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A ROSA E O LABIRINTO, O LABIRINTO E A ROSA: A POÉTICA DE ALTINO CAIXETA DE CASTRO THE ROSE AND THE LABYRINTH,THE LABYRINTH AND THE ROSE:THE POETRY OF ALTINO CAIXETA DE CASTRO Rodrigo Guimarães* Resumo Trata-se de um estudo da obra de Altino Caixeta de Castro, em que se busca assinalar alguns operadores textuais tais como “rosa” e “labirinto” que marcam significativamente sua poética, realizando incessantes desterritorializações no campo da sintaxe, do léxico, da lógica e da semântica. Para tanto, foram abordados, especialmente, os livros Cidadela da rosa: com fissão da flor (1980) e Diário da rosa errância e prosoemas (1989). Palavras-chave: Altino Caixeta de Castro, Poesia Contemporânea, Rosa, Labyrinth. Abstract This is a study concerning the work of Altino Caixeta de Castro, under the perspective of code’s desestabilization performed by the signs of the “rose” and the “labyrinth”. With this purpose were analyzed specifically his books Cidadela da rosa: com fissão da flor (1980) and Diário da rosa errância e Prosoemas (1989). It can be concluded that Altino Caixeta, at the works above mentioned, acomplishes incessant non territorializations on the fields of syntax, lexicology, logic and semantics. Key words: Altino Caixeta de Castro, Contemporary Poetry, Rose’s Sign. 1 Introdução Altino Caixeta nasceu nos arredores de Patos de Minas, onde viveu a maior parte de sua vida apesar de ter passado alguns anos em Belo Horizonte e Brasília. Com formação em farmácia e bioquímica, dedicou-se,

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  • A ROSA E O LABIRINTO, O LABIRINTO E A ROSA: A POTICA DE ALTINO CAIXETA DE

    CASTRO

    THE ROSE AND THE LABYRINTH, THE LABYRINTH AND THE ROSE: THE POETRY OF

    ALTINO CAIXETA DE CASTRO

    Rodrigo Guimares*

    Resumo

    Trata-se de um estudo da obra de Altino Caixeta de Castro, em que se busca assinalar alguns operadores textuais

    tais como rosa e labirinto que marcam significativamente sua potica, realizando incessantes desterritorializaes

    no campo da sintaxe, do lxico, da lgica e da semntica. Para tanto, foram abordados, especialmente, os livros

    Cidadela da rosa: com fisso da flor (1980) e Dirio da rosa errncia e prosoemas (1989).

    Palavras-chave: Altino Caixeta de Castro, Poesia Contempornea, Rosa, Labyrinth.

    Abstract

    This is a study concerning the work of Altino Caixeta de Castro, under the perspective of codes desestabilization

    performed by the signs of the rose and the labyrinth. With this purpose were analyzed specifically his books

    Cidadela da rosa: com fisso da flor (1980) and Dirio da rosa errncia e Prosoemas (1989). It can be concluded

    that Altino Caixeta, at the works above mentioned, acomplishes incessant non territorializations on the fields of

    syntax, lexicology, logic and semantics.

    Key words: Altino Caixeta de Castro, Contemporary Poetry, Roses Sign.

    1 Introduo

    Altino Caixeta nasceu nos arredores de Patos de Minas, onde viveu a maior parte de sua vida apesar de ter

    passado alguns anos em Belo Horizonte e Braslia. Com formao em farmcia e bioqumica, dedicou-se,

  • sobretudo, alquimia verbal de sua palavra ousada em que recorria aos mltiplos saberes de outras

    disciplinas como a semitica, a filosofia, a botnica, a psicanlise, a lingstica, a fsica e a religio.

