Rio Pardo 200 anos

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Uma luz para a história

do Rio Grande

Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

Santa Cruz do Sul Rio Grande do Sul – Brasil

2010

Olgário Paulo Vogt Maria Rosilane Zoch Romero (Organizadores)

Incentivadores

Apoio cultural Proponente cultural

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Coordenação editorial e organização: Maria Rosilane Zoch Romero

Coordenação histórica e organização: Olgário Vogt

Supervisão geral: Romeu Inácio Neumann

Textos: Olgário Vogt, Maria Rosilane Zoch Romero, José Augusto Borowsky,

Guido Ernani Kuhn, Elemir Polese, Luís Fernando Ferreira, Otto Tesche,

Cristina Severgnini, Dejair Machado

Pesquisadores: Melina Perussatto, Fábia Behling, Rafael Brito Vianna

Design e projeto gráfico: Paulo Cesar Meinhardt

Edição de fotografia, arte-final e supervisão gráfica: Márcio Oliveira Machado

Capa (antiga Escola Militar, hoje Centro Regional de Cultura), mapas e ilustrações: Fernando Barros

Revisão: Luís Fernando Ferreira

Produção executiva cultural: Edemilson Cunha Severo

Coordenação cultural: Névio Stefainski

Impressão e acabamento: Gráfica e Editora Coan – Tubarão – SC

Proponente cultural: Editora Gazeta Santa Cruz Ltda.

Apoio: Ministério da Cultura – Lei de Incentivo à Cultura – Lei Rouanet –

Pronac 085735

Patrocínio: Souza Cruz S. A.

CRM - Companhia Riograndense de Mineração

Caixa Estadual S. A. - Agência de Fomento RS

BANRISUL S/A Corretora de Valores Mobiliários e Câmbio

Copyright 2010

Todos os direitos da publicação reservados. A reprodução total ou parcial de

textos ou de fotos deste livro depende de autorização expressa, por escrito,

da direção da Editora Gazeta Santa Cruz.

Santa Cruz do Sul – Rio Grande do Sul – Brasil – 2010

Ficha Técnica

Uma luz para a história do Rio Grande: Rio Pardo 200 anos: cultura, arte e memória / Org. Olgário Paulo Vogt; Maria Rosilane Zoch Romero. Santa Cruz do Sul: Editora Gazeta Santa Cruz, 2010.208 p. : il.

ISBNBibliografia

1. Rio Pardo (RS) – História. 2. Rio Grande do Sul – História. I. Vogt, Olgário Paulo; Romero, Maria Rosilane Zoch.

Catalogação : Bibliotecária Edi Focking CRB-10/1197

L979

CDD : 981.65

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3Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

Sumário4 Introdução 6 Os primeiros habitantes 20 Disputas pelo território 32 A vida urbana 52 A organização política 66 Rio Pardo, mãe de muitos 80 Guerras civis abalam o Rio Grande 104 A Rio Pardo dos militares 116 A escravidão e suas marcas 136 A atividade criatória 148 Os rios e as ferrovias 158 Projetos colonizatórios 172 Culturas ao longo do tempo 180 A religiosidade 202 Referências

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Introduçãopresente livro é o resultado de um projeto proposto pela Editora Gazeta Santa Cruz Ltda., em parceria com o Departamento de História e Geografia da Universidade de Santa Cruz do Sul, desenvolvido a partir de outubro de

2008, e que teve como objetivos comemorar a passagem do bicentenário de elevação de Rio Pardo à condição de município e responder às questões fundamentais sobre a formação socioeconômica e cultural do Estado.

Um dos quatro municípios iniciais do Rio Grande do Sul,

Rio Pardo foi criado, com Rio Grande, Porto Alegre e Santo Antônio da Patrulha, pela Provisão de 7 de outubro de 1809. A instalação, no entanto, ocorreria somente dois anos e meio depois, em 20 de maio de 1811. Já a sua elevação à condição de cidade se daria após o término da Revolução Farroupilha, ou seja, em 31 de março de 1846.

Ao contar a história desses 200 anos, o livro aborda

aspectos e acontecimentos de Rio Pardo e do Rio Grande do Sul. O trabalho se iniciou enfocando os primeiros ha-bitantes do território, que foram índios de diferentes tra-dições. Passou pela função militar estratégica que coube à localidade e tratou da conquista militar e a apropriação das terras na Fronteira de Rio Pardo; pela evolução polí-tica e administrativa e pelas lutas políticas ocorridas no município e no Rio Grande do Sul; pelo desenvolvimento econômico de Rio Pardo e região; por um olhar sobre a fragmentação do território primitivo de Rio Pardo em centenas de municipalidades; por aspectos urbanos e do cotidiano da vila e da cidade no passado; pela escravidão e pela resistência ao trabalho compulsório dos traba-lhadores feitorizados; pelos projetos colonizatórios com imigrantes europeus ocorridos na região; pelos múltiplos aspectos religiosos que caracterizam a população rio-pardense; pela representação de Rio Pardo na literatura, por espaços culturais existentes e por rio-pardenses que se destacaram no mundo das ciências, letras e artes; por

alguns lugares que marcaram a vida da sua gente; por algumas personagens nascidas, ou que viveram parte de suas vidas no município, e que deixaram marcadas suas trajetórias. Finalmente, trata de alguns saberes e fazeres da população de ontem e de hoje da bicentenária Rio Pardo.

Em termos de recursos humanos e financeiros, esse foi

o projeto especial mais arrojado e de maior envergadura já desenvolvido pela Editora Gazeta, pois contou com o envolvimento de mais de 40 profissionais na sua produção, com a realização de mais de 200 entrevistas e 2.100 regis-tros fotográficos, com cerca de 40 municípios visitados e 14.000 km percorridos.

O livro tem como meta se constituir em material

didático-pedagógico. Espera-se que ele possa contribuir, com a indispensável mediação do professor, para que alunos consigam construir e reelaborar conhecimentos em sala de aula a partir da sua utilização. Nesse sentido, acreditamos que tenhamos contribuído para minorar a carência de material didático sobre o município, a região e o Estado.

Esta obra tem também o escopo de colaborar com

o conhecimento acerca da história local e regional. Na historiografia brasileira, a história local se caracteriza por ocupar um espaço marginal e por ser escrita, quase sempre, por pesquisadores diletantes. Os textos aqui veiculados, além da autoria dos coordenadores deste trabalho, são também produção de um grupo de jor-nalistas abnegados que integram o corpo funcional do jornal Gazeta do Sul, pertencente à Gazeta Grupo de Comunicações. Embora o foco seja Rio Pardo e o seu entorno, fatos significativos da história rio-grandense são aqui analisados, uma vez que a história local está imbricada com a regional em diferentes escalas. Daí a razão do título “Uma luz para a história do Rio Grande – Rio Pardo 200 anos – cultura, arte e memória”.

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5Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

Para desenvolver este trabalho, recorremos a uma vasta bibliografia. Fontes primárias foram consultadas em arquivos históricos, museus e centros de documentação. Inestimáveis nos foram, também, as contribuições repassa-das por pesquisadores universitários e por pesquisadores diletantes. A todos que colaboraram com nossa equipe de trabalho cedendo fotografias, documentos, depoimen-tos ou indicando pistas, a nossa gratidão. Deixamos de nomeá-los individualmente porque a lista seria grande e, fatalmente, cometeríamos a injustiça de omitir o nome de um ou de outro. Que se sintam homenageados nas pessoas de José Ernesto Wunderlich (seu Nanati) e de Ciro Saraiva, que sempre se mostraram solícitos e foram incansáveis em colaborar com nossa equipe.

Agradecemos também ao Ministério da Cultura do

Brasil (MinC) que, por meio da Lei de Incentivo à Cultura – Rouanet, acolheu a proposição cultural da Editora Gazeta. Permitiu, dessa forma, a produção de conhecimento a partir da história e da memória coletiva, ultrapassando as fronteiras acadêmicas e abrindo novas possibilidades de compreensão da realidade. Destacamos, ainda, a indis-pensável contribuição de nossos incentivadores culturais, que tornaram possível a concretização desta obra.

Como todo e qualquer trabalho histórico, este também

se constitui de versões sobre o passado. Não temos a pre-tensão de esgotar os temas, muito menos a de escrever a história de Rio Pardo. Sem deixar de lado atores contados pela historiografia tradicional, temos a intenção de trazer à

tona os ignorados ou completamente desconhecidos. Ao lado das batalhas heroicas e das enaltecidas conquistas militares ocorridas na fronteira de Rio Pardo, queremos colocar os índios, esses expropriados esquecidos. Na pujante Rio Pardo comercial do século XIX, aspiramos enfatizar o trabalho realizado pelos cativos africanos e a sua luta contra a escravidão. Evidentemente, a escolha dos temas que integram o livro e a interpretação dada a determinados fatos expressam uma teoria e um conjunto de conceitos dos coordenadores do projeto. Mais do que esgotar qualquer tema, almejamos levantar uma série de questões que possam ser alvo de pesquisas em futuro bastante próximo.

Esperamos que, com esse trabalho, leitores não espe-

cializados na ciência histórica, pesquisadores, professores e alunos, sintam-se desafiados a buscar novas leituras e conhecimentos sobre o Rio Grande do Sul e a fazer cone-xões e reflexões entre esse passado e a realidade presente do município e do Estado.

Os organizadores

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6 Uma luz para a história do Rio Grande

Onde tudo começou

OS PRIMEIROS hABITAnTES

A origem do planeta Terra remonta a aproximadamente 4,5 bilhões de anos. Há cerca de 3 bilhões de anos apareceu a vida, com o surgimento das bactérias primitivas.

A formação do planeta se deu ao longo de milhões de anos. Nesse tempo, significativas mudanças ambientais e climáticas ocorreram. Foi apenas há cerca de 6 mil anos que o clima na Terra se estabilizou, tornando-se bastante parecido com o atual. Havia muito a era dos enormes répteis terrestres – os cinodontes, dicinodontes, tecodontes e rincossauros – havia ficado para trás.

Erika Collishonn, professora de Geografia da Universidade Federal de Pelotas, explica que, em termos de transformações do relevo do Rio Grande do Sul, acredita-se que as últimas ativações tectônicas significativas tenham ocorrido há cerca de 70 milhões de anos. A única superfície que se formou posteriormente, em virtude das regressões e transgressões marinhas, foi a Planície Litorânea e suas lagunas. Essas transgressões e regressões estão relacionadas às grandes glaciações que ocorreram no Pleistoceno (época compreendida entre 1 milhão e 800 mil e 11 mil e 500 anos atrás). Assim, é somente a partir de 6.000 anos antes do presente que as características geográficas gerais do território sul-rio-grandense se apresentam com uma fisionomia semelhante à atual. Mesmo assim, a professora chama a atenção que oscilações climáticas entre períodos mais quentes e úmidos (6.000 a 4.000 antes do presente – A.P.) e outros mais secos (4.000 a 2.000 A.P.) continuaram a ocorrer. O clima se estabilizou e ficou mais semelhante ao atual há cerca de 2.000 anos.

A origem da Terra, há 4,5 bilhões de anos, e do gênero Homo; a chegada do homem ao continente americano; os grupamentos indígenas que ocuparam o Rio Grande do Sul há pelo menos 12 mil anos.

O aparecimento do homem na TerraA história trata de toda a jornada do homem ao longo de sua existência. O historiador Jorge Eiroa, da Universidade de Múrcia, Espanha, explica que o homem, como gênero homo, surgiu somente entre 2 e 1,5 milhões de anos. Trata-se do Homo erectus, que se desenvolveu até cerca de 100.000 anos antes do presente e se expandiu por todo o Velho Mundo, adotando diversas variantes formais que só afetaram partes secundárias de sua estrutura óssea. Atualmente, há a tendência de denominar Homo ergaster aos erectus da África, reservando o termo “erectus” para os asiáticos do tipo Java.A história dos antecedentes do gênero homo, os australopitecos (hominídeos), remonta a 6 ou 7 milhões de anos. O exemplar mais antigo desse gênero é o Sahelanthropus chadensis (“Toumai”, o Velho homem de Chade). Seus restos foram descobertos em 1998 por Michel Brunet, da Universidade de Poitiers, e por David Pelbean, no deserto setentrional do Chade. Brunet acredita ser esse o possível ancestral dos hominídeos posteriores. Em 2005/07, foram descobertos novos restos de “Toumai”.

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7Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

Devido à intensa e bem distribuída pluviosi-dade ao longo do ano, o Rio Grande do Sul tem farta rede

hidrográfica. Além da enormidade de rios e riachos, possui igual-mente um grande número de lagos e lagunas costeiras.

A vegetação natural depende, basicamente, das características do solo e do clima. Antigamente, pelo menos metade do território era coberta por campos. Os campos se dividiam em campinas e campos do planalto. As campinas são os campos limpos, que cobriam prati-camente toda a metade sul e oeste do território. Integram um conjun-to maior de campos que também abrange o território do Uruguai e parte da Argentina, chamado de Pampa. Essas campinas foram essenciais para o desenvolvimento

do gado chimarrão. Os campos do planalto, também chamados de campos sujos por apresen-tarem arbustos misturados às gramíneas, aparecem no nordeste do Estado. Sua pastagem é infe-rior à das campinas.

Originariamente, encontrava-se no Estado dois tipos de flores-tas: a mata subtropical e a mata dos pinhais. A subtropical ocu-pava a encosta do planalto, o alto vale do Rio Uruguai e a encosta nordeste, onde aparecia como uma continuação da Mata Atlân-tica. Possuía muitas árvores de madeira de lei com grande valor econômico. Já a mata dos pinhais se situava no planalto, no norte e nordeste. Juntamente com os pinhais aparecia a erva-mate. Es-sas duas árvores foram essenciais para a vida dos primeiros habi-tantes do Rio Grande do Sul.

RS já foi habitado por dinossaurosCampos e matas Atlântica e subtropical cobriam o território gaúcho

•• O que já foi encontrado

O Vale do Rio Pardo é uma das regiões que preserva mais fósseis de dinossauros no Rio Grande do Sul. Candelária tem o maior número de afloramentos. Um deles é o Guaibasaurus candelariensis, conforme a paleontóloga da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), Marina Bento Soares. Os fósseis mais antigos do Vale do Rio Pardo, segundo ela, são do período triássico – 245 a 205 milhões de anos atrás. “A idade dos fósseis da região pode ser estipulada em 225 a 220 milhões de anos.” Em Santa Cruz do Sul e Venâncio Aires foram descobertas ossadas de animais que viveram no triássico médio – 245 a 228 milhões de anos. “Também é importante ressaltar a presença do único fitossauro da América do Sul, encontrado em Candelária. Além desses, ocorrem na região dicinodontes, rincossauros e tecodontes”, diz Marina. Dentre os herbívoros, os animais mais comuns eram os dicinodontes (di = dois; cynos = cão; odontos = dentes), que alcançavam quatro metros de comprimento por 1,70 metro de altura. Também foram encontrados rincossauros – que podiam medir mais de três metros e 90 centímetros de altura – e cinodontes traversodontídeos, que mediam um metro de comprimento por 50 centímetros de altura. Entre os carnívoros os maiores foram os tecodontianos, com seis metros de comprimento e 1,70 metro de altura. Segundo os paleontólogos, é nessa região – chamada de Depressão Central – que ficaram as rochas do período triássico, quando todos os continentes estavam reunidos em uma massa de terras denominada Pangea.

Guaibasaurus candelariensis

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8 Uma luz para a história do Rio Grande

Hipótese ainda predominante aponta que os primeiros homens entraram pelo Estreito de Bering, no Hemisfério Norte

O homem chega na América

Mais de dois mil anos já se passaram. Estamos na chamada Era Cristã. Mas foi muito antes disso, entre 12 e 11 mil anos atrás, que os primeiros seres humanos começaram a habitar os campos e encostas do atual Estado do Rio Grande do Sul. Os grupos pioneiros, constituídos de caçadores-coletores, possivelmente vieram migrados da Patagônia, território situado no Sul da Argentina.

Esses antigos povos desconheciam a agricultura. Como sobreviviam? Da caça, da coleta e da pesca. No entanto, suas atividades para obtenção de alimento eram dependentes da oferta existente no ambiente. O professor Sérgio Klamt, da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), defende a ideia de que a horticultura (agricultura em pequena escala) foi praticada em tempos bem mais recentes, ou seja, começou a ser cultivada somente com o ingresso dos guaranis e dos gês no Estado. Por isso, e para entender melhor, vamos analisar como se deu a ocupação do Vale do Rio Pardo.

Quem pisou primeiro no RS

Ainda que atualmente vários investigadores proponham outras vias

de entrada do homem na América, até agora a mais segura e defendida é a passagem pelo Estreito de Bering, entre a Sibéria e o Alasca.

O professor Jorge Eiroa explica que a passagem de seres humanos já plenamente formados deve ter ocorrido em diversas ocasiões, em pequenos grupos e em levas sucessivas. A passagem da Sibéria para o Alasca deve ter se dado em fases de avanços glaciares, quando o nível da água dos oceanos baixou por causa da grande quantidade de água retida na forma de gelo nas calotas polares do planeta. As primeiras passagens devem ter ocorrido entre 40 e 45 mil anos atrás. Passados alguns milênios, seres humanos poderiam ser encontrados em diferentes pontos das três Américas.

Escavações feitas na América do Sul têm proporcionado datações bastante antigas para a presença de grupos humanos. É o caso da Cueva Fell, na Patagônia argentina (12.000 a. C.), com pontas de “cola de pescado”, ou as de outros jazigos na Argentina, Colômbia e Peru (anteriores a 14.000 a. C.). Monte Verde, no sul do Chile, foi um povoado de caçadores-coletores cujos indícios datam de 12.000 a. C. Perto dali foi encontrado outro jazigo que pode ter uma cronologia anterior, de até 30.000 a. C.; no noroeste do Brasil, os achados de Pedra Furada datam de 30.000 a. C. e os mais recentes, de Toca da Esperança, devem ser ainda anteriores.

Essas cronologias sul-americanas sugerem que, se aceitarmos a direção Norte-Sul para a penetração humana no continente americano, ela deve ter se realizado há pelo menos 40.000 anos. Entretanto, o tema não está esgotado e os estudiosos não descartam outras possibilidades, surgidas a partir de novas pesquisas e de dados arqueológicos seguros.

Possíveis correntes migratórias do homem para a América

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9Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

•• Artefatos

Nos séculos XVI e XVII, quando se deram os primeiros con-tatos do homem de origem europeia com a terra e a gente aqui já estabelecida,

todo o Rio Grande do Sul era habitado por indígenas. O padre jesuíta e arqueó-logo Pedro Ignácio Schmitz, da Unisinos, estima que poderiam ter vivido, ao todo, cerca de 80 mil índios no atual território do Estado. Esses indígenas, além de possuírem língua e cultura diferentes, também ocupavam espaços distintos. Os povos guaranis ou os guaranizados – aqueles que tinham adotado a cultura guarani – eram amplamente predo-minantes. Correspondiam, segundo cálculos do padre Schmitz, a cerca de 90% do total de indígenas existentes. Mas também havia outros grupos. Os gês, por exemplo, representariam cerca de 6% e os pampeanos, grupo minoritá-rio, os restantes 4%. Isso significa que os nativos da cultura guarani constituíam a grande maioria.

O Vale do Rio Pardo favoreceu a ocupação humana desde um passado

remoto. Com áreas de campo ao Sul e as encostas do Planalto ao Norte, a região está situada num espaço de transição. Com base nas datações conseguidas por pesquisas feitas pelo Centro de Ensino e Pesquisas Arque-ológicas (Cepa) da Unisc, é possível afirmar que grupos caçadores-coleto-res (denominados por especialistas de tradição umbu) povoaram a área desde pelo menos 1.000 anos antes de Cristo. O arqueólogo Sérgio Klamt, no entanto, acredita que a ocupação seja bem mais antiga: “Esperamos que com o avanço das pesquisas e com o desenvolvimen-to das tecnologias possamos, no futuro, comprovar que essa ocupação é bem anterior à datação obtida através do exame com Carbono 14”.

Os primeiros grupos eram nômades e se instalaram em locais mais elevados, nas proximidades de arroios e riachos, especialmente nas coxilhas e costas planas de morros. Deixaram registrada sua arte com inscrições e desenhos em blocos rochosos, chamados de petrógli-fos. Klamt: ocupação deve ser anterior a 1.000 a.C.

Culturas indígenasEstimativa é de que, apenas no Rio Grande do Sul, havia perto de 80 mil índios

É testemunha da produção cultural dos indígenas uma série de instrumentos de pedra como percussores, raspadores, talhadores, bolas de boleadeira e pontas-de-flecha. Klamt explica que o arsenal de artefatos “fabricados” pelos grupos pioneiros provavelmente era bem mais rico e representativo, pois ferramentas simples confeccionadas a partir de lascas de madeira, ossos, dentes e chifres de animais raramente sobrevivem à ação do tempo. Embora não sejam encontrados com frequência nas escavações de sítios, devem ter sido bastante utilizados.

Bolas de boleadeira

Pontas-de-flechas

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G. A

SSM

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Fonte: Acervo do Cepa/Unisc

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10 Uma luz para a história do Rio Grande

Na época do descobrimento do Brasil o Vale do Rio Pardo era povoado, ma-joritariamente, por tribos da tradição tupi-guarani. Elas tinham as suas al-deias de preferência nos vales dos rios,

sobretudo nas margens do Jacuí e do Rio Pardo. No Rio Grande do Sul, os guaranis receberam diversas denominações. No litoral foram chamados de carijós; nas proximidades da Laguna dos Patos receberam o nome de arachanes; e nos vales dos rios Jacuí e Taquari foram alcunhados de tapes.

Os guaranis são de origem amazônica, portanto provenientes de áreas florestais. Penetraram em território gaúcho por volta do ano 100 da nossa era. Klamt explica que, com o poder de suas armas – lanças, tacapes, arcos e flechas – somado ao seu espírito guerreiro, conquistaram terras ocupadas por povos indígenas de outras tradições.

Eram ceramistas-horticultores. Isto é, além da caça, da pesca e da coleta, produziam alimentos cultivados em pequenos roçados de terras férteis. Dentre outros cultivares obtinham o tabaco, o milho, a mandioca, a abóbora, o algodão, o amendoim e o porongo.

Os homens caçavam, pescavam, guerreavam e faziam a derrubada do mato para abrir clareiras onde eram implanta-das as hortas. As mulheres teciam,confeccionavam cerâmica e seresponsabilizavam pela atividade agrícola.

Normalmente, as aldeias guaranis ficavamlocalizadas nas proximidades de um cursod’água e no meio de uma mata ciliar. Após alguns pares de anos, quando os víveres necessários à sobrevivência do grupo escas-seavam, os indígenas se deslocavam para outra área.

Os guaranis foram também considerados exímios canoeiros. Faziam suas embarcações escavando robustos troncos de árvores. Utilizando ca-nudos de taquara, bebiam uma infusão de erva-mate com água que era servida em pequenos porongos. Desse hábito deve ter se originado o chimarrão.

Em um período bem mais recente – 600 ou 500 anos atrás –, insta-laram-se pelo Vale do Rio Pardo. Da sua cultura material foram encon-trados machados de pedra polida, cachimbos e uma grande varie-dade de vasilhas de cerâmica.

Povo penetra no território gaúcho por volta do ano 100

A chegadados guaranis

Urnasfunerárias:

testemunho da produção cultural dos

guaranis

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Cachimbos de barro

Índios guaranis

Fonte: Cepa/Unisc

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11Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória•• Cultura incipiente

Os gês eram caçadores, coletores, pescadores e praticavam uma horticultura bem mais incipiente do que a dos guaranis. Sua cerâmica, quando comparada com a guarani, era menos resistente e feita de vasilhas de formato menor.

Os gês são hoje os caingangues

Para os colonizadores, esses indígenas eram os “bugres”

Charruas, minuanos ou pampeanos

No Planalto e no Nordeste do Estado se localizavam os gês, denominados de coroados ou botocudos. Os caingangues são seus atuais descendentes. Os colonizadores

das áreas florestais do Rio Grande do Sul os identificaram, posteriormente, como bugres.

Os gês chegaram ao Estado mais ou menos na mesma época dos guaranis. Migraram, possivelmente, da região Central do Brasil. Eles deixaram sua arquitetura característica – as casas subterrâneas. Eram casas de formato circular ou elíptico escavadas no solo, que possuíam uma cobertura formada de ramos de árvores, palha e barro, sustentada por um esteio central e outros radiais. Exemplares foram encontrados nos municípios de Passa Sete, Sinimbu e Herveiras.

Os grupos gês se mostraram bem mais refratários do que os pampeanos e os guaranis ao contato com os brancos. No século XIX e início do século XX, foram perseguidos pelos governantes e pelas empresas colonizadoras, interessados na usurpação e ocupação de suas terras com imigrantes

e descendentes de imigrantes europeus, notadamente alemães e italianos. Parcela dos caingangues – aquela que não foi exterminada ou incorporada ao estilo de vida dos conquistadores – foi confinada às reservas indígenas ainda hoje existentes no Estado, sobretudo no Alto Uruguai.

Perseguidos pelos governantes

Os ancestrais dos pampeanos estão no Estado desde há pelo menos12 mil anos. Localizavam-se predominantemente nas áreas de campo do Uruguai, da Argentina e do Sul e do Sudoeste do atual Rio Grande do Sul, mas ocupando em menor escala outras áreas do Estado. Eram caçadores, pescadores e coletores. Teriam se instalado na região do Vale do Rio Pardo há pelo menos 1.000 anos a.C. No século XVIII, quando se intensificaram os contatos entre brancos e índios, seu número possivelmentenão ultrapassava a casa de dois mil indivíduos.

Com a chegada dos portugueses e espanhóis, tornaram-se exímios cavaleiros. Fizeram alianças com os colonizadores ibéricos e participaram nas guerras de fronteira aliando-se parte aos portugueses, parte aos espanhóis. Os índios do campo desapareceram do cenário, enquanto povo, durante o início do século XIX. Os que não morreram em combates se empregaram como peões nas estâncias de criação de gado e acabaram se miscigenando com o homem da fronteira, contribuindo na formação do chamado “pelo duro”.

Diferentemente do que se acredita, uma cultura indígena não desapareceu, necessariamente, com o surgimento ou ocupação da mesma região por um outro grupo. Sérgio Klamt explica que “diferentes grupos viviam em diferentes locais ao mesmo tempo”. Assim, é importante frisar que, no atual espaço geográfico do Vale do Rio Pardo, grupos de caçadores-coletores conviveram com os ceramistas-horticultores, cada um em um território específico. O professor defende que, certamente, houve contatos entre os grupos. Esses contatos se davam por meio do comércio, através de enfrentamentos em guerras, da incorporação de indivíduos ou de outras formas de troca. “Todos os indicadores que temos para a região demonstram que houve situações de convivência. Como ela ocorreu, se foi conflituosa ou não, se houve elementos incorporados por outro grupo, tudo isso não sabemos com certeza.”

Os contatos dediferentes grupos

Casa subterrânea

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12 Uma luz para a história do Rio Grande

Em 1494, Portugal e Espanha firmaram a “Capitulação da Partição do Mar Oceano”, mais conhecida por Tratado de Tordesilhas.

De acordo com o Tratado, um meridiano, traçado de polo a polo a 370 léguas a oeste das ilhas do Cabo Verde, dividiria as terras e mares situados no Oceano Atlântico entre as duas coroas ibéricas. Embora essa linha divisória nunca tivesse sido demarcada, a posição mais aceitável é que ela passaria, nos seus dois pontos extremos do atual território brasileiro, nas proximidades de Belém (Pará) e Laguna (Santa Catarina).

Assim, toda as atuais terras sul-rio-grandenses pertenciam, inicialmente, à Espanha. No princípio, as terras do Rio Grande do Sul não atraíram o interesse dos portugueses e dos espanhóis. Aqui, aparentemente, não havia metais preciosos. O meio foi igualmente considerado impróprio para a produção comercial da cana-de-açúcar ou de outro produto tropical que pudesse render grandes lucros. Também não havia uma população organizada com quem os europeus pudessem entabular um comércio altamente lucrativo. Além disso, o litoral carecia de um porto natural para as embarcações.

No início do século XVII, a parte da América que em tese pertencia à Espanha era enorme. Os espanhóis, definitivamente, não tinham condições materiais nem contingentes humanos suficientes para ocupar e guarnecer todo esse território. Com a finalidade de assegurar a posse de vastas regiões, os espanhóis se valeram de nativos.

Para tanto, encarregaram padres da Companhia de Jesus de reunir índios guaranis em reduções, missões ou pueblos. As Missões Jesuíticas, portanto, além de seu caráter evangelizador, cumpriam também uma clara finalidade política. Eles, os jesuítas, vieram de diferentes nacionalidades para trabalhar no Rio Grande do Sul. Mas foi sob a bandeira da Espanha que os padres se estabeleceram na então chamada Província do Tape, nome escolhido em função dos nativos que ali viviam.

Foram duas as fases missioneiras no Rio Grande do Sul. A primeira entre 1626 e 1641, quando foram fundadas 18 reduções, conforme se pode verificar no mapa. A segunda se estendeu de 1682 a 1768, quando foram formados os Sete Povos das Missões.

Espanha domina o ContinenteTratado de Tordesilhas, de 1494, dividia terras e mares entre dois reinos

•• As 18 reduçõesMissões Jesuíticas

REDUÇÃO AnO

São Nicolau 1626 Candelária do Ibicuhi 1627Caaro 1628Assunção 1628Candelária do Piratini 1628Mártires 1629São Carlos 1631Jesus Maria 1632Santa Tereza 1632São Tomé 1632São Miguel 1632Natividade de Nossa Senhora 1633Santa Ana 1633São Joaquim 1633Apóstolos 1633São José 1634São Cristóvão 1634São Cosme e Damião 1634

Fonte: Porto (1954); Jaeger (1939)

LOPO HOMEM REINÉS/1519/PORTUGáLIA MONUMENTA CARTOGRáFICA

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13Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

•• Heroísmo

Depois de terem suas Missões devastadas pelos bandeirantes em Guairá, a oeste do atual Estado do Paraná, e

Itatins, onde hoje é o Mato Grosso do Sul, padres jesuítas se empenharam em estabelecer uma série de reduções no Rio Grande do Sul. O processo começou em 1626, com a fundação de São Nicolau pelo padre Roque Gonzáles de Santa Cruz, e prosseguiu com a criação de outras 17. No Vale do Rio Pardo, foram estabelecidas as mais avançadas reduções a leste que os jesuítas constituíram em solo rio-grandense: Jesus Maria, São Joaquim e São Cristóvão. Possivelmente, a intenção dos evangelizadores foi de ocupar o território, até atingir o litoral.

Reduções na regiãoJesuítas estabeleceram três Missões indígenas onde hoje fica o Vale do Rio Pardo

Foi a última das reduções a ser criada, em19 de fevereiro de 1634. Foi fundada pelo padre Agostinho Contreras após a confluência dos rios Pardinho e Pardo, na margem direita desse último rio. Apesar de ter durado apenas dois anos, ali os padres e os guaranis cristianizados iniciaram o plantio de roças e a criação de gado. A redução também contava com uma linda igreja toda caiada – pintada com água de cal – e a casa dos párocos. Foi a que mais prosperou e chegou a ter 2.300 índios aldeados.

A redução se localizava na margem direita do Rio Pardo, hoje município de Candelária. Foi fundada em 1632 e teve como cura o padre Pedro Mola. Os índios da redução exploravam a erva-mate, cultivavam milho e trigo e iniciaram a criação de vacas, ovelhas e porcos. Foi a mais importante redução da região. Porto registrou que ela tinha “por matrícula, com chácaras, mais de 1.600 índios” e uma capela com cobertura de palha e paredes de taipa. Quatro anos depois foi destruída pelos bandeirantes.

Foi erigida em 1633 pelo padre Juan Suarez. Ficava na Serra do Botucaraí, nas pontas do Rio Pardo, cercada de ervais nativos. Comunicava-se com Jesus Maria por um pique. O aldeamento chegou a congregar mais de mil famílias catequizadas. Além de uma pequena capela, em São Joaquim também foi erguida uma modesta casa para o pároco. Como ali não havia lugar apropriado, não foi feita a criação de gado. No entanto, conforme Aurélio Porto, havia na redução algumas cabeças para o atendimento das necessidades dos habitantes do povoado.

Jesus Maria

São Joaquim

São Cristóvão

A historiografia tradicional brasileira enaltece o heroísmo dos bandeirantes paulistas. A eles é creditada uma série de epopeias e feitos patrióticos. Os bandeirantes são enaltecidos por terem feito avançar o domínio português além do meridiano de Tordesilhas e terem descoberto metais preciosos na região das Gerais. não é por um mero acaso que a sede do governo de São Paulo é o Palácio dos Bandeirantes. Em todo o Estado, é possível encontrar inúmeras obras e monumentos que homenageiam as bandeiras.Foram esses mesmos heróis paulistas que, com sua belicosidade, escravizaram e destruíram impiedosamente populações de cultura diferente, a indígena. Ou seja, mocinhos para uns, bandidos para outros. Depende do lado em que o observador se coloca.

RIO PARDO

S. Ana

S.José

Candelária do Ibicuhi

S.Thomé

Natividade

Caaro

Apóstolos S.Carlos

S.Miguel

Assunção

Candelária do Piratini

Mártires

S. Cosme e S. Damião

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Jesus Maria

S.Cristóvão

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Page 15: Rio Pardo 200 anos

14 Uma luz para a história do Rio Grande

Em 1636 Antônio Raposo Tavares, mais 120 paulistas, incluídos dois padres e cerca de mil índios tupis, atacaram as reduções da margem direita do Rio Pardo. De

acordo com o historiador Aurélio Porto, os bandeirantes vinham fortemente armados de mosquetes e arcabuzes. As reduções foram tomadas e saqueadas e os índios, aprisionados. Os que conseguiram fugir voltaram à sua situação original. No caminho a bandeira foi engrossada por mais algumas centenas de indígenas, adversários dos jesuítas e de sua obra. O assalto às reduções se iniciou pela de Jesus Maria, em 2 de dezembro de 1636. Para defendê-la, foram erguidas paliçadas com valadas e taipa ao seu redor. O pedido de auxílio dos jesuítas às autoridades de Buenos Aires e Assunção foi negado.

Emig. Guarani do Tape e Uruguai

Emig. Guarani do Itatíns

Combate de M’bororé

Manuel Preto/Raposo Tavares

Antônio Pires/ Raposo Tavares

Raposo TavaresAndré Fernandes

Fernando Dias Paes

Manuel Pires

Ascencio Quadros

Francisco Pedroso Xavier

Emig. Guarani desde Guairá

Combate de Caazapaminí

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Ataques dos bandeirantes

Investida bandeiranteReduções à margem direita do Rio Pardo foram atacadas e destruídas em 1636

Sem apoio externo, os padres prepararam a contenção do inimigo, contando para isso com algumas poucas armas de fogo, arcos e flechas e alguns farpões de ferro. Após cinco horas de uma luta desigual e encarniçada, a redução Jesus Maria se rendeu. Muitos foram os mortos e feridos. Centenas de nativos foram capturados e as poucas construções existentes, arrasadas.

Entre 1580 e 1640 houve a União Ibérica. Durante esse período, Portugal e todas as suas colônias estiveram sob a suserania da Espanha. Nessa condição, as possessões portuguesas passaram a ser palco de disputas na luta que os holandeses travavam para se tornarem independentes da Espanha. E o Brasil também foi envolvido. Em 1630, a Companhia das Índias Ocidentais conquistou Pernambuco, importante centro açucareiro do Brasil-Colônia. Dali os holandeses seriam expulsos somente 24 anos depois. Na mesma época, importantes praças portuguesas na áfrica, fornecedoras de escravos, ficaram sob o domínio holandês. Isso causou drástica redução no número de cativos importados, que eram fundamentais nas lavouras de cana-de-açúcar.

Com a falta de força de trabalho nas áreas que não estavam sob o domínio holandês, os indígenas começaram a ser aprisionados e vendidos como escravos. Os paulistas se tornaram especialistas nessa tarefa. Inicialmente bandeirantes, com a conivência de autoridades da colônia espanhola, lançaram-se sobre as reduções de Guairá e Itatins e escravizaram milhares de nativos. Diferentemente da mata, onde viviam dispersos,nas Missões havia maior número de índios, mais bem adestrados para o trabalho e a obediência.

Arrasadas as aldeias em Guairá, sob o comando espiritual do padre Montoya, 12 mil índios em 700 barcas teriam descido as correntezas do Rio Paraná para se estabelecerem em terras da atual província de Misiones, na Argentina. Só uma parcela desses indígenas chegaria a seu destino.

O índiovirou escravo

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Fonte: Adaptado de Atlas historíco del nordeste argentino

Page 16: Rio Pardo 200 anos

15Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

Depois da redução Jesus Maria, foi a vez de São Joaquim, Santa Ana e São Cristóvão conhecerem seu trágico

fim pela bandeira de Raposo Tavares. Recompondo suas forças, os índios catequizados ainda fizeram um novo confronto de quatro horas e meia com os paulistas em São Cristóvão, no Natal de 1636. Mas não lograram êxito. O bandeirismo de apresamento não deu trégua aos padres e aos indígenas cristianizados. Além de Raposo Tavares, outros bandeirantes conhecidos que atuaram na caça ao índio do Rio Grande do Sul foram Fernão Dias Paes Leme – que mais tarde seria imortalizado na epopeia das esmeraldas – André Fernandes e Francisco Bueno.

Uma a uma, as reduções foram destruídas ou abandonadas e os índios escravizados pelas bandeiras. Para evitar sublevações, lideranças indígenas eram assassinadas. Velhos e crianças, para não atrasarem a marcha para São Paulo, eram sacrificados. As mesmas terras ficaram por quase um século sem contato com a civilização. Somente em 1715, Francisco de

Em cada uma das 18 reduções, os jesuítas introduziram lotes de cabeças de gado. A criação de vacas, bois, novilhos, cavalos, mulas e ovelhas foi considerada essencial para a economia e a sobrevivência das reduções. Mas as razias – invasões predatórias – dos bandeirantes convenceram os jesuítas que lhes era impossível se manterem no território da margem esquerda do Rio Uruguai.

Fugindo do ataque dos paulistas, que até por volta de 1660 persistiram fustigando a região em busca dos nativos, os padres transmigraram a população guarani remanescente para a margem direita do Rio Uruguai. No entanto, quando “caçados” pelos bandeirantes, deixaram algumas centenas de cabeças de gado nos campos situados ao sul do Rio Jacuí. Os animais, abandonados à sua própria sorte entre as bacias dos rios Jacuí

e Ibicuí, rumaram em direção ao Sul. Ali se multiplicaram e deram origem ao gado chimarrão, ou seja, gado xucro e selvagem.

O domínio espanhol sobre Portugal teve seu final em 1640. Foi então que subiu ao trono lusitano a dinastia de Bragança. Prioridade: expulsar os holandeses sediados no Nordeste do Brasil. De São Paulo saíram tropas, uma delas inclusive comandada por Antônio Raposo Tavares, para auxiliar os pernambucanos a repelir os holandeses. Ao mesmo tempo, os padres da Companhia de Jesus conseguiram do Papa Urbano VIII a expedição de uma bula que proibia, sob pena de excomunhão:

Cativar os sobreditos índios, vendê-los, comprá-los,

trocá-los, dá-los, apartá-los de suas mulheres e filhos, privá-los de seus bens e fazenda, levá-los e mandá-los para outros lugares, privá-los de qualquer modo da liberdade, retê-los na servidão (...).

Claro que nem aos paulistas e nem aos cariocas agradou a resolução do pontífice.

Queriam continuar

comercializando os índios e

utilizando sua força de trabalho em afazeres domésticos

e lidas na agricultura. Resultado: nas vilas de Santos e São Paulo, os próprios membros das Câmaras Municipais chefiaram a revolta contra os padres jesuítas, expulsando-os dos colégios que então mantinham naquelas vilas.

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Paulistas atacam Missões e levam índios para serem escravos. Idosos e crianças são mortos

Mais destruição

Brito Peixoto, capitão-mor da Vila de Laguna, de Santa Catarina, veio ao Sul à procura de jazidas de pedras e metais preciosos – e também com o objetivo de encontrar locais seguros, que servissem para futuras povoações.

Como ocorreu a introdução do gado

Igrejacondena

Bandeirantes derrotadosA única vitória dos missioneiros sobre os escravizadores ocorreu em 1641, nas margens do Rio M’Bororé, afluente do Rio Uruguai, quando a bandeira chefiada por Jerônimo Pedroso de Barros foi derrotada por um exército de cerca de 4 mil índios.

Reduções foram destruídas e os índios escravizados

Page 17: Rio Pardo 200 anos

16 Uma luz para a história do Rio Grande

Precavendo-se contra a atividade predatória praticada ao gado chimarrão concentrado na região de Maldonado e às margens da Lagoa Mirim, não somente por parte de luso-

brasileiros mas também por homens de Santa Fé e de Buenos Aires, os padres jesuítas tomaram duas providências.

Primeiro, reuniram cerca de uma centena de milhar de cabeças de gado e a direcionaram para um lugar menos acessível na Vacaria dos Pinhais. O local, de boas aguadas e campos pastosos, também passou a ser conhecido pelo nome de Campos de Cima da Serra. As reses ali deixadas se reproduziram com o passar do tempo, formando outra grande reserva.

A segunda providência tomada pelos curas foi planejar o retorno dos guaranis cristianizados às terras que haviam pertencido aos seus antepassados. Isso se concretizou a partir de 1682, com a formação dos Sete Povos das Missões.

Mas não se pode desconsiderar a função geopolítica da retomada das missões no Rio Grande do Sul. Os Sete Povos são uma reação da Espanha à fundação de Sacramento pelos portugueses. Como súditos da coroa espanhola, padres e índios cristianizados atuariam para impedir a expansão lusa na direção do Prata. Várias vezes as autoridades de Buenos Aires iriam requerer o auxílio dos guaranis missioneiros em guerras e obras públicas.

Em 1680 o governador do Rio de Janeiro, D. Manuel Lobo, financiado por comerciantes lusos, chefiou a expedição que fundou, na margem oposta a Buenos Aires, a Colônia do Santíssimo Sacramento. Várias vezes sitiada e tomada pelos castelhanos e depois devolvida pela ação diplomática portuguesa, Sacramento se destacou na cultura do trigo, na exportação de couro e no comércio de contrabando com súditos da Espanha.

Em 1684, iniciou-se a povoação de Santo Antônio dos Anjos de Laguna, no litoral de Santa Catarina. Laguna foi criada para dar suporte e servir de retaguarda a Sacramento. Mas se constituiria, também, em um importante polo de povoamento e ocupação do Rio Grande do Sul. Lagunistas e paulistas, ao percorrerem o litoral gaúcho e do Uruguai rumo a Sacramento, entraram em contato com rebanhos de gado existentes nas Vacarias do Mar. Eles passaram a extrair dali todo o gado que conseguiam. Inicialmente, interessavam-se somente pelo couro, que era exportado por Sacramento. A carne era desprezada. Com a descoberta de jazidas de ouro em Minas Gerais o gado passou a ser tropeado, via Curitiba e Sorocaba, para aquela área. Ao mesmo tempo, colonos espanhóis de Corrientes e Entre Rios que se dedicavam à criação de mulas – em razão da decadência das minas de Potosí – passaram a fornecer esses animais para a área mineradora do Brasil. Eles eram empregados no transporte de gente e de mercadorias.

Os Sete Povosdas Missões

Jesuítas planejam o retorno dos guaranis

De Laguna aSacramento

•• Sete Povos

São Francisco de Borja

1682São Nicolau

1687São Luiz Gonzaga

1687

São Lourenço Mártir

1690São João Batista

1697Santo Ângelo Custódio

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São Miguel Arcanjo

1687

Ruínas da Igreja de São Miguel

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Vários dos padres jesuítas que procuraram reduzir e catequizar índios acabaram sendo martirizados por índígenas que defendiam a sua liberdade e forma de vida. Entre outros, isso aconteceu com os padres Roque Gonzáles de Santa Cruz, Cristóvão de Mendoza e Pedro Romero.

•• Martirizados

Page 18: Rio Pardo 200 anos

17Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

Na América do Sul, as Missões eram unidades de produção autossuficientes. Cada Missão Jesuítica contava, em média, com uma população de 4 a 4,5 mil indivíduos. A propriedade da terra era dividida em duas partes. O abambaé (propriedade do homem) era culti-vado em regime de posse individual por cada família, que dali retirava o básico para seu sustento. O índio podia dispor livremente dos bens obtidos no abambaé. Já o tupambaé (propriedade de Deus) exigia o trabalho coletivo dos indígenas reduzidos. Ali trabalhavam os índios solteiros e, dois dias por semana, também seus pais. Faziam parte do tupambaé as estâncias de criação de gado e os ervais nativos e cultivados. Artistas, pro-fessores, viúvas, órfãos, velhos e inválidos tinham seu sustento proveniente do tupambaé. Dali também saía o tributo que cada indígena, como vassalo do monarca espanhol, tinha que pagar, além da parte destinada à Companhia de Jesus.

A Companhia de Jesus, cujos membros são conhecidos como jesuítas, é uma ordem religiosa católica fundada em 1534 por um grupo de estudantes da Universidade de Paris, liderado por Íñigo López de Loyola – conheci-do posteriormente como Inácio de Loyola. Os primeiros

jesuítas participaram ativamente da Contra Reforma e do esforço de renovação teológica da Igreja Católica, ocorrida para combater a Reforma Protestante iniciada por Martinho Lutero em 1517, na Alemanha, e que se expandiria para outros países da Europa.

Em poucos anos, os jesuítas conquistaram grande prestígio em razão do seu dinamismo e sólido preparo teológico e cultural.

A ordemdos jesuítas

•• Província do ParaguaiNa Província Eclesiástica do Paraguai, os padres jesuítas consolidaram 30 povos durante os séculos XVII e XVIII. Eles faziam parte do sistema colonial espanhol. Sete deles se localizavam em territórios do atual Rio Grande do Sul, oito no Paraguai e quinze na Argentina. Na atualidade, seis dessas antigas Missões integram o Circuito Internacional das Reduções Jesuíticas. Constituem um dos maiores atrativos turísticos do Cone Sul.

Economia nos povoados

Companhia de Jesus foi criada em 1534 por estudantes

MISSõES JESUÍtICO - GUARANIS

Levam o nome de Missões as iniciativas religiosas católi-cas destinadas a propagar os princípios do cristianismo entre povos não cristãos. No início dos tempos modernos, iniciativas de catequização de novos adeptos foram realizadas na própria Europa, África, Oriente e América. As Missões desenvolvidas na América, que buscavam converter os povos silvícolas em mas-sa, deram origem a uma cultura sincrética, onde as tradições indígenas acabaram se perdendo em larga medida. As Missões Jesuíticas variaram no tempo e no espaço. Nem todas tiveram uma organização em povos, como as que se desenvolveram na Província do Paraguai.

O que eram as Missões

Ruínas da Redução de Trinidad, no Paraguai

Page 19: Rio Pardo 200 anos

18 Uma luz para a história do Rio Grande

O surgimento de Rio Pardo está ligado umbilicalmente à assinatura do tratado de Madri. Esse acordo de fronteiras foi subscrito na

cidade espanhola de Madri por D. João V, rei de Portugal, e por D. Fernando VI, rei da Espanha. Foi uma tentativa para pôr fim ao litígio entre Portugal e Espanha sobre os seus vastos limites coloniais, especialmente os situados na América do Sul.

As epopeias dos bandeirantes em busca de metais preciosos, o interesse dos portugueses pelas “drogas do sertão” existentes na Amazônia e pelo contrabando na Colônia do Sacramento haviam favorecido a fundação de pequenos povoados, bastante além da linha imaginária de tordesilhas. O tratado de Madri reconheceu a expansão lusa na América do Sul, mas também a ocupação, na Ásia, das Ilhas Filipinas e Molucas pela Espanha. Prevaleceu nas negociações o princípio de direito internacional do uti possidetis. Seguindo esse princípio, a monarquia, que devido à ocupação feita pelos seus súditos possuía de fato os territórios, deveria possuí-los também de direito.

No que diz respeito às terras localizadas no Sul do Brasil e na região do Prata, o princípio não foi aplicado.

A disputa travada entre as coroas de Portugal e Espanha pela posse do vasto território situado entre Laguna e o Rio da Prata pareceu ter fim em 1750, quando foi assinado o tratado de Madri. No que tange às terras do Sul, esse acordo estabelecia que Portugal entregaria a Colônia do Sacramento à Espanha, recebendo em compensação a região dos Sete Povos. A população, de cerca de 30 mil guaranis missioneiros, deveria deixar seus povoados, roças e estâncias e migrar para o lado direito do Rio Uruguai, em terras argentinas. Como se negaram a abandonar suas casas, lavouras,

igrejas e cemitérios, motivaram a Guerra Guaranítica (1754-1756), ocasião em que os indígenas rebelados combateram as tropas militares reunidas de Portugal e Espanha. Nessa guerra, os índios das Missões foram fragorosamente derrotados.

O tratado de Madri está estreitamente ligado à história de Rio Pardo. A demarcação da nova fronteira traz à então Comandância Militar o capitão-general Gomes Freire de Andrade. É por sua ordem que é criada a Fortaleza Jesus, Maria, José, que aquartelaria o Regimento de Dragões.

São Nicolau

São Luiz

São Lourenço

São Borja

Santo Ângelo

São João

Colônia de Sacramento

Linha de demarçação do Tratado de Madri (1750)

São Miguel

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O Tratado de Madri Acordo entre Portugal e Espanha delimitava fronteiras nas áreas coloniais

O artigo do tratado de Madri que fez os índios dos Sete Povos se rebelarem:Art. XIV - Das povoações ou aldeias que cede Sua Majestade Católica na margem oriental do Uruguai, sairão os missionários com todos os móveis, e efeitos, levando consigo os índios para aldeiar em outras terras de Espanha; e os referidos índios poderão levar também todos os seus bens móveis e semoventes, e as armas, pólvora e munições que tiverem; em cuja forma se entregarão as Povoações à Coroa de Portugal, com todas as suas casas, igrejas e edifícios e a propriedade e posse do terreno [...]

O Tratado de Madri

Decisão gerou uma guerraFonte: Adaptado de Ferreira Filho (1965)

Porto Alegre

Page 20: Rio Pardo 200 anos

19Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

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Antônio Gomes Freire de Andrade, o conde de Bobadela, era um nobre militar e administrador colonial português. Foi governador e capitão-general do Rio de Janeiro entre 1733 e 1763. Posteriormente, passou a administrar também as Minas Gerais e as capitanias de Goiás e Mato Grosso. Em função do tratado de Madri, deslocou-se ao Sul em fevereiro de 1752, já com 67 anos, para chefiar a comissão portuguesa nas delimitações de fronteira. Com ele vieram cartógrafos, astrônomos, engenheiros, matemáticos e outros profissionais. Em 6 de abril, entrou na Vila do Rio Grande.

Para estimular o povoamento da terra, passou a conceder sesmarias (grandes propriedades de terra) no Chuí, em Viamão, em Cima da Serra, no Vale do Rio do Sinos, no Jacuí, no Caí e no Rio das Antas. Gomes Freire ambém foi responsável pela introdução dos “casais de número” vindos das ilhas do arquipélago de Açores e da ilha da Madeira.

Comandou as tropas luso-espanholas que venceram os guaranis dos Sete Povos na Guerra Guaranítica (1754-1756). Regressou ao Rio de Janeiro em 1759, onde faleceu em 1º de janeiro de 1763.

Como seria o Forte Jesus, Maria, José, construído às margens do Rio Jacuí no século XVIII, e que originou a povoação e depois a cidade de Rio Pardo? A arte feita sobre a foto acima, no local onde existiu a fortaleza, dá uma ideia de como poderia ter sido a edificação, erguida inicialmente com madeira, palha e troncos de árvores.

O local onde está sediada a cidade de Rio Pardo integrava a antiga estância do Povo

de São Luís. Em 1751, antes de vir ao Rio Grande, Gomes Freire de Andrade determinou que no caminho para as Missões fossem criados dois depósitos de munição e de víveres para apoio das tropas portuguesas. Neles seriam estocados fardamentos e outras peças de vestuário militar, apetrechos bélicos, material de montaria, couros, instrumentos agrícolas, ferramentas, material de construção, sabão, fumo, bebidas, remédios e mantimentos. O furriel de dragões, Francisco Manoel de távora, que à frente de um grupo de paulistas fora mandado para explorar e reconhecer a região, indicou como locais estratégicos Rio Pardo e Santo Amaro, ambos na margem esquerda do Rio Jacuí.

Dada a sua excelente localização, na confluência dos rios Pardo com o Jacuí, Gomes Freire ordenou ao engenheiro João Gomes de Mello que ali fosse erigido o forte batizado de Jesus, Maria, José. A construção

do forte, com o aquartelamento dos Dragões, deu origem à fundação essencialmente militar de Rio Pardo. O forte e, por consequência, o povoado que se formou em seu entorno estavam em posição estratégica. O local elevado permitia ampla visão dos arredores. Ao mesmo tempo, os rios formavam barreiras naturais que, em caso de guerra, dificultariam a sua tomada. Era, então, o ponto mais extremado dos portugueses em direção às Missões. Quando constituído, o forte visava, também, a impedir a passagem dos índios missioneiros para atacar os campos de Viamão, que vinham sendo ocupados por luso-brasileiros. Na madrugada de 23 de fevereiro de 1754, a fortaleza foi atacada por grande número de missioneiros. O ataque foi repelido depois de horas de combate. A confiar nos dados de Aurélio Porto, do lado dos índios restaram 19 mortos e um grande saldo de feridos. Os portugueses perderam só um homem e tiveram quatro feridos, dentre eles o comandante da trincheira, Francisco Pinto Bandeira, com uma flechada em um dos braços.

No começo, apoio a tropas

Ponto estratégico, na confluência de dois rios, foi o escolhido

Gomes Freirede Andrade

•• Os DragõesDepois do ataque missioneiro, Gomes Freire transferiu de Rio Grande para o Forte Jesus, Maria, José, em março de 1754, um contingente do Regimento de Dragões. Em 29 de abril do mesmo ano, a fortaleza foi novamente atacada. Cerca de 400 guaranis missioneiros, liderados por Sepé Tiaraju e munidos com quatro peças de artilharia, foram repelidos e perseguidos após quase duas horas de combate. 53 índios, incluindo Sepé, foram aprisionados e levados ao forte. Dias depois ele conseguiria fugir quando, escoltado por soldados, foi localizar cavalos que os missioneiros haviam subtraído aos portugueses. Os demais reféns foram encaminhados para Rio Grande, mas apenas 15 chegaram vivos. Os sobreviventes teriam sido postos em liberdade por Gomes Freire. Fustigada em 1754 pelos índios missioneiros e em 1762, 1773 e 1777 pelos castelhanos, Rio Pardo resistiu, tornando-se barreira intransponível para seus adversários. Daí surgiu a denominação de “Tranqueira Invicta”. Por décadas, portanto, foi a tranqueira de Rio Pardo a fronteira extremo-oeste das posições lusitanas no Rio Grande de São Pedro.

Page 21: Rio Pardo 200 anos

20 Uma luz para a história do Rio Grande

DISPuTAS PElO TERRITóRIO

Aretirada dos povos indígenas e dos jesuítas de seus povoados não seria tarefa simples para as potências ibéricas. Quando da efetivação do tratado de Madri, cerca de 30 mil índios cristianizados viviam nos Sete Povos. Pelo

acordo, eles deveriam deixar as Missões e se estabelecer, da forma que pudessem, do outro lado do Rio Uruguai, em terras do Império espanhol. Acontece que a margem direita do rio já estava ocupada por indígenas missioneiros. A mudança pretendida, certamente, levaria dezenas de milhares deles à fome e à miséria. Assim que fossem retirados os missioneiros dos Sete Povos, Portugal pretendia assentar ali os açorianos, que já chegavam às centenas. Portugal queria que os índios saíssem da área porque temia uma rebelião. Como eram súditos espanhóis, várias vezes eles haviam sido usados como guerreiros nos confrontos contra portugueses pela posse de Sacramento.

Para a colocação dos marcos de fronteira estabelecidos pelo tratado, foram instituídas duas comissões militares demarcatórias. A Comissão do Sul era chefiada pelo Marquês de Valdelírios, nomeado pela Espanha, e por Gomes Freire de Andrade, representando Portugal. O primeiro marco de fronteira foi chantado somente em 9 de outubro de 1752. Em 27 de fevereiro de 1753, quando a demarcação estava às alturas de Santa tecla (Bagé), foi impedida de continuar por um grupo de guaranis liderados por Sepé tiaraju. Depois disso as nações ibéricas, embora decididas a evacuar – se necessário pela força militar – a região das Missões, aguardariam ainda por dois longos anos até efetivar o assalto final aos Sete Povos.

Índios resistem à expulsão promovida por portugueses e espanhóis; Guerra Guaranítica; distribuição de sesmarias reforça o poder dos militares; os silvícolas na literatura e no cinema.

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Guerra Guaranítica

Local onde ocorreu a Batalha de Caiboaté, quando tropas portuguesas e espanholas mataram mais de mil indígenas e fizeram 154 prisioneiros

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21Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

Devido à resistência dos índios, que se negaram a abandonar seus ervais, plantações, estâncias de criação de gado, casas, templos e cemitérios,

espanhóis e portugueses mandaram contra eles um poderoso exército. A guerra foi desigual. De um lado havia as tropas luso-espanholas, bem armadas e equipadas e contando com mais de 3.700 combatentes. De outro, os silvícolas lutando com arco e flecha, lanças, boleadeiras, algumas velhas espingardas e improvisados canhões feitos de taquara e revestidos de couro. Além disso, os missioneiros estavam bastante divididos e desarticulados.

Havia padres que, silenciosamente, pregavam a resistência; a maioria, no entanto, trabalhou no sentido de que os guaranis se sujeitassem aos desígnios da Coroa. Caciques acusaram os sacerdotes de traidores, inclusive de terem vendido os Sete Povos, e outros concordaram com a mudança. Essas diferenças dividiram os índios missioneiros. Como resultado, houve confusão e discórdia nas Missões. Finalmente, em 16 de janeiro de 1756, o exército luso-espanhol se reuniu nas

cabeceiras do Rio Negro, de onde marchou em linha dupla para as Missões. Em 7 de fevereiro, numa das primeiras escaramuças, tombou o cacique Sepé. Aurélio Porto narra que, em um rápido combate na entrada de um matagal, após o cavalo de Sepé tropeçar, um soldado português armado de lança o derrubou. Ao tentar se reerguer, foi alvejado pelo governador de Montevidéu, general José Joaquim Viana, que lhe desferiu o tiro fatal.

A célebre Batalha de Caiboaté ocorreu três dias depois, em 10 de fevereiro de 1756. Comandados por Nicolau Neenguiru, corregedor do Povo de Conceição, os missioneiros enfrentaram as forças de Portugal e Espanha em campo aberto, na coxilha de Caiboaté (São Gabriel). Conforme Graell, em apenas uma hora e quinze minutos os índios foram fragorosamente derrotados. Perderam 1.200 combatentes, incluindo 154 prisioneiros. Os espanhóis tiveram três mortos e 10 feridos e os portugueses, um morto e 30 feridos. A derrota de Caiboaté acabou com a resistência guarani. Daí por diante, portugueses e espanhóis não tiveram dificuldades para invadir as Missões.

O massacre deCaiboaté

Espanhóis e portugueses usaram exército poderoso e dizimaram os índios

Homenagem feita a Sepé no local da sua morte, no município de São Gabriel

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Depois de tomadas as Missões, o tratado de Madri não se concretizou. Os padres e os silvícolas puderam retornar ao que restava das Missões: casas queimadas, lavouras destruídas, gado espalhado nos campos e matos.

Os padres da Companhia de Jesus que haviam sido fiéis às coroas ibéricas tiveram sorte semelhante aos índios. Pombal os considerou uma espécie de bode expiatório para todos os males da Colônia e um poder paralelo. Em nome da liberdade dos indígenas, atacou o poder temporal da Companhia de Jesus nas aldeias. Em 1759, expulsou-os da América portuguesa. Os padres jesuítas tiveram a mesma sorte nos domínios espanhóis: foram expulsos de lá por um decreto real de 1767. Em maio de 1768 estava concluída a expulsão de todas as Missões. Os índios assistiram com relativa resignação à sua saída.

Jesuítassão expulsos

Guaranis em Rio Pardo

A Guerra Guaranítica não acabou com os Sete Povos. Porém, como escreve Moacyr Flores, destruiu-os moralmente, abalando a confiança dos índios nos padres jesuítas e nas autoridades espanholas, de quem eram súditos. A derrota de Caiboaté abriu caminho para a tomada dos Sete Povos. Em 17 de maio do mesmo ano, São Miguel foi invadida. Os demais povoados caíram um após o outro, quase sem resistência, como um baralho de cartas.Conquistadas as Missões, Gomes Freire lá permaneceu com seu exército por 10 meses. Retornou, então, com seus soldados aos quartéis de Rio Pardo. Com ele vieram aproximadamente 700 famílias de guaranis, para constituírem a Aldeia de São Nicolau.

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22 Uma luz para a história do Rio Grande

Uma parcela de historiadores analisa o trabalho missionário da Companhia de Jesus na América como sendo uma atividade civilizadora: faz dos padres santos salvadores de almas. Outra

parcela de historiadores enaltece o igualitarismo, o trabalho e a vida coletiva existentes nos Sete Povos. Sem pretender fazer julgamento de espécie alguma, não se pode omitir o fato de que, mesmo nas Missões, os índios passaram por um profundo e doloroso processo de mudança de comportamento. tiveram que assimilar as culturas cristã e espanhola.

O trecho escrito pelo padre José Cardiel, então cura da redução de Japeju e outras, possibilita fazer algumas reflexões nesse sentido:

O índio, entregue a si mesmo e ao seu gênio, não quer mais do que uma choça ou cabana coberta de palha de quatro

ou cinco varas (jardas) em quadro, junto a um pequeno terreno de roça para poucos meses e com isso está mais contente que os reis nos seus palácios [...] Seu coração não se levanta a mais, não tem capacidade para aspirações maiores, nem pretende, nem o deseja. Tirá-lo daí é tirá-lo da sua espera. Porém, como é necessário retirá-los dessas condições mesquinhas, para que vivam como bons cristãos e cidadãos úteis ao Estado, aos padres toca o grave encargo de ensinar-lhes tudo, serem mestres de tudo e induzi-los a agir contra seu gênio.

Os padres jesuítase a cultura indígena

Nas Missões, índios tiveram que assimilar culturas cristã e espanhola

Dada a reação dos índios missioneiros, o tratado de Madri não chegou a ser consumado, sendo anulado em 1761 pelo tratado de El Pardo.

Apesar de todos os percalços provocados pela Guerra Guaranítica, os Sete Povos continuaram a existir. Entraram na mais plena decadência somente a partir de 1768, quando os padres da Companhia de Jesus foram expulsos não somente dos Sete Povos, mas de todos os territórios espanhóis da América. O pretexto para a expulsão dos curas jesuítas foi o de terem sublevado os guaranis catequizados contra o tratado de Madri.

Sob administração leiga, e totalmente despreparada, é que os Sete Povos declinaram.

Declínio dos Sete Povos

José tiaryú ficou conhecido pela alcunha de Sepé, que é designativo de chefe, condutor de homens ou caudilho. Era índio missioneiro, provavelmente já cristão de terceira geração. Foi Alferes Real e Corregedor do Povo de São Miguel. Opôs-se com tenacidade à entrega da região dos Sete Povos e liderou a revolta dos missioneiros contra o que determinava o tratado de Madri. Gozava de largo prestígio entre os índios e indiscutíveis qualidades de mando. Suas ações militares, entretanto, não foram das mais bem-sucedidas. Morreu no dia 7 de fevereiro de 1756, às margens da Sanga da Bica, em São Gabriel, nas proximidades onde se encontra a rodoviária da cidade. Seu corpo fora jogado no mato pelos soldados. À noite, os companheiros deram sepultura ao seu cadáver.

Sepé tiaraju se tornou um mito. Seus feitos lendários foram imortalizados por Basílio da Gama, João Simões Lopes Neto, Manoelito de Ornelas, Mansueto Bernardi e Moisés Velhinho. Consta que teria sido o historiador Walter Spalding que colocou na sua boca a frase: “Esta terra tem dono”, que provavelmente ele nunca dissera.

A lenda que se formou em torno do seu nome o consagrou popularmente como um santo. O povo do Sul do Brasil, por sua própria conta, canonizou-o como herói guarani. Sepé tiaraju se faz mestre para as lutas populares, especialmente dos que lutam pela terra.

Sepé Tiaraju

Além da música, os guaranis cristianizados também demonstraram talento para a escultura. O estilo foi o barroco. Conforme Armindo Trevisan, a arte missioneira não visava à fruição estética; ela estava a serviço da catequese. Visava a prover os templos de imagens e iniciar os índios em atividades manuais. Como poucos eram letrados, a imagem ficava acessível a todos, tornando-se uma Bíblia para os pobres. Os indígenas que se destacavam nas artes gozavam de privilégios.

•• Arte missioneiraDIVULGAçãO/GS

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Escultura de Sepé Tiaraju existente no Museu João Pedro Nunes, em São Gabriel

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23Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

As tropas portuguesas lideradas por Gomes Freire de Andrade, ao retornarem da guerra empreendida contra os Sete Povos das Missões, trouxeram

consigo um séquito de famílias guaranis. Esses índios totalizavam cerca de 700 famílias ou em torno de três mil almas. Foram arranchados, no ano de 1757, nas proximidades do Forte de Rio Pardo, formando o núcleo inicial da Aldeia de São Nicolau.

A aldeia se localizava a quatro quilômetros ao nordeste da atual cidade. Voluntariamente, novas levas de famílias guaranis teriam, em seguida, se somado ao contingente inicial. Pouco tempo depois, por determinação da administração portuguesa, um pequeno grupo desses índios foi deslocado às proximidades da atual cidade de Cachoeira do Sul, onde foi fundada uma outra aldeia com o nome de São Nicolau. A maior parte dos indígenas foi levada para os Campos de Viamão, onde deu origem, em 1763, à Aldeia de Nossa Senhora dos Anjos (hoje Gravataí).

Os nativos das aldeias eram utilizados como mão de obra barata nas estâncias de criação de gado, em construções e nas

Cristo com feições indígenas, ainda hoje existente na capela da aldeia

São NicolauGomes Freire traz guaranis que sobreviveram à guerra para formar a aldeia

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Capela da Aldeia São Nicolau guarda resquícios do primeiro templo e também um sino missioneiro

O professor Pedro Ribeiro, analisando os livros de batismo da Freguesia de Rio Pardo, constatou que de março a junho de 1781, de oito batizados de filhos de índias seis eram de pai incógnito. Já entre dezembro do mesmo ano e abril de 1782, de 12 batizados de filhos de indígenas nove eram de pai incógnito. Nos livros de casamento, entre 1759 e 1832, foram encontrados 18 casamentos de índia com branco; 10 de índia com negro; quatro de índio com negra e quatro de índio com branca.

Os acasalamentos de índias com escravos e de escravas com índios não eram incomuns. Já o casamento de um branco com negra ou indígena era considerado vergonhoso, pois se dava com um cônjuge tido como inferior. Mas os brancos, em uniões extramatrimoniais, tiveram muitos filhos com índias e com escravas. Poucos reconheciam a paternidade dos filhos; a maioria silenciava. Mas era normal estancieiros, comerciantes e militares terem concubinas índias e negras.

Procurando incentivar a união familiar de brancos com indígenas, o governador da capitania, José Marcelino de Figueiredo, fez em 1773 um edital para dar preferência a eles na aquisição de terras.

Índias e negrascomo amantes

Em 1983, o professor Pedro Mentz Ribeiro, então coordenador do Cepa das Faculdades Integradas de Santa Cruz do Sul, orientou escavações no local onde se encontrava a aldeia. Ali foi encontrada uma série de vestígios materiais, que estão sob a custódia da unisc.

•• Escavações

lavouras. No ano de 1780, eram 438 os índios existentes na Aldeia de São Nicolau de Rio Pardo. Em 1854, esse número cairia para 254.

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24 Uma luz para a história do Rio Grande

Em fevereiro de 1761 Espanha e Portugal concordaram, através do tratado de El Pardo, em anular as prerrogativas do tratado de Madri. Com isso, os Sete Povos continuaram pertencendo ao império espanhol e Sacramento, aos domínios lusos.

No transcurso de uma década, muita coisa havia mudado. Ambos os lados ficaram insatisfeitos com o pacto anteriormente firmado. De um lado, os Sete Povos haviam despertado a cobiça dos espanhóis. Joaquim Viana, autor do tiro que matou Sepé, ao entrar no povoado de São Miguel em 1756, teria se maravilhado com as belezas da localidade e afirmado: “E este é um dos povos que nos mandam entregar aos portugueses? Deve estar louco o pessoal de Madri, para se desfazer de um povoamento que não encontra nenhum rival em Paraguai”.

De outro lado, havia o interesse de comerciantes portugueses, que não queriam entregar Sacramento aos espanhóis e perder os extraordinários lucros proporcionados pelo comércio ilegal. Ao mesmo tempo, a situação diplomática na Europa mudara bastante. Na Guerra dos Sete Anos, Portugal e Espanha estavam em polos opostos. Na América do Sul, portugueses e espanhóis novamente entraram em conflito por causa de suas possessões coloniais. Disso se aproveitou D. Pedro Ceballos para tomar a Colônia do Sacramento, que estava em poder dos portugueses, e para recuperar as terras que, por direito, pertenciam à Espanha.

Conquista espanholaAnulação do Tratado de Madri restituiu a fronteira ao traçado que tinha antes

O tratado de El Pardo

Grande parte da historiografia brasileira distorce o real significado da conquista espanhola, ocorrida entre 1763 e 1777. Imputa-se aos

castelhanos a pecha de invasores. Mas, na realidade, a anulação do tratado de Madri restabeleceu a fronteira ao que era antes de 1750.

Em outubro de 1762, enquanto ocorria na Europa a Guerra dos Sete Anos, que colocaria em campos contrários Portugal e Espanha, castelhanos atacaram e tomaram Sacramento contando com o auxílio de forças missioneiras. Em abril do ano seguinte, liderados pelo general e governador de Buenos Aires, Dom Pedro de Cevallos, apoderaram-se do forte de Santa tereza, em Angustura de Castilhos (Uruguai); do Forte de

São Miguel (Uruguai) e das vilas do Rio Grande e de São José do Norte. Às pressas, a administração da Capitania do Rio Grande do Sul, sediada em Rio Grande, se deslocou para Viamão, que em 1773 foi elevada à vila. Objetivando manter suas posições, os espanhóis começaram a construir o forte de Santa tecla, nas proximidades de Bagé.

Com a tomada de Rio Grande e São José do Norte pelos castelhanos, quase toda a população que vivia naquelas vilas e em seus arredores fugiu. A maioria foi se instalar nos Campos de Viamão, mas uma parcela considerável se estabeleceu na bacia do Jacuí, próximo de Santo Amaro e Rio Pardo.

Durante os 13 anos de ocupação espanhola, o Rio Grande português se limitou a uma estreita faixa litorânea e ao Vale do Rio Jacuí.

Pena de enforcamento tomaz Luís Osório, que em 1754

fora designado por Gomes Freire para comandar o Regimento de Dragões estabelecido no forte de Rio Pardo, conheceu seus dias de infortúnio. Em 1762, ele havia recebido do mesmo Gomes Freire a missão de construir um forte em Angustura de Castilhos, para barrar uma eventual investida castelhana a Rio Grande. Mal as primeiras pedras da fortaleza haviam sido sentadas, ela foi sitiada por Cevallos. Em 19 de abril de 1763, Osório optou pela rendição. Assim, sem dar um tiro sequer, Cevallos fez 156 prisioneiros,

incluindo o comandante da tropa. Um ano depois, iniciava-se o processo

contra o coronel tomaz Osório e o governador Elói Madureira, responsável pela Vila de Rio Grande. Reunidas em Rio Pardo durante cinco meses, autoridades portuguesas colheram depoimentos de soldados, oficiais, civis e escravos sobre os fatos que culminaram na rendição de Santa tereza e da Vila de Rio Grande. Julgado pela corte de Lisboa, Osório foi enforcado na capital portuguesa em 1768. O governador Madureira morreu durante os depoimentos.

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Colônia de Sacramento, hoje em território uruguaio, servia aos interesses portugueses

MUSEU DEL AZULEJO, COLôNIA DE SACRAMENtO

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25Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

Mais terras

Após as guerras de reconquista efetuadas pelos súditos da coroa espanhola, em 1777 foi celebrado o tratado de Santo Ildefonso. Por esse

acordo, Portugal reconhecia a soberania espanhola sobre a Colônia do Sacramento, os Sete Povos, Santa tecla e os territórios

meridionais. A Espanha, por seu turno, abandonou a ilha de Santa Catarina. O pacto criou ainda, na divisa dos impérios, os Campos Neutrais, entre as lagunas da Mangueira, Mirim e a costa do Atlântico. Eram para ser áreas desmilitarizadas e despovoadas, localizadas entre os territórios luso e castelhano.

São Nicolau

São Luiz

São Lourenço

São Borja

Santo Ângelo

São João

Colônia de Sacramento

São Miguel

Porto Alegre

Santo Ildefonso Tratado mantém os Sete Povos sob domínio da coroa espanhola

O tratado de Santo Ildefonso garantiu aos portugueses não somente a posse de áreas já ocupadas – Rio Grande, os campos de Viamão e Rio Pardo –, mas também de territórios situados a norte e a oeste desses locais. Sesmarias foram então distribuídas, principalmente a combatentes lusos. Os novos sesmeiros passaram a manter ligações com os índios missioneiros. Adquiriam seu gado, utilizavam seu trabalho e tomavam como esposas ou concubinas as índias missioneiras.

•• Portugal reage

Em 1770, havia 175 Dragões em Rio Pardo e 185 destacados em São José do Norte. Depois de 13 anos de dominação espanhola, Portugal finalmente reagiu. Após a organização de um poderoso exército, forças lusas retomaram Rio Grande em 1776. Em seguida, sob o comando de Rafael Pinto Bandeira, o Forte de Santa Tecla foi arrasado e parte da Campanha foi tomada. Em contrapartida, os espanhóis se apoderaram da ilha de Santa Catarina. A reconquista contou com a decisiva participação dos soldados sediados em Rio Pardo.

Durante a dominação espanhola do Rio Grande, Rio Pardo sofreu vários assédios, mas todos eles foram rechaçados. Um desses episódios é cômico.

Consta que no final de 1773, o governador de Buenos Aires, general D. Vertiz y Salcedo, à frente de uma força regular vinda das campinas do sul, defrontou-se com batalhões de Dragões e estacionou às alturas do Arroio Pequeri. A partir daí o comandante militar espanhol ameaçou cair sobre a Fortaleza Jesus, Maria, José e exigiu sua rendição. O governador José Marcelino de Figueiredo, que se encontrava no Forte, mandou comunicar a Salcedo que estava aguardando a chegada do

governador (que era ele mesmo), pois somente ele poderia tratar da rendição. Horas depois, mandou fazer exercícios de pólvora seca na Fortaleza, com um simples morteiro e duas peças de ferro de calibre 2. Procedeu, igualmente, ao embandeiramento do Forte, fez rufar tambores e tocar os clarins.

O ambiente ficou com ares de celebração de uma grande festa. Simulava, assim, a chegada do governador (o próprio Figueiredo) com um grande contingente de reforços. Acampado a cerca de uma légua, o inimigo ficou atônito com a barulheira. Imaginando que a tranqueira havia recebido um reforço de monta, voltou às pressas pelo caminho por onde havia chegado.

Um blefe portuguêsFonte: Adaptado de Ferreira Filho (1965)

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26 Uma luz para a história do Rio Grande

A vida dos guaranis dos Sete Povos se modificou muito quando administradores civis espanhóis passaram a gerenciar os povoados. Paralelo ao aviltamento da força de trabalho, ocorreu o desregramento moral da população reduzida. Assim surgiu a prostituição, o consumo de bebidas aumentou e os furtos se multiplicaram. Desmanchada a antiga organização coletiva dos missioneiros, já não havia mais telheiros, pedreiros nem carpinteiros para consertar as casas e os prédios, que começavam a ruir. As oficinas e as escolas cedo desapareceram. Explorados, padecendo tormentos e fome, os índios das Missões abandonavam seu povoado e procuravam por trabalhos precários e mal remunerados nas estâncias de criação de gado que começavam a aparecer.

Em 1801, ano em que José Borges do Canto, Gabriel Ribeiro de Almeida e Manoel dos Santos Pedroso, comandando um grupo de quatro dezenas de guerrilheiros, conquistaram as Missões, restavam cerca de 14 mil índios nos Sete Povos. Explorados pelos espanhóis e seduzidos pela ideia de que teriam melhor sorte com os portugueses, os indígenas pouco se opuseram dessa vez. Mas os novos conquistadores não demonstraram ser menos gananciosos e corruptos do que os espanhóis. Em pouco tempo, dividiram entre si o que restava das estâncias e do gado missioneiros. Os conflitos entre castelhanos e brasileiros, que culminaram na criação do Uruguai em 1828, também arrastaram à guerra muitos indígenas. Em 1822, ano da Independência do Brasil, não restavam nas Missões mais do que 2.350 guaranis. Em 1830, praticamente não havia mais índios nos Sete Povos.

A Rio Pardo coube, como escreveu Dante de Laytano, a função sociológica de consolidar as

conquistas e os domínios portugueses no Sul do Brasil. Dali saíram, fronteira afora, Dragões e estancieiros armados dispostos a se apropriarem do território pertencente aos índios e aos espanhóis, não exatamente para o rei de Portugal, mas principalmente para si mesmos. A conquista da fronteira de Rio Pardo não obedeceu a uma política planejada e definida. Ela foi decorrente de conquista militar, beneficiando, por isso mesmo, os homens da guerra. Ou seja, para a posse e concessão de sesmarias, prevaleceu a força social dos militares e das pessoas vinculadas à administração colonial.

A distribuição das sesmariasEstancieiros armados conquistaram os territórios dos índios

•• Sesmarias e datasÀ época do Brasil Colônia, as terras eram concedidas por meio de sesmarias e de datas. A sesmaria correspondia, em média, a 3 x 1 légua. Assim, uma sesmaria equivaleria a 13.068 hectares. As datas correspondiam a ¼ de légua quadrada, o que representava 272 hectares. As primeiras sesmarias no Rio Grande do Sul foram concedidas já em 1732, nos Campos de Viamão. Na Bacia do Jacuí, as terras começaram a ser povoadas a partir do Tratado de Madri. Com a dominação espanhola, a ocupação da região se intensificou e foi garantida militarmente por Rio Pardo e Santo Amaro.

•• Borges do Canto

A diásporados guaranis

BANCO DE IMAGENS/GS

José Borges do Canto era um soldado desertor do Regimento de Dragões de Rio Pardo e um contrabandista. Manuel dos Santos Pedroso era um mameluco estancieiro e Gabriel Ribeiro de Almeida, um militar. Embora tenham sido rio-grandenses que, com armas em punho, anexaram a área dos Sete Povos, eles tiveram a complacência e o incentivo do comando do Regimento dos Dragões. uma vez

conquistado o território, para lá se deslocaram tropas para manter a região sob o domínio português. Inicialmente foram os estancieiros luso-brasileiros mas, depois, também os colonos de origem italiana e alemã que aproveitaram os materiais dos prédios missioneiros para a construção de suas casas. As poucas ruínas ainda existentes testemunham a devastação da experiência das Missões.

Os confrontos travados com os castelhanos entre 1762 e 1776 reforçaram o poder dos militares e dos estancieiros já estabelecidos no Rio Grande do Sul, indispensáveis para a reconquista do território. Durante e após o conflito com os castelhanos, inúmeras terras foram distribuídas aos que tinham prestado serviços à causa portuguesa. No ano de 1808, o contratador Manoel Antônio de Magalhães se mostrou indignado com o fato de haver na capitania moradores com três ou mais sesmarias. De acordo com ele, “um homem que tinha a proteção tirava uma sesmaria em seu nome, outra em nome do filho mais velho, outras em nome da filha e filho que ainda estavam no berço e, desse modo, há casos de quatro e mais sesmarias” .

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27Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

Conforme Dante de Laytano, um personagem que bem ilustra a figura do soldado-estancieiro é

Rafael Pinto Bandeira, Comandante do Continente do Rio Grande. Homem laureado pelos seus feitos militares, contrabandista de gado e de couros e profundo conhecedor da região e da gente, Pinto Bandeira fez valer seu poder e influência para obter concessões de terras. Dentre suas propriedades encontram-se a Estância das Pombas, em Rio Pardo, com duas léguas quadradas, sobrados e muitas benfeitorias, e a Fazenda do Pavão, no Camaquã, em Passo da Armada, com 12 léguas quadradas. Outra fazenda de duas léguas por uma, no Capivari, em Rio Pardo, e muitos outros campos, casas, chácaras e capões, além de 23 mil reses, também faziam parte de suas posses.

Sede da Fazenda

das Pombas, em Rio Pardo, que

pertenceu a Pinto

Bandeira

O legendário Pinto Bandeira

Soldados sediados em Rio Pardo também auxiliaram nas guerras que culminaram com a conquista e posterior perda da Cisplatina (atual Uruguai).

Em 1808, com os exércitos de Napoleão Bonaparte se apoderando de Portugal, houve a transmigração da família real e da corte portuguesa para o Brasil. A partir de então se intensificou o desejo de estender o império luso até o estuário do Prata.

No Prata, a situação se complicaria a partir de 1810, quando o cabildo de Buenos Aires se declarou independente da Espanha e procurou organizar as Províncias Unidas do Prata – que reuniria os atuais Peru, Paraguai, Uruguai e Argentina. Além disso, o caudilho Artigas prometia colocar em prática um projeto revolucionário com redistribuição de terras na Banda Oriental. Entre 1811 e 1812, um “Exército Pacificador” de 3 mil soldados paulistas, catarinenses e gaúchos invadiu o Uruguai e tomou Montevidéu. Nessa oportunidade, foi anexada grande parte do distrito de Entre Rios, base em que atuava Artigas. O território anexado corresponde aos atuais municípios de Uruguaiana, Santana do Livramento e parte dos municípios de Rosário do Sul e Dom Pedrito.

Em 1816, 4.800 veteranos soldados de guerra vindos de Portugal e comandados pelo general Lécor voltaram a intervir no Uruguai. Artigas e seus correligionários foram derrotados e a Banda Oriental foi anexada ao Brasil com o nome de Província da Cisplatina. Quinze anos após a conquista das Missões, o sonho português de anexação de terras em direção ao rio da Prata finalmente se realiza.

Contra a dominação

A partir de 1825, Juan Antonio Lavalleja inicia o movimento de resistência contra a dominação que, a essas alturas, não é mais portuguesa, mas brasileira. Os revoltosos ganham o auxílio dos argentinos. Derrotado nas batalhas de Sarandi e Passo do Rosário, o Brasil aceita a interferência da diplomacia inglesa e consente na criação de um novo país. Surge assim, em 1828, o Uruguai.

Uruguai já foi do Brasil

Típico soldado-estancieiro, usou seu poder para acumular bens

Pinto Bandeira

Carta pede terra para afugentar os índiosIlustríssimos e excelentíssimos senhores

Diz Ignacia Zeferina e Souza, filha do Alferes Jozé Caetano de Souza, morador na fronteira do Rio Pardo, que existindo muitos terrenos devolutos no sertão entre aquele distrito e o da Vacaria, sertão ocupado pelos índios brabos, se tem alguns vassalos animados a entrar e a querer povoar parte do mesmo sertão, assim afugentar os ditos índios e tornarem úteis os terrenos, e porque a suplicante com assistência de seus pais, pretende também povoar e formalizar uma estância no dito sertão por gozar deste benefício do referido seu pai roga a Vossas Excelências se digne conceder à suplicante por sesmaria a extensão de uma légua de frente com três de fundos compreendendo campos faxinais e matos no referido sertão e no lugar aonde findar a sesmaria que tem referido o Tenente Coronel João Maria de Brito.

Senhores conceder a graça imploradaE requer mercê.

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28 Uma luz para a história do Rio Grande

O escritor gaúcho Apolinário Porto Alegre (Rio Grande,1844-1904) inclui o índígena em seu principal romance, O Vaqueano (1872). No texto, o autor acentua o lado selvagem da tribo dos guaicanãs – “filhos da selva”, como ele os chama –, que se sobrepuja a qualidades ressaltadas em outros personagens da trama, como a lealdade e a amizade. O desfecho de sua narrativa coincide com o extermínio da tribo. Inspirado em O gaúcho, de José de Alencar, O vaqueano conta uma história de vingança. O protagonista é José de Avençal, que conduz parte das tropas do exército farroupilha até Santa Catarina.

