Revista subversa vol 3 nº4 set2015

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SUBVERSA VOL. 3 | N.º 4 | SET/2015 ISSN 2359-5817 ELLEN MARIA VASCONCELLOS MÁRIO SÉRGIO BAGGIO ANGEL CABEZA | LUÍS HENRIQUE NOGUEIRA EBER S. CHAVES| ANDREA ARREBOLA AZEVEDO VANDER VIEIRA | VINÍCIUS LIMA FIGUEIREDO ANDRÉ VICTOR MARQUES | JOSÉ VIEIRA Ilustrações JOÃO CARDOSO

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A Subversa da maturidade. Com ilustrações de João Cardoso.

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Vol. 3 | N.º 2 |AGOSTO/ 2015 ISSN 2359 5817

SUBVERSA VOL. 3 | N.º 4 | SET/2015 ISSN 2359-5817

ELLEN MARIA VASCONCELLOS

MÁRIO SÉRGIO BAGGIO

ANGEL CABEZA | LUÍS HENRIQUE NOGUEIRA

EBER S. CHAVES| ANDREA ARREBOLA AZEVEDO

VANDER VIEIRA | VINÍCIUS LIMA FIGUEIREDO

ANDRÉ VICTOR MARQUES | JOSÉ VIEIRA

Ilustrações JOÃO

CARDOSO

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Subversa | literatura luso-brasileira |

V. 3 | n.º 04

© originalmente publicado em 15 de setembro de 2015 sob o título de

Subversa ©

Edição e Revisão:

Morgana Rech e Tânia Ardito

Ilustrações

JOÃO CARDOSO |[email protected] | FACEBOOK | PORTFÓLIO

Os colaboradores preservam seu direito de serem identificados e citados

como autores desta obra.

Esta é uma obra de criação coletiva. Os personagens e situações citados nos

textos ficcionais são fruto da livre criação artística e não se comprometem

com a realida

WWW.FACEBOOK.COM/CANALSUBVERSA

@CANALSUBVERSA

[email protected]

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A MÃE E O FILHO DA MÃE: DOÇURA, FEL E UMA FOLHA AO

VENTO | MÁRIO SÉRGIO BAGGIO | 6

ALÉM DO DICIONÁRIO |ELLEN MARIA VASCONCELLOS | 11

ENGANO | ANGEL CABEZA | 17

FRESTA| LUÍS HENRIQUE NOGUEIRA | 18

O BÁRBARO | EBER S. CHAVES | 20

NÃO DEVIAS PARTIR ESSA NOITE | VANDER VIEIRA | 23

CENA TERMINAL | VINÍCIUS LIMA FIGUEIREDO |25

NÃO. JOÃO NÃO | ANDRÉ VICTOR MARQUES | 29

OLÍVIA | ANDREA ARREBOLA AZEVEDO | 31

A PAIXÃO DE V | JOSÉ VIEIRA | 40

SUBVERSA VOL. 3 | N. º 4 | SET/2015 ISSN 2359-5817

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EDITORIAL

A Subversa está chegando, lentamente, à maturidade. E só na

maturidade é que a liberdade vai se aprimorando. Mais do que um grito

por independência, a maturidade permite a entrada definitiva de um

estado de ânimo permanente, solidário, menos autocentrado e ainda mais

comprometido.

O volume impresso #1, com todas as maravilhas que trouxe à revista,

serviu de aprendizado para o momento atual, em que estamos

organizando o volume impresso #2, com previsão de lançamento para o

final do ano. Eis outro sinal da maturidade: uma vozinha interior que vai

dando as coordenadas e facilitando o processo. A persistência é

constante e o entusiasmo é o combustível, cuja fonte interminável nós já

encontramos e vive segura dentro de todos nós, envolvidos nessa viagem.

Em breve, será verão no Brasil e, em Portugal, inverno. Duas estações

terminam e duas outras iniciam. Nenhuma primavera e nenhum outono

são iguais ao anterior, só porque levam o mesmo nome, outra vez. Nada

que acaba fica no vazio. No máximo, permite um breve espaço de

passagem e transformação para alguma coisa que ainda não

conhecemos.

Nesse número, dez obras literárias que merecem a atenção de todos

que apreciam uma boa leitura. Na ilustração, , de São Paulo, João Cardoso

que trabalha com técnicas mistas, com foco no erro e no acidente como

forma de expressão, a partir de sessões de modelo vivo.

Afinal, mesmo na ideia mais perfeita, há sempre o erro que, quiçá,

permanecerá com muito mais força do que a ideia inicial. E quiçá

amadurecerá com um conteúdo inigualável e único como esse.

As editoras.

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MÁRIO SÉRGIO BAGGIO | São Paulo, SP.

Doçura

Isabelzinha? Sou eu, querida, sua prima Maria. Sim, eu liguei justamente

por isso. Nasceu, sim. Ah, que coisa mais bonitinha! Gorduchinho, corado,

quatro quilos, uma beleza de criança, só vendo, Isabel! O Zé e eu estamos

muito felizes. Não conseguimos lugar em nenhuma pousada aqui em

Belém, estava tudo lotado por causa do censo. Então o Zé improvisou um

bercinho com umas madeiras que ele encontrou pela rua. Felizmente eu

tinha trazido umas roupinhas, você sabe como é, prima, uma mulher

grávida tem que estar prevenida sempre.

