Risco

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129 E ARTIGO Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 14(2): 129-145, outubro de 2002. O risco como recurso para a arbitragem social MYRIAM MITJAVILA PALAVRAS-CHAVE: risco, novas práticas de saúde, arbitragem social. RESUMO: Nas duas últimas décadas, as ciências sociais registraram e anali- saram um novo modo de codificar os perigos e as ameaças que caracterizam a vida social nas sociedades contemporâneas, e que consistem na prolifera- ção de discursos e práticas técnico-políticas organizadas em função de uma nova categoria de risco. Podemos observar que existe um consenso na litera- tura sociológica a respeito da definição de risco como uma construção social e sobre suas relações complexas com o conhecimento técnico-científico. Este trabalho discute as bases sócio-técnicas e institucionais do risco como um instrumento de arbitragem de problemas sociais nos mais diversos níveis como provisão seletiva de serviços sociais, determinação de culpa e/ou perigo no comportamento criminoso, liberação de crédito em instituições financeiras, gerenciamento de recursos humanos na área de trabalho, entre outros. Professora do Depto. de Serviço Social da UFSC ste trabalho retoma alguns dos resultados de uma pesquisa que teve por finalidade examinar o papel do risco como dispositivo na produção de novas formas de conhecimento e de gestão de problemas no campo médico-sanitário (cf. Mitjavila, 1999). Nes- se contexto, uma questão muito específica emergiu como eixo de interes- se para incursões posteriores na temática do risco: trata-se da expansão do uso do risco como recurso para arbitragem de situações, principal- mente na área do social.

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    MITJAVILA, Myriam. O risco como recurso para a arbitragem social. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 14(2): 129-145,outubro de 2002.

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    A R T I G OTempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 14(2): 129-145, outubro de 2002.

    O risco como recurso para aarbitragem social

    MYRIAM MITJAVILA

    PALAVRAS-CHAVE:risco,novas prticas desade,arbitragem social.

    RESUMO: Nas duas ltimas dcadas, as cincias sociais registraram e anali-saram um novo modo de codificar os perigos e as ameaas que caracterizama vida social nas sociedades contemporneas, e que consistem na prolifera-o de discursos e prticas tcnico-polticas organizadas em funo de umanova categoria de risco. Podemos observar que existe um consenso na litera-tura sociolgica a respeito da definio de risco como uma construo social esobre suas relaes complexas com o conhecimento tcnico-cientfico. Estetrabalho discute as bases scio-tcnicas e institucionais do risco como uminstrumento de arbitragem de problemas sociais nos mais diversos nveis comoproviso seletiva de servios sociais, determinao de culpa e/ou perigo nocomportamento criminoso, liberao de crdito em instituies financeiras,gerenciamento de recursos humanos na rea de trabalho, entre outros.

    Professora do Depto.de Servio Social daUFSC

    ste trabalho retoma alguns dos resultados de uma pesquisa queteve por finalidade examinar o papel do risco como dispositivona produo de novas formas de conhecimento e de gesto deproblemas no campo mdico-sanitrio (cf. Mitjavila, 1999). Nes-

    se contexto, uma questo muito especfica emergiu como eixo de interes-se para incurses posteriores na temtica do risco: trata-se da expansodo uso do risco como recurso para arbitragem de situaes, principal-mente na rea do social.

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    MITJAVILA, Myriam. O risco como recurso para a arbitragem social. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 14(2): 129-145,outubro de 2002.

    As instituies modernas apoiam-se permanentemente em agen-tes e mecanismos que permitem categorizar indivduos, famlias ou situ-aes conforme as necessidades de tomar decises que afetam a vida dasorganizaes, e tambm das pessoas. Um mapeamento preliminar dasformas de arbitragem mais visveis permite reconhecer a existncia deuma grande diversidade de mecanismos e funes sociais que desempe-nham os rbitros sociais nas sociedades contemporneas. A arbitragemno uma ocupao, nem uma profisso: um tipo de funo que diver-sos agentes institucionais desenvolvem em determinadas reas e comobjetivos muito precisos.

    Devido a isso, a questo da arbitragem oferece, na minha opi-nio, uma perspectiva interessante para estudar o funcionamento das ins-tituies na contemporaneidade. As diversas formas de arbitragem impli-cam tomar decises, que com freqncia se apresentam como alternati-vas dicotmicas em mltiplas circunstncias. Permitem assim decidirassuntos muito diferentes entre eles como, por exemplo, outorgar ou nooutorgar um crdito no sistema financeiro; encaminhar ou no encami-nhar uma criana para adoo; determinar se uma pessoa pode ou no serjulgada por um crime ou delito; decidir se uma famlia deve ou no rece-ber apoio de um programa de assistncia social; enfim, a lista seria inter-minvel. O que do ponto de vista deste trabalho interessa sublinhar aimportncia que assumem os mecanismos por meio dos quais se reali-zam essas arbitragens e o que esto nos informando sobre os rumos cul-turais e os universos de valores da vida social atual.

    Sem ser o nico mecanismo envolvido, o risco parece permearcada vez com maior fora os discursos e as prticas que agem no coraode muitas das circunstncias de arbitragem social. Cada vez mais deci-ses de tipo arbitral parecem ser tomadas em nome da exposio a algumtipo de risco ou riscos que afetam tanto os indivduos como as organiza-es, ou ainda, no nvel da reproduo dos universos simblicos, as pr-prias instituies contemporneas.