Na literatura e nas artes, o indianismo significou a idealização do indígena, retratado como herói nacional. Essa visão se baseou no mito do “bom

selvagem”, apresentado pelo filósofo francês Jean-Jacques Rousseau no livro Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens (1755). Rousseau afirma que o homem nasce bom e sem vícios, mas é pervertido pela sociedade civilizada. Sua teoria fundamentou, décadas mais tarde, o indianismo romântico. No século XIX, o índio se torna o tema central dos escritores brasileiros. Representa a pureza e a coragem do homem não corrompido pela sociedade. Os romances Iracema (1865), O Guarani (1857) e Ubirajara (1874), de José de Alencar, marcam o período. Na mesma linha vai o poema I-Juca Pirama (1857), de Gonçalves Dias, que relata a morte do último remanescente da tribo tupi,

devorado por membros da tribo dos timbiras. No Rio Grande do Sul, a mesma valorização

se reflete na produção literária. O poeta romântico Francisco Lobo da Costa (Pelotas, 1853-1888), no seu poema épico (inacabado) Os farrapos ou A Revolução de 1835 no Rio Grande do Sul, vincula a figura do gaúcho à do índio, na medida em que ambos são valentes, nobres e dominam com precisão a sua montaria. O texto destaca a participação dos indígenas na Revolução Farroupilha, mostrando-os como heróis destemidos.

Bernardo taveira Jr. (Rio Grande, 1838-92), no poema Rio Grande do Sul, enfatiza a origem do povo rio-grandense como descendente da raça tupi: “Descendes ó bela / Da raça tupi / Da raça dos fortes / Dos livres – aqui”. E ao definir o caráter do gaúcho, logo trata de associá-lo ao índio. É um raciocínio semelhante ao do romancista e crítico literário Alcides Maya (São Gabriel, 1878-1944): para ele, o gaúcho surge como fruto da mestiçagem entre o índio e o tipo ibérico.

A idealização do índio foi alvo da sátira de Lima Barreto em 1911, com a publicação de Triste fim de Policarpo Quaresma. O romance conta a saga de um brasileiro nacionalista que busca, na recuperação das tradições indígenas, a saída para os problemas políticos, culturais e econômicos do Brasil. O major Quaresma chega a sugerir à Assembleia Legislativa a adoção do tupi-guarani como língua oficial. Quaresma é considerado louco e termina seus dias encerrado em um manicômio.

O herói da literatura nacional

•• Missões

Álvaro fitou no índio um olhar admirado. Onde é que este selvagem sem cultura aprendera a poesia simples, mas graciosa; onde bebera a delicadeza de

sensibilidade que dificilmente se encontra num coração gasto pelo atrito da sociedade?A cena que se desenrolava a seus olhos respondeu-lhe; a natureza brasileira, tão rica e brilhante, era a imagem que produzia aquele espírito virgem, como o espelho das águas reflete o azul do céu. (O Guarani, de José de Alencar)

Baseado no mito do “bom selvagem”, índio é retratado como ser puro e corajoso, inclusive na ficção rio-grandense

Sepé Tiaraju, herói guarani na guerra contra as tropas luso-brasileiras e espanholas, morto em combate em 1756, é tema do livro Sepé Tiaraju – Romance dos Sete Povos das Missões, de Alcy Cheuiche. Assim ele vislumbra a queda de Sepé: “A fuzilaria redobra de intensidade. Já poucos guaranis restam de pé no campo de batalha. Sepé reúne os remanescentes e parte para uma nova carga. Sua lança levanta da sela um dragão português. Três, quatro soldados inimigos o cercam. uma lança o atinge pelas costas. Seu corpo tomba sobre o pescoço do cavalo“. A saga de Sepé também é lembrada no poema épico O Uraguai, de Basílio da Gama, e em O Continente, de Erico Verissimo. Já o romance Ibiamoré – O Trem-fantasma, de Roberto Bittencourt Martins, traz o personagem do índio Teireté. Ele conseguiu fugir da última redução jesuítica destruída e passou a viver no fundo de um despenhadeiro, onde ergue cruzes lembrando os irmãos mortos. As cruzes, levadas pelas águas do desfiladeiro, sempre têm de ser reerguidas. Esse trabalho contínuo, sem fim, simboliza o protesto e a resistência de Teireté.

•• Guaicanãs

José de Alencar

Porto Alegre

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29Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

É muito frequente o uso de filmes como material didático em sala de aula. Um dos mais utilizados pelos professores de História no Ensino Fundamental e Médio é A Missão.Produzido em 1986, tem astros de peso como Robert De Niro e Jeremy Irons. Recebeu oito indicações para o Oscar e venceu a Palma de Ouro no Festival de Cannes. O tema é a Guerra Guaranítica, ocorrida no século XVIII. Apesar do seu prestígio, A Missão apresenta uma série de incorreções históricas e geográficas. Abaixo, as mais graves:

1º) Foram os territórios e índios dos Sete Povos das Missões que estiveram diretamente envolvidos no tratado de Madri de 1750, e não as missões guairenhas. Essas já haviam sido arrasadas há mais de cem anos.

2º) O palco dos conflitos não foi os Altos do Rio Paraná nem a Mata Atlântica, mas as coxilhas do atual território do Rio Grande do Sul. Foi em Caiboaté (hoje São Gabriel) que se deu o genocídio guarani quando a infantaria, a artilharia e a cavalaria de Portugal e da Espanha destroçaram a guerrilha dos índios cristianizados.

3º) Os heróis não têm equivalentes nas figuras de Sepé tiaraju ou de Nicolau Nhenguiru, dois dos maiores líderes da resistência missioneira. Os padres jesuítas são retratados como os “mocinhos” e os índios, como coadjuvantes.

4º) O filme mostra os guaranis colhendo bananas. Mas naquele tempo, ninguém em parte alguma da América explorava os bananais.

5º) As cenas têm índias seminuas, de seios à mostra, e guerreiros nus. Isso não condiz com a realidade. Os padres, seguindo seu severo código moral, fizeram com que os guaranis usassem vestimentas.

A produção cinematográfica brasileira já retratou o índio em vários

momentos, em filmes como Iracema – A virgem dos lábios de mel, Hans Staden, Como era gostoso o meu francês e o mais recente Caramuru – A invenção do Brasil, de 2001. Mas no Rio Grande do Sul, o destaque conferido ao indígena na literatura gaúcha não se reflete no cinema.

O escritor e cineasta tabajara Ruas tentou resgatar o índio de seu quase esquecimento no cinema em seu último longa-metragem, Netto e o domador de cavalos. Um dos principais personagens é o Índio torres, interpretado por tarcísio Filho. Ele ocupa boa parte da trama e ainda faz o papel de narrador. Segundo Ruas, a inclusão de torres como um dos personagens centrais foi uma forma de “fazer justiça” com a população indígena, já que não houve um representante da etnia no elenco principal de seu filme anterior,

Coadjuvantes no cinemaFilmes, no Rio Grande do Sul, não conferem destaque aos indígenas

Filme Netto e o domador de cavalos busca o resgate

Netto perde sua alma. O domador de cavalos mistura

figuras reais – como Antonio de Souza Netto, general da Guerra dos Farrapos – e lendários. Às vésperas da Revolução Farroupilha, o oficial Netto descobre que um antigo companheiro das guerras do Sul, o sargento Índio torres, está preso. Para libertá-lo busca a ajuda de escravos rebelados, entre eles o melhor ginete da fronteira, um jovem que mais tarde será conhecido como o Negrinho do Pastoreio.

•• A gênese dos Terra-Cambará

Ana Terra foi dirigido por Durval Garcia em 1971. O filme se baseia em um dos episódios mais famosos de O continente, primeiro romance da trilogia O tempo e o vento, de Erico Verissimo. Além de Ana – a matriarca dos Terra-Cambará, família que conduz o enredo da trilogia –, livro e filme trazem o personagem Pedro Missioneiro, indígena educado por padres espanhóis e sobrevivente da Guerra Guaranítica. Pedro se torna agregado da família de Ana Terra, paulistas que chegam ao Rio Grande do Sul no século XVIII. Em meio à rotina solitária na fazenda do pai, Maneco Terra, Ana se envolve amorosamente com o índio. O relacionamento clandestino acaba em tragédia, quando Maneco descobre a “desonra” da filha, que está grávida. Revoltado, manda os filhos, Antônio e Horácio, matarem Pedro Missioneiro. O filho de Ana crescerá sem conhecer o pai, assassinado cruelmente, mas preservará o seu nome. Em 1984, a história foi reapresentada na minissérie O tempo e o vento, da Rede Globo de Televisão.

A Missão e suas falhas históricas

Jesuítas são os protagonistas da trama

FOtOS: DIVULGAçãO/GS

Page 31: Rio Pardo 200 anos

30 Uma luz para a história do Rio Grande

•• A lenda da mandioca

Diversas lendas de origem indígena se tornaram parte do folclore brasileiro e rio-grandense. Algumas têm origem em fatos históricos, como a de M’Bororé. Espanha e

Portugal derrotaram os índios guarani dos Sete Povos das Missões, na batalha que ficou conhecida pelo nome de Caiboaté, em 1756. Diante do avanço dos dois exércitos europeus, lanceiros guaranis foram abatidos às centenas. Quando os invasores entraram em São Miguel, os padres abandonaram em pânico as suas fazendas. Na fuga precipitada, não podendo levar consigo as riquezas, eles as enterraram ou lançaram às águas. Mas esses tesouros não ficaram de todo abandonados à cobiça dos homens. Índios devotados aos padres

ficaram guardando as riquezas. Passados mais de duzentos anos, eles se mantêm fiéis à sua missão: envelheceram e morreram mas, mesmo depois de mortos, continuam a defender os tesouros.

É chamado de M’Bororé o vigia da Casa Branca. Dentro do mato, no alto de uma lombada, há uma casa branca, sem portas nem janelas. No interior, as salas estão cheias de barras de ouro e de prata, tão pesadas que seriam necessários dois homens para remover cada uma delas. também há pedras preciosas e, por cima de tudo, castiçais de ouro maciço. Quando os padres fugiram, M’Bororé se tornou o guardião da Casa. Guardou-a até a velhice e, depois de morto, seu fantasma continua a postos. Até hoje, ele ronda a Casa Branca.

trata-se de um mito universal. No Rio Grande do Sul, a versão mais conhecida é a descrita por João Simões Lopes Neto e publicada em 1913, no livro Lendas do Sul.

Em um tempo muito antigo, houve uma noite extraordinariamente longa e escura. Na tarde que antecedeu essa noite, começou uma chuvarada. A chuva culminou em um grande dilúvio, que matou quase todos os animais e homens. A água inundou os campos, fez transbordar riachos e encheu as tocas dos animais, inclusive a de uma cobra enorme chamada pelos índios de boiguaçu, que dormia há muito tempo.

Despertada, ela passou a comer os olhos dos animais que encontrava. Diz-se que os animais e homens, quando perecem, guardam no olhar a última luz que viram. Era essa luz que a cobra devorava, cada vez mais. A pele da boiguaçu se tornou luminosa, de uma luz fria e azulada. Quando os homens voltaram a enxergá-la, não a reconheceram.

Chamaram-na de boitatá, que significa cobra de fogo. Algum tempo depois, boitatá morreu de fraqueza. Os olhos que ingerira tinham a luz, mas não a substância nutritiva de que ela necessitava. Ao se decompor, a cobra liberou a luz que estava presa dentro dela e essa luz gelada se espalhou por todos os rincões. Até hoje, boitatá ronda pelos campos do Rio Grande do Sul e persegue os campeiros.

M’bororé e o tesouro das MissõesLendas de origem indígena são parte essencial do folclore brasileiro e rio-grandense

Ele tem o tamanho de uma criança de sete anos. Anda nu, é peludo como o bicho-preguiça, tem unhas compridas e afiadas, o calcanhar para frente e os pés para trás. É o curupira, que ajuda os caçadores e pescadores que lhe oferecem cachaça, fósforo e fumo. O ofertório é para que a pessoa tenha fartura nas caçadas e pescarias. Quem não tem devoção para com o curupira sente medo, enjoo e náuseas a quilômetros de distância dele. Com essas pessoas ele brinca, fazendo com que se percam na mata. Para se livrar do curupira deve-se cortar uma vara, fazer uma cruz e colocar em um rolo de cipó, bem apertado. Ele vê o rolo e tenta desmanchá-lo, dando tempo para a pessoa fugir.

Cuidado com o curupira

Mara era uma bela jovem guarani, filha de um poderoso cacique, que sonhava com o amor e um casamento feliz. Mas um dia ela engravidou misteriosamente, apesar de se manter virgem. Em vão, seu enfurecido pai procurou o autor da desonra da filha. Meses depois, Mara deu à luz uma linda menina de pele alva e cabelos loiros, que recebeu o nome de Mani. A criança logo passou a ser estimada por todos da tribo. Porém, ao completar um ano de vida, Mani morreu. O fato chocou a todos, pois a menina nunca havia apresentado nenhuma doença. Desolada, a mãe enterrou a filha na própria oca em que vivia para não se separar dela. Diariamente chorava diante do local, regando com o leite dos seios e com as lágrimas aquela pequena sepultura. Passado algum tempo, brotou da cova, rápida e fresca, uma planta estranha. Acreditando que o corpo da menina quisesse sair dali, resolveram desenterrar Mani e colocá-la em outro lugar. Mas o corpo da pequena índia não foi encontrado. No local, acharam somente grossas raízes da tal planta desconhecida. As raízes, por fora, tinham uma coloração marrom e, por dentro, eram branquinhas como havia sido Mani. Após cozinharem e provarem da raiz, entenderam que se tratava de um alimento, na verdade um presente do Deus Tupã. Desde então, a mandioca passou a ser um alimento para os índios. Eles deram o nome de Mani para a raiz. Como nasceu dentro de uma oca, ficou Manioca, que hoje conhecemos como mandioca.

A origem de boitatá

(Adaptado de Costa e Silva, 1957)

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31Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

•• Onde eles estão

Quase dizimados pela dominação exercida pelo homem branco, os índios que sobreviveram formaram comunidades esparsas pelo território do Rio Grande do Sul. São os remanescentes dos povos caingangues, guaranis e guaranis mbyá. Atualmente, no Estado, os registros oficiais apontam a existência de 37 terras indígenas. Somadas, elas equivalem a 102,6 mil hectares, sendo 17 homologadas pela Presidência da República e registradas no patrimônio da união e quatro com Portaria Declaratória emitida pelo Ministério da Justiça. As demais áreas estão em etapas de estudo e delimitação. A maior delas é a Reserva do Guarita, na região de Tenente Portela. lá vivem cerca de sete mil índios, caingangues e guaranis. A Constituição considera os indígenas capazes de decidirem sobre seu próprio futuro e eles participam na elaboração das políticas a seu respeito: vinte indígenas eleitos por suas comunidades são titulares da Comissão Nacional de Política Indigenista, onde atuam em parceria com o governo federal na construção e aprovação de diretrizes para a política indigenista brasileira. A legislação brasileira é considerada referência internacional no que diz respeito à proteção e promoção dos povos indígenas, principalmente na questão fundiária. Ainda assim, há muito o que melhorar para essa parcela da população, irremediavelmente aviltada em seus direitos históricos.

FOtOS: INOR/AG. ASSMANN

Page 33: Rio Pardo 200 anos

32 Uma luz para a história do Rio Grande

O sítio onde se encontra a sede do município de Rio Pardo possui relevo acidentado. Por isso a área urbana recebeu ruas sinuosas, que se adaptam à declividade do terreno, configurando um traçado irregular.

A cidade ainda mantém várias das características do período de sua formação, como o traçado original de suas ruas centrais e a existência de um número regular de edificações construídas no período colonial e à época do Império no Brasil.

O ponto de partida do núcleo urbano foi a Fortaleza Jesus, Maria, José. As construções desceram para áreas mais baixas, na atual Rua da Ladeira, onde foi edificada a Igreja Matriz (1779) e se localiza a praça. Com o crescimento, a atual Rua Andrade Neves assumiu a condição de ponto dinâmico da cidade.

A demarcação dos terrenos urbanos – concedidos preferencialmente a oficiais, médicos, capelães e inferiores da guarnição dos Dragões – se iniciou no ano de 1780. A princípio, os trabalhos foram realizados por engenheiros militares.

Do núcleo militar inicial assentado no entorno do Forte Jesus, Maria, José, com apenas algumas poucas residências de militares e armazéns de víveres e mantimentos para as tropas aquarteladas, em 1823 a vila apresentava – de acordo com Dante de Laytano – 282 prédios urbanos sujeitos aos impostos urbanos e 50 casas não sujeitas à décima, por causa dos poucos meios de seus habitantes e proprietários. Já de acordo com Sabrina Souza, em 1826 Rio Pardo apresentava um total de 730 casas, das quais 20 eram estabelecimentos comerciais.

As escadarias existentes nas calçadas são uma peculiaridade da área

central de Rio Pardo. O caso típico é o prédio onde atualmente

funciona o Museu Barão de Santo Ângelo. Como não era

permitido fazer escadarias no passeio público, a

solução foi construir escadarias que

elevassem o nível do passeio como

um todo.

Relevo definiutraçado das ruas

CAPÍTULO

A VIDA uRBANA

A formação da área urbana de Rio Pardo; o comércio intenso dá origem a uma elite social e econômica no município; os hábitos de higiene no passado e a preocupação com a saúde.

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33Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

1ª faseConforme o pesquisador Luiz Carlos Schneider, essa fase vai

de1750 a 1809: há forte influência portuguesa na arquitetura. Surgem a Fortaleza, o Solar do Almirante Alexandrino – primeiro sobrado da povoação –, a Casa da Pólvora, a Capela de Santo Ângelo, a Igreja Nossa Senhora do Rosário, a Igreja São Francisco, a Capela de São Nicolau, o porto e alguns espaços públicos como a Praça da Matriz.

As primeiras edificações que surgiram no povoado em meados do século XVIII, de pau a pique e cobertas de capim, não resistiram ao tempo. Devido à insegurança provocada pelas contínuas guerras e pela incerteza de onde seria a fronteira entre os impérios de Espanha e de Portugal, não se justificava a construção de residências muito caras e duráveis. É somente a partir de 1780 – ou seja, após o Tratado de Santo Ildefonso – que isso começa a mudar.

A povoação ganha sobrados e casas térreas, construídos no alinhamento com a via pública e até os limites laterais, em um formato que remetia às cidades portuguesas do período. A simplicidade também se refletia na cobertura, geralmente em duas águas, lançando parte da chuva na rua e parte no pátio interno. Isso evitava a necessidade de calhas ou outros elementos de captação e condução das águas pluviais. Essa forma de construção deu aspectos típicos não somente a Rio Pardo, mas igualmente às antigas cidades gaúchas: a inexistência de arborização junto ao espaço público e de recuos para o ajardinamento das residências.

Inicialmente os tipos arquitetônicos variavam apenas entre sobrados e casas térreas, geralmente de chão batido. Mesmo as fachadas variavam pouco e eram constituídas, basicamente, de janela e porta ou de porta e duas janelas. Em destaque apareciam apenas algumas edificações mais suntuosas, como os templos e as casas de famílias abastadas.

•• Ruas estreitas

A evoluçãourbanaQuatro fases caracterizam a formação da cidade de Rio Pardo

Primeiras edificações

Como originariamente os prédios foram edificados junto às ruas, sem recuos, em uma época em que não existiam veículos movidos a motor, quando estes passaram a circular exigiram passeios públicos para os pedestres. As calçadas estreitas e sem arborização foram, evidentemente, conquistadas às anteriormente carroçáveis ruas. Em decorrência disso, na parte central e mais antiga da cidade as ruas e calçadas são estreitas.

Casario de Rio Pardo, em sua maioria, não resistiu ao tempo

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Compreende o período entre 1809 e 1865: segue a influência portuguesa. Rio Pardo se consolida como uma das mais belas e ricas cidades do Sul do Brasil. o núcleo urbano tem rápido crescimento e atrai militares, açorianos, escravos e índios. É a fase de construção dos sobrados, da Escola Militar e da Igreja Nosso Senhor dos Passos. A vida social é intensa e a arquitetura expressa essa sociedade emergente do ponto de vista econômico. Como sinais de riqueza, vidros e trabalhos de caixilharia nas janelas e sacadas, luxos permitidos a poucos no século XIX. Em 1814, Rio Pardo tinha quase 10,5 mil habitantes e era um dos principais núcleos urbanos do Rio grande do Sul. Seria dessa época o calçamento da Rua da Ladeira e a criação da agência de correios. Na década seguinte, foi construída a ponte sobre o Rio Pardo e as estradas receberam melhorias. A partir de 1848, as ruas centrais passaram a ser iluminadas com lampiões. Nem os combates na Revolução Farroupilha, quando Rio Pardo chegou a ser saqueada, causaram grandes danos à estrutura urbana.

2ª fase

Vai de1865 a 1945: começa a desaceleração. A gradativa perda da função militar e de entreposto comercial, a crise gerada pela queda no preço do gado e de produtos agrícolas são alguns dos fatores para o recuo na economia. outros são a ausência de indústrias, justamente num momento em que a industrialização se inicia no Estado, a perda da importância do transporte fluvial e a abolição da escravatura. o período foi caracterizado por obras arquitetônicas de estilo eclético. um exemplo é o Clube Literário e Recreativo.

3ª fase

De 1945 até os dias atuais: a área urbana se adapta aos tempos, mas mantém seus casarios históricos. A cidade cresce e a população rural se reduz. ocorre a formação de periferias. Com a revitalização da agropecuária, cooperativas agrícolas e pastoris se instalam na área urbana, o comércio retoma o desenvolvimento e surgem fábricas. Há melhorias na infraestrutura básica de serviços.

4ª fase

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34 Uma luz para a história do Rio Grande

Na praça situada em frente à Capela São Francisco existia, no passado, o maior mercado público de Rio Pardo

Nicolau Dreys, francês que chegou ao Brasil em 1817 e que percorreu algumas das províncias do império em função da sua atividade comercial, escreveu em sua obra – cuja primeira versão é datada de 1839 – ser a vila de Rio Pardo mais antiga e por muito tempo rival de Porto Alegre; e que ainda era “depois da capital, o mais considerável ponto habitado da parte setentrional da província”. o autor também revela que o comércio da vila era florescente, “ou pelo menos assim estava, antes que a guerra levasse ali o luto e a desolação”. Refere-se à Revolução Farroupilha, ocorrida entre 1835 e 1845.

No final do século XVIII e início do século XIX, Rio Pardo passou a se destacar pela imensa atividade comercial. Sendo fundamental o transporte fluvial para abastecer de secos e molhados o entreposto, intensificavam-se as linhas de navegação que ligavam

o povoado – depois vila – com a Capital, Porto Alegre, através do Rio Jacuí. Escreve o historiador Moacyr Flores que Rio Pardo era um ponto central de chegada e redistribuição de mercadorias. Suas casas comerciais eram ponto de partida das tropas de mulas, comboios de carretas e tropas de gado. Como posto avançado de fronteira, a localidade passou a atrair uma série de negócios, entre os quais venda de escravos, linhas de carretas, aluguéis de carretilhas e grandes armazéns que revendiam para as bodegas ou bolichos da Campanha, Missões e Campos de Cima da Serra uma série de produtos – sal, açúcar, vinho, aguardente, fumo, ferramentas, velas, louças inglesas, tecidos, móveis e utensílios domésticos.

Comércio dos mais intensosRio Pardo, nos séculos XVIII e XIX, foi o maior entreposto de mercadorias do interior da Província de São Pedro

Durante um longo período, as manhãs de Rio Pardo eram movimentadas pela ida de pessoas até os mercados públicos em busca de produtos alimentícios para o preparo das refeições do dia. Existentes desde a fundação do povoado no período colonial (segunda metade do século XVIII) até a República (final do século XIX), os mercados de praça eram importantes pela sua função de abastecimento da população. uma das feiras públicas, possivelmente a maior, funcionava na praça em frente à Capela São Francisco. o funcionamento e a fiscalização dos mercados públicos eram atribuição da Câmara Municipal.

o professor José Martinho Rodrigues Remedi, da unisc, explica que era a Câmara que definia os horários de funcionamento da feira e aplicava multas, caso alguém transgredisse os regulamentos. Por exemplo: entre as normas encontradas no arquivo histórico, havia as que definiam que até as 9 horas no verão, e 10 horas no inverno, o mercado era reservado para os vendedores locais. Somente após esses horários, podiam entrar os carreteiros vindos de outros lugares. “Isso para que os comerciantes locais tivessem seu negócio protegido”, comenta o historiador.

o comércio era praticamente diário, mas com dias de maior variedade, principalmente nos de participação dos carreteiros de fora. uma das figuras importantes presentes no cenário era o almotacé, espécie de fiscal que verificava a qualidade dos alimentos, os pesos e as medidas. Conforme Remedi, provavelmente nunca houve estrutura física construída especificamente para o mercado público – diferente do ocorrido em outras cidades, como em Porto Alegre e em Pelotas.

Documentos históricos fazem menção a outras feiras públicas, como a existente no período colonial na Praça da Matriz. As posturas municipais revelam que em 1877 ainda existia a destinação de espaços públicos para a venda de gêneros alimentícios. As feiras entraram em declínio no final do século XIX, quando passaram a ter concorrência mais acirrada de outros tipos de estabelecimentos comerciais.

Mercado públicoRival da Capital

Matriz e a praça à frente, também local de feira no século XIX

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35Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

Janelas com vidro: luxo nas residências e, abaixo, aberturas no porão para ventilar área onde dormiam os escravos

Nesta época, em que as moedas muito tilintavam em Rio Pardo, os sinais de opulência eram evidentes.

Hemetério Velloso da Silveira apontou que as festas realizadas nas igrejas eram aparatosas e completas. os torneios e as cavalhadas também ostentavam o poder

aquisitivo de uma parcela da população. os saraus familiares eram animados com a dança do solo inglês, do minuete afandangado, da gaivota, do cachucha e da contradança antiga, desbancada pelas quadrilhas. Eram bem desempenhados os espetáculos teatrais, em que brilhavam Felipe Néri, Mello e Albuquerque, Borba e outros jovens amadores – mais tarde chamados para representarem papéis proeminentes na política rio-grandense.

Dante de Laytano deixou registrado, em seus escritos, que Rio Pardo foi berço da nobreza gaúcha. Que os velhos solares ainda guardam o fausto de uma época quando em seus salões, à luz de candelabros de ouro e prata, rebrilhavam os fardões cobertos de condecorações e as joias preciosas que as damas ostentavam na elegância das toiletes custosas.

Berço danobreza gaúcha

Sobre a crista de elevada colina corre a principal rua, ficando as demais nos flancos dessa e de outras colinas adjacentes (...). A praça pública é pequena. A igreja paroquial

forma um de seus lados e não está ainda acabada, o mesmo acontecendo a duas outras pequenas igrejas existentes na cidade. A casa da Câmara, tendo anexo a cadeia, é um edifício térreo. A rua principal é, em parte, calçada e as demais ainda não o são. Todas as casas de Rio Pardo são cobertas de telha; várias grandes e bem construídas. Contam-se em grande número as assobradadas, de um e mesmo dois andares e quase todas as que anunciam abastança têm sacadas envidraçadas.

Tempos de progresso

Riqueza e luxo marcaram o período de efervescência comercial

Moedas de todo tipoAté a metade do século XIX, várias moedas circulavam em Rio Pardo.

Até dinheiro estrangeiro era aceito, pois eram moedas de ouro ou prata que valiam de acordo com o seu peso. Havia também todas as moedas do Império, que circulavam normalmente. Como o dinheiro nem sempre existia na mesma disponibilidade do valor dos produtos, também ocorriam muitas trocas.

o porto de Rio Pardo foi extremamente importante e muito movimentado, antes da existência dos transportes ferroviário e rodoviário. o fato de ficar na confluência dos rios permitia centralizar a distribuição de produtos. As embarcações chegavam em Rio grande, passavam por Porto Alegre e subiam até Rio Pardo. Depois, os produtos eram levados em carretas para boa parte do território gaúcho.

José Martinho Remedi explica que pelo porto chegava tudo o que era industrializado, vindo principalmente da Europa e do Rio de Janeiro. E pelos mesmos caminhos voltavam lã, couro, fumo e outros itens produzidos na região. “Sabe-se, pela documentação, que o porto chegou a ter um embarcadouro com muros de pedra.” Existem especulações sobre o local das edificações, mas a confirmação ainda depende de escavações. os negociantes eram os donos das casas de comércio, geralmente homens de prestígio, proprietários dos sobrados. um dos mais conhecidos foi Matheus Simões Pires, que também teve grande participação na política rio-pardense. Na fase de maior desenvolvimento, na primeira parte do século XIX, Rio Pardo tinha casas comerciais especializadas em serviços como açougue, ourives, casas de pasto, padarias e tavernas. Vendia-se também joias, vestidos, chapéus e outros artigos sofisticados. o comércio só entrou em declínio quando o transporte de mercadorias passou a ser feito por ferrovias e, mais tarde, por rodovias.

Porto movimentado

A maioria dos casarões de Rio Pardo era estabelecimento comercial e residência. o comércio geralmente funcionava embaixo e no piso superior se localizavam os quartos de dormir e a cozinha. A partir de 1809, na fase mais próspera, foram erguidos muitos sobrados residenciais, com detalhes de ostentação na sua arquitetura e presença de materiais caros e importados. No início da década de 1820, Saint-Hilaire se refere a Rio Pardo como sendo uma localidade rica e comercial, descrevendo-a assim:

Page 37: Rio Pardo 200 anos

36 Uma luz para a história do Rio Grande

Vais querer namorar um rapaz sem eira nem beira? Certamente muita moça já escutou essa frase de alerta, proferida pelos pais. Não ter eira nem beira significa ser pobre, não ter posses. Mas de onde vem essa expressão? Da arquitetura colonial do Brasil. Antigamente não bastava ter posses. Era necessário ostentar, tornar isso público. uma das formas de fazê-lo era colocando eiras e beiras nos casarões e sobrados. As casas dos cidadãos com algum recurso tinham eira, um prolongamento do telhado que servia como proteção para a chuva. As das pessoas mais ricas tinham, além das eiras, beiras – ornamentos sobre as eiras. os mais pobres não tinham eiras nem beiras. Daí a expressão.

Em Rio Pardo, os casarões revelam aspectos peculiares do modo de vida da elite de épocas passadas. As alcovas, por exemplo, ainda podem ser vistas em sobrados como o Solar do Almirante Alexandrino, atualmente Museu Barão de Santo Ângelo. Eram quartos situados

no centro da casa, sem janelas e, por isso, com deficiência de ventilação. Ali as moças ficavam protegidas de olhares maliciosos que poderiam vir da rua e invadir sua intimidade. Na época da escravidão, mucamas dormiam no mesmo quarto das virgens, tudo para garantir que se mantivessem puras até o casamento.

A ausência de banheiros e sanitários também reflete os hábitos de higiene da época que, possivelmente, não seriam aprovados pelas regras de asseio dos dias atuais. os banhos eram precários, em tinas, bacias e banheiras. Habitar em sobrados significava que os proprietários eram abastados.

•• Dentro de casa

As casas eram pouco ventiladas. As poucas janelas eram feitas de madeira. Inicialmente o vidro, além de caro, era muito raro. As residências de famílias livres, mas pobres, não passavam de pequenas choupanas com um, dois ou três cômodos de multiusos nos quais se dormia, cozinhava e se praticava um ofício artesanal. Já as casas das pessoas mais endinheiradas dispunham de número maior de aposentos e eram construídas com material de maior durabilidade. Normalmente a peça da frente, com janela para a rua, servia de sala; as demais, acessíveis por um corredor, de quarto de dormir, aí incluindo as alcovas. No final ficavam a cozinha e o alpendre, que davam para um pequeno quintal. Devido à ausência de chaminé e de janelas, a cozinha ficava cheia de fumaça. Quanto aos escravos, nem sempre dormiam em senzalas. Nas casas mais simples da vila havia famílias que possuíam apenas um ou dois cativos. Nesses casos, eles esticavam suas esteiras em qualquer lugar, inclusive na cozinha, próximo do fogão.

A vida privada da eliteCasarões revelam como viviam as famílias abastadas nos tempos áureos de Rio Pardo

Interior da casa dos Andrade Neves no início do século XX

•• Pouco conforto

Eiras e beiras

>> As casas, mesmo as dos mais ricos, eram geralmente pouco confortáveis. O mobiliário era bastante modesto. Poucas cadeiras, uma ou duas mesas. O normal era guardar roupas e papéis em

caixas ou baús, às vezes colocados em estrados acima do chão para evitar umidade e a ação danosa de ratos. Cabides de chifre de boi ou veado também eram usados no lugar de roupeiros e podiam ser vistos nos quartos e nas salas. Ali eram

pendurados chapéus, roupas e outros objetos.

>> Os utensílios usados à mesa, como colheres, facas, garfos, pratos, copos e baixelas, também eram escassos. Ao adentrar no século XIX, comia-se com as mãos em praticamente todo o Brasil. O uso do garfo se generalizaria somente no decorrer daquele século.

>> As ruas, mas principalmente as igrejas, constituíam os principais espaços de sociabilidade. As festas religiosas eram os grandes momentos de interação social, comemoradas com missas, procissões e te-déuns. Mas também havia as festas em homenagem à família real ou a alguma outra autoridade civil ou eclesiástica.

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Page 38: Rio Pardo 200 anos

37Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória •• Banho era raro

•• Os aguadeiros

Desde os tempos mais remotos, a água potável era obtida nos poços domiciliares e também em cacimbas

públicas. Em 1911, Frederico Ernesto Wunderlich, que mantinha a usina elétrica, instalou uma bomba no Rio Jacuí. Mais tarde, nos anos 20, a água passou a ser bombeada junto à ponte ferroviária sobre o Rio Pardo. Lá ela era purificada em filtros rudimentares de cascalho, carvão mineral, areia grossa e areia fina e depois distribuída em pipas de 500 litros, levadas por carroças e transferidas para tonéis ou talhas de cerâmica.

Anos mais tarde foi instalada a Hydraulica Municipal, que contava

com um tanque de decantação d’água. Esta era distribuída em pipas carregadas por carroças. Somente em 1952 é que se iniciou a construção da hidráulica, nos moldes da que existe hoje. o local da construção é o mesmo onde fica a atual Corsan, na antiga Fortaleza Jesus, Maria, José. Segundo o Jornal de Rio Pardo, fazia 40 anos que a cidade esperava por água em todas as casas. A inauguração se deu em 30 de janeiro de 1955.

Na segunda metade do século XX, além da água encanada também passaram a existir as fossas residenciais, cujos resíduos líquidos acabaram canalizados para a mesma tubulação do escoamento pluvial.

Sem água encanada, lavagem das roupas ocorria na beira do Rio Jacuí

Como as residências não dispunham de água encanada, seu abastecimento era fundamental. Quando não se podia ter um poço ou fonte na própria casa, a água vinha de fontes públicas ou dos rios. A lavagem de roupa e de louça era feita fora das casas ou à beira dos rios. O abastecimento era providenciado por escravos ou pelos aguadeiros, que cobravam por pipa fornecida.

>> Espelhando uma realidade que ocorria na Província e no Brasil inteiro, as residências existentes em Rio Pardo durante o século XIX – mesmo aquelas pertencentes à nobreza – não possuíam banheiros. Como não havia água encanada, também não havia duchas ou chuveiros. O banho de corpo inteiro era bastante raro. Nem mesmo o vaso pedestal podia ser encontrado. As pessoas, mesmo da elite, urinavam e defecavam em baldes, penicos e, no melhor dos casos, em caixas portáteis. O conteúdo era despejado nos rios ou arroios, quando não na rua.

>> O vaso ou privada de descarga foi inventado na Inglaterra. A produção comercial se iniciou no final do século XVIII. Essa inovação chegaria ao Brasil décadas mais tarde. Para os mais aquinhoados substituiria com extraordinária vantagem as caixas portáteis, os penicos e os baldes.

>> O leque é um objeto de uso pessoal utilizado há mais de 3 mil anos. Em Rio Pardo, no século XIX, o leque passou a ser um inseparável companheiro das moças e senhoras da elite, quase um confidente, uma testemunha dos pensamentos de cada instante. Era usado em casa,na missa, no teatro, nos bailes, nos passeios, nos namoros. Afirma-se que, além de objeto de luxo e de instrumento para aliviar o calor, também servia para espantar o mau hálito que exalava da boca das pessoas ao falarem. Estamos tratando de uma época em que ainda não havia a escova dental nem a pasta de dentes.

>> O protótipo da escova de dentes surgiu no Egito, há cerca de 3 mil a. C. O objeto nada mais era do que a junção de alguns ramos com as pontas desfiadas. A escova dental, nos moldes como a conhecemos hoje, surgiu somente em 1938, nos Estados Unidos. Foi Robert Hutson quem desenvolveu a primeira escova com cerdas de nylon. Mas até o uso se generalizar, ainda levou algum tempo.

>> O papel higiênico é produto essencial para a higiene das pessoas. Mas não existia em Rio Pardo no século XIX. Para se limpar, os antigos gregos usavam pedras ou argila; os romanos, esponjas embebidas em água salgada; os árabes, a mão esquerda, considerada impura. O papel higiênico surgiu em 1857, nos EUA, por meio de Joseph Gayetty.

Água vinha depoços e cacimbasBombeamento de água do Rio Jacuí começou no início do século XX

ACERVo MIguEL CoSTA

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38 Uma luz para a história do Rio Grande

Na primeira metade do século XIX, casas e ruas iluminadas em Rio Pardo eram sinal de festa ou de que se encontrava uma autoridade muito importante na vila. Caso de

aniversários ou casamentos de autoridades reais, dos festejos pela Independência do Brasil, da visita de D. Pedro II e da elevação da vila à condição de cidade.

Quando do casamento do príncipe real português, D. Pedro, com a arquiduquesa da Áustria, Maria Leopoldina, as fachadas das residências ficaram iluminadas com lanternas por três dias. A mando da Câmara, cinco arcos ornamentais foram colocados na rua principal. Na Matriz houve festa solene com Te-Déum e o Regimento de Dragões, postado em forma na frente da igreja, deu salvas de artilharia. As festividades se encerraram com um grande baile público, em que uma pintura do príncipe foi apresentada.

Para que a população tomasse conhecimento de fatos marcantes e pudesse providenciar a iluminação das fachadas, a Câmara expedia editais que determinavam o número de dias em que os prédios deveriam

Lamparina na Rua da Ponte, atual General Osório, em 1898

Chegam os lampiõesNos primeiros tempos, só em datas comemorativas as ruas recebiam iluminação

A utilização de energia elétrica no Brasil teve início em 1883, com a instalação da usina Hidrelétrica Ribeirão do Inferno, em Minas gerais, criada para abastecer o setor de mineração em Diamantina. Seguiram-se a usina Hidrelétrica da Companhia Fiação e Tecidos São Silvestre (1885), em Viçosa; a usina Hidrelétrica Ribeirão dos Macacos (1887), em Minas; a usina Termelétrica Velha Porto Alegre (1887), no Rio grande do Sul; e a usina Hidrelétrica Marmelos (1889), em Juiz de Fora.

No início do século XX foi instalada uma série de pequenas usinas pelo País. A produção visava a atender à iluminação pública e residencial e fornecer força motriz para as fábricas, que proliferavam. os primeiros contratos de concessão para a realização dos serviços de eletricidade tinham prazos longos, atingindo até 80 ou mesmo 90 anos, e ofereciam aos concessionários garantias financeiras por parte do poder público.

Minas Geraisna frente

ficar iluminados.Em 1846 o governo da Província

autorizou a aquisição de 312 lampiões de azeite para iluminar Pelotas, Rio grande e Rio Pardo. Desses, 72 seriam destinados para as ruas de Rio Pardo.

João Francisco Tavares venceu a licitação e ficou responsável por assentar os lampiões nos lugares designados pela Câmara. Foram então fixados em esteios de madeira de lei, em muros ou em paredes. Pela barca a vapor Crioula vieram de Rio grande ferros, chaves, colunas e vidros, mas dos 360 vidros 96 chegaram quebrados. Para a construção dos lampiões foram utilizadas as melhores técnicas existentes na época. o modelo foram os lampiões implantados em Porto Alegre e em todas as partes do Brasil, nos quais a iluminação era de azeite. Posteriormente, o azeite foi substituído pelo querosene.

os lampiões deveriam ser acesos ao anoitecer e apagados somente ao amanhecer; e nas noites em que houvesse lua cheia, por todo o tempo que ela não iluminasse.

•• A primeira usina

Foi em 18 de junho de 1910 que Frederico Ernesto Wunderlich, depois de ganhar a licitação proposta pelo então intendente, coronel José Antonio Pereira Rego, assinou o contrato para fornecer energia elétrica para Rio Pardo. A usina, instalada na Rua Coronel Franco Ferreira, usava lenha como

combustível das máquinas a vapor. Para abastecer as caldeiras a água era puxada do Rio Jacuí, por meio de uma torre, e levada até a usina. Funcionava de segunda a sábado. No domingo à tarde, logo após o meio-dia, tudo se reiniciava, pois por volta das 15 horas havia o cinema, que precisava da energia para exibir os filmes. No princípio, a usina possuía duas máquinas a vapor. Nas primeiras décadas do século

XX, usina funcionava de segunda a sábado

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39Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

A Rua da Ladeira já se chamou Rua Direita, Rua do Imperador, Rua Silveira Martins e atualmente tem o nome

oficial de Rua Júlio de Castilhos. Exemplo da influência portuguesa na construção das cidades ou vilas do Brasil, foi também importante para o comércio e o transporte de mercadorias. Ela ligava o alto da

Fortaleza, local onde teve origem o povoado, com a parte residencial. A zona comercial ficava quase toda nas proximidades da praia e ruas a ela circunscritas. Na Rua da Ladeira, onde hoje fica a praça da Matriz, também funcionava uma das feiras de comércio popular. Nas suas imediações, próximo à praia, ainda estava o Regimento de Dragões de Rio Pardo.

A importância daRua da Ladeira

A Rua da Ladeira pode ser a mais antiga ainda existente no Estado

LADeIRA

Na década de 1950, a Rua da Ladeira sofreu os reflexos do projeto de modernização das cidades brasileiras, com o início da retirada de suas pedras irregulares. Parte da rua já estava descalçada quando o pesquisador Biagio Soares Tarantino conseguiu mobilizar políticos e intelectuais contra a medida. Com o apoio de outros companheiros, como Dante de Laytano, foram feitas pesquisas para atestar a importância e a necessidade de ser mantido o calçamento original.

Apesar de toda a luta e das manifestações na imprensa, e do apoio de pessoas importantes do cenário gaúcho e brasileiro, como Rodrigo de Melo Franco de Andrade – presidente do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) de 1937 a1968 –, gilberto Freyre e Augusto Meyer, muitas pedras continuavam sendo retiradas em nome do progresso. Em 6 de fevereiro de 1955, muito preocupado com a situação, Biagio escreve artigo em um jornal local alertando para o “golpe contra as tradições” e advertindo que as gerações futuras cobrariam os atos dos responsáveis pela mutilação.

A matéria repercutiu na imprensa do Estado. No mês seguinte, o SPHAN assinou o tombamento da via. Se a Rua da Ladeira foi ou não a pioneira no Estado, isso ainda carece de provas contundentes. o certo é que o argumento utilizado foi infalível.

Um trecho foi salvo

Patrimônio de gerações futuraso historiador Miguel Ângelo

da Costa frisa que a Rua da Ladeira conta muito da história de Rio Pardo. Revela pistas sobre as práticas de urbanização e das técnicas construtivas do Brasil dos séculos XVIII e XIX. Construída supostamente por escravos em 1813, tem sido apontada como a primeira via calçada do Estado. Porém, a informação não foi confirmada até hoje. Há quem defenda a tese de que tenha sido calçada em 1846, ano em que o Imperador Dom Pedro II visitou a cidade. outros entendem que esse pioneirismo foi, na verdade, uma jogada inteligente para evitar que a rua fosse destruída pelo progresso.

É provável que a Ladeira, com

suas pedras irregulares, seja a via calçada mais antiga ainda existente em solo gaúcho. Para Miguel Ângelo, isso pode estar relacionado à tentativa de demolição da mesma, por volta de 1950. Para evitar a destruição do patrimônio, Biagio Tarantino iniciou uma grande luta pela preservação do calçamento e difundiu a ideia de que este era o mais antigo do Estado. Mas para o professor, qualquer uma das cidades mais antigas da então Capitania pode ter tido uma rua calçada até mesmo antes de 1813. Mas a data de construção não é o mais importante. o relevante é aquilo que dela pode ser pensado e extraído para a compreensão da história rio-pardense.

Quem foi Biagio TarantinoBiagio Soares Tarantino nasceu em Rio Pardo, em 8 de dezembro de 1903, e começou sua vida profissional como barbeiro em Cachoeira do Sul. Casou-se com a cachoeirense Eva Ilda Silveira da Luz e retornou para a Cidade Histórica. Uma das paixões de Biagio eram os objetos antigos. Em muitas de suas viagens pelo interior, adquiria materiais que remetiam à Revolução Farroupilha e imagens sacras. Em 1935, por ocasião do centenário do embate entre farrapos e imperiais, promoveu-se uma exposição cultural. Com o êxito da iniciativa surgiu o Museu de Arte Sacra, do qual Biagio Tarantino foi fundador e primeiro diretor. Mesmo sem formação acadêmica, sendo um autodidata que conhecia a história de sua cidade, passou a fazer parte de um grupo de intelectuais de Porto Alegre. Foi também organizador e diretor do Museu Municipal e do Arquivo Histórico de Rio Pardo. Morreu em 1976, aos 73 anos.

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Pavimento ligava o alto da Fortaleza com a área residencial

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40 Uma luz para a história do Rio Grande

Desde as origens de Rio Pardo, a saúde era tratada com métodos caseiros, totalmente empíricos. E não poderia ser diferente.

os meios normalmente usados eram ventosas, sangrias, cirurgias anestesiadas com aguardente e uso de muitas ervas medicinais, ingeridas ou aplicadas em ferimentos – inclusive em picadas de cobra, que eram muito comuns. As doenças eram de fácil propagação por causa das precariedades higiênicas, a falta de água tratada e de esgoto.

A presença do Exército contribuiu para a introdução de costumes de higiene. os dejetos cloacais passaram a ser recolhidos em cubos de madeira envolvidos por anéis metálicos, também conhecidos como cabungos. o recolhimento era realizado periodicamente, por carroças, com a troca do recipiente cheio por outro vazio, e o despejo era feito em uma sanga

•• O lixoA princípio, as imundícies e o lixo doméstico podiam ser despejados em qualquer lugar. Mas a Câmara Municipal, principalmente pelos Códigos de Posturas, passou a legislar sobre higiene, construções e o comportamento dos cidadãos. Pelo Código de Posturas de 1850, por exemplo, ficava “proibido fazer qualquer gênero de despejo imundo, exceto as águas de lavagem, desde as 6 horas da manhã até as 8 da noite”.

Saúde era precáriaPara o tratamento de doenças, maioria só tinha como alternativa métodos caseiros

O difícil trabalho dos tigreiros

No Brasil, as grandes cidades não eram locais agradáveis no século XIX. Manuela Arruda dos Santos escreve que elas eram sujas, nojentas e enlameadas. o cenário urbano se compunha de carniças, bichos mortos, alimentos podres e outras imundícies abandonadas nas praças, nos passeios públicos, perto das pontes e nas praias. Nos interiores das casas, cozinhas sem ventilação tornavam o ar viciado, com exalações pútridas de matérias orgânicas em decomposição. Nos quartos, poeira e mofo se misturavam ao cheiro dos penicos. Todo dia de manhã, eles eram esvaziados em barris de madeira que ficavam embaixo das escadas ou num canto mais recolhido da casa. Quando o tonel já estava quase transbordando, recorria-se ao trabalho dos escravos. Era sobre a cabeça deles que as barricas eram conduzidas para serem despejadas. Esses barris eram chamados de “tigres” e os seus condutores de “tigreiros”.

o nome talvez seja uma alusão à coragem dos carregadores ou à imagem desagradável das barricas que, ao transbordarem, espalhavam imundícies nos corpos dos escravos e dos negros de ganho, numa combinação que lembrava a pelagem dos tigres. Existe ainda uma versão afirmando que o apelido foi dado porque, ao avistarem os negros levando barris de dejetos, os transeuntes, com medo

Tigreiros – LiTografia de Henrique fLeiuss,1861. acervo fundação BiBLioTeca nacionaL

determinada. Quanto ao lixo doméstico, o problema era menor num tempo em que ainda não havia plástico. Muitas embalagens, de vidro ou metal, podiam ser reutilizadas ou trocadas no momento de nova compra do mesmo produto. o resto era lixo orgânico, que podia ser incorporado ao solo ou depositado em locais próprios.

de ficarem sujos, afastavam-se rapidamente como se fugissem de um animal selvagem.

Quando um “tigre” passava as pessoas tapavam o nariz com lenços, viravam o rosto, se encolhiam. De longe, os “tigreiros” vinham alertando os moradores com seu bordão: “Abra o olho! Abra o olho!”. os passantes se esquivavam, com medo de que um simples esbarrão resultasse em um banho asqueroso.

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41Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

A criação do Hospital dos Passos está diretamente ligada a um dos mais importantes acontecimentos da história do Rio grande do Sul: a Batalha do

Barro Vermelho, ocorrida em abril de 1838, em Rio Pardo. o tradicional Regimento dos Dragões mantinha desde 1754 na vila um hospital militar, atendido pelo cirurgião Manoel Francisco Bastos e mais quatro auxiliares. Em 1834, já com a denominação de 2º Corpo de Cavalaria, ele foi transferido para Bagé e o serviço acabou desativado.

Mesmo sendo uma das cidades mais populosas da Província, não havia hospital em Rio Pardo. o atendimento era prestado por médicos do serviço de saúde pública, criado pelo Senado da Câmara de Vereadores em 20 de maio de 1811. Em 1838, logo após o combate do Barro Vermelho, a comunidade decidiu que o município não poderia mais continuar sem uma casa de saúde.

A mobilização em prol da obra foi assumida pela Irmandade do Senhor dos Passos, criada em 1805. Quando, em 1846, Dom Pedro II veio ao Rio grande do Sul na companhia de seu médico particular, o rio-pardense José Martins da Cruz Jobim, membros da Irmandade aproveitaram a visita e solicitaram ajuda para a construção do hospital. o grupo sensibilizou o imperador,

Sem recursos para implantar o hospital, a Irmandade, em 1882, cedeu o prédio para a instalação de um regimento militar do Exército Imperial. Depois, a partir de 1885 funcionou ali a Escola Militar, com cinco diferentes denominações. Em 1911, a unidade foi transferida para o Rio de Janeiro.

Em 1918 a Irmandade adquiriu a chácara da senhora Rita Menezes de Borba, pela quantia de oito contos de réis (onde mais tarde seria construído o Hospital dos Passos), e ofereceu ao Exército o prédio que ele vinha ocupando. o preço pretendido era de 180 contos. os militares, no entanto, não se manifestaram sobre o negócio. Mas permaneceram no local até 1928, quando o prédio finalmente foi vendido, por 70 contos

No Bairro Boa Vista, em Rio Pardo, residiu por muitos anos o ferroviário Miguel Cézar. Analfabeto, ele tinha um dom especial: curar as pessoas através da oração. Chegava a atender 40 pessoas por dia e muitas faziam questão de chamá-lo de doutor.

Miguel nasceu no interior de Santa Maria, em 13 de maio de 1897, e faleceu em Rio Pardo em 27 de julho de 1977. Filho de uma família pobre, não teve condições de estudar. Ainda jovem, mudou-se para Rio Pardo e passou a trabalhar como ronda ferroviário. Mais tarde, integrou o Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento, onde desenvolveu o dom da cura. Atendia as pessoas de graça e era muito querido na comunidade. Além de benzer, indicava as ervas que as pessoas deveriam tomar, entre elas a noz-moscada, que teria muitas propriedades curativas. Miguel também conhecia medicamentos, mas não receitava.

•• No começo, 12 vagasDe posse de parte do capital da venda do prédio, a Irmandade empreendeu a adaptação da chácara adquirida em 1918, na atual Rua 13 de Maio, para abrigar um hospital. O local passou a funcionar com duas enfermarias, para seis homens e seis mulheres. A inauguração ocorreu no dia 20 de setembro de 1930. Em 1946 foi construído outro prédio. Uma nova construção foi empreendida na década de 1960, mas não foi concluída.

CebolasAs supostas curas atraíam

pessoas de toda a região e até de Porto Alegre. Quando havia algum doente que não conseguia levantar da cama, Miguel fazia questão de ir até a sua casa para ajudar.

Um caso curioso envolveu um grupo de agricultores da região de Rio Grande. Preocupados com a safra de cebola que não se desenvolvia, vieram a Rio Pardo buscar o “doutor” Miguel para ver o que estava acontecendo. Ele acompanhou os moradores, benzeu as lavouras e as plantas vingaram, fortes e viçosas. Voltou feliz, trazendo um fogão à lenha como presente.

Hospital, apósquase 100 anos

que liberou auxílio de dois contos de réis para a obra. Conforme o pesquisador Ciro Saraiva, a presença de Jobim foi decisiva para a concessão do auxílio.

Ficou encarregado da planta o engenheiro João Martin Buff. A pedra fundamental, ao lado da capela do Senhor dos Passos, foi lançada em 1° de janeiro de 1848. A construção demorou 34 anos, mas a Irmandade não teve recursos para implementar o hospital. Enquanto os rio-pardenses não dispunham dele, a Irmandade recebeu, por doação, uma residência nas proximidades da Santa Casa, em Porto Alegre. os enfermos eram remetidos para lá. Só em 1930 ela pôde entregar um hospital para a comunidade.

Prédio vira escola militar

Curandeiro

Só na década de 1930 a cidade teve hospital

Após as batalhas na Revolução Farroupilha, iniciou-se mobilização pela casa de saúde BANCo DE IMAgENS/gS

de réis, à Sociedade Educacional Sagrado Coração de Maria, que ali instalou o Colégio Auxiliadora. o fato se concretizou em 1930.

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42 Uma luz para a história do Rio Grande

H ouve uma época, no Brasil, em que as mulheres não tinham acesso ao ensino superior. A primeira médica formada no País, a gaúcha Rita Lobato Velho Lopes, teve de vencer o preconceito para conquistar seu espaço. Ela foi a segunda mulher a

se diplomar em Medicina na América do Sul, depois da chilena Eloísa Dias Inzunza.

Rita nasceu na cidade de Rio grande, em 1866. os pais, Francisco Lobato Lopes e Rita Carolina Velho Lopes, transferiram-se para Pelotas quando ela tinha nove anos. Em 1879, um decreto imperial de Dom Pedro II trouxe “a liberdade e o direito de a mulher frequentar os cursos das faculdades e obter títulos acadêmicos”, algo até então proibido. Mas apesar do avanço, a sociedade ainda esperava das mulheres que elas se contentassem em exercer bem o papel de mães e esposas.

A Bahia e o Rio de Janeiro ofereciam os únicos cursos de Medicina do País. Rita Lobato começou os estudos no Rio, mas a hostilidade explícita de colegas e professores levou-a à Faculdade de Medicina da Bahia. Excelente aluna, venceu as desconfianças e se formou em tempo recorde: quatro anos em vez de seis. Em meio ao curso, sua mãe faleceu durante o parto da filha caçula. No leito de morte, Rita lhe prometeu que, quando se tornasse médica, não deixaria mulher nenhuma morrer daquela forma. Não por acaso, sua dissertação de conclusão de curso foi sobre a operação de cesariana.

Último endereço de Rita, na Júlio de Castilhos

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Rita Lobato Velho LopesGaúcha foi a segunda mulher na América do Sul a se diplomar em Medicina

o diploma foi emitido em 10 de dezembro de 1887. De volta ao Rio grande do Sul, a recém-formada se encontrou com o namorado de infância, Antonio Maria Amaro de Freitas. Em 1889 eles se casaram em Rio Pardo, cidade que escolheram para viver. Em 1890 nasceu a filha única, Isis. Rita chegou a clinicar em Porto Alegre durante algum tempo, como obstetra, mas retornou a Rio Pardo, onde trabalhou de 1910 a 1925.

Rita Lobato se sentia cansada em 1925. Depois de muitos anos dedicados ao atendimento da clínica domiciliar, ela doou todo o seu material cirúrgico à Santa Casa de Misericórdia, de Porto Alegre, e encerrou suas atividades.

No ano seguinte, sofreu um duro golpe com a morte de Antonio Maria, aos 65 anos. Morria o primeiro namorado e único companheiro de Rita. Com 67 anos ela resolveu abraçar a política e se filiou ao Partido Libertador (PL). Em 21 de agosto de 1935, elegeu-se a primeira vereadora de Rio Pardo e do Rio grande do Sul. Tomou posse no ano seguinte.

Após dois anos, o mandato foi interrompido bruscamente em 1937, quando a ditadura do Estado Novo fechou as Câmaras Municipais. Rita Lobato faleceu em 1954, aos

87 anos. Seu último endereço foi na Rua Júlio de Castilhos, no Centro da Cidade Histórica. “Como médica durante muitos anos cliniquei [...] cavalgando pelas coxilhas, afrontando as intempéries, levando conforto desde o lar do mais rico até o rancho do mais pobre”, disse ela em depoimento à Revista do globo, publicado em 15 de abril de 1950.

Em março de 2005, no Dia Internacional da Mulher, o Sindicato Médico do Rio grande do Sul (Simers) doou um retrato a óleo de Rita ao Museu Barão de Santo Ângelo, feito por gustavo Rigon. o museu também guarda objetos e documentos pessoais, como o diploma da Faculdade de Medicina da Bahia, e retratos a óleo de seus avós maternos, Luciana Teresa e Matias José Velho.

Pioneirismo na política

Rita Lobato

•• A casa guarda objetos

A médica Rita Lobato morou e teve consultório na Rua Júlio de Castilhos, 740. No local reside hoje o seu filho de criação, Getúlio Franco.Ele conta que nasceu na fazenda da médica, em Capivarita, e foi criado por ela. Recorda que era uma pessoa muito boa, que Rita atendia muitas pessoas, sem nada cobrar.Franco guarda muitos objetos que foram da primeira médica do Brasil. Quem visita a residência encontra, por exemplo, a velha balança onde ela pesava os bebês. Além disso, existem álbuns, quadros e móveis que pertenciam à família.Há também objetos pessoais, como um livro de orações, caneta, máquina de costura, um cofre de ferro, luneta, espada e outros. Getúlio Franco ainda conserva um grande baú de madeira, onde Rita guardou suas roupas e pertences pessoais quando foi estudar na Bahia.Getúlio, que tem 63 anos, explica que vários objetos foram doados para o Museu de História da Medicina do Rio Grande do Sul e para o Museu de Rio Pardo. Frisa que seu sonho é organizar, na casa, uma sala em que possa expor todos os objetos que conseguiu guardar.

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43Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

um médico eminente, devotado com incalculável amor leal à sua ciência e abnegado até o sacrifício pela causa de melhorar e curar não só o corpo mas a alma do próximo.Assim o

historiador Dante de Laytano define Luciano Raul Panatieri, considerado o primeiro médico negro do Rio grande do Sul.

Nascido em Porto Alegre em 1897, Panatieri formou-se pela Faculdade de Medicina (hoje integrada à ufrgs) em 1922. Viveu em Rio Pardo boa parte de sua vida. Seu pai era italiano, militar que veio ao Brasil atraído pela guerra do Paraguai. A mãe, negra, trabalhava como doméstica em Quaraí, fronteira com o uruguai. Luciano cursou o Colégio Júlio de Castilhos, em Porto Alegre. Queria ser engenheiro, mas Abrelina – a mãe – o convenceu a escolher a medicina. “Ela dizia que um negro, sendo engenheiro, jamais entraria na casa de alguém. Mas sendo médico, seria convidado a entrar na casa de todo mundo”, conta o neto Ramiro Tarantino Panatieri, que seguiu a profissão do avô e mantém um consultório em Rio Pardo, na Rua Andrade Neves.

Para pagar a faculdade, Luciano trabalhou como redator no Jornal do Comércio. Em 1923, foi aprovado no concurso para médico do Exército Nacional. Esteve em São Paulo e Mato grosso antes de ser transferido para Rio Pardo, em 1926, como médico militar do 2º Batalhão do 7º Regimento de Infantaria. Deixou a farda em 1930 e ficou no município, onde viveu por cerca de 20 anos. “Cidade que ele amava. Respeitava seu passado brilhante”, frisa Laytano. Panatieri integrou a primeira equipe de saúde do Hospital da Irmandade do Senhor dos Passos.

Mas era na clínica particular – também lar da família –, no casarão da esquina da Rua da Ladeira com Andrade Neves, que Luciano atendia a população. Ele escreveu artigos científicos de repercussão, como “Contribuição ao estudo dos problemas de alimentação no Rio grande do Sul”, publicado na Revista do Instituto Histórico e geográfico. Luciano Panatieri morreu em 1972, em Porto Alegre.

Panatieri, sua mulher Jaci Marques de Souza e três de seus dez filhos

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Elvira e Marta Panatieri nasceram na imponente casa da Rua da Ladeira, no cruzamento com a Andrade Neves. Ali, desde 1997, funciona o Espaço Cultural Panatieri, criado pelas irmãs para preservar a memória do pai, Luciano, e também a história de Rio Pardo. Elas moram em Porto Alegre mas todos os fins de semana, sem falta, abrem as portas do local à comunidade.

A casa guarda relíquias do século XIX e início do século XX, objetos artísticos e outros, doados ou adquiridos. Abriga exposições e eventos. Construída em 1798, hospedou o imperador Dom Pedro II em 1865. o primeiro proprietário foi Abílio Álvares Martins, juiz da comarca. No porão ainda se vê uma cela de confinamento, onde ficavam os escravos submetidos a castigos. A aquisição da moradia envolve uma história curiosa da vida profissional de Panatieri, ocorrida no interior de Rio Pardo.

um dos fazendeiros mais ricos da região tinha um problema sério: sua mulher, sempre que entrava em trabalho de parto, perdia a criança. Panatieri foi chamado para atender a mais uma tentativa da gestante. Espantou-se com a atitude do fazendeiro, que trancou a porta do quarto da esposa e lhe apontou um revólver. Transtornado, ele ameaçou que se o filho ou a mulher morressem, o médico iria junto. Este realizou o parto com sucesso e, serviço feito, teve outra surpresa quando o fazendeiro lhe pagou uma quantia vultosa. Segundo Elvira e Marta, foi com esse dinheiro que seu pai, mais tarde, adquiriu o casarão.

Local fica aberto nos fins de semana

O primeiro médico negro

Luciano Raul Panatieri viveu e trabalhou em Rio Pardo

Casa da família é espaço cultural

Elvira e Marta: memória preservada no casarão

da Rua da Ladeira

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44 Uma luz para a história do Rio Grande

Quinca, o boticário

uma das personalidades mais marcantes da história de Rio Pardo é o farmacêutico prático Joaquim Alves de Souza, o Quinca da Botica. Ele era irmão, por parte de pai, do médico

Protasio Antonio Alves, fundador da Faculdade de Medicina de Porto Alegre.

Joaquim nasceu em 18 de dezembro de 1831 e era filho do boticário (farmacêutico) rio-pardense Patrício Antônio Alves, formado no Rio de Janeiro. o nome da sua mãe é omitido nos registros históricos, mas, segundo consta, ela teria sido uma serviçal da casa de Patrício. o pai transmitiu aos filhos o gosto pela área da saúde: Protasio se tornou médico e Joaquim assumiu a farmácia – de onde se origina o seu apelido de Quinca da Botica.

Pesquisador da história local, Ciro Saraiva fez um estudo sobre a vida de Quinca, falecido em 6 de março de 1894. Em sinal de gratidão pelo trabalho prestado, a comunidade ergueu um jazigo para receber o seu corpo. Hoje o túmulo, junto ao Cemitério Municipal de Rio Pardo, está abandonado. A vegetação cresce no alto, o portão de ferro está arrombado e o interior do jazigo se encontra bastante sujo.

Durante muitos anos a botica de Quinca, na Rua Andrade Neves, foi a única da localidade. Por ocasião da sua morte, o rio-pardense João Martins de Menezes registrou que não havia, em Rio Pardo, um cidadão que não conhecesse e não devesse algum serviço a Quinca.

Vice-presidente da Câmara, foi responsável por receber a Princesa Isabel e o seu marido, o Conde D’Eu, na visita deles a Rio Pardo. o fato de Joaquim Alves de Souza ter sido vereador durante o Império demonstra que o boticário não era pessoa sem posses, pois a legislação da época exigia para o exercício legislativo que os ocupantes dos cargos pertencessem a famílias abastadas, com poder de voto. Além disso, Quinca era tenente da guarda Nacional. Na época era um título apenas honorífico, mas que garantia prestígio.

Percebe-se que Quinca, um mulato que chegou a ser presidente da Câmara de Rio Pardo – o que equivalia a prefeito – antes da Abolição da Escravatura, contava com a força política de sua família. Seu pai, Patrício Antônio Alves, também havia ocupado o mesmo cargo em 1842 e de 1844 a 1845.

Reconhecido e estimado, Quinca da Botica hoje dá nome à escola de Pederneiras.

Personagem popular na Rio Pardo do século XIX, Joaquim era irmão de Protasio Alves

Túnel misterioso: lenda ou verdade?

um túnel assombra Rio Pardo. Ninguém sabe se ele existiu, mas não se fala da cidade sem

mencionar suas possíveis trajetórias. Em uma delas, o túnel começaria onde hoje é o Centro de Cultura e de lá se comunicaria com a Igreja dos Passos, a Matriz e a São Francisco. Teria sido escavado pelos jesuítas, para que se livrassem dos portugueses. outra hipótese é de que o túnel teria sido feito em uma extensão de quase um quilômetro, entre a Fortaleza Jesus, Maria, José – onde em 1754 se instalou o Regimento de Dragões – e a Igreja de

Uma das supostas trajetórias do túnel, ligando as três igrejas históricas de Rio Pardo, em arte de Fernando Barros

São Francisco, outro ponto de referência dos militares, que frequentavam a irmandade. Seria, portanto, uma conexão entre dois locais de interesse do Exército, passando pela Igreja do Rosário, que fica no meio do caminho. o padre orlando

Pretto, que foi pároco da cidade durante mais de 21 anos (1967-1988), não crê na hipótese da passagem subterrânea. Ele lembra que em 1970/71 foi feita uma reforma na Matriz do Rosário e não foi encontrado qualquer sinal do túnel.

Joaquim Alves de Souza

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45Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

A maior avenida de Porto Alegre

tem o nome de um rio-pardense: Protasio Alves. uma das grandes figuras da história do Rio grande do Sul, o médico e político Protasio Antonio Alves nasceu em 21 de março de 1859, à Rua Andrade Neves, 162. A casa, ainda hoje perfeitamente conservada, era contígua à farmácia do seu pai – Patrício Antonio Alves, boticário rio-pardense nascido em 1807. Protasio tinha 5 anos de idade quando o pai faleceu. A mãe, Candida Carolina Alves, teve segundas núpcias com Estácio Francisco Pessoa, agente da Companhia Brasileira de Navegação.

Incentivado pelo padrasto, Protasio fez as primeiras letras e o curso secundário em Porto Alegre. Matriculou-se na Escola de Medicina do Rio de Janeiro e se formou em 1881.

Em 1883, aos 24 anos, o médico embarcou para a Europa e conheceu os grandes centros de Viena, Berlim e Paris, ficando dois anos em solo europeu. De

volta ao Brasil, abriu consultório em Porto Alegre e, em 1886, casou-se com geralda Cardia.

Protasio Alves realizou a primeira cirurgia cesariana em Porto Alegre. Chamado no Bairro Menino Deus para atender uma paciente, que estava para morrer, operou-a em uma mesa de cozinha. Salvou ela e o filho. o sucesso da operação contribuiu para torná-lo a maior autoridade em clínica obstétrica no Estado. Criou a Enfermaria de Partos no Hospital da Santa Casa de Misericórdia e melhorou o Serviço de Cirurgia de Mulheres – a Enfermaria 10, que recebeu seu nome. E os méritos do obstetra como administrador logo se tornariam, também, famosos.

“Veja como são as coisas: a minha vocação era a medicina, entretanto a política é que me absorveu sempre”, dizia Protasio Alves. Desde jovem, ele foi um membro ativo do Partido Republicano Rio-grandense (PRR). Com o advento da República, é nomeado delegado de Polícia por Júlio de Castilhos. Em 1891, é eleito deputado à Assembleia Constituinte Estadual do Rio grande do Sul.

Em 1906, no governo de Antonio Augusto Borges de Medeiros, exerce o cargo de secretário de Estado de Negócios do Interior e do Exterior, no qual permanece por mais de 21 anos. A essa secretaria estava vinculada a Direção da Instrução Pública, que ele também assume. Protasio realiza várias ações para o incremento da educação.

Protasio Alves chega ao ápice da sua carreira política em 1918, quando se torna vice-presidente do Estado. Ele exerce o cargo de 1918 a 1923 e de 1923 a 1928. Faleceu em 5 de junho de 1933, em Porto Alegre. Teve cinco filhos com geralda.

Um pioneiro da medicina

“A política me absorveu”

Casa onde nasceu Protasio em Rio Pardo

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Protasio Alves

Faculdade de Medicina de Porto Alegre

Além de médico, Protasio foi também militante político

•• A Faculdade de Medicina

Protasio Alves foi o primeiro diretor de Higiene do Estado (1891 a 1896). Uma de suas maiores contribuições foi a criação da Faculdade de Medicina de Porto Alegre, em julho de 1898, que originou as faculdades de Medicina e de Farmácia da Ufrgs. O processo ganhou forte impulso com a sua liderança. A meta era formar médicos para tratar os doentes nos lugares mais afastados da capital. O curso começou a funcionar em março de 1899.

Page 47: Rio Pardo 200 anos

46 Uma luz para a história do Rio Grande

Ao longo da história, a atitude diante da morte e dos mortos teve diferentes conotações. Durante o século XIX, a morte fazia parte do cotidiano. Diferentemente daquilo que acontece hoje, o moribundo falecia em casa, em meio a seus pertences, parentes e amigos e não no hospital, sozinho. os corpos eram velados no próprio lar. o óbito por doença era aceito com certa resignação porque permitia ao indivíduo se preparar para o inevitável. Muitos organizavam os rituais oralmente diante de familiares, amigos e do padre. outros deixavam as determinações por escrito.

Já a morte repentina, traiçoeira e inesperada, provocava sentimentos de não aceitação. Temia-se morrer sem os ritos costumeiros e sem uma sepultura adequada. Quanto mais gente presente aos atos fúnebres, maior o prestígio do morto e de sua família.

•• CóleraDurante vários períodos de sua história, o Rio Grande do Sul foi atingido por epidemias. Em Rio Pardo a varíola chegou primeiro, em 1859, quando houve uma grande campanha de vacinação. Mas foi o surto de cólera, em 1867, que traumatizou a comunidade. Foram acometidas pela doença 208 pessoas e ocorreram 57 óbitos. Os mortos foram enterrados em valas, sem caixão, e enrolados em lençóis no cemitério Moinhos de Vento, conforme documentação do Arquivo Histórico Municipal. Acredita-se que o local ficasse próximo da Fortaleza.

A morte aolongo do tempo

o Teatro Apolo, inaugurado em 1794 na Rua Assis

Brasil – hoje Almirante Alexandrino –, faz parte da época de glamour de Rio Pardo e era o local de exibição de peças teatrais, bailes e recitais. Foi um dos primeiros no interior do Estado e até 1917 se chamava Teatro Sete de Setembro. No passado, por algumas décadas, também abrigou um cinema com pianista tocando ao vivo, no período dos filmes mudos.

o prédio possuía três camarotes e galerias. Em 1952 foi destruído por um incêndio, restando apenas a fachada e algumas paredes externas. Remodelado, mantém apenas a fachada original e hoje abriga escritório e um prédio de apartamentos.

Soldados e civis, irmanados no burgo riograndense, ouviram missa, sermão e música; puseram máscaras, praticaram equitação e acenderam fogos e luminárias; representaram comédias e dançaram,

assistiram a touradas e corridas de cães. Uma festa grossa em suma, para amenizar a rude vida da fronteira. [...] No segundo dia à noite se encaminhou o sobredito Comandante com o povo ao teatro, onde se representaram por quatro noites comédias com maravilhosas danças.

A casa de espetáculos nos anos 1940, já em precário estado

Teatro Apolo, época de glamourCasa de espetáculos foi inaugurada ainda no século XVIII como Teatro Sete de Setembro

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Em 1794, quando a guarnição da fronteira de Rio Pardo era comandada pelo tenente-coronel Patrício José Correa da Câmara, havia muitas atividades culturais. Em correspondência publicada pela Gazeta de Lisboa, consta:

Como era

Fachada foi preservada

Page 48: Rio Pardo 200 anos

47Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

Até a metade do século XIX, os rio-pardenses enterravam seus mortos nas igrejas

ou o mais próximo possível delas. Era o lugar ideal para aguardar a ressurreição: em meio às imagens de santos. Ter uma cova no subsolo do templo era também uma forma de os mortos manterem contato com os vivos, que assim se lembravam de rezar e mandar ler missas pelos que já tinham partido.

A hierarquia social vigente na vida se refletia na morte. As famílias mais poderosas depositavam os restos mortais

de seus familiares nos lugares mais nobres do templo, que podiam ser na entrada ou próximo do altar-mor.

A partir da terceira década do século XIX, os enterramentos no interior de aglomerados urbanos passaram a ser condenados pela ciência, sob a alegação de que a decomposição dos cadáveres produzia gases ou eflúvios pestilenciais que atacavam a saúde dos vivos. Pregava-se que os cemitérios deveriam ser localizados fora das cidades, em lugares elevados e arejados, longe de fontes de água e com farta arborização para que ocorresse a limpeza do ar.

Novas regras para sepultarMédicos defenderam afastamento dos cadáveres

•• O Cemitério Municipal

Refletindo o que ocorria em todas as vilas e cidades brasileiras, a Câmara de Rio Pardo passou a regrar os sepultamentos obrigando padres, paroquianos e irmandades a largar o hábito de sepultar os mortos nos templos. Assim, em 10 de maio de 1851, o vereador Oliveira Lima pede que seja comunicada ao vigário a proibição de qualquer enterro no cemitério da matriz,

Pórtico do Cemitério

Municipal de Rio Pardo

acordado que um quarto da área doada ficaria reservado para os irmãos das irmandades eretas na igreja Matriz, que eram: Nossa Senhora do Rosário, Santíssimo Sacramento, São Miguel e Almas, Nossa Senhora das Dores e Passos, Nossa Senhora do Rosário dos Pretos e Divino Espírito Santo. Dentre tantos que ali foram enterrados, encontram-se as sepulturas de Ernesto Alves de Oliveira e de Manoel de Araújo Porto-Alegre, Barão de Santo Ângelo, que foi um grande artista no tempo do Império e aluno de Debret.

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•• Campos santosNo Império, ainda antes da secularização dos cemitérios, existiram em Rio Pardo o Cemitério da Matriz, o do Senhor dos Passos, as Catacumbas da Ordem Terceira de São Francisco, o Moinhos de Vento e o da Aldeia de São Nicolau. No interior havia os cemitérios do distrito de Cruz Alta e os existentes em fazendas. Mas eram encontradas, igualmente, sepulturas espalhadas pelos campos. As Catacumbas da Ordem Terceira de São Francisco se localizavam nos fundos do templo, mas hoje não restam sequer escombros das sepulturas. Ali foram enterrados os devotos da Ordem Terceira, dentre os quais os Pinto Bandeira. Felisberto Pinto Bandeira, que foi ministro da Ordem, está sepultado no adro da Igreja de São Francisco. Na lápide aparece a data de seu falecimento: 28 de setembro de 1831. O Cemitério da Irmandade do Senhor dos Passos se situava nos fundos do templo. Ali foram sepultados muitos dos irmãos da irmandade, dentre os quais João de Deus Mena Barreto, Visconde de São Gabriel. No portal da igreja está enterrado Patrício José Correa da Câmara, primeiro Visconde de Pelotas. O Cemitério da Aldeia de São Nicolau surgiu para o enterro de índios cristianizados que ali viviam, mas também abrigou pobres que não pagavam as taxas paroquiais. Atualmente é o cemitério da comunidade. Do antigo cemitério que havia nos fundos da Matriz, não sobraram sequer vestígios.

podendo os enterramentos, de agora em diante, serem feitos no Moinhos de Vento, no antigo cemitério, até que se prontifique a edificação do Cemitério Público. O Cemitério Municipal da cidade foi estabelecido no Potreiro de Nossa Senhora. Surgiu da doação de um terreno de mil palmos quadrados que as irmandades do Santíssimo Sacramento e de Nossa Senhora do Rosário fizeram, em 1862, à Câmara de Rio Pardo. Na ocasião, ficou

Page 49: Rio Pardo 200 anos

48 Uma luz para a história do Rio Grande

ARSÈNE ISABELLE

A partir do final do século XVIII e início do século XIX, com o advento do Romantismo e o notável progresso das ciências naturais, passou a haver na Europa um grande interesse pelas terras e populações distantes. Esse redescobrimento

do mundo motivou escritores e naturalistas a percorrerem

regiões ainda pouco conhecidas, deixando registros sobre elas em crônicas e relatos de viagens. Vários foram os viajantes que passaram por Rio Pardo durante o século XIX. Eles deixaram relatos interessantes e importantes a respeito da paisagem, da economia e dos costumes dos rio-pardenses.

o francês Arsène Isabelle viajou pelo Rio grande do Sul entre novembro de 1833 e junho de 1834. Seus apontamentos ficaram registrados em Viagem ao Rio Grande do Sul.

Estando em Rio Pardo em março de 1834, Isabelle vislumbrou chácaras bem cuidadas e prósperas. Mencionou o cultivo de milho, algodão, mandioca, fumo e alguns legumes. Realizou uma descrição da vila, que qualifica como sendo “graciosa”. Mas seu foco foi o desenvolvimento comercial da localidade:

SAINT-HILAIRE

1821Senhoras distintas e

educadas

NICOLAU DREYS

1839

Dreys é mais um dos viajantes franceses que passaram por Rio Pardo no século XIX. Seus apontamentos sobre a sociedade rio-grandense são datados da segunda metade da década de 1830 e aparecem no livro Notícia descritiva da Província do Rio Grande de São Pedro do Sul. Nas suas breves descrições sobre a Vila de Rio Pardo, Dreys relata o elevado número de prédios que se encontram na vila, sinal de sua importância para a Província. Nesse sentido, ressalta a velha rivalidade entre rio-pardenses e porto-alegrenses para saber qual das duas urbes era a mais importante. o comércio também foi alvo de seus escritos.

Destacou que, apesar de a cidade ter um comércio muito vivo e de ser importante na distribuição de mercadorias para o interior do Estado, dependia bastante da capital:

A vila do Rio Pardo está longe de desfrutar a fartura que se observa

em Porto Alegre; os trabalhos agrícolas de seus próprios

cidadãos, ou de seus vizinhos satisfazem uma parte de suas precisões, mas em geral ela recebe de Porto Alegre, além das fazendas e todos os mais produtos

da indústria europeia, os víveres que lhes faltam, maiormente os vinhos, os

espíritos, os açúcares e todos os gêneros alimentícios que o território não fornece, menos talvez por falta de propriedade,

do que por insuficiência de trabalhadores; o trânsito dos objetos importados efetua-se

pelo Rio Jacuí.

A rivalidade entre Rio Pardo e Porto Alegre

Entreposto comercial de mercadorias

o botânico Auguste de Saint-Hilaire percorreu diversas províncias brasileiras entre 1816 e 1822. Sua passagem por Rio Pardo ficou registrada em Viagem

ao Rio Grande do Sul (1820-1821). Passando

pela cidade em 1821, ele centrou suas observações sobre

a cidade, o comércio feito no porto e o comportamento da sociedade rio-pardense. Saint-Hilaire se admirou com as casas do Centro da cidade. Segundo o viajante, “quase todas as que anunciam abastança têm sacadas envidraçadas”.

Também fez críticas quanto à logística e o planejamento da cidade:

Embora seja Rio Pardo uma localidade rica e comercial, nada se fez até agora para facilitar o

desembarque de mercadorias. Não se cogitou de fazer um rampado à margem do rio e a rua de acesso ao porto não é calçada, além de ser muito íngreme e mal conservada.

1834

A cidade vista pelos viajantesEscritores e naturalistas deixaram relatos sobre suas impressões acerca de Rio Pardo e do Rio Grande do Sul

observou também os modos das senhoras da vila, pois já lhe tinham dito que as mulheres possuíam maneiras “agradáveis” como as de Montevidéu. Mas isso ele somente pôde comprovar pela mulher e as filhas do sargento-mor, que se mostraram

muito distintas e educadas

As comunicações com a capital eram rápidas:

O transporte de mercadorias pesadas é feito por barcos de

coberta, com vinte toneladas; as mercadorias leves e

de pequeno volume, e os viajantes, são transportados

em grandes pirogas armadas em

barcos.

O comércio é próspero, porque este ponto é o armazém de abastecimento das cidades

e vilas do norte e oeste; dali partem continuamente tropas de mulas e carretas para todas as povoações do interior.

Page 50: Rio Pardo 200 anos

49Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

Robert Avé-Lallemant nasceu em Lubeck, Alemanha. Foi médico e clinicou por vários anos no Rio de Janeiro. Mas foi também um cientista e literato. Em seu diário intitulado Viagem pela Província do Rio Grande do Sul (1858), deixou uma série de observações interessantes.

Na sua passagem por Rio Pardo, ele nota as dificuldades econômicas que a cidade atravessa:

Joseph Hörmeyer chegou à Província em 1851 como integrante dos Brummers e, em seus escritos, se empenhou em fazer propaganda favorável do País entre

os emigrantes. O que Jorge conta sobre o Brasil é publicado em 1863 na Alemanha. Ao relatar uma hipotética viagem que sua família fizera de Rio Pardo à colônia de Santa Cruz, deixa uma extraordinária descrição de como era um carro de bois em meados do século XIX.

Uma carreta é uma espécie de arca de Noé sobre rodas. (...) Essa arca gigantesca, onde se instalam camas, e ainda podem ser

conduzidas mercadorias e são albergadas famílias inteiras, repousa sobre uma pesada trave, em cujas extremidades estão fixados discos de madeira, que representam as rodas. Os discos são bem redondos e a madeira tem a espessura de 5 a 6 polegadas. O eixo gira com as rodas e nunca é lubrificado, de modo que o atrito gera um ruído intolerável, que se ouve e se reconhece a grande distância. As rodas por vezes têm 6 pés e mais de altura, a fim de que a carreta possa atravessar os pequenos riachos sem molhar-se. Serve de lança uma forte viga de 6 a 8 polegadas de diâmetro. São atrelados bois, por vezes 10 ou mais juntas. (...) Dizem os brasileiros, com toda a seriedade, que os bois deixariam de andar se se abafassse o ruído do carro untando o eixo com sebo.

1845

Em 1845, o viajante belga A. Baguet cruzou de Leste em direção ao Oeste a Província

gaúcha para chegar ao Paraguai. Suas anotações deram origem ao escrito Viagem ao Rio Grande do Sul. Em finais de setembro, vindo

de Porto Alegre pelo Rio Jacuí, chega a Rio Pardo, vila que qualificou como encantadora. Ali é recebido por José Joaquim de Andrade

Neves, que havia se destacado nos anos antecedentes pelas ações militares contra

os farroupilhas durante a Revolução. Ao lado deste, escuta alguns trechos de música à noite,

enquanto tomam a fresca.

Uma vila encantadora e a acolhida de Andrade Neves

1863Propaganda para atrair alemães

para o Brasil

>>AVÉ-LALLEMANT 1858Navegação a vapor determina fim da fase rica da cidade

Brasil: terra e gente, 1871, de Oscar Canstatt, foi publicado pela primeira vez na Alemanha, em 1877. Paladino

da colonização alemã no Brasil, visitou inúmeras colônias, dentre as quais as de Santa Cruz e de Monte Alverne. Ao cruzar por Rio Pardo em meados da

década de 1870, percebeu que a cidade não tinha mais a pujança de outrora:

A cidade parece ser uma das mais antigas povoações da província, mas perdeu muito do antigo brilho e importância. (...) as ruas,

regulares e em parte calçadas, com as suas bonitas casas, muitas igrejas, etc., diante das quais hoje o capim cresce viçoso, dão

testemunho da sua prosperidade de outrora. Nas casas que podem abrigar talvez 4.000 pessoas, moram hoje pouco mais de 1.000, e toda sua magnificência de séculos passados está hoje coberta por

trepadeiras bravas, musgo e mato. As ruas desertas, as paredes pardacentas e as casas meio arruinadas, que tanto teriam que

contar se pudessem falar, deixaram-me melancólico (...).

>>CANSTATT 1877Testemunho de uma prosperidade que ficou no passado

>>JOSEPH HÖRMEYER

A. BAguET

É talvez a cidade mais velha da Província e já em tempos anteriores se desenvolveu com felicidade. Rio Pardo tornou-se e foi o ponto central do alto Jacuí. Sendo o caminho para Porto Alegre muito difícil às suas atividades,

negociantes e artífices estabeleceram-se em grande número no terreno circunvizinho, surgindo, assim, muitas e importantes casas comerciais. O desenvolvimento da navegação, mormente a vapor, trouxe grande prejuízo a esse comércio de intermediários. Os proprietários de terras e os habitantes de lugarejos, que antes quase não podiam pensar em visitar a capital da Província, podiam agora descer o rio com facilidade e rapidez. Deixavam de lado Rio Pardo e iam a Porto Alegre, para fazerem lá as suas compras; seguiram-nos os negociantes, que estabeleceram o seu comércio em Porto Alegre, concorrendo para o desenvolvimento da cidade, enquanto Rio Pardo era abandonada.