Ah, teve muita confusão, sim. Primeiro um grupo barulhento de meninos

e meninas chegou fazendo cantoria e querendo ver o bebê, mas o Zé não

permitiu. Você acha que tem cabimento? Eu aqui, ainda toda dilatada,

com um recém-nascido nos braços, e essa turma dançando e cantando

feito louca? Não, o Zé mandou parar na hora, que falta de respeito, meu

Deus! Bom, eles não foram embora, mas não incomodaram muito, ficaram

mais embaixo, na entrada do beco, cantando aleluias e louvações. E

depois chegaram três ricaços, vindos sabe Deus de onde, e queriam

porque queriam ver e acariciar o meu filho. O Zé também não deixou. Os

três tinham trazido presentes, mas o Zé pediu que deixassem tudo aqui e

voltassem outro dia para ver o bebê, uma mãe que acabou de parir não

A MÃE E O FILHO DA MAE: doçura,

fel e uma folha ao vento

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tem direito a um pouco de descanso? Por favor... Eles foram embora e

prometeram voltar daqui a dez dias. Até lá eu já vou estar em pé de novo.

Olhe só que cabeça a minha, eu quase ia me esquecendo de lhe

contar: no instante em que o menino saiu da minha barriga e abriu os

olhos, justinho, justinho naquele momento passou pelo céu uma estrela

brilhante como eu nunca vi, uma estrela majestosa, grande, branca, com

uma luz tão intensa que iluminou a rua inteira. Você precisava ver que

beleza. Um fenômeno, um presente de boas-vindas para o meu pequeno.

Bom, agora tenho que ir, o menino precisa do meu peito, é a criança mais

gulosa que eu já vi, não sei a quem puxou. Um abraço, prima, e dê

lembranças a todos daí.

Fel

- Desde que apareceu na Bíblia, não há quem o aguente.

- Nem me fale. Está endeusado.

- E você ouviu falar que outro dia ele ressuscitou um homem? E foi

diante de todo mundo, menina!

- Ah, isso é puro exibicionismo.

- E do casamento, você se lembra?

- E eu ia me esquecer? Aquilo foi uma desfaçatez. Transformar toda a

água em vinho. O que ele estava pensando? Que ousadia!

- Acho que estava todo mundo cego naquele dia. Onde já se viu? E as

crianças, iam beber o quê? Azeite? Não sobrou nem um tantinho assim de

água.

- E na outra noite, o que ele dizia mesmo?

- Tomai e bebei tudo, alguma coisa assim, não me lembro direito.

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- Se isso não é desejo de ser superstar, eu não sei o que é. Um

escândalo!

- Eu acho que Deus deve estar olhando tudo isso.

- Claro que está, não resta dúvida.

- Eu fico com muita pena da Maria. Com um filho assim...

- Ih, comadre, nem me fale! Ela já garantiu o lugar dela no céu.

- A culpa toda é daqueles evangelistas, que só sabem fazer algazarra

pelas ruas. Tudo para chamar a atenção.

- Também acho. Principalmente o João. Esse é o pior deles. Chegou a

ler o Apocalipse?

- Eu não, que não vou perder meu tempo com o delírio dos outros.

- Eu também não, mas a vizinha da rua de baixo leu e me contou. Tem

uns objetos que voam, depois uns anjos aparecem do nada tocando

trombeta, é um troço alucinante, só vendo.

- Se você quer saber, eu acho que o povo tem a sua parcela de culpa,

ah, isso tem!

- Eu também acho.

- As pessoas geralmente gostam de umas coisas assim, picantes,

sensacionalistas. Tem gente que adora um deboche.

- E hoje tem a crucificação. Você vai assistir?

- Não sei ainda, talvez eu vá. A que horas vai ser?

- Sei lá, acho que é depois do almoço, lá pelas três da tarde. Ei, espere

aí, reparou que a rua está deserta? Onde o povo se meteu?

- Carai, já deve ter começado. Anda, senão vamos chegar atrasadas.

Uma folha ao vento

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No domingo, quando a calmaria já tinha descido sobre toda a cidade,

reuniram-se em volta da mesa com o semblante apaziguado e tomaram

chá, conversando sobre a vida e os últimos acontecimentos. A manhã ia

clara e quente. Lá fora a brisa bulia com as folhas e havia um silêncio

reconfortante ao redor. Por isso, falar exigia cuidado. Sentado no centro

da mesa, ele olhava para todos com infinita bondade.

- ...e, para terminar, andaram dizendo por aí que subi ao céu flutuando

como um pássaro sem asas. Foi assim que disseram. Mas agora está tudo

terminado e posso seguir o meu rumo. Ainda há muita vida para viver.

Em seguida levantou-se e se despediu de todos. Deu um abraço

apertado e um beijo no rosto de sua mãe. O beijo em Maria Madalena foi

na boca. Acenou a todos os demais e foi andando em direção ao

deserto.

- E o que vai ser de ti? – perguntou João, com angústia na voz.

- Eu? Como qualquer pessoa deste mundo: meu chapéu e meu

cobertor serão meu lar.

E desapareceu no horizonte.

MÁRIO SÉRGIO BAGGIO é jornalista e atua como Redator freelancer, produzindo

conteúdo para websites, blogs e redes sociais. Mantém o blog “Homem de

Palavra” (www.homemdepalavra.com.br), onde publica seus textos de ficção e

artigos sobre língua portuguesa. Escreve porque precisa respirar |

[email protected]

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SUBVERSA # 1 – Versão Impressa | Volume 1 (2014)

Adquira e participe do crescimento da revista.

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ELLEN MARIA VASCONCELLOS | São Paulo, SP.

Segundo recentes pesquisas

de universidades e institutos de notabilidade

já há provas que as palavras também pensam

podem se comunicar

se multiplicar

sentir dor, emoção

possuem memória

sistema nervoso e digestivo

são inteligentes e rancorosas

inclusive choram.

Um grupo conceituado de astrólogos franceses também as

analisa

e considera que há um grande número de palavras

com a lua e vênus em câncer,

o que provoca este tipo de comportamento.

Sua lágrima está sendo estudada

em duas faculdades tecnológicas nos Estados Unidos

e presumem que a palavra tem o poder de curar

ALÉM DO DICIONÁRIO

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uma somatória ainda não limitada

de doenças contagiosas.