    Entretanto, essa intensa visitao em outros campos do saber no era com o intuito de elaborar uma viso

    de mundo unitria e bem delineada ou de uma busca de sustentao terico-conceitual para sua poesia

    como nos movimentos vanguardistas do sculo XX. O trnsito altiniano e sua exogamia lingstica

    responde necessidade do poeta de encontrar imagens incomuns, construes sintticas extraviadas e

    palavras que adquirem um potencial de estranheza quando se encontram exiladas de sua rede contextual e

    disciplinar. Assim, os termos tcnicos utilizados pelo poeta detonam um tom antilrico e, como pedra de

    tropeo, interrompem a leitura fcil, fluvial. Para Altino, a estranheza uma marca distintiva da poesia

    moderna, mais do que a prpria crtica. Evidentemente, no se pode pensar a poesia do sculo XX sem

    essas duas facetas, entretanto, Altino era particularmente seduzido por ndices de ambigidades, polissemias,

    instabilidades e paradoxos que abalam a coerncia logocntrica ostentada pelos sistemas que promovem

    absolutos e verdades.

    Em seu primeiro livro Cidadela da rosa: com fisso da flor, de 1980, Altino j exercia sua potica numa intensa

    intertextualidade com autores clssicos e contemporneos do cnone ocidental e oriental efetuando, assim,

    o que Octavio Paz (1984) chamou de arte da convergncia. Entretanto, no Dirio da rosa errncia e

    prosoemas (1989) que o poeta extrai o mximo de seu artifcio de desestabilizao semntica ao evocar o I

    Ching como metfora fundante e organizadora do primeiro poema constitudo de 53 partes (o Dirio da rosa

    errncia) ou ao eleger um referente vazio como instncia privilegiada de interlocuo no seu segundo

    poema a minha deslumbrada estruturado em 93 fragmentos (Parte II do livro Dirio da rosa errncia e

    prosoemas). O presente estudo busca analisar os campos de indeterminao que os operadores textuais

    rosa e labirinto delineiam na obra altiniana.

    2 O Labirinto Altiniano

    Borges, maneira de um labirinto, multiplicou os percursos do tempo, do espao, do livro e da memria.

    Altino, a rosa, a errncia, o espanto e a cabra. Na potica altiniana, a rosa o operador textual por excelncia.

    O que esse significante tem de absolutamente singular a diversidade de lugares que ocupa nos dois

    primeiros livros de Altino Caixeta. No sem esforo, sempre possvel estratificar os operadores textuais

    mediante atos redutveis que os igualam: todos se opem coisa metafsica, estabilidade e aos traos

    unitrios. Essas definies, logo aps serem anunciadas, ralentam e perdem seu poder de corte assim que

    entram em contato com os significantes vazios presentes em algumas passagens dos livros Cidadela da

    rosa: com fisso da flor (1980) e Dirio da rosa errncia e prosoemas (1989).

  • Altino Caixeta confere ao signo rosa incontestvel primazia. Embora esse significante seja um indecidvel no

    sentido derridiano, em muitos momentos ele se deixa topologizar em uma cadncia lrica e despretensiosa.

    Em outros, rompe decididamente com o envoltrio do lirismo tradicional que, vez por outra, retalhado de

    forma impassvel: Sob a pgina suja / de estros / um lixo lrico / decanto, diz o poeta.

    Para Maria Esther Maciel, a palavra rosa, na potica altiniana, s vezes aparece como nome prprio, como

    lenda, como mulher, como rosa mesmo ou como pura palavra em estado significante, esvaziada de sua

    referencialidade (Maciel, 1999, p. 79). A autora observa tambm que esse significante, em alguns poemas,

    aparece como tema de abstrao metafsica ou em jogos de metalinguagem. A atopia da rosa altiniana

    reafirmada de forma incisiva em seu poema Metafsica da rosa, onde se l: A minha Rosa no contnua,

    homognea, uniforme, racional, pois, que ela cria o seu prprio espao. V-se, em sua escritura, a rosa,

    continuamente, se tornando outra coisa que a rosa, o extravio do trao no desaparecimento do espao em

    curso. Essa preensvel vulnerabilidade do lugar e do espao o labirinto que Altino constri em muitos

    momentos de sua escritura.

    Em seu ensaio Aldeia e mundo na palavra de Altino Caixeta, Ivete Lara Camargos Walty (2003) faz um

    estudo do livro Dirio da rosa errncia e prosoemas, valendo-se da metfora do labirinto representado na

    dana dos granos em que se opta simultaneamente por todas as alternativas, marcando a diferena em

    relao ao fio de Ariadne, que tenta superar as dificuldades do labirinto, linearizando-o (p. 211). Arrebatada

    pela errncia do Dirio altiniano, Ivete Walty transita entre a aldeia e o mundo do poeta, ciente de que o

    local e o universal so espaos mveis e deslocadores, e no lugares marcados para assegurar a volta e

    manter as poses conhecidas, maneira do fio de Ariadne.