Afirmou verem-se em toda a parte vestígios desse abandono:

Enquanto uma ou outra das ruas principais apresenta quarteirões inteiros de casas até magníficas residências, várias travessas são formadas de fileiras muito interrompidas de edifícios de muitas janelas e bastante compridos, e

vazios. Não mais funcionam as casas comerciais do andar térreo, a parte superior está desabitada; com as casas em ruínas, perde-se um bom capital.

Page 51: Rio Pardo 200 anos

50 Uma luz para a história do Rio Grande

Rio Pardo teve sua esquina democrática, o Café Gaúcho. Entre um cafezinho, uma cerveja gelada e um peixe frito, o local reunia desde fazendeiros e políticos renomados até carnavalescos, que ali decidiam os melhores temas para levarem à avenida.

No início, ele dividia preferência com o Café Central. Com o passar do tempo, este foi desativado e o local de encontro passou a ser o Gaúcho, propriedade de João e Brunilda Iser. Ali se encontravam políticos, comerciantes, aposentados, fazendeiros e as pessoas mais simples da cidade. Quando o assunto exigia privacidade, os políticos ocupavam o reservado. As rodas de cafezinho se organizavam conforme os assuntos – política, futebol,

carreiras, rinha de galo, Carnaval, mulheres e outros temas.

Dentre as muitas figuras típicas que frequentavam o café, destaca-se o fazendeiro João Carvalho, um dos fundadores da Cooperativa Pastoril de Rio Pardo (hoje Frigorífico 3 C). A partir das 16 horas, ele tinha mesa cativa no local. Era de poucas palavras, mas sempre cercado de amigos. Outro que marcou época foi Apeles de Quadros, político e secretário de Estado no governo de Leonel Brizola. Estava sempre rodeado por amigos e pessoas que buscavam informações e conselhos. Com um lápis, anotava tudo e, quando necessário, passava suas orientações por escrito.

Hotel Provitina na década de 1920

A esquina democrática

Nos tempos em que o trem era o principal meio de transporte, o hábito daqueles que paravam na estação de Rio Pardo era subir cerca de duas quadras para se hospedar no hotel da Rua 15 de Novembro, atual Rua João Pessoa. O prédio de 24 aposentos foi construído no início de 1800 e se encontra registrado na primeira planta da cidade, elaborada pelo engenheiro João

Martinho Buff, em 1829.Teve como primeiro

nome Hotel Provitina, que perdurou até o final da década de 1920. Nos anos 30 e 40 se chamou Hotel Moderno, e depois recebeu o nome de Hotel Centenário – quando foi de propriedade de Biagio Tarantino – até a sua desativação, no final do século XX. Nas décadas mais recentes, era também conhecido como Hotel do Biagio.

A casa dos viajantes

Nas décadas de 1940, 1950 e 1960, não houve grande espetáculo exibido em Porto Alegre ou Argentina que também não passasse por Rio Pardo. Mais especificamente pelo Cine Coliseu Rio-pardense, de propriedade do cachoeirense

Jorge Comassetto. Inaugurado em 1937, era um cinema com 600 lugares que funcionava também como teatro e casa de espetáculos. Por lá se apresentaram alguns dos mais célebres atores brasileiros do período, como Oscarito, Procópio Ferreira, Tônia Carrero, Dercy Gonçalves e outras celebridades.

O Coliseu já impressionava pela fachada imponente. O prédio construído na Rua Andrade Neves, esquina com General Osório – mesmo local onde existe hoje a Câmara de Vereadores – , tinha um estilo neoclássico, com colunas romanas e visual art-déco. Os equipamentos eram de ponta, importados da Itália. O Coliseu foi o primeiro cinema do interior do Estado com som estereofônico e um dos primeiros a utilizar lentes anamórficas.

Conforme o advogado Jorge Comassetto Jr., filho do proprietário, falecido em 1971, o prédio possuía um gerador de energia próprio. Assim, mesmo quando faltava luz na cidade, as sessões continuavam. O Coliseu também destinava espaço generoso aos filmes europeus: em certa época, as terças-feiras eram reservadas para produções francesas e as quintas, para as italianas.

Mas o tempo passou e a televisão dominou o mercado. Depois do falecimento do proprietário, Comassetto Jr. assumiu a empresa e decidiu vendê-la em 1974. Com novo dono, o cinema ainda funcionou até o início da década de 1980, quando fechou definitivamente as portas. Mais tarde, o prédio foi demolido. Restaram só fotos amareladas e lembranças dos dias de glória do Cine Coliseu.

Nos tempos do ColiseuCinema não resistiu à concorrência da televisão

Prédio em estilo neoclássico movimentou a vida cultural no município

BANCO DE IMAGENS

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Page 52: Rio Pardo 200 anos

51Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

Na primeira metade do século XX os carnavais de salão de Rio Pardo eram de grande ostentação e luxo. O Clube Literário recebia decoração especial e os blocos exibiam fantasias que realmente impressionavam pela beleza, esmero e suntuosidade. A explicação para esses shows de brilho era a grande competição que existia entre os blocos. Os dois principais grupos eram o “Olha o Grupo” e o “Tem Gente Ahi”. A competição era tal que os membros eram obrigados a experimentar a fantasia com vendas nos olhos, para não haver o risco de que detalhes sobre a veste chegassem ao conhecimento dos rivais.

Nesses anos, ser rainha do Carnaval era um posto cercado de muita pompa. Além de usar uma fantasia luxuosa, a rainha era buscada em casa por uma cavalaria e conduzida em carro aberto até o clube, passando pelas ruas centrais da cidade. Sua chegada ao clube era aguardada por todos, pois era ela quem autorizava o início da folia.

No final do século XIX, começaram a aparecer os cordões carnavalescos. Eram formados por foliões mascarados com feições de velhos, palhaços, diabos, reis, rainhas, índios, baianas e outros personagens. Esses grupos eram conduzidos por um mestre, ao comando de um apito. Em Rio Pardo existiam duas sociedades culturais rivais, a Sempre Viva e a Açucena. Não tinham vínculo carnavalesco, mas foi através delas que surgiram os primeiros cordões, por volta de 1920. Quando foram extintas, os integrantes da Açucena formaram o cordão “Tem Gente Ahi”, enquanto a sociedade Sempre Viva formou o “Olha o Grupo”. Esses blocos herdaram a rivalidade das duas antigas sociedades.

Nos primeiros tempos, não existia Carnaval de rua, apenas o desfile dos cordões se dirigindo aos clubes.

Os blocos e os cordões carnavalescos, tradicionais no final do século XIX e primeira metade do século XX, deram origem às escolas de samba. No início, esses grupos incorporavam músicos e saíam às ruas, tocando e cantando marchinhas.

Em Rio Pardo, onde os blocos já saíam em 1920, as escolas com batucada surgiram na década de 1950 com a Unidos da Velha Guarda. Ela percorria as ruas e animava o povo, mas sem a organização e as alas que se conhece hoje.

Marcou época na Velha Guarda um ritmista muito popular: Airton Charão da Costa, conhecido como Mestre Caçarola. Ele desfilava com uma caçarola de ferro e fazia o ritmo usando uma baqueta. De tempos em tempos, arrastava a panela nas pedras das ruas, fazendo sair faíscas e arrancando aplausos do público. Costa foi um dos fundadores da Embaixadores. Até hoje, a bateria da escola é chamada Bateria Mestre Caçarola.

Em 1959, ocorreu a primeira reunião para fundar a Candangos. Ela era formada, na maioria, por frequentadores do Clube Literário e considerada de classe média. O professor Nílvio Luiz Castanheiro da Silva, conhecido por Carrasco, foi um dos fundadores. No início, era uma escola mirim. Mas seus integrantes foram se tornando adultos, trouxeram namoradas, amigos e a escola cresceu.

Hoje ela é a mais antiga em atividade, mesclando moradores do Centro e dos bairros. Além da Velha Guarda e da Candangos, na época ainda surgiu a Black Boys, que não durou muito. Já em 1968 apareceu a Embaixadores do Ritmo, integrada, basicamente, por moradores dos bairros. Nasceu forte e logo se tornou a grande rival da Candangos.

•• Como é hoje

Desfile das escolas atrai turistas

Bloco Olha o Grupo, um dos mais tradicionais, em 1941

Carnavais de salão

Cordões e blocos

Blocos foram o embrião de um animado Carnaval de rua

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Escolas surgemnos anos 1960

Hoje, o Carnaval de Rio Pardo conta com as escolas Candangos, Embaixadores do Ritmo e Realeza da Vila, unidos de Santa Luzia, Enamorados e unidos da Vila guerino e SRC união de Ramiz. Os blocos mais importantes são o Pirilampos, Sacarrolha e Tentação. Mas existem ainda dezoito grupos que se apresentam na Rua Andrade Neves.

Page 53: Rio Pardo 200 anos

52 Uma luz para a história do Rio Grande

No ano de 1715, Francisco de Brito Peixoto, então capitão-mor da Vila de

Laguna, Santa Catarina, recebeu ordens do governo português para identificar lugares onde estabelecer um território que os portugueses pudessem explorar. Até então, o Rio Grande do Sul estava fora do domínio português. Ao chegar em Rio Pardo, Peixoto percebeu que ali era o lugar ideal a ser ocupado, pois facilitaria defesas. Conta-se que teria sido dele o nome “Pardo”: ao avistar um rio de águas barrentas, Francisco o teria chamado de Rio Pardo. O lugar era formado por campos e matas, circundado por dois rios que possibilitariam a defesa contra inimigos, tendo ainda uma forte elevação de onde se podia ver muito longe, em direção ao Sul. O espaço era propício para a concentração de forças militares. A partir do surgimento do posto militar, a localidade foi denominada acampamento de Rio Pardo, depois fortaleza de Rio Pardo, freguesia, povoado e finalmente, em 7 de outubro de 1809, município de Rio Pardo – um dos quatro primeiros do Rio Grande do Sul.

Lugar idealpara um Forte

A ORgANizAçãO POLíTiCA

O surgimento da povoação; a instalação da vila e da Câmara de Vereadores; as marcantes visitas de D. Pedro II a Rio Pardo; o conturbado período entre o fim doImpério e a Proclamação da República.

Fonte: Elaborado a partir do DEE (1943)

Page 54: Rio Pardo 200 anos

53Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

O povoado de Rio Pardo se desenvolveu no entorno da Fortaleza Jesus, Maria, José. Passou a ser capela curada pela Portaria Eclesiástica de 15 de

dezembro de 1762. Em 1769, pela Provisão Eclesiástica de 8 de maio, tornou-se a freguesia de Nossa Senhora do Rosário e foi elevada à categoria de vila pela Provisão de 7 de outubro de 1809. Além de Rio Pardo, a provisão criava mais três vilas no que então se denominava Capitania de São Pedro do Rio Grande do Sul: Santo Antônio da Patrulha, Rio Grande e Porto Alegre (as duas últimas já

Nome com o qual é denominado o Rio Grande do Sul antigo em uma série de documentos e mapas. A expressão “Continente” se refere à formação geográfica da região, onde predominam extensas planícies de terras contínuas. Rio Grande advém do grande rio (na realidade a Laguna dos Patos) com o qual os primeiros exploradores da costa gaúcha se depararam, ao adentrarem pelo canal que ligava o Oceano Atlântico à Laguna dos Patos. Já São Pedro é uma referência ao santo padroeiro, protetor do Rio Grande do Sul.

•• Como ficouCumpridas as instruções contidas na Provisão de 1809, ficou Rio Pardo com a seguinte organização administrativa-territorial:

Sede: Nossa Senhora do Rosário do Rio Pardo. Freguesias: Nossa Senhora da Conceição de Cachoeira; Santo

Amaro; São José do Taquari. Capelas: Santa Bárbara da Encruzilhada; Nossa Senhora da

Assunção de Caçapava; Santa Maria da Boca do Monte. Povoados: Nossa Senhora do Rosário de São gabriel; Sete Povos

das Missões.

•• Saiba mais Povoado: aglomerado de moradias que

só se transformava em vila quando recebia uma Câmara de Vereadores.

Capela curada: capelas ministradas, em caráter permanente, por um pároco ou cura.

Freguesia: era uma circunscrição eclesiástica com área territorial delimitada, que tinha por sede uma igreja matriz com padre residente onde se registravam os batizados, casamentos e óbitos.

Vila: a expressão vila se referia à sede de um termo, território sobre o qual era exer-cida a jurisdição civil e judiciária de uma Câmara.

•• Os nomes do Rio Grande do SulContinente de São Pedro

Auto de Criação desta nova Vila do Rio Pardo e levantamento do Pelourinho

Ano do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil oitocentos e onze anos, aos vinte de maio do dito ano, nesta Vila de Nossa Senhora do Rosário do Rio Pardo, onde foi vindo o Doutor Ouvidor Corregedor desta Comarca, Antônio Monteiro da Rocha, comigo Escrivão, sendo ai por ele foram convocadas todas as pessoas da Nobreza e Povo, estando todos presentes se levantou o Pelourinho com as exignas competentes que denotam a Jurisdição Real a cujo ato se alternaram por três vezes as palavras: Viva o Príncipe Regente Nosso Senhor. E levantado assim com esta solenidade o dito Pelourinho, ouve ele Ministro por formada esta nova Vila e mandou fazer este auto em que assinou com a Nobreza e Povo que presente se achava. Eu Guilherme Ferreira de Abreu, Escrivão da Ouvidoria e Correição da Comarca o escrevi e assinei.

De capelacurada a vilaPovoação foi uma das quatro primeiras vilas do RS

eram vilas há mais tempo, mas foram incluídas no documento). Coube ao governador da Capitania, Paulo Gama, o empenho perante o

governo de Lisboa para que o território rio-grandense fosse subdividido em quatro distritos judiciários. Em representação encaminhada ao ministro do Príncipe Regente, D. João, ele expôs o inconveniente de não haver, na extensa área de seu governo, vilas e instâncias judiciárias para coibir os abusos e impunidades. No documento, para homenagear D. João, Paulo Gama também sugeriu trocar o nome de Rio Pardo para Vila do Príncipe. O pedido da divisão territorial-administrativa seria atendido anos depois, mas a mudança do nome não se concretizou.

Comandância Militar do Rio grande de São Pedro de 1737 a 1760

Capitania do Rio grande de São Pedro de 1760 a 1807

Capitania de São Pedro do Rio grande do Sul de 1807 a 1822

Província do Rio grande de São Pedro do Sul de 1822 a 1889

Estado do Rio grande do Sul de 1889 aos dias atuais

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54 Uma luz para a história do Rio Grande

Conforme o historiador Adriano Comissoli, as eleições para cargos de oficiais da Câmara (o equivalente aos atuais vereadores) eram trienais e seguiam um complicado sistema de indicação indireta. Em um primeiro momento, o conjunto dos “homens bons” elegia seis representantes dentre seus pares, designados de eleitores. Estes eram distribuídos em duplas. Cada dupla era responsável por organizar uma lista com os nomes dos “homens bons” que deveriam ocupar os cargos de vereança. As três listas produzidas eram então fechadas em bolas de cera, chamadas de pelouros, depois guardadas dentro de um cofre.

No final de cada ano um menino, aleatoriamente escolhido, retirava um dos pelouros do cofre. Uma vez aberto o pelouro, os nomes contidos na lista eram revelados e se conhecia, assim, os ocupantes dos cargos no ano vindouro. Eram chamados de oficiais de pelouro. Se por qualquer motivo um dos escolhidos não assumisse o posto, os oficiais da Câmara nomeavam um substituto chamado oficial de barrete. Os oficiais não eram remunerados, mas o exercício da função lhes conferia prestígio. Além deles, também integravam a Câmara os dois juízes ordinários.

Embora tenha sido criado em 1809, o município de Rio Pardo só foi instalado a 20 de maio de 1811. O ato foi assinado pelo ouvidor corregedor da Comarca, Dr. Antônio Monteiro da Rocha, e seu escrivão, Guilherme Ferreira de Abreu, seguindo-se 42 assinaturas.

A Câmara de Rio Pardo inicialmente funcionava no prédio que abriga hoje o Museu Municipal, na Rua Andrade Neves, entre as ruas João Pessoa e Senhor dos Passos. A cadeia municipal e a Câmara

funcionavam no mesmo local. O imóvel foi doado pelo capitão-mor Manuel de Macedo Brum Silveira. Em janeiro de 1813, ocorreu a escritura de doação do prédio.

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1822 – Brasil fica independente de Portugal. 1824 – Constituição estabelece a monarquia como forma de governo. O Rio Grande do Sul passa a ser uma das províncias do Império do Brasil. De 1822 até 1889, ano da Proclamação da República, é denominado de Província do Rio Grande de São Pedro do Sul.

1889 – Proclamação da República. As províncias passam a constituir os Estados Unidos do Brasil. O Rio Grande do Sul passa então a se chamar Estado do Rio Grande do Sul. O Poder Executivo é exercido pelo presidente de Estado.1930 – Getúlio Vargas assume o poder central e os estados passam a ser administrados por governadores. 1937 – Getúlio implanta o Estado Novo e substitui os governadores por interventores. 1945 – Com a redemocratização do País, os Estados federados voltam a ser dirigidos por governadores.

1737 – É criada a Comandância Militar do Rio Grande de São Pedro, subordinada à Capitania do Rio de Janeiro. 1760 – Após o término do conflito contra os índios dos Sete Povos, o governo português eleva as terras do atual Rio Grande do Sul à condição de Capitania do Rio Grande de São Pedro. A nova capitania continua subalterna à do Rio de Janeiro.1807 – O Rio Grande do Sul é elevado à categoria de Capitania Geral. A denominação é, então, mudada para Capitania de São Pedro do Rio Grande do Sul. Desaparece a subalternidade em relação ao Rio de Janeiro e o Rio Grande do Sul passa a ser uma capitania autônoma.

Colonial

Imperial

Republicano

Câmara é instaladaAto ocorreu em 20 de maio de 1811. Vereadores eram escolhidos indiretamente

Prédio onde funcionou a primeira Câmara de Vereadores de Rio Pardo, na Rua Andrade Neves

Indicação indireta

•• Períodos no RS

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55Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

Antes de 1822, ou seja, enquanto o Brasil ainda era colônia de Portugal, as câmaras constituíam um dos mais importantes espaços de expressão política das elites coloniais. O historiador Adriano Comissoli explica que o preenchimento dos cargos das câmaras ficava restrito aos “homens bons”. Os “homens bons” eram os chefes de famílias abastadas e respeitáveis, habilitados a votar. Exigia-se que tivessem mais de 25 anos, que fossem casados ou emancipados, católicos e sem “impureza de sangue” – o que significa sem mestiçagem racial.

Era imprescindível ainda que possuíssem cabedais, o que significava, geralmente, serem proprietários de terras e de escravos. Portanto, a condição de cidadania, salienta o pesquisador, não era vista como um direito mas como privilégio a ser desfrutado por uma minoria. O desempenho de cargos na Câmara conferia prestígio e privilégios aos seus membros e aparentados, que formavam redes de poder e operavam através delas. Assim puderam se apropriar de terras, de informações privilegiadas e de bens públicos.

Diferentemente do que ocorre hoje, as antigas câmaras possuíam uma enormidade de funções administrativas e judiciais. Eram de sua competência, entre outras: a denúncia de crimes e contravenções; o julgamento de crimes; o inventário e a guarda dos bens dos órfãos; a guarda e o sustento de expostos; a elaboração de códigos de posturas; a fiscalização do uso adequado de pesos e medidas, exercício de profissões, obras, higiene e de regulamentos; o policiamento; a execução de obras públicas; a aplicação e o recolhimento de multas e a vigilância para o abastecimento de alimentos das vilas.

Cadeiras da Câmara, também utilizadas na primeira visita de D. Pedro II, em 1846

•• Entenda como funcionava

Apenas “homens bons”

Muitas funçõesEm 1737 ocorreu em Rio Grande de São Pedro a fundação do

forte militar Jesus, Maria, José. Ali se desenvolveu uma povoação que, em 1747, foi erigida à condição de vila, passando a abrigar todos os órgãos administrativos dos domínios portugueses da Comandância Militar. Porém, a Câmara foi instalada somente em 1751. Com a conquista castelhana do Rio Grande, ocorrida a partir de 1763, as instituições e as autoridades portuguesas se transferiram para a freguesia de Viamão que, por alguns anos, se tornou a capital da Capitania. Em 1773 a Câmara, mais a casa do governador, a provedoria da Fazenda Real e a vara do juízo eclesiástico foram novamente transferidas. Passaram para Porto Alegre que, desde então, é a capital do Rio Grande do Sul.

Primeira Câmara

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56 Uma luz para a história do Rio Grande

Foi outorgada em 25 de março de 1824. Estabeleceu, entre tantas outras, as seguintes condições:

•• A divisão do território em províncias. Em cada província havia um presidente, nomeado pelo Imperador, e um Conselho geral de Província. O Conselho geral da Província do Rio grande do Sul era integrado por 21 membros. As sessões duravam dois meses a cada ano, prorrogáveis por mais um mês.•• O governo monárquico, hereditário, constitucional e representativo.•• Que a religião católica apostólica romana seria a religião do império. Todas as outras religiões eram permitidas com o seu culto doméstico ou particular, em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior de templo.•• A adoção de quatro poderes: Executivo, Legislativo, Judiciário e Moderador. O poder moderador era a chave de toda a organização

Além dos vereadores, a Câmara era formada por:•• um secretário, que tinha como função a escrituração de todo o expediente, passar certidões e manter os livros. Recebia uma gratificação anual.•• um procurador para arrecadar e aplicar as rendas e multas destinadas às despesas da Câmara. Recebia até 6% de tudo quanto arrecadava.•• um porteiro e, se necessário, ajudantes. Recebiam gratificação anual.•• fiscais e suplentes para fazer cumprir os regulamentos na cidade ou vila, e também nas freguesias.

política e era delegado ao Imperador, como chefe supremo da nação e seu primeiro representante. •• A centralização do poder com vistas à manutenção da unidade das províncias. Cabia ao imperador nomear os presidentes de províncias e os ministros.

•• A existência de um legislativo bicameral formado por uma Câmara de Deputados e um Senado. A Câmara dos Deputados era eletiva e temporária. Para ser deputado, era preciso ter uma renda anual não inferior a 400 mil réis. O senado era formado por membros vitalícios. A escolha de senadores era feita pelo monarca, a partir de uma lista tríplice dos mais votados em eleições provinciais. Para ser um senador, era preciso ter uma renda anual não

inferior a 800 mil réis.•• O voto censitário

e restrito aos homens. Para poder participar de eleições primárias, era necessário ter um rendimento anual não inferior a 100 mil réis. ••Um Conselho de Estado formado por um número não superior a 10 conselheiros. Eles eram vitalícios e nomeados pelo imperador.

Alegoria ao juramento da Constituição brasileira de 1824

•• A primeira Constituição do Brasil

A Lei de 1º de outubro de 1828 criou e regrou o funcionamento das câmaras municipais no Brasil. Estabelecia:•• Que nas cidades seria integrada por 9 membros e por 7 nas vilas.•• Que as eleições seriam feitas de 4 em 4 anos, sempre no dia 7 de setembro.•• As listas dos eleitores eram elaboradas pelos juízes de paz e, onde estes não existissem, por párocos. Depois eram afixadas nas portas das igrejas.•• Não se votava somente em um vereador, mas em tantos quantos fossem elegíveis. Podia-se votar em qualquer cidadão. O voto com a lista de todos os nomes sufragados era assinado no verso e entregue ao

presidente de mesa.•• O vereador mais votado nas eleições assumia a presidência.•• O vereador não recebia salários e não podia se escusar de assumir a função, exceto quando justificasse enfermidade grave ou emprego civil, eclesiástico ou militar cujas obrigações eram incompatíveis com o exercício da vereança.•• As Câmaras faziam de 3 em 3 meses sessões ordinárias, totalizando 4 anuais. Elas duravam o tempo que fosse necessário, nunca menos de 6 dias cada sessão. •• O vereador que faltava a uma sessão sem motivo justo pagava multa aos cofres da cidade ou vila.

Lei muda as regras de funcionamento das Câmaras

Formação

A lei de 1º de outubro de 1828 reformou as câmaras municipais existentes no Brasil, e a de Rio Pardo sofreu também reforma em sua composição. Ficou assim constituída: Antônio Simões Pires, José Joaquim de Andrade Neves, Joaquim Pedro Salgado, João Paiva Monteiro, Antônio Simões Pereira, Manoel Guedes Luiz.

Em Rio Pardo

BANCO DE IMAGENS

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57Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

•• Símbolos do município

•• A Lei municipal 105, de 18 de maio de 1954, adotou e definiu como símbolo do município o brasão. Ele é constituído de um escudo de três faixas: na primeira, em campo azul, aparece uma fortaleza, que relembra a Fortaleza Jesus, Maria, José; na segunda, em campo vermelho, um dragão estilizado representa o Regimento dos Dragões de Rio Pardo; na terceira, em campo dourado, a expressão “Ave Maria” e um rosário, em homenagem a Nossa Senhora do Rosário, padroeira da cidade. Sobreposta, uma coroa mural de prata, de cinco torres, e na parte inferior, em letras de ouro sobre um listel de vermelho, o título “Tranqueira Invicta”.

O brasão

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•• A bandeira de Rio Pardo é formada por um retângulo com dois campos adjacentes, separados diagonalmente. O inferior é verde e o outro amarelo, tendo, ao centro, o escudo do município. Foi criada pela Lei n° 30, de 2 de dezembro de 1957.

A bandeira

O hino foi oficializado em 15 de setembro de 1980, pela Lei n° 21, assinada pelo prefeito Fernando Wunderlich. A música foi composta por Alfredo Raul Silveira. Raul faleceu antes de ver realizado aquilo que sonhara: dar a Rio Pardo um hino de sua autoria. A letra é da professora Marina de Quadros Rezende, que a compôs a pedido de Raul Silveira.

Tu surgiste, cidade gloriosa, Da caserna do bravo dragãoQue, formando a heróica tranqueiraEvitou de Castela a invasão

COROÓ Rio Pardo de heróis legendários, Berço altivo de um povo viril, Guardiã das fronteiras outrora, És relíquia de nosso Brasil

No passado, ponteando o Rio Grande, Foste forte, soberba, brilhanteTeu presente de paz e trabalhoNo porvir, te fará triunfante

Pelo livro, o gado, a charrua, Tu trocaste a espada e o fuzilE agora defendes briosaUm progresso maior do Brasil

Letra: Marina de Quadros RezendeMúsica: Alfredo Raul Silveira

O hino

Rio Pardo no final do século XIX

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58 Uma luz para a história do Rio Grande

Ele foi poeta, jornalista, pintor, arquiteto, escultor, professor, chargista, diplomata, teatrólogo, animador cultural, crítico de arte. Talento múltiplo, o rio-pardense

Manuel José de Araújo Porto-alegre foi um dos pioneiros do Romantismo no Brasil, ao lado de nomes como Gonçalves de Magalhães. Patrono da cadeira 32 da Academia Brasileira de Letras, ele também é o autor do mais longo poema da literatura nacional: o épico Colombo, com mais de 20 mil versos. É ainda considerado o fundador da história e da crítica de arte no País e, além disso, o criador da primeira caricatura impressa em jornais brasileiros, datada de 1837.

O historiador Max Fleiuss o chamou de “homem-tudo”. Como artista plástico, Porto-alegre criou inúmeros trabalhos em pintura, arquitetura e escultura – principalmente retratos dos imperadores Pedro I e Pedro II e de outras figuras do governo imperial. Também deixou construções e projetos de edifícios como o Arquivo Nacional, a Alfândega do Rio de Janeiro e a Capela do Paço Imperial. Na escultura, seu trabalho mais importante é o “Pé Esquerdo de Laocoonte”, premiado em 1830. Diplomata, em 1874 Araújo recebeu o título de Barão de Santo Ângelo, do imperador Dom Pedro II. Nessa época, era o cônsul do Brasil em Lisboa. Tanto prestígio em vida não impediu que Porto-alegre caísse no esquecimento. Suas obras literárias, como As brasilianas e Colombo, hoje são curiosidades históricas. Mas isso não o impede de continuar sendo “um brasileiro notável”, na avaliação do crítico de arte Laudelino Freire.

O artista nasce em Rio Pardo em 29 de novembro de 1806, como

Manuel José de Araújo, filho do comerciante Francisco José de Araújo e de Francisca Antônia Viana. Segundo o historiador Dante de Laytano, ele teria nascido em uma aldeia de índios, não especificada. Outras fontes apontam que Araújo nasceu na área central de Rio Pardo.

Órfão de pai desde os cinco anos, em 1826 vai para a capital do Império. Lá se torna aluno do célebre pintor francês Jean-Baptiste Debret, na Academia Imperial de Belas Artes. No Rio de Janeiro, também cursa a Escola Militar e aulas de anatomia do curso médico, além de Filosofia. Com o passar do tempo, torna-se grande amigo do mestre Debret.

FOTOS: BANCO DE IMAGENS/GS

Barão de Santo ÂngeloA trajetória de Manuel Araújo Porto-alegre, rio-pardense que se notabilizou por múltiplos talentos

•• As obras

Brasilianas, poesia (1863); Colombo, poema épico, dois tomos (1866). Escreveu várias peças teatrais, entre as quais: Prólogo dramático (1837); Angélica e Firmino (1845); A estátua amazônica (1851); A restauração de Pernambuco (1852); Os judas (1858); Canto inaugural (1859); O prestígio da lei (1859); Os voluntários da pátria (1877). Também foram publicadas as suas Cartas a Monte Alverne (1964) e a Correspondência com Paulo Barbosa da Silva, na Coleção Afrânio Peixoto, da ABL.Como jornalista, Manuel de Araújo Porto-alegre fundou e dirigiu Niterói (com Gonçalves de Magalhães e Torres Homem), revista pioneira do Romantismo; Lanterna Mágica, Minerva Brasiliense e guanabara. Colaborou em publicações como o Journal de i’institut Historique de France, Aurora Fluminense, A Reforma, Revista Brasileira, Nova Minerva e Revista do instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

A arte do pintor: “Estudo para a sagração de Dom Pedro II”, óleo sobre tela

Manuel de Araújo Porto-alegre chega ao Rio de Janeiro e estuda pintura com o célebre Jean Baptiste-Debret, na Academia Imperial de Belas Artes. Seu talento e dedicação chamam a atenção do mestre.

Araújo Porto-

alegre, dotado das mais felizes qualidades e

que venceu todas as dificuldades do desenho durante três anos de

estudos em minha classe. (...) O mais notável na seção de pintura é que dos alunos é Araújo Porto-alegre quem apresenta igualmente obra original e própria, servindo os seus trabalhos de modelo aos colegas. Isto é quase consagração do jovem pintor de fato. Só mesmo os mestres, os que adquiriram a perfeição na arte, pleno domínio do pincel, podem fornecer obras dignas de serem copiadas e estudadas por outros.

(Jean Baptiste-Debret)

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59Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

A maior realização literária de Manuel Araújo Porto-alegre é o poema épico Colombo, publicado em 1866, após mais de 20 anos sendo preparado. Em 40 cantos, o narrador conta a chegada do navegador Cristóvão Colombo na América, com sua selva verde, os rios gigantescos, a fauna

e a flora nunca vistas. O texto reflete a exaltação nacionalista própria da fase inicial do Romantismo.

Segundo Luiz Marobin, autor do livro A Literatura no Rio Grande do Sul, Colombo é “a maior epopeia do Brasil”. E Guilhermino César, em sua História da literatura no Rio Grande do Sul, frisa: “À época em que apareceu, Porto-alegre não foi apenas um grande poeta, senão o arauto de uma intensa visualização da natureza, como em nenhum outro brasileiro tão exuberante e enfática”. Mas o texto também foi criticado pelo estilo prolixo. O crítico Massaud Moisés definiu-o como uma “enxurrada de estrofes soporíferas”. Em compensação, Sílvio Romero e o poeta Manuel Bandeira

Viu Colombo de um lanço o vasto mundo,Que América se chama, e extasiadoGenuflexo caiu, assim dizendo:Almo lume do amor mais puro e santo,Sol do infinito no horizonte eterno,Meu Deus, minha esperança, eu te agradeçodeste momento a previsão tão grataQue em minha alma a vereda delineiaComo as cores do céu!...Tudo está claro!Eis a terra da Cruz, da fé de Cristo!

(Colombo, Canto XX)

Em julho de 1831, Manuel de Araújo – agora usando o topônimo “Porto-alegre” no sobrenome – acompanha Debret à Europa, para se aperfeiçoar como pintor. Fica estabelecido em Paris e respira os ares do maior centro intelectual da época. Convive com Almeida Garrett, Gonçalves Magalhães e outros escritores de destaque. Instala-se em um aposento da casa do arquiteto François Debret, irmão do pintor. Durante a permanência em Paris desfruta, senão da intimidade, ao menos da proximidade das celebridades que frequentavam a casa. Como explicaria anos depois:

Em 1832, o rio-pardense se inscreve na École des Beaux Arts, que cursa com destaque. Na passagem pela Europa, conhece também a Itália, Bélgica e Inglaterra. Ainda em Paris, ao lado de Gonçalves Magalhães, ele colabora com a criação da revista Niterói (1836), marco inicial do Romantismo brasileiro. Sob o lema “Tudo pelo Brasil, e para o Brasil”, os organizadores da revista buscavam

A casa de Francisco Debret era um ponto de reunião de grandes notabilidades; e como este arquiteto era o primeiro mestre na arte de construir teatros,

ali se juntavam também os memógrafos mais célebres e os músicos maiores, como Rossini, Auber, Boieldieu, Cherubini e Paer, não falando nas plêiades de pintores, escultores e outros homens de primeira plana.

Colombo, proeza literária

Poema épico é um dos textos fundadores do Romantismo

A descoberta do Brasil em Paris

admiravam a capacidade de Porto-alegre “pintar quadros com as palavras”.

As descrições vivas mostram o domínio do pintor sobre o poeta. “Porto-alegre firmou uma posição que os românticos brasileiros aproveitariam: visualizou a natureza brasileira em painéis”, comenta a professora Maria Eunice Moreira, da Faculdade de Letras da PUCRS. “Foi um homem que ocupou a cena literária e cultural do Rio de Janeiro, muito mais que do Rio Grande do Sul, onde não viveu depois de adulto.”

explicar o que significava “ser brasileiro”. Exaltavam temáticas nacionais e anunciavam o projeto nativista, no qual o índio seria o elemento fundamental da brasilidade.

Porto-Alegre volta ao Rio em 1837 e desenvolve intensa atividade artística, educacional e literária. Casa-se em 1838 com Ana Paulina Delamare, falecida no Rio de Janeiro em 1901. Tiveram cinco filhos. Torna-se professor de Dom Pedro ii e diretor e professor da Academia de Belas Artes. Funda com Joaquim de Macedo e Gonçalves Dias a revista Guanabara (1849). Em 1858, ingressa na carreira consular e serve como cônsul do Brasil na Prússia, com sede em Berlim; depois na Saxônia, com sede em Dresden (1860-1866), e finalmente em Lisboa, onde falece em 30 de dezembro de 1879.

Para Laudelino Freire, Porto-alegre foi “um vulto representativo da sua época. Pintor, arquiteto, orador, professor e poeta, logrou ser um brasileiro notável”. Cinquenta anos depois de sua morte, seus restos mortais foram trazidos de Portugal para o Brasil. Estão em Rio Pardo, no Cemitério Municipal.

•• Trecho

•• Rua em homenagemA Rua Barão de Santo Ângelo, no Bairro Moinhos de Vento, em Porto Alegre, homenageia a memória de Manoel José de Araújo Porto-alegre. Em Rio Pardo, existe o Museu Histórico Barão de Santo Ângelo.

MANUEL DE ARAÚJO PORTO -ALEGRE

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60 Uma luz para a história do Rio Grande

D. Pedro II visita Rio PardoImperador vem à Província ao final da Revolução Farroupilha

Ramiz Galvão

•• Obras

O púlpito no Brasil (1867); Apontamentos históricos; Biografia do frei Camilo de Monserrate (1887); Vocabulario etymologico, orthographico e prosodico das palavras portuguesas derivadas da língua grega (1909); Reparos à crítica (1910); O poeta Fagundes Varela, conferência (1920); Teatro educativo, ensaio (1938). Traduziu A retirada de Laguna, da terceira edição francesa do Visconde de Taunay (1919).

Médico, historiador, educador, diretor da Biblioteca Nacional, membro da Academia Brasileira de Letras. Benjamin Franklin Ramiz galvão, o Barão de Ramiz Galvão, foi um dos intelectuais mais notáveis de seu tempo. Nascido em Rio Pardo em 1846, faleceu no Rio de Janeiro em março de 1938. Amigo de Dom Pedro II, foi preceptor (responsável pela educação escolar em casa) dos filhos da princesa Isabel.

Aos seis anos, Franklin foi com os pais para o Rio. Formou-se em Medicina em 1868 e trabalhou como cirurgião no Hospital Militar da Ponta da Armação. Mais tarde foi professor de grego no Colégio Pedro II e de química orgânica, zoologia e botânica na Escola de Medicina do Rio.

Por doze anos dirigiu a Biblioteca Nacional, onde organizou a Exposição Camoniana (1880) e a de História do Brasil. Em 1888 recebeu o título de Barão de Ramiz Galvão.

Mas não foi só no Império que Franklin ocupou cargos importantes. Ele se destacou igualmente na República, graças à sua capacidade de trabalho e grande cultura.

Por duas vezes foi diretor geral da Instrução Pública do Distrito Federal e, ainda, reitor da Universidade do Brasil, criada em 1920 – hoje, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). E além de todas essas atividades, escrevia muito: colaborou com artigos publicados no Jornal do Commercio e foi eleito o segundo ocupante da Cadeira 32 da Academia Brasileira de Letras, em 1928, depois de uma tentativa anterior em 1912. Em Rio Pardo, o Bairro de Ramiz Galvão lhe presta homenagem.

Findada a Revolução Farroupilha (1835-1845), a Província do Rio Grande de São Pedro do Sul recebeu a visita do

imperador do Brasil, D. Pedro II. “Ele veio com o objetivo de acalmar os ânimos”, diz a professora rio-pardense Sílvia Barros. Acompanhado de sua esposa, a imperatriz D. Tereza Cristina (foto), D. Pedro chegou a Rio Pardo em 1º de janeiro de 1846.

Na cidade, o casal foi hóspede da família do tenente-coronel Manoel Pedroso de Albuquerque. D. Pedro II permaneceu cinco dias em Rio Pardo. Depois de passar pela vila de Cachoeira, seguiu para a fronteira, de onde retornaria somente em 31 de janeiro. Nesse ínterim, D. Tereza Cristina ficou esperando o monarca. De Rio Pardo, o casal viajou para Porto Alegre. Houve várias festividades e atos solenes na vila, dentre os quais o Te-Déum, para marcar a passagem do imperador e de sua comitiva. As fachadas das casas se mantiveram iluminadas com lanternas durante todo o período. Por indicação do vereador Antônio Prudente da Ferreira, a rua em que suas majestades imperiais residiram passou a ser denominada de Rua da Imperatriz.

Uma ponte para ligar o planalto ao pampa. Assim a escritora candelariense Marli Marlene Hintz define a Ponte do Império. Construída em oito meses, entre 1879 e 1880, a obra sobre o Arroio Passa Sete – a 17 quilômetros de Candelária – foi projetada pelo arquiteto alemão Roberto Heimberto Puhlmann, que venceu a licitação da Câmara Municipal de Rio Pardo, ao custo de 9 contos e 600 mil réis. Até os dias atuais, moradores das imediações acreditam que a ponte foi planejada para que sobre ela cruzasse o imperador D. Pedro II, em visita ao Rio Grande do Sul. Isso, entretanto, nunca ocorreu.

A Ponte do Império, que tem a altura de um prédio de seis andares, 40 metros de comprimento e é entalhada em pedras sobrepostas, surgiu para facilitar a travessia do arroio pelas tropas imperiais e de mulas de carga que, através da

Ponte do Império

Objetivo era ligar o planalto ao pampa

INOR/AG. ASSMANN

antiga Estrada do Botucaraí, se deslocavam dos Campos de Cima da Serra a Rio Pardo. Estreita, ela é utilizada ainda hoje, embora permita a passagem de apenas um veículo. As pedras, de acordo com a pesquisadora, teriam sido dinamitadas e esculpidas no local. Durante a construção, três enchentes teriam levado grande parte do material – prejuízo que não foi indenizado pelo Império, endividando o arquiteto alemão.

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61Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

[...] constando nesta cidade do próximo regresso de Sua Majestade o Imperador, propunha que a Câ-mara tomasse em sua consideração as medidas necessárias para fazer-se a Sua Majestade o Imperador o mais pomposo recebimento que o Município pudesse mostrar. A vista do que se deliberou nomear uma comissão composta de nove mem-bros, [...] para fazerem tudo quanto puderem para semelhante recebi-mento; tratando-se de promover uma subscrição pelo Povo do Município, [...] mandando a Câmara entoar um Te-déum o mais solene que for possível [...]Deliberou mais que o dito seu Procurador tenha em vista preparos de sessenta dúzias de foguetes e cinco salvas de bombas, para o fim acima referido.

Eu Zeferino José Rodrigues Ferrei-ra Secretário da Câmara Municipal a escrevi.

Ata da Câmara de 3 de outubro de 1865

F oi na casa de um juiz, onde hoje existe o Solar Panatieri, que D. Pedro II se hospedou quando passou pela segunda vez por Rio Pardo, em 1865.

O monarca voltava ao Rio Grande do Sul para se encontrar com os presidentes da Argentina e do Uruguai, Bartolomé Mitre e Venâncio Flores, em Uruguaiana. Tratava-se de um encontro diplomático a fim de libertar Itaqui, São Borja e a própria Uruguaiana, que se encontravam sob o domínio de tropas paraguaias. A guerra com o país de Solano Lopes, que durou cinco anos, estava se iniciando. Para surpresa dos

chefes da Tríplice Aliança, as forças paraguaias que ocupavam a fronteira decidiram se render.

Para chegar até lá, D. Pedro veio do Rio de Janeiro até Rio Grande, desta até Porto Alegre e depois a Rio Pardo. A partir de Rio Pardo, ainda por via fluvial, alcançou Cachoeira do Sul e dali seguiu por terra até Uruguaiana.

A passagem do imperador teve repercussão por longo tempo. Por exemplo, em 7 de setembro daquele ano, por indicação do vereador Gomes, foi solicitada a mudança do nome da Rua da Ladeira para Rua do Imperador.

Na ocasião solene em que reunidos todos os nove vereadores desta câmara municipal, tivemos a honra de beijar por despedida da Augusta Mão de sua Majestade o Imperador o Senhor D. Pedro II que desta cidade partiu para o teatro da guerra nas fronteiras da província, deliberamos

que a antiga Rua da Ladeira desta cidade passe a denominar-se Rua do Imperador, porque nesta rua e no sobrado do Doutor Abílio Álvaro Martins e Castro, foi que se hospedou o mesmo Augusto Senhor que nesta cidade desembarcou do Vapor Tupy, às 6h da manhã do dia 29 de julho e dela partiu ao meio-dia do dia 31 do mesmo mês.

•• O solar

Foi em um sobrado, na esquina da Rua da Ladeira, que D. Pedro II ficou hospedado em sua segunda viagem à província, de 29 a 31 de julho de 1865. Planejava voltar com sua comitiva, quando retornasse da fronteira. Mas, embora a cidade houvesse se organizado para recepcioná-lo com festejos ainda maiores, a nova visita não ocorreu. Mesmo assim, rio-pardenses ilustres se deslocaram a Porto Alegre para o beija-mão ao monarca, que da Capital foi para a Corte.A casa, hoje, pertence às irmãs Elvira Maria Souza Panatieri Correia de Brito e Marta Souza Panatieri Sittler, que moram em Porto Alegre e aos finais de semana abrem o local para visitação. Foi construída em 1798 e pertencia à Congregação das Irmãs do imaculado Coração de Maria. Na época da visita de D. Pedro II, era propriedade do juiz Abílio Alvaro Martins e Castro. O mesmo juiz, dias depois, hospedaria o Conde D’Eu, esposo da princesa isabel. A casa foi comprada em 1930 pelo médico Luciano Raul Panatieri, pai de Marta e Elvira e outros oito filhos.

O imperador retorna ao Sul

Destino era Uruguaiana e o motivo, a Guerra do Paraguai

RODRIGO/AG. ASSMANN

Sobrado da família Panatieri, onde D. Pedro II se hospedou em 1865

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62 Uma luz para a história do Rio Grande

Queda da monarquia•• Reconhecimento

Faltava pouco para o fim do Império quando o republicano Sena Madureira deixou Rio Pardo em 8 de janeiro de 1887. Havia trazido à cidade novas ideias políticas. Em Porto Alegre, foi homenageado antes de rumar ao Rio de Janeiro onde, em 27 de junho daquele mesmo ano, ajudou a fundar o Clube Militar. Faleceu em 28 de janeiro de 1889, aos 47 anos, em circunstâncias suspeitas – depois de beber água mineral no Qg do Exército.

A historiografia aponta a Questão Militar como uma das principais responsáveis pela queda da monarquia no Brasil. Rio Pardo está diretamente envolvida nessa questão.

Vejamos por quê:

A partir da Guerra do Paraguai (1865-1870), criaram-se as condições para o Exército

atuar como ator político no Brasil. Gradativamente, queixas de militares e posicionamentos contra a escravidão e o Império se tornaram públicas. No entanto, pelo Regulamento Disciplinar do Exército, os militares estavam proibidos de se manifestarem na imprensa sobre questões internas da corporação.

Em 1884, depois de muita luta, a Província do Ceará decretou a abolição da escravidão. Um dos personagens que mais se destacou no movimento foi o jangadeiro Francisco do Nascimento, apelidado de “Dragão do Mar”. Ele

havia liderado uma posição dos jangadeiros cearenses contrária ao transporte

de escravos em navios que os conduziam para as províncias

do Sul.

•• LiberaisDurante o Império, a elite agrária brasileira estava dividida em dois partidos que em pouco se diferenciavam: o Partido Liberal e o Partido Conservador. De uma maneira geral, os liberais se caracterizavam por defender a descentralização político-administrativa, enquanto os conservadores defendiam a centralização do poder. O voto era censitário, ou seja, o direito de votar e de ser votado estava condicionado ao recebimento de uma renda anual. Na Província, o cenário político não era diferente. Desde as eleições de 1872, o Partido Liberal era hegemônico. Suas lideranças máximas eram Manoel Luís Osório, estancieiro e militar de grande prestígio no Exército, eleito senador, e Gaspar Silveira Martins, estancieiro e político. Com a morte do general Osório, em 1879, Silveira Martins se torna chefe incontestável do partido. A divulgação das ideias liberais se dava através das páginas do jornal A Reforma, criado em 1869. Por meio dele é possível constatar que o partido defendia a monarquia e o parlamentarismo e a abolição gradual da escravidão, respeitando o direito de propriedade e a autonomia das províncias. Seus interesses econômicos estavam vinculados aos estancieiros criadores de gado. O Partido Liberal, portanto, era de longe o mais forte da Província; dominava o Legislativo Provincial, a maioria dos governos municipais e a guarda Nacional.

Período final do Império repercutiu na Província com a chegada de Sena Madureira

Como símbolo abolicionista, o “Dragão do Mar” foi convidado a ir ao Rio de Janeiro, onde recebeu várias homenagens dos círculos antiescravistas. Uma das condecorações aconteceu na Escola de Tiro do Exército, em Campo Grande. Ninguém menos do que o próprio comandante, tenente-coronel Antônio Sena Madureira, oficial muito respeitado e antiescravista assumido, prestou-lhe a honraria.

Acusado de indisciplina, Sena Madureira recebeu como castigo sua transferência para o Rio Grande do Sul. Mais especificamente para a cidade de Rio Pardo, onde teve a incumbência de organizar a Escola Tática de Tiro de Rio Pardo, criada em 1885 e que funcionou no prédio que hoje abriga o Centro Regional de Cultura.

Em Rio Pardo, Sena Madureira atuou ativamente no movimento pelo fim do Império.

Pelas páginas do jornal A Federação defendeu os ideais republicanos,

ganhou o apoio de Deodoro da Fonseca e da oficialidade militar

sediada em Porto Alegre, além de ter estreitado contatos com o líder Júlio de Castilhos.

Page 64: Rio Pardo 200 anos

63Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

Dois anos após a fundação do Partido Republicano Rio-grandense (1882), foi criado o Clube Republicano do Rio Pardo. Suas reuniões eram realizadas no Hotel Brasil, antiga

sede da Prefeitura. O número de sócios do clube aumentava ano após ano. Ali surgiram figuras importantes para o movimento republicano, como Ernesto Alves de Oliveira, ferrenho defensor castilhista. Ele se tornaria o substituto de Júlio de Castilhos na direção do jornal A Federação.

Destacou-se também como republicano

Heráclito Americano de Oliveira. Foi de sua autoria o projeto para a aprovação da bandeira estadual. Além do órgão oficial do Partido Republicano, em Rio Pardo, no ano de 1887, começou a circular um novo periódico regional intitulado O Patriota, jornal que se identificava com os ideais da causa.

Às vésperas da queda da Casa dos Bragança e Orleans, foi realizada no 5º Distrito de Rio Pardo, em Iruhy, a Conferência Republicana. Ela foi presidida e idealizada por Ernesto Alves de Oliveira e relatada em A Federação, em 4 de janeiro de 1889, conforme se lê no boxe ao lado.

Casa onde nasceu Ernesto Alves de Oliveira, defensor ferrenho de Júlio de Castilhos

•• No jornal

O companheiro Ernesto discursou

para um grande número de cavalheiros na casa

do comerciante José Pascal, sendo o discurso acompanhado com muita atenção por todos os que estavam no local.O nosso companheiro foi sempre ouvido com facilidade, com a qual outros têm querido hipothecar o braço do Rio Grande à causaingrata dos Bragança e Orleans.

“Semente” republicanaem Rio Pardo

Embora liberais fossem maioria na Província, antimonarquistas criam clube e jornal na cidade

Um dos principais líderes republicanos do Rio Grande do Sul é o rio-pardense Ernesto Alves de Oliveira. Nascido em 21 de abril de 1862, viveu parte da infância na fazenda dos pais, Manoel Alves de Oliveira e Rafaela Azambuja de Oliveira, a cinco quilômetros do centro da cidade.

Com onze anos o garoto foi estudar em Porto Alegre, inicialmente no Colégio Gomes e depois no Souza Lobo. Ainda jovem demonstrou ser um grande orador, habilidade que o encaminhou para a

Faculdade de Direito de São Paulo – junto com outros gaúchos como Júlio de Castilhos, Borges de Medeiros, Assis Brasil e Pinheiro Machado.

Em São Paulo, integrou o Centro 20 de Setembro, que reunia a mocidade acadêmica republicana. O grupo era formado, principalmente, por jovens gaúchos que defendiam o fim da monarquia e a abolição dos escravos. Formado advogado com 21 anos, Alves retornou a Porto Alegre, onde

se dedicou à advocacia e à causa republicana.

Em Rio Pardo, Ernesto fundou o Clube Republicano e organizou, em 1889, a Conferência Republicana.

Ernesto Alves de Oliveira faleceu em Porto Alegre, em 21 de agosto de 1891, no mesmo ano em que o Rio Grande do Sul o elegeu deputado federal constituinte. Morreu sem ter completado trinta anos, como homem do Direito, do jornalismo e da política.

Ernesto Alves: contra o Império

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Ernesto Alves

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64 Uma luz para a história do Rio Grande

Apagando a memória Proclamada a República, os símbolos monárquicos vão sendo substituídos. Na Câmara de Rio Pardo, na sessão de 16 de novembro de 1889, João Carlos Leitão da Rocha solicita a substituição dos nomes da rua e da praça da Imperatriz para 15

de Novembro (atual João Pessoa) e da Praça Pedro II para Praça da Liberdade. Depois, a Rua Gaspar Silveira Martins é alterada para Júlio de Castilhos (também chamada de Rua da Ladeira). A Rua Barão do Triunfo, por lembrar um título de nobreza, passa a ser denominada de Andrade Neves.

Deodoro da Fonseca, um marechal alagoano de 62 anos, porte altivo e gestos

largos, é militar até na maneira de escrever. Dentro desse rígido figurino, no entanto, esconde-se um Deodoro mais ameno, mais humano. É vaidoso na aparência e no vestir, gosta de usar joias, pavoneia seus conhecimentos de latim, não tem filhos mas ama crianças, conta piadas, considera-se bom dançarino, escreve versinhos e – mais do que tudo – aprecia os encantos femininos.

O marechal está para completar seu trigésimo aniversário de casamento com Mariana Cecília de Sousa Meireles, de 63 anos, mas sua vida amorosa é assunto de todas as conversas. Com sua caligrafia caprichada, escreve rimas nos leques das moças pelas quais está interessado. Quando foi comandante de Armas na Província do Rio Grande do Sul, Deodoro compôs versos singelos para a filha de um amigo, o Visconde de Pelotas: “Anjo que sois, permiti ao bardo agreste a ousadia do pobre galanteio”. Na mesma época, o bardo agreste ensaiou outros pobres galanteios para a filha do Barão do Triunfo, Maria Adelaide.

De tradicional família rio-pardense, Adelaide era filha de José Joaquim de Andrade Neves. Teria se apaixonado por Deodoro quando este veio como comandante da Província. Porém, quem caiu mesmo nas graças da moça foi o senador Gaspar Silveira Martins. Exímio caçador de perdizes e orador talentoso, visitava Rio Pardo com frequência. Conta-se que o senador quis impressionar Adelaide em suas proezas como cavaleiro e acabou caindo do cavalo. Quebrou a perna e, durante mais de um mês, foi Adelaide quem cuidou dele. Quando Deodoro

tentou encantar a rio-pardense, já era tarde. Morando em Porto Alegre, Gaspar usava de sua influência para viajar disfarçado, de trem, até Rio Pardo, a fim

de se encontrar com ela. Seria pela porta dos fundos da casa que ele entrava.

Ninguém sabe o desfecho do romance, mas essa teria sido a origem da

inimizade entre o marechal e Silveira Martins. A antipatia entre os dois é fato confirmado pela História do Brasil. Inimigos desde os tempos de Rio Pardo, ao ser chamado por D. Pedro II para presidir o Conselho de Ministros, Silveira Martins – então com 55 anos – se deparou com um entrave: fazer Deodoro aceitar um ministério presidido por ele. Deodoro, por sua vez, ao saber por meio de Benjamin Constant que o imperador havia nomeado seu desafeto para a chefia do ministério, teria se resolvido a aceitar a instauração do regime republicano. Acredite se puder: teria sido por Adelaide que Deodoro aceitou participar da Proclamação da República.

Entre Silveira Martinse Deodoro da Fonseca Adelaide de Andrade Neves, filha do Barão do Triunfo, entre dois amores

•• Republicanos

Em 1882 era fundado, em Porto Alegre, o Partido Republicano Rio-grandense (PRR). Sua propaganda se dava pelo jornal A Federação, criado em 1884. Era formado por jovens recém-diplomados em Direito como Júlio de Castilhos, Borges de Medeiros, Assis Brasil e Pinheiro Machado, ou em Medicina – caso de Carlos Barbosa, Fernando Abbott e Ramiro Barcelos. O PRR defendia a modernização da economia e tinha uma orientação filosófica positivista não ortodoxa – ideologia de caráter conservador e contrária à luta de classes, criada no século XIX na França, por Augusto Comte. Mas ao ser proclamada a República, em novembro de 1889, a vida política do Rio grande do Sul era dominada pelo Partido Liberal, adversário do PRR e que tinha na chefia gaspar Silveira Martins.

Fonte onde Adelaide encontraria Silveira Martins

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65Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

A luta pela proclamação da República e pelo fim da escravidão teve, em Rio Pardo, uma liderança

expressiva: o jornalista, escritor e advogado Heráclito Americano de Oliveira. Falecido prematuramente, deixou seu nome escrito na história do Rio Grande do Sul.

Heráclito nasceu em 2 de fevereiro de 1865 e era filho de Marcelina e Antônio Augusto de Oliveira. As informações constam no seu registro de óbito que, no entanto, não faz referência ao local de nascimento. Rio-pardense ou não, o certo é que se tratava de uma pessoa de muito prestígio no município, seja na

área política, social ou cultural. Como jornalista fundou, em 1886, o jornal

O Lutador e no ano seguinte, O Patriota. Ambos combatiam a escravidão e defendiam a proclamação da República.

Sua atuação em favor da abolição não ficou restrita aos

discursos. Em 7 de julho de 1883, criou a Sociedade Sempre Viva. Seu

objetivo era proporcionar diversões e danças, a cada dois meses, e angariar dinheiro para a concessão de cartas de alforria aos negros. Ele era o orador da entidade e seguidamente fazia preleções sobre a redenção dos cativos. O quarto aniversário da entidade foi comemorado em grande estilo, com a realização da Conferência Abolicionista de Rio Pardo.

Um abolicionista

O surgimento do Literário

•• Deputado e escritorAlém de advogado e jornalista, Heráclito foi autor dos livros A mulher do subdelegado, Crepusculares e Coleções de versos. Também foi deputado pelo Partido Republicano. Em 3 de maio de 1888, casou-se com Augusta Eichemberg. Em 1893 se transferiu para Bagé. Lá, foi secretário de governo e advogado. Vítima de “enfermidade aórtica”, faleceu em 1896, com apenas 31 anos. No registro de óbito consta que foi enterrado no jazigo de número 188, do Cemitério Público de Rio Pardo.

Heráclito Americano de Oliveira foi liderança expressiva, mas morreu cedo

Antônio Sena Madureira e sua esposa Constância ajudaram a agitar Rio Pardo também em seus aspectos sociais. Juntamente com o deputado, advogado, jornalista e poeta Heráclito Americano de Oliveira, criaram um clube que, logo após sua fundação (1886), tinha estampadas em sua bandeira as cores verde, amarelo e vermelho. A sociedade fundada foi o centenário Clube Literário e Recreativo de Rio Pardo, que faz parte da vida social da cidade até os dias atuais.

A ideia de república não era nova para os gaúchos. Eles já tinham convivido com essa experiência durante a Revolução Farroupilha. Porém, encerrado o conflito, a propaganda republicana praticamente desaparece. Somente em 1882 é fundado o Partido Republicano Rio-grandense (PRR). Entretanto, ele se manteria inexpressivo até a República. De pouca densidade eleitoral, havia eleito, por duas legislaturas, apenas um deputado provincial: João Francisco de Assis Brasil.

A República foi proclamada no Rio de Janeiro em 15 de novembro de 1889, com um golpe militar. A participação dos partidos republicanos regionais foi pequena nesse processo. Assim, no Rio Grande do Sul, um partido pequeno mas disciplinado, o PRR, seria alçado do dia para a noite ao poder. Enquanto isso, muitas das lideranças liberais gaúchas buscariam asilo na Europa e no Uruguai.

Um dia após a Proclamação da República, chegava a Rio Pardo a notícia sobre o fim do Império. Foi enviada por um telegrama da cidade do Rio de Janeiro, sendo recebida na Tranqueira Invicta pelo advogado José Gabriel Teixeira.

Em 18 de novembro de 1889, uma circular encaminhada ao presidente da Câmara de Rio Pardo trazia o comunicado de que o Visconde de Pelotas havia sido nomeado governador político do Estado.

Proclamada a República, o Rio Grande do Sul entra em um período de profunda instabilidade. Entre 15 de novembro de 1889 e 17 de junho de 1892, o poder Executivo passa pela mão de nada menos do que 15 pessoas, a maioria delas do PRR.

Em 14 de julho de 1891 é aprovada a nova constituição estadual. Júlio de Castilhos é tido como o autor da carta, que tem características autoritárias: concentra o poder nas mãos do presidente do Estado.

Instabilidade marca o começo

Origens do clube remontam à luta pelo fim da monarquia

InOR/AG. ASSMAnn

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66 Uma luz para a história do Rio Grande

Mapa elaborado a partir do Departamento Estadual de Estatística, de 1943

Cachoeira do Sul,o quinto município

Cachoeira do Sul é o quinto mais antigo município do Rio Grande do Sul. Antes dele, toda a Capitania de São Pedro possuía apenas os municípios de Porto Alegre, Rio Grande, Santo

Antônio da Patrulha e Rio Pardo – naquele tempo, chamados de vilas. Pelo alvará de 26 de abril de 1819, assinado pelo rei D. João VI, surgia a Vila nova de São João da Cachoeira, cujo território ficava desmembrado de Rio Pardo e tinha como principais povoações Alegrete, Bagé, Caçapava, Dom Pedrito, São Vicente, São Gabriel, Lavras, Quaraí, Rosário, Santa Maria e Santana do Livramento.

A criação de uma vila na Freguesia de Cachoeira atendia aos pedidos dos moradores da localidade. Eles alegavam sofrer incômodos e prejuízos porque, repetidas vezes, precisavam se deslocar até Rio Pardo, deixando por muito tempo desamparadas suas casas e atividades.

Muito antes de a emancipação acontecer, Cachoeira já era um importante núcleo no território do Rio Grande do Sul. Assim como na Cidade Histórica, foram soldados paulistas e portugueses, ao lado de índios missioneiros, que começaram a sua povoação. A eles se juntaram, em seguida, casais açorianos que se estabeleceram em pequenas propriedades e estancieiros que se instalaram às margens do Rio Jacuí.

Rio PARDo, MãE DE MuiTos

Os municípios que surgiram a partir de Rio Pardo; os primeiros que se tornaram autônomos; como se fomaram as comunidades que hoje constituem o Vale do Rio Pardo.

Província de S. Pedrodo Rio Grande do Sul

1822

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67Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

Cachoeira não seria o quinto município da Província se São Luiz tivesse saído do papel. Em alvará de 13 de outubro de 1817, assinado pelo rei D. João VI, era criado o município de São Luiz da Leal Bragança, com sede no povoado de São Luiz, e cujo território compreenderia a região das Missões.

A criação objetivava combater os frequentes delitos e impunidades contra a segurança pessoal, contra o direito

de propriedade e os interesses da Real Fazenda. Ocorria que as autoridades de Rio Pardo, cuja jurisdição abrangia os Sete Povos, em razão da longa distância, não conseguiam ali exercer a justiça. Entretanto, esse município nunca chegou a ser instalado. Alguns historiadores alegam que isso aconteceu porque não haveria, na região, habitantes brancos em número suficiente para as funções administrativas.

São Luiz, nas Missões, nunca saiu do papel

Cachoeira do Sul revelou muitos nomes ilustres para o Rio Grande do Sul e o Brasil. nenhum deles, no entanto, teve a importância do advogado, jornalista, intendente e deputado João neves da Fontoura.

Fontoura nasceu em 1889 e, ainda jovem, revelou-se um grande orador e político nato. Formado em Direito, foi advogado e promotor até 1925, quando o presidente do Estado, Borges de Medeiros, nomeou-o intendente (prefeito) de sua terra. Correligionário e amigo pessoal do presidente, Fontoura usou sua influência para garantir benefícios a Cachoeira do Sul. Além de embelezar a cidade, trouxe a segunda hidráulica e a rede de esgoto.

A trajetória política de João neves da Fontoura não ficou restrita à intendência. Ele foi deputado estadual e federal e, em 1927, foi eleito vice-presidente do Rio Grande do Sul na chapa de Getúlio Vargas. Também foi ministro das

Relações Exteriores dos presidentes Eurico Gaspar Dutra e Getúlio Vargas e embaixador do Brasil em Portugal. Em 1936, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras. Faleceu no Rio de Janeiro em 1963.

O visionário João NevesGraças ao estadista, aliado de Borges e Getúlio Vargas, Cachoeira do Sul teve surto de crescimento

Château D’Eu com a Catedral Nossa Senhora da Conceição ao fundo, no Centro de Cachoeira do Sul

•• os imigrantesA fim de povoar a margem esquerda do Rio Jacuí, a Câmara Municipal conseguiu que o governo provincial, no ano de 1857, estabelecesse ali uma colônia de imigrantes. Ela foi denominada de santo Ângelo. Essa colônia e suas áreas adjacentes foram ocupadas por famílias de colonos alemães, dando origem aos municípios de Agudo, Paraíso do sul, Novo Cabrais, Cerro Branco, Dona Francisca, Nova Palma e Restinga seca. A partir de 1877, famílias de imigrantes italianos vindos da Quarta Colônia (silveira Martins) se radicaram no município, estabelecendo-se principalmente no distrito de Cortado.

InOR/AG. ASSMAnn

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68 Uma luz para a história do Rio Grande

Começa a divisão do

>> Porto Alegresede: cidade de Porto Alegre, capital da ProvínciaPrincipais povoados: nossa Senhora dos Anjos da Aldeia (Gravataí), Pedras Brancas (Guaíba), Barra (Barra do Ribeiro), São Sebastião do Caí, Viamão, São João Batista do Camaquã, São Leopoldo, Triunfo, novo Hamburgo, Dores de Camaquã

>> Rio Pardo sede: Vila do Rio PardoPrincipal povoado: Encruzilhada

>> Rio Grande sede: Vila do Rio Grande de São Pedro

Principal povoado: Santa Vitória do Palmar

>> Alegrete sede: Vila do AlegretePrincipais povoados: Quaraí, Rosário, Santana do Livramentoinvocação: nossa Senhora da Conceição Aparecidainício do povoamento da sede: 1817Capela: 1817Capela Curada: 1820Freguesia: Lei 23, de 30 de abril de 1846Vila e sede de município: Decreto regencial s/nº. de 25 de outubro de 1831Desmembrado do município de Cachoeira

Tendo inicialmente sido dividido em quatro municípios (“vilas” na época), o Rio Grande do Sul contava com cinco ao se iniciar o Império no Brasil. Poucos anos depois, ao

estourar a Revolução Farroupilha (1835-1845), o território rio-grandense já se encontrava subdividido em 14 municípios.

No mapa, é possível visualizar os 14 municípios com as suas principais povoações.

Uma Luz para a história do Rio Grande68

Cidade, sede do Governo

Vila, sede de município

Freguesias

Capelas

Povoados

Fundações jesuíticas

CONVENÇÕESRepública Rio Grandense1835

Fonte: Departamento Estadual de Estatística (1943)

Page 70: Rio Pardo 200 anos

69Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

>> Jaguarão sede: Vila de JaguarãoPrincipais povoados: Arroio Grande, Erval

>> Pelotas sede: Vila de Pelotasinvocação: São Francisco de PaulaVila e sede do município: Decreto Imperial s/nº, de 7 de

território gaúchoinstalação do município: 17 de fevereiro de 1834Cidade: Lei 339, de 22 de janeiro de 1857Nome anterior: nossa Senhora da Conceição do Alegrete

>> Caçapavasede: Vila de CaçapavaPrincipais povoados: Santo Antônio das Lavras, São Sepéinvocação: nossa Senhora da Assunçãoinício do povoamento da sede: 1783Capela Curada: 1800Freguesia: Provisão Eclesiástica de 6 de outubro de 1832 e Lei 129, de 28 de junho de 1848.Vila e sede de município: Decreto Regencial s/nº, de 25 de outubro de 1831instalação do município: 19 de janeiro de 1834Desmembrado dos municípios de Cachoeira, Piratini e Rio PardoNomes anteriores: nossa Senhora da Assunção de Caçapava e Caçapava

>> Cachoeira sede: Vila de CachoeiraPrincipais povoados: Bagé, Dom Pedrito, São Vicente, Santa Maria, São Pedro, São Gabrielinvocação: nossa Senhora da Conceiçãoinício do povoamento da sede: 1753Capela: 1760Capela Curada: 1769Freguesia: Provisão de 8 de janeiro de 1777 e Provisão Eclesiástica de 10 de julho de 1779Vila e sede de município: Alvará de 26 de abril de 1819instalação do município: 5 de agosto de 1820Desmembrado do município de Rio PardoCidade: Lei 443, de 15 de dezembro de 1859Nomes anteriores: Passo do Fandango, Povo novo, Vila nova de São João da Cachoeira, São João da Cachoeira e Cachoeira

>> Cruz Altasede: Vila de Cruz AltaPrincipais povoados: Palmeira, Passo Fundo, Santo Ângelo, São Martinho, Soledadeinvocação: Divino Espírito Santoinício do povoamento da sede: 1810Capela Curada: 1824Freguesia: Provisão Eclesiástica de 24 de outubro de 1832Vila e sede municipal: Resolução do presidente da Província em Conselho, de 11 de março de 1833instalação do município: 4 de agosto de 1834.Desmembrado do município de Rio PardoCidade: Lei 1.175, de 12 de abril de 1879Nome anterior: Divino Espírito Santo da Cruz Alta

dezembro de 1830instalação do município: 7 de abril de 1832Desmembrado do município de Rio GrandeNome anterior: Rincão das Pelotas e São Francisco de Paula

>> Piratinisede: Vila de PiratiniPrincipais povoados: Canguçu, Cacimbinhas (Pinheiro Machado)invocação: nossa Senhora da ConceiçãoVila e sede do município: Decreto Imperial s/nº, de 15 de dezembro de 1830instalação do município: 7 de junho de 1832Desmembrado do município de Rio Grande

>> santo Antônio da Patrulha sede: Vila de Santo Antônio da PatrulhaPrincipais povoados: Conceição do Arroio (Osório), Santa Cristina do Pinhal, Torres, Vacaria, São Francisco de Paula de Cima da Serra

>> são Borjasede: Vila de São BorjaPovoados: Itaqui, São Francisco de Assis, São Luís Gonzagainvocação: São Francisco de Borjainício do povoamento da sede: 1682Capela: 1687Freguesia: Lei nº 26, de 2 de maio de 1846Vila e sede de município: Resolução do presidente da Província em Conselho, de 11 de março de 1833instalação do município: 21 de maio de 1834Desmembrado de Rio PardoCidade: Lei 1.614, de 21 de dezembro de 1887Nome anterior: São Francisco de Borja

>> são José do Nortesede: Vila de São José do nortePrincipais povoados: Estreito, Mostardasinvocação : São JoséVila e sede de município: Decreto Regencial s/nº, de 25 de outubro de 1831instalação do município: 15 de agosto de 1832Desmembrado do município de Rio Grande

>> Triunfo sede: Vila do TriunfoPrincipais povoados: São João do Montenegro, São Jerônimo, Taquari, Santo Amaroinvocação: nosso Senhor Bom Jesusinício do povoamento da sede: 1754Capela: 1754Freguesia: Provisão Eclesiástica de 20 de outubro de 1754Vila e sede de município: Decreto Regencial s/nº, de 25 de outubro de 1831instalação do município: 28 de outubro de 1832Desmembrado de Porto Alegre e Rio PardoCidade: Decreto 7.199, de 31 de março de 1938Nome anterior: Bom Jesus do Triunfo – Triunfo

Rio Pardo 200 anos 69Arte, Cultura e Memória

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70 Uma luz para a história do Rio Grande

O nome dela é Cruz Alta, tem como padroeiro o Espírito Santo, mas a maioria dos cruz-altenses sente-se amparada mesmo é por nossa Senhora de Fátima. A santa imponente, que observa seus devotos do alto do Bairro São Miguel, vê uma cidade com cerca

de 70 mil habitantes. O nome Cruz Alta advém de uma grande cruz de madeira mandada erguer pelo padre jesuíta Antonio Sepp, logo após a fundação de São João Batista, um dos Sete Povos Missioneiros. Tempos depois, a cruz alta se tornou ponto de invernada e local de pouso para tropeiros oriundos das fronteiras com a Argentina e Uruguai, que se dirigiam até a Feira de Sorocaba para a comercialização de animais. no início do século XIX, cerca de 15 quilômetros mais ao norte do local inicial onde foi erguida a cruz, surgiu o povoado que deu origem à cidade.

Constituiu-se município em 25 de maio de 1834, desmembrando-se de Rio Pardo. Sua primeira Câmara Municipal foi instalada em 4 de agosto do mesmo ano. Do seu outrora imenso território, desgarraram-se posteriormente dezenas de municípios. Por ato provincial de 12 de abril de 1879, a sede foi elevada à categoria de cidade.

Cruz Alta foi berço de importantes personalidades gaúchas, como o escritor Erico Verissimo, o político Júlio Prates de Castilhos, o senador José Gomes Pinheiro Machado, o médico Heitor Anes Dias, o poeta Heitor Saldanha, o jornalista Justino Martins, o artista plástico Saint Clair Cemin e outros.

O Palácio da Intendência, sede da Prefeitura, é um dos prédios de mais bela arquitetura existentes no Rio Grande do Sul. Foi construído em 1914, por inspiração do arquiteto Theo Wiederspahn, o mesmo que idealizou os prédios do Margs e dos Correios, em Porto Alegre.

A cruz, hoje substituída por outra, de concreto e com cinco metros de altura, está a 12 quilômetros da sede, na localidade de Benjamin Nott.

FOTOS: InOR/AG. ASSMAnn

•• Equívoco

É comum encontrar em livros históricos e didáticos um mapa do Rio Grande do sul que simula como seria a Província de são Pedro do Rio Grande do sul no ano de 1822, quando já havia ocorrido a emancipação da Vila Nova de são João da Cachoeira. Esse mapa, confeccionado pelo Departamento de Estatística do Estado do Rio Grande do sul em 1942, efetivamente coloca Cruz Alta e toda a região missioneira como fazendo parte de Cachoeira, o que não está correto. Essa área deveria pertencer ao município de são Luiz da Leal Bragança, cuja sede prevista era o povoado de são Luiz e que havia sido criado por alvará de 1817, pelo rei D. João Vi. Essa municipalidade, entretanto, acabou não tendo sua Câmara Municipal instalada.

Cruz Alta do GuaraniGrande cruz, colocada a mando de padres jesuítas, deu origem ao nome da cidade

•• Nome

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71Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

Era no Arroio Panelinha que os tropeiros, encarregados do comércio entre o Rio Grande do Sul e São Paulo, encontravam água para si e para os animais. Com o passar do tempo foram erguidas casas à beira da Panelinha e, lentamente, o povoado virou cidade. Hoje, a fonte fica na esquina das ruas General Portinho e Andrade neves, em Cruz Alta.

A lenda da Panelinha

Embora tenha havido outras personalidades que marcaram a história de Cruz Alta, é Erico Verissimo o amado senhor do povo cruz-altense. Para eles, é mais do que uma personalidade. “É motivo de orgulho”, salienta Emilia, curadora

da Casa Museu do escritor, situada no imóvel onde ele nasceu em 17 de dezembro de 1905. Erico, que faleceu em 28 de novembro de 1975, continua sendo o maior escritor gaúcho. Sua vasta obra contempla clássicos da literatura brasileira como Incidente em Antares, Solo de clarineta e Olhai os lírios do campo, mas sua obra-prima é a trilogia épica O tempo e o vento.

Antônio descreveu para Ana o baile a que assistira no Rio Pardo. Falou com

especial entusiasmo nos seus esplêndidos violeiros e gaiteiros, e nos bailarins que dançavam a chimarrita e a tirana que era uma beleza!

O tempo e o vento é a mais significativa obra literária já criada no Rio Grande do Sul, e tem Rio Pardo como referência até cenário. na trilogia de romances épicos que abarca 200 anos da história do Rio Grande, de 1745 a 1945, narra-se a saga da família Terra-Cambará, desde as Missões Jesuíticas até o fim do Estado novo. Essa epopeia já foi adaptada para o cinema e televisão.

O livro mais conhecido da trilogia é O Continente, que traz os personagens mais célebres de Verissimo: Ana Terra e o capitão Rodrigo Cambará. Ela é filha de Henriqueta e Maneco Terra, paulistas de Sorocaba.Maneco é filho de um tropeiro que se encantou com o Rio

Grande, ao atravessá-lo para vender mulas na Colônia do Sacramento. A estância onde ele vive com a mulher e os filhos Ana, Horácio e Antônio tem a Cidade Histórica como referência urbana. na época – fins do século XVIII –, Rio Pardo era um dos principais entrepostos comerciais do Estado. De tempos em tempos, um dos irmãos Terra ia para lá “com a carreta cheia de sacos de milho e feijão, e de onde voltava trazendo sal, açúcar e óleo de peixe”.

A agitação da vida em Rio Pardo contrasta com a rotina monótona dos Terra, entregues às lidas do campo. A cidade fascina os filhos de Maneco. E ele sabe disso, como se pode ver em um dos trechos abaixo:

Antônio Terra voltou com a carreta de Rio Pardo e, depois

de pedir a bênção aos pais, de dar duas palmadinhas no ombro de Ana e Horácio, numa acanhada paródia de abraço, começou a contar as novidades da vila. Assistira aos festejos da entrada do Ano Novo – o 78, explicou – e vira o entrudo, os fogos, o leilão e as cavalhadas. Falou com entusiasmo nos uniformes dos oficiais da Coroa e louvou o conforto de certas casas assoalhadas de madeira. Maneco escutou-o meio taciturno. Sempre temera que os filhos um dia o abandonassem para ir morar no Rio Pardo. Gente moça – achava ele – gostava muito de festa, de barulho e de bobagens...

Em princípios de 89 Maneco Terra realizou o grande sonho de sua vida. Foi a Rio Pardo,

comprou sementes de trigo e conversou com alguns colonos que o haviam plantado com sucesso e que lhe ensinaram preparar a terra e semear. Maneco voltou para casa contente. Pela primeira vez em muitos anos Ana viu-o sorrir. Chegou, abraçou Eulália e Antônio, resmungou constrangido uma palavra para a filha e outra para o neto e foi logo contando as novidades...

O senhor doscruz-altenses

Erico Verissimo é o maior escritor gaúcho

•• Memória

imagem do prédio onde funciona a Fundação Erico Verissimo, construído em 1883. Nele residiu o escritor cruz-altense (acima).

A fonte da Panelinha

O centro do Continente

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72 Uma luz para a história do Rio Grande

São Borja foi a primeira povoação emancipada dos Sete Povos das Missões. Depois de perder o território de Cachoeira, em 1819, Rio Pardo iria ver a emancipação das Missões, com a criação das vilas de São Borja e Cruz Alta, em 1833. Terra dos presidentes,

tricentenária por ter sido fundada em 1682 pelos padres jesuítas espanhóis, São Borja é uma cidade de fronteira que fica separada da cidade argentina de Santo Tomé apenas pelo Rio Uruguai. Ronaldo Colvero, professor da Universidade da Região da Campanha (Urcamp), explica que ela foi criada para ligar os outros seis povoados das Missões a Buenos Aires. O nome homenageia São Francisco de Borja, o terceiro geral (“general”) da ordem dos jesuítas. Foi integrada ao Rio Grande português em 1801, quando da conquista de José Borges do Canto. Pertenceu a Rio Pardo a partir de 1809, emancipando-se dela através da Resolução do presidente da Província, Manuel Antonio Galvão, em 1833 – quando também ocorreu a emancipação de Cruz Alta.

Em 21 de maio de 1834 houve a posse dos vereadores eleitos. A vila foi transformada em cidade por lei de 12 de dezembro de 1887. A princípio, foi um centro militar e também uma espécie de alfândega. nas Mesas de Rendas havia recolhimento de impostos e a localidade se desenvolveu rápido. Mas por volta de 1860, há uma inversão: Uruguaiana passa São Borja, que sofre um declínio.

São Borja tricentenária

Foi em São Borja que nasceram os ex-presidentes Getúlio Vargas e João Goulart, o Jango. Getúlio comandou o Brasil em dois períodos: de 1930 a 1945, caindo com o fim do Estado novo. Retornou em 1951, pelo voto direto, mas não concluiu o mandato – suicidou-se em 1954. Jango, herdeiro político de Getúlio, foi eleito para a vice-presidência em 1960.

Com a renúncia de Jânio Quadros, houve a Campanha da Legalidade e ele assumiu a presidência. Entrou para a história porque foi durante seu mandato que ocorreu o golpe militar de 1964. Jango morreu em Montevidéu, em 6 de dezembro de 1976. Os dois estão sepultados em São Borja, assim como o ex-governador Leonel Brizola, nascido em Carazinho, mas herdeiro de Vargas.

Getúlio, Jango e Brizola

Depois de Cachoeira do Sul, Rio Pardo perde, em 1833, o território das Missões Jesuíticas

Monumento destaca o primeiro dos Sete Povos

Túmulo da família Goulart abriga restos mortais de Jango e também de Brizola

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73Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

Encruzilhadade Santa Bárbara

Teria sido Domingos de Bithencourt o primeiro português a receber sesmarias do governo de Portugal nas terras que hoje formam o município de Encruzilhada do Sul,

por volta de 1771. Com Bithencourt, gente dos Açores, São Paulo, Laguna, Rio Pardo e também índios trazidos das Missões deram origem à povoação de Santa Bárbara de Encruzilhada. A santa teria sido escolhida por ser da devoção de Bithencourt.

no ano de 1799 a capela de Santa Bárbara foi elevada à categoria de Capela Curada. Tornou-se Freguesia em 17 de novembro de 1837 e se desmembrou pela Lei Provincial 178, de 19 de julho de 1849, assinada pelo tenente-general Francisco José de Souza Soares de Andréa, que deu autonomia política ao município. A primeira Câmara de Vereadores foi instalada no ano seguinte. Em 1938 Encruzilhada foi elevada à categoria de cidade. Começou a se chamar Encruzilhada do Sul sete anos depois.

Rio Pardo não queria

Encruzilhada foi o quarto município a se emancipar de Rio Pardo, mas não sem resistência. A prova de que a elite da Cidade Histórica não queria perder a povoação está documentada em carta enviada pela Câmara ao presidente da Província, Manuel Antônio Galvão, em 19 de fevereiro de 1848:

A Câmara Municipal desta cidade, em sessão

de hoje, aceitando a indignação de um de seus membros (...) e julgando poderosas as razões nela emitidas, resolveu fazê-las chegar à presença de Vossa Excelência a fim de dignar-se expô-las à consideração da Assembleia Legislativa Provincial na próxima reunião, significando quão prejudicial se pode tornar a este município da nomeação à categoria de Vila a Freguesia da Encruzilhada, nesta ocasião, em que a Comarca sente a falta das vendas necessárias não só ao engrandecimento da cidade, como para o melhoramento do seu público, desejando antes que fosse permitido a incorporação a este mesmo município a Freguesia de santo Amaro, tendo por limites o Rio Taquari (...).

Primeiro português teria recebido terras por volta de 1771 e dado origem ao povoado

•• Do Master ao MsT

o Movimento dos Agricultores sem Terra (Master) surgiu no Rio Grande do sul em 1960, no município de Encruzilhada do sul. o motivo foi a tentativa de um proprietário de terras de retomar uma área com cerca de 1.800 hectares situada em Faxinal, que havia 50 anos estava em poder de 300 famílias. o primeiro núcleo do Master foi fundado em 24 de junho de 1960. Ganhou o apoio do então prefeito Milton serres Rodrigues, Paulo schilling e Ruy Ramos, três nomes vinculados ao PTB. Associações de agricultores sem terra foram, posteriormente, criadas em dezenas de municípios gaúchos. A partir do segundo semestre de 1961, o movimento ganhou também o apoio de Leonel Brizola, que governou o Estado entre 1959 e 1962.A partir de 1962 surgiram acampamentos de sem-terra com o fim de obter desapropriações de terras e assentamentos. o acampamento inicial foi organizado em sarandi, local onde

houve a primeira desapropriação. A seguir, outros acampamentos foram surgindo. Dentre eles o de Camaquã, que reuniu cerca de duas mil pessoas e resultou no assentamento do Banhado do Colégio. o golpe militar de 1964 encerrou as atividades do Master e só a partir de 1979 a luta pela terra foi retomada no Estado. Foram ocupadas duas glebas que pertenciam ao complexo da Fazenda sarandi: as fazendas Macali e Brilhante. A ocupação é considerada a gênese do MsT (Movimento dos sem Terra), fundado no ano de 1984. Dois anos depois, na estrada em frente às fazendas, foi montado o acampamento de Encruzilhada Natalino. A partir de 1994, Encruzilhada do sul começou a receber assentamentos de sem-terra. o primeiro foi o segredo Farroupilha, seguido dos assentamentos são Pedro (1996), santa Bárbara (1997), Padre Reus (1998), Guará (1999) e Vassoural (2002).

Construção da Igreja Matriz foi iniciada em 1866

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74 Uma luz para a história do Rio Grande

A bela Santo Amaro

Assim como a história de Rio Pardo, a de Santo Amaro também está diretamente ligada às estratégias lusas de dominação do Continente de São Pedro. Por ordem de Gomes Freire

de Andrade, nas duas povoações foram criados depósitos para abastecer as tropas portuguesas

com munição e víveres. Santo Amaro, portanto, surgiu praticamente na mesma época que Rio Pardo. Foi escolhida porque estava situada na margem esquerda do Rio Jacuí, defronte da forqueta então formada pela confluência de uma enorme lagoa com o rio – paisagem natural hoje encoberta pela represa de Amarópolis.

O início do povoamento

no início da década de 1920 a Vila de Santo Amaro, localizada na margem esquerda do Rio Jacuí, possuía cerca de 500 habitantes e 95 prédios. nessa mesma época Margem do Taquari, sede do segundo distrito e que se tornaria sede do município de General Câmara, mostrava-se bem mais próspera. O povoado, iluminado à luz elétrica, contabilizava 210 prédios e uma população estimada em 1.000 moradores. Ali se aquartelava um destacamento de obuzeiros do Exército nacional.

