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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO FACULDADE DE DIREITO PROGRAMA DE MESTRADO EM DIREITO AGROAMBIENTAL OS DIREITOS AMBIENTAIS DOS POVOS INDÍGENAS ELLEN CRISTINA OENNING ROMERO CUIABÁ 2012

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

FACULDADE DE DIREITO

PROGRAMA DE MESTRADO EM DIREITO AGROAMBIENTAL

OS DIREITOS AMBIENTAIS DOS POVOS INDÍGENAS

ELLEN CRISTINA OENNING ROMERO

CUIABÁ

2012

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ELLEN CRISTINA OENNING ROMERO

OS DIREITOS AMBIENTAIS DOS POVOS INDÍGENAS

Dissertação apresentada como exigência

parcial do Programa de Pós-Graduação

stricto sensu em Direito Agroambiental da

Universidade Federal de Mato Grosso, sob

orientação do Prof. Dr. Patryck de Araújo

Ayala

CUIABÁ

2012

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MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

PRÓ-REITORIA DE ENSINO DE PÓS-GRADUAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO AGROAMBIENTAL

Avenida Fernando Corrêa da Costa, 2367 - Boa Esperança - Cep: 78060900 -CUIABÁ/MT

FOLHA DE APROVAÇÃO

TÍTULO : "OS DIREITOS AMBIENTAIS DOS POVOS INDÍGENAS"

AUTOR : Mestranda ELLEN CRISTINA OENNING ROMERO

Dissertação defendida e aprovada em 24/08/2012.

Composição da Banca Examinadora:

_____________________________________________________________________________

____________

Presidente Banca / Orientador Doutor PATRYCK DE ARAUJO AYALA

Instituição : UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

Examinador Interno Doutor CARLOS TEODORO JOSÉ HUGUENEY IRIGARAY

Instituição : UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

Examinador Externo Doutora SOLANGE TELES DA SILVA

Instituição : Universidade Presbiteriana Mackenzie

CUIABÁ,24/08/2012.

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Dedico ao meu filho Gabriel e ao meu esposo

Robson, com todo o meu amor

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Agradeço ao meu orientador, Prof. Dr. Patryck de Araújo

Ayala, pelo imenso apoio que tornou este estudo possível

Agradeço aos professores do Programa de Pós Graduação em

Direito Agroambiental, pela incrível quantidade de

conhecimento transferido

Agradeço aos colegas das primeira e segunda turmas do

Mestrado em Direito Agroambiental, pela adorável

convivência e pelo aprendizado proporcionado

Agradeço à Secretaria do Mestrado, em especial o servidor

Gabriel Plácido de Barros, pela atenção e prontidão

Agradeço a Maria Solange Grein pela ajuda na Biblioteca da

Justiça Federal-MT

Agradeço aos colegas da 5ª Vara Federal-MT, especialmente

ao Dr. José Pires da Cunha, eterno chefe, pelo imenso apoio

Agradeço à minha família pela compreensão da minha

ausência do convívio diário

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[...] temos o direito a ser iguais sempre que a diferença nos

inferioriza; temos o direito a ser diferentes sempre que a igualdade

nos descaracteriza.

Boaventura de Souza Santos

A Mãe Terra é a fonte da vida que se requer proteger, não como um

recurso para ser explorado e mercantilizado como “capital natural”.

Temos nosso lugar e nossas responsabilidades dentro da ordem

sagrada da Criação. Sentimos a alegria sustentadora quando as

coisas ocorrem em harmonia com a Terra e com toda a vida que cria

e sustenta. Sentimos a dor da falta de harmonia quando somos

testemunhas da desonra da ordem natural da Criação e da

colonização econômica e contínua, assim como a degradação da

Mãe Terra e toda a vida nela.

Declaração KARI‐OCA 2 - Conferência Mundial dos Povos Indígenas sobre Rio+20 e a Mãe Terra

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RESUMO

A análise do direito fundamental ao meio ambiente e dos direitos dos povos indígenas em

conjunto permite a construção de uma noção de direitos ambientais dos povos indígenas. Isto

porque, direitos ambientais é uma construção muito mais ampla que o conteúdo delimitado

ao direito fundamental ao meio ambiente insculpido na Constituição brasileira, no artigo 225.

