Rodriguez, j. Diante Da Lei
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Transcript of Rodriguez, j. Diante Da Lei
“Diante da lei”: Versão corrigida e atualizada do célebre texto de Franz Kafka
José Rodrigo Rodriguez
Uma mulher negra da cidade vê o guarda parado diante da lei e logo percebe que não
vai conseguir entrar. Essa é a função do guarda. Ele foi treinado para isso. Não adianta
tentar conversar. Apenas alguém muito ingênuo ou muito desinformado seria capaz de
imaginar que uma negra poderia tentar dialogar impunemente com o exército ou com
a polícia. Talvez um homem ou mulher do campo, e alguém que viva de fato
completamente isolada, ainda poderia pensar que a violência estatal é capaz de
diálogo. Na cidade ou no campo de hoje ninguém é assim, tão estúpido, tão estúpida.
A mulher negra da cidade sabe que é preciso lutar pela lei. Como fizeram os sindicatos
desde o começo do século XX, época em que eram considerados ilegais. Estavam fora
da lei, como ela se sente hoje. E é exatamente por isso que o guarda permanece ali,
diante da porta aberta, com ordens expressas para não deixar ninguém entrar, custe o
que custar. Pois há muitos negros e negras fora da lei e todos eles e elas têm plena
consciência de sua condição. Eles e elas sabem como é lá dentro. Sabem dos benefícios
de que gozam todos aqueles e aquelas que já estão dentro da lei: acesso a recursos
públicos e a meios simbólicos de reconhecimento.
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Armado até os dentes, com o dobro do tamanho do maior dos maiores dos guerreiros
chineses gigantes de argila, o guarda grunhe, retesa os músculos e olha para todos os
lados. De vez quando examina suas armas para checar se estão realmente carregadas.
Pela quantidade de munição, alguém poderia dizer que ele está preparado para uma
verdadeira guerra. A mulher negra da cidade tem medo do silêncio do guarda, um
silêncio que prenuncia a sua vontade de bater e matar, sem contato visual, sem afeto,
sem palavras. Não há espaço para papear, negociar com ele ou tentar suborná-lo. Não
há nenhuma empatia.
Não adianta culpar o lobo por ser lobo: essa era uma dificuldade mais do que
esperada. Mas ainda assim as pernas da mulher negra tremem no momento em que
ela resolve gritar o mais alto possível para que o guarda se afaste e a deixe passar. O
guarda permanece impassível, alheio ao que se passa em sua volta. A mulher avança
passo a passo, aproximando-se do corpo do guarda. Outras mulheres e homens
surgem por detrás dela, alguns armados de paus e pedras, algumas portando facas e
espadas, outros armados de revólveres e fuzis, outras completamente desarmadas. O
soldado aponta seu rifle para o corpo da mulher negra da cidade enquanto todos os
outros e outras permanecem estáticos.
Em breve poderia haver golpes e tiros para todos os lados e sangue espalhado por
toda a cena caso eles e elas ultrapassassem a linha de segurança e tentassem entrar à
força dentro da lei. Em breve poderia não haver tempo para recarregar as armas
diante da quantidade de homens e mulheres que tentariam derrubar o guarda. E
haveria reforços. Um homem receberia, talvez, um tiro no rosto e jazeria estirado por
ali mesmo. Mulheres negras da cidade feridas, atingidas à queima-roupa, gritariam:
“Canalha! Canalha!”, por detrás de um leque de sangue, envoltas em um coro de vozes
em fúria.
Outra mulher e outro e outra e outro e outra e outro e outra e outro e outra ficariam
tontas com as coronhadas aplicadas pelo guarda, agora cercado de todos os homens e
mulheres que ainda restariam de pé. Talvez fosse preciso feri-lo ou mata-lo ou torcer
para a que ordem de resistir fosse revogada pelas autoridades competentes. Talvez
fosse preciso produzir mais pilhas e pilhas de mortos e feridos mais sangue
embebendo o cimento sujo de restos de couro, borracha, chiclete e cigarros, como de
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hábito em todas as lutas pela lei que se desenrolaram pela história recente do
Ocidente.
Mas talvez nada disso ocorra de fato. Talvez nada disso seja mais possível. Basta que se
imagine que a lei não mais exista. Também o estado e a sociedade civil, apenas regras
privatizadas nascidas de contratos. Regras que reduzem tudo a interesses privados e
reclamam validade sobre todo o Globo, bem longe da mulher negra da cidade que
agora procura uma porta por onde ela pudesse querer entrar. Uma porta suspensa no
ar, talvez, uma porta enterrada na terra, bem fundo, imune à luta social, pairando na
esfera rarefeita do mundo transnacional, que fica em todos os lugares e em lugar
nenhum. A mulher negra anda em círculos sobre uma superfície curva e sem fissuras,
sem um resquício sequer de cor, em busca de um guarda e de uma porta impossíveis
neste mundo branco sólido e compacto que começa a dobrar-se sobre si mesmo.
Hoje sabemos quão estúpido é postar-se diante da lei. Depois da história de um século,
sabemos que criticar a lei é lutar por ela. Por isso mesmo as portas e os guardas
continuam desaparecendo e com eles a memória das portas e a memória de entrar e
sair. Hoje se trata de convencer a todos e a todas que tudo o que existe e poderia
existir significa permanecer onde e como já se está. Destruir a memória social de
entrar e de sair, pois as regras estão fugindo do direito. As normas contratuais estão
sendo novamente imunizadas para se verem totalmente livres da força da lei.
Para voltar a lutar pela lei será preciso lembrar como um dia a luta social a inventou.
Será preciso lembrar de sua gênese na luta da igualdade burguesa contra um pântano
de privilégios de direito natural, gozados por religiosos venais e nobres de sangue azul
e pútrido. Será preciso reinventar a lei; lembrar do desejo de dar a lei a nós mesmo, de
instituí-la autonomamente, contra a privacidade dos contratos. Será preciso lembrar
como a classe operária civilizou o direito conferindo a ele a ambiguidade que motiva e
acirra o processo de fuga da lei.
Será preciso lutar, de novo, contra a liberdade das partes e de mercado e pelo controle
coletivo de nossos destinos. Pois a lei ainda é o inimigo que eles e elas mais temem. Lei
que transforma tudo em que toca em espaços de escolha humana coletiva. Lei que
torna mutável e plástico todo conteúdo supostamente inscrito na face de solenes e
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vetustas “tábuas da lei”. Lei que é o último refúgio possível para a autonomia em um
mundo marcado pela tecnocracia e pelo biopoder que deseja transformar tudo em
natureza animal imutável. A lei não é eterna e pode desaparecer da face da Terra.
A verdade da lei é a luta social.
Em um mundo branco, compacto e sem fissuras, multidões andam em círculos sobre
espaços vazios que se dobram sobre si mesmos. Procuram alguma coisa, insatisfeitos,
insatisfeitas, indignados, assustados, mas não encontram sequer uma sombra. E
ninguém fala com eles ou com elas, nada e ninguém lhes diz respeito, não há inimigos
a enfrentar. O solo é grosso sobre seus pés, não faz calor nem faz frio, milhões de
pontos brancos, negros, vermelhos e amarelos vagam sobre uma superfície branca e
contínua que será necessário quebrar. Abrir buracos, fendas, fissuras, crateras para
atingir o que está dentro. Mas por enquanto, todos e todas apenas caminham.
Perplexos, perplexas, ocupando espaços vazios, incomodando o trânsito, oferecendo
espetáculos coloridos para a internet e para a televisão. Ainda sem gume.
Ainda.
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