Em 2 de março de 1938, Santo Amaro foi elevada à categoria de cidade por ser sede municipal. Em 19 de novembro do mesmo ano, por decisão do governo do Estado, a sede do município é deslocada para Margem do Taquari. O nome do município é, então, alterado para Margem e no ano seguinte para General Câmara.

>>Também pertenceram a santo Amaro o núcleo colonial Mellos e, durante um breve período, a Freguesia de são sebastião Mártir. Ambos com população na sua maioria de origem alemã, resultaram em outros municípios. Mellos originou primeiro a Vila Mellos e, mais tarde, a sede de Vale Verde. Já são sebastião Mártir deu origem a Venâncio Aires.

Margem cresce mais

A partir de 1754 são distribuídas sesmarias e datas nas redondezas de Santo Amaro, que passa a receber povoadores oriundos do arquipélago de Açores e da Madeira, da Colônia do Sacramento, de Laguna, de São Paulo e de outros lugares do Brasil. Em 1756 é levantada uma primeira capela na localidade. Em 1773, Santo Amaro se torna uma Freguesia. Em 1787 é inaugurada a sua Igreja Matriz, hoje o terceiro templo mais antigo do Estado: fica atrás apenas da Matriz de São Pedro, em Rio Grande, e da Matriz de nossa Senhora da Conceição, em Viamão.

Em 1809, quando acontece a primeira divisão administrativa da Capitania, o território de Santo Amaro passa a integrar o município de Rio Pardo. Em 1831, quando surge o município de Triunfo, começa a fazer parte deste. Depois integra, a partir de 1849, o município de Taquari, que se desgarra de Triunfo.

Santo Amaro ganha autonomia política e administrativa através da lei provincial número 1.285, de 4 de maio de 1881. A tomada de posse dos governantes do município se dá em 13 de janeiro de 1883.

Casarão do século XVIII abrigou a Intendência e a Câmara

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Vila preserva intocadas parte do casario colonial e a igreja mais antiga da região, de 1787

Igreja Matriz, inaugurada em 1787, é a terceira mais antiga do Rio Grande do Sul

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75Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

Foi com João Kochenborger, Henrique Jacob Graeff e Christian Goelzer que se iniciou a Povoação Germânia, no início dos anos 1860. Ao comprarem aquelas terras de sesmeiros ali

já estabelecidos, dividi-las em glebas e revendê-las a colonos, iniciavam o que se tornaria décadas mais tarde o município de Candelária. Situada às margens da estrada do Botucaraí, que ligava os Campos de Cima da Serra com Rio Pardo, Vila Germânia logo se transformou em um entreposto comercial de relativa importância.

Já em 1866 ocorre a criação do distrito de Costa da Serra. Enquanto na porção norte do distrito eram desenvolvidos a agricultura e o minifúndio, na porção sul apareciam grandes propriedades com pecuária extensiva. Em 1876 a Povoação Germânia é elevada à categoria de freguesia, agora com o nome de nossa Senhora da Candelária.

O povoado vai crescendo significativamente. no princípio do século XX já contava com uma série de estabelecimentos comerciais, principalmente na Rua do Comércio – que depois passaria a se chamar Avenida Pereira Rego, em homenagem ao intendente de Rio Pardo. O terceiro distrito era então considerado o celeiro de Rio Pardo e a sua população, estimada em 10.500 almas, começou a reivindicar a sua autonomia político-administrativa.

O coronel José Antônio Pereira Rego, chefe da política republicana, mediou o processo de emancipação da localidade. Reuniões de emancipacionistas começaram a ser realizadas no Clube Rio Branco. O movimento contava, inclusive, com o apoio do também republicano presidente do Estado, Borges de Medeiros. no dia 7 de julho de 1925, foi assinado o decreto de criação do município de Candelária.

Façanha no interiorInstalado em Linha Curitiba, a 2 quilômetros de Candelária, o imigrante João

Kochenborger mandou construir um aqueduto por volta de 1870. Obra grandiosa para a época, com 304 metros de comprimento, 79 arcos e 3 metros de altura. Por ele fluía água captada no Arroio Molha Grande, que acionava duas rodas e movia um engenho de serra, um moinho de milho e trigo, pilões para o cancheamento de erva-mate e um descascador de arroz. Desativado na década de 1940, foi declarado patrimônio histórico em 1988.

Foi porque Rio Pardo queria abrir um caminho mais curto, por meio de uma estrada ou picada, até os Campos de Cima da Serra (então município de Cruz Alta) e assim atrair o comércio daquela zona, que surgiu a Colônia de Santa Cruz. Quem conta é João Bittencourt de Menezes. Em 17 de dezembro de 1849, desembarcam em Rio Pardo os primeiros 12 imigrantes destinados à nova colônia.

A chegada de mais imigrantes europeus resultou na criação de uma nova fronteira agrícola, onde se produzia para a subsistência e venda do excedente ao mercado. Embora a Colônia fosse desvinculada de Rio Pardo, a sua dependência logística era total. Os principais produtos eram o tabaco, o feijão, o milho, a erva-mate e, um pouco mais tarde, a banha de porco. Os excedentes eram canalizados para Rio Pardo e dali, pelo Rio Jacuí, em barcos a remo ou a vapor, para os mercados consumidores do País e até do exterior.

A partir de 1854, quando a Província manda projetar a planta da futura povoação de Santa Cruz, foram muitos os rio-pardenses que ali adquiriram terrenos, acreditando no grande potencial da Colônia. O próprio José Joaquim de Andrade neves, o Barão do Triunfo, mais tarde herói e mártir da Guerra do Paraguai, seria proprietário de um dos primeiros lotes.

A Colônia, emancipada em 1872, só se torna município autônomo no ano de 1878. Assim, continua administrada por seu último diretor, Carlos Trein Filho, contratado pelo governo da Província para cobrar as dívidas dos colonos e realizar medições de lotes. Ao longo do tempo chegam várias levas de imigrantes alemães, que formam famílias numerosas com o seu modelo de agricultura familiar.

Como nasceu Santa Cruz

Colonos fundaram CandeláriaLotes adquiridos por imigrantes e revendidos deram origem à Vila Germânia

Candelária, no início do século XX, funcionava como entreposto comercial

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76 Uma luz para a história do Rio Grande

A Província do Rio Grande de São Pedro do Sul cresce. no período colonial havia quatro municípios e ao se iniciar o Império, cinco; em 1835, já somavam 14. Esse número avançou para 28 no ano de 1860 e, em 1889, ao ser proclamada a República no

Brasil, a Província contava com 61 municipalidades. Além do desenvolvimento das áreas onde predominava a atividade pastoril, esteio da economia de então, o surgimento de novos municípios refletiu também o processo imigratório, sobretudo

da colonização alemã. A corrente de imigrantes germânicos foi a primeira a chegar, a partir de 1824.

A forte presença da população de origem germânica em localidades como São Leopoldo, Montenegro, Estrela, Santa Cruz, São Lourenço, São Sebastião do Caí e Taquara contribuiu decisivamente para que acontecessem as emancipações. no quadro da próxima página estão listados os municípios do Rio Grande do Sul existentes ao terminar o Império, no ano de 1889.

Chega a RepúblicaProvíncia contava com 61 municípios quando se encerra o período imperial no Brasil

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Rio Grande do Sul

1889Fonte: Elaborado a partir do Departamento Estadual de Estatística (1943)

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77Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

•• situação ao final do império

•• o impulso da imigração italiana

1. Caxias,18902. Bento Gonçalves,18903. Lajeado,18914. Venâncio Aires,18915. Júlio de Castilhos,18916. Alfredo Chaves (Veranópolis),18987. Antônio Prado, 18998. Garibaldi,19009. Guaporé,190310. ijuí,191211. Bom Jesus,1913

12. Encantado,191513. Erechim,191814. Jaguari,192015. Flores da Cunha,192416. Nova Prata,192417. Candelária,192518. são Pedro do sul,192619. Guaíba,192620. Novo Hamburgo,192721. sobradinho,192722. Tupanciretã,1928

Logo no início da República e antes mesmo da constitucionalização do Estado, ocorrida em 14 de julho de 1891, foram criadas cinco novas municipalidades. A elas se acresceriam, até 1930, mais 17. o peso da região colonial italiana se faria sentir com firmeza:

•• Novas leis, novas cidades

1938 – governo federal baixa o decreto 311, que estabelece normas para padronizar e uniformizar a divisão territorial no Brasil. Fica definido o sentido dado às palavras cidade e vila – as sedes dos municípios passam a ser denominadas de cidades e lhes dão o respectivo nome. As sedes dos distritos dos municípios são denominadas de vilas, não podendo haver mais de uma vila por distrito. 1944 – Rio Grande do sul possui 92 municípios. 1947 – Constituição estadual passa à Assembleia Legislativa o poder de legislar sobre a divisão territorial-administrativa no Estado. 1948 – aprovada lei que impede novas emancipações, mas é julgada inconstitucional pelo supremo Tribunal Federal. 1953 – nova lei estabelece que as emancipações devem ser precedidas de plebiscitos. 1954 a 1959 – são criadas mais 140 comunas, entre elas Roca sales em 1954, Vera Cruz, Bom Retiro do sul, Faxinal do soturno, Arvorezinha, Agudo e Restinga seca, todas elas surgidas no ano de 1959.1961 e 1965 – são criados mais 80 municípios. No final de 1965 o Rio Grande do sul possui 232 municípios. Entre eles Arroio do Tigre, Barros Cassal e Dom Feliciano, todos criados em 1963.1981 – emancipações que estavam freadas por conta dos governos militares são retomadas. As primeiras 12 ocorrem entre 1981 e 1982, período em que são criados, entre outros, os municípios de salto do Jacuí e Teutônia.

Carazinho (1931)santa Rosa (1931)iraí (1933)Arroio do Meio (1934)Farroupilha (1934)Getúlio Vargas (1934)

Canoas (1939) sarandi (1939)Cacequi (1944) Três Passos (1944) Canela (1944) Marcelino Ramos (1944)

•• Era Vargas

Santo Ângelo–1873/1874 Cruz Alta/São BorjaSanto Antônio da Patrulha–1809/1811 Município primitivoSão Borja–1833/1834 Rio PardoSão Francisco de Assis–1884/1885 São Vicente/ItaquiS. J. B. do Camaquã–1864/1865 Porto AlegreS. J. B. de Quaraí–1875/1875 AlegreteSão Gabriel–1846/1846 Caçapava/Cachoeira/São BorjaSão Jerônimo–1860/1861 TriunfoS. J. do Montenegro–1873/1873 TriunfoSão José do norte–1831/1832 Rio GrandeSão Leopoldo–1846/1846 Porto AlegreS. J. da Reserva (São Lourenço do Sul)–1884/1886 PelotasSão Luís Gonzaga–1880/1881 Santo Ângelo/São BorjaSão Martinho*****–1876/1877 Cruz AltaSão Sebastião do Caí–1875/1876 São LeopoldoSão Sepé–1876/1877 Caçapava/CachoeiraSão Vicente(General Vargas)–1876/1883 São Gabriel/ItaquiSoledade–1875/1875 Passo FundoSão Francisco de Paula 1878/1878 TaquaraTaquara–1886/1888 Sta. C. do PinhalTaquari–1849/1849 TriunfoTorres–1878/1879 Conceição do Arroio(Osório)Triunfo–1831/1832 Porto Alegre/Rio PardoUruguaiana–1846/1847 AlegreteVacaria–1850/1851 Santo Antônio da PatrulhaViamão–1880/1880 Porto AlegreFonte: Fortes; Wagner, (1963).

Município/Criação/instalação Município-mãe

Porto Alegre–1809/1810 Município primitivoAlegrete–1831/1834 CachoeiraArroio Grande–1873/1873 JaguarãoBagé–1846/1847 Piratini/Caçapava/AlegreteCaçapava–1831/1834 Cachoeira/Piratini/Rio PardoCachoeira–1819/1820 Rio PardoCacimbinhas (Pinheiro Machado)–1878/1879 PiratiniCanguçu–1857/1857 PiratiniConçeição do Arroio (Osório)–1857/1858 Sto. A. da PatrulhaCruz Alta–1833/1834 Rio PardoDom Pedrito–1872/1873 BagéDores do Camaquã* (Tapes)–1857/1858 Porto AlegreEncruzilhada–1849/1850 Rio PardoErval–1881/1883 JaguarãoSanto Antônio de Estrela–1876/1882 TaquariItaqui–1858/1859 São BorjaJaguarão–1832/1833 PiratiniLagoa Vermelha–1876/1877 VacariaLavras–1882/1883 Caçapava/Bagén.S.dos Anjos de Gravataí–1880/1880 Porto AlegrePalmeira (das Missões)–1874/1875 Cruz Alta/Passo FundoPasso Fundo–1857/1857 Cruz AltaPelotas–1830/1832 Rio GrandePiratini–1830/1832 Rio GrandeRio Grande–1809/1811 Município primitivoRio Pardo–1809/1811 Município primitivoRosário–1876/1877 São Gabriel/AlegreteSanta Cristina do Pinhal**–1880/1881 Sto/ A. da PatrulhaSanta Cruz–1877/1878 Rio PardoSanta Isabel dos Canudos***–1882/1883 Arroio GrandeSanta Maria–1857/1858 Cachoeira e Cruz AltaSantana do Livramento–1857/1857 AlegreteSanta Vitória do Palmar–1872/1874 Rio GrandeSantiago do Boqueirão–1884/1884 São Borja/ItaquiSanto Amaro****(General Câmara)–1881/1883 Taquari

*A sede do município ficou posteriormente sendo Tapes. Atualmente a localidade é denominada de Vila Vasconcelos.

**Extinto em 1892. Atualmente é distrito do município de Taquara, com o nome de Santa Cristina.

*** Extinto em 1893. Atualmente é distrito do município de Arroio Grande, com o nome de Santa Isabel do Sul.

**** A sede do município foi transferida em 1938 para General Câmara, antiga Margem ou Margem do Taquari.

***** Município extinto em 1901 e incorporado ao município de Santa Maria.

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78 Uma luz para a história do Rio Grande

Omunicípio de Passo do Sobrado é o “filho mais jovem” da histórica Rio Pardo. Sua emancipação ocorreu em 20 de março de 1992. Mas, mesmo sendo recente, o município tem uma história que remonta mais ou menos a 1840, quando começou a colonização.

Os colonos alemães vieram em busca de terras planas para a agricultura. Já os colonizadores lusos, que chegaram primeiro, vieram atrás de terras para a criação de gado e, sobretudo, para encontrarem um lugar seguro onde enfrentar a Revolução Farroupilha.

Em pouco tempo o lugar se tornou rota de tropeiros e mercadores, que iam vender ou comprar seus produtos em Rio Pardo. na entrada da cidade havia um arroio, em cujo passo era feita a travessia. Perto existia um sobrado de madeira, que era uma pousada. no térreo havia espaço para acomodar os animais e, no andar de cima, local para dormir e fazer as refeições. O local ficou conhecido como Passo do Sobrado, nome mantido até hoje.

Último a sair de casaPasso do Sobrado se emancipou de Rio Pardo em 1992

Poucos anos antes de Passo do Sobrado se emancipar, uma outra localidade de grande importância para Rio Pardo se desmembrou. Em 15 de dezembro de 1987, pela lei 8.488, era criado um novo município cuja sede surgiu na década de 1960, durante a construção da BR-290.

Com as obras da rodovia que iria ligar o Estado de Osório a Uruguaiana, o proprietário da Fazenda do Espinilho lançou ali um grande loteamento. A partir de então, a localidade sentiu um impulso econômico com a criação de bovinos e ovinos, os plantios de soja, arroz e trigo e a indústria de beneficiamento de calcário e caulim.

O nome hoje é Pantano Grande, por conta da pronúncia popular. Originalmente, porém, a localidade era conhecida como Pântano Grande porque, muito antes de se pensar em asfaltos, carroças e animais atolavam em seus caminhos pelo fato de o subsolo ser formado, em grande parte, por uma malha de tabatinga.

Pântano virou Pantano

•• RejeiçãoPor volta de 1930, a pequena vila de Passo do sobrado viveu dias de debates acalorados. Por determinação política, o nome da localidade foi trocado para “Flores da Cunha”. José Antônio Flores da Cunha era filiado ao Partido Republicano Rio-grandense (PPR) e fora deputado estadual, federal e senador. Com a posse de Getúlio Vargas na presidência do País, acabou nomeado interventor federal no Rio Grande do sul, cargo que ocupou por sete anos. os defensores da nova denominação acreditavam que a homenagem poderia contribuir ao desenvolvimento da localidade, mas parte da comunidade iniciou uma mobilização pelo nome original. Pouco tempo depois, veio a confirmação: a vila continuaria sendo chamada de Passo do sobrado. A notícia foi recebida com festa. Houve baile em praça pública e churrasco. Flores da Cunha, que nasceu em santana do Livramento em 1880, acabou se tornando adversário político do presidente Vargas. Em 1937 foi forçado a deixar o governo gaúcho, exilando-se no uruguai. Voltou ao Brasil cinco anos depois, quando cumpriu pena de nove meses no presídio de ilha Grande (RJ). Faleceu em 1959.

Contam os moradores que, por volta de 1934, os americanos teriam andado na localidade à procura de terras para implantar a indústria de beneficiamento de fumo Flórida, proprietária de uma cigarreira em São Paulo. no entanto, sem apoio do poder público rio-pardense, o grupo acabou se instalando em Venâncio Aires, onde a fábrica foi inaugurada em 1935. Lá, ela teria mudado o perfil econômico do município.

Progresso poderia ter vindo antes

Local de parada de tropeiros deu origem à localidade

Origem da cidade foi a construção da BR-290

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Page 80: Rio Pardo 200 anos

79Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

Ao se analisar o processo histórico de divisão político-administrativa do Rio Grande do Sul, percebe-se que, ao longo do século XX, houve uma proliferação de municípios com pequena extensão territorial na parte norte do Estado. Já os municípios de maior

superfície se encontram na porção Sul. Ao se observar o mapa atual (ao lado), é notório que há um número muito maior de municípios na metade norte do território gaúcho.

Segundo a professora de Geografia da Unisc, Virgínia Etges, isso é resultado, em um primeiro momento, da forma como se deu a apropriação das terras e do uso que se fez delas. A geógrafa explica que na metade norte a ocupação das terras se deu com a vinda de imigrantes europeus, a partir do início do século XIX, que se estabeleceram em pequenas propriedades rurais, trabalhadas pelas famílias. A produção nessas áreas coloniais era diversificada, o que fez com que o comércio se fortalecesse e deu início à industrialização, no começo do século XX. “Como eram famílias numerosas, a densidade demográfica também aumentou rapidamente na metade norte do Estado. Somados a esses aspectos, os interesses políticos se diversificavam e se intensificavam, na medida em que as comunidades reivindicavam para si a gestão de suas vilas.”

Rio Grande do Sul 2010

Norte e Sul em polos opostosOcupação da terra com predomínio do minifúndio fez surgir grande número de municípios com área territorial pequena

Uma Luz para a história do

Já na metade Sul se estabeleceram grandes propriedades rurais, predominantemente dedicadas à pecuária extensiva, que não necessitava de muita mão de obra. Como essas eram transmitidas, em grande parte, de geração para geração, o poder político também ficava sob o controle dessa elite. “O comércio pouco se desenvolveu e a indústria menos ainda, na medida em que os bens necessários eram comprados em outras regiões ou mesmo no exterior. Os interesses econômicos e políticos não se diversificaram, o que se expressa nos municípios de grandes extensões até hoje.”

Page 81: Rio Pardo 200 anos

80 Uma luz para a história do Rio Grande

A Revolução Farroupilha

Quando estourou a Revolução Farroupilha, além da renomada

fama de “invicta”, Rio Pardo detinha grande importância econômica e militar. Juntamente com Rio Grande e Porto Alegre, formava o tripé do domínio imperial na Província de São Pedro. Em função disso, a tomada de Rio Pardo pelos revolucionários de 1835 tinha, além de caráter estratégico, um forte componente simbólico. Durante os dez anos em que transcorreu a Revolução Farroupilha, a Vila de Rio Pardo foi várias vezes conquistada pelos farrapos e retomada pelos legalistas, conforme pode ser visualizado no quadro da página ao lado.

GuERRAs CiVis ABALAM o Rio GRANDE

O Rio Grande do Sul tem sua história marcada por lutas internas; Revolução Farroupilha dividiu a Província; Revolução Federalista de 1893 foi a mais sangrenta; ainda no século XX haveria nova guerra civil.

J.B. MOttInI, 1980, COLEÇÃO SAMRIG

Page 82: Rio Pardo 200 anos

81Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

Estancieiros em nova guerra

A Guerra dos Farrapos foi de transcendental importância para a constituição da

identidade rio-grandense. Foi uma rebelião de caráter liberal que ocorreu entre 1835 e 1845. Os altos impostos sobre produtos produzidos pela Província do Rio Grande, especialmente o charque, e o descontentamento das elites locais com a excessiva centralização do poder podem ser considerados os estopins do conflito.

Ele se iniciou em 20 de setembro de 1835, quando os rebeldes tomaram a Capital, Porto Alegre. Parcela da sociedade gaúcha se rebelou contra o governo central e chegou a fundar a República do Piratini. A Revolução se expandiu para o Estado de Santa Catarina, onde foi fundada a República Juliana. Com a derrota dos farrapos Luís Alves de Lima e Silva, o Duque de Caxias, em nome do Império, negociou com os revoltosos a anistia e uma “paz honrosa”. Isso se traduziu

Descontentamento das elites locais e altos impostos foram os estopins do conflito

•• O vaivém

20 de setembro de 1835 Início da Revolução com a tomada de Porto Alegre pelos farroupilhas

9 de outubro de 1835 Farrapos tomam Rio Pardo pela primeira vez.Líder farroupilha: Sebastião Xavier do Amaral Sarmento Mena. Líder Imperial: José Joaquim de Andrade Neves.

11 de novembro de 1836 Combate da Ponte do Couto. No mesmo ano Porto Alegre, que estava há meses cercada pelos farroupilhas, foi salva pelas forças imperiais do coronel Bento Manoel Ribeiro. Partidários do Império comemoraram em Rio Pardo. Durante os festejos o português Antonio Joaquim da Silva, o Menino-Diabo, e seus seguidores derrotaram os legalistas e se apoderaram da vila. Consta que saquearam Rio Pardo em 26 de julho de 1836. Para socorrer a população, tropas imperiais foram enviadas. O confronto se deu em 11 de novembro de 1836 e a tropa do Menino-Diabo foi derrotada.

10 de janeiro de 1837Farrapos conquistam Rio Pardo depois de confronto com as tropas imperiais, comandadas por José Joaquim de Andrade Neves. Um mês depois, em 13 de fevereiro de 1837, Rio Pardo voltaria às mãos dos imperiais.

30 de abril de 1838 Combate do Barro Vermelho. Novo confronto entre farroupilhas e imperiais. Essa foi considerada a pior derrota dos legalistas na Revolução.

25 de novembro de 1839 Imperiais retomam a Vila de Rio Pardo. Após esse combate ficam no poder até o fim da Revolução, em 1845.

28 de fevereiro de 1845 É assinada a Paz de Ponche Verde e termina a Revolução.

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•• Os dois lados em Rio Pardo

Em Rio Pardo predominavam os adeptos do Império, que controlavam a Câmara Municipal. Andrade Neves era o presidente da Câmara, cargo que equivaleria hoje ao de prefeito.

Também chamados de farrapos, republicanos e liberais. Entre os rio-pardenses se destacaram os membros da família Amaral, dentre eles o poesta Sebastião Xavier e Francisco de Paula do Amaral Sarmento Mena, Manoel Lobo Ferreira Barreto, Cândido de Azambuja e Simeão Gomes Barreto.

Defendiam o governo imperial brasileiro e a manutenção da Província nas mãos do Império. Também chamados de legalistas ou caramurus. Entre os rio-pardenses se destacaram, entre outros, José Joaquim de Andrade Neves, que depois viria a ser o Barão do Triunfo, João da Silva Barbosa, Manoel Alves de Oliveira, José Ferreira de Azevedo e Paulo Nunes da Silva Jardim.

O termo Farroupilha é anterior à Revolução de 35 e não se originou na Província. Não deriva da suposta roupa surrada e esfarrapada que seus integrantes

Farroupilhas

Imperiais

na assinatura da Paz de Ponche Verde, em 28 de fevereiro de 1845. Durante os 3.466

dias de conflito teriam morrido cerca de 5 mil combatentes, entre legalistas e rebeldes.

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Page 83: Rio Pardo 200 anos

82 Uma luz para a história do Rio Grande

Monumento à Batalha do Barro Vermelho, na Praça 30 de Abril

A batalha do barro Vermelho foi um dos mais sangrentos combates da

história do Rio Grande do Sul. Ela foi também uma importante vitória para os revoltosos durante a Revolução Farroupilha. Desde 17 de março de 1838 os rebeldes se encontravam acampados em Pederneiras, situada a pouco mais de duas léguas da vila. Os imperiais, que guarneciam o local com 1.700 homens, sendo 500 da cavalaria, esperavam o ataque dos republicanos pela ponte sobre o Rio Pardo. No entanto, depois de receberem reforços, os farrapos abriram uma picada por banhados e atoleiros, transpuseram o Rio Pardo por uma ponte improvisada e acamparam em Rincão Del Rey, em 27 de abril. Ali, forças de Davi Canabarro surpreenderam tropas comandadas por Andrade Neves, que teve de recuar até o barro Vermelho.

O barro Vermelho era uma coxilha descampada onde os legalistas prepararam a defesa da vila. Ali foi aberta uma trincheira e três peças de artilharia foram colocadas. Vários regimentos ficaram postados nas cercanias. Às 5 horas da manhã do dia 30 de abril, os combatentes farroupilhas se puseram em marcha com seus 3 mil soldados. Ao romper do dia, cerca de 5 mil homens estão em combate. É grande o entrevero. Ouve-se gritos, o tropel de cavalos e o retinir de lanças. brilham e faíscam as espadas, rufam os tambores, tocam os clarins e as cornetas. A luta é terrível, enérgica e violenta. Após uma hora de enfrentamento, ao raiar do sol, os farroupilhas furam a resistência imperial pelo centro. O pânico se

Batalha do Barro VermelhoConfronto terminou com a vitória dos revoltosos de Davi Canabarro

generaliza entre os imperiais. Alguns regimentos fogem, outros se entregam e outros ainda – como o comandado pelo coronel Guilherme José Lisboa – lutam até caírem mortos. No combate ficam em poder dos republicanos nada menos do que oito peças de artilharia, milhares de armas de infantaria, 8 mil cartuchos embalados, os valores da pagadoria e os víveres do comissariado. há 370 mortos e 800 prisioneiros. Os farroupilhas tiveram baixas de aproximadamente 200 de seus colaboradores, entre mortos e feridos. O comércio da vila sofreu um prejuízo não inferior a 1.200 contos pelas requisições feitas. Estas não atingiram somente a vila, mas também as embarcações que apareciam no porto. Foi um dos maiores fracassos que as tropas imperiais sofreram em terras do Rio Grande do Sul.

O olhar do maestro

Joaquim José de Mendanha é um maestro mineiro, compositor do hino do Rio Grande do Sul. Sandro Lanari, personagem fictício, é um pintor italiano em busca de uma nova vida no brasil. Em comum, eles têm o município de Rio Pardo como parte de sua biografia. E protagonizam dois romances do escritor porto-alegrense Luiz Antonio de Assis brasil: Música perdida (2006) e O pintor de retratos (2001).

Assis brasil escreveu também Videiras de cristal, Concerto campestre e outras obras. É um dos mais respeitados autores brasileiros e tem vínculos fortes com o Vale do Rio Pardo: é casado com uma santa-cruzense, a também escritora Valesca de Assis. Além disso, “tive antepassados rio-pardenses”, garante. “Rio Pardo necessariamente teria de estar em qualquer literatura que tenha por cenário o Rio Grande do século XIX, isso pela razão de ser uma cidade mítica no inventário histórico do Sul. Foi a tranqueira Invicta em nosso solo, e tudo passava por lá. Encanta-me, também, a arquitetura que – salvo alguns descuidos – é um belo documento de nosso Outrora”, ressalta.

Em Música perdida, Mendanha chega à Província após uma série de desencontros e frustrações. Ingressa no Exército e aporta em Rio Pardo em plena Revolução Farroupilha. termina aprisionado pelos farrapos. Já Sandro Lanari, decepcionado com a popularização da fotografia na Europa – e também para esquecer uma decepção amorosa – vem se aventurar no Rio Grande. torna-se também fotógrafo e testemunha da sangrenta Revolução Federalista de 1893.

DOUGLAS MAChADO

Luiz Antonio de Assis Brasil

LULA hELFER/AG. ASSMANN

Page 84: Rio Pardo 200 anos

83Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

Marco para o tradicionalismoA Revolução Farroupilha é o

principal acontecimento histórico na constituição do imaginário do gaúcho e sua cultura tradicionalista. Foi inspirado na ideia de que a revolta farrapa significou heroísmo e determinação por parte dos rio-grandenses que, decorrido cerca de um século, começaram a surgir os Centros de tradição Gaúcha e todo um movimento de cunho regionalista. Chegam

ao século XXI com vigor capaz de reforçar mundo afora a imagem de um povo. Independente de ser ela real ou não.

Em se tratando da batalha do barro Vermelho, tradicionalistas rio-pardenses e de cidades vizinhas, como Santa Cruz do Sul e Pantano Grande, reúnem-se todo ano no local onde ocorreu o combate, sempre em 30 de abril, para recordar a maior vitória dos farrapos sobre os imperiais.

O hino Rio-grandense tem sua origem na Revolução Farroupilha. Pelas pesquisas do rio-pardense biagio

tarantino, publicadas em jornal da Capital em 1975, no dia 30 de abril de 1838 – após a derrota do exército imperial no barro Vermelho – foi aprisionada a banda de música completa de um dos batalhões da infantaria legal. Dela era mestre Joaquim José de Mendanha, um mineiro considerado estrangeiro pelos farroupilhas. A banda seria a melhor que os imperiais possuíam no Rio Grande do Sul e foi tratada com afago pelos farroupilhas, que não dispunham de uma banda marcial.

terminado o combate, a banda de Mendanha, tocando peças musicais, teve que puxar as tropas vencedoras que desfilaram pelas ruas da Vila de Rio Pardo. Na praça da Matriz foram dados vivas ao exército vencedor, à República Rio-grandense e aos chefes farroupilhas. Uma semana depois, em um grande baile em homenagem às forças revolucionárias pelo triunfo obtido, foi tocado e cantado pela primeira vez o hino republicano – composto por Mendanha. A melodia do maestro se constitui no atual hino Rio-grandense.

há, no entanto, os que divergem do fato de que ele teria sido composto em Rio Pardo. Moacyr Flores, doutor em história e professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, entende que não havia “clima” para se conceber um hino. “Como alguém poderia escrever uma música em plena guerra?”, indaga.

A verdade é que, no que diz respeito à letra do hino, houve três. A original é de autoria de Serafim Alencastro. Ela enfatizava duas datas expressivas: o 20 de setembro e o 30 de abril. No fim do Império, uma outra versão da letra do hino estava em uso. A terceira versão é de autoria de Francisco Pinto da Fontoura, o “Chiquinho da Vovó”, velho guerreiro farroupilha. Mas o hino, terminada a revolução, ficou no ostracismo por quase 50 anos.

Somente nos últimos anos da monarquia ocorreu a reabilitação pelos propagandistas republicanos liderados por Júlio de Castilhos. O hino original voltou à tona pelas mãos do rio-pardense José Gabriel teixeira, que o publicou no jornal A Federação, em 1887. Foi adotado em 1892 como hino Oficial do Estado, juntamente com a letra de Francisco Pinto da Fontoura.

Quanto à banda, ela foi levada depois para Piratini – cidade capital dos farroupilhas – , onde animou bailes promovidos pelos republicanos. Em novembro de 1839, quando Francisco Pedro de Abreu retomou a Vila de Rio Pardo para os imperiais, recuperou a banda de Mendanha.

Berço do Hino Farroupilha

•• As duas versões

A atualComo aurora precursoraDo farol da divindadeFoi o Vinte de SetembroO precursor da liberdade

Mostremos valor, constância,Nessa ímpia, injusta guerra,Sirvam nossas façanhasDe modelo a toda a terra!

Mas não basta para ser livreSer forte, aguerrido e bravo.Povo que não tem virtudeAcaba por ser escravo.

Mostremos valor, constânciaNessa ímpia, injusta guerra,Sirvam nossas façanhasDe modelo a toda a terra!

A primeiraNo horizonte rio-grandenseSe divisa a divindade, Extasiada em prazerDando viva à liberdade!

Da gostosa liberdadeBrilha entre nós o clarão;Da constância e da coragemEis aí o galardão.Avante ó povo briosoNunca mais retrocederPorque atrás fica o abismoQue ameaça vos tragar.

Da gostosa liberdadeBrilha entre nós o clarão;Da constância e da coragemEis aí o galardão.Salve o Vinte de SetembroDia grato e soberano,Aos livres continentistas,Ao povo republicano!

Da gostosa liberdadeBrilha entre nós o clarão;Da constância e da coragemEis aí o galardão.Salve ó dia venturosoRisonho trinta de abrilQue aos corações patriotas,Enchestes de gotas mil!

Da gostosa liberdadeBrilha entre nós o clarão;Da constância e da coragemEis aí o galardão.

Prisioneiro, o mestre da banda imperial fez a melodia

Page 85: Rio Pardo 200 anos

84 Uma luz para a história do Rio Grande

•• Trechos

“Netto vai atacar Rio Pardo”

O ano é 1838. O chefe máximo do exército farroupilha, general bento Gonçalves, discute os rumos da revolução

com seu aliado, o italiano Giuseppe Garibaldi. bento anuncia uma ação que fará a balança pender para o lado dos farrapos:

“– Netto vai atacar Rio Pardo.” Netto é o general Antonio Sousa Netto, maior liderança depois de Gonçalves. O ataque às forças imperiais aconteceu em 30 de abril do mesmo ano. O episódio é reconstituído com maestria pelo escritor gaúcho tabajara Ruas, no romance épico Os varões assinalados, lançado em 1985.

Com mais de três mil homens – a maior concentração de tropas republicanas desde o início da guerra – os rebeldes dominaram o contingente imperial de 1.700 homens chefiado pelo marechal Sebastião barreto Pereira Pinto. Ao lado dele, estava o então major Andrade Neves. A arena é o barro Vermelho. “É um terreno alto e parelho, a meia légua de Rio Pardo. É flanqueado, à direita, por um bosque

dividido em dois pelo Arroio do Pontão e, à esquerda, pelo Arroio do Couto”, descreve Sebastião barreto.

Do lado farrapo estavam Netto, Davi Canabarro, Domingos Crescêncio, coronel teixeira Nunes

– o comandante do Corpo dos Lanceiros Negros –, bento

Manuel Ribeiro, João Antonio. Os revolucionários desejam quebrar o tabu da invencibilidade da tranqueira Invicta. “Rio Pardo tem tradição. Nunca foi derrotada”, alerta o

general João Antonio. O primeiro hino da

República Rio-Grandense teria surgido desse combate, que

terminou com a vitória dos farrapos. A banda do exército legalista, coordenada pelo maestro Joaquim José Mendanha, foi incorporada às fileiras rebeldes. “Antonio de Sousa Netto, pala esvoaçando, entrou em Rio Pardo como conquistador, à frente de Domingos Crescêncio e de sua tropa, reforçada pelo Corpo de Lanceiros Negros – e ladeado por bento Manuel e Davi Canabarro”, escreve tabajara Ruas. Lideranças imperiais como Sebastião barreto, Andrade Neves e Xavier da Cunha fugiram.

Durante toda a noite os imperiais ouviram os tambores e o canto de guerra dos lanceiros negros. De madrugada, a ponte de madeira

do Arroio do Couto estremeceu. Grande massa de cavaleiros a atravessava. As sentinelas deram o alarme.– Os farrapos! Os farrapos!Dos bosques espessos que circundam o Barro Vermelho, em formação rigorosa, começaram a sair os esquadrões de infantes do exército republicano. Marchavam lentamente, com as bandeiras úmidas, os tamborileiros marcando o soturno compasso da marcha. Durante mais de uma hora foram surgindo, lentos e imperturbáveis, estendendo as linhas em formação de combate. Por fim, apareceram as pesadas carretas com as bocas de fogo, apontadas em direção ao exército imperial.

As duas cavalarias jogaram-se uma contra a outra. Separava-as um terreno de menos de trinta metros. O resto do combate silenciou: todos os

olhares voltaram-se para o encontro. De ambos lados, as lanças estavam apontadas para baixo, os palas estalavam como bandeiras, os chapéus se dobravam à força do vento, os olhos dos cavalos esbugalhavam-se, as patas faziam respingar postas de barro, os homens começaram a gritar com fúria e desespero e o terreno entre eles diminuiu e já estavam frente a frente: cavalos, homens, armas, bandeiras. Frente a frente: imagens num espelho, iguais na fúria, nos gritos, nos rostos, nas lanças. Chocaram-se. Rasgaram caminho abrindo fontes de sangue e dor, cavalos disparavam sem cavaleiros.

GUILhERME LItRAN, CARGA DE CAVALARIA FARROUPILhA, ACERVO DO MUSEU JúLIO DE CAStILhOS/PORtO ALEGRE

•• Os comandantesPelo lado Farroupilha: generais Antônio de Souza Netto; Bento Manoel Ribeiro; Davi Canabarro; João Antônio da Silveira.

Pelo lado Imperial: marechal Sebastião Barreto Pereira Pinto; brigadeiros Francisco Xavier da Cunha e Bonifácio Isás Calderón; coronel Guilherme José Lisboa; Andrade Neves.

A Batalha do Barro Vermelho na literatura em obra de Tabajara Ruas

Page 86: Rio Pardo 200 anos

85Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

A vinda da família real ao brasil, em janeiro de 1808, provocou mudanças profundas na vida da colônia. Uma delas

atingiu as comunicações. O primeiro equipamento tipográfico veio junto no porão da nau Medusa, sob os cuidados do marchand francês Joachim Lebreton, o Conde da barca, amigo de D. João VI.

O equipamento foi instalado no Rio de Janeiro. Em 31 de maio de 1808 D. João oficializou a criação da Imprensa Régia e, em

setembro daquele mesmo ano, circulou a Gazeta do Rio de Janeiro, considerado o primeiro jornal oficial do brasil. Antes dele existia, na clandestinidade, o Correio Braziliense, criado pelo jornalista gaúcho Hipólito José da Costa. A impressão era feita na

Inglaterra. Anterior a esse período, ocorreram tentativas de implantar

jornais em Pernambuco (1706), Rio de Janeiro (1747) e Minas Gerais (1807). No

entanto, elas foram suprimidas por ordem da Coroa Portuguesa, como forma de manter o domínio sobre a colônia.

De acordo com o escritor, jornalista e professor Sérgio Dillenburg, organizador e primeiro diretor do Museu de Comunicação Social hipólito da Costa, a imprensa antiga do Rio Grande do Sul se caracterizava pelas disputas partidárias e pelo uso de uma linguagem violenta. Para cada ação, havia uma reação. Em 1838, em pleno período Farroupilha, foi lançado o jornal O Povo, pró-farrapos. Em contrapartida surgiu O Mensageiro, em defesa dos legalistas.

A guerra, conforme ele, inibiu o crescimento dos jornais no Estado, pois havia dificuldades para a aquisição de papel, tipos móveis, tinta e outros produtos importados da Europa. Além disso, os tipógrafos eram escassos e os leitores eram poucos, fruto do alto índice de analfabetos.

Nas três décadas que se sucederam à Guerra dos Farrapos (encerrada em 1845), a imprensa sofreu com o empobrecimento da população e da economia em geral.

Disputas partidárias

A imprensa no Brasil•• O autor

Romancista reconhecido nacionalmente, Tabajara Ruas é natural de Uruguaiana (RS). É autor de Os varões assinalados, Netto perde sua alma e O amor de Pedro por João, entre outros. Também é um homem de cinema. Escreveu e dirigiu o curta-metragem O dia em que Dorival encarou a guarda (1987), de Jorge Furtado e José Pedro Goulart, além do longa-metragem Netto perde sua alma, ao lado de Beto Souza. Entre 2002 e 2003 foi consultor especial da Rede Globo para a produção da minissérie A casa das sete mulheres.

Tabajara Ruas

•• Porto AlegreConforme o professor e historiador Antônio Hohlfeldt, Diário de Porto Alegre tinha tamanho pequeno (28 cm x 18 cm) e duas páginas, logo ampliadas para quatro. O jornal gerou problemas entre o presidente da Província, Salvador José Maciel, e a oficialidade do Império, pois denunciava ações dos militares no território. Ele chegou a 293 edições. Os responsáveis eram Cláudio Dubreuil e Estivalet, dois franceses aventureiros vindos da Argentina e que foram contratados pelo governo gaúcho.

•• Província de São Pedro

√ O primeiro jornal foi o Diário de Porto Alegre, cuja edição inaugural data de 1º de junho de 1827.

√ O segundo foi O Noticiador, em 3 de janeiro de 1832, em Rio Grande. Durou quatro anos e o seu editor era Francisco Xavier Ferreira.

√ Em 1835 apareceu, em Santo Antônio da Patrulha, O Pharol. Tinha como responsável o advogado e vereador Eleutério José Ferreira Mendes. Não há maiores informações e nenhuma edição do jornal. Não se sabe quanto tempo durou.

√ Rio Pardo foi o último dos quatro municípios pioneiros a ter um periódico. Foi o Correio de Rio Pardo, que começou a circular em 1853. Não há registros de publicações anteriores.

Primeiro jornal oficial foi a Gazeta do Rio de Janeiro, que começou a circular em 1808

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A Sentinella foi o primeiro periódico ilustrado do RS

Page 87: Rio Pardo 200 anos

86 Uma luz para a história do Rio Grande

Em 30 de março de 1887 O Lutador publica nota, assinada por heráclito Americano de Oliveira, informando o fim das atividades. Logo em seguida, em maio de 1887, heráclito lança O Patriota, que, para muitos pesquisadores, foi o mais importante periódico da história antiga de Rio Pardo.

O novo jornal não escondia suas preferências políticas e fazia questão de esclarecer seus objetivos: “Combater a escravidão, louvar as mulheres e estar sempre na vanguarda dos grandes acontecimentos sociais”. heráclito era republicano e abolicionista convicto. também foi deputado constituinte em 1891.

Estudioso da história rio-pardense, Ciro Saraiva diz que o periódico teve participação importante na vida comunitária e acompanhou os fatos mais importantes do município e da região. Fazia campanhas pela proclamação da República e pela abolição, pagando cartas de alforria para os escravos.

Polêmico e engajado

O jornal mais antigo que pode ser visto no Arquivo histórico de

Rio Pardo chama-se A Restauração, editado em 1885. Seu proprietário era Evaristo Fernandes de Siqueira. Sua sede ficava na Rua General Andrade Neves, 61, e a tipografia era na travessa da Matriz, número 8. Circulava às quintas-feiras e aos domingos.

A Restauração, no entanto,

não é o mais antigo periódico rio-pardense e regional. O primeiro jornal circulou em 1853 e se chamava Correio de Rio Pardo. Em 1864, havia também A Imprensa. Não existem informações maiores sobre eles e nem edições preservadas. Sua existência foi constatada em atas do período e o registro foi feito no livro Breve histórico da imprensa sul-rio-grandense, de Jandira Silva, Elvo Clemente e Eni barbosa.

Os jornais em Rio Pardo

Tipografia do mais

antigo jornal com

exemplar preservado

em Rio Pardo

ficava na Travessa da Matriz

Dos mais antigos, não restaram exemplares

Entre os primeiros jornais de Rio Pardo e, por consequência, da região, está também O Lutador, surgido em 1886. A sede se situava na Rua da Imperatriz, números 8 e 11. Seu diretor foi heráclito Americano de Oliveira, junto com horácio Maisonette. Dizia-se imparcial e defensor dos interesses do 6º Círculo.

Em sua edição de 15 de dezembro de 1886, ele informa que os alicerces do prédio da Câmara Municipal da Villa de Santa Cruz estão prontos. E pede que as pessoas interessadas em contractar essa obra

façam suas propostas ao engenheiro Carlos trein Filho, encarregado da direcção e fiscalização da construção.

Quando o jornal completou um ano de existência, sua direção convidou amigos e vizinhos para a festa comemorativa. Ao noticiar o evento, citou a manifestação do “intelligente” jovem Americano de Oliveira. Falou ainda o “illustrado, bravo e independente militar, o tenente-coronel Antônio de Sena Madureira”. Os dois eram amigos, defensores da República e abolicionistas.

Republicanos à frente

Saraiva e exemplares do Patriota, impressos em tecido

RODRIGO/AG. ASSMANN

Page 88: Rio Pardo 200 anos

87Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

Durante muitos anos, a história da imprensa cita Joana Paula Manso de Noronha como a primeira jornalista brasileira, em 1852. O fato, no entanto, é contestado por alguns pesquisadores. Eles apontam a gaúcha –

que pode inclusive ter nascido em Rio Pardo – Maria Josefa barreto Pereira Pinto como a primeira mulher jornalista. Raramente mencionada pelos estudiosos, Maria Josefa barreto Pereira Pinto foi poetisa, escritora, professora e jornalista. Era filha adotiva de teodózio Rodrigues de Carvalho e Josefa Joaquina da Conceição, casal de posses de Viamão. teodózio era tio de Dom Feliciano Rodrigues Prates, primeiro bispo do Rio Grande do Sul.

Em 17 de dezembro de 1800, aos 15 anos, ela se casou em Rio Pardo com Manuel Inácio Pereira Pinto, primeiro carcereiro da cadeia de Porto Alegre. O marido, por ter deixado escapar um preso, foi condenado e desapareceu para sempre, deixando a esposa e um casal de filhos. Como meio de subsistência, Maria fundou em Porto Alegre uma escola primária mista que funcionava na sua casa. teria sido o primeiro curso misto no País.

Em novembro de 1833 ela criou o seu jornal, batizado com o estranho nome de Belona irada contra os sectários de Momo ou, simplesmente, Belona. O semanário saiu 19 anos antes do Jornal das Mulheres, do Rio de Janeiro – apontado como o primeiro jornal de mulheres do brasil –, e durou até novembro de 1834.

Belona era um jornal político, polêmico, com objetivos muito diferentes dos do Jornal das Mulheres. Por isso mesmo, não fez escola e não se tornou modelo para os periódicos feministas do século 19. Segundo a pesquisadora Zahidé Lupinacci Muzart, Maria Josefa não foi uma lady, mas sim uma mulher trabalhadora, “de faca na bota”.

A primeira jornalista do País

No século XIX se tornou comum o surgimento de jornais de mulheres. Além de oferecerem lazer e cultura, tinham objetivos básicos: lutar pelo direito à educação, o direito à profissão e, mais tarde, o direito ao voto. Os títulos eram geralmente irônicos. Em meio a muita poesia, as autoras defendiam, de forma sutil e bem-humorada, as suas bandeiras de luta.

O Arquivo histórico de Rio Pardo guarda jornais femininos feitos na cidade, dos primórdios do século XX, em tamanho de papel ofício. O mais antigo chamava-se Incentivo, de 1908. Em 1928 surgiu O Alfinete, órgão do “Partido Feminista”. Focava-se em textos irônicos, brincadeiras e poemas. Os diretores se identificavam como Os três Mosqueteiros. Os redatores eram o Intruso e o Remeleixo.

Mulheres, na defesa de direitos

Maria Josefa Barreto Pereira Pinto deixou Rio Pardo e criou seu próprio jornal, em Porto Alegre, em 1833

•• Avançada para o seu tempo

A jornalista gaúcha, que faleceu em 9 de novembro de 1837, em Porto Alegre, foi adversária dos farrapos. Ela também colaborava com o jornal Idade d’Ouro, de Manuel dos Passos Figueroa, lançado em 1833. As pesquisadoras Hilda Hübner Flores e Zahidé Lupinacci Muzart são estudiosas da obra de Maria Josefa e garantem que ela foi uma mulher avançada para o seu tempo.

•• Jornal feito de panoO Arquivo Histórico de Rio Pardo guarda duas edições de O Patriota impressas em tecido, algo que ocorria, geralmente, em comemoração de datas especiais. No dia 8 de junho de 1889, foi publicada edição na cor vermelha e em 30 de junho do mesmo ano, na cor azul. Numa época em que o consumismo era muito menor, os jornais em tecido eram bem aproveitados. Depois de lidos podiam ser transformados em panos de chão ou mesa, toalhas, cortinas e até em peças do vestuário das famílias mais pobres. Outro jornal em pano preservado no Arquivo Histórico é A Pátria, lançado em 1895. A sede ficava na Rua 15 de Novembro, 30.

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88 Uma luz para a história do Rio Grande

A grande educadora de Rio Pardo

Anna compartilhou o gosto pela escrita com as irmãs Carlota e Zamira. A poesia tinha longa história em sua família: eram poetas Sebastião Xavier do Amaral Sarmento Mena e Francisco de Paula do Amaral Sarmento Mena.

Anna vai se dedicar quase exclusivamente ao texto de cunho didático, sobre temas morais, religiosos e políticos. Era abolicionista desde os tempos de estudante e sua leitura predileta era Castro Alves, o poeta dos escravos. Nele se inspirou para escrever alguns poemas, como Vozes, de 1886. Ainda muito jovem, Anna Aurora fez voto de pobreza: não possuía nada além do necessário às suas necessidades materiais. Assim foi até sua morte em março de 1951, aos 90 anos.

Uma das personalidades mais brilhantes e polêmicas da história de Rio Pardo, Anna Aurora do Amaral Lisboa deixou sua marca nas letras, na

educação e na política. Como escritora legou peças teatrais, poemas e artigos publicados em jornais. O livro Preitos à liberdade, lançado em Rio Pardo em 1910, representa sua contribuição à poesia. Mas é no teatro que estão as melhores realizações de Anna Aurora, com as peças A culpa dos pais e As vítimas do jogo.

Pedagoga, Anna se tornou “a grande educadora de que Rio Pardo pode e deve orgulhar-se pelos séculos afora”, segundo seu biógrafo Walter Spalding. Ela se dedicou ao ensino durante 55 anos. Ao lado da irmã Zamira fundou, em 1893, o Colégio Amaral Lisboa, ainda em atividade. também criou um dos primeiros cursos supletivos do Estado, em 1915.

A trajetória intelectual e profissional de Anna Aurora foi pautada na defesa de suas convicções políticas. Poesia, prosa e dramaturgia foram sempre um meio para divulgar seus ideais. Partidária dos rebeldes na Revolução Federalista (1893-1895), ela foi uma crítica ferrenha

do governador Júlio de Castilhos e do presidente Floriano Peixoto (1891-1894). E pagou um preço por isso. As posições políticas ficaram registradas em verso em Preitos à liberdade. Quase todos os poemas desse livro foram divulgados, em primeira mão, pelos jornais A Reforma, de Porto Alegre, e O Patriota, de Rio Pardo. Anna foi colaboradora desses periódicos e também do Correio do Povo. Publicava às vezes sob pseudônimos, como Aura Lys e José Anselmo.

Participou dos debates polêmicos da sua época como a discriminação social e econômica em relação à mulher, a necessidade de ensino para todos, a defesa da liberdade de pensamento e a questão escravista. Para alguns, Anna Aurora teria sido a primeira feminista gaúcha. teria sido a primeira mulher a defender ideias abolicionistas. No artigo “A mulher e sua missão na sociedade” (1894), ela afirma: “Não se negue à mulher certos direitos que não são, nem podem ser, privilégio exclusivo do homem, tais como o de defender-se como puder quando é atacada, e o de ter ideias, de pensar, de julgar, enfim, de externar, quando lhe aprouver, o seu juízo sobre as coisas e os acontecimentos”.

Casa de leitores e escritores

•• Os serões do pai

Anna Aurora do Amaral Lisboa nasceu em 24 de setembro de 1860. Foi a décima filha do casal Joaquim Pedro da Silva Lisboa, cujo avô chegou clandestinamente de Portugal, e Maria Carlota Amaral. Seu pai, além de comerciante, era militar e agente dos Correios. Assim ela descreve, em 1944 – em função dos sessenta anos da morte do pai – o contato com ele na adolescência:

À noite, consagrava ele o serão à leitura que fazia em voz alta, à cabeceira de uma

mesa em volta da qual nossa boa mãe e nós fazíamos crochê [...] E muitas vezes o pai leitor acrescentava comentários explicativos procurando, por esse meio, chamar a atenção dos filhos para certos pontos mais delicados ou de maior proveito para a vida prática.

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Anna Aurora do Amaral Lisboa esteve à frente do seu tempo

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89Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

Os textos teatrais de Anna Aurora causaram intensa repercussão em sua época. A primeira peça foi escrita em 1896 e publicada em folhetins no jornal A Reforma. O título era A culpa dos pais. O lendário escritor gaúcho Apolinário Porto-Alegre não poupou elogios a esse e outros dramas da rio-pardense. Em longa carta enviada a Anna, comenta:“Compreendeu bem que o teatro é uma escola e que toda a ação que desfilar sobre o tablado do palco deve ter um fim útil e social. [...] O seu drama A culpa dos pais é uma linda jóia literária. Fez nele a dissecação da sociedade como ela é, eivada de prejuízos perversos, coberta da gafeira dos vícios”.

Outras peças, como As vítimas do jogo e Calúnia, foram representadas em palcos de Porto Alegre no começo do século XX. No Colégio Amaral Lisboa, Anna usou o teatro como recurso pedagógico. Entre as encenações feitas na escola, destaque para Não saber ler (1916).

Nos palcos

Escola para todos

Anna Aurora se afasta do modelo familiar do século XIX: escolhe o celibato. Conforme estudo da professora Guacira Lopes

Louro, ela se considerava “[...] muito feia, até defeituosa, desconfiada e retraída”. Longe do casamento, abraça o magistério. Ingressa na Escola Normal de Porto Alegre em 1879 e recebe o diploma de professora em 1881. É a primeira mulher rio-pardense a se formar, com distinção: nota dez em todas as disciplinas do último exame. Ela inicia a carreira como professora pública em 1883, em João Rodrigues, então distrito do Couto, hoje Ramiz Galvão. Depois de atuar dez anos no magistério público, Anna sofre um grande abalo em 1893: sua transferência para o município de Vila

Rica (hoje Júlio de Castilhos). O motivo é o envolvimento da família Amaral Lisboa na Revolução Federalista, que estoura nesse ano.

Em 1893, o Rio Grande do Sul vira palco de uma disputa entre os chefes políticos mais poderosos do Estado: Júlio de Castilhos, líder do Partido Republicano Rio-grandense e Gaspar Silveira Martins, chefe do Partido Federalista. O resultado é uma sangrenta guerra civil entre os gasparistas ou federalistas (maragatos) e os castilhistas ou republicanos (pica-paus). Os irmãos mais velhos de Anna – Alfredo, Alberto e Adolfo – se envolvem em manifestações contra Castilhos e o governo reage. A escritora já era visada, conhecida por seus artigos políticos inflamados, sempre pró-federalistas.

Em protesto contra as retaliações do governo, Anna Aurora pede demissão do magistério público. Ao

lado da irmã Zamira, funda o Colégio Amaral Lisboa, que logo se destaca pelo alto padrão de ensino. Segundo o escritor Luiz Carlos barbosa Lessa, a escola desde cedo atraiu alunos das classes abastadas da região. Mas, com o passar do tempo, Anna foi inventando “novidades perturbadoras”.

O filho do fazendeiro, que pagava matrícula e mensalidades, era tratado com a mesma atenção dispensada ao filho de escravos, que não podia pagar. Propositalmente eram assentados lado a lado, no mesmo banco, o filho de um

pica-pau e o de um maragato. “Não havia distinções. Era uma forma de educar as futuras gerações no ideal da fraternidade

e do respeito pelas diferenças”, diz o escritor Eloy terra. Em 1915,

Anna trouxe outra inovação: a abertura de aulas de alfabetização gratuitas, para adultos – um dos primeiros “cursos supletivos” no brasil.

Escritora defendeu os federalistas

•• Difamação

Em 1895, uma carta anônima publicada na imprensa difamava Anna Aurora, criticando-a por ser partidária do líder maragato Gumercindo Saraiva. A carta advertia que “essa não é a missão da mulher, deixar o lar doméstico para vir intrometer-se em política”. O autor era o major Antero Adolfo da Fontoura, que também menoprezava a escritora por ser “solteira e sem pai”. Anna perdera o pai em 1884 e desde então passara a ajudar no sustento da casa, que assumiu totalmente em 1891, quando sua mãe faleceu.A resposta à afronta se deu em 1894. Anna foi à casa comercial do major e o desafiou com um revólver. A professora sofreu processo por esse ato, mas foi despronunciada ao publicar, nas páginas do jornal O Patriota, sua versão sobre o acontecido. Esse texto completo foi editado em livro em 1895, sob o título Minha defesa. Foi o primeiro livro de Anna Aurora.

Apoio a Gaspar Silveira Martins provoca retaliações do governo

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90 Uma luz para a história do Rio Grande

A repentina substituição dos liberais gasparistas por republicanos castilhistas causou profundo impacto nas máquinas políticas dos municípios e do Estado. Naqueles

tempos, o controle dos cargos públicos era essencial para o fortalecimento dos partidos e para legitimar o poder de seus chefes políticos. Em 1892 ex-liberais fundam, em bagé, o Partido Federalista. Esse partido, embora sem sucesso nas urnas, faria forte oposição aos governadores do PRR.

A revolução rebenta em fevereiro de 1893, quando um grupo de cerca de 400 federalistas mal-armados comandados por Gumercindo Saraiva, a partir de suas posições em território uruguaio, ruma a bagé e declara guerra ao governo de Júlio de Castilhos. A guerra civil não fica restrita à Campanha. Moradores do Litoral, Planalto e Serra assistem a cenas constrangedoras. Nos vales do Rio Pardo e taquari também ocorrem confrontos e a tomada de cidades. Nesses episódios se destacaria o bando de ervateiros liderados por Zeca Ferreira.

Para enfrentar seus adversários políticos os republicanos criaram, em outubro de 1892, a brigada Militar. Em função do apoio dado pelo

governo federal aos castilhistas, a essas alturas sob a presidência do marechal Floriano Peixoto, a luta contra o governo central se expandiu para Santa Catarina e Paraná. Já os federalistas foram reforçados pelos marinheiros sublevados na denominada Revolta da Armada.

A cruenta guerra civil teve a duração de 31 meses e colocou em lados opostos federalistas e republicanos. Ceifou a vida de pelo menos 10 mil pessoas e provocou incalculáveis prejuízos materiais. Possivelmente, foi a mais bárbara e sangrenta guerra civil ocorrida no brasil. A maior parte das tropas de combate, de um e de outro lado, era composta por forças irregulares, formadas por civis. A luta terminou com a derrota dos federalistas – também chamados de “maragatos” – e abriu caminho para a consolidação do PRR no poder até 1930. Ela deixou um rastro de ódio que necessitou um século para ser extirpado.

O historiador Mario Maestri afirma que a “vitória dos pica-paus impediu que o Rio Grande se transformasse, no melhor dos casos, em um Uruguai falando português ou, no pior, em um imenso bagé”.

A mais sangrenta

Em Santa Cruz, o caso mais rumoroso pouco tem a ver com a disputa entre republicanos e federalistas. É o ataque à Intendência, por parte de um grupo com cerca de 700 serranos da região de Herval São João, comandados por Zeca Ferreira. Segundo o pesquisador Hardy E. Martin, o assalto, ocorrido no dia 10 de fevereiro de 1894, é motivado por uma atitude arbitrária do intendente republicano, João Leite Pereira da Cunha. Ele havia requisitado os filhos dos agricultores para as forças “voluntárias” da Guarda Municipal, também chamadas de “Os patriotas”. Os jovens interioranos, mão de obra necessária nas lavouras, começam a desertar. Em represália a Intendência fecha, no comércio da vila, o mercado para venda da produção e compra de mercadorias por parte dos serranos. A invasão, que resulta no saque ao cofre municipal e quebra-quebra geral na Intendência, foi facilitada pelo fato de haver apenas oito soldados defendendo a vila de Santa Cruz, que ficara acéfala com a fuga do intendente para Porto Alegre. Na resistência, morrem dois “patriotas”. Dias depois, na retomada por 400 homens da força legal, os invasores têm muitas baixas. Segundo as fontes de Martin, entre 10 e 40 mortos; conforme os registros da Residência Jesuítica de Santa Cruz, vasculhados pelo padre historiador Arthur Rabuske, 14 mortos. Há, também, muitos prisioneiros do lado dos serranos, três dos quais são fuzilados na Praça da Matriz e ganham a extrema-unção do padre Lohmann. A imagem acima é uma pintura e não retrata com fidelidade o ocorrido.

ACERVO MUSEU DO COLÉGIO MAUÁ

Revolução Federalista de 1893 colocou os gaúchos em lados opostos•• Os dois lados•• Federalistas: também denominados gasparistas ou maragatos. Lutavam pela derrubada de Júlio de Castilhos, por uma nova constituição estadual e pelo sistema parlamentar de governo. Embora tachados de monarquistas pelos republicanos, não pretendiam restaurar a monarquia. Seu chefe civil era Gaspar Silveira Martins, que se manteve no Uruguai e não participou diretamente do conflito.

•• Republicanos: também denominados castilhistas, legalistas ou pica-paus. Na guerra civil, procuraram defender e consolidar o Partido Republicano Rio-grandense, o governo castilhista e desarticular seus adversários políticos. Seu chefe máximo foi Júlio Prates de Castilhos, presidente do Estado. Os castilhistas procuraram valorizar, além da pecuária, o desenvolvimento do comércio, indústria e agricultura.

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91Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

baixinho e dono de uma barba rala que disfarçava, mas não escondia as cicatrizes deixadas pela varíola, o gaúcho Júlio Prates de Castilhos nasceu na Fazenda da Reserva, Vila Rica (hoje município de Júlio de Castilhos), no ano de 1860. Filho de fazendeiros, titulou-se em Direito em São Paulo em 1881

para retornar ao Estado e cumprir uma das mais expressivas carreiras políticas da história do Rio Grande do Sul. Republicano e abolicionista, tornou-se diretor do jornal A Federação em 1885. No periódico e na

Silveira Martins, o adversário

Republicano e abolicionista, Júlio Prates de Castilhos teve uma das mais expressivas carreiras políticas da história gaúcha

•• Quem era ela?

Quem seria a amante do líder maragato em Rio Pardo? Décio Freitas, em O homem que inventou a ditadura no Brasil, escreve que quando o jornalista norte-americano Bierce chegou a Porto Alegre para entrevistar Gaspar Silveira Martins, este saíra em rápida viagem à cidade de Rio Pardo com o objetivo – pelo que se comentava – de visitar uma amante diletíssima. Naqueles tempos, ter uma ligação extraconjugal era absolutamente normal para os estancieiros e para os homens bem situados na vida. Tratava-se, mesmo, de um complemento da posição social. Não se fazia questão de manter em segredo as aventuras e as uniões clandestinas.

Filho de abastados estancieiros com terras no Rio Grande do Sul e no Uruguai, nasce em território uruguaio no ano de 1835, embora oficialmente se assuma ter vindo à luz em bagé. Em 1855 diploma-se em Direito em São Paulo. Notabiliza-se como exímio orador e líder político. Exerceu vários mandatos como deputado provincial e como representante do Estado na Câmara dos Deputados. tomou ainda assento no Senado Federal e foi nomeado conselheiro do Estado por D. Pedro II. No executivo, teve apenas duas breves passagens como ministro da Fazenda do Império e como

presidente da Província do Rio Grande do Sul.

Inimigo pessoal e político de Deodoro da Fonseca, é preso em Santa Catarina quando viaja

ao Rio de Janeiro. Um de seus biógrafos, tupinambá

Castro do Nascimento, registra que o presidente Deodoro propôs seu

fuzilamento, mas foi dissuadido pelo ministro Quintino bocaiúva, que argumentara que morto ele seria mais perigoso para a República do que vivo. Acaba sendo desterrado.

Cumpre exílio na Europa. Retorna ao brasil em janeiro de 1892, ou seja, após a queda de Deodoro da Fonseca e de sua substituição na Presidência da

Júlio, o primeiro presidentetribuna, foi implacável com seus adversários. Não admitia ceder uma fração de poder aos federalistas. Foi eleito deputado constituinte em 1890. Como deputado defendeu o projeto de união estatal positivista, o que lhe garantiu prestígio entre os militares que apoiaram Floriano Peixoto como sucessor de Deodoro da Fonseca.

De volta ao Sul, foi eleito pela assembleia estadual (1891) o primeiro presidente do Estado após a Proclamação da República. Faleceu em Porto Alegre em outubro de 1903, no Palacete da Rua Duque de Caxias, no auge do seu prestígio, com 43 anos de idade. A causa: uma infecção na garganta, diagnosticada como sendo uma “faringite granulosa”. Na iminência de uma asfixia, os médicos optaram por fazer uma traqueostomia e nesse procedimento ele veio a falecer. Apesar de estar fora do governo, era a eminência parda do Estado.

Silveira Martins

Júlio de Castilhos, a mulher e os filhos: convicções positivistas

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República pelo marechal Floriano Peixoto. Ao ser deflagrada a Revolução Federalista, exila-se no Uruguai. Ali precisa se manter mesmo após o fim da guerra civil, pois os castilhistas continuavam no poder no Rio Grande do Sul. Embora casado e com filhos, era um exímio galanteador e conquistador de mulheres.

Falece em 23 de julho de 1901, nos braços de uma prostituta, em um quarto de hotel da capital uruguaia. O destino parece ter atendido a seu pedido de somente morrer numa das seguintes situações: domando um potro, realizando um extraordinário discurso na tribuna ou nos braços de uma bela mulher.

Page 93: Rio Pardo 200 anos

92 Uma luz para a história do Rio Grande

Naquela época, a fronteira do Rio Grande do Sul com o Uruguai era somente política. Entendia-se e falava-se espanhol nos dois lados. Por ali também corria frouxo o contrabando de gado e de mercadorias.

Em função das perseguições dos castilhistas, estima-se que entre junho de 1892 e fevereiro de 1893 cerca de 10 mil federalistas tenham procurado refúgio na Uruguai, onde os sul-rio-grandenses se sentiam em casa. Além da fronteira, os federalistas se organizavam e se armavam. havia estancieiros que contribuíam com dinheiro, com armas ou cedendo parte de

sua peonada para a luta. Os gasparistas possuíam boas relações com os blancos e mesmo com os colorados. No Uruguai imperava no poder, há quase três décadas, o Partido Colorado, formado basicamente por setores urbanos e comerciais. Já o partido blanco, inimigo histórico dos colorados, era formado por grandes estancieiros. Dentre esses havia muitos sul-rio-grandenses que tinham terra do lado de cá e de lá da fronteira, como a família Saraiva.

Especula-se que caso os federalistas tivessem vencido a guerra civil, uma possível união do Uruguai com o Rio Grande do Sul não seria descartável.

Adão Latorre era um negro nascido no Uruguai e de origem pobre. teria vivido

nos campos dos tavares e acabou por se tornar homem da maior confiança do coronel Zeca tavares, pai de Joca tavares, militar e estancieiro de bagé que teve papel destacado no levante. Na Revolução de 1893, aparece como tenente-coronel nas brigadas de Joca tavares. Mas também surge comandando piquetes nas tropas de Aparício Saraiva, irmão do legendário Gumercindo. Fato raro na formação caudilhesca do Rio Grande do Sul, Latorre era um negro pobre que em tempos de revolução comandou homens brancos, alguns deles certamente abastados. Não tivesse

Para historiadores, degolador da foto não seria Adão Latorre, que na época já teria 58 anos

Adão Latorre e a degolaPobre e negro, uruguaio que cresceu nos campos dos Tavares entrou para a história como degolador

passado para a história como o maior degolador do Rio Grande, certamente seu nome estaria no panteão dos heróis maragatos. Morreu com mais de 80 anos, como coronel na

Revolução de 1923, crivado de balas. Depois ainda seria degolado.

Embora bárbara e suja, a degola promovida pelas duas facções na guerra civil

não foi exclusiva dos sul-rio-grandenses. Os estupros, castrações, saques, pilhagens e incêndios a propriedades também caracterizaram outros conflitos pelo País.

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Refúgio no Uruguai

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93Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

Batalha do Rio NegroEntenda os termos

>> ChimangosA expressão “chimango” aparece somente em 1915 – portanto depois da Revolução Federalista – no poemeto Campestre, hoje um clássico da literatura, do republicano Ramiro barcellos. (página 96)

>> Pica-pausFoi uma designação que os castilhistas receberam dos adversários maragatos e que acabaram por adotar como contraveneno. Advém da semelhança do quepe dos oficiais republicanos com o pássaro, de bico fino e comprido.

>> Maragatos No Uruguai, eram chamados de maragatos os descendentes de espanhóis oriundos da Maragateria, uma região situada na Província de Léon. Em 1893, quando a coluna de Gumercindo Saraiva rompe a fronteira, traz junto algumas dezenas de moradores do Departamento de San José que são descendentes dos imigrantes da Maragateria. Procurando qualificar o exército adversário como sendo formado por mercenários estrangeiros, os republicanos passam a designar os federalistas de maragatos.

Foi um dos combates mais sangrentos da revolução, travado a cerca de 24 quilômetros de bagé, em 28 de novembro de 1893. Após um infrutífero ataque à cidade, os federalistas, com uma tropa de cerca de 3

mil homens dirigidos por Joca tavares, atacaram uma força republicana de 1.200 homens. Depois de dois dias de manobras e combates, as tropas republicanas comandadas pelo marechal Isidoro Fernandes foram sitiadas e levantaram a bandeira branca. houve aproximadamente mil prisioneiros. Destes, mais de 300 teriam sido degolados. há historiadores que escreveram que o negro Adão Latorre teria executado, com a própria adaga, todas as degolas – o que é muitíssimo improvável. Retirados de uma mangueira de pedra, os prisioneiros, após a degola, tiveram seus corpos jogados em uma lagoa que hoje leva o nome

Federalistas teriam degolado mais de 300 republicanos após dois dias de combate

Senador Pinheiro Machado com o seu estado-maior na Revolução Federalista

bANCO DE IMAGENS/GS

•• Entenda a guerra

Início: 5 de fevereiro de 1893

Término: 23 de agosto de 1895

Paz: foi assinada na cidade de Pelotas em 25 de agosto de 1895. Levou as assinaturas de Joca Tavares e do general Inocêncio Galvão de Queiroz, comandante das forças federais no Rio Grande do Sul. Aos federalistas, a paz honrosa garantia o exercício de seus direitos políticos e a indenização dos prejuízos causados pela guerra civil. O acordo não foi chancelado por Júlio de Castilhos, que queria que seus adversários fossem impiedosamente aniquilados. Em 19 de setembro o governo federal concedeu anistia aos rebelados da Armada Nacional e do Rio Grande do Sul.

Mortos: de 10 a 12 mil

de Lagoa da Música. Esse nome deriva da crença popular de que, no local, podem ser ouvidos os gemidos dos mortos.

•• Boi PretoEm 10 abril de 1894 houve a vingança

dos pica-paus. O coronel Firmino de Paula, comandando a 5ª Brigada da Divisão do Norte, ao se dirigir a Palmeira – hoje Palmeira das Missões – cerca uma divisão federalista comandada pelo coronel Ubaldino Machado, mas que pertence às tropas de Gumercindo Saraiva. A divisão é encurralada no Capão do Boi Preto, a 30 km da cidade. Dos cerca de 400 prisioneiros 250, conforme alguns, e 370, segundo outros, teriam sido degolados e seus cadáveres jogados pelo campo.

Page 95: Rio Pardo 200 anos

94 Uma luz para a história do Rio Grande

Entre novembro de 1893 e janeiro de 1894, os republicanos, comandados pelo

general Carlos Silva teles, buscaram abrigo na Catedral São Sebastião, no Centro de bagé. A Praça da Matriz, na frente da catedral, foi o ponto de resistência pica-pau durante os 47

dias do cerco de bagé. Os federalistas invadiram a cidade, liderados por Joca tavares. Os republicanos ergueram trincheiras na frente e na volta da praça. havia até canhões. O templo virou hospital improvisado e cemitério para os mortos em

combate.Joca tavares conduziu

os 3 mil federalistas, que tentaram de todos os lados tomar a Rainha da Fronteira. Com mais de 20 mil habitantes

O cerco de Bagé

Catedral São Sebastião, em Bagé, ontem e hoje:

republicanos, acossados pelos homens de Joca

Tavares, fizeram trincheiras na frente do templo

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Tropas de Joca Tavares encurralam republicanos na praça central da cidade

na época, a cidade também era terra dos Silveira Martins, sede do Partido Federalista e foco da conspiração. Por abrigar uma guarnição militar e a estrada de ferro em direção a Rio Grande, bagé tinha valor estratégico para os dois lados da guerra civil. Por isso a invasão rebelde e a resistência republicana nas trincheiras da Praça da Matriz.

Ilhados, os republicanos não tinham mais o que comer nos dias finais do cerco. Até a água era escassa. Os feridos morriam porque não havia como tratá-los

dentro da catedral. O historiador Cláudio Moreira bento confirma. Segundo ele, os sitiados passaram sede e fome tendo, inclusive, que sacrificar gatos, cães e cavalos para sobreviver. Figos crus e caruru cozido na água com sal foram outras alternativas para evitar mais mortes. De fato, o terror esteve presente, como mostram fotos existentes no acervo do Museu Dom Diogo de Souza.

INOR/AG. ASSMANN

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95Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

O maragato Gumercindo Saraiva e seus homens durante a Revolução Federalista

Em meados de 1893, tropas comandadas por Gumercindo Saraiva tomam Caçapava, Lavras, Encruzilhada do Sul e batem os republicanos em Cerro do Ouro. Depois se deslocam para Santa Catarina, onde se encontram com revoltosos da Armada. Seguem para

o Paraná e tomam tijuca, Paranaguá e Lapa, onde cometem atrocidades semelhantes às ocorridas no Sul. Com a rendição dos marinheiros rebeldes na Guanabara, o plano de tomar São Paulo é suspenso e as tropas retornam em três colunas para o Sul.

A marcha de ida e volta contabilizou cerca de 2.500 km

percorridos. No dia 10 de agosto de 1894, o caudilho é atingido por atiradores escondidos em matos. Morre dois dias depois. O coronel Firmino de Paula manda desenterrar seu cadáver e cortar-lhe a cabeça. Esta é enviada, numa caixa de chapéu, para Júlio de Castilhos. A partir da morte de Gumercindo Saraiva, o ânimo dos revolucionários arrefece.

“Pesada como os Andes te seja a terra”Nascido em 1852 no município de Arroio Grande, Rio Grande

do Sul, Gumercindo Saraiva se transfere ainda criança com sua família para o Departamento de Cerro Largo, no Uruguai. Seu pai seria um dos mais bem-sucedidos estancieiros daquele país. Ainda jovem, Gumercindo e seu irmão Aparício passam a militar no Partido blanco, participando, inclusive, de lutas armadas contra o governo uruguaio, que era dominado pelo Partido Colorado.

Envolvido na morte de um peão, ele deixa o Uruguai e vem administrar propriedades da família em Santa Vitória do Palmar. Adquire suas próprias terras e passa a militar no Partido Liberal, tornando-se delegado no município. Com a implantação da República, perde o posto e sofre perseguições judiciais. Interna-se no território vizinho e, ao ser deflagrada a

Revolução de 1893, atravessa a fronteira em Aceguá. Gumercindo Saraiva acabou se transformando no maior

líder maragato da revolução. Como era do Partido blanco no Uruguai, sempre lutou com um lenço branco envolto no pescoço.

Quando de sua morte, o jornal A Federação publica:

A marcha de GumercindoGrupo foi até o Paraná combatendo tropas legalistas, mas desistiu de tomar São Paulo e retornou ao Sul

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Miserável! Pesada como os Andes te seja a terra que teu cadáver maldito profanou. (...) Carrasco do Rio Grande. Maldita seja sempre a memória do

bandido.

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96 Uma luz para a história do Rio Grande

O PRR se manteve no poder durante praticamente toda a chamada República Velha (1889-1930). Isso

sem contar que os governantes pós-1930 também tiveram sua origem no PRR.

Na República Velha não existia ainda a Justiça Eleitoral e o voto era a descoberto, ou seja, não havia o sigilo. Isso facilitava as fraudes eleitorais e o controle do voto pelos poderosos, os coronéis.

Em 1898, Júlio de Castilhos passa o governo para borges de Medeiros. Apoiado nas tradições

positivistas, o regime republicano gaúcho, autoritário e centralizador, se consolida.

Borges de Medeiros vai governar o Estado entre 1898 e 1908, quando passa a Presidência para Carlos barbosa. Retorna à testa do Executivo em 1913 e só abandona definitivamente o posto em 1928.

Todo o poder dos positivistas Júlio de Castilhos é sucedido por Borges de Medeiros

•• O poemeto de Ramiro

[...]Pobre Estância de São PedroQue tanta fama gozaste!Como assim te transformasteDentro de tão poucos anos,De destinos tão tiranosNão há ninguém que te afaste!Na mão do triste ChimangoO arvoredo está no mato;O gado... é só carrapato;O campo... cheio de praga.Tudo depressa se estraga,No poder de um insensato.[...]Para les contar a vidaSaco de mala o bandônioA vida de um tal AntônioChimango por sobrenomeMagro como lobisomeMesquinho como o demônio

Ramiro Fortes de Barcellos nasceu em Cachoeira do Sul, em 1851, e faleceu em Porto Alegre, em 1916. Médico, professor da Faculdade de Medicina de Porto Alegre, poeta e jornalista, foi secretário da Fazenda do Estado, deputado federal, senador e embaixador do Brasil no Uruguai. Foi redator do jornal A Federação, órgão do Partido Republicano Rio-Grandense, do qual era membro ativo. Quando o também republicano Borges de Medeiros, então presidente do Estado, indicou o nome de Hermes da Fonseca ao Senado, Ramiro Barcellos se opôs à decisão e solicitou, por carta, que outro nome fosse escolhido. Borges não cedeu e Ramiro, insatisfeito, deixou o partido. Sua dissidência originou uma das obras mais famosas da literatura gauchesca em língua portuguesa, o “poemeto campestre” Antônio Chimango, escrito por Barcellos em 1915 sob o pseudônimo de Amaro Juvenal. Na obra (trecho abaixo) um peão esperto, embora limitado, se torna capataz ao ganhar o apreço do patrão. Quando este morre, o peão se torna o dono da estância, que começa a decair com sua péssima administração. Antônio Chimango é uma alusão direta a Borges – cujo perfil lembrava o da ave, que vive de carniça – e a seus desmandos à frente da política gaúcha. Confira trecho abaixo:

Ramiro Barcellos

Uma fazenda situada a 80 quilômetros da área urbana de Cachoeira do Sul, na localidade de Irapuazinho, guarda fatos ligados à história do Rio Grande do Sul. Construída em 1835, quando tem início a Revolução Farroupilha, a propriedade pertenceu ao ex-governador Antônio Augusto borges de Medeiros. Moradores mais velhos da localidade teriam ouvido de seus antepassados que, na Revolução de 1923, soldados legalistas utilizaram um cemitério, não muito longe da sede, para vigiar possíveis ataques inimigos.

Originalmente, a fazenda tinha uma área de cerca de 3 mil hectares, mas hoje está reduzida a 720. Ao longo do tempo, as características originais do casarão foram sendo alteradas; a escada que dava acesso ao sótão, por exemplo, não existe mais.

Refúgio em Cachoeira

INOR/AG. ASSMANN

Sede da fazenda que pertenceu a Borges de Medeiros

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97Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

Durante a 1ª Guerra Mundial (1914-1918), o Brasil e o Rio Grande do Sul viveram um pequeno surto de

industrialização. Foi nessa época que o setor pastoril do Estado assistiu com grande expectativa à implantação de frigoríficos, para suprir com carne a população e soldados de países envolvidos no conflito. Houve, então, a inversão de capitais ingleses e norte-americanos no setor. São dessa época os frigoríficos Armour e Wilson, de Santana do Livramento; Swift, de Rio Grande, e Rio-Grandense – posteriormente rebatizado de Anglo – em Pelotas. Porém, passada a grande guerra, gigantescos exércitos foram desmobilizados. Os países envolvidos no conflito bélico reorganizaram suas atividades produtivas e a economia internacional entrou em crise no início da década de 1920. Em decorrência, o mercado consumidor do charque e da carne rio-grandense sofreu contração. Endividados, inúmeros fazendeiros foram executados. Muitos deles, na

época da guerra, haviam contraído empréstimos para investir em abrigos, cercar campos, colocar banheiros carrapaticidas ou fazer a melhoria genética dos seus plantéis, adquirindo reprodutores. Clamavam por um efetivo auxílio dos governantes. O governo federal não se importava muito com as economias subsidiárias. Seu interesse maior consistia em defender o café, principal produto da pauta de exportações do Brasil. O governo do Rio Grande, por seu turno, havia se endividado ao estatizar a malha ferroviária e o Porto de Rio Grande. Além disso, não se dispunha a auxiliar o setor pastoril com isenção de impostos e outros benefícios apoiando-se, conforme frisa Mário Maestri, nos pressupostos positivistas de defesa dos interesses gerais. No ano de 1922, um inverno bastante rigoroso, uma grande seca e a ocorrência da febre aftosa agravaram as dificuldades em que se viram envoltos os criadores de gado do Rio Grande do Sul. Foi nessa conjuntura econômica que transcorreram as eleições de 1922.

Em março de 1922 houve eleições para a Presidência da República. Borges de Medeiros e o PRR apoiam a candidatura de oposição, do Movimento Reação Republicana, encabeçada por Nilo Peçanha. No Rio Grande do Sul os opositores do borgismo apoiaram a candidatura situacionista, do mineiro Artur Bernardes, que foi a vitoriosa. Borges de Medeiros se viu em apuros com a vitória de Bernardes.Fragilizado, prontamente ofereceu apoio político ao novo presidente.

Nas eleições estaduais o PRR indicara mais uma vez Borges de Medeiros para um quinto mandato à testa do governo. João Francisco de Assis Brasil, que no início da sua vida política havia sido republicano e depois rompera com o PRR, era o candidato da oposição. Concorria pelo PRD (Partido Republicano Democrático), mas tinha o apoio explícito dos federalistas e de outros dissidentes republicanos. Apresentava-se como candidato da defesa da economia agropastoril.

O pleito realizado em 25 de novembro transcorreu em meio a denúncias de fraude, agressões e tiroteios. O resultado foi anunciado pela Comissão de Constituição de Poderes da Assembleia dos Representantes – de cujos trabalhos a oposição estava impedida de participar – somente em 16 de janeiro de 1923. Borges de Medeiros teria obtido 106.360 votos contra 32.216 dados a Assis Brasil. Os votos dos assisistas se concentraram na Campanha e na Fronteira, enquanto a capital e as áreas de colonização alemã e italiana do Estado deram ampla maioria para o candidato republicano. Como, de acordo com a constituição rio-grandense de 1891, o candidato à reeleição para a Presidência do Estado deveria somar pelo menos ¾ dos votos, Borges de Medeiros atingiu o número de escrutínios necessários para exercer o seu quinto mandato.

O clima políticoCrise chega ao auge em 1922

Reeleição de Borges e crise econômica levam a novo conflito

Borges de Medeiros assume seu quinto mandato, em 1923

•• Resultado fabricado

De acordo com a tradição política, quando os partidários de Borges de Medeiros se reuniram com ele para lhe comunicar que não havia alcançado os votos necessários à reeleição, este sequer os deixou falar. Disse estar lisonjeado pelos cumprimentos que lhe vinham prestar e agradeceu por todo o empenho demonstrado durante o pleito e o escrutínio. Constrangida, a Comissão de Constituição de Poderes da Assembleia dos Representantes, cujo presidente era Getúlio Vargas, teria se reunido novamente para alterar e manipular mais algumas planilhas eleitorais.

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98 Uma luz para a história do Rio Grande

Em 25 de janeiro de 1923, Borges de Medeiros assumiu seu quinto mandato como presidente do Estado do Rio Grande do Sul. iniciou-

se, ao mesmo tempo, o levante dos revoltosos. As duas principais causas da Revolução de 1923 foram a fraude eleitoral ocorrida nas eleições estaduais de novembro de 1922 e a grave crise econômica pela qual passava a economia pecuarista da Campanha e do Planalto. Os criadores não vislumbravam auxílio com Borges de Medeiros à frente do Estado.

Os revoltosos, denominados de libertadores, eram formados por três grupos: os históricos federalistas, agora liderados por Raul Pilla e Wenceslau Escobar; os republicanos democratas, que tinham à frente Assis Brasil e Fernando Abbott; e os republicanos dissidentes, chefiados por Pinheiro Machado e os Mena Barreto. Este grupo daria origem, em 1924, à Aliança Libertadora, que em 1928 se transformou em Partido Libertador. No movimento de 1923 os libertadores contaram com o auxílio de Hercílio Luz, presidente do Estado de Santa Catarina e adversário político de Borges de Medeiros.