"Estamos surpresos e entusiasmados com o resultado".

A reprodução delas ainda não foi completamente desvendada

mas em uma fundação não-governamental russa

especialistas acreditam que esta atividade ocorre

por muitas vias e posições diferentes.

"Há uma predileção pela via oral,

mas já encontramos ao menos outras quinze formas.

Todas elas têm potencial para sentir prazer e reproduzir".

Segundo analistas japoneses,

as palavras possuem uma amostra de subespécies e gêneros

infinitamente maior que a espécie humana

e chegaram a essa declaração somente avaliando as vivas.

Por causa disso, agentes alemães de diversas áreas

constataram

que, assim como os homens,

as palavras também apresentam características violentas e

preconceituosas

em relação a seus pares.

"As palavras possuem consciência de suas diferenças

e, por essa razão, algumas escravizam ou sacralizam as outras.

Nestas últimas semanas, observamos um crescimento de bulling

das palavras mais conservadoras em relação as irônicas,

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satíricas e também as libidinosas.

Estão passando por uma etapa desalumiada".

revela um erudito angolano convidado a formar parte da

equipe.

Um biólogo grego considerou que as novas descobertas irão

revolucionar

o mercado farmacêutico, alimentício e inclusive cultural.

Já há comunidades no leste europeu e na Índia

nas quais as palavras são consideradas os novos deuses do

século XXI.

"As mais raras estão sendo guardadas em redomas e altares

e em alguns cantos do mundo são mantidas em cativeiro

para garantir o futuro da espécie".

Seu encontro com o papel (celulose) produz uma enzima

que acalma a palavra,

conjecturam cientistas poloneses

depois de uma infinidade de testes.

"É uma reação química que a permite resistir e sobreviver a

diversas condições:

de stress, movimento, combustão, e até mesmo ambientes

aquáticos.

No papel, ela se liberta".

explicou o professor chefe,

um sul-africano que dedicou à vida ao estudo das palavras.

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E continua:

"Sua resposta à tecnologia foi um pouco agressiva

mas quando envolvíamos outras subespécies no processo

apesar de certa objeção, elas se tranquilizavam".

Já há casos de pessoas que deixaram de consumi-la

após os primeiros resultados das pesquisas.

A chamada Dieta da Letra é rejuvenescedora

quando se trata de poucos dias ao mês.

No entanto, aderindo à dieta ovo-lacto-verbum-vegetariano

por tempo indeterminado

a consequência foi um alto índice de depressão

e transtornos obsessivos compulsivos.

Houve um caso de morte

e outro caso de internação psiquiátrica:

uma mulher de trinta anos, na Argentina, desconfia que é uma

pedra.

ELLEN MARIA MARTINS DE VASCONCELLOS é formada em Letras na USP e

cursa o mestrado em literatura latino-americana contemporânea. Atua

como revisora, preparadora e tradutora de textos. Já vendeu livros e foi

professora de espanhol e português. Publicou poemas em antologias pela

Andross Editora e em "Ávida Espingarda", "Aos pés das letras" e

"Annamorfoses", pela editora Annablume. Além disso, marcou presença

em nas Revistas "Zunai", "El humo", "Ombligo" e "Mallarmargens", além de

uma antologia cartonera chamada "Frontera", no Chile. Acredita em

fantasmas, desconfia dos vivos. Toma Fanta Uva e café sem açúcar.

Enxerga muito bem, mas, às vezes, fecha os olhos. E não tem o coração de

pedra. | [email protected]

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ANGEL CABEZA | Rio de Janeiro, RJ.

Por cima da mesa

minha avó regava com seus olhos

as flores de plástico.

Fizesse sol ou chuva

dormiam intactas na mesma posição

encolhendo a natureza plástica das coisas.

Embora minha avó soubesse que as flores

assim como as fotografias

permaneciam novas hipoteticamente

desejava um coração também de plástico.

Às visitas

entre o belo espanto das tristes flores

e uma xícara de chá

despertava na voz a certidão:

estão aí para enganar a morte

ANGEL CABEZA é poeta, cronista e jornalista. Atua como produtor editorial e

gráfico no RJ. Publicou os livros Vidro de guardados (2010, ed. autor, poemas),

Sempre existe um último momento (2011, Hífen Editorial/Ed. Autor, crônicas). Possui

textos em revistas impressas e digitais, no Brasil e na Espanha, entre elas Correio

das Artes (A União), Generación Espontanea, Corsário, Bula, Cuarto Própio,

Capitu, Zunai, Eutomia, Cronópios, Odara, Sinestesia; e participou de algumas

antologias, entre elas Geração em 140 Caracteres (Geração Editorial, 2012),

Qasaêd Ila Falastin – Poemas Para a Palestina (Patuá, 2012), Antologia Escritores

da Língua Portuguesa Vol. I (ZL Editora, 2014). | [email protected]

ENGANO

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LUÍS HENRIQUE NOGUEIRA | São Paulo, SP.

FRESTA

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o músculo ausente

para fora do hábito

rumo ao âmago:

meandro ensandecido

as pálpebras rasgadas na manhã

áspero céu entredito

no calabouço compulsivo e esguio

esparramado pelo século

LUÍS HENRIQUE NOGUEIRA é graduando em Letras pela Universidade de Sa o

Paulo, organizador e frequentador ativo de saraus e demais rituais poéticos

espalhados por Sa o Paulo. Fundou, ao lado de outros artistas, o coletivo Poesia

Primata, voltado para eventos culturais e difusa o de manifestac oes artisticas

independentes. Publicou regularmente no jornal universitário O Kula e na

antologia poética Prêmio Poesia Livre - versão 2013. Escreve em seu blog de

poesia Saudade Mestiça e, de forma independente, lançou o livreto A Fria

Engrenagem em 2014. É também um dos criadores e compositores do projeto

musical autoral Estranhos no Ninho. | [email protected]

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EBER S. CHAVES |Vitória da Conquista, BA.

