ROBERT BEATTY o b e R t b e a t t y 10 milho. Para se manterem quentes, comiam à volta do lume....

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ROBERT BEAT TY

Dedicado à minha mulher, Jennifer, que desde

o início ajudou a moldar esta história, e às nossas filhas

– Camille, Genevieve e Elizabeth –, que serão sempre

o nosso primeiro público, e também o mais importante.

MANSÃO BILTMORE

Asheville, Carolina do Norte

1899

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Serafina abriu os olhos e perscrutou a oficina obscurecida em

busca de alguma ratazana estúpida o suficiente para entrar no

seu território enquanto ela dormia. Sabia que andavam por ali,

no limite das suas rondas noturnas, rastejando pelas fendas e som-

bras da infindável cave da casa enorme, sempre prontas a roubar

tudo o que lhes fosse possível das cozinhas e despensas. Passara a

maior parte do dia a dormitar nos seus recantos favoritos, mas era

ali, enroscada sobre o velho colchão por detrás da caldeira ferru-

genta, no ambiente familiar da oficina, que mais se sentia em casa.

Martelos, chaves inglesas e engrenagens pendiam das vigas rústicas e

o ar estava cheio do odor familiar a óleo lubrificante. O seu primeiro

pensamento, ao olhar em redor e escutar os sons da escuridão, foi

que aquela parecia uma boa noite para caçar.

O seu pai, que anos antes trabalhara na construção da Man-

são Biltmore e desde então vivera na cave, sem pedir nem receber

autorização para tal, dormia na cama que construíra secretamente

atrás das prateleiras. As brasas reluziam no velho barril metálico

sobre o qual, horas antes, cozinhara o jantar de galinha e papas de

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milho. Para se manterem quentes, comiam à volta do lume. Como

de costume, ela comera a galinha, mas deixara as papas no prato.

– Come tudo – resmungou o pai.

– Já comi – respondeu ela, pousando o prato de lata meio vazio.

– Tudo – insistiu, empurrando o prato para junto dela –, ou nunca

vais ficar maior do que um leitãozinho. – O pai comparava-a a um

leitãozinho escanzelado sempre que queria espicaçá-la, achando que

ficaria tão furiosa que enfiaria as horríveis papas pela goela abaixo,

apesar de as odiar, mas nunca funcionava. Já não funcionava. – Come

as tuas papas, leitãozinho – repetiu, tentando picá-la.

– Eu não vou comer as papas, Papá – desafiou-o ela, esboçando

um sorriso –, por mais vezes que as ponhas à minha frente.

– São só milho moído, rapariga – argumentou ele, remexendo

o lume com um graveto de modo a dispor os troncos de madeira

como mais lhe convinha. – Toda a gente come as papas menos tu.

– Tu sabes perfeitamente que eu não consigo meter no bucho

nada que seja verde, nem amarelo, nem horroroso como essas papas,

Papá, por isso para de gritar comigo.

– Se eu estivesse a gritar contigo, tu reparavas – replicou ele,

remexendo uma vez mais no lume –, mas tens de comer a ceia.

– Já comi a parte que valia a pena comer – disse ela finalmente,

pondo termo à discussão.

Ao fim de algum tempo, esqueceram as papas e mudaram de tema

de conversa. Serafina sorria ao pensar nos seus jantares com o pai.

Não conseguia pensar em nada mais agradável do que conversar

com o pai – exceto, talvez, dormir no quentinho junto de uma das

pequenas janelas da cave quando o sol lhes batia.

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Com todo o cuidado, para não o acordar, desceu sorrateiramente

do colchão, caminhou em silêncio ao longo do chão de pedra, cheio

de areia, da oficina, e esgueirou-se para o corredor sinuoso. Ainda

a tirar ramelas dos olhos e a espreguiçar-se de braços e pernas, não

pôde evitar uma pontinha de excitação. A sensação irresistível de

iniciar uma noite novinha em folha provocava-lhe formigueiros por

todo o corpo. Sentia os músculos e todos os seus sentidos ganharem

vida, como se fosse uma coruja a distender as asas e a fletir as garras,

antes de levantar voo para a sua fantasmagórica caçada noturna.

Caminhou em silêncio pelo escuro, passando pelas rouparias,

copas e cozinhas. A cave fervilhara o dia todo com a atividade dos

criados, mas todas as divisões estavam agora vazias e escuras, tal

como ela gostava. Sabia que os Vanderbilt e os seus muitos hóspe-

des dormiam no segundo e terceiro pisos, acima dela, mas ali em

baixo tudo estava em sossego. Adorava fazer a ronda dos corredores

intermináveis e das arrecadações obscuras. Conhecia o toque e o

brilho de cada recanto, de cada fenda da parede. Estes eram os seus

domínios à noite, exclusivamente seus.