A luta foi desigual. Os libertadores mal armados, com forças improvisadas e sem um comando centralizado, valeram-se da tática de guerrilhas. Dividiam-se em colunas de 300 a 400 combatentes que faziam movimentações rápidas, com estocadas e fugas, evitando confrontos abertos. A intenção era deixar o Estado convulsionado para que houvesse a intervenção do presidente Artur Bernardes, o que acabou não acontecendo. Também enfrentando muitas contestações, Bernardes preferiu se manter alheio na disputa. O Exército brasileiro sediado no Estado, cujo contingente era inferior ao da Brigada Militar, manteve-se neutro. Durante os 324 dias que durou o confronto, houve muitas escaramuças e correrias, mas poucos combates efetivos. Os enfrentamentos ficaram circunscritos às áreas de campo e em raros momentos envolveram cidades.

A Revolução de 1923

Paz em Pedras Altas

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Conflito durou 324 dias e, mais uma vez, a elite pecuarista gaúcha saiu derrotada

Mesmo com alguma relutância de Borges de Medeiros e de alguns líderes da oposição, em 14 de dezembro de 1923 foi assinado o acordo de paz no Castelo de Pedras Altas. Foi um pacto entre iguais mediado pelo ministro da Guerra, Setembrino de Carvalho. Pelo tratado, ficou estabelecido que Borges de Medeiros concluiria seu mandato, mas que dali por diante ficava proibida a reeleição para o cargo de presidente do Estado. Determinava, ainda, que nos municípios não poderia haver reeleição para os intendentes, a eleição dos vice-presidentes de Estado (que até então eram nomeados pelo presidente), uma representação mínima dos oposicionistas na Assembleia dos Representantes e no Congresso Nacional e restrições à

possibilidade do governo estadual intervir nos municípios. O governo, diferentemente do que havia acontecido na Revolução de 1893, comprometia-se com a anistia e garantia não fazer retaliações contra pessoas e propriedades dos revoltosos.

Denominados libertadores, revoltosos se insurgiram contra Borges de Medeiros

Contando com a força efetiva de cerca de 3.500 soldados da Brigada Militar e dos Corpos Provisórios, formados por cerca de 8.500 voluntários civis e mesmo por mercenários uruguaios, os legalistas obtiveram uma força de cerca de 12 mil soldados. Eram bem mais treinados e equipados do que as tropas adversárias. Contavam, inclusive, com metralhadoras, utilizadas pela primeira vez na Batalha do Rio Santa Maria Chico, em Dom Pedrito. Nesse episódio as forças libertadoras perderam cerca de 150 homens, dentre os quais o legendário Adão Latorre, que já tinha 88 anos.

Do lado dos republicanos se destacaram na luta Flores da Cunha, Osvaldo Aranha, Firmino Paim Filho e Getúlio Vargas, que comandou o 7º Corpo Provisório. Do lado dos revoltosos, Honório Lemes, Zeca Neto, Leonel Rocha e Felipe Portinho. Alguns desses caudilhos, posteriormente, se tornariam lendários na região onde atuaram.

Castelo de Pedras Altas, onde foi assinada a paz

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99Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

Dois nomes marcam o imaginário popular quando o tema é a Revolução de 1923: Honório Lemes, pelos maragatos, e o general José Antônio Flores da Cunha, pelos chimangos. intendente de Uruguaiana, Flores da Cunha convenceu o então presidente da Província, Borges de Medeiros, de que uma nova guerra estava se armando na fronteira. Obteve assim autorização para comprar, na Argentina, 400 fuzis Mauser e 120 mil cartuchos. Preparados para a guerra, Flores da Cunha e seus aliados viram Honório Lemes tomar Alegrete em 23 de março e, posteriormente, Quaraí, itaqui e Rosário. No dia 3 de abril, à frente de quase 2 mil rebeldes, Lemes cercou Uruguaiana. Flores da Cunha, ao lado de Osvaldo Aranha e um grupo limitado de jovens soldados, resistiu e afugentou o grupo de Lemes que, embora majoritário, se embrenhou na Serra do Caverá.

A partir daí a Revolução de 1923 ganharia formato de guerrilha, com ataques rápidos por parte dos insurgentes e fugas em um território que eles dominavam

Honório Lemes da Silva, o Leão do Caverá, nasceu em Cachoeira do Sul em 23 de setembro de 1864. Até os doze anos, quando se mudou para Rosário do Sul, foi criado no distrito de Barro Vermelho.

Tropeiro e semianalfabeto, Lemes entrou para a história como estrategista e guerrilheiro. Liberal e admirador de Gaspar Silveira Martins, ao rebentar a Revolução Federalista de 1893 ele ingressou como soldado nas fileiras revolucionárias. Com a eclosão de nova luta armada em 1923, Honório Lemes organizou um grupo de 300 rebeldes, municiados e armados, e estabeleceu seu quartel-general na Serra do Caverá, entre Rosário do Sul e Alegrete.

Terminada a Revolução de 1923, o Leão do Caverá – codinome que Lemes herdou do sogro, Manoel

Machado Soares – voltou à sua vida de campeiro. Em 1924 participou de um novo movimento armado, de abrangência nacional e que pretendia depor o presidente da República, Artur Bernardes. Apoiador do gaúcho Luiz Carlos Prestes, ele acabou preso no Passo da Conceição, no Rio ibicuí (região de Rosário do Sul e São Gabriel). Encurralado por mais de mil soldados das tropas governistas, rendeu-se. Preso, foi transferido para Porto Alegre em outubro, onde permaneceu por dois anos no quartel do 2º Corpo da Brigada Militar. Após sua liberdade, em 1927, foi morar com a família em Taquari, voltando mais tarde para Rosário do Sul. Faleceu pobre, aos 66 anos, em seu rancho nas terras da estância de Bernardino Domingues, em Rosário do Sul, a 30 de setembro de 1930.

O Leão do CaveráGaúcho de Cachoeira do Sul participou de três levantes armados entre 1893 e 1925

Honório de um lado, Flores da Cunha de outro

geograficamente. Em 15 de maio, no Rio Santa Maria Chico, município de Dom Pedrito, as forças borgistas utilizaram metralhadoras pela primeira vez. Eram modelos Colt e Hotchkiss, de origem norte-americana. Borges de Medeiros chegou a adquirir dois aviões para os combates, mas eles não chegaram a ser usados.

Os enfrentamentos entre as forças republicanas e os rebeldes comandados pelo Leão do Caverá se prolongaram até 27 de outubro de 1923, quando ocorreu o confronto em São Gabriel. Lemes, mais uma vez, conseguiu fugir, mas 27 de seus homens morreram. A paz seria assinada em dezembro.

Honório Lemes ao centro, em 1924, pouco depois da assinatura da paz em Pedras Altas

FOTOS: MUSEU MUNiCiPAL DE CACHOEiRA DO SUL PATRONO EDyR LiMA

Honório Lemes

Flores da Cunha

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100 Uma luz para a história do Rio Grande

Em junho de 1929 foi formada a Aliança Liberal. Ela reuniu as oligarquias sul-riograndense, mineira e paraibana e partidos oposicionistas de vários Estados. A Aliança Liberal lançou Getúlio Vargas para a Presidência da República e João Pessoa para vice. Eles enfrentariam no pleito de 1930 Júlio Prestes, presidente do Estado de São Paulo, político indicado e apoiado por Washington Luís. No Rio Grande do Sul, a candidatura Vargas contou com o apoio da Frente Única Gaúcha (FUG), que integrava o PRR e o PL.

Transcorrido em 1º de março de 1930, o processo eleitoral apontou a vitória do candidato da situação, Júlio Prestes, por larga margem de votos.

Em março de 1928, em Bagé, foi fundado o Partido Libertador (PL), unindo históricos dissidentes republicanos e federalistas. Representava, principalmente, os criadores de gado da Campanha e do Planalto. Seus principais líderes eram Raul Pilla e Assis Brasil. Durante a década de 1930, o PL formou com o PRR a chamada Frente Única. Com o Estado Novo, os partidos políticos foram extintos no Brasil. Eles reapareceram em 1945, quando o Estado Novo agonizava. Entre 1945 e 1965, o PL foi um partido regional que defendia o liberalismo e o parlamentarismo. Em 1965, com a edição do Ato institucional nº 2 pelo regime militar, o pluripartidarismo foi extinto no País. Passaram, então, a existir somente duas siglas: a Arena (Aliança Renovadora Nacional), partido criado para dar sustentação à ditadura implantada com o golpe de 1964, e o MDB (Movimento Democrático Brasileiro), uma espécie de oposição consentida. O PL passa então, quase na sua totalidade, para os quadros da Arena.

Em 1926, o PRR apoiou a candidatura do paulista Washington Luís (1926-1930) para a sucessão do mineiro Artur Bernardes na Presidência da República. Em retribuição ao apoio recebido, Washington Luís indicou o deputado federal Getúlio Vargas para o Ministério da Fazenda. O País

vivia então em estabilidade financeira e passava por uma pequena expansão econômica puxada, principalmente, pelas exportações de café. Este cargo seria um trampolim para Vargas conquistar o Piratini.

Em 25 de novembro de 1927 Getúlio Vargas, tendo como vice João Neves da Fontoura, foi eleito para a presidência do Rio Grande do Sul para um mandato de cinco anos. Contou com o apoio de Washington Luís e da oposição rio-grandense, interessada em que tivesse fim o continuísmo

borgista. Foi bastante

curta a passagem de Getúlio Vargas pelo Palácio Piratini. Diferentemente de Borges de Medeiros, ele apoiou diretamente os pleitos dos criadores de gado e dos charqueadores. Em julho de 1928,

Vargas buscou empréstimos estrangeiros e criou o Banrisul, com o objetivo de amparar a pecuária e a agricultura do Estado com empréstimos a juros reduzidos. Durante seu governo, nenhuma contribuição significativa foi dada à indústria rio-grandense ou às questões trabalhistas, mas ele conseguiu pacificar a família gaúcha em torno de seu nome. Ao invés da dominação empregada por seus antecessores, Júlio de Castilhos e Borges de Medeiros, Vargas se valeu da conciliação.

Partido Libertador

Vargas assume o governo gaúchoCom João Neves na vice, vitória põe fim ao longo período borgista

Eleições presidenciais dão a vitória a Júlio Prestes

•• Em armas, de novo

Para tirar do poder o presidente do Brasil Artur Bernardes e substituí-lo por Assis Brasil, alguns maragatos e assisistas se juntaram aos militares que se rebelaram em outubro de 1924, sob a liderança do general Isidoro Dias Lopes. No Rio Grande do Sul, o movimento contou com o apoio do capitão de engenharia Luís Carlos Prestes, que liderou um contingente de militares. Na Campanha, Honório Lemes reuniu algumas centenas de seus comandados de 1923, o mesmo ocorrendo no Planalto com Leonel Rocha. A experiência guerrilheira dos maragatos acabou sendo estratégica para a Coluna Prestes, que percorreu cerca de 25 mil quilômetros pelo sertão do Brasil entre 1924 e 1926 e acabou se internando na Bolívia.Essa se constituiu em uma das maiores marchas militares da História.

Getúlio e secretários no Piratini

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Façamos a Revolução antes que o povo a faça.” Essa frase é atribuída ao então governador mineiro Antônio Carlos e se refere à Revolução de 1930.

Secretamente, Vargas e Júlio Prestes haviam pactuado que o candidato derrotado respeitaria o

resultado das urnas. Enquanto isso, no Rio Grande do Sul membros do PRR, do PL e alguns tenentes defendiam a solução armada. Entre março e outubro de 1930, Vargas teve um comportamento ambíguo quanto à questão, fingindo aceitar a derrota e incentivando a rebelião.

A Revolução se iniciou em 3 de outubro com levantes militares em Porto Alegre, Belo Horizonte e Recife. Em questão de minutos o comando da 3ª Região Militar estava com os revolucionários, tendo os oficiais aderido ao movimento. No dia seguinte, todas as unidades militares da capital gaúcha estavam sob controle dos conspiradores. O slogan utilizado era “O Rio Grande de pé pelo Brasil”. Em 24 de outubro, quando os trens que conduziam Getúlio estavam em Ponta Grossa (PR), um golpe militar depôs Washington Luís, que foi banido. Em 30 de outubro Getúlio chegou ao Rio de Janeiro, que então era a capital do País, de lenço vermelho. Em 3 de novembro, sentou na cadeira presidencial e assumiu provisoriamente a Presidência

da República.

Derrotado para a Presidência, Vargas acaba por apoiar o movimento que deporia Washington Luís

A Revolução de 1930

•• Crise de 29A grande crise pela qual passou a economia capitalista a partir de 1929, quando se deu a quebra da bolsa de Nova York, colaborou para a ocorrência de Revolução de 30. O comércio internacional se viu reduzido a um terço. A política de proteção e de valorização do café, colocada em prática desde o início do século anterior e apoiada pelo presidente Washington Luís, provocou descontentamentos não somente no Rio Grande do Sul. Temia-se que Júlio Prestes, um paulista compromissado com o complexo agroexportador cafeeiro, mantivesse a valorização do café beneficiando, dessa maneira, somente a economia dos estados produtores.Para se ter uma ideia do tamanho da crise, basta mencionar que, em 1931, o PIB brasileiro era o equivalente a 74,3% do atingido no ano de 1929.

Gaúchos no obelisco da Avenida Rio Branco em novembro de 1930:

fim da República Velha

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102 Uma luz para a história do Rio Grande

A “gauchização da política brasileira” foi uma expressão cunhada em 1974 por Carlos Cortés, em Gaúcho politics in

Brasil. Ela se refere não somente à grande presença de rio-grandenses no governo de Vargas a partir do final de 1930, mas à transferência – ao menos em parte – do modelo castilhista-borgista existente no Rio Grande do Sul, durante a República Velha, para o plano nacional. Além do grupo de jovens políticos rio-grandenses, também os tenentes teriam grande influência nos primeiros tempos de seu governo. A constituição brasileira de 1934 possui traços marcantes de preceitos e experiências castilhistas gestados no Rio Grande do Sul.

Assim que assumiu o poder, Vargas criou o Ministério do Trabalho, indústria e Comércio. Nascido em São Leopoldo e de descendência germânica, Lindolfo Collor ocupou inicialmente a

pasta. A legislação trabalhista, feita durante os primeiros 15 anos em que ocuparia o Palácio do Catete, acabou por se transformar na pedra de toque do seu governo. Osvaldo Aranha, seu correligionário, foi para a Justiça. Do Partido Libertador, foram nomeados Assis Brasil para o Ministério da Agricultura e Batista Luzardo para Chefe de Polícia.

A Revolução de 30 encontrou o Rio Grande do Sul mergulhado em uma grave crise econômica. Eram grandes as expectativas com a ascensão de um gaúcho à Presidência da República. Acreditava-se que os governos anteriores haviam favorecido os paulistas e os cafeicultores em detrimento dos interesses rio-grandenses. Mas essa ilusão logo se desfez. Já em 1932, muitos membros da Frente Única Gaúcha jogaram suas esperanças na Revolução Constitucionalista que ocorreu em São Paulo, mas que foi fragorosamente derrotada.

Gauchização da política no PaísModelo castilhista-borgista que dominou o RS foi implantado no País

Getúlio Vargas, de trem, deixa o Rio Grande para assumir o comando do Brasil após a Revolução de 30

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•• Vargas presidente

A Revolução de 30 alçou Vargas ao comando do Brasil. Até 1934, ele governou provisoriamente. Em 1934 o Brasil ganhava sua terceira carta constitucional e Vargas era eleito indiretamente pela Assembleia Constituinte como presidente da República. Seu mandato deveria ter ido até 1938. Atritado com o governador Flores da Cunha e preparando um golpe, em 1937 Vargas federalizou a Brigada Militar do Rio Grande do Sul e comandou uma insurgência de deputados da Assembleia Legislativa. Sem alternativas, em 19 de outubro de 1937 Flores da Cunha foi obrigado a renunciar ao cargo e a se exilar no Uruguai. Foi substituído, sucessivamente, pelo coronel Daltro Filho (1937 - 1938), pelo coronel Cordeiro de Farias (1938 -1943) e pelo coronel Ernesto Dornelles (1943 - 1945). Em 10 de novembro de 1937, houve o golpe do Estado Novo. O Congresso Nacional foi fechado e o Brasil se tornou um estado autoritário com o apoio do Exército. Mais do que uma cópia dos regimes fascistas existentes na Europa, o Estado Novo traduziu, no plano nacional, a experiência do regime autoritário castilhista-borgista desenvolvido no Sul.

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103Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

•• Último levanteO último levante dos gaúchos ocorreu no inverno de 1961. A renúncia do presidente Jânio Quadros, em 25 de agosto daquele ano, provocou no Estado um movimento político-militar com vistas a garantir a posse do vice-presidente, João Goulart. Denominada de Campanha da Legalidade, teve como protagonista principal o governador Leonel Brizola.

•• Trajetória de Vargas A ideologia do gaúcho Cultura pastoril se impôs como verdade

Brizola era governador

1883 – Nasce em São Borja, Rio Grande do Sul1897 – Seu pai, Manoel do Nascimento Vargas, envia-o para Ouro Preto, MG, para estudar1898 – Ingressa no 6° Batalhão de Infantaria, sediado em São Borja1900/1902 – Frequenta a Escola Preparatória e de Tática do Rio Pardo1903/1907 – Cursa a Faculdade de Direito, em Porto Alegre1909 – Inicia na vida política como deputado estadual pelo PRR1912 – Reeleito deputado estadual, renuncia a seguir ao mandato por se desentender com Borges de Medeiros1917 – Elege-se deputado estadual1922 – Elege-se deputado federal 1926 – Torna-se ministro da Fazenda de Washington Luís1927 – Vence as eleições para o governo do Estado1928/1930 – Preside o Rio Grande do Sul1930 – Derrotado nas eleições para presidente da República, assume como chefe de uma revolução1930/1934 – Chefia o Governo Provisório1934 – É eleito presidente da República pela Assembleia Constituinte para um mandato de quatro anos1937 – Instaura o Estado Novo, que vai até 1945, quando é deposto por um movimento militar1946 – É eleito senador constituinte e deputado1950 – Elege-se presidente da República 1954 – Suicida-se com um tiro

Os grandes estancieiros/fazendeiros criadores de gado do Rio Grande do Sul foram derrotados militarmente na Guerra dos Farrapos (1835-

1845), na Revolução Federalista (1893-1895) e na Revolução de 1923. Com a implantação da República (1889), perderam também a hegemonia política de que desfrutavam nos decênios finais do império. Paulatinamente, seu prestígio eleitoral foi se enfraquecendo, pois o número de eleitores nas regiões pastoris, proporcionalmente ao das regiões coloniais e dos centros urbanos, foi declinando ao longo do tempo. Economicamente, a atividade criatória também perdeu espaço. Foi suplantada pela agricultura colonial tradicional e pela empresarial, notadamente a do arroz, trigo e soja; pela indústria, onde a região metropolitana de Porto Alegre e a área de Caxias respondem por cerca de 70% de toda a capacidade industrial instalada no Estado; e pelo comércio e a prestação de serviços que se desenvolveram nos centros urbanos.

Embora derrotados militarmente, vencidos politicamente e sobrepujados economicamente, os latifundiários da região pastoril venceram no plano ideológico. A cultura do campo, ou seja, da pecuária extensiva, acabou se impondo sobre o conjunto da população sul-rio-grandense. Gente da Encosta da Serra, do Litoral e do Planalto, habitantes das cidades, populações de descendência africana, alemã, italiana e de outros grupos étnicos acabaram por venerar e cultuar o modo de vida e as tradições típicas da atividade pastoril. Proliferaram pelo Rio Grande afora os CTGs (Centros de Tradição Gaúcha), os DTGs (Departamentos de Tradição Gaúcha), os Piquetes e os Grupos de Arte Nativa que integram cada uma das 30 Regiões Tradicionalistas em que foi dividido o Estado. As invernadas campeiras e artísticas do Movimento Tradicionalista Gaúcho procuram imitar cenas ligadas a uma área específica do Rio Grande do Sul, inclusive com a hierarquia existente em uma estância. Não é por mero acaso que um CTG tem na sua direção o patrão, que é secundado pelo capataz, pelo sota-capataz, pelo agregado das pilchas (tesoureiro) e pelo agregado das falas (secretário). E todos os tradicionalistas, invariavelmente, professam simpatia pelos maragatos.

Vargas na Presidência da República

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F oi notável a influência social dos Dragões em toda a Província. O fato de Rio Pardo ter sediado um regimento praticamente desde seu início,

determinou que significativa parcela da antiga elite militar do Rio Grande do Sul servisse e ficasse aquartelada no município. A simples presença dos soldados fez irradiar a vida social da incipiente povoação. Todas as famílias queriam acolher em seus lares os jovens oficiais. Para as moças desejosas de casamento, eram um ótimo partido. Já as escolas militares trouxeram progresso para a cidade. Com a chegada dos cadetes, instrutores e funcionários, a vida social e cultural dos rio-pardenses ficou mais intensa a partir do convívio das pessoas do local com os militares procedentes de diferentes partes do Brasil. Por ali passaram, nasceram e foram batizados troncos de nomes de famílias militares ilustres como os Mena Barreto, os Correia da Câmara, os Pereira Pinto, os Pinto Bandeira e tantos outros. Além disso, os militares movimentavam a vida econômica da cidade.

A RIO PARDO DOS MILITARES

A interferência do Brasil nos países vizinhos; o genocídio da Guerra do Paraguai; a influência do Regimento de Dragões e das escolas militares na sociedade de Rio Pardo e na formação de uma elite.

A enorme influência

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Cadetes em Rio Pardo, no início do século XX

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105Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

O amor de Osório

Manoel Luís Osório e a casa onde Ana morava em Rio Pardo

Quando da fundação do Presídio de Rio Grande, em 1737, ali se estabeleceu o Regimento de Dragões. Seus primeiros oficiais eram Dragões oriundos de Minas Gerais e da metrópole portuguesa. Em 1754, em virtude da controvérsia criada com a demarcação do Tratado de Madri, Gomes Freire de Andrade providenciou o deslocamento do regimento para Rio Pardo, sob comando do tenente-coronel Tomaz Luís Osório. O regimento permaneceu com essa designação em Rio Pardo até 1824. Quando o Brasil deixou de pertencer à Coroa Portuguesa, foi organizado o Exército Nacional e o Regimento passou, então, a ser o 5º Regimento de Cavalaria Ligeira. Em 1832, sua designação foi alterada para 2º Corpo de Cavalaria. Mesmo sediado em Rio Pardo, possuía um destacamento em Bagé. Em 1834 o Regimento foi transferido definitivamente para Bagé. Com a mudança foram não somente os militares, mas também suas famílias, seus agregados, seus escravos e, inclusive, as riquezas que tinham amealhado. Rio Pardo sofreu um considerável baque com a saída dos dragões, em 1834.

O Regimento de Dragões

Outubro de 1827. O 5º Regimento de Cavalaria de 1ª Linha do Exército, uma unidade militar de elite do Exército Brasileiro, desfilava

na Vila de Rio Pardo impressionando e atraindo a admiração da população. Entre os jovens oficiais estava o tenente Manoel Luís Osório, com 20 anos, recém-saído da Guerra da Cisplatina, contra os uruguaios. Havia sido promovido há pouco, depois da Batalha de ituzaingó ou Passo do Rosário, onde seus lanceiros foram o único corpo de tropa brasileiro que não havia sido derrotado. Passara a residir na vila que abrigava a primeira praça militar do interior da Província do Rio Grande de São Pedro do Sul.

Durante o desfile, Ana, de 17 anos, jogou a Osório uma flor. Depois, em um baile, eles dançaram. À meia-noite, como de costume, as moças trocaram seus vestidos – moda que duraria até os anos de 1940. Ana e Osório iniciaram um romance mesmo sem o consentimento dos pais da jovem. O desfecho do namoro, porém, é controverso. O pesquisador Osório Santana Figueiredo, em seu livro sobre o general Osório, escreve que a família de Ana teria conseguido que o militar fosse transferido para um ponto de guarda na fronteira de Quaraim, hoje Barra do

Quaraí. Em suas cartas e poesias, Osório tratava Ana como Lília e escrevia a ela.

Passaram-se meses e Osório não recebia notícias. Enquanto isso, a moça era forçada pelos pais a se casar com um homem escolhido por eles. Certo dia, sentado à porta do seu rancho de palha, Osório viu um vulto se aproximar a cavalo. Era o portador de uma carta de Ana, que dizia: “Se me amas, vem buscar-me; fugirei contigo (...) Não demoras que podes chegar tarde (...) Ou o teu amor, ou a morte por quem chamo todos os dias (...)”. Ao findar a leitura, Osório notou que a data estava atrasada em mais de um mês. O portador justificou dizendo que adoecera no caminho, pelas alturas da atual cidade de Cacequi, e recebera ordens de entregar a carta pessoalmente. Na mesma hora, Osório fez o portador retornar com uma carta. instantes depois, não se conteve. Seguiu ele mesmo a Rio Pardo, acompanhado por dois soldados, mas pressentindo que chegaria tarde demais. E não se enganou: Ana, sua Lília, estava casada. Frustrado, regressou a seu posto. Ana durou poucos anos. Quando a foram amortalhar, descobriram uma tatuagem na epiderme ao lado do coração, feita por sua mucama, com as iniciais ML – de Manoel Luís.

Patrono do Exército Brasileiro teria protagonizado tragédia romântica

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•• Carreira vitoriosa

Manoel Luís Osório foi um dos principais chefes militares brasileiros do século XIX. Sua carreira, iniciada antes de ele completar 15 anos, esteve sempre ligada à política do Império na Bacia do Prata. Foi um dos mais destacados comandantes brasileiros na Guerra do Paraguai. Político do Partido Liberal, foi ministro da Guerra nos últimos anos de sua vida. Um decreto de 1962 o consagrou como patrono da Arma de Cavalaria do Exército. Filho do militar Manoel Luís da Silva Borges e de Ana Joaquina Luísa Osório, nasceu em 10 de maio de 1808 na Fazenda Nossa Senhora da Conceição do Arroio (atualmente no município de Osório). Em 1869 foi agraciado com o título de Marquês de Erval.

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106 Uma luz para a história do Rio Grande

O rio-pardense foi casado com dona Rita Bernarda Côrtes de Figueiredo Mena, natural do Rio de Janeiro e filha de militares portugueses. Em consequência do casamento, ele adotou o sobrenome Mena e passou a assinar João de Deus Mena Barreto. Por isso, foi o fundador da família brasileira dos Mena Barreto. O casal teve 18 filhos.

Em 1822, foi indicado comandante dos Corpos de Cavalaria de Milícias. Logo em seguida, foi eleito vice-presidente da Junta Governativa da Província de São Pedro. Com a retirada do general João Carlos Augusto

de Saldanha e Daun da presidência da junta, João de Deus assumiu o cargo.

O livro Escolas Militares de Rio Pardo registra que o rio-pardense foi o primeiro brasileiro e primeiro rio-grandense a exercer o governo do atual Rio Grande do Sul, cumulativamente com o Comando das Armas. Ele foi um dos responsáveis pelo início da construção do prédio que hoje abriga o Centro de Cultura de Rio Pardo.

Era protetor e provedor da irmandade Nosso Senhor dos Passos. Seu corpo está sepultado atrás da igreja Nosso Senhor dos Passos.

Militar ainda no ventre da mãe

João Propício

O primeiro Mena Barreto

Rio-pardense esteve envolvido em todas as batalhas de sua época

Nascido em Rio Pardo em 7 de julho de 1769, o marechal João de Deus Mena Barreto foi declarado praça (soldado) ainda no ventre da mãe – pois seus pais, o coronel

Francisco Barreto Pereira Pinto e Francisca Veloso da Fontoura estavam convictos de que o filho seria militar. Por isso, na data de seu nascimento, foi promovido a alferes (hoje seria o equivalente a segundo tenente).

Ainda jovem, alistou-se no Regimento dos Dragões do Rio Pardo e em 1801 já era capitão, participando ativamente da conquista das Missões do Uruguai pelos brasileiros. Promovido a tenente-coronel, participou da invasão da Província de Montevidéu pelo Exército Pacificador da Banda Oriental, em 1811. Finda a campanha na fronteira, foi promovido a coronel e assumiu o comando do Regimento de Cavalaria de Milícias em Rio Pardo, onde também foi graduado ao posto de brigadeiro. De 1816 a 1821 participou de várias batalhas, que culminaram com a derrota de Dom

José Gervásio Artigas. João de Deus Mena Barreto ostentava

os títulos de Grande do império, Conselheiro de Sua Majestade, Fidalgo Cavaleiro da Casa Real, Dignitário da Ordem imperial do Cruzeiro e Comendador. Defendeu os interesses da monarquia na Revolução Farroupilha

e, em 1841, recebeu o título de Barão de São Gabriel. Finda a guerra, voltou a morar em Rio Pardo. Em 10 de fevereiro de 1846 foi condecorado Visconde de São Gabriel. Faleceu no dia 27 de agosto de 1849, em Rio Pardo.

Túmulo de João de Deus no Cemitério da Igreja dos Passos

O livro Os Mena Barreto – seis gerações de soldados, de João de Deus Noronha Mena Barreto, registra todo o envolvimento dessa família com o exército e as guerras. Filho do Visconde de São Gabriel, João Propício Mena Barreto seguiu os passos do pai.

João Propício nasceu em 5 de agosto de 1808, na Vila de Rio Pardo, e verificou praça no Regimento de Dragões em 27 de julho de 1820, quando tinha apenas 12 anos. A partir de 1822, tomou parte nas lutas da independência e das batalhas de Passo do Rosário e de Canhitas, entre 1825 e 1828. Afastou-se do exército em 1832, fixando residência na Vila de São Gabriel, onde se dedicou à criação de gado.

Quando da eclosão da Revolução Farroupilha, ele liderou tropas legalistas na condição de capitão da Guarda Nacional, em diversos combates. Na Campanha do Uruguai, de 1851-52, João Propício comandou a 5ª Brigada de Cavalaria. Em 1858, tornou-se vice-presidente da província. Na campanha de 1864-65, no Uruguai, com o Almirante Tamandaré, iniciou as operações que resultaram nas tomadas de Salto, Paissandu e Montevidéu – onde foi assinado, a 20 de fevereiro de 1865, o acordo que pôs fim à última campanha no Uruguai. Encerrada a campanha, retornou a São Gabriel. Em 19 de fevereiro de 1865, foi agraciado com o título de Barão de São Gabriel. Desde 1937, o 9º Regimento de Cavalaria Blindado (9º RCB), de São Gabriel, é chamado de Regimento João Propício.

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107Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

•• A respeitada Marinha

Durante o império, o Exército Brasileiro não gozava de grande prestígio. Desde 1831, quando da cria-ção da Guarda Nacional, seu poder havia sido es-vaziado pelo governo. Com um efetivo reduzido e um orçamento baixo, os militares não desfru-

tavam de reconhecimento social e político. Eram os coronéis

da Guarda Nacional, provenientes da aristocracia rural, que gozavam de prestígio. Essa situação se alteraria profundamente com a Guerra do Paraguai. Terminado o conflito, a importância da corporação se tornaria um fato incontestável. A guerra também teve influência no crescimento do republicanismo, do abolicionis-mo e do anticlericalismo entre os homens da caserna.

A oficialidade do Exército tinha origem, principal-mente, na classe média brasileira. Historicamente, houve a tendência dos filhos de militares seguirem a profissão do pai. Daí por que havia tantos Mena Barreto e Andrade Neves seguindo a carreira das armas. Por mais competên-cia e bravura que demonstrasse, era difícil a um membro de família humilde e sem tradição militar chegar a um posto de general, por exemplo. Os heróis de guerra são quase sempre os que estão em postos de alto comando. Aos soldados do front restam algumas medalhas de con-decoração, quando não uma lápide coletiva ou anônima.

Na época do Império, a Armada Nacional (assim era chamada a marinha de guerra do Brasil) gozava de grande influência. Colaborou decisivamente para a independência e para a manutenção da integridade territorial do País. Atuou para sufocar os levantes populares e das elites nas províncias e participou dos conflitos geopolíticos – ocorridos notadamente no Prata – em que o Brasil se envolveu. Sua esquadra mereceu constante aparelhamento e modernização nesse período. Seus oficiais eram monarquistas e provinham da aristocracia brasileira. Com a Proclamação da República, a Armada foi preterida, perdendo nitidamente espaço para o Exército.

Sem grande prestígio

Nem todos podem ser heróis

FOTO: BiBLiOTECA NACiONAL/DiVULGAçãO

Guerra do Paraguai em foto de D. Pedro II

Exército Brasileiro só passou a ser reconhecido socialmente a partir da Guerra do Paraguai

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108 Uma luz para a história do Rio Grande

Poucas pessoas conhecem esta pequena parte da história do Rio Grande do Sul. Afinal, quem eram os Brummers? Brummers foi a designação dada aos soldados mercenários alemães

contratados pelo império do Brasil em 1851, para auxiliar na luta contra Oribe, do Uruguai, e Rosas, da Argentina. A legião deveria ser formada por 1.800 soldados.

Primeiro, ganharam a alcunha porque chamavam de Brummers as moedas de cobre que recebiam como soldo. Posteriormente, foram assim apelidados porque em alemão Brummer significa “resmungador” – o que eles certamente eram.

Muitos dos soldados contratados eram oriundos das tropas desmobilizadas em 1851 em Schleswig-Hollstein, que haviam guerreado contra a Dinamarca. Outros haviam se envolvido na revolução liberal de 1848 e, por razões políticas, tiveram de emigrar. Outros, ainda, eram jovens aventureiros dispostos a tentar a sorte no além-mar.

Quando chegaram, foram recebidos com honras. Mas não formavam um grupo homogêneo. Havia insubordinações, deserções e arruaças. Apenas parte dos soldados alemães participou dos combates no Prata. A guerra acabou rapidamente e os Brummer foram, em boa parte, desmobilizados. Apenas 450 aguardaram o término do contrato engajados no Exército, enquanto o resto desertou ou faleceu.

Os que permaneceram na Província foram

Os Brummers

•• Karl von Koseritz

O jornalista, ad-vogado e militante do Partido Liberal Karl von Koseritz é muitas vezes apontado como um ex-Brummer. Na realidade, Koseritz viajou como grumete em uma das embarcações que trouxeram soldados mercenários para o Rio de Janeiro. Na capital do Império, apresentou-se para o serviço militar. No entanto, de-sertou assim que chegou ao Rio Grande do Sul.

Mercenários alemães foram contratados pelo Império brasileiro para lutar contra Oribe e Rosas

atraídos pelos núcleos coloniais alemães. Por terem um nível educacional superior ao dos colonos da época, exerceram grande influência onde se estabeleceram. Em 1870, metade dos professores da colônia alemã da Província eram Brummers. Eles se distinguiam pelos princípios liberais – lutaram pela participação política e pela nacionalização dos imigrantes. Foram alvo das discordâncias dos padres jesuítas e de pastores luteranos.

GRUPO DE BRUMMERS/MEMORiAL SOGiPA

Durante o século XiX, por várias vezes o Brasil interveio nos países do Prata, em uma postura claramente imperialista e de preservação de seus interesses. Em 1851, por exemplo, trabalhou para tirar do poder o presidente uruguaio Oribe, pertencente ao Partido Blanco. Depois fez o mesmo na Argentina, fato que levou Rosas a perder seu posto para Urquiza. Em 1864, repetiu-se a dose. O Exército Brasileiro invadiu o Uruguai para depor o presidente Atanásio Aguirre, aliado do presidente paraguaio Solano Lopes. Esse

A faceimperialista do Brasil

episódio fez eclodir a Guerra do Paraguai (1864-1870), que foi o maior confronto bélico que a América Latina conheceu durante o século XiX. Nesse conflito, a Tríplice Aliança – formada por Brasil, Uruguai e Argentina – praticamente acabou com o Paraguai.

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109Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

A Guerra do Paraguai

AGuerra do Paraguai foi um acontecimento de grande importância para a consolidação dos estados nacionais,

causando impactos com consequências sentidas até os dias de hoje. Para se entender essa guerra, é preciso analisar o conjunto dos conflitos que a antecederam na Bacia do Prata.

Após as conquistas de independência das colônias ibero-americanas, os embates antes ocorridos entre as metrópoles passaram a se dar entre vizinhos. Solano Lopes, presidente paraguaio, pode ser acusado

de ditador, mas não é tão vilão quanto a historiografia tradicional brasileira normalmente o descreve. Afinal, na época, também não havia democracia no Brasil, na Argentina e no Uruguai.

A guerra foi um genocídio. O Paraguai ficou reduzido a idosos, crianças e mulheres e teve sua economia arrasada. Além disso, Argentina e Brasil se apossaram de cerca de 40% do território paraguaio e jamais o devolveram. A difícil situação em que vive atualmente o povo paraguaio tem muito a ver com a terrível guerra, que tirou de sua população qualquer perspectiva de futuro.

•• Posto de passagemCom a expansão da fronteira do Rio Grande do Sul em direção oeste até as barrancas do Rio Uruguai, Rio Pardo deixou de ser fronteira. Consequentemente, perdeu sua importância como ponto militar estratégico. Regimentos do Exército brasileiro foram sediados em cidades como Cachoeira do Sul, Santa Maria, São Gabriel, Santana do Livramento, Uruguaiana e São Borja. Por isso, na Guerra do Paraguai, Rio Pardo se caracterizou como um posto de passagem e descanso das tropas ou para abastecimento de munição e alimentos das que seguiam rumo às “bandas orientais”.

•• O conde reclama

Após a deposição do presidente Aguirre, do Uruguai, Solano Lopes declarou guerra ao Brasil e à Argentina. Em uma fulminante ofensiva inicial, as forças armadas paraguaias dominaram territórios argentinos e brasileiros. Em 1865, na Fronteira da Província, apossaram-se das cidades de Uruguaiana, São Borja e Itaqui. Essa iniciativa do Paraguai fez D. Pedro II embarcar com sua comitiva em direção ao palco da guerra. Seu deslocamento do Rio de Janeiro até Uruguaiana durou cerca de dois meses e incluiu escalas em

Rio Grande, Porto Alegre, Rio Pardo, Cachoeira, São Gabriel, Caçapava e Alegrete. No mês de setembro, em plena campanha ofensiva dos aliados, houve em Uruguaiana o encontro dos três chefes de Estado: D. Pedro II, do Brasil; general Mitre, da Argentina; e Venâncio Flores, do Uruguai. Sitiadas, as tropas paraguaias acabaram se rendendo. A partir de então, o rumo da guerra mudaria e os combates

Política intervencionista do Brasil foi determinante para a eclosão da Guerra do Paraguai

BATALHA DO AVAHy, DE PEDRO AMéRiCO

se dariam em solo paraguaio. A passagem do imperador por Rio Pardo se deu entre 29 e 31 de julho. Seu genro, o Conde D’Eu, marido da princesa Isabel, passou pela cidade em 15 de agosto.

Ficou hospedado na casa do juiz Abílio Martins Castro.

Disse que a cama que lhe cederam ostentava muito luxo,

mas pouca comodidade. Também reclamou muito do frio que passou no Sul. Isso ficou registrado em Viagem Militar ao Rio Grande do Sul.

Page 111: Rio Pardo 200 anos

110 Uma luz para a história do Rio Grande

Dentre as figuras mais destacadas da história de Rio Pardo está José Joaquim de Andrade Neves, o Barão do

Triunfo. Ele nasceu em 22 de janeiro de 1807 em Rio Pardo e faleceu em 1869 em Assunção, Paraguai. Era filho do major José Joaquim de Figueiredo Neves e de Francisca Ermelinda de Andrade. Por orientação do pai, ingressou na carreira militar em 1826. Sairia dela pouco tempo depois, para auxiliar nos negócios da família.

Quando eclodiu a Guerra dos Farrapos, voltou a pegar em armas, agora pela Guarda Nacional. Fiel ao império, tornou-se um dos maiores inimigos dos revolucionários farroupilhas. Participou, dentre outros, dos combates de Canapé, Capela Grande, Arroio dos Cachorros, ilha do Fanfa, Aldeia dos Anjos,

Passo da Areia, Taquari, Dom Marcos, Porto Alegre e Poncho Verde. Em Rio Pardo, participou da Batalha do Barro Vermelho, onde as tropas legalistas foram fragorosamente derrotadas.

Em 1839 foi alçado ao posto de tenente-coronel da Guarda

Nacional. Em 1847, a coronel. Em 1851-52 comandou a 7ª Brigada de

Cavalaria, formada pelo 3º Batalhão de Caçadores, e o Corpo da Guarda Nacional de Rio Pardo na campanha contra Oribe, no Uruguai. Em 1858 recebeu o título de Brigadeiro Honorário do Exército.

Em 1864 participou da invasão do Uruguai, para colocar na presidência daquele país Venâncio Flores, um aliado do Brasil e adversário de Solano Lopes, do Paraguai. Em seguida participou da Guerra do Paraguai, onde morreu antes de findar o conflito.

Foi uma milícia criada pelo Império do Brasil em 1831, durante o período regencial. Era integrada por homens brasileiros entre 18 e 60 anos e que tinham renda mínima para serem eleitores. O historiador André Fertig salienta que o serviço militar era obrigatório e, na maior parte dos casos, gratuito.Entre as atribuições da guarda estavam colaborar na manutenção da ordem, capturar escravos fugidos, conter revoltas e auxiliar o Exército. Em 1860 contava com mais de 500 mil praças, enquanto o Exército somava uma força de 16 mil homens. Mas a Guarda Nacional acabou se transformando em forte instrumento de clientelismo político, contribuindo decisivamente para o reforço do poder pessoal de seus chefes nos municípios – o que também aconteceu em Rio Pardo, com Andrade Neves.Foi oficialmente extinta em 1922.

Casa do Barão do Triunfo, em Rio Pardo, nas primeiras décadas do século XX

Rio-pardense teve grande influência política e militar no século XIX

•• Guarda Nacional

Andrade Neves, o Barão do Triunfo

BANCO DE iMAGENS/GS

•• João Luiz Gomes

Embora cunhado de Andrade Neves, João Luiz Gomes não fazia parte do grupo político daquele. Militante do Partido Conservador, ele foi presidente da Câmara de Rio Pardo no quadriênio 1869-1872 e entre 1874-1876. Como membro da Guarda Nacional, obteve o título de coronel. Foi provedor honorário da Irmandade dos Passos, tendo se empenhado pela construção do prédio que deveria ser hospital. Homem empreendedor, foi concessionário dos contratos de iluminação pública das cidades de Rio Pardo, Bagé, Cachoeira, São Gabriel e Alegrete.

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111Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

•• Braço do Duque de Caxias

Em 1842 o governo imperial decide, de uma vez por todas, acabar com a Revolução Farroupilha. O marechal Luís Alves de Lima e Silva, o Duque de Caxias, é nomeado presidente da Província do Rio Grande do Sul e comandante das tropas imperiais. Ele reorganiza as forças leais ao imperador e José Joaquim de Andrade Neves, então tenente-coronel honorário e detentor da Ordem do Cruzeiro, é um dos seus fiéis colaboradores. As lutas se estendem até 1º de março de 1845, quando os farrapos depõem suas armas.Depois de dez anos, José Joaquim retorna para casa em Rio Pardo. A causa que defendia havia sido vitoriosa e ele é um herói reconhecido. Porém, financeiramente, sua situação é difícil. Ao lado da esposa, dona Carolina, e dos filhos, começa a reconstrução de sua vida e do que fora destruído em uma década de guerra. Como forma de auxiliá-lo, o governo provincial lhe concede o emprego de administrador dos índios caingangues, com uma pequena remuneração. O emprego, no entanto, mais atrapalha do que ajuda, pois Andrade Neves é obrigado a viajar por lugares ermos e a ouvir reclamações que vinham de todos os lados.

Em recompensa pelos serviços prestados na Guerra do Paraguai, especialmente após o governo imperial tomar conhecimento de sua participação na tomada da Vila do Pilar, José Joaquim de Andrade Neves foi condecorado, em 1868, com o título nobiliárquico de Barão do Triunfo.

Na campanha contra o Paraguai, um grande contingente de soldados rio-pardenses pegou em armas. Vários tombaram

nessa luta, entre eles o Barão do Triunfo. Na batalha de Lomas Valentinas, uma fatídica bala de ferro fundido se alojou em seu pé direito. Febril, o barão se confinou em sua barraca de campanha.

Quando em 5 de janeiro de 1869 a capital do Paraguai, Assunção, foi tomada, Andrade Neves não estava à frente da cavalaria que comandava. Seguia atrás das tropas em uma carreta que servia de

ambulância. Acomodado em um dos melhores aposentos do palácio presidencial de Lopes, recebeu a visita de Caxias e foi assistido por seu filho, José Joaquim, que depois seria general.

Morreu no dia seguinte. Seu corpo foi enterrado em Assunção e, em 5 de julho de 1872, foi exumado diante de uma guarda de honra do Exército brasileiro. Quando seus restos mortais chegaram a Rio Pardo foram recebidos com honras, levados em procissão até a igreja Matriz e colocados em seu jazigo perpétuo, no mesmo velho templo onde havia sido batizado em 1807.

Caso os farroupilhas tivessem vencido a guerra civil de 1835-1845 e a República Rio-Grandense triunfado, Andrade Neves possivelmente teria caído no esquecimento. Ou teria sido desterrado, considerado inimigo da República. Foi o império que o condecorou pelos serviços prestados à monarquia brasileira.

Coube-lhe também a incumbência, enquanto comandante do Corpo da Guarda Nacional de Rio Pardo e de Encruzilhada, de organizar a destruição de quilombos e de recapturar escravos fugidos.

Homem do seu tempo

Título de nobreza

Um tiro no pé mata o barãoNa Batalha de Lomas Valentinas, em 1869, Andrade Neves foi ferido

Grande prestígio políticoAlém de atuar na Guarda

Nacional, Andrade Neves foi também criador de gado no Distrito do Couto. Graças ao prestígio alcançado no comando da Guarda Nacional, tornou-se o grande líder político de Rio Pardo nas décadas de 1840, 50 e 60. Exerceu as funções de juiz municipal, procurador geral da Fazenda Pública, foi vereador por vários mandatos e, em duas ocasiões, deputado provincial. Presidiu a

Câmara Municipal de Rio Pardo de 1838 a 1840, em 1849 e 1850, em 1852 e de 1857 a 1860. Em 1850, presidiu a instalação da Câmara Municipal de Encruzilhada do Sul.

Foi provedor da irmandade de Caridade do Senhor Bom Jesus dos Passos. Entre as medidas que tomou no cargo, está o lançamento da pedra fundamental da Casa de Caridade, que hoje é o prédio do Centro Regional de Cultura.

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112 Uma luz para a história do Rio Grande

Em Rio Pardo costuma-se dar bastante importância à figura de Maria

Adelaide Meireles, a filha do Barão do Triunfo, que nasceu em Porto Alegre em 18 de março de 1838. Adelaide se casou aos 21 anos com o major da Guarda Nacional Miguel Barreto de Oliveira Meireles, que era viúvo, deputado provincial e escritor. Enviuvou em 1872.

Afirma-se que a história militar da cidade muito deve a essa mulher. Ela ficou conhecida em Rio Pardo como “a mãe dos soldados”, pois muitas vezes intercedeu junto ao comando do 13º Regimento de Cavalaria em favor de algum soldado faltoso. Residia no solar dos Andrade Neves, na frente da igreja dos Passos, próximo ao regimento, e era sempre visitada pelas mais altas figuras políticas e militares. Era como se ali fosse o lugar onde homens públicos iam buscar conselhos e estímulos para seus novos misteres. Dentre as personalidades que a visitaram, Deoclecio Paranhos Antunes cita o general Setembrino Carvalho e Joaquim Francisco de Assis Brasil. é voz corrente, também, que ela muito se teria empenhado para que em Rio Pardo se concentrassem batalhões do Exército Nacional.

Possivelmente, seu prestígio e influência junto aos militares tenham sido superestimados. O fato de ter recebido em sua casa militares de alta patente e políticos de renome não deve surpreender. Muitos dos seus familiares seguiram a carreira das armas se tornando marechais, generais e coronéis. Ela era filha de um homem de muito prestígio, irmã de general, mãe de dois generais, tia de general. Enfim, a rede familiar dos Andrade Neves foi extensa e incluía muitos militares. O próprio general Setembrino de Carvalho era sogro de um de seus sobrinhos. Portanto, era a família dos Andrade Neves que gozava de prestígio no meio militar e não necessariamente Maria Adelaide, que faleceu em 17 de agosto de 1928, aos 90 anos.

Adelaide, a “baronesa”

Maria Adelaide em seu solar, ao final da Revolução de 1923. Em primeiro plano, o general Setembrino de Carvalho, o general Eurico de Andrade Neves e o então capitão Euclides Figueiredo

Filha de Andrade Neves ficou conhecida em Rio Pardo como a “mãe dos soldados”

•• Homenagem a MartinsEmbora os títulos de nobreza no Brasil não fossem transmissíveis a herdeiros, Adelaide era conhecida por todos como Baronesa do Triunfo, denominação com a qual entrou para a história. Viúva, ela teria despertado o amor em Deodoro da Fonseca e Gaspar Silveira Martins, e preferido o segundo. Não se tem conhecimento do desfecho da relação entre os dois, mas quando Silveira Martins faleceu em Montevidéu, em 1901, Rio Pardo lhe prestou significativa homenagem organizada por Maria Adelaide, na Igreja dos Passos.

•• As escolas de guerra

Embora por poucos anos, Rio Pardo foi sede de cinco escolas de guerra do Exército Brasileiro:

1859-1863 – Escola Militar Preparatória da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul. Funcionava no prédio que serviu de residência do ex-comandante do Regimento de Dragões de Rio Pardo, Patrício José Corrêa da Câmara, primeiro Visconde de Pelotas. Com exceção desta escola, as demais ocuparam o prédio que abriga hoje o Centro Regional de Cultura.

1885-1891 – Escola Tática e de Tiro de Rio Pardo. Sua criação foi sugerida pelo marechal Gastão de Orleans, o Conde D’Eu. Foi organizada pelo tenente-coronel Antônio Sena Madureira, que ganharia notoriedade por sua participação na Questão Militar.

1891-1898 – Escola Prática de Infantaria e Cavalaria do Rio Pardo, que funcionou de 1891 a 1908 com interrupções, por causa da Revolução Federalista (1893-1895).

1898-1903 – Escola Preparatória e de Tática do Rio Pardo.

1905-1911 – Escola de Aplicação de Infantaria e Cavalaria de Rio Pardo.

ACERVO ERNESTO WUNDERLiCH

Rio Pardo também sediou alguns batalhões do Exército Brasileiro. O último deles, o 7º Batalhão de Caçado-res, foi removido da cidade em 1928. Em compensação, a partir de 1970, depois de incessantes gestões, pas-sou a sediar o 2º Batalhão de Polícia Militar – Batalhão Pinheiro Machado, da Brigada Militar.

Batalhões do Exército

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113Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

Sobrevivente da Ilha das Cobras, João Cândido viveu no Rio de Janeiro e faleceu em 1969. Sua figura ficou imortalizada na música O mestre-sala dos mares, de João Bosco e Aldir Blanc. A professora e escritora Maria Luci Correa Ferreira resgatou sua história no livro Tributo a João Cândido, O rei do farol da liberdade (2002). Graças a seu empenho, em Encruzilhada virou lei falar sobre João Cândido. Por meio da Lei Municipal nº 2748, de julho de 2008, acontece anualmente o Momento João Cândido no mês de julho, durante as festividades da semana do município.

Os feitos de João Cândido ecoam na memória de seu filho, Adalberto Nascimento Cândido, que vive e trabalha como porteiro no Rio de Janeiro. Conviveu com o pai durante 31 anos, de 1938 a 1969. Entre as lembranças marcantes, uma é a primeira viagem de avião que fez com o pai, em 1959, quando estiveram em Rio Pardo e Cachoeira do Sul. A segunda foi em dezembro de 2008: uma visita a Encruzilhada do Sul, cidade onde seu pai nasceu.

João Cândido Felisberto, o Almirante Negro, nasceu em Encruzilhada do Sul em 24 de junho de 1880, na choupana onde viviam seus pais, os escravos João Cândido e Ignácia Felisberto.

Ele costumava dizer que era natural de Rio Pardo e, às vezes, de Encruzilhada do Sul, que se emancipara da Cidade Histórica em 1849. A fazenda onde Cândido nasceu, na Coxilha Bonita da Serra do Herval, pertence hoje ao município de Dom Feliciano. Mas foi em Rio Pardo – cidade portuária – que, ainda criança, ele viu o primeiro cais e as primeiras embarcações, vislumbrando o que seria seu futuro. Talvez por isso se considerasse um rio-pardense.

Ainda em Rio Pardo, João Cândido conheceu o futuro almirante Alexandrino de Alencar, que o encaminhou para a Marinha aos 14 anos de idade. Alistou-se no Arsenal de Guerra do Exército, em Porto Alegre, em agosto de 1894. Percorreu todo o litoral brasileiro e navegou pela África, Europa e Américas. Em dezembro de 1900, foi alçado à condição de marinheiro de 1ª classe.

A revolta nasceu dos próprios marinheiros para combater os maus-tratos e a

má alimentação da Marinha e acabar definitivamente com a chibata. Nós que vínhamos da Europa, em contato com outras marinhas, não podíamos admitir que na Marinha Brasileira ainda o homem tirasse a camisa para ser chibateado por outro homem.”

Assim João Cândido, o Almirante Negro, justificou a rebelião que estourou entre os marujos em 1910: a Revolta da Chibata. A repulsa pelos castigos corporais na Marinha levou, primeiro, a tentativas de negociação pacífica com as autoridades, mas o diálogo foi abandonado após maio de 1910. Cândido foi recebido pelo então presidente da República, Nilo Peçanha, e pelo ministro da Marinha, almirante Alexandrino de Alencar. A reunião foi cortês, mas não houve nenhuma proposta nem disposição para atender às reivindicações.

No dia 21 de novembro, o marujo Marcelino Rodrigues de Menezes sofreu uma sessão de chibatadas no encouraçado Minas Gerais. Foi a gota d’água. Entre 22 e 27 de novembro, cerca de 2.300 marinheiros dominaram quatro grandes navios de guerra e apontaram os canhões para o Rio de Janeiro. Os rebeldes exigiam o fim das torturas. O episódio chegou ao fim com sete mortos – cinco oficiais e dois marinheiros – e vários feridos. Tiros de advertência feitos pelos rebeldes ainda mataram duas crianças no morro do Castelo, destruíram casas comerciais e atingiram o Mosteiro de São Bento.

A saga do Almirante

Quem foi João Cândido

O resgate da memória

Revolta da Chibata: marinheiros se amotinam em quatro navios

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João foi levado preso, depois que o governo ignorou a anistia

Maus-tratos na Marinha levaram à Revolta da Chibata, que teve João Cândido como líder

•• PerseguidosO marechal Hermes da Fonseca havia sido empossado na Presidência da República uma semana antes do motim. Ele recebeu o manifesto exigindo a extinção da chibata e anistia para os revoltosos. Oficialmente, aceitou as reivindicações. Os rebeldes devolveram os navios e largaram as armas em 27 de novembro. Mas, já no dia seguinte, o presidente “esqueceu” a anistia e assinou o decreto 8.400, permitindo a expulsão da Armada de todos os marujos que fossem hostilizados pelos superiores. Foram expulsos 1.206 homens, muitos deles presos, torturados e alguns, assassinados. João Cândido, líder da rebelião, foi levado à prisão da Ilha das Cobras em dezembro. Ele e mais 30 homens ficaram trancados em duas celas solitárias. Os carcereiros jogaram cal sobre os presos. Todos morreram, com exceção de João e outro gaúcho, João Avelino Lira.

Page 115: Rio Pardo 200 anos

114 Uma luz para a história do Rio Grande

Generais Mascarenhas e Zenóbio da Costa entre pracinhas e oficiais da FEB, em 1944, no embarque para a Europa

João Batista Mascarenhas de Moraes nasceu em São Gabriel em 13 de novembro de 1883 e faleceu no Rio de Janeiro em 17 de setembro de 1968. Mascarenhas de Moraes frequentou a Escola Preparatória e de Tática do Rio Pardo por três anos, de 1899 a 1902. Ela se destinava a preparar os

cadetes para a Escola Militar do Brasil, situada na Praia vermelha, no Rio de Janeiro. Matriculado em 1º de abril de 1899, aos 15 anos, foi integrante de uma turma de civis. Parte de sua passagem em Rio Pardo, Mascarenhas de Moraes narra no livro Memórias. Para ele o ensino oferecido na época deixava a desejar, sobretudo quando o assunto eram as táticas militares.

Combateu o movimento tenentista na década de 1920, que exigia reformas no País. Em 1930, opôs-se à revolução que levou vargas ao poder. Em 1932, esteve ao lado dos constitucionalistas paulistas e mais uma vez contra vargas. Em 1935, combateu os levantes esquerdistas promovidos pela Aliança Nacional Libertadora.

Em outubro de 1943 assumiu o comando da Força Expedicionária Brasileira (FEB), criada após a decisão brasileira de enviar tropas à Europa para lutar contra os países do Eixo na 2ª Guerra Mundial. Em junho de 1944, seguiu para a Itália com os primeiros contingentes militares do Brasil enviados ao conflito, que entraram em combate a partir de setembro daquele ano. Permaneceu na Europa até o fim da guerra. Foi consagrado com o título de marechal. Em 1953 foi nomeado chefe do Estado Maior das Forças Armadas, oportunidade em que acompanhou a crise política que levaria ao suicídio de Getúlio vargas no ano seguinte.

Em 1946, visitou Rio Pardo e foi ao prédio onde funcionava a escola. A recepção festiva movimentou a cidade e contou com homenagens.

Comandante da FEB

Eurico Gaspar Dutra chegou a Rio Pardo em 1902 e permaneceu até 1903. Natural de Cuiabá (MT), era filho de uma família humilde e tinha como objetivo seguir carreira militar. Sobre Getúlio vargas, escreveu: “Naquele tempo, andando pelo pátio da escola, jamais poderíamos imaginar que chegaríamos ambos à Presidência da República”. Eurico Gaspar Dutra foi ministro da guerra de 1934 a 1945 e o presidente que sucedeu Getúlio vargas com o fim do Estado Novo (1937-1945).

Político e militar brasileiro, Plácido de Castro nasceu em São Gabriel em 9 de setembro de 1873 e estudou na Escola Prática de Infantaria e Cavalaria do Rio Pardo, de 1891 a 1892. Em 1893 aderiu, com outros colegas, à causa federalista, tendo atingido o posto de major no exército dos maragatos.

Migrando para o Acre, como agrimensor, acabou por liderar uma revolta militar que culminou, inicialmente, com a independência daquele território rico em seringais da Bolívia e, posteriormente, com a sua incorporação ao Brasil.

Morreu em 9 de agosto de 1908 com apenas 34 anos, em uma emboscada feita por 14 jagunços. Seus restos mortais estão sepultados no Cemitério da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre.

FOTO ExTRAíDA DO LIvRO A LuTA DOS PRACINHAS, DE JOEL SILvEIRA E THASSILO MITkE

Mascarenhas de Moraes estudou em Rio Pardo

•• Alexandrino

Alexandrino Faria de Alencar nasceu em Rio Pardo em 12 de outubro de 1848. Era filho do capitão do Exército Brasileiro Alexandrino de Alencar e de Ana Faria de Alencar. Formou-se em Engenharia Naval pela Escola Naval e em 1893, ainda capitão de fragata, participou da Revolta da Armada – de oficiais contra a pouca atenção dada à Marinha pelo então presidente da República, marechal Floriano Peixoto. O protesto foi liderado pelo ex-ministro da Marinha, Custódio de Mello. Derrotado ao fim da rebelião, em abril de 1894, teve de se exilar fora do País. Retornou anistiado, sendo em seguida promovido a almirante da Armada Brasileira.Alexandrino de Alencar foi ministro da Marinha nos governos de Afonso Pena, Nilo Peçanha, Hermes da Fonseca, Venceslau Brás e Artur Bernardes, ativando a reforma geral da Armada do Brasil. Também foi ministro do Supremo Tribunal Militar. Serviu na Guerra do Paraguai e foi senador na República Velha, em 1906 e 1921.

>> Gaspar Dutra

>> Plácido de Castro

Page 116: Rio Pardo 200 anos

115Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

O aluno mais ilustre

O brasileiro de maior destaque a passar por

uma escola militar de Rio Pardo foi o ex-presidente Getúlio Vargas, que permaneceu na instituição de 1900 a maio de 1903, quando foi expulso. Antes havia estudado em Ouro Preto, onde viviam seus irmãos mais velhos, viriato e Protásio. Em 1897 foi matriculado na escola militar mineira para seguir a carreira do pai, Manoel do Nascimento vargas, que combatera os maragatos na Revolução Federalista (1893 a 1895).

A presença dos irmãos vargas em Minas foi marcada por um conflito que resultou na morte do estudante paulista Carlos Prado. viriato e Protásio, junto aos também gaúchos Fernando kaufmann, Francisco Schmidt e Baltasar Patrício do Bem, foram considerados os autores da morte pelo juiz Alfredo Guimarães. Getúlio não foi incluído no processo, pois tinha 13 anos e meio. No fim de 1897 os três retornaram a São Borja e Getúlio ingressou no 6º Batalhão de Infantaria, como soldado.

Em 1900 ele entrou na Escola Preparatória e de Tática do Rio Pardo, já com

o posto de sargento. Segundo seus contemporâneos, o cadete Getúlio se tornou, na Escola Preparatória e de Tática, o melhor aluno da aula de Geografia. Entretanto,

Getúlio não seguiu a carreira das armas. Foi desligado da instituição em maio de 1903 por tomar parte em manifestações contra o capitão Marcos Telles Teixeira, um dos instrutores. Ao todo, foram desligados 31 alunos.

Getúlio vargas estava com 19 anos e protagonizou um dos fatos mais conhecidos da sua biografia. Enquanto caminhava até a estação ferroviária, arremessou uma botina contra o delator de sua turma, que havia organizado uma manifestação pedindo abastecimento de água na escola.

Segundo o pesquisador Ivar Hartmann, em 1900 vargas teve a vida salva pelo colega Gil de Almeida, quando nadava no Rio Pardo e por pouco não se afogou. Almeida, em 1930, era comandante da 3ª Região Militar de Porto Alegre. Foi preso nos primeiros momentos da Revolução que levaria vargas ao poder.

Bertoldo klinger nasceu em Rio Grande e ingressou como civil voluntário na Escola Preparatória e de Tática do Rio Pardo em 1899, ali ficando por dois anos. Em 1930, teve atuação destacada no episódio militar que derrubou Washington Luís e abriu o caminho para a tomada do poder por Getúlio vargas. Em maio de 1931, chegou ao generalato. Em 1932, foi comandante militar geral da Revolução Constitucionalista. Preso após a rendição dos paulistas, foi em seguida enviado para o exílio em Portugal. Anistiado, voltou ao Brasil em 1934.

Manuel de Cerqueira Daltro Filho nasceu em Cachoeira, Bahia, em 1882. Militar, iniciou sua carreira em Salvador, em 1898. Entre 1899 e 1901, cursou a Escola Preparatória e de Tática do Rio Pardo. Em seguida se matriculou na Escola Militar da Praia vermelha, no Rio de Janeiro, e na Escola de Guerra de Porto Alegre.

Em 1930, combateu o movimento que levou Getúlio vargas ao poder. Em 1932, participou da repressão ao movimento armado contra o governo de vargas.

Em 1937, foi comandante da 3ª Região Militar. Articulou a deposição de Flores da Cunha do governo gaúcho. Em seguida assumiu a interventoria federal no Estado, pouco antes da decretação da ditadura do Estado Novo, em novembro de 1937. Morreu logo a seguir, em janeiro de 1938, em Porto Alegre.

>> Daltro Filho

>> Bertoldo Klinger

•• O “fedelho”Fausto de Almeida Prado, sobrinho da vítima, descreveu na Folha da Manhã (SP), em 15 de janeiro de1930, a briga em Minas:

Vendo a covardia dos valentes (os gaúchos), não consentiu na agressão e houve

troca de desaforos entre Carlos Prado e Viriato Vargas, Protásio Vargas, Baltasar do Bem e outros, entre estes o fedelho Getúlio, irmão dos primeiros. Prado reagiu e os gaúchos fugiram. No dia seguinte toda a cidade sabia que os gaúchos haviam condenado à morte Carlos Prado. Este, avisado, não teve medo e, sabendo que à noite seria agredido, saiu à rua para seu habitual passeio. Ao passar perto da ladeira São José, foi alvejado a tiros pelos estudantes Viriato, Protásio Vargas, Baltasar do Bem, Kaufmann, Getúlio Vargas e um outro de quem não me lembro o nome. Estavam estes estudantes escondidos atrás de um muro ali existente e atiraram de surpresa, caindo Carlos Prado atingido por nove projéteis.

Getúlio Vargas estudou em Rio Pardo de 1900 a 1903, quando foi expulso

•• “Cidade sem vida”

...O estudo aqui é muito apertado, por isso, apesar de estudar, receio de rodar no exame de habilitação

em julho... De Rio Pardo não tenho nada a contar porque é uma cidade sem vida, um verdadeiro cemitério, cujo único movimento que tem é devido às forças militares aqui estacionadas.

Em 20 de maio de 1900 Getúlio escreveu à família, relatando suas experiências em Rio Pardo:

Salvo de umafogamento

Page 117: Rio Pardo 200 anos

116 Uma luz para a história do Rio Grande

um dia Maria Leontina Rodrigues herdou uma fazenda. Herdou e não quis. Ficou com medo. Medo era um sentimento constante na vida dos escravos. Por esse

mesmo motivo, o fazendeiro para quem Maria Leontina e seus pais trabalhavam abandonou a propriedade. E a terra ficou com os escravos. “O fazendeiro fugiu na época da guerra, porque tinha medo que matassem ele. E os escravos, com medo, também saíram das terras.” quem relata a história é João de Deus Guterrez da Silva, de 75 anos. João é filho de Maria Leontina e é quem cuida da mãe, hoje com 113 anos.

Embora tenha nascido no dia 15 de março de 1896, oito anos depois da Abolição da Escravatura,Maria só conheceu a liberdade quando já era moça. “A mãe era uma escrava de dentro. Cozinhava e limpava a casa do fazendeiro”, explica o filho. Da propriedade, nem Maria Leontina nem João lembram o nome. Só sabem que ficava em uma fazenda a 50 km da cidade de Cachoeira do Sul. Com a liberdade, Maria Leontina Rodrigues veio parar no Beco das Laranjeiras, em Cachoeira do Sul, onde vive até hoje. Os pais dela – dos quais não lembra o nome – também moraram ali. O filho, João, tem uma vaga lembrança. “Só lembro que chamavam meu avô de Fortunato. Mas não sei se era o nome ou o sobrenome.”

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A ESCRAVIDãO E SuAS MARCAS

O tráfico negreiro; o enriquecimento com a mão de obra escrava; a importância do trabalho dos negros na economia do Rio Grande do Sul e de Rio Pardo; uma abolição que perpetuou a desigualdade.

A história de Maria Leontina

Page 118: Rio Pardo 200 anos

117Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

Uma relação complexa

Embora toda a desumanidade da qual se viu revestida a escravidão,

houve situações em que o cativo se afeiçoava ao senhor e à sua família e estes, por alguns de seus escravos. Em Rio Pardo, também se ouve contar histórias sobre casos de escravos que viraram homens de confiança de seus senhores, e até chegaram a representá-los em algumas ocasiões; de formação de sociedades do escravo com seu dono; de senhores que deixaram como herança parte de sua propriedade para os cativos. Mas esses são fatos raros.

Deve-se ter presente que havia diferenciação entre um escravo que trabalhava na fazenda, cuja função era a criação de gado, ou na charqueada, esquartejando reses; e um escravo que estabelecia um determinado tipo de relação pessoal com seu senhor – que podia, inclusive, ser afetiva. Nesse sentido, os cativos domésticos ou os que exerciam ofícios levavam nítida vantagem.

No geral, entretanto, o africano vivia em senzalas, com uma extensiva jornada de trabalho, em precárias condições de higiene e salubridade e sem conforto, o que colaborou para a redução da sua vida útil. A mentalidade escravocrata era muito difundida no Brasil Colônia e durante o Império, o que provocou a desvalorização do trabalho manual, tido como degradante. É por isso que a presença do escravo foi constante em quase todas as atividades, como a extração de diamantes, a lavoura do tabaco, o artesanato e o trabalho doméstico.

No Rio Grande do Sul, construiu-se um mito a respeito da escravidão. Diz-se que aqui ela não teve muita importância e que o número de escravos foi inexpressivo. Ou que a escravidão, aqui, foi mais branda. Esse mito pode ser questionado profundamente pelos dados apresentados.

Rio Pardo, durante o século xIx, constituiu-se em um dos principais centros escravistas da Província. Ali podiam ser encontrados negros cativos trabalhando na criação de gado, nas lavouras, nos serviços domésticos, em construções e em atividades artesanais.

Senzala no Museu Barão de Santo Ângelo

Na África, eram muitos os caminhos que podiam conduzir um indivíduo ao cativeiro. O mais corriqueiro eram as guerras entre tribos. Muitas vezes, as populações derrotadas eram reduzidas à escravidão. Serviam ali mesmo ou em outras regiões. Havia também guerras com o único fim de conseguir cativos. Essas operações, além de provocar mortes em combates, destruíam e desorganizavam a produção artesanal e pastoril de comunidades inteiras. O historiador Lovejoy afirma que, para cada africano desembarcado vivo nas Américas, dois outros teriam morrido na África ou em alto-mar, em decorrência das violências – diretas ou não – movidas pelo tráfico.

Mas conforme o professor Sílvio Correa, da universidade Federal de Santa Catarina (uFSC), havia uma série de outras formas nas quais o indivíduo poderia ser transformado em escravo. “A mais comum era a captura, o sequestro. Ele também podia ser escravizado por alguns delitos. A resistência à religião muçulmana foi motivo para o cativeiro de muitos africanos, quando o islamismo passou a predominar em certas regiões da África.”

Portanto, bem antes da chegada dos europeus às costas africanas havia a venda de escravos para outros povos, como os árabes. Nesse sentido pode-se afirmar que, embora a culpa sobre a escravidão moderna recaia, prioritariamente, na consciência do europeu ambicioso e dominador, deve-se também ressaltar que os conflitos internos na África fomentaram a cisão e o enfraquecimento da resistência dos povos negros.

A escravidão na África

Tratamento variava conforme o senhor e o local de trabalho

•• Quem lucrou

Os portugueses iniciaram o tráfico de negros ainda na primeira metade do século XV. Depois franceses, holandeses e ingleses também se interessaram pelo lucrativo negócio e estabeleceram entrepostos de tráfico em alguns pontos da costa da África. No que diz respeito ao fator econômico, o comércio de escravos foi uma forma eficiente de propiciar a acumulação de capitais nas mãos de traficantes e comerciantes. Além disso, o tráfico negreiro proporcionou somas extraordinárias aos Estados Nacionais. Nos séculos XVI, XVII e XVIII, o controle do tráfico negreiro foi causa de uma série de conflitos e guerras entre as potências europeias.

INOR/AG. ASSMANN

Page 119: Rio Pardo 200 anos

118 Uma luz para a história do Rio Grande

Estimativas apontam que entre 9 a 15 milhões de cativos africanos foram tirados à força da

África entre 1450 e meados do século xIx. No Brasil, a escravidão se iniciou na primeira metade do século xvI, quando da introdução das lavouras canavieiras.

Os cativos provinham de diferentes tribos. Antes de subirem nas embarcações, tinham cabelos e unhas cortados e eram banhados nas praias. As nádegas, braços ou outra parte do corpo eram marcados a ferro quente para sinalizar a nação ou o comerciante proprietário do lote.

Os navios negreiros que transportavam escravos da África para o Brasil eram denominados de tumbeiros, porque parte significativa dos negros morria nos porões superlotados. Os cativos do sexo masculino viajavam seminus nos porões quentes, úmidos e escuros. Eram acorrentados pelos pés, dois a dois. Água e comida eram racionadas. Doenças como a disenteria eram comuns a bordo, assim como os vômitos. Como os doentes defecavam, urinavam e vomitavam sem que pudessem se aproximar das precárias latrinas ou baldes, o ambiente ficava insuportável. Duas vezes por semana, lavava-se as cobertas com vinagre ou água do mar.

Mulheres e crianças viajavam a céu aberto. Apesar da vigilância, houve muitas sublevações nos navios negreiros. uma viagem da costa ocidental da África ao Brasil durava de 30 a 40 dias. Já os navios vindos de Moçambique faziam o percurso em cerca de dois meses.

Navios negreiros ou tumbeiros: esquema mostra como os escravos eram transportados em condições

subumanas. Muitos não resistiam e morriam ainda na viagem

O tráfico negreiroApesar da vigilância, houve muitas sublevações nos navios superlotados

•• Cenas degradantesTirados de porões escuros, mal agasalhados, debilitados pela fome e pela desidratação, os sobreviventes eram descarregados nos principais portos da Colônia, dentre os quais se destacavam Recife,

pequenos zumbis, só olhos e pescoço. Apavorados, os negros eram divididos em lotes. As mães eram apartadas dos filhos e vendidas como peças. Os escravos do sexo masculino, jovens robustos e com aparência saudável, tinham valor comercial superior aos de aparência mais velha e fraca.

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Salvador e Rio de Janeiro. Terminava assim a viagem infernal. Na chegada, as cenas eram degradantes. Homens nus, os sexos desproporcionalmente grandes nos corpos magérrimos a balançarem entre as pernas; as mulheres curvadas, esqueléticas, os peitos caídos, as barrigas chupadas; as crianças,

Page 120: Rio Pardo 200 anos

119Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

Brasil e RS: grandes mercados

Depois que a escravidão africana foi introduzida em Portugal, os portugueses passaram a traficar escravos com as ilhas

da Madeira e de Porto Santo. Logo levaram o negro para os Açores, depois para Cabo verde e finalmente para o Brasil.

Inicialmente, a mão de obra indígena foi utilizada no Brasil. Depois chegaram os africanos que, ao cabo de algumas décadas, tornaram-se preponderantes na composição da força de trabalho da colônia. Trabalhavam na produção de açúcar, fumo, algodão, na extração de ouro e diamante e em várias outras atividades e serviços. Durante o século xIx, o escravo foi fundamental para o desenvolvimento da economia cafeeira.

O número de africanos introduzidos no Brasil, durante os mais de três séculos em que houve o tráfico negreiro, é calculado entre 6 e 7 milhões. Dessa forma o negro não somente participou do povoamento do País, mas contribuiu decisivamente para o desenvolvimento econômico, social e cultural da nação brasileira.

No Rio Grande do Sul os escravos

No quadro abaixo, a população de Rio Pardo e Cachoeira em 1814:

Chegada de escravos no Brasil, em pintura de 1831

chegaram nas décadas iniciais do século xvIII, com os primeiros colonizadores, lagunistas e paulistas, aos Campos de viamão. quando o Regimento de Dragões se estabeleceu em Rio Pardo, os africanos vieram como uma espécie de tropa auxiliar, já que não podiam compor as fileiras militares regulares. Eram

utilizados na cozinha, transportavam volumes, remavam nas embarcações, etc. Os próprios soldados, muitas vezes, eram proprietários de escravos. Dentre os cativos havia também mulheres que acompanhavam os soldados nos deslocamentos e nos combates.

No primeiro levantamento demográfico da população rio-grandense, realizado em 1780, já aparece com destaque a presença do cativo: 28,3% da população de Rio Pardo era constituída por negros, possivelmente escravos. Os índios representavam 21,9% da população e os brancos, 49,8% (quadro ao lado).

Portugueses passaram a traficar escravos para o Brasil impulsionando a economia da colônia com o trabalho do cativo

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Fonte: Cardoso, (2004).

Fonte: FEE (1981)

Page 121: Rio Pardo 200 anos

120 Uma luz para a história do Rio Grande

O abastecimento de escravos das províncias meridionais do Brasil não era feito diretamente com portos africanos. Em Santa Catarina e Rio Grande, a escravaria era renovada por meio do

comércio com outros portos brasileiros. O professor Sílvio Correa explica que, no

século XIX, o Rio de Janeiro era a principal praça fornecedora de escravos ao Rio

Grande. Depois da proibição do tráfico atlântico, em 1850, a população cativa na Província foi se reduzindo, especialmente por causa do tráfico interprovincial. Em Rio Pardo, o decréscimo da população escrava seguiu a lógica econômica, já que o centro cafeicultor comprava cativos de outras províncias. Aquelas regiões com maior dificuldade de reter sua população escrava acabavam enfrentando o problema da escassez de mão de obra e, por conseguinte, dificuldades econômicas. Algumas regiões lograram atrair colonos europeus e outras ficaram sem alternativa à escravaria, que minguava na segunda metade do século XIX.

Em 1872 foi realizado o primeiro censo demográfico do Brasil. A Província do Rio Grande do Sul tinha, então, um total de 69.138 escravos. Havia uma presença significativa de cativos na região. Na Paróquia de Rio Pardo, foram contados 2.509 escravos. Na Paróquia de Encruzilhada, 1.558.

Chama a atenção a existência de 291 escravos na Paróquia de Santa Cruz. Possivelmente eles não se encontravam na Colônia de Santa Cruz, pois a legislação imperial, desde 1848, e a provincial, a partir de 1850, proibiam a existência de cativos nas colônias formadas por imigrantes europeus. Nesse sentido, é preciso considerar que a abrangência da Paróquia de Santa Cruz não se restringia somente à área onde estava estabelecida a colônia; ela era integrada também por áreas adjacentes ocupadas por sesmeiros, seus familiares e alguns negros. A própria vila de São João (atual cidade de Santa Cruz) estava localizada fora da colônia oficial. Ali existiam escravos, como os pertencentes a Guilherme Lewis, casado com Carlota Leopoldina de Albuquerque, a Dona Carlota. Colonos alemães de Rincão Del Rey também possuíam alguns cativos.

Exploração em números

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Reprodução de escravos

Conta-se que em Encruzilhada do Sul havia uma fazenda que tinha como principal fonte de renda a reprodução de escravos para venda. Se a história é verídica, não há documentos para provar. Mas muitos afirmam que a Fazenda Santiago era

especializada em produzir escravos fortes, de bom porte físico e trabalhadores, para vender aos demais fazendeiros da região.

volny Carvalho, assessor especial de Cultura de Encruzilhada do Sul, acredita que os primeiros donos e fundadores da fazenda de 150 anos realmente criavam escravos para comércio. O Casarão Passo da Cria, atualmente desabitado e em ruínas, ainda se apresenta imponente, com sua senzala construída atrás da casa e dividida em pequenos quartos. Além de representar crueldade e tratamento desumano, a fazenda de reprodução de negros produziu uma lenda curiosa sobre os antigos moradores.

“O primeiro dono tinha também uma propriedade no uruguai, que ele vendeu. Por isso, trouxe sacas de libras esterlinas, que eram patacões de ouro”, conta Carvalho. “Como não quis guardar no casarão, saiu com o ouro e dois escravos. E voltou sem o dinheiro e sem os negros”, comenta. “Poucos anos depois, ele teve problemas mentais e foi preso em um quartinho no porão da casa, até morrer.”

Atualmente, a lenda transmitida na região envolve fantasmas que cuidam do ouro escondido. Haveria até quem se aventurou em escavações à procura do tesouro, mas nunca se soube de qualquer pista do ouro enterrado. “Os moradores atuais vivem em uma casa construída perto da antiga sede”, diz Carvalho. “Eles contam que ainda há escavações feitas por populares, que se aproximam às escondidas do velho casarão para procurar o ouro.”

Casarão Passo da Cria, em ruínas: antiga sede da propriedade

História é contada por moradores de Encruzilhada

•• Revenda

Page 122: Rio Pardo 200 anos

121Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

Trabalho essencial

No século xIx, era raro existir uma fazenda em que não

houvesse trabalhadores feitorizados. Eles eram empregados em atividades pastoris, domésticas e em outros ofícios. Mas é importante frisar que a maioria dos escravos não desempenhava somente uma função. Dedicavam-se a várias, especialmente se o amo tivesse poucas posses.

A força de trabalho escrava foi também essencial nas poucas cidades existentes no Rio Grande do Sul até a abolição.

As pessoas com mais posses podiam ostentar um variado número de escravos domésticos: cocheiros, cozinheiras, doceiras, lavadeiras, engomadeiras, mucamas, amas de leite, jardineiros. Mesmo famílias com parcos recursos procuravam ter pelo menos um ou dois escravos.

Também havia os negros de ganho. Eles vendiam seus serviços ou algum produto pagando ao seu dono uma quantia fixa – a diária – ou retendo percentual do recebido. Podiam financiar seus gastos e fazer pecúlio com o qual, posteriormente, adquiriam alforria. Observe-se que com os negros de ganho o proprietário ficava livre de dar o que comer e o que vestir. Por vezes, até o aluguel da moradia ficava por conta do cativo.

3

A história de Maria Canuta Ferreira é semelhante à de muitas outras escravas. Fazia todos os tipos de afazeres domésticos, era dama de companhia da filha de seu senhor e recebia castigos para que se mantivesse na linha. E a vida de sua sinhazinha, Malvina da Costa Castilhos, também era igual à das demais moças prendadas de Encruzilhada do Sul. Porém, mesmo com suas posições definidas pela sociedade, as duas passaram grande parte da vida juntas. A história, contada por Maria Aurita Figueira da Silva, neta de Canuta, se baseia nos fatos relatados pela avó ex-escrava.

Como tinham idades semelhantes, Canuta se tornou dama de companhia de Malvina já na infância. quando ainda mocinhas, a escrava acompanhava Malvina nos passeios, como era o costume da época. Cumpria tarefas como segurar a sombrinha e manter estranhos afastados. Maria Aurita diz lembrar da avó relatando os castigos aplicados por Juvenal Juvêncio da Costa, pai de Malvina. um deles foi amarrá-la a uma corda e jogá-la em um lago de água fria, para dar-lhe um susto. Outro corretivo frequente era a surra de relho. um dia Canuta se protegeu colocando os pratos diante do corpo, e Juvêncio terminou quebrando a louça da casa.

Adultas, Malvina se casou com Alípio Castilhos e Maria Canuta constituiu família com Frontil Figueira, descendente de índios. A escravidão já não existia, mas Canuta e Frontil continuaram a viver nas terras de Malvina e Alípio, como trabalhadores livres. Ambas tiveram filhos e cuidaram de suas famílias. No final da vida, quando já eram viúvas, Canuta voltou a viver na casa de Malvina. As duas foram companhia uma da outra até o final.

Canuta e sua sinhazinha

•• Pau para toda obra

Quanto maiores as posses, maior o número de escravos que o amo ostentava à sociedade

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Em uma sociedade permeada pelo trabalho compulsório, os ofícios e as atividades artesanais também eram realizados em grande medida por cativos.

Vendedores Trabalhando em obras públicas

Sapateiros

Barbeiros

Serradores

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122 Uma luz para a história do Rio Grande

Foi um português radicado no Ceará, José Pinto Martins, quem fundou, em 1780, às margens do Arroio Pelotas, a primeira grande charqueada com fins mercantis. A prosperidade

do empreendimento, decorrente de sua localização e dos métodos empregados na obtenção da carne seca, estimulou a atividade saladeiril no município. quando da independência do Brasil, em 1822, existiam 22 charqueadas em Pelotas.

O charque impulsionou não somente a economia de Pelotas, mas de toda a Província. Durante muito tempo, seria o principal produto exportado pelo Rio Grande do Sul.

A São João era a maior charqueada da

região de Pelotas. Chegou a ter mais de 200 escravos. Como a safra ia de novembro a abril, na entressafra era transformada em fábrica de telhas, feitas nas coxas dos negros. O charqueador era Antônio José Gonçalves Chaves. Anos mais tarde, depois da crise da década de 1930, o comerciante Rafael Mazza adquiriu a propriedade como presente de casamento para a esposa Nóris, que havia nascido em uma charqueada na costa do Arroio Pelotas.

A charqueada está com a família desde 1952 e preserva as mesmas características arquitetônicas. O local se tornou conhecido por ter sido sede das gravações da minissérie A Casa das Sete Mulheres, da Rede Globo. Atualmente é um local de visitação turística.

Pelotas, o principal centro escravista

A fortuna acumulada por charqueadores, comerciantes e certos fazendeiros permitiu que pudessem mandar alguns de seus filhos homens estudar no Rio de Janeiro, em Buenos Aires ou na Europa. Lá os rapazes adquiriam hábitos, gestos e comportamentos educados que contrastavam com a vida rude e bruta dos rio-grandenses no campo. Ao retornarem, mandavam construir palacetes, vestiam-se à moda dos grandes centros, usavam luxuosas carruagens, faziam leituras, frequentavam salões e assistiam a peças teatrais. Essa vida urbana requintada causou inveja aos homens do campo, acostumados com as lides rudes da criação de gado. Então, os pelotenses passaram a ser adjetivados como se fossem efeminados.

Preconceito•• Marcas do passado

•• OrigemPelotas inicialmente era denominada São Francisco de Paula. Em 7 de julho (data em que se comemora o aniversário da cidade) de 1812, tornou-se freguesia. Em 1830 foi elevada à categoria de vila. A instalação da Câmara ocorreria dois anos depois. Em 1835, quando a vila foi transformada em cidade, seu nome foi alterado para Pelotas e está ligado às canoas de couro que eram utilizadas para a travessia de arroios e rios.