O BÁRBARO

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A quem pude comentar das histórias de certo bárbaro, cuja

espada

Selvagem banhava-se no sangue fresco de tiranos e de

opressores,

São testemunhas de que a violência enfeitiça o mais puro, e de

que

O ódio e a ferocidade atraíram meus olhos de menino

Àquelas revistas e mais revistas, que a mim chegaram sob o véu

Da moral e da censura paterna. Presentes que recebi daquele

Que a mim já tinha por adulto: Inocente, não compreendia

Ainda o horror e a atrocidade de uma morte

Ao fio da espada. O sangue não era vermelho, mas tudo era

De um preto e branco violento e obscuro.

E andei com o Bárbaro, e quis ser sua consciência, o lado

Humano, de um homem que ocultava sua humanidade.

E ao ver as cenas de brutalidade; ao ver sua lâmina afiada

Tocar os corpos de seus inimigos, fazendo-os aquecer o chão

Frio com o calor do sangue derramado, sem que nenhuma

gota

De lágrima nascesse na sequidão dos olhos do Bárbaro,

Dele tive inveja:

Daquele que com sangue escreveu sua lei insana,

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E que guiou homens insensatos – apenas os que levantaram

espadas –

Para o lugar além-túmulo, fazendo-os habitar

À eterna morada da não existência.

Logo eu, que era pacífico, tive inveja

Daquele que do caos se fez arauto;

Do olhar sombrio que encarava a morte com escárnio.

E se hoje, a traça nada mais fez restar dessas páginas,

Que alguma forte corrente de gélido ar leve

Meu grito a terras cimérias; e que tal grito chegue

Aos ouvidos sucumbidos de Robert E. Howard.

E que ele saiba que Conan, o Bárbaro, ainda se esconde,

Recalcado, em algum lugar obscuro do meu ser.

EBER S. CHAVES é administrador, apreciador de psicanálise, filosofia,

poesia, literatura fantástica, filmes de ficção e fantasia, rock'n'roll, cervejas

especiais e feijoada. Nasceu em 1979, em Itaquara/BA e, desde o ano de

2000, reside na cidade de Vitória da Conquista/BA. |

[email protected]

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VANDER VIEIRA | Vitória, ES.

NÃO DEVIAS PARTIR ESTA NOITE

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Não devias partir esta noite,

flor de tessitura líquida,

esta noite onde me debruço a ti

como amarelo a gotejar tua língua.

Tão privada de dedos

vejo tua alma a retorcer os músculos

e mirar-se no rio Mekong –

sussurravas algo em meus ouvidos,

talvez uma canção de ontem,

mas não escutavas os gritos,

os gritos que me rompiam a carne.

E como meus olhos cuidaram de ti

quando do silêncio daquelas noites sem lua.

E quantas foram as tardes ausentes de sim.

Não, não devias partir esta noite,

tampouco haver noite devia

pois o cego a ti e a mim legou seu fátuo coração

e o que é sopro não se apruma.

Tu e teus cães ferozes

sempre a fitar-me.

VANDER VIEIRA é poeta, mineiro do interior do estado. É bacharel em

Filosofia e vive em Vitória/ES desde 2009. Venceu o prêmio UFES de

Literatura Portuguesa 2013/14 na categoria Coletânea de poemas, tendo

10 poemas publicados na coletânea de mesmo nome, oriunda do prêmio.

Tem também poemas publicados em revistas literárias como Samizdat,

Desenredos e Mallarmargens | [email protected]

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VINÍCIUS LIMA FIGUEIREDO | Curitiba, PR.

Muitos olhos trafegam e transitam no terminal de ônibus, a multidão me

olha com seus muito mais que mil pares de pálpebras retina e córneas, o carrossel

dos transportes cheios de donas de casa, pintores, advogados, escritores, leitores,

professores, poetas, muitas pernas abrindo e fechando passos que eu já não

quero mais tentar contar e acompanhar por causa do tédio da espera que

amargou minha língua, as tantas vidas que deixam esse lugar cheio de tantas

outras vidas, começando e morrendo no limite da catraca regida por um preço

fixo, um pedágio, custo para entrar e que subiu e vive subindo, e ainda assim não

CENA TERMINAL

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foi motivo suficiente para diminuir os transeuntes, os passageiros, mas que resultou

na diminuição dos cobradores, uma artimanha para economizar nos gastos:

automatizaram tudo, a catraca eletrônica que arrebanha a multidão de olhos de

todos os dias, seriam quantos milhares de pessoas, eu me pergunto, e aí levo os

olhos de volta para as páginas cheias de letras palavras conjunções advérbios

metáforas versos, eu leio um poema enquanto o ônibus não vem e a fila atrás de

mim se agiganta, a catraca cuspindo mais e mais pessoas para dentro, os ônibus

vindo pegá-las e levá-las para longe, suas casas, seus trabalhos, seus destinos, o

enterro da tia-avó que morreu na semana passada durante uma exposição de

quadros famosos lá pelas bandas da capital federal, a fila fica tão grande, e tão