Ouviu um som ténue, como que de algo a deslizar. A noite

iniciava-se rapidamente. Parou. Pôs-se à escuta. Duas portas mais

abaixo, ouviu o som de patinhas a passarinhar sobre o chão nu.

Inclinou o corpo para a frente, ao longo da parede. Quando o som

parava, ela parava. Quando o som recomeçava, ela projetava-se uma

vez mais para a frente. Era uma técnica que aprendera sozinha aos

sete anos: mexer-se quando eles se mexem, parar quando param.

Conseguia agora ouvir as criaturas respirar, a esgravatar a pedra

com as unhas das patas, as caudas a roçar o chão. Sentia-lhes a

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tremura familiar dos dedos e a tensão das pernas. Esgueirou-se

pela porta semiaberta para o interior da arrecadação e avistou-as

no escuro: duas ratazanas enormes, de pelagem castanha sebenta,

tinham deslizado, uma de cada vez, pelo cano de esgoto abaixo até

ao soalho. As intrusas eram obviamente novatas – caçavam insensa-

tamente baratas quando poderiam muito bem, em vez disso, sorver

o creme dos pastéis acabados de confecionar, mesmo ao fundo do

corredor.

Sem emitir um som ou sequer perturbar o ar, caminhou lenta

e furtivamente na sua direção. Tinha os olhos focados nelas e os

ouvidos captavam-lhes todos os sons – conseguia até farejar-lhes o

nojento fedor a esgoto. Entretanto, as ratazanas prosseguiam a sua

atividade nojenta, sem se aperceberem minimamente da sua presença.

Deteve-se a um metro delas, oculta na escuridão de uma sombra,

pronta para o salto. Era este o seu momento preferido, o instante

imediatamente antes de se lançar sobre a presa. O corpo balançava-

-lhe ligeiramente para trás e para a frente, afinando o ângulo de

ataque. Até que, por fim, se lançou. Num movimento rápido e explo-

sivo, agarrou com as mãos nuas as ratazanas, que se contorceram,

guinchando sonoramente.

– Apanhei-vos, criaturas ascorosas! – exclamou em tom sibilante.

– A ratazana mais pequena debatia-se aterrorizada, desesperada por

se escapar, mas a maior contorceu-se e mordeu-lhe a mão. – Não há

cá mais disso! – rosnou, apertando firmemente o pescoço da criatura

entre o polegar e o indicador.

Os bichos contorciam-se freneticamente, mas ela segurava-os

com firmeza, não os deixando fugir. Levara algum tempo a aprender

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essa lição quando era mais nova – depois de apanhar os ratos, havia

que apertá-los com força, sem afrouxar a pressão, houvesse o que

houvesse, ainda que as suas pequenas garras nos arranhassem e as

suas caudas escamosas se nos enrolassem em torno da mão, como

uma nojenta cobra cinzenta.

Finalmente, ao fim de vários segundos de luta furiosa, as rataza-

nas exaustas perceberam que nunca lhe conseguiriam fugir. Ficaram

então imóveis, olhando-a com ar desconfiado, com uns olhos negros

semelhantes a pequenas contas. Os seus narizinhos ranhosos e os

bigodes perversamente compridos vibravam de medo. A ratazana

que a mordera enrolou-lhe lentamente a cauda longa e escamosa

duas voltas em torno do pulso, procurando ainda ganhar vantagem

suficiente para se libertar.

– Nem tentes – advertiu. Ainda a sangrar da mordidela, sobrava-

-lhe pouca paciência para os ardis da criatura. Já antes fora mordida,

mas nunca se habituara especialmente à ideia.

Segurando os animais sinistros no interior dos punhos cerrados

com firmeza, transportou-os corredor fora. Sabia-lhe bem apanhar

duas ratazanas antes da meia-noite, ainda por cima exemplares par-

ticularmente feiosos, do tipo capaz de roer um buraco numa saca

de serapilheira para chegar ao grão lá dentro, ou de fazer cair para

o chão ovos de uma prateleira para lhes quebrar a casca e se ban-

quetear com o conteúdo.

Subiu as velhas escadas de pedra que conduziam ao exterior

e caminhou pelos terrenos da mansão, iluminados pelo luar, até

chegar à borda da floresta. Aí, atirou as ratazanas para o meio das

folhas.