    Essa diversidade de reas e circunstncias nas quais o riscoparece intervir pode ser melhor compreendida se forem observados osprincipais traos que seriam comuns a todas elas. Tratam-se de elemen-tos que contribuem para explicar a enorme expanso do risco como dis-positivo de conhecimento e de poder e seu comportamento relativamenteuniforme nesses sentidos. Essas dimenses podem ser agrupadas da se-guinte forma:

    (I) a crescente reflexividade da vida social moderna e a adequa-o da lgica do risco aos processos de individualizao e responsabi-lizao dos agentes sociais individuais;

    (II) o desenvolvimento de novas tecnologias baseadas em siste-mas de informao que combinam o registro de dados individuais com agesto tecnocrtica das populaes (cf. Castel, 1981), assim como suas

    1 Trabalho apresentadono Congresso Interna-cional: Universal Va-lues and the Future ofSociety. Mesa: Tecno-logy, tecnopathies andthe meaning of labourTitulo original: Risk:a New Device for So-cial Arbitration. Inter-national SociologicalAssociation / PalasAthena / PUC-SP /SESC-SP /UNESCO.So Paulo, SESC-VilaMariana, 17 a 19 desetembro de 2001.

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    conseqncias em termos de uma tambm nova diviso do trabalho entreos agentes tcnicos que participam na fixao de destinos homogneospara os indivduos que possuem os mesmos fatores de risco;

    (III) a institucionalizao do carter auto-referente do risco comomecanismo de arbitragem social: as decises passam a ser tomadas, noem funo do que efetivamente acontece ou acontecer, e sim a partir daprobabilidade de que algum sucesso sempre ou quase sempre indese-jvel possa ocorrer;

    (IV) finalmente, a converso do risco em instrumento de car-ter universal e verstil para dirimir questes sociais, na medida em queresponde a uma sintaxe uniforme, propriedade que favorece sua conver-so em veculo de mltiplos significados e fins sociais.

    O risco e os processos de individualizao social

    Referindo-se s relaes entre agentes e estruturas sociais, au-tores como Beck (cf. Lash & Wynne, 1992) consideram que, quando amodernizao atinge um certo nvel, diminuem os constrangimentos denatureza estrutural sobre os indivduos, j que so as prprias foras doprocesso de mudana estrutural que tornam os atores mais livres comrelao estrutura. Assim, para que a modernizao seja bem sucedidanessa fase, os agentes sociais devem eles mesmos se livrar desses cons-trangimentos como forma de permitir o processo modernizador. SegundoBeck (cf. Lash & Wynne, 1992), trata-se de uma mudana estrutural davida privada, baseada na individualizao dos agentes privados, os quaisesto forados a tomar decises sobre si mesmos: com quem casar-se, terfilhos, definir preferncias sexuais, etc. Livres de presses estruturais, osindivduos devem construir reflexivamente suas prprias biografias. Issopode ser particularmente observado no mundo do trabalho, o qual apre-senta cada vez mais exigncias em termos de reestruturao, respostasflexveis e rpidas, caractersticas que incluem tambm a utilizao dotempo livre.

    De certo ponto de vista, poder-se-ia concordar com a afirmaode Rosanvallon (1995) de que a modernidade tardia est vinculada a umainflexo decisiva na percepo do social. Assim, a crise do Estado Provi-dncia no implica apenas uma srie de mecanismos que enfraquecem,transformam ou suprimem fatores de integrao social, como tambmrepresentam um apelo responsabilidade dos indivduos nos processosde gesto dos riscos sociais. Tratam-se de transformaes do edifcio so-cial que no s alteram as percepes quanto incerteza, mas tambmlevam a uma relao diferente dos indivduos com o Estado.

    Essa orientao pode ser mais extensamente interpretada comouma transformao global das relaes entre os indivduos e as institui-es sociais (cf. Rosanvallon, 1995). E em certa medida, a referida trans-

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    formao, por sua vez, pode ser considerada como uma radicalizao dopadro introduzido pela modernidade desde seu incio, segundo a qual ossujeitos tanto individuais quanto coletivos so submetidos a uma lgicade mercado simblica. A modernidade cria, ento, uma situao na qualselecionar e escolher representam verdadeiros imperativos socioculturais:os indivduos so convocados a recolher e articular os fragmentos de ummundo dilacerado do ponto de vista da significao subjetiva.2

    Alguns autores concordam em que a modernidade uma cultu-ra do risco (cf. Douglas, 1990; Giddens, 1995). Esse novo interesse dascincias sociais pela noo de risco resultado precisamente da necessi-dade de identificao, tanto das bases quanto das conseqncias sociaisde uma nova semntica e prticas sociais em torno das incertezas e peri-gos da vida contempornea. Assim, a preocupao pelo risco estaria me-nos vinculada ao predomnio real ou fatual de diversos tipos de ameaapara a vida humana do que s racionalidades, interesses e padres cultu-rais que organizam a percepo e as respostas sociais perante esses peri-gos. (cf. Douglas & Wildavski, 1982; Giddens, 1995)