grande que dobra os quarteirões do terminal, que se apinha de gente, uma

nuvem de tantas moléculas juntas num mesmo lugar à espera do seu transporte

público e coletivo não tão caro, mas não menos barato, que a cada dia se

sucateia, as latas velhas da década do meu pai e avô enferrujadas e mofadas

de tanto suor antigo, recrudescido e incrustado nos bancos, apoios, no volante e

na cabininha do cobrador (ainda não substituído pela eletronicidade das novas

catracas, mas isso por pouco tempo, espere e veja), vejo três gerações

completas de ônibus velhos, não tão velhos e novíssimos em folha, e ainda sim

nada do carro 515 chegar, a fila se tornando mais e mais, a multidão sendo

comida aos poucos pelos ônibus que partem, e sendo reposta aos borbotões

pelas catracas que as jogam para dentro do terminal, vejo um ônibus chegar no

ponto do lado, o carro 612 saindo antes do horário que consta na placa

eletrônica repleto de engravatados, fedorentos, cremes pós-barba e imberbes

rostos femininos com cheiro de lavanda, sexo ou apenas cheiro de nada e nada

do 515, eu vou me atrasar, por que não comprar logo de uma vez um carro e não

passar por isso, esse sufoco, essas tantas gentes esbarrando em mim, me tocando

sem querer, o suor crescendo junto, exalando de todos nós multidão que somos e

que esperamos juntos e nos amontoamos para fugir dos pingos que caem fora

das coberturas de aço, eu me pergunto do porquê, por que eu tenho de fazer

parte de algo maior do que eu e maior do que todos, mas ainda menor do que o

terminal, que no fundo e na superfície é mais, bem mais, por quê?

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Os cavalinhos coloridos em cinza, preto, vermelho e verde-claro dançam

novamente, o 515, já meio preto de tão cinza, sai cantando os pneus na tentativa

de fazer esquecer os enraivecidos passageiros de seu crime, seu atraso, o ônibus

apinhado de parte daquela multidão que formava um ente só, mas que agora se

reside dispersa em meios aos bancos e apoios para se segurar, como um braço

fora do corpo, um homem partido ao meio, uma árvore enxertada em outra, o

gelo no meio de outro copo contendo não água, mas qualquer outro líquido, o

ônibus parte levando o fruto de uma árvore nodosa e enraizada por entre as ruas

avenidas e alamedas que infestam a região ao redor, e o braço, ou galho, se

desfaz pouco a pouco em dedos, ou ramos, deixados a cada parada, a luzinha

meio verde meio amarela que sinaliza o fim de um conjunto, o fim de uma

unidade que se desmancha igual o bater de ondas na areia, a espuma de vidas

estourando lentamente enquanto o motorista acelera o pé tentando recuperar

aqueles 17 minutos fora do horário até que só restam nós três, eu, o cobrador

(catraca) humano e o motorista apressado, atrasados.

A luzinha de parada acende sem que eu precise apertar algo, ela acende

como um prenúncio de algo inevitável, algo que eu não posso segurar com

minhas mãos, matar no peito e dizer que não vai passar, a areia escorrendo por

entre a mão faltante de dedos: eu, o dorso da mão sendo atirado, cuspido a

força pelo ônibus que precisa voltar, ele precisaria já estar lá dezessete minutos

atrás, o cobrador e o motorista olhando para mim com olhares de pressa, olhares

de incômodo, vai-te logo, parte e desce essas escadas, vai para onde tem de ir e

nos deixa voltar, pois estamos atrasados, precisamos buscar e levar mais levas de

gentes, seus olhos me dizem, seus corpos encrespados, seus braços tesos, suas

bocas amarradas, vejo e sinto o ônibus ficando menor, pequeno, cheio de metal

e lataria espaçosos demais para minha presença, afinal o ônibus precisa voltar,

agora já são dezoito minutos no passado que insiste em tomar tempo do

presente, minha pressa se evapora em uma resolução inexplicável, quase como

uma lamúria.

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Eu desço como quem vai para o cadafalso, eu desço as escadas antes

subidas avidamente e com pressa agora de modo devagarinho, tranquilo, ciente

da dignidade de que preciso passar para os trabalhadores que comandam o 515

e estão urgentes para logo se por no caminho de volta, retornar para casa e

cuidar dos vários olhos que se abrem e se fecham a cada instante em que estão

e em que não estão lá; eu aterrisso no chão ao som dos pneus cantados

concomitante com a minha saída, e debruço meu olhar para a rua asfaltada,

acompanhando a figura triste e bisonha, tal qual um elefante frouxo e torto,

cinzento e grande, desengonçado, indo de volta para o lar, de volta para onde

novamente irei estar amanhã, de volta para o terminal.

VINÍCIUS LIMA FIGUEIREDO é um paulista radicado em Curitiba que mais lê

do que escreve. | [email protected]

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ANDRÉ VICTOR MARQUES | Rio de Janeiro, RJ.

Não! João não era parnasiano. Tampouco romântico. Sim! Talvez

seja simbolista. Ou talvez não. Talvez seja modernista. Isso! Modernismo na

veia e na mente.

Seu modernismo era paradoxal. Seu modernismo era passado e

antiquado e antiantropófago. Seu modernismo era romântico, simbolista,

até parnasiano. E por que não arcadista?

NÃO. JOÃO NÃO

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As linhas das barreiras são invisíveis. Não! Invisíveis não. Invisibilidade

pressupõe uma existência e essa existência não existe, é inexistente, é

criação ingênua, ou até mesmo precisa, dos livros.

Pobres modernistas de 22. O moderno é o novo, é o próximo do

anterior, é o pós do antes. O trovador? Isso! Exatamente. O trovador! Por

que não é modernista se é pós? Dirão muitos: “Pós? Pós o quê? Não é o

começo? ” Pobres ingênuos. O velho achismo de que tudo que não se

sabe não existe. Tudo bem! Pode realmente não existir, mas por que se

limitar? Por que a crença de um começo? Diria esse que vos escreve.

Tudo é pós algo. Mesmo esse algo sendo nada. Portanto, não seria

modernismo? Um moderno frente ao nada? Um novo frente ao antigo?

Antiquado? Antipassadismo? “Combata os românticos!”

Combateram realmente? Os “modernistas” se apoderaram do

romantismo. O eu está! O nacionalismo está! O amor... Ahh o amor! Esse

está e esteve sempre.