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– Agora desapareçam daqui para fora e não voltem! – gritou-

-lhes – Da próxima, não vou ser tão simpática!

As criaturas rebolaram pelo chão da floresta devido à força com

que as projetara. Detiveram-se a tremer, à espera de um golpe de

misericórdia. Quando viram que este não chegava, voltaram-se e

olharam-na assombradas.

– Desapareçam antes que eu mude de ideias – advertiu ela.

Sem hesitarem nem mais um instante, as ratazanas fugiram por

entre as folhas caídas. Noutros tempos, as ratazanas que ela apa-

nhava não tinham tanta sorte: deixava as suas carcaças junto à cama

do pai, para lhe mostrar o trabalho da noite. Mas há muito que

abandonara esse hábito.

Desde pequenita que se dedicava a estudar meticulosamente

os homens e mulheres que trabalhavam na cave, pelo que sabia

que a cada um deles estava atribuído um trabalho específico. Por

exemplo, era responsabilidade do pai reparar os elevadores, os

elevadores da comida, os mecanismos das janelas, os sistemas de

aquecimento a vapor e todas as outras engenhocas que assegura-

vam o funcionamento da enorme mansão de duzentas e cinquenta

divisões. Estava até encarregado de assegurar o bom funcionamento

do órgão de tubos do Grande Salão de Banquetes, durante os incrí-

veis bailes organizados pelo Sr. e a Sra. Vanderbilt. E para além do

pai, havia ainda cozinheiros, criadas de cozinha, carvoeiros, limpa-

-chaminés, lavadeiras, pasteleiros, criadas, criados de libré e muitos

outros.

– Eu tenho um trabalho como toda a gente, Papá? – perguntara

Serafina quando tinha dez anos.

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– É claro que tens – respondeu ele, mas fazendo-a suspeitar de

que lhe mentia para não lhe ferir os sentimentos.

– E qual é? Qual é o meu trabalho? – insistiu, pressionando-o.

– Na verdade, é um trabalho extremamente importante aqui em

casa, e ninguém o faz melhor que tu, Sera.

– Diz-me, Papá. Que trabalho é que é?

– Acredito que és a CCR da Mansão Biltmore.

– O que é que isso quer dizer, CCR? – perguntou ela, toda excitada.

– Tu és a Caçadora-Chefe de Ratazanas – respondeu ele.

Qualquer que tivesse sido a intenção daquelas palavras, grava-

ram-se-lhe na mente. Recordava-as ainda agora, dois anos passados,

e de como o seu pequeno peito inchara e sorrira orgulhosa ao ouvir

aquelas palavras: Caçadora-Chefe de Ratazanas. Como lhe haviam

soado bem... Toda a gente sabia que os roedores eram um pro-

blema de monta num sítio como Biltmore, com os seus barracões,

prateleiras, celeiros e o diabo-a-sete. E era bem verdade que ela

demonstrara um talento inato para apanhar as nojentas, mas astu-

tas criaturas de quatro patas que surripiavam comida e largavam

excrementos por toda a parte, ameaçando disseminar doenças, e

logravam sempre escapar aos adultos, apesar das ratoeiras e vene-

nos. Os ratinhos, tímidos e atreitos a erros induzidos pelo pânico

em momentos cruciais, apanhava-os com a maior das facilidades.

Mas as ratazanas davam-lhe que fazer todas as noites, e com elas é

que afinara os seus talentos. Agora tinha doze anos. E o seu nome

era esse: Serafina. CCR.

Ao observar as duas ratazanas correndo pela floresta, porém, uma

estranha e poderosa sensação assenhoreou-se de si. Tinha vontade

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de as seguir. Queria ver o que viam elas por debaixo de folhas e

gravetos. Explorar as rochas e os vales, regatos, ribeiros e outras

coisas de encher o olho. Mas o pai proibira-a.

«Nunca entres na floresta», alertara-lhe ele, vezes sem conta. «Há

lá forças negras que ninguém entende, coisas que não são naturais

e te podem fazer muito mal.»

De pé, na orla da floresta, olhava, o mais longe que a vista alcan-

çava, para o interior do arvoredo. Anos e anos a fio ouvira histó-

rias de gente que se perdera na floresta para nunca mais voltar.

Interrogava-se sobre que perigos se esconderiam lá dentro. Seria

magia negra, demónios, ou, quem saberia dizer, algum tipo de bestas

hediondas? Que coisas eram essas que o pai tanto temia?