    Blanchot (1997), com a densidade do martelo e a lucidez que o caracteriza, assinala: Quando vemos Teseu

    sair do labirinto, glorioso vencedor de um combate ao qual ningum assiste, justo que suspeitemos de

    trapaa ou iluso (p. 217). Pode-se reencetar essa suspeita em diferentes direes, por exemplo, a de que

    Teseu no entrou no labirinto, pois ficou preso (por um fio, talvez) a algo seguro. Desse modo, o equilbrio

    que sobra o leva a ignorar o labirinto, pois este, desde o instante em que divisado, no mais se acaba. Um

    borro, diria Royet-Journoud, ou a m infinitude, nas palavras de Blanchot, da qual no possvel sair,

    justamente porque no h comeo ou fim, dentro ou fora no campo da vastido.1

    Portanto, as linhas no tm pontos terminais: nem Ariadne nem Teseu. A multiplicao das possibilidades, da

    qual fala Ivete Walty, faz parte da estruturalidade do labirinto. No entanto, o que se multiplica no somente

  • a linguagem ou o mundo, o irreal ou o real, mas o espao do entre-dois blanchotiano, as conexes

    interligando redes e modulaes. Contudo, no se trata simplesmente de desdobrar objetos e palavras,

    enriquecer o lxico, como diz Derrida (2004). Esse fluxo de linhas, a meu ver, o labirinto que se esquiva

    metfora e ao modelo, sendo imanncia (e no representao) que se manifesta na linguagem a que se

    convencionou chamar de potica.

    Ao longo da histria, v-se uma grande transformao na composio dos labirintos, tanto no que diz

    respeito a sua forma quanto em relao ao propsito aos quais eram destinados. Se os primeiros labirintos,

    no Egito ou na Grica, eram criados para fins ritualsticos e deveriam ser percorridos a p, na Roma Antiga

    eles eram construdos com o objetivo de serem contemplados, constituindo-se em mosaicos com finalidade

    simblica ou religiosa. Interessa aqui a concepo de Hermes Trismegisto que compara o cosmos a um

    tecido em que as palavras so ns, o que sugere a idia de uma teia infinita. A temtica desses

    entrelaamentos foi freqente no apogeu do Maneirismo. Segundo Ana Hatherly (1983), em sua obra A

    experincia do prodgio, na poca de Gngora, surgiu, na Espanha, a maior coleo de desenhos labirnticos da

    Europa. Uma nova profuso de labirintos emergiu novamente nesse continente no perodo de 1880 a 1950

    e se espalhou pelo mundo aps a dcada de 1970. No entanto, no decorrer do sculo XX, houve uma

    reordenao radical tanto em sua forma, que conquistou um intrincamento de linhas cada vez mais

    complexo, quanto em sua finalidade, assumindo explicitamente caractersticas decorativas e ldicas. A

    dimenso de jogo e de prazer (ao se perder na rede dos jardins labirnticos) confere a essa nova dimenso

    as caractersticas de leveza que, na literatura, foi atribuda ao neobarroco por Severo Sarduy (1979). Assim, a

    concepo de labirinto deixa de ser somente uma metfora unificadora do previsvel e do imprevisvel,

    maneira da Idade Mdia, e se transforma num maze (vocbulo da lngua inglesa, de uso corrente, que tem

    um sentido muito mais amplo que labyrinth, raramente utilizado). Confuso, admirao ou estupefao diante

    do incompreensvel so alguns dos significados atribudos palavra maze.