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Empreendimentos se estabeleceram às margens do Arroio Pelotas

Charqueada São João: o tronco onde os escravos apanhavam

“O avô do meu pai passou muito trabalho na senzala, por isso morreu novo. Dormia pouco, comia só carne seca com pirão e trabalhava muito. Quando não trabalhava direito era muito maltratado. Batiam nele de rebenque. O patrão man-dava: dá dez chibatadas nesse ‘nego’. ”

Malomar Gregório

Para sustentar a economia saladeiril, município utilizou intensamente o trabalho do negro

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123Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

A produção da carne seca era realizada, basicamente, pela mão de obra escrava. Nesse período os negros eram levados à exaustão pelo árduo e pesado trabalho e pelas longas

jornadas. A safra era sazonal. Iniciava-se em novembro e ia até o mês de abril. O símbolo do funcionamento era o içamento de uma bandeira vermelha, que sinalizava o período de matança.

Em média, as charqueadas possuíam 80 escravos. Na entressafra, os cativos eram empregados em olarias existentes nas próprias charqueadas, na derrubada de mato, na plantação de milho, feijão e abóbora, na construção civil, em fábricas de sabão e velas e outros serviços.

Pelotas foi, indiscutivelmente, o principal centro escravista de todo o Brasil meridional. Em 1833, a vila de São Francisco de Paula (Pelotas) possuía 10.874 habitantes. Desses, 62,1% eram negros (51,7% escravos e 10,4 libertos), 36% brancos e 1,6% índios.

Riqueza à custa dos cativos

Trabalho nas charqueadas em gravura de Jean-Baptiste Debret

Pelotas foi a cidade gaúcha mais importante do século xIx. As charqueadas ali estabelecidas foram responsáveis pela riqueza ostentada por uma parcela de sua população. Mas foram também responsáveis pela introdução de grande número de escravos.

Durante o século xIx e início do século xx, a cidade teve intensa vida social e cultural. O enriquecimento de fazendeiros charqueadores e comerciantes propiciou a identificação dessa elite aristocrática com alguns luxos e requintes, a arte e o saber. Em certa época, 10 jornais chegaram a circular ao mesmo tempo na cidade. Pelotas, em virtude disso, recebeu o cognome de “Atenas do Rio Grande do Sul”. Construído em 1831, em estilo neoclássico, o Teatro Sete de Abril foi a primeira casa de espetáculos a abrir suas portas às artes cênicas no Rio Grande do Sul e a quarta no Brasil.

O prestígio dos pelotenses pode ser avaliado, também, pelos títulos de nobreza concedidos a seus habitantes durante o Império. Dos 58 títulos concedidos a moradores da Província, 13 foram para residentes em Pelotas.

Atenas do Rio Grande do Sul••Mercado Público, construído entre 1847 e 1853 em estilo neoclássico, é um dos patrimônios histórico-culturais de Pelotas

•• Maus-tratos

Charque, que chegou a ser o principal produto de exportação do Estado, era produzido pela mão de obra escrava

Há sempre na sala um pequeno negro de 10 a 12 anos, cuja função é ir chamar os outros escravos, servir água e prestar pequenos serviços caseiros. Não conheço criatura mais infeliz que essa

criança. Nunca se assenta, jamais sorri, em tempo algum brinca! Passa a vida tristemente encostado à parede e é

frequentemente maltratado pelos filhos do dono. À noite chega-lhe o sono, e, quando não há ninguém na sala, cai de joelhos para poder dormir. Não é esta casa a única que usa esse impiedoso sistema: ele é frequente em outras.

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124 Uma luz para a história do Rio Grande

As fugas eram as formas mais recorrentes de resistência no sistema escravista. Demonstravam, de um lado, os limites do poder senhorial e de outro, a capacidade de o escravo agir. As fugas abriam espaços tanto para o conflito como para a negociação por melhores condições de vida em cativeiro, mais espaço de autonomia e possibilidades de alforria. Podem ser identificados vários tipos de fugas.

Dentre elas, as fugas-rompimento ou definitivas eram formas radicais a partir das quais se buscava a construção de uma nova vida em liberdade, seja em quilombos ou misturando-se com a população negra livre dos pequenos ou grandes centros urbanos. viver em liberdade era um anseio dos escravos e significava fazer o que bem quisessem de suas vidas, serem donos do seu trabalho.

Muitos cativos fugiam para longe e se diziam libertos ou livres, oferecendo trabalho em troca de pagamento. Às vezes a estratégia poderia fracassar e eles seriam reconhecidos e reenviados aos senhores; afinal, os proprietários ficavam atentos, enviavam pessoas à sua procura e publicavam anúncios em jornais. Assim, a liberdade do escravo fugido estava sempre por um fio.

Com a vidapor um fio

Quilombos na Tranqueira Invicta

Rio Pardo foi, indiscutivelmente, um importante centro escravista no Rio Grande do Sul. Do final da década de 1840 até o final da década de 1850, há indícios de que existiram em seu

território inúmeros pequenos quilombos e também insurreições de escravos. um desses quilombos é descrito pelo historiador Mário Maestri em O escravo no Rio Grande do Sul: a charqueada e a gênese do escravismo gaúcho.

Em 1847, em busca de um quilombo existente na Serra do Distrito do Couto, a

partida guiada pelo capitão do mato Pedro Rodrigues da Costa, depois de marchar três dias na Serra, localizou e surpreendeu os quilombolas ao meio-dia. Houve a apreensão de seis cativos fugidos e um preto e uma preta foram mortos, em razão da resistência. Os caçadores lamentaram que seis a oito negros e duas negras conseguiram se safar.

Todos os seis cativos foram enfáticos em dizer que haviam ouvido falar da existência de outro quilombo maior na área, mas que não sabiam a localização do mesmo.

•• Fugas eram preocupação constanteConforme Maestri, incursões infrutíferas de perseguição foram feitas naquele ano à Serra. Em 1850, persistia a preocupação com os quilombolas. O presidente da Província, tomando em consideração o pedido de ajuda de parte da Câmara Municipal de Rio Pardo, determina ao comandante da Legião da Guarda Nacional, José Joaquim de Andrade Neves, que organize uma força para destruir os quilombos. Envia também 400$000 reis para as despesas de tal diligência. A situação, no entanto, parece não ter se alterado nos meses seguintes. A propósito de um novo pedido

da Câmara, o governo da Província responde que a força destacada é mais do que suficiente para o serviço das patrulhas na vila. No mês de junho de 1850, a Câmara recebe mais um sonoro “não” do governo provincial. Disso tudo é possível concluir que, ou os negros fugidos realmente constituíam séria ameaça à ordem vigente – e sua organização e resistência são bem maiores do que a historiografia atribui – ou a recaptura de escravos fugidos se tornou interessante fonte de renda para capitães do mato e aos que participavam dessas expedições.

Pesquisas comprovam a existência desses locais na Rio Pardo do século XIX

Punição a escravos fugitivos, ou que cometessem outro suposto delito, era pública

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125Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

Capitão do mato, o caça-prêmio

O capitão do mato era na origem um empregado público de última categoria,

encarregado de reprimir os pequenos delitos ocorridos no campo. Na sociedade escravocrata do Brasil, a tarefa principal foi a de capturar os escravos fugidos e entregá-los aos seus senhores. A essa classe pertenciam, de acordo com Mário Maestri, homens pobres, libertos, negros livres e até mesmo trabalhadores escravizados. Recebiam recompensas pela captura, chamadas de tomadia. Os capitães do mato gozavam de pouquíssimo prestígio social, seja entre os cativos que tinham neles os seus inimigos, seja na sociedade escravocrata.

O capitão do mato era nomeado pelas Câmaras

Capitão do mato em gravura de Jean-Baptiste Debret

28.07.1813 – Vicente Nunes

– Vila e seus arrabaldes

A palavra “quilombo” tem origem nos termos africanos kilombo ou ochilombo. Originalmente, designava apenas um lugar de pouso utilizado por populações nômades ou em deslocamento; posteriormente passou a denominar também as paragens e acampamentos das caravanas que faziam o comércio de cera, escravos e outros itens desejados pelos colonizadores. Foi no Brasil que o termo “quilombo” ganhou o sentido de comunidades de escravos fugitivos.Os quilombos se formavam tanto nas matas como nos arredores das cidades, caracterizando-se pelo difícil acesso. Os mais isolados cultivavam a terra, caçavam, pescavam, produziam tecidos, potes, cestas, instrumentos de trabalho e armas. Já os mais próximos ao meio urbano vendiam seus produtos na periferia, longe da vigilância policial, dos senhores e dos capitães do mato. Alguns estabeleciam, inclusive, laços de solidariedade com os moradores da região. Para destruí-los, foram montadas expedições militares.Para os quilombos confluíam não somente negros, mas também índios e brancos. Poderiam ter desde algumas pessoas até milhares, como foi o famoso Quilombo dos Palmares. Considerado o mais duradouro, existiu entre o início do século XVII e o ano de 1694, em Alagoas. Palmares foi destruída após o fracasso da resistência dos quilombolas. Liderados por Zumbi, lutaram contra os ataques capitaneados pelo paulista Domingos Jorge Velho.

•• Lugar livre

Em Rio Pardo, assim que instalada a Câmara Municipal no ano de 1811, capitães do mato passaram a ser nomeados para os diferentes distritos:04.09.1811 – Ignácio Pais da Silva Francisco de Brito – Distrito de Caçapava

25.09.1811 – João Ribeiro da Silva, Jerônimo Ferreira da Silva – Freguesia de Cachoeira

04.04.1812 – Crispim Jozé Pereira – Freguesia (capela) de Caçapava e seus arrabaldes

18.07.1812 – Joaquim Álvares – Distrito de São

Rafael

09.12.1812 – João Gonçalves

Martins – Distrito de Cruz Alta

15.12.1813 – Manoel Caetano

de Souza – Distrito de Santo Amaro

23.07.1814 – Ignácio Leste

– Capela de Caçapava

12.04.1815 – João

Machado – Vila de Rio

Pardo

Eles não eram bem vistos, mas recapturavam escravos fugidos

Municipais por um tempo determinado. Sua tarefa consistia em localizar, prender e devolver os escravos fugidos aos seus proprietários. Pelo trabalho, recebia um valor fixo por negro ou negra recapturados.

Tem-se notícia da existência da figura do capitão do mato desde pelo menos 1773, quando a Câmara do Continente do Rio Grande de São Pedro, reunida em viamão, designou por um ano Salvador da Luz Camacho.

•• Escravos fugiam

JEAN-BAPTISTE DEBRET

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126 Uma luz para a história do Rio Grande

No ano de 1859 foi abortada uma insurreição no Distrito de Capivari, Rio Pardo. Encabeçada por Manoel Joaquim Botelho, o Menino Diabo, a rebelião

contou com a participação de seus irmãos Lino dos Santos Botelho, Joaquim dos Santos Botelho e José dos Santos Botelho, todos eles desertores do Exército; mais a de Laurindo, o Pescoço Grosso, além de vários escravos. O plano era marchar até a vila de Encruzilhada, tomar o armamento da polícia, saquear diversas casas e dar o grito de liberdade dos capitães.

A insurreição foi abortada porque o negro Joaquim, escravo de José de Souza Jardim, comentou com Cândido Furtado Fanfa, morador do Capivari, que Manoel Joaquim andava se reunindo com cativos para fazer a rebelião. Fanfa levou essa

ocorrência ao conhecimento do capitão Antônio Pereira Franco, comandante da Companhia de Guardas Nacionais do Distrito do Capivari. Os moradores do distrito ficaram em alerta, reuniram os membros da Guarda Nacional local e providenciaram auxílio das autoridades.

Policiais e militares, comandados por José Joaquim de Andrade Neves, o Barão do Triunfo, deslocaram-se à área e reprimiram duramente o movimento. Foram presos diversos cativos, dentre os quais João, escravo de Bartolomeu Luiz Barreto, e Marcolino, de Fortunato Luiz Barreto, moradores de Capivari. Os escravos que participaram do movimento foram exemplarmente castigados por seus senhores. Já os desertores do Exército fugiram para a Banda Oriental.

Insurreição no Capivari

•• Com medo

Art. 15 – Nenhum escravo ou escrava poderá ter casa alugada e viver nela sobre si, sem licença da Câmara; sob pena de pagar o senhor dos mesmos escravos, pela primeira transgressão, a quantia de dez mil réis e pelas mais o duplo; incorrendo em iguais multas o proprietário da casa, sendo pessoa diversa.

Art. 30 – Todo escravo ou escrava que for encontrado de noite depois do toque do sino da Câmara sem bilhete do seu senhor, ou da pessoa a cujo cargo estiver, será recolhido à prisão até que qualquer das referidas pessoas solicite a sua soltura, pagando a despesa que o mesmo escravo tiver feito.

Art. 73º – Todo escravo que for encontrado jogando cartas ou dados, ou qualquer outro jogo a dinheiro ou coisa que o valha, em tabernas, casas ou qualquer parte da cidade ou subúrbios, será preso por quatro dias podendo o seu senhor requerer a autoridade para comutar a pena na forma da lei.

Art. 80º – Os donos, caixeiros, sócios ou administradores das tavernas ou outras quaisquer casas públicas em que se acharem reunidos e parados mais de quatro escravos, incorrerão na multa de 10$000 réis.

Art. 106º – É também proibido juntarem-se dentro dos limites da cidade escravos com tambores e cantorias, sob pena de dois dias de prisão a cada um dos que fizerem parte do ajuntamento.

Na sociedade escravocrata, os homens livres viviam com medo dos escravos. Furtos, justiçamentos, assassinatos, fugas e insurreições eram temidos. Na legislação municipal há farto material que objetiva disciplinar a vida e o convívio dos cativos com os brancos. Eis algumas disposições:

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Revolta promovida pelo Menino Diabo foi reprimida

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Fonte: Posturas Policiais (1849) e Código de

Posturas (1877)

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127Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

A historiadora Margaret Bakos, na obra RS: Escravismo & Abolição, faz referência a uma figura estranha que desejava implantar a República e libertar os escravos: Alexandre Luiz de Queiroz e Vasconcelos, mais conhecido como o Quebra. Assassino de contrabandista, casado com filha de coronel, o Quebra inicialmente fazia parte do regimento dos aquartelados em Rio Pardo. Teria inclusive participado da expedição militar de 1801, quando Borges do Canto e seu bando conquistaram os Sete Povos. Em 1803, portanto em plena época de domínio português sobre o Brasil, o Quebra se revolta contra o Império. Lidera um grupo que, aos gritos de liberdade, vai soltando todos os escravos que encontra pelo caminho.A importante parentela do jovem ex-Dragão o salva dos ferros da cadeia de Rio Pardo.Em 1820, proclama a República em Cachoeira do Sul e declara livres todos os seus cativos. Já em 1831, em Caçapava, ele provoca alvoroço ao noticiar que fora proclamada a libertação dos escravos. Conforme Bakos, o Quebra é considerado louco por seus contemporâneos. Tornou-se lendário como o “primeiro e inoportuno proclamador da República rio-grandense”. Morreu em 1833.

A carta de alforria era o documento através do qual o escravo

passava à condição de liberto, podendo obtê-la em negociação com o senhor ou por meio judicial. Para ser validada, devia ser registrada nos livros notariais. Mas para muitos o reconhecimento social da alforria bastava para o reconhecimento da condição de liberto. As cartas de alforria podem ser divididas em, pelo menos, três tipos: incondicionais, pagas e condicionais.

•• Alforrias incondicionais: também chamadas de gratuitas, elas nunca aconteceram de fato, pois eram “dadas” em troca de anos de árduo trabalho ou serviços especiais, como nos casos de doenças. É interessante observar o teor que geralmente continham essas cartas, explicitando as relações de paternalismo. Em novembro de 1866 foi registrada a carta de alforria da parda Antônia, de 20 anos, do Distrito do Capivari, que lhe foi concedida em retribuição aos “muitos bons serviços que me tem prestado e sem nunca causar o menor dissabor”.

•• Alforrias pagas, indenizadas ou compradas: o escravo (por meio de economia, ou do trabalho extra) indenizava o seu valor. Existiam alforrias pagas logo após o nascimento, como a pardinha Gabriela (ainda por batizar, do Distrito do Capivari, registrada em 1846), que foi paga por um terceiro no valor de 64$000 (sessenta e quatro mil réis). Havia também aquelas pagas por membros da família ou casal: Joana teve sua alforria paga no ano de 1847 por seu marido João,

Alforria, liberdade conquistada

•• O Quebra

Cartas asseguravam ao escravo a condição de liberto, mas eram de difícil obtenção

Escravos no Rio de Janeiro, no século XIX

ferreiro, no valor de 23$520 (vinte e três mil e quinhentos e vinte réis).

•• Alforrias condicionais: podiam ser condicionadas à morte do senhor e à prestação de serviços por tempo determinado. As primeiras não possuíam um tempo determinado, enquanto as últimas eram verdadeiros contratos de trabalho. Para ilustrar o primeiro tipo, há a alforria do preto Francisco, do Distrito do Couto, cuja carta foi concedida em retribuição dos bons serviços prestados e “com a condição de servir a minha mulher durante sua vida e por falecimento da mesma ficará forro”. No segundo tipo cita-se o caso de Ana, também do Distrito do Couto, que foi liberta “sob a condição de prestar serviços a mim e a minha família por espaço de sete anos, podendo em qualquer tempo remir os serviços que falte prestar mediante a indenização mensal de 14$000 (quatorze mil réis)”.

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128 Uma luz para a história do Rio Grande

A cultura de resistência apontada anteriormente, sem dúvida, contribuiu para a desagregação gradativa da escravidão. A Lei Áurea

deve ser vista como resultado de um processo de lutas e questionamentos ao sistema escravista, pelos próprios cativos e também pela sociedade.

várias leis foram aprovadas antes da lei de 13 de maio de 1888, dentre as quais a de 1871, que serviu para adiar o fim da escravidão. Ela estabeleceu formas graduais e ordeiras de emancipação dos escravos, garantindo o direito à propriedade (a maioria das formas de libertação regulamentadas por ela passava pela indenização ao senhor), mas também garantia o direito à liberdade ao regulamentar que o cativo poderia alforriar-se caso

possuísse o valor, além de cessar a fonte escrava ao declarar livres todos os nascidos de ventre cativo.

Ainda vale citar a lei de 1831, que proibiu a entrada de africanos para serem escravizados no Brasil, mas só foi efetivada com a lei de 1850. Antes de 1888, houve ainda a lei de 1885, que libertou os escravos sexagenários (com 60 anos ou mais) e reelaborou medidas contidas na legislação de 1871, mantendo a ideia de abolição gradual.

A emancipação realizada no Brasil não se preocupou em inserir os negros libertos na sociedade. Eles não receberam terras, seus filhos não tiveram acesso a escolas e, com todo o preconceito existente, tiveram de disputar os poucos empregos que havia.

Abolição, gradual e incompleta

Em 1888, festejos pela Abolição na frente do Paço Imperial, onde a princesa Isabel havia assinado a Lei Áurea

Em sua viagem pelo Rio Jacuí, nas proximidades de Rio Pardo, o belga A. Baguet comenta, em 1845:

Relato de um europeu

•• Ventre LivreHavia entre os escravos a prática de buscarem a alforria das mulheres, pois era a condição materna que conferia o status jurídico ao recém-nascido. Em outras palavras, se a mãe era cativa, o filho também seria; se a mãe fosse liberta, o filho nasceria livre. No entanto, mesmo tendo nascido de mãe liberta, alguns carregavam a alcunha de negro forro. Essa prática foi sensivelmente alterada pela lei de 1871, que inclusive foi alcunhada de Lei do Ventre Livre. Além disso, os membros da família buscavam alforriar a si ou a algum parente, procurando não romper os laços familiares.A Lei do Ventre Livre estipulava que seriam livres os filhos nascidos de escravos. Mas ao mesmo tempo em que as libertavam, não garantiam os direitos fundamentais de sobrevivência e de vida digna para essas crianças. Quando abolida a escravatura, em 13 de maio de 1888, os problemas sociais com os libertos se agravaram mais ainda.

Os negros nos distraem com um canto melancólico e monótono no idioma africano. Após o canto, eles

colocam-se em círculo; dois deles executam uma dança grotesca, acompanhada de contorções grotescas, cambalhotas e estalos de língua ao som da marimba, enquanto o resto do grupo bate o compasso com as mãos. Aos poucos o movimento se torna mais animado, a dança mais rápida e logo todo o bando toma parte, emitindo gritos e vociferações selvagens: um verdadeiro sabá!

Lei Áurea, de 1888, não se preocupou em inserir ex-escravos na sociedade

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129Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

Abolicionistas na Histórica

Por meados da década de 80 do século XIX, surgiram em Rio Pardo diversos instrumentos

dispostos a combater a escravidão. Um deles foi o jornal O Patriota e a Sociedade Sempre Viva, que tinham à frente o advogado Heráclito Americano de Oliveira, também fundador do atual Clube Literário e Recreativo, em 10 de outubro de 1886.

O Patriota, de Rio Pardo, possuía o seguinte lema: “Combater a escravidão, louvar as mulheres e estar sempre na vanguarda dos grandes cometimentos sociais”. Já a Sociedade Sempre Viva objetivava proporcionar diversões de dança, de dois em dois meses, e angariar o numerário que lhe fosse possível para a concessão de cartas de liberdade nos aniversários de sua fundação, que tinha acontecido em 7 de julho de 1883. Em 1886 foi criado nessa sociedade o

cargo de orador que, além de outros deveres, tinha o de prelecionar sobre a redenção dos cativos em cada aniversário da sociedade. Esse orador era o próprio Heráclito. Em 7 de julho do ano seguinte, em comemoração ao quarto aniversário da sociedade, foi produzida uma conferência abolicionista.

Não se sabe se o Clube Literário tinha objetivos abolicionistas, pois nada a respeito consta em seus estatutos. Mas uma coisa é certa: pelos nomes dos fundadores – Heráclito Americano e Sena Madureira –, pode-se concluir que o clube tinha um viés republicano e abolicionista. Inclusive, no ano de fundação do Literário, cogitava-se que o clube e a Sociedade Sempre Viva deveriam passar por cima de algumas rivalidades e se fundirem numa só entidade. Mas não se sabe se isso de fato aconteceu.

Cachoeira do Sul apresenta um marco na imprensa da região. Trata-se do jornal O Astro, produzido e dirigido para negros.

Conforme o professor José Antônio Santos, que estuda a imprensa negra no Rio Grande do Sul, O Astro tinha edições quinzenais e durou de 13 de maio de 1927 a 13 de maio de 1928.

Foi fundado por José de Farias e Manoel Etecildes da Silva, que também eram os redatores. Eles contavam com colaboradores e até correspondentes em Rio Pardo e Porto Alegre. “Eram pessoas cultas. Trabalho com a hipótese de que fossem tipógrafos ou ligados ao comércio.” Explica que, em várias cidades, existiram jornais produzidos por jornalistas e intelectuais negros. De acordo com ele, a imprensa negra existe no Brasil desde 1830.

No O Astro, segundo Santos, o que chama a atenção são os editoriais. Eles se manifestavam contra a situação precária em que viviam os negros na sociedade brasileira, 39 anos após a abolição. Também denunciavam o racismo e o preconceito. Naquela época, brancos e negros não podiam frequentar os mesmos lugares juntos. A Praça José Bonifácio, em Cachoeira do Sul, por exemplo, tinha um lado reservado para os brancos e outro aos negros.

De negros para negros

José A. Santos estuda a imprensa negra

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Pressão social colaborou para o fim do trabalho cativo

•• Ser escravo

Ser escravo é não ter ação, não ter pensamento, não ter pátria, não ter mãe e nem ter filho! Ser escravo é não ter autonomia para a vida, ser escravo é não

ter autonomia para a morte! Ser escravo é não ter direito a um gesto de afeto; é não ter direito nem de pedir ao apreste que lhe vá ensombrar a sepultura! Ser escravo, excelentíssimos senhores, é não ter direito a uma cruz, a flâmula divina de nossa alma. É a miséria, o esterquilínio, é o horror, é o nada!!! A escravidão e a pena de morte já estão condenadas, pela ciência e seu apelo. Só falta que a legislação arranque-as do seu código para exumá-las nas misérias do passado.Heráclito Americano de Oliveira Conferência Abolicionista – Rio Pardo – 07/07/1877

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130 Uma luz para a história do Rio Grande

Em Encruzilhada do Sul, correm histórias sobre o Cerro Partido, um morro característico por ser cortado, formando um precipício. A lenda mais

conhecida é a de que muitos escravos teriam sido empurrados para a morte do alto do morro. A professora Elaine Fossa de Barcelos conta que os negros seriam mortos para garantir o sigilo sobre objetos de valor e joias enterrados no solo encruzilhadense.

Conta-se que no século XVIII, na época dos ataques dos espanhóis, as pessoas de posses mandavam enterrar seus objetos de valor. Como eram os escravos que cavavam os buracos, eles saberiam onde estavam os pertences. Por isso, os senhores teriam criado a lenda do macaco branco no Cerro Partido, que só seria visto nas noites de lua cheia. Os senhores convidavam os escravos para ver o macaco e os empurravam lá de cima.

Existe ainda uma versão romântica. Fala da filha de um fazendeiro, que teria se apaixonado por um comandante

militar. O pai não concordava com o romance e trancava a filha no quarto, sempre que tropas militares se aproximavam. Quando ela começou a definhar, piorando a cada dia, o fazendeiro convidou o comandante para jantar com a família. Mas combinou com seus escravos que, ao acompanharem o militar no retorno, levariam-no para ver o suposto macaco branco no Cerro Partido.

Dias depois, a moça descobriu que o rapaz havia sido empurrado no precipício. Passou a subir todos os dias ao topo do cerro, para chorar. Um dia foi encontrada morta ao lado de um laguinho que, segundo a crença popular, havia se formado pelas lágrimas da jovem, que morreu de amor. “Realmente, existe um laguinho no alto do morro”, diz Elaine. Nada, porém, comprova a veracidade de qualquer uma dessas histórias, transmitidas oralmente de geração a geração. Seu valor, no entanto, é o de atestar os preconceitos e práticas de uma época.

Cerro Partido e o macaco branco

Histórias podem ser fictícias, mas revelam a conjuntura social da época

Negrinho do PastoreioA história do Negrinho do Pastoreio é uma das mais populares lendas gaúchas e um testemunho da brutalidade da escravidão. É conhecida até no Uruguai e na Argentina. No Rio Grande do Sul, a versão mais antiga é a do escritor Apolinário Porto Alegre, intitulada O Crioulo do Pastoreio e publicada em 1875. Mas a narrativa mais difundida, e bela, é a do autor pelotense João Simões Lopes Neto, publicada em 1913 no livro Contos Gauchescos e Lendas do Sul.Na versão de Lopes Neto, a história se passa no tempo em que “os campos ainda eram abertos, não havia entre eles nem divisas nem cercas”. Certo dia de inverno, um estancieiro ordena a um escravo negro de 14 anos, órfão, que pastoreie os cavalos e potros que tinha acabado de comprar. No fim da tarde, o patrão dá pela falta de um cavalo baio. Castiga o negrinho com chicotadas e ordena que volte para recuperar o animal; mas o garoto fracassa na busca. Então o estancieiro lhe aplica uma surra ainda mais violenta, até que ele perca a consciência. Convicto de que o menino está morto, o patrão decide jogar seu corpo sobre um formigueiro para que os insetos o devorem. Porém, quando retorna mais tarde para ver o que restara do cadáver, espanta-se ao encontrar o menino ileso, sorridente e montado em um cavalo branco. Do seu lado, brilha a figura de Nossa Senhora. Até hoje, dizem que o Negrinho do Pastoreio pode ser visto cavalgando pelos pampas. Quando precisam encontrar um objeto ou animal perdido, as pessoas acendem uma vela perto de um formigueiro e pedem ajuda ao garoto e sua madrinha, Nossa Senhora.

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131Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

São muitas as lendas existentes no Rio Grande do Sul a respeito de tesouros enterrados ou escondidos. Em Rio Pardo, entre várias histórias, existe a do velho avarento. Homem riquíssimo, ele contava suas moedas de ouro e de prata, mandava um escravo lustrá-las e guardá-las em um baú. Quando adoeceu e sentiu a aproximação da morte, ordenou a dois escravos da maior confiança que transportassem o baú para um lugar

distante da cidade. O próprio senhor acompanhou os

cativos e ordenou que abrissem uma vala, onde deixariam o tesouro. Mas antes que terminassem de cobrir o buraco, ele matou os dois escravos. Ambos foram enterrados junto com o baú. O velho faleceu dias depois e o tesouro nunca foi encontrado, mas alguns garantem que já viram as almas dos negros perambulando à noite, carregando o baú.

O tesouro do velho avarento

Santa Josefa

Esta é uma das histórias de assombração mais populares na campanha gaúcha. Segundo a versão narrada por Antônio Augusto Fagundes no livro Mitos e lendas do Rio Grande do Sul, Josefa

era uma linda e religiosa escrava jovem. Seu rico senhor, morador de Cachoeira do Sul, tentara inúmeras vezes desfrutar de seus favores sexuais, mas sem sucesso. Um dia, não conseguiu se conter e se lançou com violência sobre a moça. Josefa foi torturada e golpeada até a morte pelo amo. Depois, foi enterrada em uma

pequena e improvisada cova. Dias mais tarde, começou a verter sangue da rústica sepultura. Outros escravos passaram a acender velas em sua memória e o próprio amo, passados alguns anos, mandou erguer uma capelinha no local.Hoje, no Centro de Cachoeira do Sul, existe a capela de Santa Josefa. No pátio dos fundos, encontra-se aquilo que seria a sua sepultura. Lá, muitos crentes da devota fazem pedidos ou agradecem por alguma graça. Em diferentes lugares da Campanha viu-se Josefa aparecer, à noite, dependurada, enforcada nos caibros dos galpões de estâncias.

Odila Mazuim é uma das fiéis que visitam a capela da santa, no Centro de Cachoeira do Sul

Narrativa fala de uma negra que resiste ao assédio do senhor e acaba morta

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•• Escravo Quati

Em meados do século XIX, um mistério ocorria nas estâncias de Banhados, lá para as bandas de Santa Maria da Boca do Monte. Na calada da noite, enquanto todos dormiam, objetos desapareciam e outros surgiam em seu lugar. Sumiam facas e apareciam esteiras. Desapareciam ferramentas e ficavam vasos de barro no local. Levavam uma manta de charque e deixavam balaios. Ninguém entendia o que ocorria, porque não era roubo: eram escambos, trocas. Só muitos anos depois tudo foi explicado. Um grupo de escravos encontrou, em um lugar ermo no meio do mato, um negro enorme, velho mas forte. Trajava um colete de couro de quati e estava coberto de limo. Passaram a chamá-lo de Pai Quati. Não falava uma palavra em português. Vários negros, descendentes de diferentes tribos da África, tentaram conversar com ele. Depois de muitas tentativas, desvendaram o mistério. Pai Quati viera da África e fora trazido como escravo para Rio Pardo. Antes de ser vendido, conseguiu fugir. Com medo de ser recapturado, procurou viver só, longe de tudo e todos. Como precisava de utensílios que a mata não lhe oferecia, e não queria se tornar um ladrão, Quati inventou seu sistema de trocas. Deixava seus produtos artesanais no lugar daquilo que precisava.

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132 Uma luz para a história do Rio Grande

Hoje as atividades ocorrem nas duas igrejas, em revezamento

No lugar antigamente conhecido como Rincão do Guabiju, hoje oficialmente chamado Arroio das Pedras, a uns 20 quilômetros de Rio

Pardo, situa-se a comunidade de Rincão dos Pretos. Ali existem duas igrejas, uma ao lado da outra: a dos negros e a dos brancos.

O padre Orlando Pretto, pároco de Rio Pardo entre 1967 e 1988, relata que havia até uma cerca separando as duas igrejas. A dos pretos, chamada Capela Nossa Senhora Imaculada Conceição da Bela Cruz, tinha atrás dela uma grande cruz de madeira. E a dos brancos era a Igreja da Imaculada Conceição. Chegando a Rio Pardo, Pretto

se preocupou com a situação. A primeira coisa que lhe veio à mente foi erguer uma capela única junto à estrada para Cachoeira, para acabar com a separação. Mas antes resolveu consultar uma autoridade no assunto: o historiador Décio Freitas (1922-2004), grande estudioso da questão dos negros.

Freitas ponderou que uma terceira igreja faria os brancos absorverem a comunidade e os negros perderiam a referência, apagando em parte sua própria história. A ideia foi abandonada, mas não o ânimo de superar essa visível e incômoda segregação étnica. O trabalho seria difícil, mas tinha que ser enfrentado.

Duas igrejas separadasAté 1970, na comunidade de Rincão dos Pretos, os negros e brancos não se misturavam e até os templos eram separados

BANCO DE IMAGENS

O Rincão dos Pretos foi reconhecido oficialmente como quilombo em 2004, pela Fundação Cultural Palmares. As terras haviam sido doadas por Jacinta Ana Maria de Jesus de Souza aos seus 87 escravos, no século XIX. Hoje, segundo o presidente da Associação Comunitária do quilombo, Adair David, vivem no local 37 famílias que cultivam produtos para consumo próprio e criam porcos e galinhas. Muitos trabalham como peões para os fazendeiros do entorno, como empregados temporários, e outros buscam sustento na cidade.

•• Fique por dentro

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133Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

Uma missa ali, outra aqui...

É claro que a primeira tarefa seria a derrubada daquela cerca, imagem maior da segregação que sobrevivia ao tempo. “Conhecendo melhor a situação,

fazendo relações pessoais com uns e com outros, já em 1968 conseguimos retirar a cerca que separava as duas igrejas”, relata o padre Pretto. Na mesma época, a cruz de madeira foi transferida para o interior da igreja, para que não se deteriorasse com o tempo. O cruzeiro acabou reafirmando o seu valor místico, religioso e histórico.

Mas era apenas o começo. Dois anos depois (1970), as duas comunidades já passaram a realizar suas festas simultaneamente, com um convite único à população – embora cada uma com seu evento em separado, em pavilhão próprio. As duas diretorias persistem até hoje, mas o processo de aproximação continuou avançando, assim como recomendara Décio Freitas: “A história deve ser construída em passos”.

Em 1972 a procissão da Imaculada Conceição, padroeira comum das duas igrejas, que antes tinha a dos brancos como única referência, passou a sair desta e terminar na dos pretos. Em 1975 foi implantada a alternância das missas mensais na comunidade: uma vez no templo dos pretos e outra no dos brancos, sendo frequentadas conjuntamente pelas duas comunidades. O revezamento continua sendo observado até hoje.

À frente a igreja dos brancos e, ao fundo, a

dos pretos

Mudança manteve prédios, mas acabou com divisão

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134 Uma luz para a história do Rio GrandeRincão dos Pretos

O quilombo da localidade de Palmas, formado por 12 hectares e distante 40 quilômetros da cidade de Encruzilhada do Sul,

tem quatro famílias, totalizando 11 pessoas. Elas não conseguem precisar quais os antepassados que foram parar ali, nem de onde vieram. Apenas sabem que sempre estiveram no local.

Vivendo em moradias precárias, onde a luz elétrica chegou há apenas um ano, os quilombolas da Quadra da Palma contam que, anos atrás, havia mais de 50 famílias ali. A maioria abandonou o lugar em busca de trabalho e oportunidades de vida. As três irmãs Nalcira, Celoir e Maria Eni Machado Castilhos estão entre os poucos que ficaram. Moram com a mãe Margarida e o irmão Ronaldo. A família se sustenta com a aposentadoria da mãe, com o salário do irmão em um pomar de pêssegos e a venda de alguns produtos artesanais. As jovens concluíram o Ensino Fundamental na localidade

de Pinheiro, mas tiveram de interromper os estudos por falta de escola.

Os quilombolas vão para a cidade de vez em quando, porque a única possibilidade de deslocamento é o ônibus que passa nas quartas-feiras. Margarida Machado Castilhos se casou com um primo, Narciso Pedro, também morador do quilombo e teve cinco filhos, mas ficou viúva cedo.

Outros moradores da Palma são os irmãos Antônio Luís e José Acilon Barbosa Freitas, que plantam milho, feijão e arroz para subsistência. Também não sabem de onde vieram os ancestrais. A falta de conhecimento da escrita e leitura por parte dos antepassados e a ausência de registros fazem com que desconheçam as suas origens. Das histórias transmitidas oralmente, lembram apenas que antigos moradores falavam de uma escrava chamada Dona Felicidade, que teria sido uma das primeiras a chegar ao quilombo.

O passado sem registro

Vida precária e de pouco conforto após a abolição, como mostra a foto acima, em Cachoeira do Sul, atravessou as décadas para muitos negros. A exemplo da família de Margarida Machado Castilhos hoje, em Encruzilhada, na imagem abaixo

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No Quilombo da Quadra da Palma, em Encruzilhada do Sul, os poucos moradores que restaram desconhecem suas origens

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135Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

Quilombos hoje

Os quilombos eram refúgios onde se escondiam os negros fugitivos. A antropóloga e

professora da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), Josiane Abrunhosa da Silva Ulrich, explica que o termo “quilombo” tem vários significados. Na linguagem iorubá designa habitação e em banto, reunião de acampamentos.

Segundo a pesquisadora, a definição tradicional de quilombo, atribuída pelo Conselho Ultramarino a pedido do rei de Portugal em 1740, como “toda habitação de negros fugidos que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não atenham ranchos levantados e não se achem pilões nele”, não é adequada para compreender as comunidades quilombolas existentes no Brasil. Ela explica que o quilombo contemporâneo não diz respeito a grupos isolados, sem participação na estrutura social. “Enquanto dimensão política, expressam

as mais variadas formas de resistência a situações opressivas vivenciadas pelos escravos e seus descendentes”, ressalta.

A Constituição Federal de 1988 – no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – reconheceu às comunidades remanescentes de quilombos o direito à posse definitiva de suas terras. Josiane Abrunhosa lembra que isso deu início ao movimento político envolvendo organizações sociais e comunidades negras rurais, que passaram a reivindicar a titulação das terras. “Dessa forma, a categoria quilombo passou por uma mudança de significado, para dar conta das dinâmicas atuais das comunidades negras identificadas como comunidades quilombolas”, explica. “A partir do critério de autoatribuição, o reconhecimento por parte do Estado como quilombolas tem como referência a identidade cultural, onde o território passa a ser fundamentalpara a manutenção do grupo.”

•• Fique por dentro

•• O Centro de Cartografia Aplicada e Informação Geográfica (Ciga) da Universidade de Brasília (UNB) indica a existência de 2.228 comunidades remanes-centes de escravos no Brasil. A informação é ques-tionada pela Coordenação Nacional de Entidades Negras (Conen), que afirma que o número é supe-rior.

•• Já no que se refere às comunidades certificadas pela Fundação Cultural Palmares, são 1.305, sendo que 41 destas estão localizadas no Rio Grande do Sul.

•• Dados sobre o Rio Grande do Sul são encontra-

dos no Diagnóstico das Comunidades Negras Rurais Remanescentes de Quilombos do Estado do Rio Grande do Sul, realizado em 2004 por Rosane Rupert, através do Programa RS-Rural da Emater. No levantamento foram identificadas 42 comunidades com potencia-lidades para se autorreconhecerem como comuni-dades quilombolas.

•• O Decreto 4.887, de 20 de novembro de 2003, em seu artigo 2º, considera os remanescentes das comu-nidades dos quilombos como grupos étnico-raciais, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com ancestralidade negra, re-lacionada com a resistência à opressão sofrida.

Comunidades remanescentes buscam a posse de suas terras

Situação é de isolamento no interior de Encruzilhada do Sul

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136 Uma luz para a história do Rio Grande

A força da pecuária

A pecuária foi o esteio da economia de Rio Pardo e do Rio Grande do Sul nos séculos XVIII e XIX e parte do século XX. Praticamente

toda a vida do Estado girava em torno do gado.

Passada a fase inicial, quando o gado xucro era preado para dele se extrair praticamente só o couro, descartando quase por completo a carne, a descoberta de minas de ouro na denominada região das Gerais abriu novas possibilidades para o gado de corte e de tração do Sul. Como o aprisionamento dos rebanhos bovinos, muares e equinos, que se reproduziam à solta pelos campos, colocava em risco a reprodução das manadas, tropeiros, militares e outros iniciaram a criação em estâncias. Estas normalmente eram grandes propriedades rurais onde até havia algumas lavouras agrícolas, principalmente dedicadas à subsistência dos seus moradores; porém, o trabalho principal era voltado à criação de gado.

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A ATIVIDADE CRIATÓRIA

A importância do gado para a economia de Rio Pardo e do Rio Grande do Sul; as estâncias históricas; a riqueza proporcionada pelas charqueadas e os hábitos surgidos a partir da cultura da pecuária.

•• Sem preocupações

Nos tempos iniciais de ocupação do Rio Grande do Sul, a terra não tinha grande valor econômico. As estâncias não eram cercadas e as confrontações se delineavam pelos acidentes geográficos ou marcos postados aqui ou ali. Quanto aos rebanhos, não se pensava na introdução de novas raças, melhoria genética ou melhoramento das pastagens. Os estancieiros estavam apenas preocupados com a quantidade e não com a qualidade. O gado crioulo, que descendia dos animais das regiões platina e missioneira, continuava sendo praticamente o único que se reproduzia pelos campos.

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137Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

Para cada dono, uma marca

Como as estâncias não eram cercadas, havia a necessidade de cada estancieiro providenciar a marcação do seu rebanho. O registro das marcas era obrigatório e ficava em livro especial nas Câmaras Municipais. Os animais eram marcados com 1 ano

de idade, para serem vendidos com 3, 4 ou 5 anos. O botânico francês Auguste de Saint-Hilaire, ao passar

pela Vila de Rio Pardo no ano de 1821, registrou que podia-se marcar, anualmente, um quarto do rebanho existente. As vacas normalmente davam cria de setembro a janeiro, época em que os vaqueiros percorriam os campos à procura de bezerros para encerrá-los em um curral.

A pecuária nas estâncias gerava pouco trabalho. O gado era deixado à lei da natureza, nos pastos, em completa liberdade – quase sempre não havendo, mesmo, a preocupação de lhe dar sal. Saint-Hilaire escreveu que o único cuidado que os estancieiros reconheciam como necessário era acostumar os animais a ver homens e a entender seus gritos, a fim de que não ficassem completamente selvagens. Além da marcação, havia a

As estâncias históricas de Rio Pardo e adjacências são hoje, em sua maioria, empreendimentos rurais que em nada lembram as propriedades originais. A começar pela extensão. Por conta das divisões sucessivas da terra, distribuição a herdeiros e vendas a terceiros, algumas são apenas chácaras de poucos hectares com uma casa em estilo colonial português. A maioria não pertence mais às famílias que obtiveram as sesmarias na época colonial. São lembradas por terem sediado atos marcantes da história gaúcha, hospedado personagens eminentes ou pertencido a figuras de destaque político.

É o caso da Fazenda Cerro Alegre, hoje em território do município de Santa Cruz do Sul. Localizada em Cerro Alegre Baixo, a 15 quilômetros do Centro da cidade, a propriedade tem 480 hectares e é usada para a criação de gado e plantio de arroz e soja. No passado, ela pertenceu ao almirante Alexandrino de Alencar e formava uma sesmaria, pois ligava os rios Taquari e Jacuí, desde o atual município de Cruzeiro do Sul até Santo Amaro e Mariante, no interior de Venâncio Aires. A casa de Alexandrino, na Fazenda Cerro Alegre, sofreu pequenas modificações na parte interna e no telhado. Sua parte externa está preservada.

A estância do almirante

Cada proprietário tinha que marcar seu gado, mas, de um modo geral, atividade na pecuária gerava pouco trabalho

•• Dia de rodeio

castração do gado que se destinava ao corte – prática denominada “fazer rodeio”.

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Casa que pertenceu a Alexandrino de Alencar está preservada no interior de Santa Cruz do Sul

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O patrono do tradicionalismo gaúcho, João Cezimbra Jacques, escreveu em 1883 no que consistia um rodeio em uma estância. Tratava-se de reunir o gado em algum lugar do campo para marcá-lo, castrar potros e touros, tosar éguas, curar animais doentes, dar-lhes sal e apartar novilhos e vacas para conduzi-los às charqueadas ou açougues.O dia de rodeio era uma festa. Cedo, ainda antes do cantar do galo, os peões despertavam. Faziam fogo no galpão, espetavam a carne do assado matinal e preparavam o mate. Ao sinal do capataz, iam até a mangueira pegar os cavalos e seguiam com cães para diferentes pontos da estância de onde, aos gritos, tocavam pontas de gado xucro. Os animais precisavam ser costeados e convergir para um determinado local, onde se aglomeravam. Depois era necessário imobilizá-los, um a um. Entrava aí a habilidade dos ginetes, que precisavam laçar os bichos e depois derrubá-los. Levava-se ao fogo o ferro com a marca do proprietário e quando este atingia a cor avermelhada, era sentado sobre o couro na anca, no quarto ou na costela do animal, que soltava gemidos de dor.

Pintura de Reilly mostra marcação do gado em dia de rodeio

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138 Uma luz para a história do Rio Grande

Almas penadas e lendas sobre tesouros escondidos povoam o imaginário da população rio-

grandense. É praticamente impossível encontrar alguma localidade gaúcha onde não existam histórias sobre ouro enterrado durante uma ou outra das muitas guerras que assolaram o território. E assim é na Coxilha do Ataque, propriedade de 412 hectares a quatro quilômetros de Pantano Grande, na estrada para Cachoeira do Sul. Junto com a Fazenda do Espinilho, ela

formou um dos principais pontos de defesa do Rio Grande do Sul contra a invasão espanhola.

O local foi palco do Combate do Tabatingaí, em janeiro de 1774, quando as forças de Rafael Pinto Bandeira derrotaram as espanholas, comandadas por D. Francisco Bruno de Zebala.

Naquele episódio, Zebala, com 440 homens, comandava a segunda coluna do exército de D. Juan José de Vertiz y Salcedo, que pretendia tomar Rio Pardo e Viamão. Os portugueses, liderados por Pinto Bandeira, Cipriano Cardoso e José

Batalha e ouro

Lugar para hóspedes ilustres

Os filhos do Sr. Pôrto com a mãe já viúva, Dona Eugenia Jobim Pôrto, nos receberam fidalgamente na sua bela e interessante estância das Pederneiras, não longe do Rio Jacuí.

Coxilha do Ataque foi palco do Combate do Tabatingaí, em 1774

••A voz dos mortosMuitas lendas rondavam a Fazenda da Coxilha e não faltava quem jurasse ouvir, à noite, o barulho do combate, gritos e vozes pedindo ajuda. Outros escutavam ladainhas, que seriam as orações dos que tombaram.Também havia quem pedisse autorização para escavar em busca de tesouros, mas nada teria sido encontrado. O atual proprietário lembra que, na infância, as lendas tomavam conta das conversas e muitas brincadeiras eram feitas em torno dessas histórias.

Fazenda da Quinta está com a mesma família desde a sua construção, em 1868

Carneiro da Fontoura, entrincheirados nas fazendas do Espinilho e da Coxilha, promoveram a reação.

Mesmo em menor número, o exército português encurralou os

espanhóis em uma área pantanosa e coberta por mato, nas proximidades do Arroio Tabatingaí. Sem conhecer o terreno, os invasores acabaram atolados e foram derrotados.

Pederneiras, que era de José Ferreira Porto, amigo do Imperador D. Pedro II e vereador em Porto Alegre, foi construída provavelmente antes, uma

vez que o Conde D’Eu – em seu livro Viagem militar ao Rio Grande do Sul (agosto a novembro de 1865) – elogia a hospitalidade com que foi recebido:

A Estância Boa Vista da Quinta e a Fazenda das Pederneiras apresentam em comum o fato de terem hospedado a nobreza portuguesa e de pertencerem, em sua origem, à mesma família: os Porto. Na Quinta – que Dante de Laytano classifica como a mais bela estância de Rio Pardo – estiveram hospedados a Princesa Isabel, seu marido, o

Conde D’Eu, e os filhos. Foi em 1885, quando a então Família Real navegou pelo Rio Jacuí e cavalgou 15 quilômetros até a casa construída em 1868, pelo comendador Manoel Ferreira Porto Filho – cujo pai serviu nas forças portuguesas da Capitania do Rio Grande e teria recebido as terras pelos serviços militares prestados.

A sede da Fazenda das

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139Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

Depois das charqueadas, que marcaram o início do processo de industrialização no Rio Grande do Sul, são os

engenhos de farinha de mandioca que se consolidam como as primeiras indústrias mecânicas da Província. Um dos mais importantes, responsável por abastecer a população de Rio Pardo, ficava no Distrito de Porteira Sete, em Cachoeira do Sul.

Instalada na Fazenda São José no início do século XIX, a fábrica contava com uma atafona – também chamada de tafona – na qual a mandioca era triturada para a produção de farinha e polvilho, a partir da força de animais e do trabalho de escravos. A produção se tornou o carro-chefe da fazenda, que também possuía uma grande plantação de maçã. Dali os carregamentos eram levados até o porto de Cachoeira e enviados, via Rio Jacuí, a Rio Pardo e Porto Alegre.

O ciclo da mandioca em território gaúcho é relatado no livro Rio Grande do Sul terra e povo. Na obra, os autores revelam que o seu cultivo representava uma preocupação constante em todas as estâncias. O polvilho era utilizado como matéria-prima na produção de roscas, bem como para engomar rendas, punhos e colarinhos. A atividade passou a se configurar como uma das principais bases da economia e gerou riqueza.

Na Fazenda São José, o beneficiamento da mandioca funcionou até o fim do século XIX, mas suas marcas ainda estão bem presentes. A atafona é preservada e fez com que a propriedade passasse a ser conhecida como Fazenda da Tafona, onde funciona um restaurante turístico.

Pertencente a Gemina Vieira da Cunha Silva, a fazenda começou a ser constituída a partir de 1800, quando o descendente de barões José Vieira

Mandioca como fonte de riqueza

Fazenda São José, em Cachoeira do Sul, possui uma tafona onde era produzida farinha de mandioca

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Casa construída pelos Vieira da Cunha é ponto turístico em Cachoeira

•• Estâncias e fazendas

da Cunha recebeu da Coroa Portuguesa duas léguas de sesmarias, o equivalente a 10,4 mil hectares. Hoje reduzida a 58 hectares, a propriedade mantém o casarão construído pelo primeiro morador, entre 1811 e 1813. Com a estrutura bem preservada, a residência é decorada com mobília trazida de Portugal. As duas alcovas – quartos onde dormiam as moças virgens – também são mantidas.

Na região do Rio da Prata, a expressão “estância” foi utilizada para designar as terras destinadas à criação de gado vacum e cavalar. Os portugueses incorporaram esse vocábulo espanhol.A partir da terceira década do século XIX o termo passou a designar, na Província do Rio Grande do Sul, no Uruguai e na Argentina, apenas as grandes propriedades criatórias cujos proprietários detinham poder político com proeminência social. Na mesma época o termo “fazenda” foi destinado, de maneira genérica e informal, àquelas dedicadas à pecuária, mas sem a tradição e o peso político das anteriores. Com o tempo, os termos “estância” e “fazenda” passaram a ser usados como sinônimos, prática adotada neste livro.

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140 Uma luz para a história do Rio Grande

•• Por onde andavam

>> Dentre os caminhos utilizados no circuito de gado se destaca a Estrada das Missões, inicialmente aberta pelos índios guarani de modo a permitir o transporte, para as Missões Jesuíticas, do gado da Vacaria dos Pinhais e da erva-mate extraída dos ervais nativos existentes entre o Rio Jacuí e as nascentes do Rio Uruguai. Esse antigo caminho se manteve como importante via de comunicação por mais de um século.

>> Outro caminho dos tropeiros foi a chamada Picada do Botucaraí, que se iniciava na margem direita do Rio Pardo, no atual município de Candelária, e terminava nos Campos de Cima da Serra, no atual município de Sobradinho. Aberta na mata em 1810 por militares baseados em Rio Pardo, essa picada, ao transpor a Serra do Botucaraí, permitiu melhores

A pecuária foi a primeira atividade econômica no território de Rio Pardo

e a responsável pelo desenvolvimento do extremo Sul do País nos séculos XVIII e XIX. Já na primeira metade do século XVIII, o gado vacum, equino e muar começou a despertar interesse na região mineradora que se desenvolvia rapidamente em Minas Gerais e Goiás. Os animais ali eram usados como fonte de alimentação e para o transporte de cargas.

Para levar o gado até a região mineradora surgiu a figura do tropeiro, que seria o responsável pelo recolhimento dos animais e sua condução até Sorocaba (SP), que havia se tornado um entreposto de comercialização dos animais no Brasil. Esses tropeiros eram de origem luso-brasileira e vinham de Laguna (SC) e Sorocaba. Não se tem informações de quantos eram e também há poucos dados sobre o perfil social desses trabalhadores. Entretanto, sua presença no Sul do Brasil é apontada como um dos fatores responsáveis pela expansão da economia, conforme defende o geógrafo Rogério Leandro da Silveira.

No final do século XVIII e

Tropeiro, criador de caminhosAo transportar gado entre a Província e São Paulo, esses homens definiram o mapa do desenvolvimento econômico

início do XIX, o historiador Caio Prado Jr. (1986) afirma que eram expedidas do RS, anualmente, entre 12 e 15 mil cabeças de muares em direção a Sorocaba. Na mesma época eram enviados entre 4 e 5 mil cavalos e dezenas de milhares de gado vacum, o que comprova a importância da atividade. Como precisavam recolher as reses até elas serem levadas ao Sudeste, os tropeiros criaram currais de aprisionamento. Quando davam início às viagens, promoviam paradas no caminho, as chamadas invernadas. O fluxo de tropeiros constituiu bases de fixação para povoamentos, que originaram os primeiros povoados e núcleos urbanos do território gaúcho e regional. Entre as cidades que assim se formaram no Vale do Rio Pardo estão Encruzilhada e Sobradinho.

Ao mesmo tempo em que ajudaram na formação das cidades, os tropeiros foram se instalando em Rio Pardo, onde implantaram fazendas para aprisionamento do gado e

posterior comercialização.A atuação dos tropeiros começou a mudar quando, por

volta de 1780, o comércio de charque ganhou força no Rio Grande do Sul. Eles continuaram a se dirigir ao centro do País, mas passaram também a transportar as tropas para a região das charqueadas. Nessas viagens pelo Rio Grande, carregando tropas, começaram a levar também mercadorias como café, trigo, açúcar ou tecidos, dando origem à profissão de carreteiro.

Enquanto a economia do charque foi pujante, a atividade seguiu em expansão. A partir de 1800, Rio Pardo se tornou importante entreposto comercial e os tropeiros continuaram personagens relevantes nesse contexto, estimulando a produção local. A profissão se manteve em evidência até os anos 1940, quando surgiram os primeiros caminhões e novas estradas. O tropeiro deu lugar, então, ao caminhoneiro.

condições de comunicação das áreas de criação de gado localizadas no sul do Vale do Rio Pardo (Rio Pardo e Encruzilhada do Sul) com a Estrada das Missões. Segundo o professor Rogério Silveira, o novo caminho foi estratégico para os portugueses, pois, além de alimentar o comércio de couro e de gado – tanto com as Missões como com a região de São Paulo e Minas Gerais – também possibilitou melhor controle e defesa do território português.

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141Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

As charqueadas

“[...] Diante da residência do Sr. Chaves estende-se belo gramado e além veem-se várias fileiras, compridas, de grossos paus fincados na terra. Têm cerca de 4 pés, sendo cada um terminado por pequena forquilha. Essas forquilhas recebem varões transversais destinados a estender a carne a secar, no tempo das charqueadas. Ao lado desses secadouros existe o edifício onde se salga a carne e onde é construído o reservatório, denominado ‘tanque’.Quando o animal é abatido, retalham-no, salgam os pedaços e colocam no tanque onde se impregnam de salmoura. Ao fim de 24

horas vão para os secadouros, onde ficam durante 8 dias, quando há bom tempo. A carne seca não se conserva mais de um ano. É exportada principalmente para o Rio de Janeiro, Bahia e Havana, onde serve de alimento para os negros.O gado emagrece no inverno porém engorda logo que os campos se cobrem de pastagens verdes. É em novembro, quando readquirem já alguma gordura, que começam as charqueadas, cuja duração vai a abril ou maio.”(Processo de produção descrito por Saint-Hilaire, em 1820)

>>Os frigoríficos Apenas no início do século

XX surgem os frigoríficos no Estado: em 1917, em Pelotas, o Rio-Grandense, vendido para o Anglo em 1921; em 1917 e 1918, Armour e Wil-son, em Livramento, e Swift, em Rio Grande.

Desde a década de 1730 havia charqueadas em pontos isolados do Rio Grande do Sul. Mas as charqueadas comerciais foram implantadas no Estado a partir

de 1780. Naquele ano o português José Pinto Martins, depois de passar algum tempo produzindo carne seca no Ceará, acabou transferindo seus negócios para o Sul em decorrência de uma grande seca que assolou o Nordeste brasileiro, estabelecendo-se às

margens do Arroio Pelotas. A partir de então, as charqueadas se multiplicaram e tiveram em Pelotas o seu grande centro. Dali, em pequenas embarcações através do Canal São Gonçalo, o charque alcançava o Porto do Rio Grande, de onde era despachado em navios maiores.

As charqueadas trouxeram desenvolvimento e riquezas a seus proprietários. Mas para os trabalhadores envolvidos no processo de produção, os escravos, elas trouxeram muito trabalho e sofrimento.

Trabalhadores da Charqueada do Paredão, em Cachoeira do Sul, por volta de 1920

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•• A riqueza da carne

Os capitais acumulados a partir da produção do charque possibilitaram uma série de construções e empreendimentos na cidade de Pelotas. Um deles foi o Banco Pelotense, fundado em 1906 pelos setores pecuarista, charqueador e do comércio de Pelotas. O banco foi liquidado em 1931 e seu espólio absorvido pelo Banrisul.

•• O charqueA charqueada era o local de elaboração do charque. A produção consistia na desidratação da carne bovina por meio da salga e da secagem. A carne recebia sal e era posta em varais para secar ao sol e ao vento.

Empreendimentos comerciais foram implantados a partir de 1780, em Pelotas

O mocotó é um prato que, presumivelmente, tem suas origens entre escravos e a população mais pobre da região Sul do Brasil. Surgiu em senzalas de charqueadas e em galpões de estâncias, preparado e consumido por eles. O mocotó era feito a partir de partes do gado bovino consideradas restos ou sobras da carneação. Costumeiramente são usados o bucho e as patas do animal, complementados com a adição de feijão branco e mais alguns condimentos. Tornou-se popular no Rio Grande do Sul e até hoje está presente nas mesas gaúchas.

•• Mocotó

Page 143: Rio Pardo 200 anos

142 Uma luz para a história do Rio Grande

Por que Cachoeira do Sul abrigou um importante empreendimento de produção de charque na região? Pelotas foi a cidade precursora do produto no litoral do Rio Grande do Sul, mas ficou inviável levar as tropas até a charqueada pelotense em vista da distância. O gado perderia muito peso com o longo percurso, além do extravio e de possíveis acidentes, e o transporte ferroviário tinha alcance limitado na época.

Cachoeira do Sul, por sua localização, no meio do caminho para as Missões e os Campos de Cima da Serra, era o local mais adequado. Outra facilidade dizia respeito ao escoamento do charque: o Jacuí era perfeitamente navegável a

partir de Cachoeira do Sul e os trilhos da estrada de ferro Porto Alegre–Uruguaiana se aproximavam da cidade, onde chegariam em 1883, com planos de um ramal até a Paredão. Além disso, conforme conta a pesquisadora Mirian Ritzel, em 1848 foi aberta ao tráfego a ponte do Passo do Jacuí, conhecida como a Ponte de Pedra, o que garantia o acesso das tropas vindas da Serra pela Picada de São Martinho.

Localizada sobre o Rio Botucaraí, é, segundo o historiador Aurélio Porto, a primeira ponte desse tipo construída no Rio Grande do Sul. Durante muito tempo, foi o principal acesso de Cachoeira a Porto Alegre e Rio Pardo.

Por que em Cachoeira do Sul?

Cachoeira do Sul já havia se emancipado de Rio Pardo há 58 anos quando viu surgir, em 1878, a Charqueada

do Paredão, nome adotado em referência às encostas do Rio Jacuí, em cujas margens se instalou o empreendimento. Administrada pela empresa Viúva Claussen & Filhos, abatia em torno de 20 mil reses ao ano.

O gado proveniente das Missões, dos Campos de Cima da Serra e de outros lugares atravessava a nado o Rio Jacuí, rumo à charqueada, onde seria abatido. Os escravos trabalhavam acorrentados nos dois pavilhões da indústria e, para que suportassem o ritmo intenso exigido pelos proprietários, bebiam cachaça que lhes era oferecida.

Em 30 de setembro de 1887, os ingleses assumem a fábrica sob o nome Brazilian Extract of Meat e Hide Factory Limited. Mesmo com o fim da escravidão, a maioria dos funcionários era formada por negros e vivia no entorno do estabelecimento. Em 1910 a charqueada enfrentou uma grande crise e em 1920 o pecuarista Balthazar Patrício de Bem se tornou o novo proprietário. No início da década de 1930, a Paredão fechou suas portas. Charqueada do Paredão esteve em atividade entre 1878 e 1930 em Cachoeira do Sul

Charqueada do ParedãoINOR/AG. ASSMANN

Às margens do Rio Jacuí, empreendimento abatia em torno de 20 mil reses por ano

•• Cena de pavor

Apesar de ter cessado há meses a matança nas charqueadas, sente-se ainda nos arredores um forte cheiro

de açougue, donde se pode fazer ideia do que não será esse odor no tempo da matança. Nessa época, dizem, não se pode aproximar das charqueadas sem ser logo coberto pelas moscas. Ao imaginar essa multidão de animais decapitados, o sangue a correr em borbotões, a prodigiosa quantidade de carne exposta nos secadouros, vejo que tais lugares devem inspirar contrariedade e pavor. (Saint-Hilaire)

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143Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

•• Arroz de carreteiro

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No século XIX, com a expansão da cultura cafeeira no Rio de Janeiro e em São Paulo, o grosso do charque rio-grandense passou a ser destinado a essas regiões para os escravos que trabalhavam no plantio, colheita e beneficiamento do café. Também passou

a ser exportado para Cuba. Além do charque, outros derivados da indústria saladeiril eram exportados, como sebo, chifres e cascos. O charque tinha grande valor nutritivo. Não só aplacava a fome dos escravos como também lhes fornecia a proteína indispensável para sua manutenção. Foi comida de gente pobre. Era relativamente barato e dispensava refrigeração.

O charque esteve presente no feijão, no carreteiro e no ensopado. Sendo alimento da escravaria, os senhores de escravos brasileiros estavam dispostos a gastar o mínimo possível com a aquisição do produto, o que achatava o preço do boi vivo que os charqueadores adquiriam dos estancieiros rio-grandenses. O charque do Sul ainda sofria a concorrência do produto uruguaio

e argentino, que era de melhor qualidade e, quase sempre, mais barato. Isso explica por que estancieiros e charqueadores se rebelavam contra o poder central, quando não tinham atendidos seus pleitos de proteção fiscal e de apoio a preços mais compensadores para o produto nacional.

Comida de gente pobreBarato e de fácil conservação, o charque era enviado para outras regiões do País para alimentar escravos

••Em casa

Destinado aos escravos e às camadas mais pobres da população livre, nem todo o produto gaúcho ia para fora do Estado. Açougues e matadouros também preparavam carnes salgadas, normalmente mal-elaboradas com retalhos e refugos para o consumo doméstico das classes mais pobres.

Na volta da charqueada, em Cachoeira do Sul, os casebres dos trabalhadores que sobreviviam de salgar carne

Durante muito tempo, o Rio Grande do Sul foi um deserto populacional. Com poucas cidades e vilarejos, as distâncias percorridas poderiam demorar dias ou até mesmo meses, em razão das dificuldades de locomoção. As “carreteadas” eram as caravanas formadas por mercadores que se deslocavam pelo território para comercializar os mais diferentes produtos: mantimentos, tecidos, bebidas, facas, panelas etc. O meio de

transporte utilizado eram as carretas puxadas por juntas de bois. Os comerciantes eram conhecidos como carreteiros. Por passarem muitos dias afastados de casa e por não haver estabelecimentos onde pudessem dormir e se alimentar, o arroz de carreteiro se tornou a comida mais comum em seus acampamentos. Preparado com pedaços de charque e arroz, e utilizando apenas uma

panela, esse prato ainda é muito apreciado na culinária regional. O arroz de china pobre é um derivativo do carreteiro. Ao invés de ser feito com charque ou carne de gado fresca, utiliza-se a linguiça.

Page 145: Rio Pardo 200 anos

144 Uma luz para a história do Rio Grande

Atualmente, nas festas campeiras do interior de Rio Pardo, uma das atrações é a corrida de argoleiros, herança dos jogos medievais descritos ao lado. A competição consiste em o cavaleiro acertar com sua lança a argola suspensa num pêndulo. São quatro corridas para cada argoleiro e o vencedor é o que obtiver melhor pontuação. Quando o jogador acerta a argola e a segura na lança, ganha dois pontos. Se acertar e derrubar leva um ponto e no caso de errar o alvo, não faz pontuação.

Um dos praticantes é Nicolau da Silveira Linhares, de Passo da Areia, que já acumulou vários troféus e medalhas em trinta anos de prática do esporte. Ele herdou do pai, Otávio Linhares, o gosto pela disputa que exige habilidades sobre o cavalo, reflexo rápido e golpe certeiro de vista.

A cavalhada é uma tradição dos torneios da Idade Média, onde os aristocratas exibiam sua destreza e valentia em espetáculos públicos. Esses torneios de origem medieval foram tradicionais no Rio Grande do Sul. Em um cenário pastoril e de constantes

lutas, encontraram ambiente favorável para se tornarem populares. Raramente acontecia festa religiosa ou cívica sem a cavalhada. Escreveu Aquiles Porto Alegre que nelas brilharam homens como Bento Gonçalves, Canabarro, Neto, Gomes Jardim, Osório, Andrade Neves e tantos outros.

Nessa encenação, que remonta ao império de Carlos Magno no século VIII, há a simulação de um confronto religioso entre cristãos e mouros, ou seja, a luta de Carlos Magno e seus cavaleiros (os doze Pares de França), enviados para combater os mouros na Península Ibérica. O número de participantes principais, não por acaso, é de 24 – doze para cada lado.

Ocorria em uma praça com uma igreja de um lado e, na extremidade oposta, um castelo onde ficava encerrada uma donzela cristã raptada. Nas várias fases, a meta era o assalto ao castelo e a derrota dos mouros, que acabavam se convertendo ao cristianismo por meio do batismo realizado na igreja.

O espetáculo normalmente era realizado na parte da manhã. À tarde ocorriam jogos equestres de confraternização, onde se destacavam os de argolinhas – os cavaleiros precisavam tirar, com a ponta da lança, o maior número de argolas penduradas em uma trave.

Torneio medievalCavalhadas, no Rio Grande do Sul, deram origem à corrida de argoleiros

Cavaleiros na corrida de

argoleiros: tradição que remonta à Idade Média

REPRODUçãO: LULA HELFER/AG. ASSMANN

•• Corrida de argoleiros

Page 146: Rio Pardo 200 anos

145Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

Entre os jogos mais apreciados antigamente em Rio Pardo e em todo o Rio Grande do Sul, destacavam-se as carreiras. A história das corridas de

cavalos remonta a milênios. Elas devem ter se iniciado quando o homem passou a adestrar o cavalo e a utilizá-lo como meio de locomoção e transporte. Os primeiros povos que utilizaram cavalos foram os asiáticos, isso há cerca de 4.000 a.C.

O relato escrito mais antigo de corrida equestre vem da Grécia e o encontramos na Ilíada, de Homero. Era um esporte bastante

apreciado na Roma antiga. Durante os carnavais, os romanos realizavam corridas de cavalo. Na Idade Média, havia a promoção de disputas entre cavaleiros. O turfe foi difundido por nobres ingleses, grandes apreciadores do esporte, no final dos séculos XVII e início do XVIII.

Os cavalos crioulos do Rio Grande do Sul se originam dos ibéricos, que possuíam grande predominância de sangue árabe e foram introduzidos no Prata pelos espanhóis. Com o passar dos decênios eles se reproduziram pelo verdejante pampa, dando origem a manadas xucras.

Cancha reta de Rio Pardo

As carreiras de cavalos

A carreira foi o esporte predileto e o jogo de preferência do homem do campo. Dia de corrida era dia de festa e de convívio social. Era momento de rever amigos, parentes e iniciar namoros. As carreiras de desafio eram normalmente combinadas para um dia de domingo. Elas juntavam pessoas de toda a redondeza, que se apinhavam dos dois lados da cancha. Comércios eram improvisados para

vender bebida e comida e bancas de jogos diversos eram montadas. Gaita e violão não podiam faltar.

Nas carreiras se apostava de tudo: dinheiro, boi por boi, vaca por vaca e, afirmam alguns, até a roupa do corpo e a própria mulher. A parada era casada em mãos de terceiros. Fortunas, rebanhos e mesmo estâncias podiam ser ganhas ou perdidas nas apostas.

O jogo preferido do homem do campo

Prática remonta aos gregos e romanos da Antiguidade e se difundiu pelo Rio Grande do Sul

•• Como se ganha

De orelha: vitória por um pequeno detalhe.De fiador: ganhar pela diferença de uma cabeça.De paleta: a cabeça do perdedor não chega a cobrir as patas da frente do vencedor.De meio corpo: o ganhador cruza a linha com meio corpo de vantagem.De virilha: vitória quase de corpo inteiro (virilha e coxa traseira).De luz: ganhar de diferença de corpo inteiro. Passar à frente do perdedor sem que este cubra qualquer parte do cavalo vencedor.

lulA HElFER/AG. ASSMANN

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Em Rio Pardo, uma cancha reta no Bairro Boa Vista é o local onde ainda se cultiva a tradição das carreiras. O Jockey Clube da cidade é uma associação que promove eventos oficiais e é o local onde são preparados os cavalos campeões. Antes da atual cancha de 600 metros e quatro trilhas na Boa Vista, as corridas ocorriam na Hípica, que funcionou de 1946 a 1969, na várzea do Rio Pardo.

Page 147: Rio Pardo 200 anos

146 Uma luz para a história do Rio Grande

Do astrágalo ao jogo do osso

O jogo do osso é um jogo bastante antigo, simples, de fácil entendimento e

muito praticado antigamente no Rio Grande do Sul. Poucos sabem a origem desse passatempo. Integrado à cultura gaúcha, o jogo chegou à Bacia do Prata com os colonizadores espanhóis, no início do século XVII. Mas fez um longo percurso antes de aportar aqui.

Ele é de origem asiática e foi amplamente praticadopor árabes e persas. Foi entre os antigos gregos que o pedaço de osso ganhou os seus grandes adeptos. Na Grécia antiga, o jogo recebeu o nome de “astrágalo”.

Durante a expansão do Império Romano, chegou à Península Ibérica. No Rio Grande do Sul, penetrou pela fronteira do uruguai e da Argentina e manteve as terminologias específicas utilizadas em castelhano, tais como suerte, culo, clavada e güeso.

O tradicional é praticar o jogo do osso ao ar livre, em uma cancha de chão naturalmente nivelado e com um terreno firme e macio. A cancha mede, usualmente, nove passos normais, de raia a raia. Na modalidade há a figura do coimeiro, responsável pelo andamento do jogo e depositário das apostas. A tava, taba, osso ou garrão é o instrumento com o qual se pratica o jogo. É confeccionado com o astrágalo, osso do jarrete de bovino, e seu tamanho varia de acordo com a idade ou porte do animal. O osso possui

Tava na posição Güeso ou Osso

Tava na posição Culo Clavado

À beira de uma estrada, em uma encruzilhada qualquer ou na

saída de um passo junto a um rio, surgiram pelos campos do Rio Grande do Sul os bolichos

de campanha ou pulperias. Eram pequenas casas de comércio,

normalmente simples ranchos barreados e cobertos de capim

santa fé, onde se comercializava secos e molhados. Esses locais

eram frequentados por moradores dos arredores, viajantes e gaúchos

andarilhos, predominantemente do sexo masculino. Para manter

a presença de consumidores de bebidas e de outros gêneros, normalmente o dono do bolicho explorava jogos diversos, como o de cartas, do osso, corrida de

cavalo ou rinha de galo. A jogatina, muitas vezes, dava origem a

desentendimentos que resultavam em peleias com o uso de adagas,

facões e armas de fogo.

••Como se ganha

Tava na posição CuloTava na posição Suerte Tava na posição Clavada

dois lados que são chamados de suerte (sorte) e culo (azar). Os jogadores ficam em lados opostos e arremessam o osso para o alto, em direção ao centro da cancha. Se um dos disputantes jogar e a tava cair na posição suerte, ele

ganha e continua jogando. Se der culo, perde e o outro passa a jogar. Se o osso ficar deitado (güeso ou touro), a jogada é retomada e a partida segue normalmente. O osso pode também ficar em posição clavada, quando a saliência

de clavar se enterra no chão. Nesse caso é necessário fazer a conferência, o que às vezes suscita discussões acaloradas. Aí entra o coimeiro, para arbitrar o lance.Atualmente, o jogo do osso é considerado um esporte tradicionalista.

Tava na posição Touro

Trazido pelos colonizadores espanhóis, entrou no Rio Grande do Sul pela fronteira, mantendo as terminologias platinas

lA tABA/JuAN MANuEl BlANES/1875

O jogo do osso em pintura do uruguaio Juan Manuel Blanes

Page 148: Rio Pardo 200 anos

147Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

O tradicional jogo do osso ainda é praticado

na região. um dos praticantes é Elizer lopes, de Cerro Alegre Baixo, em Santa Cruz do Sul. Ele conta que conheceu a competição porque os jogadores antigos chegavam à sua oficina de ferraria solicitando que ferrasse os ossos para a prática do jogo. Com a curiosidade despertada, Elizer buscou informações sobre as regras do esporte, que exige uma cancha de seis metros em solo de tabatinga. E começou a jogar.

Hoje seus parceiros são alguns primos e amigos que vivem no Passo da Mangueira e na Capela dos Cunha. Adepto do cultivo das tradições gaúchas, ele já ensinou as regras a vários alunos da Escola Municipal Vidal de Negreiros, educandário que possui um Departamento de tradições Gaúchas (DtG).

No interior, ele sobrevive

lulA HElFER/AG. ASSMANN

O truco é um jogo de cartas de origem milenar, popular em todo o Brasil. uma característica que faz dele um jogo de várias facetas é a sua variedade de regras e jogadas, que mudam conforme a região onde é praticado. Entre as variações estão o “truco mineiro”, o “goiano”, o “gaudério” e o “uruguaio”. Geralmente as variações mineira e goiana são jogadas com cartas de baralho normal ou o francês, possuindo a dinâmica do “trucco” praticado pelos italianos.

Já na região Sul, o fato mais marcante é a herança da cultura platina, presente na utilização das cartas do baralho espanhol. O mais difundido no Rio Grande do Sul é o “gaudério”. Nas regiões que fazem fronteira com o uruguai, também se pratica a modalidade “uruguaio”, igualmente conhecida como “truco de amostra”.

O truco pode ser jogado entre dois ou quatro competidores, cada um dos quais recebe três cartas. quando é apenas entre duas pessoas, chama-se truco de mano. O objetivo é o jogador e seu parceiro conquistarem 12 pontos, fazendo o máximo de barulho possível. É um jogo de artimanhas, subterfúgios e simulações, um dos raros jogos de cartas cujas regras permitem a utilização de sinais entre os parceiros. O baralho é formado por apenas 40 cartas, divididas em manilhas (que valem mais) e cartas simples.

O truco

O truco, de Juan L. Camaña, de 1852, retratando a prática na Argentina do século XIX

••Jânio proíbe

Prática que remonta à Antiguidade sobrevive na zona rural

Em 1961, após se eleger presidente, Jânio Quadros proibiu os jogos de azar em todo o território nacional, sob o argumento de “varrer” a corrupção do País. Assim como o “jogo do bicho” e a rinha de galo, o jogo do osso caiu na ilegalidade.A medida, entretanto, não conseguiu extinguir a prática. Na coluna intitulada “Nos Quatro Cantos da Cidade”, na edição de 6 de fevereiro de 1964, o jornal A Folha, de Rio Pardo, denunciava:

O jogo do osso, como todos sabem, é terminantemente proibido, menos em Rio Pardo, pois senão vejamos e vamos ao local. Estando na Rua Andrade Neves, desce-se a Rua General Osório e, na

esquina do Armazém Borba, dobra-se à esquerda indo até o fim de uma pequena rua, e ali, bem na esquina à direita, em prédio de madeira (...) encontra-se uma cancha de bocha mas que serve para o jogo do osso. Dizemos mais, lá se joga o osso livremente, e damos provas do que dissemos, porque no dia 18, às 16 horas, com um número acima de 20 espectadores (ainda bem que todos de maioridade) praticavam o osso através de fichas que eram trocadas por dinheiro, sendo as paradas de Cr$ 200,00 ou até mais.

BANCO DE IMAGENS/GS

Page 149: Rio Pardo 200 anos

148 Uma luz para a história do Rio Grande

No passado, os rios navegáveis desempenhavam importante papel para a conquista, a ocupação e a manutenção de territórios. O Rio Jacuí cumpriu função estratégica no processo de incorporação

do atual Rio Grande do Sul ao Império de Portugal. Entrando pelo Porto de Rio Grande, navegando pelas águas da laguna dos Patos e do Guaíba, chega-se ao Jacuí.

Ele se constituía em um caminho natural que possibilitava a penetração para o interior. Desde muito cedo, foi considerado suporte logístico pelos portugueses. Isso se evidencia pela preocupação em povoar suas margens, e essa ocupação teve um objetivo claramente geopolítico: através do povoamento, preservar a posse do território e arrebatá-lo dos espanhóis. Além de permitir a comunicação rápida e eficaz com as zonas fronteiriças, o Jacuí também facilitou o comércio e o escoamento da produção das vilas e estâncias que surgiram em suas margens.

A decisão portuguesa de erigir uma praça militar nas proximidades da confluência do Rio Pardo com o Rio Jacuí foi, também, de natureza geopolítica. De um lado, há que se considerar que o local ficava bem guarnecido de possíveis ataques. De outro, que os militares ali estabelecidos poderiam dar segurança para o povoamento luso que ocorria nos arredores.

No passado, rios ligavam regiões

Do final do século XVIII a meados do século XIX, a cidade de Rio Pardo foi um importante centro comercial do Rio Grande do Sul. Ali vários comerciantes, a maioria portugueses, acabaram por se fixar. Negociavam com comerciantes de grosso calibre radicados no Rio de Janeiro. Da corte provinham constantes carregamentos de secos e molhados, além de escravos.

Com isso, surgiram em Rio Pardo casas especializadas na prestação de serviços. Algumas

delas eram de

extrema relevância para carreteiros e tropeiros que, com regularidade, chegavam e saíam do povoado. O intenso comércio está umbilicalmente ligado ao transporte fluvial pelo Rio Jacuí. O incremento das trocas forçou a multiplicação das linhas de navegação entre Porto Alegre e Rio Pardo, que se converteu em ponto central de chegada e redistribuição de mercadorias que iam abastecer os bolichos e as bodegas das Missões, Campos de Cima da Serra, Campanha e Fronteira.

O Jacuí e o entreposto

ARquIVO MIGuEl COStA

O rio em meados do século XX: fundamental

para a vida da cidade

OS RiOS E AS fERROviAS

A importância dos rios para a produção de energia elétrica; o Rio Jacuí e suas barragens; a destruição dos balneários; a chegada do trem e as mudanças operadas na economia com o novo meio de transporte.

Page 150: Rio Pardo 200 anos

149Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

O Jacuí e a industrialização

Na década de 1940, era crítica a produção de energia elétrica no Estado. Isso atravancava o

desenvolvimento econômico, sobretudo da indústria e do comércio. Em 1943, para solucionar o problema, o governo estadual criou a Comissão Estadual de Energia Elétrica (CEEE), antecessora da Companhia Estadual de Energia Elétrica. No plano de eletrificação elaborado, coube um papel relevante ao potencial hídrico do Rio Jacuí.

Com cerca de 800 quilômetros de extensão, o Jacuí é o mais importante curso d’água do Rio Grande do Sul. Ele é de importância vital para o Estado e para os municípios por onde passa. Seu nascedouro se dá no Planalto Norte rio-grandense, nas proximidades de Passo Fundo. Em decorrência da natureza do relevo, apresenta em seu leito rupturas de declive e vales encaixados que lhe conferem um alto potencial para a geração de energia. Nesse seu trecho inicial de declividade foram construídas diversas usinas hidrelétricas, com suas respectivas represas (ver mapa ao lado).

>> Cotovelo do JacuíSituada no município de Victor Graeff, entrou em operação em 2000. Construída pela Cooperativa de Energia e Desenvolvimento Rural (Coprel), sediada em Ibirubá, a PCH possui capacidade instalada de 3.300 kw.

Hidrelétricas mudaram panorama energético no Estado

>> Leonel Brizola

No ano de 2005 a usina Hidrelétrica

Jacuí, localizada em Salto do Jacuí, passou a se denominar usina Hidrelétrica leonel de Moura Brizola. Ela tem potência efetiva de 180 mw e sua concessionária é a Companhia Estadual de Geração e transmissão de Energia Elétrica. Sua primeira unidade começou a operar em 1962. Possui seis grupos geradores de 30 mw, com adução realizada por túnel de 1.200 metros de comprimento e nove metros de diâmetro. A barragem Engenheiro Maia Filho forma um reservatório de 5.420 hectares e é dotada de dezessete comportas.

>>Dona francisca

Com casa de força localizada

no município de Nova Palma, possui

potência efetiva de 125 mw. É administrada pela concessionária Consórcio Dona Francisca (DFESA e CEEE). A barragem de Dona Francisca possui 51 m de altura e 610 m de comprimento.

>>itaúbaA usina de Itaúba foi inaugurada em 1978 em Pinhal Grande. Possui quatro unidades geradoras de 125 mw cada uma. A barragem forma um reservatório de 12.950 hectares. Sua concessionária é a CEEE.

>> Ernestinalocalizada no município de tio Hugo, essa PCH (Pequena Central Hidrelétrica), com potência efetiva de 3,7 mw (megawatts), se constitui no primeiro aproveitamento do Rio Jacuí. Entrou em operação em 1957.

>> Passo RealFoi inaugurada em 1973. Sua casa de força está localizada em Salto do Jacuí e possui potência efetiva de 158 kw. A Companhia Estadual de Geração e transmissão de Energia Elétrica é a sua concessionária.

Matas devastadasDepois de descer o Planalto, o Rio Jacuí corre para o leste sobre a

Depressão Central. Aí, além de fornecer água para as cidades ribeirinhas e para um grande número de lavouras de arroz, também se torna navegável para embarcações médias e pequenas. As matas em suas margens apresentavam grande diversidade de flora e fauna. Hoje estão praticamente devastadas. Seus principais afluentes são os rios Vacacaí, Pardo e taquari. O Jacuí deságua no Guaíba, onde também despejam suas águas os rios Caí, dos Sinos e Gravataí. Do Guaíba, suas águas se comunicam com o oceano por meio da laguna dos Patos.

Page 151: Rio Pardo 200 anos

150 Uma luz para a história do Rio Grande

Até meados dos anos 1940, o transporte de passageiros

e de cargas em embarcações pelos rios que cortam o interior do Rio Grande do Sul era absolutamente corriqueiro. A partir de então, entra em decadência por uma série de motivos. O principal deles foi que desde a década de 1950, com a melhoria dos automóveis, dos caminhões, dos ônibus e da malha viária, o transporte rodoviário se impôs amplamente sobre o ferroviário e o hidroviário.

No final da década de 50, a comunidade gaúcha e o setor público despertaram para a necessidade de reativação do transporte hidroviário. Foi então elaborado o Plano Hidroviário do Rio Grande do Sul, aprovado pela Resolução 16 do Conselho Hidroviário do Estado, em 29 de março de 1961.

A partir do início dos anos 70 foram executadas, com recursos públicos principalmente oriundos da união, as obras das barragens eclusadas do Anel de Dom Marco e Amarópolis, no Rio Jacuí, e Bom Retiro do Sul, no Rio taquari. Ocorreram também a dragagem e derrocamento dos canais de navegação ao longo dos rios Jacuí e taquari.

Barragem e eclusa de Amarópolis, em Santo Amaro

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Rodovia se impôsTransporte através dos rios não resistiu às facilidades do sistema terrestre

•• SubutilizadasApesar da complexidade da estrutura e dos altos investimentos, a utilização

da hidrovia está muito abaixo da capacidade. Desde o início da década de 1990, praticamente não há mais navegação com navios graneleiros, limitando-se hoje às embarcações que fazem a extração de areia ao longo do rio, barcos e canoas de pesca e de turismo.

•• Obras quase esquecidas

As obras da Barragem-ponte do fandango se iniciaram no ano de 1953. Situada junto à cidade de Cachoeira do Sul, ela foi a primeira obra de canalização construída no

Rio Jacuí. Os trabalhos foram concluídos em 1958. Essa barragem possui uma extensão de 170 metros.