    Por essa tica, a questo de risco e as formas sociais de suaconstruo pode informar sobre elementos nucleares da modernidade,destacando-se entre eles o que Giddens denomina colonizao do futuro.Esse novo parmetro temporal est sugerindo a emergncia de duas no-vas dimenses institucionais na crise da modernidade: o fracasso relativodas velhas ou precedentes respostas s ameaas para a vida social (cf.Douglas, 1990), por um lado, e, por outro lado, o carter produtivo dorisco como conceito e como dispositivo suscetvel de agir, de maneiraflexvel, perante os desafios da crise, na gesto da incerteza. Nessa dire-o, a propriedade imunizadora com relao ao fracasso constitui umadas bases primordiais da versatilidade do risco como conceito. Na medi-da em que ele opera por intermdio de enunciados sobre o futuro, qual-quer medio em termos de probabilidade e/ou improbabilidade serfictcia e, por isso, sem compromisso. Assim, os sistemas abstratos e,especialmente, as disciplinas tcnicas, como a medicina, por exemplo desenvolveram-se durante muito tempo mais prximos da administraodos perigos que dos riscos, cada vez que deviam diagnosticar (e predi-zer) o futuro de situaes concretas, nicas, irrepetveis, assim como in-tervir sobre elas em nome desses conhecimentos. Esse era o universo dacerteza: as predies que no se cumpriam vinham a se converter emfontes de fracasso no que diz respeito capacidade preditiva do conheci-mento tcnico. Pelo contrrio, as intervenes tcnicas baseadas em enun-ciados probabilsticos possuem uma forte proteo perante os eventuaisacontecimentos que se afastem das predies, j que com elas se podefundamentar o fracasso de uma explicao e/ou interveno, no na cer-teza, mas na probabilidade, apenas, de acontecer o que fora anunciado:esse o universo da incerteza, tpico dos discursos e das prticas

    2 Peter Berger, TheSacred Canopy, NewYork, 1967, citado porBeriain (1990).

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    estruturadas em funo do risco.Sob essa consigna, o normal percebido na certeza de que o

    futuro depende de decises no presente. Na perspectiva de Luhmann (cf.1992), por exemplo, isso no significa que, hoje, observar a distinonormal-divergente no conserve importncia. O que interessa saber queclasse de compreenso, em termos de racionalidade, de deciso, de tcni-ca, de futuro ou, simplesmente, de tempo, envolve a fala em torno dorisco.

    Nesse sentido, preciso examinar um dos traos fundamentaisdos discursos organizados segundo a lgica do risco e que se refere asuas propriedades enunciativas, aspecto que ser abordado a seguir.

    O risco como sintaxe da vida social moderna

    O termo risco costuma denotar diversos sentidos, dependen-do de quem o empregue e com que fim. A proliferao de diferentesusos, tanto no nvel profano quanto no profissional, revela a existncia designificados que chegam a ser confusos e de considervel complexidade(cf. Lupton, 1993). Mas, por que acontece esse fenmeno?

    Em certa medida, isso devido ao fato de a idia de risco ter-setransformado num instrumento aberto construo de mltiplos signifi-cados sociais. Na verdade, so as prprias caractersticas discursivas dorisco as que geralmente introduzem um toque de opacidade para a anlisesociolgica. Sendo o risco uma construo primordialmente scio-hist-rica, geralmente concebido em termos no histricos. Assim, a idia derisco tende a exibir a representao de um espao social reduzido, namedida em que transporta uma fala despolitizada, isto , no sentido daconstruo de imagens naturalizadas das condutas e das mltiplas mani-festaes da realidade social. O tipo de universo semntico que caracteri-za a linguagem do risco , ento, limitado e fechado atrs de frmulas ediferentes tipos de clculos de risco a qualquer classe de interpelao,do ponto de vista dos contedos.

    Com efeito, pelo fato de o risco ser uma construo que surgedo campo da probabilidade, est investido de certo nvel de invisibilidade.Possui assim um carter contrafatual (cf. Giddens, 1991), orientado parao futuro e baseado em interpretaes causais. Isso significa que, inicial-mente, os riscos adquirem existncia s no conhecimento (em princpio,cientfico), momento a partir do qual eles podem ser transformados,magnificados, dramatizados ou minimizados (cf. Beck, 1992).

    A relativa invisibilidade dos riscos e sua dependncia do sabercientfico-tecnolgico indicam que a existncia e distribuio social dosriscos esto mediatizadas por princpios inteiramente argumentativos queno fazem parte da experincia cotidiana do saber profano (cf. Beck, 1992).

    Da mesma maneira que outros produtos do conhecimento, os

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    enunciados cientficos sobre risco, costumam ocultar, atrs de uma corti-na de termos tcnicos, um conjunto de crenas sociais, valores ou ideaispolticos que, devido sua inacessvel sintaxe, resistem a qualquer formade contraposio. Gera-se assim a possibilidade de que os discursos so-bre o risco se percam num labirinto de smbolos, como adverte NorbertElias, referindo-se a todas as formas de abstrao modernas, (...) pois ossmbolos de um elevado nvel de sntese no so em nossas sociedadesfreqentemente mais do que palavras vazias de contedo, palavras queperderam seu referente. (Elias, 1994, p. 37)

    Essas caractersticas estariam na base dos fatores responsveispela transformao do conceito de risco num instrumento extremamenteverstil para a gesto do social em geral, mediante uma classe de lingua-gem que garante a opacidade das dimenses axiolgicas dos discursos edas prticas que organizam as respostas aos problemas sociais.