Era capaz de discutir com ele por tudo e coisa nenhuma, só pelo

gozo que lhe dava – por exemplo, por recusar as papas, passar o dia

a dormir e a noite a caçar, ou espiar os Vanderbilt e seus hóspedes –,

mas este tema era tabu. Já sabia que quando ele pronunciava aquelas

palavras a coisa era séria. Por muita fanfarronice que lhe saísse da

boca para fora, por muito que espiolhasse pela casa toda, por vezes

era melhor ficar quietinha e fazer o que lhe diziam, percebendo que

essa era uma boa maneira de continuar a respirar.

Sentindo-se estranhamente só, desviou o olhar da floresta e de

volta à mansão. A Lua erguia-se acima dos íngremes telhados

de ardósia da casa, refletindo-se nos painéis de vidro que cobriam

o Jardim de Inverno. As estrelas cintilavam sobre as montanhas.

A relva, as árvores e as flores dos belos terrenos magnificamente

cuidados brilhavam ao luar da meia-noite. Apercebia-se de cada por-

menor, de cada sapo, cada caracol, cada uma das criaturas noturnas.

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Um pássaro-mimo solitário entoava a sua canção noturna a partir de

uma magnólia, e as suas crias, aconchegadas no seu ninho minúsculo

construído por entre as glicínias trepadeiras, farfalhavam enquanto

dormiam.

Sentiu-se animada pela ideia de que o seu pai ajudara a construir

tudo isto. Fora um de entre as centenas de canteiros, marceneiros e

outros artífices que tinham vindo de Asheville, das montanhas em

redor, para construir a Mansão Biltmore, muitos anos antes. Per-

manecera ao serviço para assegurar a manutenção da maquinaria.

Mas quando todos os outros trabalhadores da cave iam para casa à

noite, ter com as respetivas famílias, ele e Serafina escondiam-se por

entre a canalização fumegante e as ferramentas metálicas, na oficina,

como se fossem passageiros clandestinos na casa das máquinas de

um grande navio. A verdade é que não tinham mais nenhum sítio

para onde ir, nem familiares com quem se reunir. Sempre que ela lhe

fazia perguntas acerca da mãe, o pai recusava-se a abordar o tema.

Assim, não havia mais ninguém para além dela e do pai, e faziam

da cave a sua casa desde que se recordava.

– Porque é que nós não vivemos nos alojamentos dos criados,

nem na vila, como os outros trabalhadores, Papá? – perguntara ela

muitas vezes.

– Não penses nisso – resmungava ele à laia de resposta.

Ao longo dos anos, o pai ensinara-a a ler e escrever bastante bem,

e contara-lhe inúmeras histórias acerca do mundo, mas nunca se

dispusera muito a falar sobre o que ela mais queria, isto é, aquilo

que lhe ia bem fundo no coração – o que acontecera à sua mãe,

por que razão não tinha irmãos nem irmãs, e ela e o pai não tinham

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amigos que os viessem visitar. Por vezes, só lhe apetecia entrar nele e

abaná-lo por dentro, a ver o que aconteceria; quase sempre, porém,

o pai limitava-se a dormir toda a noite e trabalhar todo o dia, fazer

o jantar à noite e contar-lhe histórias. Levavam uma vida bastante

boa os dois. Assim, ela não insistia, por saber que ele não gostava

de ser abanado. E deixava-o em paz.

À noite, quando todos na grande casa se iam deitar, esgueirava-

-se para o andar de cima e tirava das prateleiras livros para ler à luz

do luar. Ouvira por acaso o mordomo gabar-se, a um escritor de

visita à casa, de que o Sr. Vanderbilt reunira vinte e dois mil livros,

dos quais só metade cabia na Sala da Biblioteca. Os outros estavam

guardados em mesas e estantes por toda a casa. Para Serafina, estes

últimos eram como bagas maduras, prontas a ser colhidas, e dema-

siado apetecíveis para se lhes resistir. Ninguém parecia dar pela

falta de um qualquer livro, o qual, em todo o caso, devolvia ao seu

lugar poucos dias depois.

Lera sobre as grandes batalhas entre os estados, com bandeiras

esfarrapadas a esvoaçar, e também sobre os monstros de ferro fume-

gante que lançavam as pessoas pelos ares. Sentia ganas de se esguei-

rar à noite para o cemitério com Tom Sawyer e Huckleberry Finn, e

naufragar na companhia da Família do Robinson Suíço. Havia noites

em que ansiava por ser uma das quatro irmãs de Mulherzinhas, e

gozar os carinhos da sua mãe carinhosa. Noutras noites, imaginava

encontrar-se com os fantasmas de Sleepy Hollow ou ouvir bater,

bater, bater à porta o corvo negro de Edgar Allan Poe. Gostava de

falar ao pai dos livros que lia, e era frequente congeminar as suas

próprias histórias, cheias de amigos imaginários, estranhas famílias

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e fantasmas noturnos. Ele, porém, nunca se mostrava interessado

nas suas histórias de fantasia e terror. Era um homem demasiado

terra a terra para esse tipo de coisas, e pouco amigo de acreditar em

outra coisa que não tijolos, parafusos e coisas palpáveis em geral.