    Cabe enfatizar, mesmo que de forma breve, alguns modelos de labirinto e os jogos de linguagem de que

    esse significante participa. O unicursal, descrito por Herdoto e localizado no Egito e na Grcia Antiga,

    remonta h mais de quatro mil anos de histria. Largamente utilizado em rituais, esse tipo de labirinto

    consiste em um caminho nico, sem encruzilhadas, que faz circunvolues at chegar ao centro, onde se

    encontra a sada, o Eu, ou algum simbolismo que remete morte e ao renascimento. O segundo tipo o

    labirinto ramificado, composto por inmeros caminhos, mas somente um leva sada. Por fim, temos o

    labirinto em rede, multidimensional, na qual cada ponto pode ter conexo com qualquer outro ponto, ou

    seja, ele extensivo ao infinito. Esse ltimo modelo o que Jorge Lus Borges e Altino Caixeta mencionam.

    A respeito dessa estrutura em rede, diz Umberto Eco (1989):

    ... dado que cada um dos seus pontos pode ser ligado a qualquer outro ponto, e o

  • processo de conexo tambm um processo contnuo de correo das conexes, seria sempre ilimitado, porque a sua estrutura seria sempre diferente da que era um momento antes e cada vez se poderia percorr-lo segundo linhas diferentes. Portanto, quem passa por ele deve aprender tambm a corrigir continuamente a imagem que dele cria, seja ela uma imagem concreta de uma seo (local), seja ela uma imagem normalizadora e hipottica que diz respeito sua estrutura global (incognoscvel, tanto por razes sincrnicas quanto por razes diacrnicas). Uma rede no uma rvore (p. 339).

    Ao se referir aos labirintos em rede, Umberto Eco faz referncia explcita ao conceito de rizoma, de

    Deleuze e Guattari, e reafirma, de maneira pertinente, a diferena entre as concepes de labirinto como

    metfora, modelo ou rizoma. O pensador italiano no esclarece o que distingue essas trs posies, apenas

    questiona a afirmao de que no rizoma no existem pontos, mas apenas linhas: porm esta caracterstica

    duvidosa, porque cada interseo de linhas cria a possibilidade de particularizar um ponto (Eco, 1989, p.

    339).

    A argumentao de Umberto Eco deixa escapar um dado importante da formulao deleuziana de que essa

    ausncia de ponto no rizoma diz respeito somente ao enraizamento de coordenadas espaciais e

    hierarquizantes, assim como acontece com o modelo da rvore e da estrutura. A particularizao

    anteriormente referida alcanada, no rizoma, pelo processo de estriamento do espao liso e da formao

    de plats (zonas de intensidade contnuas), ou, dito de outra forma, pelo adensamento de fluxos. O que

    Deleuze e Guatarri (1995) evitam, a todo custo, a tomada de poder pelo significante, posio semelhante

    adotada por Jacques Derrida (1997) em relao unicidade do significado ou do conceito. No entanto, a

    discordncia de Umberto Eco assume particular interesse para a literatura e, sobretudo, para as poticas da

    desconstruo, pois mesmo em um texto desestratificador, como o Dirio da rosa errncia de Altino Caixeta,

    no se v uma escritura rizomtica stricto sensu, no sentido de certa posio interfacear todos os pontos

    de um texto, ou da possibilidade de se esfacelar o poema e reagrup-lo aleatoriamente a partir de qualquer

    uma de suas partes. Essa espcie de construo maneira de cut up (como se v em Burroughs, 1985) no

    est presente nas escrituras de Altino Caixeta. Sobre esse ponto, o que existe nessa potica so

    adensamentos semnticos e de fluxos, conferindo-lhes algumas caractersticas rizomticas, parcialmente

    mencionadas por Ivete Walty (2003) a partir da metfora do labirinto e de sua multiplicidade de rotas e de

    possveis escolhas.2

    Procede que a metfora, tributria da concepo de analogia e de representao, mostra-se insuficiente para

    circunscrever as operaes rizomticas das poticas da desconstruo. Esse processo de substituio

    metafrica, ainda que abrigue em sua formulao um resto inapreensvel (exposio tipicamente lacaniana),

    ainda assim responde dinmica de linearizao do labirinto ou, dito de forma mais precisa, de sua

    estruturao conforme o modelo elucidado por Umberto Eco, qual seja, uma imagem da seo local ou

  • um fio de hiptese regularizador do todo. Ao contrrio do modelo, o plano de imanncia de Deleuze e

    Guatarri (1995) impossibilita qualquer tipo de descrio global do rizoma. Um exemplo claro desses

    diferentes jogos de linguagem evidenciado nos textos borgianos. Em alguns contos, como O Aleph, Borges

    (2000) descreve, por meio de modelos, um espao entranado por uma espcie de labirinto de infindas

    imagens sobrepostas. J Altino Caixeta, maneira rizomtica, atua na prpria linguagem de forma a alcanar

    um efeito de labirinto. Da a afirmao de Ivete Walty (2003): esse estar no labirinto que nos evoca a

    poesia de Altino Caixeta (p. 212).