    So atributos que fazem do risco um tipo de construo mvel,suscetvel de circular no espao social, de forma abrangente. Como j foidito, o que fundamenta a possibilidade de um conjunto infinito de deci-ses e intervenes sobre a vida dos indivduos no simplesmente o queacontece e sim a probabilidade de que alguma coisa possa acontecer.

    As propriedades discursivas do risco permitem-lhe agir comoum dispositivo, num sentido muito prximo definio foucaultiana. Eentre as principais propriedades da noo de risco se destaca sua aptidopara o intercmbio, aspecto que Elias descreve de maneira geral, parareferir-se totalidade de smbolos criados com funes de conhecimento:

    Num determinado perodo histrico suas redes de significaopodem ser remodeladas com o fim de atingir uma simbolizao melhorda que existia anteriormente. Alis, estes smbolos podem se expandirou declinar. Sua rede pode ser utilizada para abranger reas de objetos oupara estabelecer conexes previamente no cobertas por eles e, portanto,inimaginveis e desconhecidas at ento para os seres humanos, mas po-dem tambm languescer e se degradar at o ponto de que as reas quecobriam podem chegar a ser novamente uma realidade desconhecida einimaginvel. (Elias, 1994, p. 54)

    Nesse sentido, os discursos organizados sobre a idia de riscopodem ser amplamente utilizados para legitimar polticas ou paradesacredit-las; para proteger os indivduos das instituies ou para pro-teger as instituies dos agentes individuais. A moralizao e a politizaodos perigos no contexto da modernidade exigem um vocabulrio unifor-me que j no pode ser o da religio, que estaria baseado nas idias depecado e de tabu. Em condies de modernidade, o risco possui avirtualidade de oferecer, segundo a expresso de Mary Douglas, termosseculares para reescrever as sagradas escrituras (1990, p. 5).

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    O risco como dispositivo biopoltico:tecnologia ou tecnopatia?

    Com a construo do enfoque de risco, um tipo de olhar e novasmaneiras de lidar com os problemas sociais so institudos. Nesse pro-cesso, o papel da internacionalizao do saber e de um conjunto conside-rvel de prticas tecnoburocrticas fundamental. Pela gesto de orga-nismos internacionais, o risco como conceito e como dispositivo no re-conhece fronteiras nacionais ou culturais.

    A discursividade em torno do risco passa a envolver todos osaspectos da vida humana, o que faz com que o indivduo moderno expe-rimente preocupaes perante poucas coisas, (...) exceto a comida quecome, a gua que bebe, o ar que respira, a terra na qual vive, e a energiaque utiliza. (Douglas & Widavsky, 1982, p. 10). Os riscos para a sade,por exemplo, podem surgir em qualquer parte, sob a forma de ameaasfreqentes para a populao (cf. Stoeckle, 1990). Aparecem permanente-mente nos meios massivos de comunicao e so crescentemente objetosde campanhas pblicas. A assessoria em riscos e a comunicao dos ris-cos tm se convertido em grandes indstrias. Em sntese: a idia de riscotem adquirido um carter proeminente no mundo ocidental, ao converter-se em uma construo cultural central. (cf. Douglas, 1990).

    Esse protagonismo recente estaria ligado aos novos significa-dos que a noo de risco tende a assumir na percepo e gesto do social,alm de conservar parte dos sedimentos semnticos originais. Isto obede-ce, em grande parte ao fato de que o risco passa a exercer novas funessociais, ao ponto de se converter em um dispositivo biopoltico central davida social contempornea.

    O que na atualidade definido como o advento de uma novaquesto social (cf. Rosanvallon, 1995) apresenta-se como um espao ade-quado para conhecer o perfil das estratgias biopolticas em condies demodernidade tardia. Em termos gerais, aquela pode-se definir pela emer-gncia de novos fenmenos de excluso, no redutveis s antigas cate-gorias de explorao e dominao e, simultaneamente, pela inadaptaodos velhos mtodos de gesto do social a essa nova situao.

    Nesse sentido, a crise do welfare state, que comeou a serdiagnosticada h mais de vinte anos, ingressou mais recentemente emuma fase que Rosanvallon (cf. 1995) qualifica como crise filosfica. Ex-perimenta-se uma crise que contm, segundo esse autor, dois problemasfundamentais: (I) a decomposio dos princpios organizadores da soli-dariedade, e (II) o fracasso das formas de gesto tradicionais e dasformas de conceber os direitos sociais, as quais se sustentam na constru-o de um marco satisfatrio de superao das situaes de exclusosocial. Trata-se de uma inflexo decisiva na percepo do social que do-minou durante quase um sculo o campo das polticas pblicas e das

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    polticas sociais e que, at certo ponto, corresponde ao ingresso em umanova fase da modernidade.

