Lógica, p.33 et seq21. Estética II.

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época, articulações entre a experiência histórica e a experiência humana com a linguagem em cada tempo histórico, compreendemos que é a articu-lação hamanniana entre linguagem e história aquela que também subjaz às distinções aí apresentadas por Hegel, embora estas sejam por ele também ampliadas, em razão da introdução da forma Estado como forma mais alta da objetivação histórica porque mais determinada.

O que reencontramos naquelas três formas da arte apresentada es-peculativamente, é o desenvolvimento do percurso do espírito – da razão e da história humanas – pensado com base em certa relação entre as formas da linguagem e as formas da liberdade, percurso que precisamente é apre-sentado por Hamann em seu silogismo que encerra a Metacrítica. Este, aliás, nos ajuda a entender aquela identidade entre a natureza, a palavra hebrai-ca e as consoantes, de um lado e as vogais e o intelecto que lhe deve (à natureza) apor os pontos, de outro. Diz Hamann, denunciando o idealismo transcendental como manifestação de “um ódio gnóstico à matéria”22 que a Metacrítica deve superar que:

É possível que o muro de separação entre judeus e pagãos seja de um idealismo semelhante. O judeu tinha a palavra e o sinal, o pagão tinha a razão e a sua sabedoria (a conseqüência foi uma metabasiseis allo genos, dessa nova espécie, o melhor representante foi plantado num pequeno monte chamado Gólgota)23.

Aqui, precisamente sob aquela “máxima concentração da forma” que segundo Hegel é característica da escrita de Hamann, é do próprio espírito que se trata, concebido como percurso histórico e lingüístico, isto é, como o percurso de uma razão encarnada sob a mediação da linguagem, percurso do qual a “verdade” é o logos cristão. Atentemos bem para o que diz Ha-mann: a unidade entre a palavra e o sinal judaico, o simbólico que Hegel apontará na Estética sob a conceito de simbolismo do sublime24, e o logos separador grego, com sua sabedoria – a razão e a sabedoria dos “pagãos”, na qual Hamann retoma os termos de Paulo para falar do logos cristão – , aquele que na Estética Hegel articula à arte clássica e à liberdade autocons-ciente, mas ainda unilateral dos gregos25, que retifica o simbolismo e sua conexão com a natureza, ao apor-lhe, pelo intelecto, os pontos, é dada no logos cristão, que na Estética precisamente aponta para a superação da for-ma artística pela religião, expressa artisticamente na arte romântica26. Este é, assim, apresentado por Hamann como a verdade ou a superação do muro que os separa porque é o espírito – o logos vivo – que realiza a unidade da materialidade, fundamental no símbolo, e da idealidade, central ao intelecto. O logos cristão unifica estes dois lados e é assim que ele é o próprio espírito em sua verdade.

É exatamente porque concebe a verdade do logos cristão como uni-

22. Hamann, op.cit. p.5323. Id. p. 5724. Estética II, p.97 et seq.25. Idem, p.157 et seq.26. Idem, p.251 et seq.

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dade capaz de romper a separação entre a materialidade da palavra simbó-lica hebraica e a idealidade da verdade exposta no logos grego, que Hamann a expõe – ao apresentar a unidade ou a quebra destas separações entre materialidade e idealidade – como verdade expressa pela “semente plantada no gólgota”. Esta apresentação de Cristo em identidade com a superação da separação entre matéria e intelecto, que se apresenta como uma Metabasis eis allo genos, (que, lembremos, é justamente “proibida” por Kant à razão como uma passagem não justificada de um gênero a outro nas suas obser-vações à tese da quarta antinomia)27 aponta o caminho de superação destas separações por meio da linguagem como expressão da mediação da história. É em razão desta apreensão da verdade como unidade ou como espírito, que Hamann é apresentado por Hegel como um verdadeiro oásis da razão no deserto do “entendimento seco” configurado na ilustração alemã. Esta identificação por Hamann entre o logos cristão e a verdade da experiência humana, concebida como experiência lingüisticamente mediada, afirma o cerne mesmo do conceito de espírito como verdade, pois apanha o processo da verdade como idêntico ao devir humano ou ao histórico, apreendendo-a, assim, como inseparável da negatividade que lhe é imanente.