    Esse efeito de labirinto operado na prpria materialidade da linguagem efetuado, de maneira recorrente,

    em toda a extenso da obra Dirio da rosa errncia e prosoemas. No artigo A escritura hexagramtica de

    Altino Caixeta (Guimares, 2002), procurei elucidar essas operaes e a forma desterritorializadora com

    que Altino dialoga com uma das mais importantes obras da literatura mundial, o I Ching: o Livro das Mutaes.

    Semelhante Bblia crist, pode-se dizer que o I Ching no um livro, mas um conjunto de livros

    resultantes de um compsito de textos que foram sedimentados em dezenas de sculos de histria da

    cultura chinesa, elaborado por autores de diferentes escolas de pensamentos. O Livro das Mutaes (1150-

    249 a.C.) floresceu num solo em que as filosofias taosta e confucionista eram os alicerces do pensamento

    chins. A vertente taosta do I Ching, com a qual Altino Caixeta dialoga em seu poema, refere-se, acima de

    tudo, aos padres de movimento e mutao das imagens (ou situaes da vida) e no fixao do objeto ou

    da palavra, assim como se deu posteriormente com o texto exegtico que acompanha os hexagramas do I

    Ching. As tradies dos hexagramas (linhas contnuas ou interrompidas, dispostas verticalmente e derivando

    umas das outras) eram identificadas apenas com o controvertido ideograma I que, segundo alguns autores,

    teria a sua origem na imagem de um camaleo significando movimento (referindo-se agilidade dos

    lagartos) e mutao, em virtude de seu mimetismo. Entretanto, posteriormente, os hexagramas foram

    acompanhados de textos que apresentam forte influncia da escola confucionista, com seus sistemas de

    crenas, condutas morais, ordem social e reverncia aos ancestrais. No artigo referido, busquei evidenciar a

    maneira com que Altino Caixeta privilegia, como instncia de interlocuo de seu poema Dirio, a

    dimenso taosta do Livro das Mutaes. Esse dilogo se d ora nos interstcios da escritura altiniana ora em

    referncias explcitas a Lao Tse (suposto fundador do taosmo e autor de sua obra medular: Tao Te King).

    A primeira parte do Dirio da rosa errncia e de prosoemas, de Altino Caixeta, composta por 53 fragmentos.

    Logo na abertura da obra l-se: Em ti mesma, alm de livro, tu s uma cidadela. Eu sei que sou (alm de um

    volume de pele de cabra) um castro. Constata-se, nesse primeiro segmento, uma instncia de enunciao

    (um pergaminho, um castro) que se dirige a um encadeamento de significantes: livro-cidadela-ptria-aldeia-

    mulher. Semelhante ao I Ching, no existe um significante isolado (mulher) metaforizado por outro derivado

    do primeiro (cidadela), e, sim, um padro de movimentos em constante mutao. A construo deleuziana

    de um acoplamento de mquinas se aproxima, em certos aspectos, seriao taosta. A linha contnua

    (yang), por exemplo, associada ao luminoso, ao masculino, ao movimento, ao seco, ao sol, e assim

  • sucessivamente. A linha descontnua (yin) agrega os atributos: obscuro, feminino, receptivo, malevel, repouso

    etc. Cabe sublinhar que no h, rigorosamente, um pareamento de duas sries opostas, pois o yang contm

    em si o yin e pode sofrer mutao, ou seja, ser transformado na cadeia contrria. V-se uma constante

    inverso nas linhas do I Ching, obliterando, assim, a fixao de seu fluxo.

    A intertextualidade do Dirio da rosa errncia com O Livro das Mutaes d-se a ver de diferentes maneiras.