Especulava cada vez mais consigo própria como seria ter algum

tipo de amigo secreto, que o pai não conhecesse, alguém com quem

pudesse conversar sobre isto e aquilo. Infelizmente, não havia exa-

tamente muitas crianças da sua idade a esgueirarem-se para a cave

a meio da noite.

Alguns dos criados dos mais baixos escalões da casa, como os

serventes de cozinha e os encarregados das caldeiras, que traba-

lhavam na cave e iam dormir a casa todas as noites, haviam-na vis-

lumbrado aqui ou ali e sabiam vagamente quem era, mas as criadas

e lacaios que trabalhavam nos pisos principais não a conheciam.

E os senhores da casa, esses, por certo nem sabiam da sua existência.

– Os Vanderbilt são boa gente, Sera – dissera-lhe o pai –, mas não

são o nosso tipo de gente. Esconde-te quando eles aparecerem. Não

deixes que ninguém te ponha a vista em cima. E, o que quer que

faças, não digas o teu nome a ninguém, nem quem tu és. Ouviste?

Serafina ouvia, sim. Ouvia muito bem. Era capaz de ouvir um rato

mudar de ideias. Só não sabia era exatamente por que razão ela e o

pai viviam como viviam. Não sabia por que razão o pai a escondia

do mundo, ou o que o levava a ter vergonha dela. Mas uma coisa

sabia seguramente: que o amava com todo o coração, e a última

coisa que queria no mundo era causar-lhe problemas.

Especializara-se por isso em andar de um lado para o outro sem

ser detetada, não apenas para melhor caçar ratazanas, mas também

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para evitar as pessoas. Quando se sentia particularmente corajosa,

ou então solitária, subia aos pisos de cima, misturando-se com as

pessoas que se atarefavam de um lado para outro. Agachava-se,

rastejava, ocultava-se. Era pequena para a idade que tinha, e de pé

ligeiro. As sombras eram suas amigas. Espiolhava os convidados

bem vestidos que chegavam em carruagens esplêndidas, com os seus

cavalos magníficos. Ninguém lá de cima alguma vez a vira escondida

debaixo da cama ou detrás da porta. Ninguém alguma vez reparara

nela no fundo do guarda-fatos, quando penduravam os sobretudos.

Quando as senhoras e senhores iam passear pelos jardins, ela seguia

dissimuladamente a seu lado sem que se apercebessem, e ouvia

tudo o que diziam. Adorava ver as meninas, nos seus vestidos azuis

e amarelos, com as fitinhas a dançar no cabelo, e corria junto a elas

quando saltitavam pelo jardim fora. Quando as crianças jogavam às

escondidas, não faziam a mínima ideia de que havia mais um jogador.

Às vezes chegava a ver o Sr. e a Sra. Vanderbilt a passear de braço

dado, ou avistava o sobrinho deles, de doze anos, a montar o seu

cavalo pela propriedade fora, com o seu cão preto de pelo lustroso

a correr a seu lado.

Observara-os a todos, mas nenhum deles alguma vez a vira – nem

mesmo o cão. Ultimamente, perguntava-se o que aconteceria se a

vissem. E se o rapaz a vislumbrasse? O que faria ela? E se o cão

dele a perseguisse? Teria tempo para trepar a uma árvore? Por vezes

gostava de imaginar o que diria se se deparasse face a face com a Sra.

Vanderbilt. Como está, Sra. V., sou eu que lhe apanho as ratazanas.

Quer que as mate mesmo, ou dou-lhes só um safanão? Por vezes,

imaginava-se de vestidos fantasiosos, fita no cabelo e sapatinhos

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brilhantes nos pés. De outras vezes, ansiava não apenas por escutar

furtivamente as pessoas à sua volta, mas também por conversar com

elas. Não apenas vê-las, mas também ser vista.

Quando vagueava à luz do luar pelos amplos relvados, regres-

sando a casa, perguntava-se o que aconteceria se um dos convidados,

ou talvez, quem sabe, o jovem amo, no seu quarto do segundo andar,

calhasse acordar nesse preciso momento, olhasse pela janela, e visse

uma rapariga misteriosa a caminhar sozinha à noite. O pai nunca

lhe falava nisso, mas sabia que não tinha exatamente uma aparência

normal, com o seu corpinho escanzelado, só músculo, osso e energia.