A Barragem e Anel de Dom Marco se localiza 63 quilômetros abaixo da Barragem do fandango, de Cachoeira do Sul. Sua construção, iniciada em 1966, foi finalizada

em 1972. O complexo no município de Rio Pardo se constitui no segundo degrau da hidrovia do Rio Jacuí, através da criação de um remanso para navegação até Cachoeira do Sul. O barramento introduziu um desnível de 7,50 metros, transposto através de uma eclusa construída em um canal artificialmente dragado. O sistema de passagem das embarcações evita a navegação através do curso natural do rio, com cerca de 8 quilômetros, encurtando, dessa forma, o percurso naquele trecho.

A Barragem de Amarópolis, no Rio Jacuí, entre os municípios de General Câmara e Butiá, se iniciou em 1971 e foi concluída

em dezembro de 1974. Os serviços foram executados com recursos públicos, principalmente federais.Embora tenha sido a terceira barragem implantada na Hidrovia do Jacuí, ela se constitui no primeiro degrau a ser transposto pelas embarcações que se dirigem de jusante para montante do rio a partir de Porto Alegre ou do Rio Taquari, rumo a Cachoeira do Sul. A barragem eclusada de Amarópolis tornou possível a navegação pelo rio até Cachoeira do Sul. Amarópolis se encontra localizada a 74 quilômetros de Porto Alegre. Juntamente com as barragens eclusadas do Anel de Dom Marco e fandango, propicia um estirão navegável de aproximadamente 300 quilômetros ao longo do Rio Jacuí, permitindo, em qualquer época do ano, a navegação até os portos de Estrela, no Rio Taquari, Rio Grande – porto marítimo na extremidade sul da Laguna dos Patos – e Santa vitória do Palmar, no extremo sul do Estado e do País. isso proporciona cerca de 880 quilômetros de vias navegáveis interiores no Rio Grande do Sul.

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Barragem do fandango Barragem de Amarópolis

O Anel de Dom Marco

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151Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

A destruição dos balneários

O hábito de veranear à beira dos rios é relativamente recente. Até a década de 1930, apenas datas comemorativas, como a de Nossa Senhora dos Navegantes, faziam com que um grande número de pessoas fosse para as margens do Jacuí. Também os piqueniques organizados por clubes sociais atraíam grupos às suas margens durante o verão. Com o final da 2ª Guerra Mundial (1939-1945), houve uma mudança cultural intensa: hábitos e comportamentos norte-americanos passaram a influenciar o mundo inteiro. O “American Way of Life” e a maior popularização dos automóveis favoreceram a criação de praias e balneários por todo o Brasil. A cultura do lazer e a valorização dos finais de semana, como dias de folga para serem aproveitados com a família e amigos, fizeram com que esse tipo de programação se popularizasse nas classes alta e média. A Praia dos ingazeiros, por já ter uma pré-estrutura para receber banhistas, foi um dos primeiros balneários de Rio Pardo. Assim como a famosa “ilha”, que na verdade se trata de um “istmo” existente na confluência dos rios Pardo com o Jacuí. Ela passou a atrair pessoas da região, que para lá se dirigiam para descansar ou se divertir. O Jornal de Rio Pardo, em fevereiro de 1952, dedica uma página para mostrar os frequentadores e a importância dos turistas para a economia de veraneio da cidade. A reportagem revela as impressões da época quanto ao paraíso dos veranistas:

O Balneário de Porto Ferreira, a seis quilômetros do Centro de Rio Pardo, surgiu a partir da

década de 1960 como local de veraneio de famílias de Santa Cruz do Sul. Aprazível, apesar das águas profundas, é hoje muito diferente do que era há quatro décadas.

O empresário santa-cruzense Edgar Wetzel foi um dos primeiros veranistas. Ele recorda que um transportador de areia, de sobrenome Becker, sempre comentava sobre as belezas do lugar. Em 1964, Wetzel resolveu acampar às margens do rio. Voltou no ano seguinte e, em 1967, construiu sua primeira casa no balneário.

Há mais de 40 anos Edgar e a esposa Ermina e os filhos

Cláudio, Carlos, João e lurdes não deixam de frequentar o local. “No passado, íamos em dezembro e voltávamos no final de março”, lembra Cláudio. O passatempo eram os banhos de rio, aliados ao futebol e pescarias. A água para o consumo vinha das fontes naturais e a luz, dos lampiões de querosene.

O empresário conta que antes de ser construída a Barragem de Amarópolis, inaugurada em 1974, a areia da praia tinha entre 80 e 100 metros de largura e era muito limpa. O declive no rio era suave e as pessoas caminhavam por vários metros com a água batendo nos joelhos.

Com a barragem, sobrou pouco da praia. O rio ficou com o nível elevado, de forma permanente. Antes, as enchentes eram raras.

ingazeiros, na década de 1950, era ponto de encontro de frequentadores de toda a região

DIVulGAçãO/GS

Barragens determinaram o desaparecimento das praias

•• O American Way

inegavelmente, devemos nos ufanar por possuirmos este belo e aprazível recanto, onde vivemos memoráveis dias de sol abrasador, em harmonia e em uma perfeita

confraternização entre municípios vizinhos. Na nossa praia não desfilam artistas de nomeada, mas lá aparecem criaturas formosas, damas e senhoritas da mais rara beleza, representantes legítimas da mulher gaúcha.

Page 153: Rio Pardo 200 anos

152 Uma luz para a história do Rio Grande

O Vale do Rio Pardo possui grande quantidade de rios e arroios. No entanto, essas riquezas naturais podem se voltar contra o homem de um dia para o outro. Foi o que aconteceu em um sábado, 22 de novembro de 1919 – o dia em que a fúria das águas do Rio Pardinho varreu lavouras e vilas. Desde a fundação das colônias e da vinda dos primeiros imigrantes, não se tinha visto por esses lados tamanha força das águas.

Estudos da época apontam que nas cabeceiras do Pardinho, em virtude do excesso de chuvas, houve deslizamento de terras nas encostas, causando o represamento das águas. quando finalmente essas águas venceram os obstáculos para sua passagem, desceram o Rio Pardinho em ondas gigantescas e arrastaram tudo o que estivesse em seu caminho.

Além de danos materiais, notados principalmente na então vila de Sinimbu, o desastre provocou mortes. Passado quase um século, a enchente permanece na memória coletiva dos moradores da região. Oficialmente há o registro de três óbitos, mas relatos apontam que houve mais vítimas.

Varridas pela correnteza

Sinimbu tomada pelas águas em 1941

[...] imensurável o que aconteceu por lá – nem o gado que pastava na baixada teve tempo de chegar

às coxilhas. Na frente das ondas vieram pedras, árvores, terra e depois a água. Não dá para acreditar como a água pegou tal velocidade e barulho ensurdecedor. [...] A força das águas arrancou os alicerces da maioria das casas destruídas, carregando as pedras por quilômetros. Nos barrancos dos rios não há mais nada [...]

O jornal Kolonie publicou em suas páginas do dia 28/11/1919:

A Estação Ferroviária de Rio Pardo: trens pararam. Para se deslocar, só por barcos

Poucas vezes os gaúchos vivenciaram dias tão difíceis, devido a fenômenos da natureza, como os que

aconteceram em maio de 1941. Foi quando uma terrível enchente submergiu grande parte do Estado e ainda está na lembrança daqueles que presenciaram o acontecimento.

As intensas chuvas, quase que ininterruptas, iniciaram-se em 10 de abril e duraram nada menos do que 22 dias. Estima-se que cerca de 25 mil quilômetros quadrados do Estado tenham sido submersos pelas águas dos diversos rios que cruzam o Rio Grande do Sul. Cidades ficaram ilhadas, serviços de água potável e de energia elétrica foram interrompidos e também o transporte de alimentos e mercadorias. Na agricultura, os prejuízos foram enormes.

Porto Alegre foi a cidade mais atingida. Entre 10 de abril e 12 de maio, a precipitação pluviométrica na capital teria atingido 619,4 milímetros. O auge ficou conhecido como a “quinta-feira negra”, 8 de maio, quando as águas alcançaram

a marca dos 4,74m de altura na Praça da Harmonia. Os automóveis foram trocados por barcos e lanchas em pleno Centro. A Rua da Praia, a Praça da Alfândega e a Avenida Farrapos ficaram encobertas. As fábricas foram obrigadas a parar. Só na Capital houve 70 mil flagelados, um quarto da população à época.

Em Rio Pardo não foi diferente. Com a subida dos níveis dos rios Pardo e Jacuí, a cidade vivenciou dias de caos sem precedentes. A enchente de 1941 é considerada a maior inundação de que se tem notícia na região.

Rio Pardo, a exemplo da Capital, também ficou ilhada e praticamente incomunicável com o resto do Estado, que passava pelas mesmas dificuldades. As estações férreas ficaram debaixo da água e as viagens de trem foram canceladas. Só era possível chegar à cidade com o auxílio de lanchas de resgate. um boletim da defesa civil encaminhado ao governo do Estado informa que a enchente deixou 6 mil pessoas flageladas ou sem trabalho no município de Rio Pardo.

A cheia de 1941

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Durante 22 dias, choveu quase ininterruptamente no EstadoBA

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153Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

A tragédia de 1959

O mês era setembro. A região se viu em apuros com uma catastrófica cheia do Rio Pardo.

Dessa vez, foi Sobradinho que mais sofreu. No entanto, o que não ocorreu em 1941 e faz a enchente de 1959 ser lembrada por muitos, foi o número de óbitos registrados. Notícias da época apontam 64 mortes, mas seria possível se tratar de mais de uma centena. Hoje se acredita que o total de mortes esteja entre 89 e 94 pessoas.

Os dados ainda são imprecisos. As vítimas, em sua maioria, eram ribeirinhos que morreram soterrados por causa dos desabamentos de encostas. Só na localidade de Serra Velha, município de Sobradinho, foram contabilizadas 40 vítimas fatais por causa de desmoronamentos. A região chamada de Costa do lajeado também perdeu um grande número de seus moradores. Costa do Rio Pardo e Roncador igualmente registraram mortes. A cidade de Candelária quase nada sofreu, pois as águas atingiram apenas

A ponte sobre o Rio Jacuí, em Rio Pardo, foi a primeira a ser construída na região e permitiu que populações inteiras chegassem à Capital, via rodoviária, sem precisar se utilizar de balsa. Inaugurada em 24 de novembro de 1957, ganhou, por decreto estadual, o nome de Gomes Freire de Andrade. A data da inauguração foi muito especial para Rio Pardo porque, no mesmo dia, também foi inaugurado o Frigorífico da Cooperativa Pastoril de Rio Pardo (onde hoje funciona o Frigorífico três C), além de reinaugurada a Praça Protásio Alves (na frente da Igreja Matriz) e o monumento ao Dr. Pedro Borba, na mesma praça. trinta e três anos depois, em 23 de setembro de 1990, um fato surpreendente marcou a vida dos moradores e determinou, por dois anos, o retorno da balsa.

O barco Alazão, que ia de Cachoeira do Sul em direção ao Porto de Rio Grande com um carregamento de trigo, chocou-se contra dois pilares e derrubou 150 metros da ponte. A principal causa teria sido a correnteza do rio que, naquela ocasião, era intensa. O acidente ganhou proporções graves, pois deixou Rio Pardo sem comunicação física com os municípios de Pantano Grande, Encruzilhada do Sul, Butiá e outros.

Uma ponte sobre o Jacuí

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Corpos foram encontrados soterrados

Águas levaram destruição à região de Sobradinho, causando pelo menos 64 mortes

No meio do rio, ponte havia desaparecido

a parte baixa do Arroio Molha Grande, mas houve muito transtorno para os moradores.

Com a baixa das águas, o cenário era de destruição e tristeza. Em razão do número de mortos e a

urgência da situação, não havia como se fazer velórios. As almas eram encomendadas e os corpos enterrados em valas comuns. Fotos da época mostram o triste cenário.

•• Abobado

Mas não são apenas de tragédias as lembranças que ficaram da enchente de 1941. Dizem que a expressão “abobado da enchente” teria surgido nessa época e logo se incorporado ao vocabulário dos gaúchos.

O trauma da enchente de 1941 fez com que, em Porto Alegre, diversas obras fossem realizadas, como a formação de diques e barragens em cursos de água que formam a bacia do Guaíba e a canalização e desvio de arroios. O Muro da Mauá, construído entre 1971 e 1974, foi, inegavelmente, a obra de maior polêmica. De um lado, com aquele paredão de concreto se pretendia barrar as águas do Guaíba quando em período de cheias. De outro, o muro praticamente separou da cidade e de seus moradores o belo cenário do rio e de sua margem.

•• Muro da Mauá

Page 155: Rio Pardo 200 anos

154 Uma luz para a história do Rio Grande

Em 1873, um decreto imperial autorizava a construção de uma ferrovia até uruguaiana. Por via fluvial se chegaria a Santo Amaro e dali, até a fronteira, haveria o trem. A opção por iniciar a estrada em Santo Amaro incomodou Rio Pardo. Em documento enviado à Princesa Isabel, em 1877, os vereadores pediam que a ferrovia começasse na Cidade Histórica. E justificavam: a obra traria economia ao tesouro, pois reduziria em cerca de 80 quilômetros o percurso; abriria a possibilidade de o leito do Jacuí ser melhorado para a navegação e ainda seria um impulso ao “desenvolvimento e prosperidade das fontes de riqueza pública que possui este importante e futuroso município, berço de tantos heróis que tanto têm contribuído para a grandeza e riqueza do Império”.

Os pedidos da Câmara Municipal não sensibilizaram o governo imperial. A notícia de que Pedro II autorizara a extensão que ligaria Santo Amaro a Cachoeira do Sul decepcionou os rio-pardenses.

Foram construídas, quase que simultaneamente, duas estações: a de Rio Pardo e a de Ramiz Galvão. Ambas foram inauguradas no dia 7 de março de1883. A estação Rio Pardo, desde seus primeiros meses de funcionamento, já recebia muitos passageiros e mercadorias. Ramiz Galvão era responsável por concentrar o escoamento da produção regional.

Com a modernização das rodovias e aeroportos, os trens passaram a perder importância na região. A estação Rio Pardo fechou em1982. A de Ramiz, praticamente no mesmo período.

O governo da Província do Rio Grande do Sul dá início ao sistema ferroviário ligando Porto Alegre a Novo Hamburgo – a próspera zona colonial alemã com a Capital. A cargo de uma empresa inglesa, as obras começam em 1871. A primeira parte da estrada, com 33 quilômetros, da Capital a São leopoldo, é inaugurada em 1874. Em 1876 a ferrovia é estendida a Novo Hamburgo e em 1903, à cidade de taquara. Em 1922, atinge Canela.

Em 1884, atendendo aos anseios do setor pecuário-charqueadista, foi inaugurada a ferrovia Rio Grande–Bagé. Posteriormente, essa linha foi prolongada até Cacequi, interligando-a com a estrada de ferro Porto Alegre-uruguaiana.

O engenheiro carioca João teixeira Soares propõe implantar uma ferrovia colonizadora entre Santa Maria e Itararé (SP), em uma extensão de 1.403 quilômetros. Nasce assim a estrada de ferro São Paulo-Rio Grande, iniciada em 1890. quinze anos depois de colocados os primeiros trilhos, apenas 600 quilômetros estão abertos ao tráfego, em trechos isolados do Rio Grande do Sul e de São Paulo. A partir de 1906, com a entrega da concessão à Brazil Railway Company, do milionário americano Percival Farquhar, o ritmo da obra se acelera. A empresa cumpre sua parte do contrato e termina a estrada de ferro no prazo marcado, em 17 de dezembro de 1910.

Na República Velha, o governo gaúcho encampa as ferrovias que eram controladas por empresas estrangeiras. Surge, em 1920, a estatal gaúcha Viação Férrea do Rio Grande do Sul (VFRGS). Em 1959, a VFRGS é incorporada à Rede Ferroviária Federal S. A. (RFFSA).

A primeira linha

Olha o trem!Ferrovias determinam agilidade no transporte de pessoas e mercadorias

Santo Amaro vence a disputa

um dos mais importantes “filhos” da Revolução Industrial ocorrida no século XVIII foi, sem dúvida, o trem. uma nova era econômica se

aproximava, onde o mundo aos poucos

foi

diminuindo distâncias e começando, ainda que modestamente, o fenômeno que hoje se conhece por globalização.

Economicamente, até a trágica Guerra do Paraguai, o Brasil passara por um grande desenvolvimento. O governo de D. Pedro II começava a se preocupar com a logística de transporte de mercadorias e de pessoas. No ano de 1854 era inaugurada a primeira linha ferroviária brasileira, que ligava Petrópolis ao Rio de Janeiro.

No Rio Grande do Sul, o crescimento econômico na segunda metade do século XIX e a necessidade de escoamento mais ágil da produção motivaram o surgimento da malha ferroviária. Além disso, a ferrovia

iria representar uma forma eficaz de transporte de soldados – aspecto

fundamental na defesa das fronteiras e que, por si só, já justificava a

construção da estrada ligando Porto Alegre a uruguaiana,

na divisa com a Argentina.

Page 156: Rio Pardo 200 anos

155Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

Estação virou Centro de Cultura

A ferrovia chega a Santa Cruz

Desde 1872, líderes santa-cruzenses sonhavam com uma estrada de ferro para despachar a produção das áreas coloniais adjacentes. Vários projetos, que teimavam em não sair do papel,

foram feitos. Finalmente, em 28 de maio de 1904, em Porto Alegre, foi assinado o contrato de 32 cláusulas que marcou o início dos trabalhos de construção do ramal ferroviário que ligava a Estação do Couto (atualmente Ramiz Galvão, em Rio Pardo) com a então Vila de Santa Cruz.

O ramal pertencia ao tronco ferroviário Porto Alegre-uruguaiana e foi construído e inicialmente explorado pela empresa belga Compagnie Auxiliaire des Chemins de Fer au Brésil. O último trilho dos 35 quilômetros no ramal Couto–Santa Cruz foi colocado no dia 22 de setembro de 1905. No mesmo dia, às 16 horas, o primeiro trem – operando em caráter experimental – chegou à vila e foi saudado por uma grande multidão.

A partir de 15 de novembro, o tráfego ferroviário se tornou regular. A inauguração oficial do ramal ocorreu somente em 19 de novembro de 1905, um domingo à tarde. A solenidade de recepção estava marcada para as 15 horas. Porém, o trem que trazia as

autoridades estaduais apontou somente às 17h30. Perante a multidão, o presidente do Estado, Antônio Augusto Borges de Medeiros, elevou a Vila de Santa Cruz à categoria de cidade. Após a inauguração, a comitiva e a população se dirigiram ao Prado para saborear um churrasco. Os festejos e comemorações prosseguiram à noite e durante o dia seguinte.

Inicialmente, quem usava o trem para viajar de Santa Cruz a Porto Alegre ia até Margem (General Câmara). De lá, a viagem até a Capital prosseguia em um vapor. No regresso ocorria o inverso: primeiro por via fluvial e depois, de Margem a Santa Cruz, por trem. O trecho entre Santa Cruz e Ramiz Galvão era percorrido pela maria-fumaça em uma hora e meia. No trajeto, havia paradas no Hildebrand e em Rincão Del Rey. Os vagões, além de passageiros, transportavam mercadorias.

O apito da maria-fumaça e depois também do carro-motor de passageiros se fez ouvir até 1965, quando o ramal, considerado antieconômico, foi extinto, provocando comoção geral. Já em 1963, havia ocorrido uma parada de quatro meses. uma grande mobilização regional conseguiu recolocar o trem nos trilhos, mas só por mais dois anos.

••Trinta anosA ferrovia Porto Alegre–Uruguaiana surge com o objetivo principal de garantir a fronteira oeste do Rio Grande do Sul. A linha principal levou 30 anos para ser concluída – de dezembro de 1877 a dezembro de 1907. Em 1883 parte da ferrovia, de Margem do Taquari até Cachoeira do Sul, é liberada ao tráfego. Dois anos depois, os trilhos chegam a Santa Maria. Somente em 1907 o trem passa a apitar em Uruguaiana e, em 1910, Porto Alegre é integrada à linha. Com o passar do tempo, essa linha vai ficando insuficiente e então são criados diversos ramais.

Ramal foi inaugurado em 1905 e coincidiu com a elevação da vila à condição de cidade

Os trabalhos de construção do complexo da Estação Ferroviária de Santa Cruz estiveram sob a orientação de Henrique Schütz. Junto com o prédio principal – o da estação – foram edificados o armazém, o abrigo da locomotiva, um poço

de 30 metros de profundidade e uma plataforma giratória para direcionar a locomotiva, já que o local era o final da linha.

Extinto o ramal ferroviário, a área da estação foi condenada ao abandono. Em 1970, a Prefeitura de Santa Cruz comprou o

imóvel da Rede Ferroviária Federal ao preço de 150 mil cruzeiros. Posteriormente o prédio foi restaurado e hoje sedia o Centro de Cultura Jornalista Francisco J.

Frantz.

Inauguração da Estação de Santa Cruz,

em 1905

Page 157: Rio Pardo 200 anos

156 Uma luz para a história do Rio Grande

O trem também foi decisivo para o crescimento de Cachoeira do Sul. Sua chegada, em 7 de março de 1883, aproximou Cachoeira de centros maiores e facilitou o escoamento da produção, especialmente o charque e o arroz, conforme explica a professora Mirian Ritzel, diretora do Núcleo de Cultura. Além disso, a população passou a viajar mais e muitos jovens puderam estudar em Porto Alegre. Em volta da estação, no Centro da cidade, formou-se um conglomerado comercial, industrial e bancário.

A exemplo de Rio Pardo, a linha férrea colocou Cachoeira no circuito de grandes eventos culturais. Grupos de teatro, artistas e companhias líricas argentinas, que iam se apresentar em Porto Alegre, paravam na cidade por vários dias. Em 1975 foi demolida a Estação Cachoeira, um marco na história do município. “Infelizmente, na época, não havia a consciência preservacionista que existe hoje” , lamenta Mirian Ritzel.

Cachoeira do Sul

A estrada que não saiuSanta Cruz–Cruz Alta seria construída sem recursos do Estado, mas capital não foi levantado

INOR/AG. ASSMANN

•• Trilhos da Bélgica

Os trilhos do ramal ferroviário Ramiz Galvão–Santa Cruz provinham da Bélgica. A locomotiva que inicialmente fazia o percurso era alemã. Entre os homens que trabalhavam diretamente no trem havia o cobrador, que fazia a verificação e cobrava a passagem; o foguista, que cuidava do fogo – a locomotiva funcionava com lenha e carvão de pedra, que provinha de São Jerônimo – e o maquinista, que cuidava da pressão da caldeira e conduzia a máquina.

Em agosto de 1928, o engenheiro Augusto Carlos legendre assinou contrato com o governo gaúcho para construção, uso e gozo de uma ferrovia que, partindo de Santa Cruz, ia até Cruz Alta. A estrada de ferro, em uma extensão

de 220 quilômetros, seria construída pelo concessionário ou companhia que organizasse, sem ônus para o Estado. A exploração da estrada se daria no período de 60 anos após a inauguração. O capital necessário para a obra estava calculado em 41.220 contos de réis. Previa-se que os principais produtos que seriam

transportados pela ferrovia seriam fumo, batata, milho, banha, trigo, arroz, feijão e madeiras mais nobres.

A estrada seria dividida em três partes: a primeira, de Santa Cruz a Candelária, teria seis estações; a segunda, de Candelária a Margem do Rio Jacuí, com 120 quilômetros, teria 12 estações; a terceira, do Jacuí a Cruz Alta, teria 70 quilômetros e mais três estações.

O concessionário não conseguiu levantar o capital necessário para o empreendimento. talvez a crise de 1929 e a grande depressão econômica da década de 1930 tenham colaborado nisso. Se a ferrovia tivesse sido construída, possivelmente muitas localidades por onde a estrada passaria poderiam ter tirado proveito de sua existência e se desenvolvido em um ritmo bem mais intenso. Certamente, Rio Pardo também teria benefícios, pois ali haveria um importante entroncamento ferroviário.

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157Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

A s estações ferroviárias do Centro e de Ramiz Galvão marcaram a vida dos moradores da região e a história de Rio Pardo. Ramiz, que também era a sede da cooperativa dos

ferroviários, mesmo sendo

Estação de Ramiz, que já foi uma das mais movimentadas da região, hoje é silêncio

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uma vila, tinha ares de cidade. O movimento era intenso e o comércio era forte, havia hotel, bares e até cinema, conforme conta a professora aposentada Maria de lurdes Müller Iserhardt. Filha do agente ferroviário de Ramiz Galvão, Arlindo

Godofredo Müller, ela conviveu com os trens e o burburinho que ocasionavam. Gente de

todos os lugares passava e a força dos ferroviários se expressava tanto na

política quanto na economia. Ali eles faziam suas compras, com

desconto em folha. O enorme mercado fornecia desde mantimentos até bijuterias, além de

trajes (fatiotas, vestidos e sobretudos) para os associados.

Os ferroviários eram politizados e a categoria realizou várias greves no País. Maria Iserhardt destaca a importância da ferrovia para a economia de Rio Pardo. Os trens traziam e levavam visitantes, novidades, facilitavam os negócios e ajudavam a difundir a arte e a

cultura. A estação do Centro

de Rio Pardo, que foi restaurada e abriga a Secretaria de turismo e Cultura, era uma referência no município. A de Ramiz Galvão, que no início era chamada de Estação do Couto, está fechada há vários anos.

Em torno das estações e das ferrovias, até a vida política pulsava mais

•• A RffSAEm 1957 surgiu a Rede ferroviária federal S.A., uma empresa de economia mista. foram então reunidas 22 ferrovias brasileiras, dentre as quais a malha da viação férrea do Rio Grande do Sul. No fim de 1996, a RffSA foi privatizada. foi vencedora do leilão de desestatização da malha sul da RffSA, a empresa América Latina Logística do Brasil.

O trem encurta as distâncias

•• Peixe fritoAs duas estações ferroviárias fazem parte da história rio-pardense. Em torno delas, floresceu o comércio. E muitas famílias aproveitaram o movimento para reforçar sua renda, vendendo produtos aos viajantes. Se no Centro faziam sucesso os famosos sonhos de Rio Pardo, em Ramiz as famílias ganhavam dinheiro vendendo peixe frito. As mães preparavam lambaris e pintados e os filhos iam vender na plataforma.

Page 159: Rio Pardo 200 anos

158 Uma luz para a história do Rio Grande

No século XVIII, os Açores já possuíam uma população suficientemente grande para que a Coroa portuguesa incentivasse a emigração de famílias açorianas para terras brasileiras, sobretudo para a parte

meridional. Já em 1716, o governo de Portugal introduz 60 casais açorianos na Colônia do Sacramento, possessão portuguesa localizada na margem esquerda do Rio da Prata, bem em frente a Buenos Aires.

Em 1747, um ambicioso plano – que não chegou a se concretizar – é traçado para povoar o Sul do Brasil. Prevê-se a transferência de até 4 mil casais de açorianos e madeirenses. Os chamados “casais de número” ou “casais d’El Rey” começam a chegar ao litoral de Santa Catarina em 1748.

No Rio Grande do Sul, inicialmente estava previsto que povoariam os Sete Povos das Missões. Com a Guerra Guaranítica (1754-1756), casais açoritas vão vagando e se estabelecendo nas cercanias da Vila de Rio Grande e dos Campos de Viamão.

Em 1755, algumas dezenas de casais açorianos estacionaram em Rio Pardo. Dali, algumas famílias são deslocadas para Encruzilhada e outras para Cachoeira. As poucas famílias que se radicaram em Rio Pardo foram assentadas em terras situadas entre os arroios Couto e Diogo trilha, na denominada Rua Velha. Em 1782, por não possuírem títulos de propriedade para apresentar, esses mesmos açorianos sofreram ação de despejo.

Açorianos, o mito

•• Onde ficaOs Açores são um arquipélago formado por nove pequenas ilhas localizadas no nordeste do Oceano Atlântico, a cerca de 2 mil quilômetros da Península ibérica. O povoamento das ilhas de Açores se iniciou em 1439, sobretudo com elementos portugueses e também flamengos.

PROJETOS COLONizATóRiOS

Sem a mão de obra escrava, Brasil promove a vinda de imigrantes; alemães são os primeiros, seguidos pelos italianos e outros; cultura peculiar surge a partir da integração entre os colonos e as populações locais.

Page 160: Rio Pardo 200 anos

159Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

No Brasil, o governo central, algumas das unidades federadas, alguns municípios e a iniciativa privada promovem, durante o século XIX e

boa parte do século XX, uma massiva imigração para o território nacional. A política imigratória brasileira oscila entre dois projetos distintos: um, originado do desejo da casa real e de alguns liberais do Império, que propõem a instalação de pequenos proprietários rurais nos vazios demográficos do País. Mais especificamente na sua porção meridional, com o objetivo de sustar a cobiça dos vizinhos platinos sobre a área. O outro, relacionado com a ambição dos grandes fazendeiros de café, interessados na manutenção da política agrária calcada na grande propriedade e na agricultura de exportação.

Os cafeicultores objetivam a imigração em larga escala como forma de prevenir ou minorar a escassez da força de trabalho no complexo cafeeiro, o que passa a ser vislumbrado mais concretamente a partir de 1850, com a extinção do tráfico negreiro.

Assim, expressiva parcela de imigrantes de origem étnica italiana, espanhola, portuguesa, alemã, japonesa e de outras nacionalidades, que é atraída para o Brasil, destina-se ao trabalho nas lavouras de café. A perspectiva de suspensão do tráfico negreiro e, posteriormente, da abolição da escravidão estimula a iniciativa pública e a privada a substituírem, gradualmente, o trabalho compulsório do escravo pelo do imigrante assalariado.

Parcela minoritária dos imigrados é direcionada ao Sul do Brasil, para que ocorresse o povoamento e a colonização. Nessas áreas, os imigrantes e seus descendentes desenvolvem explorações agrícolas relativamente independentes da economia cafeeira, mediante a intensiva utilização da força de trabalho familiar. As primeiras levas de estrangeiros começam a chegar ao Rio Grande do Sul a partir de 1824. Posteriormente as regiões existentes no Rio Grande do Sul, em Santa Catarina e no Paraná, além da população de origem germânica, recebem também imigrantes de origem italiana, polonesa, judaica e de outras nacionalidades.

Imigração europeia

A contribuição açoriana no Rio Grande do Sul foi nitidamente exagerada por alguns historiadores. O professor Moacyr Flores afirma que o fluxo açorita para o Estado foi pequeno e de curta duração. Por serem pobres e sem maior instrução, teriam perdido suas raízes.

No que tange à arquitetura, esclarece que “o que se aponta como casas

açorianas no interior de Santo Antônio, Porto Alegre, Viamão e Rio Pardo são, na verdade, casas de arquitetura popular portuguesa, existentes em Portugal e nos Açores”.

Como o Arquipélago de Açores fazia parte dos domínios do reino de Portugal, os açorianos não são considerados propriamente como imigrantes.

Alemães vieram primeiro

A vinda organizada de alemães para o Rio Grande do Sul começou em 1824, quando, no dia 25 de julho, o primeiro grupo de 43 imigrantes chegou à Real Feitoria de linho Cânhamo (Feitoria Velha), atual cidade de São leopoldo. De 1824 a 1830, quase cinco mil alemães foram recrutados a mando do governo imperial, que queria colonos para produzir e soldados para defender as fronteiras meridionais. O governo ofereceu uma lista grande de vantagens, que não foram integralmente cumpridas. Muitos imigrantes acabaram fracassando, abandonaram suas terras e saíram em busca de sobrevivência até mesmo em repúblicas vizinhas.

A partir de São leopoldo a colonização se desenvolveu, ocupando rapidamente as extensas áreas ribeirinhas dos rios dos Sinos e Caí, em torno de Estância Velha, Hamburgo Velho, Dois Irmãos, Bom Jardim e São José do Hortêncio. Em 1830, quando já haviam entrado 4.856 imigrantes, o governo imperial interrompeu o fluxo de colonização. logo depois, em 1835, eclodiu a Revolução Farroupilha, a colônia ficou destruída e as imigrações só voltaram à pauta dez anos depois. A partir de 1848, o processo de colonização passou a ser realiza-do pela Província. Novas colônias foram então criadas pelo governo, dentre elas a de Santa Cruz, a de Monte Alverne e a de Santo Ângelo.

Razão foi trabalho na lavoura cafeeira e ocupação de vazios demográficos

Contribuição exagerada

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Margens do Rio Elba, por volta de 1850, na atual Alemanha

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160 Uma luz para a história do Rio Grande

D esde os tempos mais antigos, cidadãos alemães vieram isoladamente para o Brasil, pelos mais diferentes motivos. Antes de 1824, quando começou oficialmente a imigração organizada para a Província, pelo menos um grupo germânico

teria desembarcado na Ilha do Desterro (atual cidade de Florianópolis), em Santa Catarina, na última década do século XVIII. Não eram colonos recrutados, mas apenados despachados da prisão de Güstrow, em Mecklenburg. Eles teriam se espalhado pelo Sul do Brasil, também chegando ao Rio Grande. Alguns formaram bandos para pilhar igrejas e casas abandonadas, outros se encontraram com a civilização e se casaram com mulheres nativas. Há até a história de um tesouro escondido por eles no Vale do Sinos, produto dos seus roubos, que teria sido encontrado por um alfaiate de nome Jung, em Estância Velha. Para uns isso é fato histórico, mas para outros não passa de lenda.

O jornal Deutsche Zeitung, de Porto Alegre, publicou em 1910 que “o primeiro imigrante alemão livre conhecido foi Nicolau Becker. Natural de Mettnich, chegou em 1797, vindo de Hamburgo. Durante a viagem casou-se, em Rio Grande, com Ângela Kramer. Contava na época 31 anos e, ao falecer, deixou dez filhos, 41 netos, 136 bisnetos e 14 trinetos.” Fixou-se em São leopoldo com um curtume, empresa continuada pelos descendentes de várias gerações. um deles abriu um negócio de couro no Centro de Porto Alegre.

uma história fantástica é relatada pelo padre theodor Amstad no livro do Centenário da Colonização Alemã no RS (1924). O comerciante Johann Gräbin, da Picada dos Portugueses (atual São José do Hortêncio), contou que seu pai e dois dos seus irmãos vieram a pé da Bahia ao Rio Grande do Sul, em 1822. Andaram cerca de 3 mil quilômetros e, segundo eles mesmos narraram, “certo dia, cansados da longa marcha, alcançamos um mato com muita sombra. Na entrada do mato havia um tronco de árvore convidando para o descanso. Mal nos tínhamos sentado, a árvore começou a se mexer debaixo de nós – era uma cobra gigante”.

No Brasil, porvárias razões

Passo do Rio Pardinho, provavelmente próximo de onde hoje se localiza a ponte, em Linha Sete de Setembro

••Colônia de Santa Cruz

Em 1848, através da Lei nº. 514, de 28 de outubro, o governo do império delega às províncias maior participação no processo de povoamento do País. A lei prevê que o império cederia a cada uma das províncias seis léguas quadradas de terras devolutas, para fins de colonização. No vale do Rio Pardo, a colonização germânica se inicia pela colônia de Santa Cruz, que se constitui na primeira colônia fundada e gerida pela Província de São Pedro. Ali, os primeiros colonizadores chegam a partir de 19 de dezembro de 1849 e são assentados no local atualmente denominado de Linha Santa Cruz (Alt Pikade), nas margens da então recém-aberta Estrada de Cima da Serra – caminho que deveria ligar o entreposto comercial de Rio Pardo com os campos de gado localizados na região de Soledade. Aos assentados na colônia são concedidos distintas regalias e vários benefícios, e exigidos diferentes compromissos. Os que chegam antes da Lei Provincial nº. 229, de 1851, recebem gratuitamente 77 hectares de terra, sementes e instrumentos agrícolas, além de um subsídio em dinheiro que depois deveria ser restituído. Os que vêm sob a égide da Lei 229 passam a receber lotes de 48,4 hectares, sementes e instrumentos agrícolas. Já os que aportam após a promulgação da Lei nº. 304, de 1854, precisam pagar o seu prazo colonial, procedimento ao qual também estão sujeitos os que se radicam nas colônias particulares. Assim, em uma mesma picada se encontravam, lado a lado, colonos com diferentes obrigações para com a Província. Tendo como mais importantes mercados as cidades de Rio Pardo e a capital da Província, Santa Cruz progrediu rapidamente, não obstante as precárias estradas para o escoamento da produção.

Monumento ao Imigrante

Antes da imigração oficial, alemães já andavam pelo País

ACERVO JORGE CuNHA

Page 162: Rio Pardo 200 anos

161Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

•• O avanço mato adentro

Localizada próxima a Rio Pardo, surge em 1850 – portanto na mesma época da fundação de Santa Cruz – a colônia particular de Rincão Del Rey, com colonos provenientes, em sua maioria, de São Leopoldo.

Lei provincial de 30 de novembro de 1855 cria a colônia de Santo Ângelo. Essa área abrange atualmente os municípios de Agudo, Paraíso do Sul, parte de Dona Francisca e Cachoeira do Sul e Cerro Branco.

Criada pelo presidente da Província a 8 de fevereiro de 1859, Monte Alverne ficava contígua à colônia de Santa Cruz, mas situada em terras do município de Taquari. Sem estradas para o escoamento da produção e pouco atendida em suas reivindicações, enfrentou dificuldades para se desenvolver.

Da Picada Velha a colonização em Santa Cruz se expande na direção de Rio Pardinho, Dona Josefa, Linha Andréas, Sinimbu, Vila Tereza e Ferraz.

Uma vez ocupadas as terras devolutas, áreas de particulares são loteadas dando origem, dentre outras, a Rio Pardense, Faxinal de Dentro, Colônia Germânia (Candelária), Entre-Rios, Formosa, Trombudo, Pomerânia, Chaves, Linha João Alves, Cerro Alegre, São João da Serra, Pinheiral, Linha Nova e outras. As colônias particulares eram bancadas pela iniciativa privada que, via de regra, adquiria as terras, abria picadas, media os lotes e os vendia.

Page 163: Rio Pardo 200 anos

162 Uma luz para a história do Rio Grande

Buff preferia Rio PardoJohann Martim Buff,

usualmente denominado João Buff, é personagem conhecido por Rio Pardo. João nasceu na Alemanha, na localidade de Rödelheim (próximo a Frankfurt), em 1780. Veio para o Brasil em 1824, alistando-se como oficial no Regimento de Estrangeiros, recém-instalado pelo Imperador D. Pedro I. Logo o regimento foi remanejado e se transformou no 27º e 28º Batalhões de Caçadores. Neste, Buff foi nomeado capitão.

A guerra das Províncias Unidas do Rio da Prata (1825-1828) fez com que esses batalhões se mobilizassem para o Sul. Johann participou dessa campanha, tendo lutado inclusive na famosa batalha do Passo do Rosário, em fevereiro de 1827. Terminado o conflito, inúmeros oficiais se desmembraram do batalhão e permaneceram na Província. Com Buff não foi diferente e ele acabou escolhendo Rio Pardo como seu novo lar.

Instalado na “Tranqueira”, casou-se com Josefina de Melo Albuquerque e iniciou sua atividade no ofício de agrimensor e engenheiro. Um de seus primeiros trabalhos foi a planta da Vila de Nossa Senhora do Rosário de Rio Pardo (1829). Foi

também engenheiro do projeto da Ponte do Couto. Mas sua obra mais conhecida na cidade é, sem dúvida, o projeto que deu origem primeiramente ao Hospital da Irmandade dos Passos, mais tarde

transformado em prédio da Escola Militar e, posteriormente,

no Centro Regional de Cultura.Martim Buff também foi diretor

da colônia de Santa Cruz. Nos seus relatórios, reclamava das dificuldades enfrentadas pelos colonos, que viviam sempre “incomodados e doentes” – em grande parte por causa da saudade, da penosa viagem pelo mar, em que não costumavam ser bem tratados, e das condições adversas de vida imperantes na colônia.

Apesar disso, e por morar em Rio Pardo, com toda a precariedade de comunicação, o diretor “ausente” não escapou de duras críticas. O agente de colonização Peter Kleudgen acusou Buff de prejudicar e oprimir os colonos, e pediu a sua demissão.

Plantas do hospital, que hoje é o Centro de Cultura de Rio Pardo, teriam sido executadas por João Buff

Nas regiões de colonização germânica do Sul do Brasil – e o mesmo pode ser dito em relação à colonização italiana – não ocorreu uma

mera reprodução da cultura europeia. Há de se levar em consideração que as tradições, a língua, o credo religioso e os usos e costumes variavam de região para região dos locais de onde procediam os imigrantes. Nas áreas colonizadas surgiu, na realidade, uma cultura peculiar, de características próprias, que pode ser denominada de colonial. Ela reuniu e fundiu algumas tradições trazidas por imigrantes de diferentes procedências, metamorfoseou outras e incorporou e modificou traços culturais já existentes no Rio Grande do Sul, em Santa Catarina e no Paraná.

O abandono das indumentárias seculares típicas das regiões de origem dos imigrantes; a adoção do chimarrão como bebida; o uso da farinha de milho, do arroz, do feijão preto, da mandioca; o hábito de se locomover a cavalo; o estilo da construção das casas e a prática de uma agricultura denunciada pelo geógrafo alemão Léo Waibel como cabocla, são alguns dos elementos que sinalizam que os colonos tiveram de forjar para si novas regras de vida e de conduta aqui na América. A própria língua falada nas áreas de colonização do Sul do Brasil, que cada vez mais foi se afastando do alemão e do italiano padrão, é outro elemento que reforça a tese da existência de uma cultura muito peculiar.

Cultura peculiarTradições se fundem na colônia

INOR/AG. ASSMANN

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163Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

A santa-cruzense Valesca de Assis narra uma história de amor trágica em A valsa da Medusa, romance publicado em 1989.

Tristan Waldwogel é um soldado Brummer que, ao invés de retornar à Europa, decide se fixar na colônia de Santa Cruz, na segunda metade do século XIX. Lá ele conhece Frau Pauline, por quem se apaixona.

No trajeto à colônia alemã, Tristan desembarca no porto de Rio Pardo, em

companhia de um estrangeiro ilustre: o médico alemão Robert Avé-Lallemant, que publicará suas impressões sobre a terra e a gente de São Pedro no livro Viagem à Província do Rio Grande do Sul. O encontro é pura ficção. Lallemant, na descrição de Valesca, é um homem “de fino trato”, entusiasmado e falante, que passa boa parte do tempo fazendo anotações em uma caderneta.

Tão falante mostrava-se Lallemant que, antes mesmo de iniciarem a subida do rio jacuí, Tristan

já sabia que seu companheiro de viagem era médico, natural de Lubeck, tendo clinicado por dezessete de seus quase cinquenta anos no Rio de Janeiro. O que fazia no Sul? Inspecionava as colônias germânicas. A bem da verdade, não era um inspetor oficial, embora trouxesse cartas de autorização do Ministro da Guerra e do Presidente da Província. (...)

Naquela altura da conversa, avistaram Rio Pardo: as ruas bem traçadas, o centro da cidade na parte mais alta, com a igreja, o arsenal e os prédios da administração protegidos por confortáveis solares que abriam janelas para o porto.

Um encontro criado pela ficção

O professor Jorge Luiz da Cunha, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), ressalta uma característica da sociedade no Sul do Brasil que os textos acadêmicos exploram pouco. Trata-se da diversidade das etnias e culturas que imigraram,

que não nasceram brasileiras, mas brasileiras se tornaram. “É uma história que começa no século XIX e continua até nossos dias”, diz. No início, os protagonistas eram alemães natos. Depois foram os descendentes, que contribuíram significativamente para a colonização de todo o norte do Rio Grande do Sul, oeste

de Santa Catarina e Paraná.Um aspecto histórico citado por Jorge Cunha, que pode ajudar a explicar a importância dos imigrantes, se refere à variedade de modos de fazer e de se organizar para o trabalho e a produção. “A organização das unidades de produção e consumo de base familiar, voltadas à produção de alimentos, apresenta-se como alternativa local e regional sustentável para a economia capitalista tradicional, não raro excludente e agressiva”, diz. A cultura é outro ponto importante. “Do erudito ao popular, na música, na literatura, na poesia, inúmeras são as contribuições dos teuto-brasileiros”, comenta Cunha.

A contribuição do imigranteAlemães introduzem na Província uma organização do trabalho e da produção que até então era desconhecida

•• Carlos Schwerin

Carl August Maximilian Alexander von Schwerin nasceu em Anklam, Pomerânia, em 22 de março de 1824. Depois de participar da fracassada Revolução Liberal ocorrida na Alemanha em 1848, transferiu-se para a Província de São Pedro em 1849. Aqui trabalhou como engenheiro e agrimensor. Era formado pela Universidade de Greifswald. Casou com Clara Textor em 1859. Naturalizado, tornou-se cidadão brasileiro e participou ativamente da política em Rio Pardo. Foi juiz de Paz da Freguesia de Santa Cruz e diretor da colônia entre 1859 e 1863. Exerceu a vereança em Rio Pardo, tendo presidido a Câmara nos anos de 1866, 1867 e 1868.Faleceu na Cidade Histórica em 8 de fevereiro de 1870, de tétano, mas foi sepultado em Santa Cruz.

Valesca de Assis

Centro de Santa Cruz na década de 1870

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164 Uma luz para a história do Rio Grande

Os senhores da Serra

A partir de 1875, principia a imigração italiana na Província de São Pedro, encerrando o ciclo quase exclusivo da colonização alemã. Tomando

vulto, ela rapidamente supera a cifra dos alemães entrados no Rio Grande do Sul. Rompida a uniformidade étnica dos imigrantes, aos alemães e aos italianos passam a se juntar também poloneses e representantes de outras nacionalidades.

A área da Província ocupada pelos imigrantes italianos se situa ao norte da região pioneira de colonização alemã, ou seja, na região montanhosa – a Serra. Comparando a colonização alemã com a italiana, pode-se afirmar que a primeira se estendeu por um período de tempo bastante extenso, embora fosse reduzido o número de imigrantes. Já a colonização italiana deu-se bem mais rapidamente, a ponto de ser avaliado em 68 mil o número de ingressos somente entre 1876 e 1894.

Os imigrantes italianos são inicialmente assentados nas colônias imperiais Conde d’Eu, Dona Isabel – hoje municípios de Garibaldi e Bento Gonçalves –, e depois também em Fundos de Nova Palmira, posteriormente denominada de Caxias. Em 1877 o governo funda, nas terras de mata próximas a Santa Maria, uma quarta colônia para assentar imigrantes italianos. Surgia, assim, Silveira Martins. A imigração italiana e a migração de descendentes de imigrantes italianos, sempre crescentes, vão se expandindo pela encosta da Serra. Atingem o Planalto Médio, as Missões, o Alto Uruguai e a região de Pelotas.

Colonizar é desmatarO enorme crescimento vegetativo da população rural das

colônias antigas conduz, no final do século XIX e início do século XX, a uma corrida para o norte e o noroeste do Estado. Nos empreendimentos coloniais então criados no Planalto Médio, nas Missões e no Alto Uruguai, tal como na Encosta do Planalto, vicejava a floresta subtropical.

Os colonos imigrantes, e depois os seus filhos e netos, dirigiram-se quase sempre para as áreas de floresta. Colonizar e desmatar eram, então, sinônimos. Segundo Nilo Bernardes,

•• Vale do Rio PardoA partir de 1888, inicia-se a ocupação da região Centro-Serra. Os migrantes teriam vindo em parte da colônia de Silveira Martins, instalando-se em Linha Central (Sobradinho), Linha Guabiroba (Arroio do Tigre) e São Paulo (Ibarama). No início do século XX, descendentes de imigrantes italianos, provenientes das áreas pioneiras, também vêm se radicar nessas localidades. O pároco Pio Redin escrevia em 1927 que a colônia de São Paulo “é habitada, quase na sua totalidade, por colonos italianos provindos de Caxias”. Essas famílias se tornariam numerosas e ocupariam majoritariamente a porção norte do Vale do Rio Pardo. As migrações ocorridas do campo para a cidade, e entre áreas urbanas, fizeram afluir para Rio Pardo um expressivo contingente de homens e mulheres com sobrenomes alemão e italiano.

Italianos chegam a partir de 1875 e ocupam a região montanhosa da Província de São Pedro

isso ocorreu não tanto pelo fato de, quando da chegada dos colonos, os campos já estarem ocupados pelas fazendas de criação de gado. Também não foi porque os proprietários das estâncias não desejavam se desfazer de parte das suas terras. A razão fundamental, pela qual teria sido dada ao colono europeu a tarefa de fazer recuar a floresta, seria a tradição luso-brasileira de que a agricultura só seria proveitosa nas áreas de mata. Isso porque, ali, o solo humoso compensaria o trabalho de semeadura.

Descendentes em Ibarama, na região Centro-Serra, cuja ocupação se iniciou em 1888

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165Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

O italiano falado no Rio Grande do Sul não é uma língua homogênea, pois os imigrantes procediam de diferentes regiões, com dialetos próprios. Estes se diferenciavam tanto uns dos outros como o português do espanhol. Dentre os dialetos falados

no Estado – embora já contando com suas variações dialetais próprias – predominou o do Vêneto. Isso se deu porque mais de 50% dos imigrantes italianos eram dessa região do norte da Itália. Os inevitáveis contatos com os brasileiros de outras

origens étnicas e a necessidade de designar novos objetos fizeram com que numerosos vocábulos e expressões híbridas,

na realidade uma mistura de palavras portuguesas e italianas,

dessem origem a um linguajar típico nas colônias. Hoje em dia

essa linguagem ainda está em uso, principalmente nas

áreas mais afastadas dos grandes

centros urbanos. Em muitos desses lugares,

sobretudo para os mais velhos, o dialeto

vêneto se constitui na principal forma de comunicação verbal.

Dialeto vênetoUma história de traição no início do século passado, tendo

como cenário a região colonial italiana do Rio Grande do Sul, serviu de inspiração para duas produções artísticas. O episódio começou na área rural de Linha Taquara, hoje pertencente a Gramado, e teve seu desfecho em Ibarama, cidade que fica a 12 quilômetros de Sobradinho, no Vale do Rio Pardo.

Dois casais que moravam na mesma casa acabam se trocando. Carolina Tessaro, casada com Nicodemo Trentin, foge com Giuseppe Dal Ri, marido de Maria Baretta. Nicodemo e Maria, que ficou na casa com os oito filhos que tivera com Giuseppe, acabam por se casar também. Tudo em uma época na qual o adultério era considerado crime.

A trama virou livro e filme, mas as personagens têm outros nomes: no livro Carolina é Teresa, Nicodemo é Ângelo, Giuseppe é Mássimo e Maria Baretta é Pierina. No romance, o casal foge para São Paulo, a maior cidade do País já naquela época. Mas na realidade ele foi para a colônia São Paulo, nome antigo de uma área que hoje faz parte de Ibarama.

O romance O Quatrilho e o sucesso do filme despertaram o interesse de estudiosos. Levantamentos da pesquisadora Marília Daros apontam que o casal veio para Ibarama em 1907. Além disso, os Dal Ri são considerados como os responsáveis pela introdução dos moinhos na região.

O Quatrilho em Ibarama

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Maioria dos imigrantes italianos era dessa região

A troca de casais motivou o escritor gaúcho José Clemente Pozenato a escrever o romance O Quatrilho, publicado em 1985. Em 1994, o cineasta Fábio Barreto lança um filme com o mesmo nome e chega a concorrer ao Oscar. Atualmente, em Gramado, há um roteiro turístico pelos locais onde se passou a verdadeira história.

•• O filme

Page 167: Rio Pardo 200 anos

166 Uma luz para a história do Rio Grande

A agricultura de subsistência foi invariavelmente a primeira etapa pela qual passaram os

agricultores que se radicaram nas colônias. No primeiro roçado, geralmente despontavam produtos consumidos na Europa – batata inglesa, aveia, centeio, cevada, rábano e ervilhas; fumo para o próprio gasto; colza para fabricação de óleo de iluminação e o linho para a confecção de tecidos rústicos. Posteriormente os colonos passaram à produção de gêneros mais apropriados ao meio como feijão, milho, batata-doce, mandioca, arroz, amendoim e outros.

Desde o início, entretanto, a policultura foi adotada por uma questão de necessidade. Isso se deveu muito ao isolamento das colônias e à pobreza dos imigrantes. Assim, havendo dificuldade

de obtenção de produtos de primeira necessidade, os colonos tiveram de extrair do próprio lote o necessário para a subsistência – exceção feita ao sal, às roupas e ferramentas. Nos tempos iniciais das colônias, dada a escassez de dinheiro, ocorria o escambo. Deixaram anotado os primeiros habitantes de Linha Isabel, Venâncio Aires:

Dinheiro não havia; às vezes não se tinha nem para pagar a moagem. Pelo trabalho

nos primeiros tempos recebíamos mantimentos, toucinho e porcos.

A agricultura de subsistência

Colonos alemães, no começo, produziam para a subsistência

Robert Avé-Lallemant, ao passar pela colônia de Santa Cruz, em 1858, se surpreendeu com a gigantesca tarefa que os colonos tinham que fazer para poder principiar a cultura:

Decerto, quando se põe um homem com o machado e a mecha diante da mata virgem se lhe diz: “Isto deves tu arrasar”, não compreendo como ele tenha ânimo de dar

o primeiro golpe! Menos porém, compreendo ainda como, no mesmo local da mata, anos depois ou ainda em menos tempo, já ali cresce o que o alimenta a ele e a sua família. Por umas dez vezes perguntei: “Quanto tempo depois da primeira machadada na mata começou você a viver de sua plantação?” E todos responderam: “Depois de um ano, muito bem”.

Ao chegar ao Brasil, o imigrante vai morar nos primeiros tempos arranchado em casas de amigos ou no barracão da picada – rústicos galpões de pau a pique cobertos de capim e que serviam de pouso coletivo em algumas colônias. Carlos Fröhlich dá uma boa noção da passagem de colonos pelo barracão existente na colônia particular de Santa Emília, Venâncio Aires:

O primeiro abrigo era construído com materiais existentes no próprio local. Informa o imigrante Josef Umann que quatro paus fincados no chão; galhos de árvores trançando-se para

formar as paredes, revestidos de folhas ou cobertos de barro amassado; outros galhos ou folhas de gerivá formando o teto – e estava pronta a moradia dos primeiros tempos.

Avé-Lallemant, após pousar na casa de um colono em Rio Pardinho, em 1858, faz o seguinte relato:

(...) foi cedida a cama, de tão boa vontade, que tudo se lhe perdoa, sobretudo os percevejos indo-germânicos, espalhados em toda a terra, com a imigração alemã. O que mais me

chamou a atenção é que não se fecha porta alguma. Tudo fica aberto. E por isso recebi de noite várias visitas zoológicas. Um bicho saltou sobre minha cama e diagnostiquei que era um gato. Quando veio um cão e quis expulsá-lo, reconheceu um estranho na cama do seu senhor e ladrou como um desesperado. Vieram também alguns porcos; ouvi ainda um morcego que por longo tempo esvoaçou, roçando o meu rosto.

Por necessidade, policultura foi adotada desde o início

•• O difícil começo

Batatinha era a base da

alimentação do colono de origem

alemã

ACERVO JORGE CUNHA

Page 168: Rio Pardo 200 anos

167Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

As vendas tinham papel importante para as comunidades da zona colonial. Vendiam de tudo, de banha e sal a peças de tecido, enxadas, linhas para bordados, agulhas, chapéus e tamancos. Era onde os colonos se abasteciam sem precisar ir até a cidade, uma viagem difícil até a primeira metade do século passado.Nas áreas rurais a venda também era o centro de convivência, local onde os colonos se reuniam para encontrar amigos, saber das novidades, tomar o trago ou o schnaps. E os vendeiros acabavam tendo uma função dupla: recebiam a produção agrícola dos colonos e funcionavam como uma espécie de banco. Ali ficavam depositados os valores que, na maior parte das vezes, eram trocados por mercadorias industrializadas trazidas pelos caixeiros-viajantes.

O excedente era vendidoCasa comercial que pertenceu a Augusto Hennig e depois a Germano Wink, em Linha Rio Grande, em Sinimbu

FOTOS: INOR/AG. ASSMANN

•• O papel das casas comerciais

Aos poucos, os imigrantes conseguem produzir mais do que apenas o necessário para sobreviver. O excedente passa então a ser vendido para cidades como Rio Pardo, Cachoeira do Sul, Porto Alegre e Pelotas

ou mandado para o centro do Brasil – São Paulo e Rio de Janeiro. Para esses lugares são destinados milho, feijão, ovos, banha, toucinho, fumo, vinho e batata. Enquanto nas áreas de campo se desenvolvia a criação de bois, cavalos, mulas e ovelhas, as regiões coloniais se preocuparam com a criação de aves e suínos.

Antes do surgimento do óleo vegetal da soja, a banha de porco tinha um grande mercado. Nas cidades surgiram indústrias que se especializaram no beneficiamento e refino da gordura animal. Mas surgiram também muitos abatedouros. Alguns se desenvolveram e deram origem a potentes cooperativas de suinocultores, a frigoríficos que marcaram época em determinadas localidades e a fábricas de salames, presuntos, copas, linguiças e outros embutidos.

Além de cidades como Rio Pardo, Cachoeira, Porto Alegre e Pelotas, São Paulo e Rio também recebiam produtos da colônia

Moinhos, de fundamentais a quase inexistentes

Ainda em funcionamento, o moinho colonial da família Schneider, em Linha Turvo, município de Segredo, é uma representação da sua importância nas cozinhas dos descendentes de imigrantes alemães e italianos em décadas passadas. O moleiro Arthur Seelig se instalou no local em 1912. Ainda hoje o moinho preserva as características de quase 100 anos atrás – inclusive o sistema de farinha de milho moída na pedra. Os colonos iam aos moinhos levando sacos de trigo ou milho, esperavam a secagem e fabricação da farinha e, algumas horas depois, retornavam com o produto para casa.

O moinho de Segredo foi importante na época em que as idas às cidades eram raras, e cada comunidade conseguia produzir e se abastecer dos produtos principais à sobrevivência. Com o passar do tempo, foi inserida a possibilidade de troca. Quem tinha mais pressa podia trocar os grãos pela quantidade correspondente em farinha. Atualmente a empresa pertence aos irmãos Elemar Schneider e Eluí, que produzem farinha de milho para mercados da região. Segundo Elemar, nos primeiros anos em que adquiriu o moinho, os clientes chegavam com 30 a 50 quilos de grãos em sacos no lombo de cavalos. “Colhiam na lavoura e traziam para a gente moer”, lembra.

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168 Uma luz para a história do Rio Grande

Em 1938, o governo do Brasil deu início à campanha de nacionalização. O objetivo era o de abrasileirar populações de origem

estrangeira que viviam no País e que, em determinados espaços geográficos, formavam comunidades étnicas relativamente homogêneas. A assimilação compulsória dos então denominados “quistos étnicos estrangeiros” vinha sendo reivindicada por alguns setores da sociedade brasileira desde o final do século XIX, mas só foi colocada em prática a partir do Estado Novo de Getúlio Vargas.

Para forçar a nacionalização das populações de descendência estrangeira adotou-se, sobretudo, a supressão do idioma dos antepassados na escola, na caserna, nos ofícios religiosos, nas repartições públicas, na imprensa, nas casas comerciais, nos salões de baile, nos ônibus e nas ruas.

Em diferentes localidades da região colonial, encontram-se exemplos de policiais e funcionários públicos que cometeram excessos. Alguns deles, escudados pela função que exerciam, aproveitavam-se do momento para extorquir dinheiro de pessoas humildes ou tirar proveito

próprio da situação. Embora a campanha de

nacionalização tenha se iniciado no período imediatamente anterior à eclosão da Segunda Guerra Mundial, foi durante o conflito – que se estendeu entre setembro de 1939 e agosto de 1945– que ela se intensificou. A princípio, o Brasil tomou uma posição de neutralidade, mas levado pela pressão da opinião pública nacional e pelos interesses norte-americanos, posicionou-se a favor dos Aliados. Se o País já vivia numa ditadura, com a decretação do estado de guerra em todo o território nacional a situação piorou: tornou-se legal a censura, a apreensão a domicílio e a suspensão das garantias constitucionais atribuídas às pessoas e aos bens dos súditos dos Estados em beligerância com o Brasil.

Os descendentes de imigrantes alemães, italianos e japoneses que viviam no País sentiram os reflexos mais duros. Hostilizados e tachados de “Quinta Coluna”, passaram a ser estigmatizados como traidores da Pátria. Bastava possuir cabelos loiros e olhos claros ou feições nipônicas para que, mesmo havendo nascido no Brasil, de pais brasileiros, sofresse toda sorte de provocações.

•• Tempos difíceis

Em Santa Cruz, um episódio marcante envolveu onze agricultores, todos brasileiros, alfabetizados e residentes na localidade de Linha João Alves. Eles foram presos nas imediações da igreja matriz em um domingo pela manhã, após terem participado da missa, porque estavam falando em alemão. No xadrez, tiveram que pagar para comer, para não ter de limpar latrinas com as mãos e para dormir. Tiveram que prestar serviço com picaretas na Praça Getúlio Vargas e em ruas centrais da cidade. Não puderam usar chapéu nem ficar descalços. Dois, por causa da idade, foram liberados na segunda. Os demais, apenas na terça-feira. Não sem antes ouvirem a ameaça do delegado de polícia: de que, se tornassem a falar em alemão, seriam presos e remetidos a Porto Alegre. No inquérito, sete dos envolvidos negaram enfaticamente terem se pronunciado em alemão naquele dia. Um deles, por não saber falar o “brasileiro”, confessou ter se expressado naquela língua apenas para dizer uma frase ao seu vizinho. Outro relatou que falava em alemão sobre um livrinho dado pelo vigário, para que melhor pudessem aprender a língua “brasileira”. O processo por abuso de autoridade dos policiais, nesse e em outros casos semelhantes, acabou sendo arquivado.

O impacto da nacionalizaçãoDescendentes de italianos e alemães enfrentaram dificuldades com a entrada do Brasil na Segunda Guerra

Santa Cruz, 1945: comemoração pelo fim da guerra

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169Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

Através de prestações em longo prazo, cada família polonesa recebeu um lote de 25 hectares de terra, sementes e 50 mil réis para construir uma casa de madeira. A situação era de grande pobreza pois, apesar de boas colheitas, não havia estradas nem compradores. Mesmo assim a localidade prosperou e, em 1908, a sede contava com 153 pessoas e trinta casas, uma ferraria, uma olaria, uma escola, uma estação telegráfica, uma agência de correios, um posto pluviométrico e oito casas de comércio. Em 1938 a colônia passou a se chamar Dom Feliciano. A emancipação política ocorreu apenas em 1963.

Prestações e isolamento

Casa da Cultura do

Imigrante, em Dom Feliciano

A imigração polonesa no Rio Grande do Sul teve início em 1875. Àquelas alturas, a nação polonesa estava dominada política e militarmente por três reinos: Áustria, Alemanha e Rússia. Portando documentos de um desses países, os primeiros poloneses foram assentados na Serra.

Na região, um contingente não desprezível foi assentado em Encruzilhada, mais precisamente na colônia São Feliciano. Esse núcleo havia sido criado em 1857 , apenas oito anos após Encruzilhada ter conquistado a autonomia política de Rio Pardo. No entanto, só passou a receber imigrantes a partir de 1873.

Inicialmente, os assentados tinham, predominantemente, origem francesa. Mas logo abandonaram a área e a retomada da colonização aconteceu em 1890, quando os poloneses vieram se juntar às cinco famílias francesas que permaneciam no local.

Com os poloneses a Província passou a conhecer sobrenomes como Nowak, Tworkowski, Kuczynski, Maliszewski, Stachlewski, Janovik, Stelmaszczyk, Uszacki, Kwiatkowski, Rakowski e Szortika.

Imigrantes em Encruzilhada

Os imigrantes europeus não ficaram devendo nada aos gaúchos da fronteira quando se tratava de contar um bom causo. Exemplo foi o que teria sido vivido pelo engenheiro Alphonse Pedro Mabilde, considerado fundador da cidade de Vera Cruz, que atravessou parte

do território da Província escoltado por um índio e uma onça de estimação.

Natural da Bélgica, desembarcou no Rio de Janeiro em 1833, com 26 anos. Na sua terra natal, ao concluir o curso de Engenharia, ele e outros jovens foram convocados pelo governo para continuarem no Exército, a fim de auxiliar na consolidação da independência do país. O grupo se rebelou, mas foi sufocado. Com isso, os líderes acabaram fugindo e Mabilde veio para o Brasil.

Homem de vasta cultura, foi contratado pelos governantes para auxiliar no projeto de colonização no Sul. Em 1864, assumiu o cargo de diretor da colônia de Santa Cruz. Naquele mesmo ano, iniciou a demarcação da antiga Vila Thereza, hoje Vera Cruz. Em um final de tarde, enquanto abria uma estrada junto com trabalhadores, o grupo foi preso por índios coroados. O engenheiro, que conhecia guarani e caingangue, teve sua vida poupada e durante dois anos viveu na tribo, sob vigilância.

Durante esse período conquistou a confiança de um jovem guerreiro chamado Ucuity, a quem contava as maravilhas da civilização, das casas e pontes que construía. Curioso, o jovem aceitou conhecer São Leopoldo, cidade onde viviam a esposa e os filhos de Mabilde, com a promessa de que voltaria para a tribo. O índio exigiu, no entanto, que levassem junto a onça que criava.

Mabilde, o índio e a onçaEngenheiro de Bruxelas se naturalizou brasileiro em 1848

A fuga foi realizada por trilhas e não se sabe o tempo que a dupla e o animal levaram na caminhada.

Bem tratado pela família de Alphonse Mabilde, o índio acabou ficando em São Leopoldo. Dócil, a onça era criada nos fundos da casa, sem acesso à rua. Até que, em uma ocasião, Ucuity atravessava o pátio com uma panela de sopa quente e o animal, tentando brincar com seu criador, acabou derramando a sopa sobre o próprio focinho. Enraivecido, atacou a garganta do índio, que teve morte quase instantânea. O felino foi abatido a tiros por Mabilde.

A história do engenheiro, responsável por obras importantes no Estado, é contada no livro Imigração e Colonização Alemã, Anais do 3º Simpósio da Imigração e Colonização no Rio Grande do Sul, organizado por Telmo Lauro Müller.

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170 Uma luz para a história do Rio Grande

No processo de adaptação à nova terra, os imigrantes acabaram por construir uma cultura própria: nem a europeia, de onde vinham, nem a brasileira que encontraram na Província. Foi assim com a alimentação, por exemplo. Habituados a centeio, batata inglesa, legumes verdes e carne de porco, os alemães tiveram que incorporar à cozinha colonial novos gêneros como milho, mandioca, batata doce, abóbora, chuchu, cana-de-açúcar e feijão preto. Assim, mesmo mantendo o preparo dos pratos nos moldes da terra de origem, a culinária colonial alemã ficou distante da comida existente na Alemanha da época.Aos poucos, também resgataram a produção de ingredientes de sua terra de origem e implantaram por aqui formas de conservar alimentos como as conservas de frutas, verduras e carnes. Mas a iguaria mais lembrada, quando se trata de culinária colonial germânica, é a cuca. Leite, ovos, nata, açúcar e farinha de trigo: o Kuchen, que em português recebeu o nome de cuca. A rainha de todas elas é o Streuselkuchen, a cuca com cobertura de açúcar.

As regiões de imigração alemã e italiana tiveram um crescimento econômico importante, na comparação com as áreas dominadas por portugueses e outros. O professor de História da PUC, René Ernaini Gertz, atribui isso ao sistema de propriedade: “Ou melhor, à democracia social que se desenvolveu nas regiões de presença alemã e italiana e aos objetivos com que essas pessoas vieram (eram pobres na Alemanha e na Itália, e vieram aqui para “virar o jogo”). Assim, dedicaram-se de corpo e alma ao trabalho”. O fato de terem constituído comunidades muito bem organizadas deu

aos imigrantes uma grande sensação de segurança e solidariedade. Isso permitiu uma concorrência benéfica e, ao mesmo tempo, a cooperação mútua entre os vizinhos.

Também a organização familiar, com todos trabalhando duro, incluindo mulheres, fez com que o elã de trabalhar aumentasse. Uma eventual religiosidade mais firme provavelmente ajudou a cuidar bem do dinheiro, a não gastá-lo em coisas desnecessárias. “Enfim, uma ética do trabalho. Mas não pelo fato de serem alemães ou italianos, e sim pelo tipo de comunidade em que se constituíram.”

Organização comunitária

Imprensa do imigrante

Imigrantes alemães contribuíram decisivamente para o desenvolvimento da imprensa escrita no Estado. Em 1922, das 18 gráficas em atividade em Porto Alegre, 12 se encontravam em mãos de

alemães; e das 26 livrarias, 15. Em todo o Estado, havia 30 gráficas e litografias; 31 livrarias e 22 encadernadoras dirigidas por alemães e descendentes.

O historiador René Gertz contabilizou a existência, ao longo do tempo, de 144 jornais e revistas em língua alemã no Rio Grande do Sul. Destes, 78 foram editados em Porto Alegre, 62 em cidades do Interior e quatro foram editados tanto na Capital como em municípios interioranos. No Interior do Estado, destacam-se: São Leopoldo, onde foram editoriados 23 jornais ou revistas; Santa Cruz, que aparece com sete; Ijuí e Neu-Württemberg (Panambi), com

cinco cada um. Um outro tipo de produção cultural

impressa de comunicação de massa, que teve sucesso entre os imigrantes alemães e seus descendentes, não só do Rio Grande do Sul mas de toda a América do Sul, foram os Kalender ou Jahrweiser (almanaques ou anuários). As famílias dos colonos das picadas podiam não ter um livro em casa, nem mesmo fazer a assinatura de um jornal, mas dificilmente deixavam de adquirir um almanaque. Os Kalenders traziam leituras instrutivas, descrições de viagens, um resumo da vida política e cultural, abordagens de acontecimentos históricos, biografias históricas ou de santos e informações sobre o meio rural, como o tempo, técnicas de plantio, cuidados com animais, higiene pessoal e educação.

Alemães tiveram papel destacado na criação de jornais na Província do Rio Grande

Descendentes germânicos mantêm a tradição dos Vereine (sociedades)

Cucas são exemplo de culinária colonial

•• Gastronomia

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171Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

Foi no interior de Rio Pardo, no lugar hoje denominado Passo da Areia, a oito quilômetros

da cidade, que surgiu a primeira produção racional de mel do Brasil. O ano era 1868 e o local, a Fazenda Abellina. O autor da façanha: um germânico da Saxônia chamado Frederico Hannemann. Além do mel, a Abellina marcou época como espaço de lazer para famílias rio-pardenses que promoviam alegres piqueniques de finais de semana no século XIX. Conta-se que era também ponto de parada de carreteiros que rumavam para a Serra, Missões ou Fronteira. A família Hannemann, com seus músicos, animava os

A produção de melAtividade foi introduzida no Brasil por Frederico Hannemann

Nascido em 25 de maio de 1819 em Wartenburg, região da Saxônia, hoje Alemanha, Frederico Augusto Hannemann chegou ao Brasil aos 34 anos com a esposa Frederica Guilhermina e a filha Cosmopolitina, nascida a bordo de um navio à vela. Em uma cesta de junco mantivera, nos três meses que durou a viagem, as abelhas com as quais pretendia iniciar a primeira criação racional e moderna do Brasil. Veio com esse objetivo. Aportou em Porto Alegre e se instalou em São Leopoldo, para participar da florescente colonização.

Mas o Vale do Sinos, onde Hannemann permaneceu por 15 anos, não era local adequado para aclimatar as abelhas europeias cárnicas, da espécie Apis mellifera. Por isso, ele subiu de lancha o Rio Jacuí e chegou a Rio Pardo. Numa área de 180 hectares entre os arroios Cabral e Passo da Areia, fundou em 1868 a Fazenda Abellina. Ali, aperfeiçoou seus métodos de criação de abelhas, inventou a primeira

centrífuga da América – destinada à extração do mel e aproveitamento dos favos – e construiu gaiolas e caixas para o controle de rainhas e enxames. Dedicou-se também ao cultivo de árvores e pomares de floração melífera como eucaliptos, magnólias, jaboticabeiras e videiras.

O sistema de produção fez sucesso e se difundiu pelo País e pela América do Sul. Hannemann publicou relatórios e artigos em revistas especializadas da Alemanha e Áustria. Suas pesquisas revolucionaram a apicultura na Europa. Naturalizado em 1884, nunca abandonou o País. Ele e a esposa morreram em 1912, com 93 e 92 anos. As sepulturas se encontram em um túmulo gêmeo ao lado da fazenda, na beira da estrada para Cachoeira do Sul. A ousadia de Hannemann rendeu a Rio Pardo e à Fazenda Abellina o crédito de Berço da Apicultura no Brasil. No Museu Barão de Santo Ângelo, de Rio Pardo, é possível conhecer a primeira centrífuga da América, inventada por Frederico.

Abelhas no navio

Prédio onde Hannemann processava mel em escala comercial ainda existe

viajantes nas noites e vendia cucas e bolos de milho com o néctar de abelhas e vinhos. Tudo produzido no local, inclusive uma espécie de champanha denominada hidromel.

Ao chegarem aos seus lotes e até as primeiras colheitas, os imigrantes italianos fizeram uso do que a terra oferecia, como as carnes de caça – que sempre foram muito apreciadas na Itália – e a coleta silvestre como o pinhão. Nos primeiros anos, a vida social das colônias girava em torno da capela e dos filós, que eram visitas à noite aos colonos mais próximos. Os visitantes eram recebidos com vinho, pinhões cozidos ou pipocas.

Nas décadas seguintes a alimenta-ção cotidiana continuou sendo modes-ta, baseada na polenta, sopas, salame e pão. Apenas nos dias de festa é que se faziam os galetos al primo canto, pizzas, nhoques, lasanhas, massas, cappellettis e rondellis, brodo, ravióli, tortelli, sala-mes e queijos, que hoje constituem a herança dos colonos italianos incorpo-rada à cozinha brasileira. Os imigrantes italianos igualmente passaram a fabri-car o vinho nos porões de suas casas, onde também guardavam alimentos perecíveis.

Na propriedade, além dos parreirais e das árvores frutíferas, cultivavam legumes, arroz, milho, batatas, feijão, trigo e outros grãos. Criavam galinhas, porcos e vacas para a produção de car-nes, salames, banha e queijos. Também construíram moinhos para trabalhar os grãos, engenhos para a produção de cachaça e graspa e cantinas para o vinho. Por isso, a típica comida dos descendentes de imigrantes italianos não é a mesma da Itália. Assim como a culinária dos imigrantes alemães, a dos italianos é o resultado da adaptação dos pratos.

Família reunidae mesa farta

Salame e queijo: iguarias típicas

Frederico Hannemann

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172 Uma luz para a história do Rio Grande

A exploração da erva-mate

ORio Grande do Sul estava sendo povoado. Corriam os anos de 1800

e as regiões mais planas e férteis estavam ocupadas. Populações pobres, de origem não inteiramente definida, eram empurradas para áreas mais íngremes e de difícil acesso na borda do Planalto, impropriamente denominadas de Serra. Essas terras, de acentuada declividade e cobertas por densas florestas subtropicais, eram, inicialmente, descartadas pelos empreendimentos pecuarista e colonial. Passaram a constituir as ditas terras devolutas, isto é, do Estado, sendo ocupadas de forma anárquica por posseiros marginalizados. Começava aí a exploração continuada da erva-mate por parte de populações não indígenas.

GAúCHO, DE ALDO LOCATELLI/1951

CULTURAS AO LONGO DO TEMPO

O extrativismo predatório de erva-mate; as lavouras mecanizadas de arroz irrigado; a força da produção de fumo nas pequenas propriedades; o surgimento das grandes processadoras de tabaco.

Na pintura de Locatelli, a cena tradicional no Rio Grande: um gaúcho tomando mate

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173Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

Quem eram os ervateiros

No Vale do Rio Pardo, populações pobres, denominadas pejorativamente pela historiografia regional ou pela memória coletiva ora de caboclos, ora de intrusos,

ora de ervateiros, ora de serranos, encontraram refúgio nas florestas de topografia acidentada da Encosta do Planalto.

Hemetério José Veloso da Silveira subiu a Encosta do Planalto em 1855, indo de Rio Pardo para Soledade. Ao chegar aos campos de Sobradinho, indagou pela razão do nome. Ficou então sabendo que ali, por volta de 1825, se estabelecera João Lopes, proveniente de São Paulo, com família e escravos. Lopes se arranchara fazendo negócio de fazendas e molhados, galpões currais e um monjolo. Viajava a Rio Pardo

levando erva-mate, comprada aos pobres do local, que viviam da sua extração e de roças de subsistência.

Seus descendentes ainda são encontrados, atualmente, em algumas localidades dos municípios de Sinimbu, Herveiras, Tunas, Candelária, Sobradinho, Santa Cruz do Sul e Venâncio Aires. Tratavam-se de populações pobres que viviam nas franjas de grandes propriedades, mas que não possuíam a propriedade jurídica da terra. Na medida em que a terra virou mercadoria, foram sendo expulsos.

Colono logo se habitua ao chimarrão

Extração de erva-mate garantia sustento para comunidades marginalizadas

•• Lugar seguro

O alemão Max Beschoren, no ano de 1874, saiu de Santa Cruz para realizar levantamentos topográficos em terras do Alto Uruguai. Percorreu a picada Rio Pardinho, passou por Sinimbu e subiu o quase intransitável caminho pela Serra. Descreveu como era feito o processo de colheita e de beneficiamento da erva-mate naqueles tempos. A respeito da população que se dedicava à colheita da erva, deixou o seguinte relato:

(...) a mata ervateira se estende por toda

região montanhosa, de leste a oeste, acompanhando quase toda a extensão de Santa Maria da Boca do Monte, sendo mais habitada do que parece. Caminhos e picadas cruzam-na em todas as direções e levam para casebres e ranchos bem escondidos.Foragidos da lei encontram nessa mata um refúgio seguro, onde as mãos da justiça dificilmente os alcançam. Essa terrível selva ervateira já era conhecida e explorada pelos jesuítas, cujas Missões localizavam-se no Oeste da Província. Mais tarde a mata ervateira foi abandonada, tornando-se um seguro abrigo para os desertores.

Os imigrantes alemães e italianos e seus descendentes absorveram sem preconceitos o hábito de tomar chimarrão. Escreveu Hilda Flores que, antes do sol nascer, o colono costumava madrugar e planejar as atividades do dia, enquanto atiçava o fogo no fogão à lenha e saboreava um amargo, isto é, o chimarrão tomado sem adoçante. Ingerido doce, após o almoço, o mate constituía excelente componente digestivo para alimentos pesados e não conhecidos na Europa.

Josef Umann, um imigrante vindo em 1877 para Linha Cecília, interior de Venâncio Aires, deixou registrado em seu diário:

Colheita da erva-mate e seu preparo eram artesanais, até por volta de 1930 e 1940

FONTE: RIOGRANDENSE MUSTERNITER/1913

Muito domingo e feriado passamos juntos, em boa prosa. Sobre baixos banquinhos sentávamos horas em torno do fogo

aceso, em meio a anedotas e conversa séria enquanto a chaleira zunia e a cuia corria a roda.

Em atenção à carteira vazia que nos primeiros anos não nos permitiu comprar bebidas caras, como cerveja ou vinho, cedo nos habituamos ao chimarrão tão estimulante ao espírito.

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174 Uma luz para a história do Rio Grande

Cultura veiodos índios

FOTOS: ACERVO NúCLEO DE A erva-mate, cujo nome científico é Ilex paraguariensis, apareceu na Terra há cerca de 70 milhões

de anos. Apesar de possuir o nome de erva, é um arbusto ou árvore de 6 a 8 metros de altura que em ambientes naturais aparece em associação com o pinheiro. A erva-mate não se desenvolve bem em lugares baixos, preferindo, sempre, terras mais elevadas. A planta, em seu estado nativo, se desenvolvia no Leste do Paraguai, Sul do Brasil e em parte da Argentina.

É a partir das folhas dessa planta que é feito o mate. Os castelhanos e os lusos aprenderam com os índios guaranis, que habitavam os afluentes dos rios Paraná, Paraguai, Uruguai e Jacuí, a extração e o preparo do mate. Inicialmente, as autoridades espanholas na América procuraram combater o uso da bebida. Sorver com um canudo de taquara a infusão de folhas da erva, com água preparada em um porongo, era considerado um símbolo pagão e um hábito vicioso, digno apenas dos mais pobres.

A erva deixou de ser considerada maldita e o consumo do mate aceitável, a partir da sua aceitação pelos padres jesuítas das Missões. Eles viam na sua ingestão uma alternativa

para combater o crescente alcoolismo entre os indígenas. Também a ação promovida por comerciantes, interessados no lucrativo comércio da erva, colaborou para que o estigma contra o mate fosse se dissipando.

Os portugueses teriam entrado em contato com o chimarrão somente no primeiro quarto do século XVII, quando da destruição das reduções de Guairá pelos bandeirantes. Os índios ali aprisionados teriam levado ao lado brasileiro o hábito de tomar mate. Muito tempo depois, em 1755, o governador Gomes Freire de Andrade enviava uma quantidade de erva-mate a um oficial do Rio de Janeiro recomendando seu uso, pois para aquele havia ajudado a aliviar dores nas pernas.

Planta era encontrada no Paraguai, Argentina e Sul do Brasil

•• Como se faziaO extrativismo predatório dos ervais nati-

vos perdurou na região até por volta de 1930 a 1940. O preparo da erva-mate consistia em cinco operações:

JUAN DE SOLíS/GUARANIS COLHENDO ERVA-MATE

1. Colheita ou fazer erva

Após serem cortados, os galhos eram levados a uma fogueira, ainda na mata, onde se dava o sapeco.

2. Sapeco

Era o primeiro contato das folhas com o fogo. Galhos eram passados sobre as chamas, para desidratação. Depois de sapecados, eram quebrados em ramos menores e juntados em feixes de cerca de uma arroba. Daí eram transportados até o carijo, ainda na mata.

3. Carijo

Era a secagem propriamente dita. O carijo não passava de uma tosca construção feita com quatro postes e uma cobertura de palha. Dentro era montado um jirau – espécie de varas sobre esteios fincados no chão. Sobre ele se colocavam os feixes de erva sapecada. Sob o jirau mantinha-se um fogo brando. Depois de torrada, a erva descansava sobre o jirau por cerca de uma semana.

4. Cancheamento

Em uma cancha retangular, as folhas secas eram batidas com um facão de madeira e iam se separando dos galhos e se fracionando. O produto dessa operação seguia para o monjolo.

5. Trituração

A erva era socada manualmente em um pilão ou levada ao monjolo para que ocorresse a trituração. O monjolo era muito utilizado pelos luso-brasileiros. Após esse processo, a erva-mate estava pronta.

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•• O rei do arroz

Embora cultivado inicialmente em pequena escala e basicamente para a subsistência pelos imigrantes alemães e

seus descendentes, a partir da primeira década do século XX o arroz teve seu cultivo intensificado extraordinariamente no Estado.

A lavoura de arroz foi a primeira organizada sob bases tipicamente capitalistas no Rio Grande do Sul. As primeiras lavouras empresariais surgiram, concomitantemente, em dois polos geograficamente distantes: em Pelotas e em Cachoeira do Sul. Ali, extensas porções de terras arrendadas por capitalistas a estancieiros, utilizando irrigação, trabalhando com mão de obra assalariada temporária e destinando seu produto para o mercado, apareceram por volta de 1903/1906. Tem-se, assim, três classes sociais participando da atividade: o empresário rural ou capitalista, que era arrendatário e conduzia a produção racional objetivando

auferir lucro na atividade; o proprietário rentista, que alugava a terra e auferia a renda capitalista da mesma; e os assalariados, contratados por temporada e que vendiam sua capacidade de trabalho ao empresário rural.

Desses polos irradiadores, rapidamente a produção avançou para outras regiões do Estado, onde havia terras planas de várzea, facilmente irrigáveis. Isso aconteceu às margens das lagunas Mirim e dos Patos e dos rios que pertencem às bacias hidrográficas dos rios Jacuí e Uruguai. Cachoeira do Sul, não por acaso, durante muito tempo ostentaria o título de Capital do Arroz. O plantio do cereal provocou, segundo alguns pesquisadores, uma espécie de revolução agrícola no Rio Grande do Sul. Outras culturas, como o soja e o trigo, somente na esteira da Revolução Verde – ocorrida nas décadas de 1950/1960 – conheceriam a modernização na forma de produção que o arroz já havia sentido várias décadas antes.