    As polticas sociais e, em particular, a seguridade social j nopodem desempenhar o papel de centro aglutinador do bem-estar social.Agora, elas conseguem atingir apenas uma parte do campo social. Doponto de vista do presente trabalho, no interessa discutir as origens nemas causas socioestruturais e polticas dessas mudanas. Interessa sim as-sinalar que, no que diz respeito s condies institucionais que nela parti-cipam, destaca-se o fato de se tratar de uma crise que, nas palavras deRosanvallon (1995, p. 32), se caracteriza por gerar uma nova percepoda insegurana, no sentido de induzir uma relao diferente dos indivdu-os com o Estado. Isto faz parte de uma transformao das pautas deintegrao social e de uma redefinio do papel do Estado.

    Nas sociedades latino-americanas, assiste-se igualmente a umadesarticulao das antigas matrizes das polticas sociais, mediante trans-formaes que atingem no s as orientaes, mas tambm os mecanis-mos institucionais responsveis pela regulao e a instrumentao de umvasto conjunto de servios sociais. Nesse contexto, geralmente se reco-nhece a existncia de uma passagem at o presente, com resultadosmuito heterogneos de modelos de proteo social universais e centra-lizados para outros de natureza residual (cf. Titmuss, 1962), isto , dirigi-dos s categorias e grupos em situaes de risco ou marginalidade social.

    Configura-se ento uma mudana significativa que tem uma desuas expresses na substituio das polticas de integrao, tpicas dowelfare state, pelas polticas de insero, de acordo com a distino em-pregada por Castel (1995). Essas ltimas caracterizam-se pela focalizaode um nmero crescente de grupos e categorias sociais que comeam aser classificados segundo dficits de integrao, de acordo com interpre-taes substancialistas que destacam os atributos morais e psicolgicosindividuais na gesto das fragilidades e problemas sociais dacontemporaneidade. Como aponta adequadamente Castel (1995), apare-ce uma tendncia a exigir, precisamente dos indivduos maisdesestabilizados, que possam agir como sujeitos autnomos.

    Do ponto de vista institucional, essas transformaes podemser tambm interpretadas como parte de uma nova forma de societalizao,no sentido de uma metamorfose das relaes indivduo-sociedade (cf.Beck, 1992). Em certa medida, os processos de individualizao estari-am privando distines de classe de sua identidade. Isso no significariao desaparecimento das desigualdades sociais baseadas em clivagens tra-dicionais, e sim sua redefinio em termos de uma individualizao dosriscos sociais: os problemas sociais passam a ser percebidos em funode disposies psicolgicas e familiares. As crises sociais apresentam-sedesse modo como crises individuais e, devido a isso, no so geralmentepercebidas como ancoradas no domnio do social (cf. Beck, 1992).

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    Nesse contexto, torna-se pertinente perguntar se esses novosparmetros das relaes indivduo-sociedade exigem ou no uma reno-vao parcial ou total dos dispositivos que agem nos processos de arbitra-gem social e que fundaram a ordem social moderna.

    Entre os dispositivos biopolticos fundantes da modernidade eos dispositivos biopolticos da modernidade como experincia contempo-rnea, podem ser registradas tanto mudanas quanto algumas permann-cias. Em termos hipotticos, pode-se sugerir que, em condies demodernidade tardia e, particularmente, no caso da sociedade brasileira,no momento contemporneo, observam-se justaposies entre formas maisou menos renovadas de funcionamento dos dispositivos biopolticos tra-dicionais com mecanismos inditos de produo de saber e de exercciodo poder no controle dos indivduos e das populaes. Os discursos e asprticas organizadas em torno da idia de risco exibem de maneiraparadigmtica o convvio de antigas e novas formas de gesto do social.Isso responde ao fato dos dispositivos e o dispositivo do risco noconstitui nesse sentido uma exceo serem, como adverte Foucault(1992), formaes de natureza histrica, o que lhes confere, em cadacircunstncia, uma funo estratgica dominante.

    Com a introduo da informtica, ou seja, a partir do momentono qual os espaos de gesto poltica e administrativa so dotados denovos meios de trabalho, produz-se uma reorganizao das bases materi-ais e simblicas na deteco dos problemas sociais, tanto no nvel dosindivduos quanto no da populao. Com efeito, o tratamento informticoest baseado numa dissoluo das particularidades dos indivduos, as quaisso obtidas na esfera clnica ou de relaes interpessoais, para reter ape-nas um conjunto de dados abstratos em termos de fatores de risco, deter-minados e apresentados nos moldes dos interesses poltico-administrati-vos que possuem o controle do espao pblico da gesto do social. Essasestratgias preventivas passam assim a economizar e reorganizar as rela-es interpessoais nas quais se sustentava a gesto da vida social, medi-ante uma nova diviso do trabalho que institui a criao de novas compe-tncias e, at certo ponto, uma requalificao dos papis tradicionais dosagentes tcnicos e burocrticos

    Nessa direo, algumas anlises levantam a hiptese de que agesto de programas e formas de assistncia organizados em torno domapeamento dos riscos envolve, simultaneamente, a morte da clnica oudas relaes interpessoais e sua substituio pelo estabelecimento de re-des de comunicao e gerenciamento (cf. Haraway, 1991). Outras, me-nos radicais, percebem sintomas de uma progressiva perda de poder dosagentes clnicos ou assistenciais, uma vez que so institudas as novastecnologias baseadas na gesto tecnocrtica das populaes e dirigidas preveno dos riscos sociais (cf. Castel, 1981).