Sim. João pode não ter escrito amor poeticamente. João foi

poeticamente amoroso. Não. Nada de autor defunto ou defunto autor.

João foi exatamente isso: poeticamente autor. O foi, porque amor não

faltou ao escrever. O foi, porque amor é sua vida. O foi, porque amor é

amor. Único e prontamente lindo. Poesia!

ANDRÉ VICTOR MARQUES, estudante de letras – literaturas, é obsessivo por

livros. Com o grande sonho necessário de escrever e somente escrever.

Externar os sentimentos reprimidos, a angústias isoladoras, as felicidades

estranhas. Autor do blog Prazer em dizer, mas sem muito tempo de

satisfazer as necessidades de publicação. Escreve por amor. |

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ANDREA ARREBOLA AZEVEDO | São Paulo, SP.

No dia em que Olívia chegou a este mundo a natureza não estava

calma. O céu escuro e a ventania insistente e barulhenta insinuavam uma

grande tempestade.

No castelo, o belo Rei Roberto, pai de Olívia, observava as criadas

entrarem e saírem com tinas de água e toalhas macias do quarto real.

OLÍVIA

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Impotente, ele escutava os gritos da Rainha Eugênia. Com as mãos

agarradas na imponente cabeceira da cama de ouro maciço, ela gritava,

chorava, implorava para que aquilo terminasse. Sua gravidez não havia

sido fácil. Após longos nove anos tentando engravidar, a rainha teve que

permanecer na cama durante toda a gestação, proibida de se locomover

até para tomar banho ou realizar suas necessidades mais humanas.

Tamanha restrição fez com que ela engordasse mais de trinta de quilos,

tornando-a ainda mais irritada e arrogante.

Eugênia não era propriamente bela como o Rei Roberto. Mas, seu

porte elegante e seu belíssimo corpo, tornavam-na atraente e desejada.

No final da gestação, contudo, estava bochechuda, com a pele

áspera, manchada e cheia de erupções. Sua cintura estava mais redonda

do que a lua cheia, seu nariz parecido com uma batata amassada e os

seus pés, de tão inchados, assemelhavam-se a dois pães gigantescos.

Após quinze horas de parto, Olívia finalmente nasceu.

A parteira aproximou-se da rainha e anunciou que ela havia dado à

luz a uma menina. Eugênia virou-se, fechou os olhos e dormiu.

A princesa, pesando mais de cinco quilos, envolvida em um delicado

cobertor dourado, foi levada até o Rei Roberto que aguardava pelo

nascimento no suntuoso salão de cerimônias acompanhado de amigos e

parentes.

“É uma menina”! Disse a parteira, receosa, ao entrar.

Rei Roberto abriu um largo sorriso, pegou a princesa, olhou com

extrema suavidade para aquele rosto pequeno, rosado e enrugado e

apresentou sua filha com um pedido: “Esta é Olívia, de hoje em diante,

sejam gentis com ela!”.

Olívia cresceu e com o passar do tempo tornou-se o oposto do que

esperavam dela. Era gorda, muito gorda, como fazia questão de frisar a

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rainha. Seus cabelos, ruivos como os do rei e volumosos como os da rainha,

não se encaixavam nos coques reais e viviam às voltas das suas

bochechas sardentas. Para completar, Olívia não tinha talento para as

artes, nem para os esportes, tão pouco para o canto, dança ou hipismo.

Cresceu escutando o quanto sua mãe era infeliz por não ter conseguido

dar ao rei, um príncipe herdeiro e o quanto ela era castigada por ter

parido aquela filha imprestável.

E era assim que Olívia julgava-se: imprestável, um fardo para sua

mãe.

Isso até o dia em que a rainha chamou ao reino o feiticeiro Ângelo

Uriel, o mais poderoso e temido bruxo das terras dos magos. Talvez ele

fosse o centésimo bruxo ou algo aparecido a visitar o castelo com o cunho

de curar a princesa, mas tal número deixou de ter qualquer importância

após a décima segunda noite de lua cheia, quando Olívia tomou o

décimo segundo banho preparado pelo feiticeiro Uriel e em seguida

adormeceu.

Na manhã seguinte, no dia do seu décimo segundo aniversário, com

o rosto encostado no beiral da banheira de prata, Olívia despertou. Ainda

sonolenta, ela enxergou um corpo magro e longilíneo dentro da água e

assustou-se. Levantou-se de maneira brusca e abismou-se com aquele

corpo suave e delgado, o qual ela apalpava com as mãos trêmulas e o

coração aos pulos.

Apavorada, ela conseguiu caminhar até a própria cama e depois

desmaiou.

Acordou com a rainha, o rei, o mago Uriel e outros à sua volta. A

Rainha Eugênia estava tão exultante que dera ao mago glorioso: iguarias,

ouro, títulos, e tudo o mais que ele desejasse.

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Olívia finalmente estava bela, aliás, belíssima. Seus cabelos, antes

rebeldes, eram pura seda cor de fogo. Os olhos azuis, antes escondidos

atrás das bochechas redondas, agora brilhavam mais do que o céu

naquele rosto perfeito e harmonioso, seguido por um corpo leve e firme.

Notando a felicidade da mãe, Olívia sentiu-se feliz como nunca e a

sua sensação de euforia só não foi completa porque o Rei Roberto, apesar

de disfarçar, não conseguia esconder seu descontentamento.

Com o passar dos dias, Olívia mostrava-se não apenas perfeita na

aparência, mas magnífica na prática do hipismo, hábil nos esportes,

talentosa para a pintura e o canto.

Os rapazes, que antes a repudiavam ou ignoravam, passaram a

cortejá-la. As outras princesas, antes distantes, tornaram-se próximas.