Não tinha um único vestido, pelo que usava habitualmente uma

das velhas camisas de trabalho do pai, que apertava à volta da cin-

tura estreita com um cordão que encontrara na oficina. Ele não lhe

comprava roupa porque não queria que as pessoas da vila fizessem

perguntas e começassem a meter o bedelho; coscuvilhice era algo

que não tolerava.

O longo cabelo dela não era de uma única cor como o das pes-

soas normais, mas de matizes variados dourados e castanho-claros.

As maçãs do rosto apresentavam uma angulosidade peculiar. E tinha

uns olhos enormes, da cor do âmbar. Via tão bem à noite como

durante o dia. Até mesmo as suas silenciosas competências de caça-

dora não eram exatamente normais. Todas as pessoas que alguma vez

encontrara, especialmente o pai, faziam tanto barulho ao caminhar

que era como se fossem um daqueles grandes cavalos Belgas de traba-

lho, que puxavam as alfaias agrícolas nos campos do Sr. Vanderbilt.

Tudo aquilo a fazia divagar, levantando o olhar para as janelas

da grande mansão: com que sonhavam as pessoas que dormiam

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naqueles quartos, com os seus cabelos de uma só cor, os seus longos

narizes pontiagudos e os seus grandes corpos deitados em camas

macias, na escuridão gloriosa das suas noites? Por que ansiavam?

O que os fazia rir ou pular? O que sentiam dentro de si? Quando

jantavam, à noite, as crianças comiam as papas de milho, ou só a

galinha?

Ao deslizar pelas escadas abaixo, de volta à cave, ouviu alguma

coisa num corredor distante. Deteve-se à escuta, mas não conseguiu

identificar o som. Ratazana não era, disso estava bem certa. Algo

de muito maior, mas o quê? Curiosa, caminhou na direção do som.

Passou pela oficina do pai, pelas cozinhas, e também pelas outras

divisões que conhecia bem, penetrando nas áreas mais profundas

onde caçava menos vezes. Ouviu portas fechar-se, e em seguida pas-

sos e ruídos abafados. O coração começou a palpitar-lhe ao de leve

no peito. Alguém caminhava pelos corredores da cave. Da sua cave.

Aproximou-se. Não era o criado que recolhia o lixo todas as

noites, nem um dos lacaios a preparar um petisco de fim de noite

para um hóspede – desses, conhecia-lhes bem o som dos passos. Por

vezes o ajudante do mordomo, de onze anos, detinha-se no corredor

e comia alguns dos bolinhos do tabuleiro de prata que o mordomo

o mandara ir buscar. Ela postava-se junto dele, mesmo ao virar da

esquina, no escuro, fingindo que eram amigos e conversavam no

prazer da companhia um do outro. Mas, pouco depois, o rapaz

limpava o açúcar em pó dos lábios e partia lesto escadas acima para

compensar o tempo perdido. Mas desta vez não era ele.

Quem quer que fosse, parecia calçar sapatos de solas duras –,

sapatos caros. Mas um cavalheiro não tinha nada a fazer nesta zona

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da casa. Porque haveria um senhor de vaguear pelos corredores

escuros a meio da noite? Cada vez mais curiosa, seguiu o desconhe-

cido, assegurando-se de não ser vista. Sempre que, furtivamente,

se conseguia aproximar o suficiente para quase o vislumbrar, o

mais que conseguia distinguir era a sombra de uma forma alta

e negra, segurando uma lanterna palidamente iluminada. E havia

uma outra sombra, alguém ou algo junto dele, mas Serafina não se

atrevia a aproximar-se o suficiente para saber de quem ou de quê

se tratava.

A cave era enorme, com diversos quartos, todos diferentes, cor-

redores e andares, construídos sobre o declive de terra em que se

sustentava a casa. Algumas zonas, como as cozinhas e a lavandaria,

tinham paredes de gesso macio e janelas. As divisões, aí, apresen-

tavam acabamentos rudimentares, mas eram limpas e secas, apro-

priadas à lide diária dos criados. Mas as secções mais distantes da

estrutura subterrânea embrenhavam-se profundamente nos buracos

húmidos e terrosos das enormes fundações. Aí, a argamassa escura

e endurecida parecia escorrer por entre os blocos de pedra gros-

seiramente talhados que formavam paredes e teto. Era raro entrar

nessas divisões, pois eram frias, sujas e bafientas.