    Precisamente, a gesto dos riscos requer, em muitos casos, a

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    utilizao combinada de ambos os tipos de estratgias: o gerenciamentopoltico-administrativo da populao, baseado no mapeamento dos ris-cos, e, simultaneamente, a individualizao dos riscos enquanto condiode possibilidade de construo do mapa (cf. Castel, 1981; Rabinow, 1991).

    As tecnologias da atribuio e a individualizao dos riscos

    Isso possvel porque o dispositivo do risco formaliza um con-junto de cdigos que permitem transcrever os traos individuais, por meiode uma homogeneizao que possui efeitos muito precisos: a criao denovos instrumentos de comparao e categorizao sociais. Contudo, issono significa que os instrumentos sejam aplicados sempre da mesma for-ma nem que respondam a uma mesma lgica. Na linha do que foi discu-tido com anterioridade, importante lembrar que o risco tem-se converti-do num instrumento verstil, isto , de natureza polissmica e, em decor-rncia disso, suscetvel de ser objeto de diversos usos sociopoliticos.

    Nesse sentido, torna-se necessrio problematizar as formas quea atribuio dos riscos adota no momento contemporneo. Com relao aesse ponto, pode-se concordar inteiramente com Luhmann (cf. 1992, p.69), que enfatiza o carter contingente das maneiras que a atribuio dosriscos assume: nesse registro, o que interessa, ento, identificar astecnologias da atribuio e os fatores scio-institucionais a elas associa-dos.

    No que diz respeito s maneiras de atribuio, diversas pers-pectivas sobre o risco podem ser achadas no interior de um mesmo ins-trumento. Assim, as diferentes representaes sobre o risco responderi-am participao simultnea das duas classes de racionalidades que fa-zem parte do dispositivo e que se traduziriam em termos gerais napresena simultnea das concepes do risco como probabilidade e dorisco como perigo, ou, em outras palavras, do risco como construomental e do risco como ameaa real.

    Ora, tanto se o risco definido como perigo quanto se defini-do como probabilidade, o indivduo converte-se num alvo privilegiadodas novas tecnologias de gesto da vida social. Por um lado, e da mesmaforma que outras classes de exame, o dispositivo do risco permite mantera individualidade no interior de um campo documental, agora medianteuma renovao dos mecanismos de conhecimento e de poder, caraterizadospela tecnificao e universalizao de seus instrumentos. Trata-se de umaindividualizao descendente, j que, como adverte Foucault, (...) amedida que o poder se torna mais annimo e mais funcional, aquelessobre os quais exercido tendem a ser mais fortemente individualizados(...) (1987, p. 197), por meio da vigilncia e de observaes padroniza-das.

    Paradoxalmente, observa-se a insistncia em atribuir aos indi-

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    vduos a responsabilidade pelas condutas de risco, ao mesmo tempo quetem diminudo o controle dos indivduos sobre os riscos que provm doambiente. Por exemplo, o uso do discurso de risco na rea da sade p-blica e, particularmente, na rea da educao para a sade procurageralmente criar conscincia pblica sobre os riscos de sade adquiridosnas opes feitas pelos indivduos, no que se refere aos seus estilos devida.

    Nesse sentido, as descobertas da ltima dcada no campo dagentica mdica tm introduzido mudanas significativas na percepodos riscos. Assim, por exemplo, Rabinow (cf. 1991) acredita que os doisplos da biopoltica indivduo e populao so, na atualidade, objetode uma rearticulao que possui origens nos avanos da medicina mole-cular. Em particular, ele examina o papel que pode desempenhar o Pro-jeto Genoma (Human Genome Initiative) com relao aos registrosinterpretativos da etiologia das doenas, mas tambm no que diz respeitoa outras condies fsicas, mentais e sociais dos indivduos. Com a iden-tificao das bases genticas de muitas doenas, comeam a ser institu-das, no nvel dos corpos individuais, novas formas de localizao dosagentes patognicos. Isso significa que, pelo menos hipoteticamente, adescoberta de pessoas com determinadas predisposies genticas pode-ria conduzir a um amplo esquadrinhamento da populao, quanto a ummonitoramento das famlias e dos sujeitos portadores do problema.Certamente, esses indivduos sero chamados a entender e a agir sobreseu prprio futuro, sob os parmetros que a lgica do risco fornece.

    No entanto, necessrio observar com prudncia as novidadesque introduzem as mudanas no saber cientfico e tcnico, fundamental-mente no que diz respeito a seus desdobramentos potenciais sobre o con-junto do campo social. Trata-se de fenmenos muitos recentes para quese possam ponderar adequadamente sua significao e enraizamento so-ciais. Contudo, a literatura e a pesquisa em torno do tema apontam parao reconhecimento da expanso relativa da individualizao dos riscos e,no poucas vezes, da responsabilizao e culpabilizao das pessoas.