No âmbito da reflexão hamanniana é a linguagem, como vimos, a mediação que determina a relação entre razão humana e história e permi-te a ruptura daquelas separações que caracterizam o entendimento. Tais mediações linguísticas, como brevemente referimos, são apresentadas por Hamann na Metacrítica em estrita correlação com a própria experiência his-tórica – aquelas que Hegel identifica especulativamente ao espírito –, enten-dido, por sua vez, como um devir do homem. Se Hamann apresenta, como ponto de partida para a sua crítica dos “purismos kantianos”, esta conexão entre linguagem e história, é exatamente nisso, e na prefiguração subjetiva que tal identidade significa quanto ao conceito de espírito, cujo desenvolvi-mento especulativo o próprio Hegel expõe, que Hegel identifica toda a vita-lidade da reflexão hamanniana frente ao entendimento separador. O acolhi-mento da reflexão hamanniana sobre a linguagem como mediação em sua própria tematização do Espírito, se expõe tanto na Estética, pela apropriação das distinções entre o simbólico, o clássico e romântico, quanto na seção da Psicologia do Espírito subjetivo (§ 456-460). Nesta, Hegel apresenta a lin-guagem como automediação necessária à constituição do pensar subjetivo, momento no qual ele retoma passo a passo e desenvolve especulativamente a objeção hamanniana à purificação da razão, que consistiria em apresentar uma linguagem universal simbólica que apenas abstrai da concreticidade histórica e, portanto, da riqueza espiritual apresentada no signo lingüístico em geral e na multiplicidade das línguas às quais o signo remete. A riqueza da automediação pela linguagem consiste, para Hegel, no reconhecimento devido à subjetividade da linguagem como um desdobramento de si que já é histórico, já é experiência humana do tempo. Para além dos outros nexos que aqui buscamos apontar, esta retomada por Hegel, realizada nos pará-grafos mencionados da Enciclopédia, é uma eloquente exposição desse

27. Kant, I. Crítica da razão pura. Tr. Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989, p. 415-6.

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acolhimento da reflexão hamanniana.

Tal acolhimento por Hegel da linguagem enquanto mediação não deve ocultar, entretanto, a completa ressignificação que esta mediação sofre por meio da sua incorporação ao desenvolvimento especulativo. Do ponto de vista da exposição categorial ou do desenvolvimento especulativo do conceito de espírito, o que Hamann alcança em sua crítica a Kant é apenas a exposição de uma mediação, que sem dúvida será acolhida como central por Hegel. Embora central, entretanto, a exposição hamanniana permanece, quando pensada a partir do ponto de vista especulativo, presa a um mo-mento simplesmente subjetivo da experiência humana ou ela é, em outras palavras, apenas uma das muitas mediações que o espírito experimenta, mediação insuficientemente positiva para expor a liberdade do espírito em sua verdade. Para Hegel a linguagem, quando apresentada como mediação fundamental – como ocorre com Hamann – articula um conceito de razão ainda insuficiente, pois parte de uma exteriorização que não apresenta in-teira a exposição ou a objetivação da liberdade humana, isto é, apreende a liberdade sob uma forma insuficientemente positiva. É isso o que significa a limitação subjetiva do ponto de vista de Hamann, e o lugar de seu objeto na exposição enciclopédica bem o diz. Esta insuficiência da linguagem é que determina a sua sucessão, na exposição especulativa, pelo Estado como for-ma por excelência de objetivação do histórico, como formalização da idéia ética que Hamann apenas apreende na vivacidade da linguagem28. O limite fundamental da apropriação hamanniana – e assim também do alcance da sua crítica à filosofia transcendental – consiste, para Hegel, na subjetividade desta mediação da linguagem, na insuficiência da objetivação lingüística que só o trabalho, como objetivação que perdura, e o Estado, como seu desen-volvimento na esfera da vida autoconsciente do espírito, podem adequada-mente expor.