    Na esfera do enunciado, o dilogo explcito e mediado por uma dico ldica. No campo da enunciao, o

    Dirio corporifica um procedimento de linguagem que adere ao rio-texto do I Ching, evidenciado na prpria

    materialidade grfica ao potencializar recursos como aliteraes, jogos sensuais e paronomsicos, em que

    palavras se interpenetram, evocando o movimento das linhas do Livro das Mutaes. Ao contrrio dos dirios

    usuais, que perduram as confisses na primeira pessoa ou, ainda, a cotidianidade, a igualdade que se instala

    no verstil, o texto de Altino Caixeta se dirige multiplicidade do tu em seu movimento de mutao. Da a

    errncia da voz enunciadora que, em vez de decifrar o mundo-metamorfose e seu bordejamento, se queda

    no recolhimento furtivo, no ato de observar o que se passa de um corpo a outro. No encerramento do

    Dirio da rosa errncia, l-se: Onde ficou o I Ching? Ficou no contexto multiplicado. No pluralismo da pgina

    branca.... No Dirio altiniano, em que a multiplicidade falta, resta ainda um passo mais para avanar. Nenhum

    branco, ou quase, na branca pgina. O branco metafsico esmaece. Silncio algum como haste ou ponto de

    apoio. Por saber mais os deslocamentos, na Rosa errncia de Altino h sempre alguma coisa que no pra de

    morrer, ou, via inversa, o freqente desalinho reavivado em um timbre claro que promove o escoamento do

    que se chama vida. Limpa-se, desse modo, a distncia entre os pontos terminais e depara-se com o Dirio

    por um fio maneira da frgil haste que sustenta a rosa-labirinto.

    3 Consideraes Finais

    Ao exercer uma potica de intensa intertextualidade com autores clssicos e contemporneos do cnone

    ocidental e oriental, Altino Caixeta efetua uma verdadeira convergncia de tempos, espaos e linguagens

    diversas, configurando o que Octavio Paz (1984) chamou de arte da convergncia. A fora da escritura

    altiniana reafirmada em seu segundo livro Dirio da rosa errncia e prosoemas pelo manejo da linguagem

    potica e pela concepo desse inslito Dirio que estabelece um dilogo criativo e crtico com a dimenso

    taosta do I Ching: o Livro das Mutaes, em que se nota uma dana de linhas e a interposio de sries de

    sentido, maneira de labirintos que ampliam, de forma mpar, as possibilidades de leitura e de interconexes.

    Valer-se de operadores textuais, como rosa, errncia, labirinto, entre outros, cujas margens so

    incessantemente reconfiguradas quando essas palavras reaparecem em diferentes encadeamentos, parece

    ser um dos artifcios que Altino Caixeta utiliza em sua potica. Pode-se dizer, em relao ao seu Dirio da

    rosa errncia, que o leitor que nele busca acaba sempre por encontrar, no o que buscava ou o que deveria

    descobrir, mas algum ato de literatura capaz de redimensionar as maneiras de dizer eu e de esvaziar a

  • redistribuio da linguagem que faz do centro e do sentido um lugar de satisfao inicial, ao passo que,

    imediatamente depois, como diz Kafka, o indigente se v com a mesma velha fome.

    Notas

    1 Em A parte do fogo, Blanchot (1997) faz duas consideraes: a de que Teseu no entrou no

    labirinto, j que dele saiu, e a de no ter encontrado o Minotauro, j que este no o devorou (Cf.

    p. 217).

    2 Deve-se lembrar que a teorizao efetuada por Deleuze e Guatarri (1995) tem a pretenso de

    abarcar os diversos sistemas semiticos e no apenas a esfera da literatura.

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    Dados do autor:

    Rodrigo Guimares

    * Doutor em Literatura Comparada UFMG e Pesquisador FAPEMIG-UNIMONTES

    Endereo para contato:

    Universidade Estadual de Montes Claros

    Rua Dr. Rui Braga, s.n. Vila Mauricia

    39401-089 Montes Claros/MG Brasil

    Endereo eletrnico: [email protected]

  • Data de recebimento: 7 maio 2008

    Data de aprovao: 9 set. 2008