Mas para Olívia, o melhor de tudo aquilo é que finalmente sentia-se

amada por sua mãe. A atenção materna tão almejada por toda sua vida

agora existia, acompanhada de orgulho, suavidade, presentes e elogios.

Seis meses se passaram e o mago Ângelo Uriel foi embora,

carregado de honrarias, ouro, prata, títulos, posses e promessas de retorno.

A vida prosseguiu e Olívia completou quinze anos, festejados à

altura, com uma magnífica festa, frequentada por reis, rainhas, príncipes,

princesas, lordes, cardeais e muitos outros.

Na ocasião Olívia viu-se disputada pelos príncipes, que a desejavam

feito a um troféu, mas com exceção de apenas um jovem, Rei Maurício,

gorduchinho e amável, nenhum dos outros despertou seu interesse.

A rainha, porém, desfez daquela relação, proibindo qualquer

amizade ou aproximação. Sua intenção era casá-la com outro príncipe:

Clodoaldo, mais rico, poderoso e bonito. Os sentimentos de Olívia pouco

importavam, aliás, Olívia pouco importava.

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Com o passar dos anos Olívia percebeu que todo o amor e

admiração que ela acreditava estar recebendo da sua mãe desde sua

beleza e talentos esplêndidos, não eram propriamente amor e admiração.

Agora a rainha a tratava pior do que antes, porque se antes ela era

ignorada, agora ela era cobrada, atacada, pressionada. Tinha que ser a

melhor, necessitava ser perfeita.

Desde os doze anos, Olívia nunca mais tivera paz. Eram

compromissos da hora em que acordava até a hora em que ia dormir.

Necessitava caminhar de tal maneira. Precisa comer de outra. Nos seus

estudos não poderiam faltar álgebra, matemática, história, física,

astrologia, astronomia, geografia, letras, idiomas, literatura, religião,

música, canto, dança, pintura, boas maneiras, corrida, tiro ao alvo,

natação, exercícios, hipismo...

Olívia sentia-se exausta. As carícias da mãe haviam dado lugar às

cobranças e críticas. A cozinha, seu lugar preferido na infância, com seus

aromas e delícias, tinha se tornado proibido.

As demais princesas passaram a invejá-la mais do que tudo,

desdenhando dela às escondidas. Os príncipes que a disputavam eram

extremamente pedantes e intragáveis e o único que a fazia sentir-se

menos infeliz era seu pai, o Rei Roberto.

Entristecida, Olívia adoeceu. Cessaram os compromissos. As visitas

tornaram-se raras. A princesa passava seus dias na cama, sem apetite,

com febre, tremores e alucinações e nenhum dos botânicos ou feiticeiros

do reino foram capazes de curá-la.

Desesperado, o Rei Roberto mandou chamar novamente o mago

Ângelo Uriel e quando ele finalmente conseguiu retornar ao Castelo, já

que havia se mudado para o outro lado do mundo, Olívia estava tão

enferma, que mal conseguia abrir os olhos.

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O bruxo então os informou que a única forma de curar Olívia seria

retorná-la à sua forma antiga. O rei concordou na hora. A rainha

desesperou-se.

Com o passar dos dias, porém, e a inexorável piora da saúde de

Olívia, Eugênia foi obrigada a aceitar a receita de Uriel, prometendo que o

mataria na sequência.

Sabedor de sua morte, o feiticeiro preparou a infusão para o banho

de Olívia, lamentando o momento em que havia nascido bruxo e entrado

naquele opulento palácio para curar a princesa. Agora, por conta dos

seus feitiços e cura, morreria.

O corpo magro e frágil de Olívia foi levado pelas criadas até a

banheira de prata e ali permaneceu inerte, por mais de quatro horas.

Ao despertar, a primeira coisa que Olívia enxergou foi uma saliente

barriga para fora da água, que caia com o excesso de peso e molhava o

suntuoso piso e tapetes reais. Suas mãos estavam novamente volumosas,

assim como suas pernas, braços, seios, glúteos e pés.

Com dificuldade por causa do peso, ela conseguiu se levantar, e já

não estava mais febril, pelo contrário, sentia disposição e um imenso

apetite.

Ao surgir no corredor do castelo, envolta em lençóis que mal

conseguiam esconder sua forma roliça, a Rainha Eugênia lamentou pela

sua vida, estapeou-se no rosto inúmeras vezes, amaldiçoou o universo e

segurando um punhal saiu em disparada atrás do feiticeiro Ângelo Uriel.

Olívia foi conduzida até seu quarto e após aguardar pela confecção

de um vestido do seu atual tamanho pelas costureiras de plantão,

caminhou pelo palácio em busca de alguma aceitação. Sem pensar, ela

entrou na biblioteca onde o mago Uriel estava prestes a ser morto pela

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Rainha Eugênia e por algum motivo, não sentiu receio de falar à mãe, a

qual, pela primeira vez, ouviu o que a filha tinha a dizer.

“Não foi culpa dele, mamãe!” – gritou Olívia. “Eu pedi a Deus para

que me levasse, pois de nenhuma forma eu fui capaz de obter o seu

amor”.

Eugênia olhou para aquela jovem disforme, feia e gorda e largou o

punhal.

O feiticeiro Uriel foi embora, jurando a si mesmo nunca mais retornar

àquele reino, mas ainda assim, carregando enormes quantias em ouro

entregues por Rei Roberto, amplamente aliviado e agradecido.

Os anos se passaram e Olívia parou de chatear-se com a falta de

afeição da rainha, contentando-se com o grande amor que lhe era

dispensado pelo rei.

Conforme ela crescia, sem que percebesse, foi perdendo peso e

adquirindo conquistas, como sua admirável habilidade para a culinária.

Com a permissão do pai e o desinteresse da mãe, ela voltou a frequentar

a cozinha e dessa vez, passava horas criando e assando bolos, que além

de deliciosos, mais pareciam obras de arte.