O que aqui se encontra em questão para Hegel, atentemos, é a esfe-ra de alcance ou a validade desta apropriação da verdade apenas subjetiva, pensada a partir da exposição da totalidade aspirada por ele e desenvolvida na especulação conceitual. É claro que como apropriação da idéia, ainda que subjetiva, a perspectiva hamanniana inclui o ponto de vista da unidade ou da totalidade. É isso que lhe dá a possibilidade de apresentar uma crítica da razão purificada do idealismo transcendental. Ela não avança, entretanto, do ponto de vista da exposição desta mesma totalidade (e nem quer avançar), até o saber absoluto, pois resta aprisionada na dimensão propriamente sub-jetiva – ainda meramente negativa – pela qual a verdade se lhe apresenta. Mas o que exatamente isso significa?

Se olharmos daqui para a resenha sobre Hamann, encontraremos Hegel buscando explicitar as posições de confronto de Hamann diante do Es-tado alemão29. Ela nos explica mais claramente este imbróglio especulativo entre a negatividade da linguagem e a positividade da forma Estado que

28. Hegel, EH, p.103.29. Idem, p 98.

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estamos tentando evidenciar. Para Hegel, Hamann denuncia e tem que de-nunciar “o rei alemão” como um “Salomão do Norte” porque seu coração admite um só Rei, que pregava no mercado...”. Para a perspectiva hegelia-na, esta posição de Hamann diante do Estado se explica do ponto de vista subjetivo, que é precisamente o de Hamann. Este, não busca fazer ciência, apenas mede o seu presente de modo absoluto a partir da apropriação sub-jetiva da verdade do logos cristão e o faz com base na mesma energia viva do presente que ele deve medir30. Se a crítica de Hamann pode ter validade nessa esfera subjetiva (e mesmo essa é contestada por Hegel), do ponto de vista da exposição especulativa ela deverá sofrer uma série de determina-ções apenas possíveis sob a forma do conceito que Hamann, não quis e nem pode alcançar. Tal insuficiência da apropriação do espírito guarda profunda conexão com a ausência de uma relação positiva com a forma Estado como mediação mais objetiva e portanto mais positiva que a pura negatividade da mediação da linguagem. É ela que demarca a insuficIência da apropriação do histórico por Hamann em razão do aprisionamento à verdade de Cristo –e do espírito –como idêntica à linguagem. Seria preciso avançar até as formas mais altas do espírito – ou até as significações mais concretas da liberda-de, aquelas dadas no Estado31, que Hamann não reconhece, para tornar-se capaz de apreender a realização da verdade como espírito – como história – em sua totalidade e não sob a simples identidade com a experiência da lin-guagem. Ir às últimas conseqüências na objetividade da mediação histórica, apresentando o Estado com esta mediação, é claro, é precisamente o que ressignifica inteiramente o lugar da história em relação à linguagem.

Em termos gerais, para Hegel, o limite da crítica hamanniana da filo-sofia transcendental consiste, assim, em que ela só tem validade do ponto de vista estritamente subjetivo, na medida em que lhe falta precisamente a positividade capaz de sustentar a forma do conceito, para aqui utilizar uma expressão cara a Hegel. Esta positividade é aquela que o próprio Hegel apenas encontra, no que se refere à história, na forma Estado. Para expli-citar melhor isso, entendamos brevemente o seguinte: a linguagem é uma forma de exteriorização da liberdade humana e é por isso que as línguas expressam, em suas variações, as distintas apropriações que o homem faz, por meio da linguagem que assim é índice da mediação social e histórica pela qual a subjetividade se constitui na sua liberdade. É exatamente esta conexão que é alcançada pela apropriação hamanniana da linguagem. Para Hegel, entretanto, não é ainda a linguagem – insuficientemente objetiva porque exige sempre a particularidade dos falantes em ato, porque é in-separável desta particularidade (e, portanto, também da negatividade que a expõe do ponto de vista lógico) que pode adequadamente se apresentar como o modo mais próprio pelo qual o homem experimenta, se dá consciên-cia e, numa palavra, objetiva a própria liberdade. Esta forma é, para Hegel, antes o Estado, pois o universal, que na linguagem só se apresenta por meio dos falantes particulares, nele subsiste mesmo ali onde a particularidade não está imediatamente presente. Aliás, para Hegel, quanto mais mediada

30. Idem, p. 11831. Idem, p.102 et seq.

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for esta aparição da particularidade no Estado, mais rica ela será, porque tanto mais mediada com o universal.