No caso dos direitos ambientais dos povos indígenas, propõe-se uma relação direta entre os

direitos associados ao artigo 231 da Constituição e aquelas realidades existenciais

enumeradas sob a proteção do artigo 225. O estudo se propõe a construir uma noção de

direitos ambientais dos povos indígenas, sob enfoque constitucional. Justifica-se a opção

aqui realizada para o fim de se demonstrar que a proteção conferida aos povos indígenas que

se encontrasse limitada aos direitos territoriais ou culturais expressos no artigo 231 seria uma

proteção incompleta e imperfeita se não fosse possível reconhecer que o artigo 225 supõe

uma proteção que se estende além do meio ambiente natural. Propõe-se que o texto do artigo

225 precisa ser compreendido como uma referência aberta à comunicação com outras

realidades conexas, para o fim de assegurar a proteção de realidades existenciais mais

alargadas, e que possuem os recursos naturais como vetor de um modelo diferenciado de

desenvolvimento humano. A construção da definição de direitos ambientais dos povos

indígenas é o resultado de uma arquitetura jurídica aberta que propicia uma composição entre

experiências jurídicas, que reforçam, definem, esclarecem e aperfeiçoam a experiência

nacional, ao ponto de viabilizar e proporcionar que se possa propor a proteção de direitos

especiais, como os direitos ambientais dos povos indígenas. Chega-se a definição de que os

direitos ambientais dos povos indígenas constituem um complexo de direitos

interdependentes ligados à proteção do bem viver dos povos indígenas, no contexto da

realização de seus projetos existenciais, noções estas intimamente conectadas ao meio

ambiente sadio, direito fundamental insculpido na Constituição brasileira. Por fim, analisam-

se como os direitos ambientais dos povos indígenas são tratados nas experiências jurídicas

nacionais e como eles poderiam oferecer uma proteção completa e suficiente se fossem

observadas certas experiências jurídicas externas.

PALAVRAS CHAVE: DIREITO AGROAMBIENTAL; DIREITO CONSTITUCIONAL;

POVOS INDÍGENAS; DIREITO FUNDAMENTAL; MEIO AMBIENTE; PROJETO DE

VIDA

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ABSTRACT

The analysis of the fundamental right to the environment and the rights of indigenous

peoples together allows the construction of a concept of environmental rights of indigenous

peoples, because environmental rights is a building much larger than the enclosed content to

the fundamental right to the environment seated in the Brazilian Constitution, in Article 225.

In the case of environmental rights of indigenous peoples, it’s proposed a direct relationship

between the rights associated with the Article 231 of the Constitution and those existential

realities listed under the protection of Article 225. The study proposes to construct a notion

of environmental rights of indigenous peoples, under the constitutional approach. The choice

made here is justified by the aim to show that the protection offered to indigenous peoples

limited by the territorial and cultural rights expressed in Article 231 would be an imperfect

and incomplete protection if it was not possible to recognize that Article 225 assumes a

protection that extends beyond the natural environment. It is proposed that the text of Article

225 must be understood as an open reference to communication with other realities related to

the purpose of ensuring the protection of broader existential realities, and that possess the

natural resources as a vector of a differentiated model of human development. The

construction of the definition of environmental rights of indigenous peoples is the result of

an open architecture that provides a legal composition of legal experience, which strengthen,

define, clarify and refine the national experience, to enable and provide that it can be to

proposed special rights’ protection, such as environmental rights of indigenous peoples. It’s

reached the definition that the environmental rights of indigenous peoples constitute a

complex of interdependent rights relating to the protection of the good life of indigenous

peoples in the context of existential realization of their projects, these notions are closely

connected to the healthy environment, a fundamental right inserted in the Brazilian

Constitution. Finally, it’s analyzed how the environmental rights of indigenous peoples are

addressed in national legal experience and how they could offer a complete and sufficient

protection if they observed certain external legal experience.