Primeira lavoura capitalistaArroz provocou uma espécie de revolução agrícola no Estado

INOR/AG. ASSMANN

Pedro Luís da Rocha Osório nasceu em 9 de junho de 1854 em Nossa Senhora da Assunção de Caçapava, atual Caçapava do Sul. Pobre, começou sua vida profissional como vendedor, aos 17 anos, em uma loja de tecidos de Pelotas. Quatro anos depois já estava trabalhando na Charqueada Boa Vista e, em 1878, passou a administrar o empreendimento. Dois anos mais tarde, tornou-se sócio na empresa. Em 1886 implantou sua primeira indústria, a Charqueada Cascalho, à margem direita do Arroio Pelotas. Adquiriu e implantou outras charqueadas e em 1907, na área da Charqueada Cascalho, começou também o plantio e beneficiamento do arroz. Com equipamento adquirido na Alemanha, construiu o Engenho São Gonçalo, com capacidade para beneficiar 700 mil sacos de arroz em casca. Tratava-se, na época, do maior engenho da América do Sul. Além de produzir charque e plantar e beneficiar arroz, Pedro Osório plantava os eucaliptos utilizados como combustível em seus engenhos, além de ser proprietário dos barcos que transportavam suas mercadorias. Foi também produtor de suínos, gado de corte e batatas, pioneiro na conservação do solo e melhoria das pastagens e na instituição do seguro de vida para seus funcionários. Foi o chefe político mais importante da zona sul do Estado. Agraciado com os títulos de comandante da Guarda Nacional e coronel do Exército, foi nomeado, em 1903, vice-presidente do Estado no governo de Borges de Medeiros. Faleceu em Palmeira no dia 28 de fevereiro de 1931.

Lavoura arrozeira foi precursora do sistema empresarial na agricultura do Rio Grande do Sul

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176 Uma luz para a história do Rio Grande

Crescimento vegetativo e imigrações determinaram aumento da população e procura pelo arroz produzido no Sul

Consumo aumenta no País

No final do século XIX e início do século XX, ocorreu no Brasil o crescimento da população e o processo de urbanização.

O aumento demográfico está ligado ao crescimento vegetativo (mais nascimentos do que óbitos), mas também à grande imigração, principalmente em São Paulo. Centenas de milhares de imigrantes italianos, espanhóis, portugueses, japoneses e de outras nacionalidades chegaram ao Brasil para trabalhar, principalmente, nas lavouras de café.

O café era então o carro-chefe da economia nacional e precisava de muita força de trabalho. Temia-se que, com a abolição da escravatura, houvesse falta de mão de obra para

plantar e colher os cafezais, razão pela qual foi adotada a política imigracionista.

Acontece que o aumento da população também provocou a necessidade de aumentar a oferta de gêneros de subsistência. Como parcela considerável do arroz consumido no País era importada, o governo federal, na tentativa de equilibrar seu orçamento, passou a elevar gradativamente a tarifa de importação sobre o cereal, encarecendo o produto importado e incentivando o nacional.

Além dos preços terem se tornado extremamente compensatórios para os produtores gaúchos, havia o fato de os governantes ligados ao PRR buscarem a diversificação e a modernização da economia, contribuindo para o

bom êxito da lavoura. Esses governos procuraram taxar as grandes propriedades improdutivas e, através de políticas fiscais, beneficiar a produção.

Apesar de distantes dos grandes centros consumidores, as lavouras de arroz irrigado do Rio Grande do Sul mostraram ser bem mais produtivas e estáveis do que as do arroz do sequeiro, praticadas em outras partes do Brasil, principalmente em São Paulo.

Embora já houvesse a utilização de maquinário (ceifadeiras), a produção de arroz era, em grande parte, manual. A colheita era executada com foices, normalmente pela manhã. Os feixes de arroz ficavam espalhados pela resteva e à tarde eram amarrados e emedados. A meda era um amontoado dos ramos de arroz com os cachos sempre virados para baixo, de forma ordenada. Uma meda acumulava, em média, 2,7 sacos. Podia ficar de dez dias a dois meses na lavoura, até ser processada em uma trilhadeira instalada em pontos mais elevados da propriedade, a fim de evitar prejuízos com enchentes.

A trilhagem era feita com o uso de garfos de metal, manuseados por dois homens. Um terceiro ficava responsável por manusear a trilhadeira. O trabalho era feito por boias-frias, a maioria homens. Entretanto, mulheres já ajudavam na

Pecuária forneceu mão de obracolheita com foices. Elas apareciam geralmente na hora da secagem dos grãos, mas eram sempre comandadas por um homem. Os trabalhadores sazonais vinham

principalmente da região da pecuária, que estava em crise. A atividade criatória e, em parte, também a charqueadista liberavam parte dessa força de trabalho.

FOTOS: MUSEU MUNICIPAL DE CACHOEIRA DO SUL PATRONO EDYR LIMA

Colheita de arroz em Cachoeira do Sul em meados do século XX e, no detalhe, uma meda

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177Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

Arroz irrigado revoluciona

O que diferenciou a rizicultura rio-grandense das plantações de arroz de outras regiões do Brasil foi o uso da irrigação, que implicou em maior produtividade, mas exigiu altos investimentos na construção de canais e taipas e na aquisição de

motores para fazer o bombeamento de água. A lavoura de arroz fez ainda com que se intensificassem as relações entre as áreas de campo da pecuária extensiva e a população das áreas coloniais. Isso se deu através do arrendamento de terras, pertencentes a estancieiros, por parte de empresários rurais, em boa parte oriundos de antigas colônias.

Em geral, foram pessoas de origem alemã que acumularam capitais nas áreas coloniais e se lançaram a essa atividade empresarial. A orizicultura forçaria, também, o incremento do comércio e o surgimento de indústrias. Nesse caso, apareceram aquelas empresas que produziam ou comercializavam máquinas e equipamentos como os locomóveis e os tratores, as bombas centrífugas, as ceifadeiras, as trilhadeiras, os semeadores mecânicos, os silos, as secadoras e descascadoras, os navios de pequeno porte e outros. A firma Bromberg & Cia., com matriz estabelecida em Porto Alegre, passou a importar máquinas da Alemanha que também eram vendidas em suas filiais de Cachoeira, Rio Grande e Pelotas. Em 1911, havia no município de Cachoeira 87 máquinas a vapor que acionavam 67 bombas de grande capacidade. Mais tarde, em Cachoeira se desenvolveu a Mernak & Cia., uma empresa ligada ao setor arrozeiro que marcou época nesse contexto.

Com a expansão da cultura surgiu ainda o engenho de beneficiamento de arroz, embrião da agroindústria no Estado. A produção de arroz era escoada através dos rios e das lagunas para os centros consumidores e exportadores. Nessa época, o transporte rodoviário era ainda muito precário no Estado e o ferroviário, de preço mais elevado que o fluvial. Assim, a cultura provocou o incremento da frota de embarcações mercantis.

Em 1922 Rio Pardo contava, dentre seus mais importantes estabelecimentos industriais, com os engenhos de descascar arroz de Frederico Ernesto Wunderlich e de Gonçalvez, Raffo & Cia. Ltda. O industrialista Frederico Wunderlich, além de um engenho de beneficiar arroz movido a eletricidade com capacidade de preparar 100 sacos por dia, também era proprietário da usina elétrica que fornecia luz pública e particular para a cidade.

•• IRGAA história do Instituto Rio Grandense do Arroz se mescla com o próprio desenvolvimento da cultura do arroz no Rio Grande do Sul. O órgão foi criado a partir do Sindicato Arrozeiro, entidade pioneira de representatividade de classe, fundada em 12 de junho de 1926. O sindicato dos arrozeiros tinha por objetivo a defesa dos segmentos da orizicultura. Para dinamizar a cultura no Estado, fazia-se necessário o desenvolvimento da pesquisa e assistência técnica aos lavoureiros. Em assembleia geral, os associados do Sindicato resolveram transformá-lo no Instituto do Arroz do Rio Grande, oficializado em 31 de maio de 1938. Em 20 de junho de 1940 é transformado no Instituto Rio Grandense do Arroz (Irga), com a finalidade principal de incentivar, coordenar e superintender a produção, indústria e o comércio do arroz produzido no Estado.

•• Mundo aforaO arroz, cujo nome científico é Oryza Sativa, é uma gramínea anual. É atualmente o segundo alimento mais consumi-do no mundo, perdendo somente para o trigo. Possivelmente originá-rio dos vales secos da Ásia Central, passou a ser cultivado há pelo menos 7 mil anos em certas regiões da Índia e da China. Dali foi levado para o Norte da África e mais tarde, no século VIII, para a Europa, com os árabes que o intro-duziram na Península Ibérica. Na América, chegou através dos colonizadores espanhóis e portugueses.

Tipos

Há dois tipos de arroz. Um é o arroz de sequeiro, cujo plantio é realizado em terras altas, não irrigadas artificialmente, e cuja lavoura é irrigada através das chuvas. O outro tipo é o irrigado. As lavouras ficam submersas por águas oriundas de açudes, lagos e, principalmente, de rios. A quase totalidade da área cultivada com arroz no Rio Grande do Sul é irrigada.

Locomóvel: primeiros vinham da Europa. Mais

tarde, passaram a ser fabricados também em

Cachoeira do Sul

Empreendedores, geralmente provenientes de áreas coloniais, arrendaram as terras dos pecuaristas e iniciaram o cultivo

ACERvO PARtICuLAR dE NELsON ROdENBusCh

Page 179: Rio Pardo 200 anos

178 Uma luz para a história do Rio Grande

A produção de tabaco

•• Tabaco para poder competir

Santa Cruz se destaca no plantio e processamento

Embora o fumo já fosse produzido em pequena escala, foi a partir da chegada de imigrantes alemães à Província que o cultivo da planta se expandiu. dentre as áreas de colonização germânica, a colônia de santa Cruz acabou se destacando pelo plantio e

manufatura do fumo em folha. O fato mudaria o perfil agrícola e econômico da região.

A produção de fumo desde cedo se torna o carro-chefe da economia não somente da colônia de santa Cruz, mas de todas as colônias vizinhas. A especialização talvez possa ser tributada a uma necessidade histórica. O fato de cultivar exatamente os mesmos produtos que as demais colônias situadas nos arredores de Porto Alegre, fazia com que santa Cruz não pudesse competir comercialmente com estas – cujas mercadorias se tornavam mais baratas e era facilitado o escoamento ao grande centro consumidor e exportador de então.

situada mais distante da Capital e não servida por rio navegável, santa Cruz, para superar a concorrência, especializou-se em um produto de transporte relativamente facilitado pela forma como era acondicionado; de rendimento monetário, proporcionalmente ao volume, superior se

ACERvO jORGE CuNhA

Dentre as plantações testadas, o fumo acabou revelando ser a que proporcionou melhores resultados. Em 1851 o subdiretor da colônia, Evaristo Alves de Oliveira, prognosticava que “os principais ramos da agricultura virão a ser: fumo, algodão, cana, batata, mandioca e outros vegetais que terão que abastecer o município de Rio Pardo e outros lugares”. Informava que em janeiro de 1851 já se poderia tratar do fabrico do fumo, fazendo-se indispensável a presença de uma pessoa que entendesse do assunto para ensinar a arte aos colonos.

comparado com o milho, o feijão, a batata, a banha etc. e cuja matéria-prima se impôs no mercado por sua qualidade. A qualidade do fumo se originou não só da especialização dos colonos, mas também, e sobretudo, devido à ação dos comerciantes e mais tarde das indústrias.

INOR/AG. AssMANN

Fumo produzido em Santa Cruz em 1874

Lavoura de fumono município de Vale do Sol

Page 180: Rio Pardo 200 anos

179Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

Em 1917, houve um fato crucial para o desenvolvimento econômico do vale do Rio Pardo: a instalação em santa Cruz do sul da Brazilian tobacco Corporation, antecessora

da Companhia Brasileira de Fumo em Folha (1920) e da souza Cruz (1955). O empreendimento partiu da empresa inglesa British American tobacco (BAt) e foi o passo inicial para a transformação de santa Cruz em um polo nacional da indústria fumageira.

Mas por que santa Cruz conheceu a industrialização e o crescimento econômico e não o município de Rio Pardo, que dispunha de condições logísticas como portos fluviais e a estrada de ferro? Para o ex-ministro da Agricultura (1984-85) e ex-presidente da Associação Brasileira da Indústria

do Fumo (Abifumo), o candelariense Nestor jost, o que pesou na escolha por santa Cruz foi a tradição dos colonos no trato com a cultura do tabaco. “Os colonos teuto-descendentes tinham mais prática de lidar com a terra e a mão de obra era estritamente familiar”, analisa.

O tabaco já era cultivado na colônia de santa Cruz desde o seu início. já em Rio Pardo, à época da instalação da Brazilian tobacco Corporation, o motor da economia era a pecuária. Nestor jost lembra, ainda, outros dois fatores importantes: o solo santa-cruzense era mais adequado para o cultivo do fumo de estufa e o município já era conhecido como um importante centro de produção de tabaco, inclusive com firmas exportadoras.

A escolha da cidade

Primeiro ingleses, depois irlandeses e norte-americanos coordenaram as operações da Companhia Brasileira de Fumo em Folha – atual souza Cruz – em santa Cruz do sul. A santa-cruzense Moina Mary Fairon Rech, autora do livro de memórias Uma janela para o passado, é filha de um dos primeiros diretores da companhia: o irlandês Patrick joseph Fairon, que chegou a santa Cruz em 1922, vindo diretamente de Londres.

segundo Moina, foi um inglês, Mr. Lees, quem definiu o local para a instalação da futura fábrica de beneficiamento de fumo em folha na região. duas cidades estavam sendo cogitadas: santa Cruz e Rio Pardo. Esta tinha uma localização privilegiada e contava com boa infraestrutura de transportes, mas a familiaridade dos colonos alemães com a produção de tabaco pesou na escolha de santa Cruz.

Enquanto as paredes dos armazéns iam sendo levantadas, um prédio foi construído para servir de moradia aos estrangeiros. A chamada Casa Inglesa, que hoje é o hotel vila Flor, foi concebida nos moldes de um clube inglês. servia de hotel aos que vinham de fora e residência para alguns outros. hábitos tipicamente britânicos eram mantidos, como o “cup of tea” (chá) servido à tarde. No local, também aconteciam concorridas festas.

A produção de fumo de estufa, introduzida em 1917 em santa Cruz, objetivava suprir com matéria-prima as fábricas de cigarro da souza Cruz. Paulatinamente, a produção aumentou. Em 1922 já havia mais de 25 fornos de secagem de tabaco em santa Cruz. Para difundir entre os colonos a nova técnica de cultivo, que também incluía a utilização do adubo químico e de pesticidas, foram contratados técnicos norte-americanos oriundos de regiões produtoras de fumo dos Estados unidos. É por isso que os mais antigos chamavam a CBFF ou a souza Cruz de “die Americaner”.

Chegam os estrangeiros

Técnicos vêm dos Estados Unidos

Entrega de fumo em Santa Cruz do Sul na primeira metade do século passado

Tradição teria determinado opção das indústrias por Santa Cruz do Sul

BANCO dE IMAGENs/Gs

Page 181: Rio Pardo 200 anos

180 Uma luz para a história do Rio Grande

No conjunto arquitetônico preservado em Rio Pardo, suas igrejas figuram entre os prédios mais importantes. Marcada sobretudo pela influência da Igreja Católica, a cidade tem um significativo acervo

que inclui altares e imagens barrocas do final do século XvIII e início do XIX. Construções anteriores não existem mais, embora se saiba que o primeiro templo – rústica capela construída possivelmente em 1753 – fazia parte do conjunto da Fortaleza jesus, Maria, josé. honrava a sagrada Família e atendia militares e demais funcionários do então império português.

Anos mais tarde foi erguida a capela de santo Ângelo, na atual Rua Andrade Neves. Em 1762 ela se tornou capela curada. Em 8 de maio de 1769 foi criada a Freguesia de Nossa senhora do Rosário de Rio Pardo, que se constituiu na quarta freguesia da Província. A nova matriz foi inaugurada em 3 de outubro de 1779. Em procissão, com a presença do governador josé Marcelino de Figueiredo, fiéis conduziram as imagens da capela de santo Ângelo para o novo templo.

Essa capela, conforme o professor de Arquitetura e urbanismo da universidade de santa Cruz do sul (unisc), Luiz Carlos schneider, ficou localizada no mesmo ponto onde se encontra hoje a Matriz. tratava-se de um prédio de taipa de barro. depois de alguns anos, em razão, principalmente, do desmoronamento da nave central, houve a necessidade de construção de um novo templo.

Um templo na Fortaleza

A RElIGIOSIDADE

As igrejas de Rio Pardo; as misteriosas imagens da São Francisco; a religiosidade dos imigrantes; Monges Barbudos ao longo do tempo; quebra-santos em João Rodrigues; os cultos de origem africana.

Matriz de Rio Pardo foi iniciada no final do século XVIII

INOR/A

G. AssM

ANN

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181Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

Matriz em foto do final da década de 1870

A Matriz Nossa senhora do Rosário, iniciada no final do século XvIII, levou quase cem anos para ser concluída e

ter a forma atual. Foi sofrendo intervenções de reorganização funcional e estética, influenciadas por distintos momentos da história.

A arquiteta especialista em patrimônio cultural edificado, vera Lucia schultze, explica que o templo tem uma forte simplicidade de linhas, traduzindo em sua composição o arranjo interno, com nave central, consistório lateral, capela-mor e sacristia. As torres possuem o formalismo neoclássico do século XIX e a capela-mor, a sacristia e a casa canônica apresentam características ecléticas do século XX.

segundo vera schultze, documentos de receitas e despesas da irmandade do santíssimo sacramento, datados de 1791 e 1792, revelam compras de materiais de construção e pagamento de obreiros. “Portanto, conclui-se que o início da construção tenha ocorrido nesse período”, observa. Em 1801, apesar do estado precário para o uso, ela é dada como concluída, embora ainda lhe faltem o alto das torres e o consistório.

A finalização levaria ainda muitas décadas. Ocorreu somente em 1885, quando os arquitetos italianos Corso serafim e vicente

Nossa Senhora do Rosário

A RElIGIOSIDADE

Matriz levou quase cem anos para chegar à forma atual

Prato decoraram o interior do templo e concluíram a segunda torre. Maior igreja do município, a Nossa senhora do Rosário, ou simplesmente Matriz, está localizada na Rua júlio de Castilhos – antiga Rua da Ladeira.

•• O lustre da Matriz

Escreveu Marina de Quadros Rezende que no século XIX, no centro de sua nave, havia um lustre de tamanho colossal que possuía dezenas de braços, centenas de castiçais e milhares de pingentes de cristal. Em uma época em que a luz elétrica ainda não existia em Rio Pardo, nas noites em que ocorriam festividades religiosas no templo, os fiéis podiam se deliciar com um cenário deslumbrante. Um dia o lustre caiu. Foi consertado, mas ficou bastante reduzido. Quando houve a reconstrução da capela-mor e a decoração da Matriz, entre 1928 e 1930, ele foi definitivamente eliminado.

FOtOs: INOR/AG. AssMANN

Altar-mor da Matriz de Rio Pardo

ACERvO dE MIGuEL COstA

Altar de Nossa Senhora das Dores

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182 Uma luz para a história do Rio Grande

•• Os sete altares da Matriz de Rio Pardo

1

3

4

5

6

7

1

Altar de N. s. do R. dos Pretos

2Altar de N. s. das dores

3

Altar-mor de N. s. do Rosário

4

Altar de são Miguel Arcanjo

5

Altar de são Francisco de Paula

6

Altar de sant’Ana

7Altar do Espírito santo

1

FOtOs: INOR/AG. AssMANN

2

1 Altar do Espírito Santo O retábulo de madeira talhada, com detalhes dourados, apresenta composição de características neoclássicas.

2 Altar de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos sem peças de relevo dourado, revela a origem humilde dos integrantes da irmandade. Atualmente abriga a imagem de santa terezinha.

3 Altar Nossa Senhora das Dores Pertenceu à irmandade de mesmo nome e é apontado como uma das mais importantes peças do barroco religioso no Brasil. É o primeiro em importância artística dentro do templo.

4 Altar-mor Localizado na capela-mor, é o mais importante do templo e abriga a Imagem de Nossa senhora do Rosário e o santo sacrário. do ponto de vista artístico, é o segundo mais importante do templo. A imagem original de Nossa senhora do Rosário foi furtada em 1983. hoje, ocupa o altar-mor a imagem de Nossa senhora do Rosário dos Pretos, que se encontrava no altar da irmandade do mesmo nome, onde agora está santa terezinha.

5 Altar de São Miguel Abriga o sagrado Coração de jesus, pois a imagem de são Miguel foi furtada em 1983. Em madeira talhada e detalhes dourados, apresenta características neoclássicas, onde os elementos refletem o fim da exuberância decorativa da escola barroca.

6 - Altar de São Francisco de PaulaAbriga a imagem de são Francisco de Paula e apresenta composição de características neo-clássicas.7 Altar de Sant’Ana Abriga a imagem de Nossa senhora da Conceição e também apresenta composição de características neoclássicas.

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183Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

As irmandades

As irmandades eram associações do meio urbano organizadas por leigos católicos – fiéis que se dedicavam ao culto a um padroeiro, podendo ser um santo ou uma invocação à virgem

e a jesus. Possuíam objetivos de ajuda mútua e praticavam obras de caridade. As irmandades construíam suas próprias igrejas ou dividiam espaço em altares laterais com outras irmandades. davam importância às categorias raciais e sociais e tinham um caráter étnico. Existiam irmandades só de homens brancos de elite e havia aquelas só de escravos. Elas ofereciam a seus membros benefícios espirituais e materiais. Os benefícios espirituais eram as missas e rezas pelos irmãos mortos e vivos, missas para a salvação das almas, “proteção” do santo padroeiro, acompanhamento em grande estilo ao enterro, procissões e outros. Os materiais eram o auxílio para a doença ou enterro (caixão, mortalha), atendimento médico e remédios, oferecimento de catacumbas, auxílio para educação de órfãos, ajuda aos que caíssem na miséria ou mesmo na prisão etc.

todos os anos, as irmandades organizavam festividades ao santo de devoção – promoviam procissões, quermesses, badaladas de sinos, decoração das ruas e igrejas. saíam pelas ruas das cidades acompanhadas de seus membros, muitas vezes com bandas de música, tochas e fogos de artifício. As festas religiosas e procissões eram um momento privilegiado de convívio social, sobretudo para as mulheres, que viviam restritas ao ambiente familiar. As procissões eram o ponto alto para os membros das irmandades: cada uma tinha sua vestimenta, cores e estandartes, que lhes davam reconhecimento interno e externo.

Com planos de erguer um templo próprio, a Irmandade dos Passos implantou em 1805 a primeira mesa administrativa. No ano seguinte recebeu a doação de um terreno na Rua santo Ângelo – atual Andrade Neves – e em 1815 iniciou a construção da capela e do cemitério, que abrigaria os membros falecidos e seus parentes. Localizado aos fundos da igreja, hoje resta pouco ou quase nada dele. Além da igreja, outra obra da Irmandade dos Passos é o prédio que serviria de hospital, mas que foi transformado em Escola Militar.

A capela do senhor dos

Passos tem as proporções características da época, com destaque para suas torres e a entrada lateral um tanto acastelada. suas linhas gerais são de uma singeleza suave. No portal encontra-se enterrado Patrício josé Correa da Câmara, falecido em 1827 com quase 90 anos, que foi Comandante da Fronteira. Em seu interior havia um oratório e vários quadros a óleo.

Igreja Senhor dos Passos

Igreja dos Passos pertence à única irmandade que ainda existe em Rio Pardo

Para participar, valiam as categorias sociais e étnicas

•• Riqueza e desigualdade

As festividades das irmandades revelavam a riqueza da sociedade, mas também as desigualdades. O luxo das igrejas contrastava com a extrema pobreza das casas do povo, que preferia doar tudo para a irmandade ou à igreja. Para os escravos, a festa era um dia de interrupção do trabalho forçado. Permitia aliviar os sofrimentos do cativeiro e encontrar seus semelhantes. Os escravos aproveitavam para expressar sua cultura, promovendo batuques e danças de tradição africana. O período áureo dessas organizações foi o do Brasil colonial. Elas permaneceram fortes durante o Império e foram perdendo prestígio durante a República, quando se deu a separação entre a Igreja e o Estado. Nesse período ocorre a romanização do catolicismo brasileiro.

•• Mais de 200 anos

Durante o século XIX a sociedade rio-pardense testemunhou a existência de várias irmandades. Em documentos e artigos existe menção a

uma série delas, dentre as quais as do Santíssimo Sacramento, de Nossa Senhora do Rosário, de Nossa Senhora das Dores, da Ordem Terceira de São Francisco, do Senhor Bom Jesus dos Passos, de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, de São Miguel e Almas e Divino Espírito Santo. Atualmente, somente a Irmandade dos Passos continua ativa no município de Rio Pardo.

FOtOs: INOR/AG. AssMANN

Foto do interior da Igreja dos Passos

Page 185: Rio Pardo 200 anos

184 Uma luz para a história do Rio Grande

Capela de São Francisco

Em 1802, com a doação do terreno feita por Antônio Borges Coelho, foi dada a largada para a construção da Igreja de são Francisco. O empreendimento foi bancado

pela Irmandade da Ordem terceira de são Francisco de Assis, criada em 17 de outubro de 1785. A construção da parte inicial, a capela-mor, iniciou-se em 1806 e foi custeada por Manuel de Macedo Brum e Mateus simões Pires, abastados proprietários e ativos participantes da vida política de Rio Pardo.

Em 2 de janeiro de 1812, levando a imagem de são Francisco das Chagas, ocorreu a inauguração do templo. Mesmo inacabado, as missas e festividades passaram a ser celebradas ali. Conforme estudos realizados por Francisco Riopardense de Macedo, a estrutura da capela-mor induz a supor que

o objetivo inicial era construir um templo bem maior, com três naves, o que não se concretizou. Possivelmente, uma vela deixada acesa provocou o incêndio da igreja no dia 28 de novembro de 1853. As labaredas consumiram a capela-mor, diversas imagens e objetos de culto. também destruíram praticamente toda a documentação da irmandade. O altar-mor foi reconstruído com recursos do governo provincial e de membros da irmandade e conservou as mesmas proporções do desaparecido. A reinauguração aconteceu em 4 de outubro de 1857.

Por trás da fachada pobre, obras de arte

Templo inaugurado em 1812 teve que ser reconstruído após incêndio em 1853

Quando desceu na Estação Ferroviária de Rio Pardo, em setembro de 1914, o padre Carlos Thomaz Broggi jamais poderia imaginar que estava chegando em uma cidade que iria adotá-lo como filho e de onde jamais sairia. Nascido na sicília (Itália) em 1877, ele é um dos personagens mais marcantes da história recente do município.

Aportou em Rio Pardo acompanhado de um fox paulistinha chamado joli, e carregando uma pequena mala e uma bola de futebol. sua chegada coincidiu com um momento de crise na Igreja da localidade, por divergências com a maçonaria. Em 8 de novembro de 1914, foi nomeado vigário da Paróquia de Nossa senhora do Rosário.

Broggi logo fez amigos e conseguiu a simpatia da criançada. Costumava ir para a frente da matriz com o cãozinho e a bola, conversava e jogava com a gurizada. dessa forma, gradativamente foi conquistando a comunidade. visitava as famílias e era sempre convidado nos casamentos e aniversários.

Como pároco, mostrava-se exigente. No púlpito, quando necessário, era severo e usava palavras fortes. Não raras vezes, interrompia a pregação e se dirigia à porta da igreja para chamar os homens que tinham o hábito de sair para fumar durante o sermão. Muitas vezes, ao se exaltar no púlpito, fazia questão de frisar que as palavras não eram dirigidas ao querido povo rio-pardense.

O rigoroso Broggi

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185Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

Escreveu dante de Laytano no artigo Monumentos Históricos e Antigos de Rio Pardo, de 1932, que a fachada da Igreja de são Francisco é pobre, mas encerra no seu interior, em altares mais pobres ainda, sete imagens de madeira que – excetuando-se as de Minas Gerais – são

as mais notáveis do Brasil. Laytano se refere às estátuas que joaquim josé de Oliveira, vice-ministro da Ordem terceira de são Francisco, doou ao templo em 1807. são cinco estátuas raras, em tamanho natural, mais a Nossa senhora da Boa Morte e a Nossa senhora da Glória, e com grande perfeição no entalhe; reprodução perfeita de músculos, veias, fios de barba e cabelos. Elas simbolizam parte da via Crucis e representam jesus Cristo em cinco das 14 estações do trajeto até a crucificação: senhor no horto das Oliveiras, jesus Manietado, Cristo na Coluna Açoitado, senhor Coroado de Espinhos e Ecce homo.

Mas a origem desconhecida das peças de arte sacra leva à criação de hipóteses. uma delas é a de que as obras teriam sido feitas pelo artista mineiro Aleijadinho. Outra é de que pararam em Rio Pardo por engano, pois seriam destinadas a outro local.

O tesouro misterioso

No artigo citado acima, Laytano afirma que as imagens seriam procedentes da Alemanha e teriam chegado a Rio Pardo através de Portugal. O turismólogo Flávio Canto Wunderlich acredita que a documentação referente à origem das estátuas tenha sido destruída em 1853, quando o altar da Igreja são Francisco pegou fogo.

Wunderlich argumenta que são nulas as hipóteses de que tenham sido construídas aqui no Brasil pelas mãos do Aleijadinho, história difundida até alguns anos atrás. Ele também não acredita na hipótese de que as estátuas não tivessem sido destinadas a Rio Pardo. “Nos séculos XvIII e XIX, Rio Pardo era a maior vila do Rio Grande do sul, além de ser o principal entreposto comercial. Então não há motivos para as pessoas acharem que essas imagens não poderiam ter sido destinadas para cá”, comenta.

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Peças de autor desconhecido chegaram em 1807

•• Estudioso aponta Portugal

A hipótese mais provável foi levantada por Moacyr Flores, doutor em História, que esteve em Rio Pardo para analisar as peças. Ele afirma que as imagens são portuguesas e contesta a teoria do escritor e historiador Dante de laytano, que dizia que eram de origem alemã. “No período da construção da Igreja de São Francisco, primeira parte do século XIX, tínhamos ligações apenas com Portugal e não com a Alemanha”, salienta. “Além disso, as características das peças são do barroco português e não do barroco alemão”, acrescenta. Segundo o estudioso, imagens semelhantes são encontradas em outras cidades, como Salvador, onde existe a confirmação de que foram feitas em Portugal.

Ecce Homo, Senhor Coroado de Espinhos, Cristo na Coluna Açoitado

Jesus Manietado, Jesus no Horto das

Oliveiras

Page 187: Rio Pardo 200 anos

186 Uma luz para a história do Rio Grande

Promessa para Nossa Senhora

vários vestidos de noiva, de épocas diferentes, estão armazenados em uma sala da Igreja de são Francisco, em Rio Pardo. E cada um deles veste a imagem da Nossa senhora da Boa Morte durante um ano. O vestido é trocado sempre no dia 17 de

agosto, dia da santa. Quem visita o local pode estranhar Nossa senhora vestida de noiva, mas esse costume foi estabelecido a partir de uma lenda, que deu origem às promessas das moças que desejam se casar.

A lenda, que se confunde com a realidade, deve ter mais de 100 anos e fala de uma devota filha de família rica da cidade de Rio Pardo, que frequentava a missa aos domingos – quando lhe era permitido sair de casa. E foi em uma missa que ela conheceu o rapaz que viria a ser o grande amor de sua vida. Era um soldado pobre e sem perspectiva de enriquecer,

O altar que abriga Nossa Senhora da Boa Morte e

Nossa Senhora da Glória é um dos três existentes

no Brasil. Existem conjuntos semelhantes no Rio de Janeiro e em Pernambuco. O simbolismo representa a morte de Maria – imagem deitada – e a assunção, que é a Nossa Senhora da Glória, quando Maria é levada aos céus pelos anjos e é coroada.

pois somente os comandantes ganhavam terras como prêmio pelas vitórias. A família proibiu o namoro e ela, então, fez a promessa a Nossa senhora da Boa Morte: caso conseguisse se casar com o soldado, doaria o vestido de noiva para que fosse trocado pela veste preta usada pela santa.

Por influência da família dela, o rapaz foi enviado para longe. Em protesto, a moça iniciou uma greve de fome e começou a definhar. Por fim, sem ver outra solução, os pais autorizaram o casamento e mandaram buscar o rapaz. já bastante fraca, a moça foi vestida de noiva e levada até a Igreja de são Francisco. Encontrou o soldado na porta. trocaram as alianças e um beijo, e então ela morreu nos braços do amado. Mesmo com o fim trágico, a santa recebeu seu primeiro vestido branco.

desde então, moças que querem se casar fazem a promessa de doar o vestido de casamento para Nossa senhora da Boa Morte. Atualmente são 15 peças, mas a igreja teve muitas outras, que não resistiram aos efeitos do tempo. também correm boatos de que alguns casamentos não foram tão românticos quanto as jovens esperavam: terminaram em separação, e as mulheres acabaram retirando os vestidos da coleção.

Mulheres doam o vestido caso consigam casar, um costume que teria se originado há mais de cem anos

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187Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

Felício josé Rodrigues de Araújo Prates era seu nome de batismo. Na crisma, passou a ser chamado Feliciano, em homenagem a um irmão que falecera prematuramente. Nascido na Aldeia dos Anjos – hoje Gravataí – em 13 de julho de

1781, tinha menos de dois anos quando sua família foi morar em Rio Pardo. Aos 15 foi para o Rio de janeiro estudar no seminário Nossa senhora da Lapa, onde se ordenou sacerdote em 1804, aos 23 anos. Ainda no Rio foi trabalhar no Exército, como capelão da Fortaleza do Morro da Conceição.

Retornou ao Rio Grande do sul e serviu por 30 anos como capelão no Regimento dos dragões, em Rio Pardo. Foi assim que dom Feliciano ganhou as terras da Fazenda são Lourenço, a 30 quilômetros de Rio Pardo. A concessão de terras, antes pertencentes aos índios, para militares – por serviços prestados ao governo – era prática comum na época. tempos mais tarde ele trocou a então fazenda por outra, a Fazenda Nossa senhora da Lapa, localizada a oito quilômetros de Encruzilhada do sul.

O primeiro bispo do RS

Dom Feliciano

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Fazenda da Lapa foi a segunda de Dom Feliciano, que anteriormente recebeu a São Lourenço

Felício José Rodrigues assumiu comando em 1853

•• longe da política

Estamos em 1838 e no Rio Grande do Sul a Revolução Farroupilha provoca um cisma na Igreja Católica, consumado em 22 de junho. A maioria do clero adere à causa farrapa e passa a obedecer ao padre Francisco das Chagas Martins de Ávila e Sousa, nomeado vigário apostólico por Bento Gonçalves. Francisco acompanha as Capitais da República – Piratini, Caçapava e Alegrete –, nomeia párocos, curas e administra a crisma. Solicita os santos óleos ao vigário apostólico do Uruguai, monsenhor Dâmaso Antônio larrañaga. Feliciano não concorda com isso e prefere se retirar para a fazenda. Mas ainda antes do término da guerra, pede para ser nomeado vigário da então Freguesia de Santa Bárbara de Encruzilhada, assumindo em 1842. Embora a Igreja Católica pensasse em criar uma diocese na Província desde 1824, o cisma da Revolução teve papel decisivo. Em 7 de maio de 1848 o Papa Pio IX, com a bula Ad oves dominicas rite pascendas, erigiu a Diocese de São Pedro do Rio Grande do Sul. A instituição do novo bispado ocorreu apenas em 11 de fevereiro de 1853 e a Diocese foi oficialmente instalada em 3 de julho de 1853, com a posse de Dom Feliciano. No pouco tempo em que esteve chefiando o clero, realizou uma grande obra: criou o primeiro seminário do Estado e defendeu o exercício do sacerdócio longe da política e da maçonaria. Faleceu em 27 de maio de 1858, aos 77 anos. Seus restos mortais estão sepultados dentro da Catedral de Porto Alegre. Além de ter sido o primeiro bispo da Província e um disciplinador da Igreja Católica, Dom Feliciano foi também tio-avô de Júlio Prates de Castilhos, primeiro presidente do Estado.

Page 189: Rio Pardo 200 anos

188 Uma luz para a história do Rio Grande

•• Corpus Christi

Festas de tradição portuguesa

As tradições católicas europeias, especialmente portuguesas, sempre foram fortes em Rio Pardo. Algumas festas são mantidas até hoje. O maior exemplo é a semana

santa que, além da religiosidade, movimenta a cultura e o turismo do município.

A tradição veio com os portugueses em 1762 e, desde então, nunca deixou de existir. Em1960, através de Biagio tarantino, em comum acordo com a Igreja Católica, a celebração ganhou uma dimensão maior e passou a unir religiosidade, arte e cultura.

A Festa do divino, que acontece 50 dias depois da Páscoa, também é tradição portuguesa. Entre suas características, estavam a soltura de um preso e a oferta de comida grátis aos pobres. Outra festa religiosa tradicional em Rio Pardo é a de Corpus Christi. As ruas eram decoradas para a passagem da procissão. No século XIX, o evento contava com subsídios da Câmara de vereadores. As autoridades municipais tinham lugar de honra no cortejo.

O município também realiza as festas de Nossa senhora do Rosário e a de Nossa senhora dos Navegantes. A primeira remonta ao século XvIII e homenageia a padroeira do município, no dia 7 de outubro. A segunda, cuja procissão pelo rio acontece pelo menos desde 1918, ocorre em 2 de fevereiro.

A procissão de Corpus Christi era uma das celebrações mais tradicionais de Rio Pardo. Na época desses festejos, o Centro era decorado com arcos, bandeiras, flores e outros ornamentos. As janelas dos sobrados ganhavam panos coloridos para enfeitar o caminho da procissão. Para comunicar o início, os sinos tocavam e os tambores rufavam, segundo Eduardo Duarte no texto A eucaristia e o sentimento religioso no velho Rio Pardo, escrito em 1947. Assim consta a descrição detalhada de tal acontecimento:

[...] Abre o préstito o guião da Irmandade do Santíssimo Sacramento. Quatro irmãos também revestidos da cor que distingue a Irmandade (escarlate) seguram os cordões que escudam o pesado guião. Dois outros irmãos empunham tochas, fazendo guarda ao sagrado estandarte.

Irmandades que ainda hoje subsistem guardando a tradição, através de sucessivas gerações. Nossa Senhora do Rosário com elevado número de irmãos, opas brancas orladas de azul, todos empunhando tochas.

Senhor dos Passos, São Francisco Xavier, duas poderosas forças religiosas, com sede própria não faltavam. Igualmente os homens de cor, forros ou libertos, na humildade de sua posição social, filhos também de Jesus, entoando preces a São Benedito, seu protetor.

A Irmandade do Santíssimo era, em tempos remotos, constituída pelos elementos de maior representação social e, nas procissões eucarísticas, a ela tocava a organização e articulação do préstito.

Precedia a cruz de prata, obra de alto valor artístico, mangas de seda finíssima, lampejos de ouro, ladeados por dois irmãos empunhando tochas; o provedor, homem de prol, levava à destra o seu bastão, peça finíssima, distintivo de sua autoridade de chefe. [...]

Procissão de Navegantes, em meados do século passado

Nossa Senhora dos Navegantes

Eventos religiosos são praticados desde o surgimento da povoação

•• São NicolauA Festa de São Nicolau, cuja data é 6 de dezembro, é um dos eventos católicos mais tradicionais. Ela acontece na comunidade de São Nicolau, a seis quilômetros do Centro de Rio Pardo.

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189Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

O catolicismo dos imigrantes, como destaca Martin dreher, diferia bastante daquele praticado no Brasil. historicamente, o catolicismo brasileiro havia se constituído com o combate aos mouros e absorvido uma série de tradições ibéricas,

de cristãos-novos, de escravos africanos e de indígenas. durante o período colonial e mesmo após a independência, na época do Império, a religião sofreu a influência do regalismo e burocracia do Estado. Prevalecia, conforme hans jürgen Prien, “uma religiosidade exterior, quase folclórica, que se manifestava em procissões, desfiles de confrarias, espetáculos pirotécnicos, novenas e festejos eclesiásticos, ou tratava-se de um catolicismo meramente nominal, sem qualquer participação na vida sacramental (penitência e eucaristia)”.

A ligação direta da Igreja era com o Estado, com o Império brasileiro, e não com Roma. A edificação dos prédios das igrejas matrizes – que se constituíam em sedes paroquiais e passavam a ser a referência política e religiosa das freguesias – e o provento dos clérigos eram atribuição do Estado. Adotando as disposições tridentinas, no Brasil, tanto no período colonial como na maior parte do Império, os registros de nascimentos, casamentos e óbitos somente tinham validade se realizados por uma autoridade religiosa paroquial. Nos núcleos urbanos as associações religiosas, denominadas de irmandades, construíam suas capelas. Nas áreas rurais, grandes proprietários de terras e de escravos mantinham os seus próprios templos.

já nas áreas coloniais, pelo contrário, a construção da capela ou da igreja era sempre de iniciativa dos próprios fiéis, que elegiam diretorias e comissões construtoras. Além da contribuição pecuniária distribuída segundo os haveres: este deu uma árvore de cerne para o madeiramento, aquele forneceu as pedras para o fundamento, o terceiro trabalhou dez dias gratuitos como ajudante de pedreiro, o quarto doou um vitral para as janelas, o quinto é padrinho do sino, o sexto... toda a população ajudou com dinheiro, donativos e trabalho voluntário a sua igreja – na qual, ao entrar, saúda as boas obras próprias e dos antepassados.

O catolicismodo imigrante

Antiga Matriz de Santa Cruz do Sul com a Catedral atual, ainda em construção

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Comunidade colonial tinha religiosidade diferenciada

•• Precursor

Uma das figuras mais proeminentes da Igreja Católica no Rio Grande do Sul foi o padre jesuíta suíço Theodor Amstad (1851-1938), considerado o pai do cooperativismo no Brasil. Ele imigrou em 1885 e a partir de 1902 lançou as bases de um sólido sistema cooperativo. Foi por seu intermédio que se criaram as cooperativas de crédito. A primeira delas foi criada em 1902. Passados alguns decênios, dezenas delas podiam ser encontradas nas áreas de colonização alemã do Estado. Nos anos 60 do século passado, o Banco Central limitou a atuação desse tipo de cooperativa. Muitas delas acabaram encerrando as atividades. As remanescentes deram origem ao Sicredi, na década de 1990.

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190 Uma luz para a história do Rio Grande

Martinho Lutero

Como inicialmente os evangélicos eram majoritários entre os imigrantes alemães, as comunidades protestantes foram as primeiras a serem organizadas. As próprias comunidades, que eram completamente

independentes e autônomas umas das outras, escolhiam seus pastores. dado que na Província inexistiam teólogos

luteranos formados em seminários ou universidades, e na ausência de

recursos para “importar” pastores da Alemanha, os assim denominados “pseudopastores” faziam os ofícios religiosos como batismos, confirmações, casamentos e

serviços fúnebres. A rigor, a igreja dos pastores

passou a existir somente após 1864. Foi somente a partir dessa data que a ajuda de instâncias

eclesiásticas da igreja evangélica alemã principiou. Por essa época, obreiros e obreiras passaram a ser enviados com certa regularidade à Província. A tentativa de unir as comunidades evangélicas em um sínodo se deu primeiramente com o pastor hermann Borchard, em 1868. Mas somente em 1886 o pastor Wilhelm Rotermund obteve êxito na fundação do sínodo Rio-grandense que, naquele momento, reuniu sete igrejas.

Luteranos eram maioriaComunidades protestantes foram as primeiras a ser organizadas, a princípio com “pseudopastores”

Esse sínodo foi a organização eclesiástica que congregou a maioria dos luteranos da Província, e hoje é a Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).

•• À margem da sociedade

Durante o Império, os imigrantes alemães luteranos e seus descendentes foram vistos como uma população que vivia à margem da sociedade brasileira. O catolicismo era a religião oficial do Estado brasileiro e os demais cultos, embora tolerados, não podiam ser ostentados publicamente. Os não católicos também não podiam votar nem ser votados nas eleições. Isso seria modificado ainda antes da Proclamação da República. Afirmava o Artigo 5º da Constituição do Brasil de 1824:

A religião católica apostólica romana continuará

a ser religião do Império. Todas as outras religiões serão permitidas com seu culto doméstico ou particular, em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior de templo.

Antiga Igreja Evangélica em Santa Cruz

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Wilhelm Rotermund

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191Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

Jacobina fez o sinal da cruz e começou a falar na esperança e no sonho de um mundo melhor, sem intrigas, sem

perseguições nem choro, um mundo onde cada um daqueles infelizes encontraria paz e saúde, uma terra de leite e de mel, onde os pobres não passavam fome e sentavam à mesa dos ricos. (...) Porque o Senhor falava a Jacobina e Jacobina falava a Ele; uma comunhão perfeita entre o Espírito e a Carne, entre a Divindade e o Homem. Ela, Jacobina, não era nada, ninguém, uma pobre-coitada como todos os que se ajoelhavam e sofriam naquela sala. Mas por

um especial dom, só compreensível pela extrema generosidade de Deus, ela ouvia de Deus tudo o que Ele queria dizer aos homens; confiassem nela, ainda que sua presença e sua voz de mulher parecessem tão fracas.

Estudiosos que analisaram a personalidade de jacobina Maurer sob o ponto de vista médico chegaram a diferentes avaliações. Alguns disseram se tratar de uma personalidade psicopática, com crises histeroepilépticas. Outros classificaram seu caso como sendo de histeria. Outros, ainda, julgaram que ela tinha percepções extrassensoriais. O fato é que as crises de jacobina impressionavam os colonos, que as identificavam com manifestações divinas. Acreditavam que, nos seus “transes”, ela se tornava a porta-voz de deus.

No início jacobina usava seus supostos dons paranormais para fazer curas, junto com o marido. “Envolta pela própria fama de santidade, não resistiu à tentação do misticismo. seu erro foi interpretar a Bíblia, abuso imperdoável aos inflexíves pastores e padres. Enquanto a cura era do corpo, a acusação era apenas de charlatanismo. Quando passou a ser da alma também, de sacrilégio. O fanatismo de parte a parte exigiu violência e, por fim, o martírio dos hereges”, avalia Elma sant’Ana no livro Jacobina Maurer. No auge de sua pregação messiânica, jacobina Maurer se apresentou não só como a própria encarnação de Cristo – qualificou-se como o “Cristo Feminino” – mas também prometeu aos seus seguidores o estabelecimento da Cidade de deus. Para submeter os Mucker, foi necessário enviar uma expedição militar com artilharia, sob o comando de um coronel.

•• Videiras de Cristal

Jacobina e os “falsos santos”Seita dos Mucker desafiou o governo imperial

Os Mucker eram uma pequena comunidade de fanáticos religiosos que se

formou no município de são Leopoldo, na atual área de sapiranga, na localidade situada ao pé do morro Ferrabrás. Como todo o município, aquele lugar era ocupado por imigrantes alemães, católicos e protestantes que haviam chegado ao Estado a partir

de 1824.Em torno de joão jorge

Maurer, carpinteiro que se tornara curandeiro, e de

sua mulher, jacobina Mentz Maurer – figura enigmática que

tinha “visões” e logo foi considerada uma profetisa – reuniu-se um número

crescente de colonos. Criou-se uma seita messiânica, cujas cerimônias tinham por base a leitura e o comentário da Bíblia. A propagação de suas ideias na colônia causou vários incidentes com outros moradores, que eram hostis ao movimento. Em pouco tempo, a expansão do grupo fragilizou a ordem social na região. A população os chamava de Mucker – “falsos santos” ou “santarrões” em alemão. Foram acusados de subversivos, fanáticos e sanguinários. Odiados e perseguidos, acabaram sendo mortos por tropas do governo imperial em agosto de 1874, durante um cerco ao morro Ferrabrás.

A história dos Mucker começa em 1868, quando joão jorge Maurer alcança grande fama como curandeiro e é conhecido como o “Wunderdoktor”, o doutor Maravilhoso. Era um período em que havia falta de médicos e de escolas para dar assistência aos colonos. O curandeirismo de Maurer tentou preencher essa lacuna.

segundo janaína Amado, no livro Conflito social no Brasil – A revolta dos Mucker, a maior parte dos Mucker nasceu no Brasil (64%). 94% eram descendentes de famílias antigas na região, residentes em são Leopoldo desde a fundação da colônia. É provável que o total deles chegasse a mil pessoas, apenas 4,96% a 7,09% da população de são Leopoldo na época. A partir de 1869, jacobina desponta como líder do movimento. Entre 1871 e 1872, a seita começa a defender o milenarismo, isto é, a crença de que o fim do mundo estava próximo. Os Mucker abandonam escolas, eleições e igrejas. e começam a ser perseguidos. Criam um mundo de leis próprias e radicalizam suas posições, adotando a luta armada. Os anos de 1872 e 1873 são marcados por ataques, incêndios e assassinatos, cometidos tanto pelos Mucker como por seus adversários.

Uma personalidade intrigante

Trecho do romance Videiras de Cristal, de Luiz Antonio de Assis Brasil, que inspirou o filme A paixão de Jacobina (2002), com Letícia Spiller no papel-título.

Os Mucker, filme de Jorge Bodanzky, de 1978

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192 Uma luz para a história do Rio Grande

O professor, nas comunidades coloniais, não se restringia à função de alfabetizador. sua missão era bem mais abrangente. Afirma Arthur Rambo que, ao lado do vigário e do pastor, ele era a personalidade mais importante de uma comunidade. Nas comunidades filiais das paróquias, onde a presença do padre ou do pastor era esporádica, sua liderança era ainda maior. “Além do papel de mestre-escola, cabia-lhe a responsabilidade de se antepor à comunidade como exemplo das virtudes cristãs, humanas e cívicas, como baliza referencial para os adultos, como esteio moral para os desnorteados e como orientador da juventude.” Portanto, além de se dedicar ao magistério, esperava-se também do professor o exercício de uma variedade de funções sociais na comunidade. deveria ser uma espécie de liderança em torno da qual giraria a vida cultural, religiosa e associativa.

Bispo da diocese de santa Cruz do sul, dom Alberto Etges, sobre o professor paroquial católico do passado.

uma das preocupações da população de origem germânica do sul do Brasil dizia

respeito ao aprendizado escolar dos filhos. A alfabetização era importante para os evangélicos que, desde o século XvI, quando se deu a Reforma de Martinho Lutero, tinham no saber ler um dos princípios fundamentais da prática religiosa. somente assim estariam aptos a interpretar livremente a Bíblia.

Mas a alfabetização também era buscada pelos católicos, que haviam trazido toda uma tradição escolar da Alemanha e da Áustria. Na região do hunsrück, por exemplo, 90% das crianças frequentavam a escola na segunda metade do século XIX. Estando a Província impossibilitada ou desinteressada na implantação de escolas públicas, uma rede de colégios, onde as crianças eram alfabetizadas em alemão, proliferou nas regiões de colonização.

Inicialmente, tinham surgido nas áreas coloniais as escolas domésticas, onde alunos eram confiados a uma pessoa mais estudada e esclarecida que ensinava noções de escrita, leitura e cálculo. Eram escolas precárias e de caráter emergencial.

Entre os evangélicos e os católicos surgiram, posteriormente, educandários mantidos diretamente pelas comunidades. telmo Lauro Müller defende que, ao contrário da escola paroquial católica, a escola evangélica particular não existia na Alemanha dos imigrantes, porque nas regiões onde predominava o luteranismo a educação era pública. A escassez de educandários no Rio Grande do sul é que teria forçado a criação de estabelecimentos desse tipo, no novo meio.

As escolas confessionais

A liderança dos professores

Colégio e Internato Sinodal, em 1922, que deu origem ao Colégio Mauá, em Santa Cruz

Professor Christiano

João Smidt e sua turma

de alunos em 1922, em Rio

Pardinho, inte-rior de Santa

Cruz

Imigrantes de origem alemã e italiana tinham grande preocupação com aprendizado escolar dos filhos FOtOs:BANCO dE IMAGENs/Gs

Um homem preparado e polivalente para o exercício do seu mister que era: ser professor e educador, catequista, diretor do

culto dominical, organista, regente do coral, orientador e animador da comunidade, conselheiro do povo, colaborador do clero (na ausência do padre, oficiava exéquias e assistia moribundos), pessoa de confiança das autoridades, promotor das entidades socioculturais de inspiração católica, correspondente e articulista de jornais e revistas.

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193Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

Igreja Metodista chega em 1923

•• As origensO metodismo é uma seita cristã protestante que surgiu na Inglaterra no século XVIII. É uma dissidência da Igreja Anglicana. O principal líder do movimento foi John Wesley, um religioso anglicano. A Igreja Metodista prega a necessidade de que seus fiéis desenvolvam uma ligação íntima com Deus, por meio do estudo metódico e aprofundado das escrituras sagradas. No princípio, o movimento não tinha a intenção de se separar da Igreja Anglicana. Foi somente após a morte de Wesley que os metodistas se desvincularam da Igreja Anglicana na Inglaterra. Nos Estados Unidos, a Igreja Metodista Episcopal foi criada em 1784, pouco depois da independência política das 13 colônias.

Seita cristã tem sua origem em uma dissidência da Anglicana da Inglaterra

O metodismo se iniciou em Rio Pardo em 1923, com a chegada do reverendo Eduardo Menna Barreto Jaime, que foi o primeiro pastor. Inicialmente, atendia poucas famílias. Ele pregava em Cachoeira do Sul e foi para Rio Pardo a convite dos metodistas da cidade. Durante três anos, os atos religiosos funcionaram em

salões e casas particulares. No Natal de 1926 foi inaugurado seu templo definitivo na Rua Padre Reus, próximo à Igreja São Francisco.

Segundo o reverendo João Nelson Betts, pesquisador da Igreja Metodista no Rio Grande do Sul, o templo foi um dos dez erguidos no Estado entre os anos1918 e 1926, para comemorar o centenário

A partir de 1900, os evangélicos passaram a sofrer a concorrência dos luteranos ligados ao Sínodo Alemão Evangélico do Missouri, Ohio e outros estados.

Em 1904, 13 igrejas do Rio Grande do Sul deram origem a um distrito do Sínodo de Missouri. Inicialmente, a pregação missionária foi feita exclusivamente na língua alemã. A partir de 1919, começou o uso do idioma nacional na atividade pastoral.

O gradativo abandono da língua alemã, principalmente nos centros urbanos, favoreceu o crescimento do Sínodo. Em 1935, 61 pastores, 189 comunidades e 30.122 almas pertenciam ao mesmo. Em 1937, sua denominação foi alterada para Sínodo Evangélico Luterano do Brasil e a partir de 1954, para Igreja Evangélica Luterana do Brasil (IELB).

Sínodo do Missouri

•• EtniasNão foram somente os alemães e descendentes que organizaram escolas comunitárias em solo gaúcho. A população de origem italiana e polonesa também vivenciou essa experiência.

Templo dos metodistas em

Rio Pardo foi inaugurado em

1926

do trabalho missioneiro da Igreja Metodista dos Estados Unidos.

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194 Uma luz para a história do Rio Grande

As religiões afro-brasileirasForte presença do negro no Brasil resultou em uma importante diversidade religiosa, também presente no Estado

•• Orixás do batuque no RS

As figuras mais emblemáticas da umbanda são os pretos-velhos. Ao lado dos caboclos, representam a principal diferença entre essa religião e o candomblé.

Segundo a tradição eles viviam nos cativeiros, passando por todos os tipos de sofrimentos e privações. Por isso, quando incorporam se apresentam de forma envergada, com dificuldades para caminhar devido às juntas enrijecidas. Sentam-se em pequenos bancos de madeira, como os tocos que existiam nas senzalas.

Fumando cachimbo de barro ou madeira e falando uma linguagem comum aos escravos, eles representam a força, a resignação, a sabedoria, o amor e a caridade. São humildes e não têm ódio pelas atrocidades a que foram submetidos no passado.

A sabedoria dos pretos-velhos

O Rio Grande do Sul é o Estado onde mais pessoas se dizem praticantes de religiões afro-brasileiras. Conforme recenseamento feito em 2000 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 1,62% dos gaúchos acredita em orixás,

contra 0,3% dos brasileiros e 1,31% da população do Rio de Janeiro. Enquanto entre as décadas de 1990 e 2000 houve diminuição das pessoas que afirmaram ter identidade religiosa associada aos cultos afro no Brasil, entre os gaúchos o crescimento foi de 33,6%.

A origem dessa crença remonta aos tempos da escravidão e está bem sedimentada na sociedade gaúcha. O professor associado do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Ari Pedro Oro, fala inclusive na existência de religiões afro-gaúchas, as quais constituem um complexo formado por diferentes expressões religiosas, com destaque para o batuque, a linha cruzada e a umbanda. “Há termos genéricos para se referir a elas, uns advindos de fora desse campo religioso. Por isso mesmo são portadores de certo preconceito, como saravá e macumba; e outros empregados no interior do campo religioso, como religião, povo de religião e nação”, explica.

Entre essas práticas, a considerada mais antiga é a do batuque. Os primeiros terreiros começaram a funcionar na região de Rio Grande e Pelotas. Segundo o historiador Marco Antônio Lirio de Mello, a presença do batuque é registrada desde o início do século XIX.

Devido às proibições impostas pelos colonizadores portugueses, que consideravam as danças e os rituais como feitiçaria, os negros assimilaram algumas tradições católicas e passaram a rezar para os santos e acender velas aos orixás. Isso gerou o sincretismo religioso. Nesse processo, as entidades africanas começaram a ser identificadas com os santos católicos.

Assimilação católica

A diversificação religiosa no Brasil, entretanto, passou a acontecer a partir de 1549, com o tráfico de negros para as terras recém-descobertas pelos portugueses. Até hoje as religiões de origem africana ocupam espaços importantes nas comunidades brasileiras, não só no tocante à fé, mas também à cultura e ao trabalho social que desenvolvem. Segundo a Federação Nacional de Tradição e Cultura Afro-brasileira (Fenatrab), existem 70 milhões de pessoas ligadas a elas, especialmente ao candomblé e à umbanda.

ORIXÁ CORRESPONDENTE CATÓLICO

Bará Santo Antônio, São Pedro e São BeneditoOgum São Jorge (no Sul), Santo Antônio (na Bahia)Iansã Santa BárbaraXangô São Miguel Arcanjo e São JerônimoObá Santa CatarinaOdé/Otim São Sebastião, Santa EfigêniaOssanha São José, Santo OnofreXapanã São Lázaro, Cristo das ChagasOxum Nossa Senhora da Conceição e Nossa Senhora Aparecida Fonte: Ari Pedro Oro

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195Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

•• Bem ou mal?

As crenças gaúchasPráticas religiosas ganharam novas características no Rio Grande do Sul

A predominância das religiões de origem afro no Rio Grande do Sul contribuiu para a inclusão de

um novo elemento à cultura do Estado: a religião afro-gaúcha, chamada assim por ser formada em território sul-rio-grandense, embora sua prática tenha começado com os povos de origem africana trazidos como escravos.

Isso faz com que existam pelo menos 30 mil terreiros espalhados em todo o Estado, com maior concentração na região metropolitana de Porto Alegre. Desses, 5% são de umbanda pura, 15% de batuque e 80% dedicados à linha cruzada.

As religiões de origem afro costumam ser interpretadas como voltadas ao mal – principalmente a linha cruzada, que emprega os exus e pombagiras. Essa crença se popularizou a partir da década de 1960. Trata-se de uma religião que promete soluções sobrenaturais para os problemas do homem moderno. Segundo Reginaldo Prandi, professor do curso de pós-graduação em Sociologia da Universidade de São Paulo (USP), os exus passaram a ser reverenciados a partir da separação entre bem e mal. “São entidades que foram destinadas para controlar o mal e não se acanham em trabalhar para ele, quando é considerado necessário”, explica. Já os pretos-velhos e caboclos são considerados espíritos de caridade.

•• As principais

>> BatuqueRepresenta a expressão mais africana do complexo afro-religioso gaúcho, pois a linguagem litúrgica é yorubana, os símbolos utilizados são de tradição africana, as entidades veneradas são os orixás e há uma identificação com as nações africanas. Existem registros de que essa prática existe desde 1833 no Rio Grande do Sul, mas ganhou força nos anos seguintes, sobretudo nas regiões de Pelotas e Rio Grande. A sua origem no Estado tem duas versões: uma delas indica que o batuque pode ter sido trazido por uma escrava vinda de Pernambuco e outra o associa às etnias africanas, que se estruturaram como espaço de resistência à escravidão.

>> UmbandaCorresponde ao lado mais brasileiro do complexo afro-religioso, pois se trata de uma religião nascida do sincretismo religioso popular, espiritismo kardecista, concepções religiosas indígenas e africanas. Seus rituais são celebrados em língua portuguesa e as entidades veneradas são sobretudo os caboclos (índios), pretos-velhos e bejis (crianças), além das falanges africanas (umbanda, candomblé, quimbanda). A primeira casa de umbanda do Rio Grande do Sul foi fundada em Rio Grande, em 1926, e se chamava Reino de São Jorge.

>> Linha cruzadaCultua o universo de entidades das outras duas modalidades – batuque e umbanda – e acrescenta a elas as figuras do exu e da pombagira. Começou a ser popularizada na década de 1960. As cores atribuídas aos exus e pombagiras são o vermelho e preto. A eles são oferecidas comidas secas e de sangue. As comidas secas dos exus são milho torrado, sete batatas assadas e farofa de farinha de mandioca torrada com dendê. Às pombagiras, são oferecidas batatas assadas.

Culto às imagens de santos afro é cercado de rituais e apresenta diferentes interpretações

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196 Uma luz para a história do Rio Grande

Santo Monge do Botucaraí

Conforme registra o livro João Maria, a recusa dos excluídos, do professor José Fraga Fachel, no verão de 1849 o acampamento em Campestre chegou a reunir em torno de mil pessoas. O governo da província concluiu, então, que a presença de curandeiros no interior não estava sendo benéfica à população. João Maria foi recolhido pela força policial e transferido para Florianópolis e, depois, ao Rio de Janeiro.

Por algum tempo, ninguém mais ouve falar em D’Agostini. Ele apenas reaparece em torno de 1853, no seu primeiro abrigo no Brasil: o Morro de Ipanema, em São Paulo. De acordo com Cesar Goes, em 1860 o administrador da usina de ferro registra, em um livro de apontamentos, que um funcionário havia encontrado vestígios de sangue na gruta onde vivia o monge. Ele concluiu que São João Maria teria sido morto por assaltantes, que enterraram o corpo, ou que teria sido devorado por animais selvagens.

Durante o século XIX, quando as igrejas convencionais ainda não tinham padres e pastores em número suficiente para atender

às localidades interioranas, era comum o surgimento de beatos e monges pelo interior do Brasil. Os eremitas pregavam a palavra de Deus, curavam com o uso de ervas e orações e ganhavam a fama de santos. Na região, o caso mais popular é o do Santo Monge que viveu por algum tempo nos altos do Cerro do Botucaraí, em Candelária. O professor de Sociologia da Unisc, Cesar Hamilton de Brito Goes, defendeu em 2007 a tese de doutorado Nos caminhos do Santo Monge.

De acordo com Goes, o monge, cujo nome de batismo era João Maria D’Agostini, era natural da região de Piemonte, na Itália. Ele chegou ao Rio de Janeiro em 1844. Em dezembro daquele ano, em Sorocaba (SP), preencheu sua declaração de estrangeiro. Informou ser solteiro, ter 43 anos e que vinha cumprir uma promessa à Santa Mãe de Deus. Em Sorocaba, estabeleceu-se no Cerro de Ipanema, onde havia a primeira usina metalúrgica do Brasil. No local, até hoje existe a Pedra do Monge. Em maio de 1846 surge o primeiro registro de sua presença no Rio Grande do Sul, em Santa Maria, na localidade que hoje é o município de Campestre. Ele pregava e realizava curas, ganhando a fama de homem santo e ocasionando o surgimento de verdadeiros acampamentos de pessoas que acorriam atrás das suas curas.

Esse ajuntamento em torno de

D’Agostini – também conhecido como Santo Monge ou São João Maria –, não contava com a simpatia das autoridades. Perseguido, ele seguidamente saía de cena e buscava refúgio no Botucaraí, em Candelária. Os principais registros de sua estada no Botucaraí são dos anos de 1848 e 1849.

Era descrito como de baixa estatura, cabelos grisalhos longos e barba cerrada. Vestia um hábito no estilo franciscano, calçava sandálias ou alpercatas e se apoiava em um cajado de madeira. Até hoje a figura do Santo Monge é venerada em Candelária, Sobradinho e municípios próximos. Junto ao morro, existe uma fonte de água que teria sido abençoada por ele. Também é comum as pessoas pagarem promessas e acenderem velas em sua memória.

João Maria D’Agostini era italiano e andou Brasil adentro em suas pregações

•• Maldição sobre Rio PardoAo contrário dos beatos, os monges não tinham autorização para pregar nas igrejas católicas. Mas como eram figuras populares entre o povo, acabavam tolerados pelo clero. No ano de 1848, o vigário Vicente Dias Lopes autorizou São João Maria a ocupar o púlpito da Igreja de Nosso Senhor dos Passos, em Rio Pardo. O monge teria atingido as elites da época, ao criticar o trabalho escravo e a concentração de terras. Segundo os relatos, o tenente-coronel José Joaquim de Andrade Neves teria encomendado – ou ele mesmo aplicado – uma surra no santo que, amarrado sobre uma mula, foi expulso da cidade.Conta a história que o eremita teria lançado uma praga para que Rio Pardo não progredisse, enquanto houvesse um Andrade Neves vivo no município. Na Sexta-feira Santa do ano de 2001, o bispo dom Sinésio Bohn deu uma bênção especial a Rio Pardo, com o objetivo de “desmanchar” a maldição do eremita.

Desaparecimento ocorreu em 1860

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197Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

Os estudos feitos por Cesar Goes indicam que não existiu apenas um monge, pois essas figuras eram comuns no século XIX. Muitos relatos de encontros com o Monge Santo podem não ter sido com ele. O professor explica que esses eremitas tinham o mesmo perfil físico, pregavam, faziam profecias e curavam usando o poder das ervas. Na sua fé, o povo achava que era sempre a

mesma pessoa, em uma espécie de fenômeno da continuidade.Na região de Sobradinho, Barros Cassal e Soledade, em direção a Passo Fundo, vivia

o monge João Maria de Jesus, cujo nome era Anastaci Marcaf. Muitos acreditavam se tratar do mesmo santo do Botucaraí. Em Lagoa Vermelha, existe a fonte de São João Maria que, para os devotos, teria sido abençoada por João Maria D’Agostini.

Na região de Encantado, no Vale do Taquari, no final do século XIX e início do século XX, surgiu a Comunidade dos Monges do Pinheiro. Ela foi dizimada por uma força policial em 1905. Os integrantes se diziam seguidores do Santo Monge e reconheciam no seu líder uma espécie de sucessor de São João Maria.

A Guerra do Contestado, entre Santa Catarina e Paraná, ocorrida entre os anos de 1912 e 1916, se deu em torno de um monge andarilho chamado José Maria. Ele se dizia parente ou amigo de São João Maria. Mas seria do Monge do Botucaraí? Ou de João Maria de Jesus? Ou de nenhum deles?

Há muitas datas e informações desencontradas, e muita coisa existe apenas nos relatos do povo. Com isso, as comprovações se tornam difíceis. Os próprios padres capuchinhos poderiam ter sido confundidos com eremitas.

A lenda do monge é responsável pela aparição de uma série de santos curandeiros nas mais variadas regiões do Sul do País. Sabe-se com certeza que João Maria D’Agostini, o Monge do Botucaraí, de fato existiu. Mas eventos a ele relacionados provavelmente se referem a outra pessoa, ou várias outras, que também usavam longas barbas e pregavam entre os mais pobres. É o caso do episódio conhecido como o Movimento dos Monges Barbudos, ocorrido na década de 1930 na região Centro-Serra – hoje municípios de Arroio do Tigre, Sobradinho, Jacuizinho, Tunas, Lagoão e Segredo.

Tudo teria começado em 1935, quando um suposto monge apareceu no interior de Soledade e ensinou a um morador da região, André Ferreira França, o Deca, os segredos das plantas medicinais. Esse homem, que dizia se chamar João Maria, teria afirmado a Deca que ele era o escolhido e deveria fundar uma seita. A partir daí, Deca começou a reunir vizinhos em sua casa para rezar e repassar os ensinamentos do monge: que o fumo plantado pelos colonos fazia mal à saúde e que um dia viria um salvador.

Pelo que se sabe, muitas pessoas da vizinhança ingressaram no movimento. Elas deixavam a barba e os cabelos crescerem, daí a origem do nome. Ocorre que, a exemplo de outras manifestações de cunho messiânico, os Monges Barbudos começaram a incomodar as autoridades, os comerciantes da região e a Igreja Católica. No dia 14 de abril de 1938, uma Sexta-feira Santa – data em, que segundo os seguidores do monge, o Salvador apareceria –, houve repressão dura por parte das forças policiais. Conforme Fabian Filatow em seu trabalho Representações do Sagrado no Movimento Messiânico dos Monges Barbudos, o resultado do conflito foram muitas prisões, vários feridos e a morte de um dos líderes do grupo, Anastácio Desidério Fiuza, o Tácio. Algum tempo depois Deca também foi

João Maria não foi o único

Monges Barbudos, fé e confronto na Serra

Maria Rosa da Silva: crença no monge

Vários homens se dizendo monges teriam circulado pelo Sul do Brasil no século XIX

O missioná-rio que teria dado origem à seita dos Monges Barbudos

morto e os Monges Barbudos, impedidos de praticarem suas crenças. O corpo de Deca França está sepultado em Coloninha, a vinte quilômetros de Arroio do Tigre.

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Quem visita a tranquila localidade de Estação João Rodrigues, a cerca de 25 quilômetros do Centro de Rio Pardo, não imagina que, em meados do século passado, ela foi sede de uma

seita que ficou conhecida como quebra-santos. A seita, na verdade, era um braço da Sociedade de Filosofia Transcendental – Escola de Iniciação Cristã, fundada em 17 de agosto de 1937 pelo professor peruano Julio Ugarte y Ugarte.

No início de 1940, Ugarte foi chamado com urgência ao distrito de João Rodrigues para atender a filha do fazendeiro João Manuel Nunes. A moça, de nome Carolina, com 36 anos, estava gravemente enferma e fora desenganada pela ciência médica oficial. O convite a Ugarte foi formalizado por João Rodrigues Louzada Júnior, seguidor de sua seita, que era de João Rodrigues e residia em Porto Alegre.

Ugarte, que estava no Rio de Janeiro, tomou um avião – com passagem paga pelo fazendeiro – e veio a Porto Alegre. Deslocou-se de trem a João Rodrigues onde, com o poder de suas orações, teria curado Carolina, livrando-a das entidades malignas que a atormentavam.

Sendo João Manuel Nunes uma pessoa muito conhecida na região, a notícia da cura da filha se espalhou. A partir de então outras

Quebra-santos em João Rodrigues

Comunidade de João Rodrigues na inauguração do templo da Igreja Primitiva na

localidade, em 1940

Em João Rodrigues, os irmãos convertidos à Obediência à Vontade de Deus passaram a aconselhar os novos adeptos a destruírem as imagens de santos católicos. Os crentes passaram a levar suas imagens de madeira, de gesso e outros materiais para a praça pública. Com a anuência de João Rodrigues Louzada Júnior, elas eram quebradas e jogadas em valetas. Fotos, desenhos e quadros de santos católicos eram queimados. Mesmo quem não era seguidor da seita era incitado a destruir os santos que tinha em casa. O fato acarretou a imediata reação da comunidade católica, tendo à frente o vigário da Paróquia do Rosário, padre Thomas Broggi. A Igreja da Obediência sofreu uma sistemática e ferrenha perseguição. Ugarte, que fora chamado às pressas, chegou a ficar preso alguns dias em Rio Pardo. Dentro das estratégias de reação foi construída, em 1945, a Igreja Católica Santa Terezinha, a um quilômetro da sede dos quebra-santos. Com isso, muitos moradores de João Rodrigues se reconverteram ao catolicismo. A Sociedade de Filosofia Transcendental perdeu força e o templo acabou fechado.

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Igreja Cristã Primitiva gerou movimento que entrou para a história como o quebra-santos

•• Fé sem limites

curas se sucederam e, em pouco tempo, João Rodrigues se transformou em um grande centro de irradiação da doutrina de Ugarte. Centenas de pessoas, entre elas a quase totalidade da população de João Rodrigues, converteram-se à doutrina da Obediência à Vontade de Deus.

O grande número de convertidos em João Rodrigues e região fez surgir na localidade, em fevereiro de 1940, o Templo São Pedro, onde os fiéis passaram a se reunir para ouvir a palavra de Deus a partir dos ensinamentos da doutrina de Ugarte. Depois da cura de Carolina Nunes, o professor voltou a viajar por várias cidades.

•• Quem era Ugarte

Ugarte y Ugarte nasceu em 23 de julho de 1890, em Lima. Após estudar em um colégio de jesuítas, passou a questionar as religiões cristãs. Já peregrinando pelo solo gaúcho, funda em Porto Alegre, em 1926, a Sociedade de Filosofia Transcendental – Escola de Iniciação Cristã, que tinha, entre seus objetivos, difundir o primitivo culto cristão.

JulioUgarte y Ugarte

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199Rio Pardo 200 anos Cultura, Arte e Memória

Um dos aspectos curiosos da cul-tura popular brasileira é o trabalho desenvolvido pelas benzedeiras e benzedores. A origem dessa prática é milenar e, apesar dos avanços científi-

cos, especialmente da medicina, há muita gente que ainda procura esse caminho para se livrar de males físicos e psíquicos.

Uma das autoras do livro Benzedeiras e Ben-zeduras, a professora Elma Sant’Ana, diz que a Bíblia, já no Antigo Testamento, faz referências a bênçãos, súplicas e preces para curas. “O próprio Cristo curava pela oração e imposição das mãos”, observa. No Brasil, os índios faziam rituais de cura através dos pajés. Com a vinda dos padres jesuítas por volta de 1550, e dos escravos negros a partir de 1580, esses rituais ganharam novas dimensões com a agregação de elementos das culturas brasileira, europeia e africana. “Hoje,

temos um sincretismo acentuado neste campo e muitas formas de benzer.”

É por isso que muitos benzimentos incor-poraram a oração do Pai Nosso, imagens dos santos da Igreja Católica, crucifixos, rosários e amuletos indígenas. Outros se valem apenas de cânticos ou dizeres em iorubá (herança dos negros) e mantêm o hábito da cura através das plantas. Estas, de acordo com o mal que atinge a pessoa, podem ser usadas em forma de chá ou em banhos.

Mesmo com os avanços da ciência, as benzeduras continuam sendo praticadas, mas em menor escala do que no passado. A maior incidência em localidades mais distantes dos grandes centros evidencia a relação dessa prática com as dificuldades que muitas pessoas ainda enfrentam para consultar os serviços de saúde.

A Sociedade de Filosofia Transcendental se espalhou por várias cidades gaúchas. Além dos aspectos religiosos, Ugarte tentou criar um grande projeto agrícola e industrial, que deveria tornar a comunidade autossuficiente.

Inicialmente prevista para ser implantada em Santa Catarina, a colônia acabou se viabilizando em Palmeira das Missões, em julho de 1947, por adeptos oriundos de Porto Alegre, João Rodrigues e Monte Alegre. Muitas famílias em João Rodrigues venderam suas terras para seguir o projeto de Ugarte.

O trabalho foi árduo, na derrubada de matas, plantio de lavouras e construção de uma olaria. Mas em 17 de agosto de 1949, Ugarte morreu de repente. Sem o líder, a Colônia Agrícola e Industrial de Palmeira das Missões ruiu e se extinguiu em pouco tempo.

Colôniaagrícola Benzedeiras

curam malesDe origem milenar, costume tem sobrevivido

•• Mau-olhado

Na concepção popular, as benzedeiras podem curar males físicos e emocionais. Doenças na pele, cobreiro (herpes), erisipela, machucaduras, dores de barriga, verrugas, ínguas, entorses, mordeduras de aranhas e cachorros, espinhela caída, sapinho (aftas de crianças) e outras seriam eliminadas pela oração.Dentre os males emocionais mais comuns tratados pelas benzedeiras, está o quebrante. Ele se caracteriza pelo desânimo, sonolência, falta de apetite,

vontade de chorar e dor de cabeça sem causa aparente. Qualquer ser vivo pode ser vítima, mas as crianças seriam as mais prejudicadas. Segundo as benzedeiras, quem causa o quebrante é o mau-olhado, transmitido por pessoa invejosa e ciumenta. Através dos olhos, ela sugaria a vitalidade do outro ou lhe desejaria algum mal. O mau-olhado pode matar uma pessoa, um animal ou uma planta, asseguram. O combate seria feito através da oração das benzedeiras.

•• Onde ficaA localidade de João Rodrigues existe desde a vinda de casais açorianos para Rio Pardo. Alguns desses casais, segundo o escritor Sólon Macedônia Soares, se estabeleceram na região onde hoje é João Rodrigues. O capitão-mor Joaquim Rodrigues Prates, descendente de açorianos, teria emprestado seu nome à localidade.

•• Sem cobrança

Elma Sant’Ana, que é geógrafa e pós-graduada em Ecologia Humana, explica que as benzedeiras (ou benzedores) são pessoas de bom coração e respeitadas nas suas comunidades. Uma das características é que não cobram pelo seu trabalho, mesmo que sejam pobres. “Dizem que receberam um dom de Deus e que não podem buscar o lucro.”Quem é atendido, no entanto, pode dar um presente simples – algo que será usado no dia a dia, inclusive um alimento. Poderá, também, doar uma pequena quantia em dinheiro para a compra de velas ou outros elementos usados durante a oração. Por isso, desconfie de quembenze em troca de dinheiro.

Vencer mau-olhado, a principal função das benzedeiras

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A história popular do Rio Grande do Sul, rica em lendas e causos, registra a existência de três prostitutas que viraram santas em suas comunidades. Uma em Porto Alegre e duas em municípios desmembrados de Rio Pardo:

São Gabriel e São Borja. As três tiveram mortes trágicas, motivadas pelo ciúme. Nenhuma delas é reconhecida pela

Igreja Católica.As histórias das Marias – a Guapa, a Degolada e a

do Carmo – já renderam vários estudos sociológicos, antropológicos e religiosos. O folclorista Antônio Augusto Fagundes pesquisou o assunto durante seu curso de mestrado em Antropologia Social, na Ufrgs. Seus apontamentos resultaram no livro As Santas Prostitutas.

Ao lado de mausoléus de gente famosa, como os ex-presidentes Getúlio Vargas e João Goulart, em São Borja existe a ermida de Maria do Carmo. O local é visitado por pessoas de todo o Estado e até mesmo da Argentina, que lá vão agradecer por graças que teriam ocorrido por interseção da santa.

Segundo os relatos obtidos por Antônio Augusto Fagundes, Maria era uma prostituta bonita e muito procurada pelos homens. Era muito benquista entre as pessoas humildes, a quem fazia questão de dar apoio material e espiritual. Ela teria sido assassinada em 27 de agosto de 1890, após a saída de um baile. O autor do crime teria sido um militar ciumento. Além de ser esfaqueada, a mulher teve seu corpo esquartejado e as partes espalhadas junto ao banhado São João, nos fundos do 2º Regimento de Cavalaria do Exército.

Os restos mortais foram inumados próximos ao lugar de encontros e uma cruz rústica foi colocada para assinalar a última morada da mulher. A crença sobre os poderes milagrosos da Santa Prostituta passou a tomar força, ao que tudo indica, logo após a construção da cruz de madeira.

Na década de 1940, a família do general Serafim Vargas, em cujas terras se localizava o enterramento, mandou construir a ermida (pequena capela). Lá, os devotos colocam placas agradecendo por graças alcançadas e fazem ofertas de garrafas de bebidas, cigarros, charutos, velas e fitas coloridas. O túmulo é sempre mantido limpo e pintado pelos devotos.

As graças da santa são buscadas, principalmente, pelas mulheres abandonadas por seus maridos ou amantes, por mães que procuram saúde para os seus filhos e pelas que sofrem de males relativos ao aparelho de reprodução.

A sina das Santas ProstitutasNo Rio Grande do Sul, três mulheres injustiçadas e assassinadas se tornaram santas de devoção popular

Maria do Carmo

••DesencontrosExistem informações desencontradas sobre a santa. Ela teria sido assassinada quando tinha entre 26 e 30 anos. Não há fotografias ou outras imagens dela, mas os antigos contam que seria uma mulata clara ou negra aça, ou seja, pessoa com sangue negro e cabelos loiros encarapinhados. Para uns, Maria nasceu em São Borja. Para outros, em Bagé. Alguns dizem que era castelhana e que seu nome seria Maria del Carmem. O Registro de Óbitos de São Borja contém o termo de falecimento, por assassinato, de Maria do Carmo Fagundes, que a população acredita ser a Santa Prostituta.

Túmulo de Maria do Carmo, em São Borja, é local de visitação

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O assassinato de Maria Isabel comoveu a opinião pública, espe-cialmente as camadas pobres, que viam nela uma espécie de prote-tora. A fama de santa veio alguns anos mais tarde, na forma de uma nova tragédia. A única filha da mandante da execução, uma jovem belíssima e estimada por todos, foi morta pelo noivo, um moço distinto e de boa família.

O crime, sem motivações apa-rentes, ocorreu após uma sessão de cinema – o passatempo preferido de Maria. O povo viu nesse episódio uma espécie de vingança contra a mulher que mandou matar a Guapa. A partir daí o seu túmulo, no cemitério municipal da cida-

de, passou a ser muito visitado e começaram os “milagres” atribuídos à Santa Prostituta.

Por iniciativa de uma senhora de nome Modestina da Silva Dux, a dona Morena, foi erguido um mau-soléu em homenagem à falecida prostituta. Ela imprimiu santinhos com a oração e a foto da mulher e organizou uma procissão no Dia de Finados, em reverência à santa. O corpo de dona Morena está sepul-tado atrás do túmulo de Guapa.

A Santa Prostituta de São Gabriel é invocada para qualquer tipo de pedido. Na procissão da Irmãzinha Guapa os fiéis usam rou-pas brancas, eventualmente com detalhes na cor azul.

O município de São Gabriel, a Terra dos Marechais, dos poetas e romancistas, também tem a sua Santa Prostituta. Trata-se de Maria Isabel, co-nhecida por Guapa ou Irmãzi-nha Guapa, assassinada a 3 de março de 1924, com 27 anos.

Maria, cujo nome verda-deiro era Izabel Hornos, era uruguaia e considerada uma mulher muito bonita, o que lhe valeu o apelido de Guapa. Para os gaúchos, guapo signi-fica valente, arrojado. Mas para os castelhanos tem o sentido de bonito, de linda estampa.

Dona de um cabaré em São Gabriel, Guapa amealhou mui-to dinheiro. Quando saía à rua, fazia questão de ostentar joias e roupas caras, despertando inveja em muitas mulheres da cidade. Apesar de vaidosa, gostava de ajudar os pobres

Maria Isabel

Guapa está enterrada em São Gabriel

A vingança da Guapa

Maria DegoladaA capital do Rio

Grande do Sul também tem a sua Santa Prostituta. Trata-se de Maria Degolada. Existe, inclusive, a Vila Maria Degolada, com cerca de 5,5 mil habitantes, dentro do Bairro Partenon. Oficial-mente, no entanto, o local se chama Vila Maria da Conceição.

Conforme relatos dos moradores, Maria Francelina Trenes era prostituta e amante do cabo Bruno Bicudo, da Brigada Militar. No dia 12 de novembro de 1899, junto com mais dois casais, ele convidou Maria – então com 21 anos – para um churrasco no alto do Morro do Hospício. No local havia uma grande figueira, sob a qual os casais realizavam encontros clandestinos e piqueniques.

Depois de uma pequena discussão, os dois se afastaram para conversar. Como demoravam a voltar, os amigos saíram à procura e se depararam com a tragédia: Maria degolada e Bruno ao seu lado, ensanguentado e com a faca do crime na mão. Condenado a 30 anos de prisão, ele acabou morrendo sete anos após ser recolhido ao presídio.

O local do crime teria se tornado mal-assombrado. O povo relata que em certas noites aparecia uma luz trêmula e se via o vulto de uma mulher, vestida de branco, gemendo e chorando. Para acalmar o que seria a alma de Maria De-golada, as pessoas passaram a acender velas e a rezar no local. Com o tempo, surgiram notícias de pedidos atendidos.

•• Local de devoção

O corpo de Maria Francelina está enterrado no Cemitério da Santa Casa. Mas, no morro onde ocorreu o assassinato, foi construída uma pequena capela em sua homenagem. No local os fiéis fazem seus pedidos, especialmente os que envolvem casos de amor. A ermida de Maria Degolada está sempre limpa e pintada pelos devotos. Lá, eles deixam placas de agradecimento por graças alcançadas, velas, flores, véus de noivas e presentes variados.

com remédios, alimentos, presentes e dinheiro e ainda auxiliava as obras da igreja. Era adorada pelas crianças, a quem distribuía doces e balas.

A sua morte ocorreu em uma segunda-feira de Carnaval e teria sido encomendada pela esposa de um jovem fazendeiro da cidade, amante da prostituta. Enciumada, ela contra-tou um assassino de aluguel para dar fim na rival.

Integrante do Corpo Provisório, grupo de soldados recrutados pelo governo do Estado para enfrentar os maragatos na Revolução de 1923, o atirador alvejou Maria Isabel da rua, pela janela do seu quarto. Ela estava sentada defronte de uma penteadeira, enfeitando-se para mais uma noitada no bordel. O assassino foi protegido pela família da mandante do crime e nunca foi punido.

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