De súbito, os passos mudaram de direção, aproximando-se dela.

A chiar, cinco ratazanas vieram a correr à frente dos passos, mais

aterrorizadas que quaisquer roedores dos muitos que já vira. As

aranhas rastejaram das fendas das paredes. Baratas e centopeias

emergiram do chão de terra. Assombrada com o que via, Serafina

susteve a respiração e colou-se à parede, cheia de medo como um

láparo a correr sob a sombra de um gavião.

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Enquanto o homem se encaminhava para ela, ouviu mais um som.

Era uma agitação arrastada, como que de uma pessoa pequena – de

chinelos nos pés, talvez uma criança –, mas havia algo de errado.

Os pés da criança raspavam o chão, por vezes escorregavam... a

criança seria aleijada... não... a criança estava a ser arrastada.

– Não, por favor! Não! – choramingava a menina, com a voz a

tremer de desespero. – Não devíamos vir aqui para baixo. – Falava

como alguém que tivesse sido criado numa família bem-nascida e

frequentado uma escola fina.

– Não te preocupes. É já para aqui que vamos... – replicou o

homem, detendo-se junto à porta, do outro lado da esquina onde

Serafina se encontrava. Ouvia-lhe agora respiração, o movimento

das mãos, o farfalhar da roupa. Sentiu um fogo percorrer-lhe o

corpo. Queria correr, queria fugir, mas as pernas não lhe obede-

ciam. – Não tens nada a recear, miúda – disse ele à criança. – Não

vou fazer-te mal...

A forma como pronunciou aquelas palavras provocou um arrepio

na nuca de Serafina. Não vás com ele, pensou para consigo. Não vás

com ele! A rapariga parecia pouco mais nova que ela, e Serafina que-

ria ajudá-la, mas não conseguia reunir a coragem necessária. Pres-

sionou o corpo contra a parede, certa de que seria ouvida ou vista.

As pernas tremeram-lhe, como se fossem desfazer-se debaixo de si.

Não conseguiu ver o que aconteceu de seguida, mas, de repente, a

menina lançou um grito de gelar o sangue. O som lancinante fê-la

saltar, e teve de abafar o seu próprio grito. Ouviu então uma luta,

após a qual a menina se soltou do homem e se precipitou pelo

corredor fora. Corre, miúda! Corre!, pensou Serafina para consigo.

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Os passos do homem desvaneceram-se ao longe, enquanto a

perseguia. Percebia-se que não corria a toda a velocidade, antes se

deslocava firmemente, sem quaisquer hesitações, como se estivesse

seguro de que a menina nunca lhe escaparia. O pai explicara-lhe que

era assim que os lobos vermelhos perseguiam e matavam veados nas

montanhas – com uma resistência persistente, e não com explosões

de velocidade.

Não sabia o que fazer. Esconder-se num canto escuro, esperando

que o homem não a descobrisse? Ou fugir em conjunto com as

ratazanas e aranhas aterrorizadas, enquanto tinha oportunidade de

o fazer? Tinha vontade de correr para os braços do pai, mas, e a

criança? A menina era tão indefesa, tão lenta, débil e assustada

e, mais do que tudo o resto, precisava de um amigo que a ajudasse

a lutar e defender-se. Serafina queria ser essa amiga; queria ajudá-la,

mas não conseguia obrigar-se a seguir nessa direção.

Ouviu então a menina gritar de novo. Aquela maldita ratazana

nojenta vai matá-la, pensou para consigo. Vai matá-la. Com um

impulso de raiva e coragem, correu na direção do som. As pernas

pareciam explodir-lhe de velocidade. A mente inflamava-se-lhe de

medo e excitação. Dobrou esquina após esquina, mas quando che-

gou à escadaria de pedra coberta de musgo que conduzia às entra-

nhas mais profundas da subcave, deteve-se, recuperando o fôlego,

e abanou a cabeça. Era um sítio frio, húmido, nojento, horrível, que

sempre fizera o possível por evitar – especialmente no inverno. Ouvia

histórias segundo as quais se guardavam cadáveres na subcave, de

inverno, quando a terra estava demasiado congelada para se con-

seguir abrir uma campa. Por que raio teria a miúda descido até lá?