    Do ponto de vista dos objetivos do presente trabalho interessasublinhar que a individualizao dos riscos supe o desenvolvimento detcnicas para incitar, orientar, informar e controlar os indivduos e as fa-mlias a respeito das chances de ocorrncia de acontecimentos indesej-veis. bom que se lembre da importncia que assume a idia de estilo devida, como locus privilegiado para a construo das trajetrias biogrfi-cas na modernidade tardia. Nesse sentido, em nome dos riscos, os rbi-tros da vida social podem justificar intervenes dirigidas a vigiar, orien-tar, controlar, julgar e, ainda, punir os indivduos e os setores de popula-o que no conseguem construir ou que opem resistncia constru-o de estilos de vida saudveis ou corretos. Quanto aos indivduos,o risco pode-se converter no ponto de passagem obrigatrio e imaginrio

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    para ter aceso ao prprio corpo e prpria identidade.Assim, o risco comea a assumir, como dispositivo, novas fun-

    es sociais. E essas funes referem-se, de certa forma, ao que MaryDouglas (cf. 1990) chama de propriedades forenses do risco. Neste sen-tido, o risco pode agir:

    - retrospectivamente, ao explicar os infortnios individuais oucoletivos, em funo das condutas do passado;

    - para adiante, pela predio de recompensas futuras;- e, poder-se-ia acrescentar, no presente, para fixar posies

    que habilitam tanto o acesso como as restries que se impem aos sujei-tos nos mais variados campos da vida social (trabalho, educao, sade,entre outros).

    Exibem apropriadamente esse tipo de retrica sobre o risco osdiscursos que, perante um ataque cardaco, um teste de HIV com resulta-do positivo e, ainda, uma doena oncolgica, afirmam que a pessoa doen-te tem falhado no cumprimento das diretivas mdicas recebidas para aba-ter os riscos de adoecer, situao a partir da qual pode ser punida (comimpedimento, por exemplo de acesso aos cuidados mdicos) e/ou estig-matizada. Embora nem sempre acontea, as propriedades arbitrais dorisco abrem novas possibilidades para o desenvolvimento de estratgiasde gesto do social. Assim, a emisso de juzos mdicos sobre os estilosde vida dos indivduos ou de determinadas categorias sociais come-am a exercer arbitragens que acabam tendo conseqncias para os indi-vduos terem acesso, por exemplo, ao trabalho, aos seguros privados e,mesmo, aos cuidados mdicos.

    Em sntese, o dispositivo do risco contm duas dimenses es-treitamente relacionadas entre si: a gesto tcnico-burocrtica das popu-laes e a individualizao dos riscos sociais. A unidade, como tem apon-tado Castel (1981), dever provir da complementaridade de ambas asprticas, a partir de um pano de fundo institucional comum. Assiste-se,desse modo, a uma estratgia geral de gesto das diferenas, das fragili-dades e dos riscos que parecem caraterizar as sociedades atuais.

    Uma das caractersticas que podem ser reconhecidas no desen-volvimento do risco como dispositivo arbitral o seu funcionamento oucapacidade para operar em termos auto-referidos. Por exemplo, o acessodos setores pobres urbanos aos servios e assistncia social passa a serdeterminado, no em funo das necessidades, direitos ou demandas pre-sentes e imediatamente observveis, e sim em funo, unicamente, daprobabilidade de, no futuro, apresentarem problemas especficos.

    As polticas e programas sociais assim concebidos apresentamum apelo freqente a critrios de eficincia. Dessa forma, a racionaliza-o da proviso de servios por exemplo, pela extenso da cobertura encontra-se fortemente associada ao uso eficiente de recursos financei-ros, materiais e humanos. Neste sentido, coloca-se geralmente a nfase

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    na utilizao do enfoque de risco para promover atividades que impli-quem baixa densidade tecnolgica, como seria o caso da educao paraa sade e a participao comunitria (cf. Quesada & Carro, 1991).

    Destaca-se, ento, o carter instrumental que possuem as redese sistemas de informao que so tpicos desse modelo de gesto de ris-cos. Como aponta Castel (1981), as novas polticas preventivas economi-zam o carter imediato das relaes entre agentes dos servios e sujeitos(individuais e coletivos) que so objetos de categorizaes diagnsticas ede intervenes teraputicas ou sociais. Assim, o que se deve tratar, numprimeiro momento, no so os indivduos e sim os fatores, as correlaesestatsticas entre esses fatores. Trata-se de definir destinos homogneospara indivduos e setores de populao que apresentam exposio a de-terminados riscos.

    Com a introduo dos recursos informticos, observa-se a par-ticipao de um novo tipo de racionalidade na deteco, ponderao, ar-bitragem e interveno sobre os problemas sociais, que corresponde aosuniversos simblicos, aos interesses e s culturas profissionais dos agen-tes que atuam nos campos da pesquisa, do planejamento e da direo deprogramas e servios sociais. Apesar das diferenas que existem entreessas categorias, elas representam formas mais ou menos compartilhadasde aproximao aos fenmenos sociais, no sentido do desenvolvimentode pontos de vista que privilegiam o plo populacional, seja para fins dedeteco de riscos, seja para o planejamento de servios e programas depreveno ou assistncia social.

    Todavia, muitos so os problemas que se disparam a partir daintroduo de instrumentos que trabalham no plo oposto s maneirasestabelecidas de ver/enunciar/intervir que vigoram no corao da assis-tncia direta. Os sistemas informticos geralmente no contemplam osproblemas de traduo referidos ao fato de se alimentarem de dados le-vantados no formato correspondente ao contexto assistencial, transferi-dos para um formato independente do contexto (gesto centralizada) (cf.Cicourel, 1985).