KEYWORDS: AGROENVIRONMENTAL LAW; CONSTITUCIONAL LAW;

INDIGENOUS PEOPLES; FUNDAMENTAL RIGHT; ENVIRONMENT; LIFE’S

PROJECT

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 10

1 MULTICULTURALISMO: O CONTEXTO DA SOCIODIVERSIDADE ................ 16

1.1 Multiculturalismo, plurinacionalidade e interculturalidade ...................................... 17

1.1.1 Multiculturalismo: realidade e teoria ........................................................................................................ 18

1.1.2 Estado Pluricultural e Plurinacional ......................................................................................................... 22

1.1.3 Interculturalidade: um diálogo necessário ................................................................................................ 25

1.1.4 Cidadania multicultural ............................................................................................................................. 29

1.2 Povos indígenas: uma análise conceitual ...................................................................... 34

1.2.1 Por que “indígena”? .................................................................................................................................. 35

1.2.2 Por que “povo”? ........................................................................................................................................ 42

2 O DIÁLOGO ENTRE EXPERIÊNCIAS JURÍDICAS COMO FONTE DE REFERÊNCIAS PARA A CONSTRUÇÃO DA NOÇÃO DE DIREITOS AMBIENTAIS DOS POVOS INDÍGENAS ....................................................................... 46

2.1 Constitucionalismo global e a abertura a experiências jurídicas externas ............... 47

2.1.1 Constitucionalismo global .......................................................................................................................... 48

2.1.2 O transconstitucionalismo como veículo de comunicação entre as experiências jurídicas ....................... 54

2.1.3 A comunicação entre ordens constitucionais e a ordem internacional na proteção dos direitos humanos 58

2.2 Os direitos de bem viver e o direito a um projeto de vida .......................................... 69

2.2.1 O novo constitucionalismo latinoamericano e os direitos de bem viver .................................................... 69

2.2.2 Direito a um projeto de vida coletivo ......................................................................................................... 75

2.3 A construção de uma noção de direitos ambientais dos povos indígenas .................. 81

2.3.1 Os direitos dos povos indígenas ................................................................................................................. 81

2.3.2 Os direitos ambientais dos povos indígenas ............................................................................................... 86

3 OS DIREITOS AMBIENTAIS DOS POVOS INDÍGENAS NA ORDEM CONSTITUCIONAL BRASILEIRA ................................................................................. 95

3.1 O mínimo existencial ecológico e o direito à terra indígena ....................................... 97

3.2 Integridade cultural e ecológica: convergência para uma proteção recíproca ....... 103

3.2.1 Integridade cultural e direito à terra indígena na experiência jurídica brasileira .................................. 104

3.2.2 Referências para o diálogo da ordem jurídica brasileira com a jurisprudência internacional de direitos

humanos ............................................................................................................................................................ 107

3.3 Terra Indígena Raposa Serra do Sol: as condições restritivas fixadas pelo STF aos direitos indígenas e a necessidade de diálogo com outras experiências jurídicas ......... 114

3.3.1 Autodeterminação: negação em nome da soberania estatal .................................................................... 115

3.3.2 Participação e consulta: direitos invisíveis .............................................................................................. 118

3.3.3 Direito à terra e aos recursos naturais .................................................................................................... 126

3.4 O caso da usina Hidrelétrica Belo Monte ................................................................... 135

3.4.1 A (in)constitucionalidade do Decreto Legislativo n.º 788/2005 ............................................................... 138

3.4.2 A distorção dos direitos à consulta e ao consentimento ........................................................................... 143

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CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................. 149

REFERÊNCIAS ................................................................................................................. 153

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INTRODUÇÃO

O século XX foi marcado no Brasil pelo grande avanço constitucional. Dentre as

inúmeras conquistas estão dois interesses mundialmente discutidos que foram reconhecidos

na Constituição brasileira vigente: o direito fundamental ao meio ambiente e os direitos dos

povos indígenas.

Primeiramente, faz-se necessário destacar que este estudo usa a terminologia povos

indígenas em dimensão específica e desvinculada da noção tradicionalmente assentada na

teoria do Estado em substituição às definições de grupos, comunidades, populações,

sociedades ou outros. Nesta investigação, a definição de povos refere-se a segmentos

nacionais com identidade e organizações próprias, cosmovisão específica e relação especial

com a terra que habitam, características estas que se amoldam perfeitamente aos povos

indígenas. Posto isto, o uso da expressão povos indígenas neste estudo se justifica pelo fato

de ser possível a identificação daquelas características, além de ser essa a orientação firmada

em importante instrumento internacional de proteção dos direitos humanos, a Convenção n.

169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Ressalte-se que um povo não

corresponde necessariamente a uma identidade nacional, e reconhecer os povos indígenas

como tais não lhes confere o direito à secessão.