É essa determinação, o fato de que o Estado se constitui numa forma objetiva ou positiva, embora também histórica e nisso ainda finita ou transi-tória, que permite pensar especulativamente a diversidade das experiências da liberdade ao longo da história a partir da pergunta por esta relação in-terior ou imanente a cada forma particular de Estado entre a subjetividade como o particular e o universal. É a subsistência universal da forma Estado (e, portanto, sua subsistência fora da conexão imediata com a particularida-de), que não se apresenta e não pode se apresentar na linguagem porque nesta a relação com o universal é a cada vez apenas possível por meio da particularidade (do falante, do ouvinte, do leitor, ou seja, é sempre por meio de um sujeito particular que o universal pode aparecer, o que determinaria certo limite estético da palavra) aquilo que torna possível que o Estado venha a ser este “universal concreto” capaz de ser o ponto firme que se apresenta ao pensamento para pensar a história e entendê-la do ponto de vista da razão. É fácil entender agora porque a crítica hamanniana do “entendimento seco” se apresenta a Hegel como ainda limitada, pois ela apenas é capaz de fornecer uma apreensão da idéia capaz de orientar a subjetividade na crítica da apreensão a-histórica e mesmo anti-histórica da verdade apresentada por Kant. Ela não é, entretanto, capaz de se elevar completamente desta esfera simplesmente subjetiva e de alcançar a esfera universal da ciência (Wissenschaft), de um saber que positivamente apanhe a história do ponto de vista da sua racionalidade e isso precisamente porque ela se prende à mais negativa das determinidades do histórico, parando antes de alcançar a objetividade própria à forma Estado, razão pela qual a forma da escrita de Hamann, aquela que segundo Hegel se move entre a máxima concentração e o “esfacelamento”, não pode tampouco avançar até a unidade entre sub-jetividade e objetividade própria à forma do conceito.

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REH: NORMAS DE SUBMISSÃO – Versão resumida

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7. Citações de obras de Hegel (numeradas por parágrafos e já vertidas para a Língua portuguesa), no corpo do texto, deverão ser referenciadas [de acordo com suas características próprias] – sem acréscimos adicionais – conforme o exemplo: (FE, § 394), onde: (a) “FE” é a abreviatura para a Fenomenologia do Espírito; (b) “§ 394” refere-se ao parágrafo; quando for o caso, sugere-se o acréscimo da página, de onde, em “FE, § 394, p. 276”, (c) “p. 276” dizer respeito à página à qual a citação ou referência está vinculada

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(no caso, a segunda edição da versão de Paulo Meneses);

8. No caso de obras como as Linhas fundamentais da Filosofia do Direito (FD) e a Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio de 1830 (E.), sugere-se ainda o uso de ‘A’ para as anotações de Hegel e ‘Ad’ para os aden-dos de seus discípulos;

9. No caso das obras de Hegel (em alemão) ainda não vertidas ao Português (sejam paragrafadas ou não), mesmo quando também se faça uso das ver-sões portuguesas ou em outras línguas, sugere-se a manutenção das iniciais do título no original [por exemplo, ‘WdL’ para a Wissenschaft der Logik], seguidas das páginas da edição (ou das edições) utilizada(s);

10. Citações de obras clássicas sem tradução brasileira ou citadas preferen-cialmente conforme o original ou tradução em língua diversa do português do Brasil, deverão estar de acordo com as convenções internacionais de pra-xe na área [exemplo: ‘PhdE’ para Phénoménologie de l’Esprit) ou indicadas em nota;

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