    A literatura socioantropolgica das ltimas duas dcadas temgerado interessantes debates sobre os efeitos que a expanso desse plotecnoburocrtico estaria gerando para a gesto dos riscos (cf. Castel, 1981;Haraway, 1991; Rabinow, 1991). Em vrios desses trabalhos sugere-seque as novas tecnologias em nosso caso, representadas pelo modelotecno-instrumental colocam uma ameaa para a autonomia dos opera-dores assistenciais e seus sistemas de trabalho, (e at mesmo para a suasobrevivncia), fundamentalmente no relativo ao monoplio para o de-sempenho de algumas funes e para a determinao dos meios de traba-lho.

    Contudo, no contexto emprico pesquisado, observou-se que odesenvolvimento do risco como dispositivo exige e, ainda, estimula a au-

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    tonomia dos operadores de assistncia direta. Porm, essa nova convi-vncia de racionalidades diferentes (tecnopoltica e clnica) no est livrede conflitos nem se processa sempre em temos pacficos.

    A gesto moderna dos riscos exige, necessariamente, o desen-volvimento de processos de negociao entre representantes deracionalidades em confronto. Trata-se de negociaes rduas, porm sem-pre possveis, entre as formas padronizadas de registro de dados compa-tveis com a vigilncia da populao e aquelas outras que so tpicas doolhar clnico. Os operadores tecnoburocrticos muitas vezes encontram-se a si prprios divididos entre as lealdades ao sistema de gestotecnocrtica dos riscos e seus compromissos com os representantes doespao assistencial, este ltimo sob sua responsabilidade tcnica e/ougerencial. No obstante, sempre existiria a possibilidade de fazer com-patveis ambos os tipos de exigncias, fundamentalmente devido neces-sidade de preservar a integridade do sistema (seja a previdncia social,um hospital ou um programa de combate pobreza), em termos funda-mentalmente corporativos, o que permite deter, enquanto tal, o controledesses dois espaos.

    Um outro aspecto conflitante das relaes entre as mentalida-des clnica e tecnoburocrtica reside na importncia que esta ltima atri-bui eficincia, como parte das argumentaes tecnopolticas para em-preender programas sociais com enfoque de risco. Assim, em nome daeficincia, so justificadas medidas polticas dirigidas racionalizaodos recursos financeiros, materiais, humanos e tcnicos vinculados as-sistncia social. A ultra-tecnicalidade tomando aqui a expresso usa-da por Ayres (1995, p. 329) desse modelo parece remeter com bastantefreqncia ao papel do risco como fundamento para a proviso seletivade servios sociais, com baixa densidade tecnolgica, no contexto de po-lticas focalizadas para setores em situao de pobreza e excluso soci-ais.

    Ora, a utilizao do enfoque de risco para a proviso seletiva deservios sociais (focalizao) apenas uma das virtualidades que exibe omodelo tecno-instrumental, entre outras possveis classes de funesarbitrais. No mesmo sentido que j foi analisado no marco do presentetrabalho, decidir se um indivduo ou um setor da populao pode ter acessoa outros benefcios (ajuda alimentar, ensino bsico, por exemplo) passa aser, por intermdio das prticas promovidas pelo modelo tecno-instru-mental, muito mais o resultado de uma arbitragem tecnoburocrtica queo resultado de direitos sociais adquiridos por esse indivduo ou popula-o. Um exemplo disso a distribuio da cesta bsica de alimentos entreas mes que levam seus filhos consulta peditrica (recompensa) ou,caso contrrio, a retirada desse benefcio s mes que no comparecemao servio de sade (punio).

    Poder-se-ia argumentar que a moderna gesto dos riscos, ao

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    promover o autocuidado e defender os benefcios que isso representa parao autogoverno dos indivduos, abre portas para pensar, em termos poten-ciais, nas propriedades emancipatrias do dispositivo. Porm, nenhumdos dispositivos biopolticos at agora conhecidos existe em si mesmo: orisco pura forma e no contedo; ele permanece aberto, disponvel paracircular abrangentemente no espao social e oferecer assim um suportepara transportar mltiplos projetos e significados sociais. Com o declniorelativo das estratgias punitivas e a expanso do campo de objetos dasestratgias arbitrais, se converter o risco no obrigatrio ponto de passa-gem para os indivduos terem acesso a um controle maior sobre a prpriabiografia? A resposta deveria ser negativa, porque o risco, como todaconstruo social, como disse Lvi-Strauss com relao aos mitos, noexiste no absoluto.

    Recebido para publicao em agosto/2002

    MITJAVILA, Myriam. Risk: a new device for social arbitration. Tempo Social, Rev. Sociol. USP, S. Paulo,14(2): 129-145, October 2002.

    ABSTRACT: In the last two decades, social sciences have been registeringand analyzing the growing appearance of a new way to codify the dangers andthreats that characterize social life in contemporary societies. This consists ofthe proliferation of discourses and technical/ political practices organized infunction of risk. We can observe that there exists consensus in the sociologicalliterature about the definition of risk as social construction and the complexrelationships between risk and scientific - technical knowledge. This workespecially discusses the socio technical and institutional bases of risk as adevice for arbitrage of social problems in such diverse levels as the selectiveprovision of social services, determination of guilt and/or danger in criminalbehavior, allowance of credits in the financial system, management of humanresources in the labor area, and others.

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