R o b e R t b e a t t y

26

Seguiu, hesitante, pelas escadas molhadas e pegajosas abaixo,

levantando e sacudindo o pé de cada vez que o pousava na pedra

pegajosa. Quando por fim chegou ao fundo, seguiu ao longo de um

corredor comprido e inclinado, de cujo teto pingava uma espécie

de lodo castanho. O sítio sórdido e bafiento causava-lhe arrepios na

espinha, mas continuou a caminhar. Tens de a ajudar, repetia para

com os seus botões. Não podes voltar atrás. Prosseguiu ao longo de

um labirinto de túneis sinuosos. Virou à direita, depois à esquerda, e

de novo à esquerda, depois à direita, até perder a noção da distância

percorrida. Foi então que ouviu sons de luta e gritos mesmo ao virar

da esquina. Estava muito perto.

Hesitou, assustou-se e o coração bateu-lhe com tanta força den-

tro do peito que parecia querer explodir. Sentiu o corpo tremer por

todos os lados. Não queria dar nem mais um passo, mas os amigos

são para ajudar os amigos. Não sabia muito acerca da vida, mas

isso, sabia seguramente, e não ia fugir a correr como um esquilo

amedrontado, no preciso momento em que alguém mais precisava

dela. Tremendo por todo o corpo, controlou-se o melhor que pôde,

respirou bem fundo, e obrigou-se a dobrar a esquina.

Uma lanterna quebrada jazia deitada no chão de pedra, com o

vidro em cacos, mas a chama ainda acesa. Iluminada pela sua luz

cada vez mais débil, uma menina de vestido amarelo lutava pela

vida. Um homem alto, de manto negro com capuz, mãos manchadas

de sangue, agarrava a menina pelos pulsos. Esta tentava libertar-se.

– Não! Largue-me! – gritava ela.

– Acalma-te lá – disse-lhe o homem, com a voz a tremer de raiva,

num tom escuro e desumano. – Não te vou fazer mal, miúda...

27

S e R a f i n a e o M a n t o n e g R o

– repetiu. A rapariga tinha cabelo louro encaracolado e pele branca

e pálida. Lutava por escapar, mas o homem do manto negro puxou-

-a para junto de si e imobilizou-a nos seus braços, enquanto ela se

debatia e lhe golpeava o rosto com os pequeninos pulsos.

– Se ficares quieta, isto acaba já – alertou-a ele, puxando-a ainda

mais para junto de si. Serafina apercebeu-se subitamente de que

cometera um erro terrível. Aquilo excedia as suas possibilidades.

Sabia que deveria ajudar a menina, mas estava tão aterrorizada que

os pés se lhe colavam ao chão. Nem respirar conseguia, quanto mais

lutar. Ajuda-a!, parecia gritar-lhe o seu pensamento. Ajuda-a! Ataca

a ratazana! Ataca a ratazana!

Conseguiu finalmente reunir coragem e precipitou-se para cima

do homem, mas, nesse preciso momento, o manto de cetim negro

ergueu-se, flutuando, como se possuído por um espírito fumarento.

A menina gritou. As pregas do manto envolveram-na como os tentá-

culos de uma serpente faminta. O manto parecia mover-se, animado

por vontade própria, embrulhando-se, retorcendo-se, com um pertur-

bador som de chocalhos, como as ameaças sibilantes de uma centena

de cascavéis. Serafina viu o rosto horrorizado da menina olhando-a

do interior das pregas do manto que se fechava sobre ela, com os seus

olhos azuis suplicantes arregalados de terror. Ajuda-me! Ajuda-me!

Então, as pregas do manto cerraram-se sobre ela, o grito emude-

ceu, e a menina desapareceu no nada, restando apenas a escuridão.

Com o choque, Serafina sentiu um nó apertar-lhe a garganta.

Num instante, a menina debatia-se tentando libertar-se, no seguinte

desaparecia no ar. O manto consumira-a. Esmagada pela confusão,

dor e medo, ficou ali parada, atordoada e fora de si.

R o b e R t b e a t t y

28

Durante vários segundos, o homem pareceu vibrar violentamente

e uma auréola macabra brilhou à sua volta, numa névoa negra e bru-

xuleante. Um odor horrivelmente nauseabundo, como que de entra-

nhas podres, invadiu as narinas de Serafina, forçando-a a projetar

a cabeça para trás. Contraiu o nariz e a boca, e tentou não inspirar.

Sentindo-se asfixiar, as contrações da garganta foram sonoras

o suficiente para o homem do manto negro se voltar subitamente e

vê-la pela primeira vez. Foi como se uma garra gigante a prendesse

pelo peito. As pregas do capuz envolveram-lhe o rosto, mas ainda

conseguiu ver que nos olhos do homem brilhava uma luz sobrena-

tural. Permaneceu imóvel, paralisada, completamente aterrorizada.

– Eu não te faço mal, minha filha... – sussurrou o homem com

voz roufenha.