Aos dezenove anos Olívia havia se tornado uma linda jovem, não

magra como as outras princesas, mas bela, com um corpo repleto de

curvas, um sorriso encantador e uma magnífica habilidade culinária, a

qual a reaproximou de Rei Maurício, o gentil e guloso herdeiro do Reino ao

lado.

Olívia e Maurício casaram-se em uma linda cerimônia, com um

esplendoroso bolo confeitado pela princesa. Tiveram três filhos, dois

meninos e uma menina, aos quais, a Rainha Olívia e o Rei Maurício,

nomearam de Roberto, Ricardo e Raquel, e os amaram de maneira

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incondicional, do exato jeitinho que eram, sem jamais supor ou exigir, que

pudessem ter nascido ou que se tornassem diferentes.

ANDREA ARREBOLA AZEVEDO é advogada e autora de “Cidade das

Chuvas” (2005). Atualmente exerce atividades ligadas à escrita. |

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JOSÉ VIEIRA

Santa Cruz, Portugal

V. nasceu na década de vinte do século passado. Veio ao mundo

quando faltavam quatro dias para a consoada. Fora a alegria daquela

família naquele Natal. Era a sétima filha daquela união.

Os primeiros anos da sua existência foram vividos em harmonia. V.

começava a descobrir o mundo. O seu olhar abria-se para a vida. Tudo o

que a rodeava provocava um intenso sentimento de curiosidade. A

descoberta fascinava-a. V. era verdadeiramente uma criança que tinha

nascido para o saber. Era profundamente observadora. Nascera com o

dom de saber escutar. Não falava pelos cotovelos. Ouvia e observava.

Tirava ensinamentos com esta táctica. Não era intrometida nem

bisbilhoteira. Era serena e sensata.

Desde muito cedo V. aprendeu que a vida não era fácil. Havia que

trabalhar. Trabalhar duro, na verdade, para poder ter uma vida com

alguma dignidade. Quando V. veio ao mundo a pobreza reinava. Uma

guerra tinha terminado há alguns anos. Os governos sucediam-se uns a

outros. Uma profunda crise económica originava instabilidade social. V.

nasceu num lugar de pobres. Não eram apenas pobres de bens mas

também de espírito. Eram poucos os que sabiam ler e escrever. A maioria

vivia para o trabalho e do trabalho. Procuravam encontrar assim alguma

decência para aquelas vidas. As vidas que Deus escolheu. Que Ele quis

dar.

A PAIXÃO DE V.

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A pequena V. soube bem o que era sobreviver em tempos de

desarmonia. É verdade que fora uma privilegiada, e aprendera a ler e a

escrever, no entanto também aprendeu o amargo sabor da injustiça.

Era ainda criança quando descobriu o que era a orfandade. O pai

morria. Numa quente tarde de verão sucumbiu no seu quarto. V. tinha

apenas sete anos. Não se apercebeu verdadeiramente da situação. Não

compreendeu que nunca mais veria o pai, aquele que a havia

concebido, amado e criado. Com o suceder dos dias tomou consciência

do triste destino que tinha abatido sobre o seu lar. A sua melancolia foi

nascendo com o passar do tempo.

V. cresceu! Não fora fácil. A curiosa criança que queria descobrir o

mundo apercebeu-se, demasiado cedo, que nele a injustiça dominava.

Estava em todo o lado. E na verdade ninguém queria se inteirar dela.

Fechavam os olhos. Aceitavam-na como se tratasse de um desígnio de

Deus. O Todo-Poderoso assim queria, assim ordenava. Ninguém em

momento algum tentava minimizar as injustiças, as dificuldades, as

desarmonias. Ninguém!

V. não perdeu a sua fé em Deus mas nos homens, que por medo não

ousavam questionar a vontade divina. E pior não prestavam auxílio àquele

que abraçava o desamparo. Com apenas sete anos V. conheceu a

dureza da vida. Conheceu o que era viver. Sem pai, V. e os irmãos

começaram a trabalhar. Uns iam para os campos, outros dedicavam-se

ao artesanato. Aquela pequena criança com tenra idade conheceu a

arte dos bordados em linho.

Todo o processo deixava-a encantada. Desde criar o desenho para

estampar no tecido, bordá-lo, recortá-lo, por fim lavá-lo e engomá-lo

pronto para seguir para venda. Era uma verdadeira obra de arte. As mãos

de V. não se cansavam. V. não se cansava. Colocava todo o seu amor no

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que fazia. Bordar tornou-se a sua paixão. A sua grande paixão. Fazia com

tanto primor que todos os seus trabalhos eram uma perfeição.

V. bordou a vida inteira. Ficou conhecida na pequena terra onde

nasceu e o seu trabalho trespassou as colinas e os vales da sua localidade.

A arte que fazia foi o sustento da família. Permitiu que a mãe e os irmãos

não sentissem por mais tempo o sufoco de não terem com que se

sustentar. V. foi a salvação daquele lar. A sétima filha. A sua dedicação

aos bordados era a sua maior paixão. Era o seu talento. V. encontrara o

seu. Deus quis que ela encontrasse. No seu íntimo V. sabia a quem devia

agradecer. Ao pai. Ao seu pai que dera a vida para que ela encontrasse a

sua paixão. Os bordados! E apenas os bordados.

JOSÉ VIEIRA é o pseudónimo de Teresa Vieira Lobo. Jovem nascida na

década de 80, numa pequena localidade chamada Gaula, terra de

amoras, padres e doutores. Em 2014 estreou no mundo da escrita com o

livro “Estranhas Coincidências”. | [email protected]

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PARCEIROS:

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Edição e Revisão:

Morgana Rech e Tânia Ardito

Recepção de originais:

[email protected]