A análise do direito fundamental ao meio ambiente e dos direitos dos povos indígenas

em conjunto permite a construção de uma noção de direitos ambientais dos povos indígenas.

Isto porque, direitos ambientais é uma construção muito mais ampla que o conteúdo

delimitado ao direito fundamental ao meio ambiente insculpido na Constituição brasileira, no

artigo 225. No caso dos direitos ambientais dos povos indígenas, propõe-se uma relação

direta entre os direitos associados ao artigo 231 da Constituição e aquelas realidades

existenciais enumeradas sob a proteção do artigo 225. Justifica-se a opção aqui realizada

para o fim de se demonstrar que a proteção conferida aos povos indígenas que se encontrasse

limitada aos direitos territoriais ou culturais expressos no artigo 231 seria uma proteção

incompleta e imperfeita se não fosse possível reconhecer que o artigo 225 supõe uma

proteção que se estende além do meio ambiente natural. Propõe-se que o texto do artigo 225

precisa ser compreendido como uma referência aberta à comunicação com outras realidades

conexas, para o fim de assegurar a proteção de realidades existenciais mais alargadas, e que

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possuem os recursos naturais como vetor de um modelo diferenciado de desenvolvimento

humano.

Por meio dessa compreensão integrada entre as relações culturais, territoriais,

espirituais e ecológicas viabilizada pelo âmbito de proteção dos dois direitos fundamentais,

sustenta-se a possibilidade de se visualizar não mais direitos originários de povos indígenas,

limitados ao conteúdo do artigo 231, da Constituição, mas direitos ambientais dos povos

indígenas, oriundos da combinação entre os dois âmbitos de proteção dos dispositivos já

referidos.

O direito ambiental surge, primeiramente, como uma preocupação com a qualidade

de vida diante dos riscos gerados pela degradação ambiental e da escassez de recursos

naturais úteis aos interesses humanos. O reconhecimento do direito ao meio ambiente, e em

contrapartida ao desenvolvimento, trouxe a lume o grande desafio de compatibilizar ambos

os conceitos e alcançar êxito com um desenvolvimento ambientalmente sadio e sustentável,

que promova o bem-estar humano e a participação, negando concepções meramente

economicistas de desenvolvimento.

Assim, a preocupação com a qualidade ambiental foi reconhecida como direito

fundamental na Constituição brasileira de 1988, como uma projeção mais alargada do direito

à vida, já que a proteção da qualidade ambiental tem como principal objetivo proteger a

qualidade de vida, além de ter ganhado conteúdo próprio por assegurar realidades de

proteção de maior complexidade e autônomas, com a proteção de todas as formas de vida,

incluídas a dos animais não humanos.

Em relação aos povos indígenas, o direito ao meio ambiente se torna ainda mais

sensível, levando em consideração que estes povos, sua cultura e meios de subsistência estão

intimamente ligados às suas terras e recursos naturais. Neste contexto, a degradação

ambiental nas terras indígenas é devastadora. Nos países cujas economias se centram na

exploração de recursos naturais, como o Brasil, em grande parte, a pressão pela exploração

dos recursos ambientais das terras indígenas é muito forte.

Estudar os direitos ambientais dos povos indígenas é importante tendo em vista a

relação de íntima dependência e indissociabilidade dos povos indígenas com o meio

ambiente e com as terras que tradicionalmente habitam. A destruição do meio ambiente

implica no extermínio de um elemento da existência dos povos indígenas que não é

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meramente físico, é também simbólico, é substrato de sua subsistência física, cultural, social,

política e espiritual.

O meio ambiente, para os povos indígenas, é um elemento insubstituível de uma

relação muito particular que é o traço caracterizador desses povos. Muito mais que provedor

dos elementos necessários à sua sobrevivência biológica, o meio ambiente faz parte do povo

e o povo faz parte do meio ambiente, que permeia seus modos de ser, fazer e viver coletivos

e a sua religiosidade. Em suma, o projeto de vida dos povos indígenas é calcado no meio

ambiente em que vivem e este projeto não tem limitação temporal, é infinito.

Assim, o objetivo geral do trabalho é propor a possibilidade de definição dos direitos

ambientais dos povos indígenas, sob a perspectiva da ordem constitucional brasileira. A

construção desta definição é o resultado de uma arquitetura jurídica aberta que propicia uma

composição entre experiências jurídicas, que reforçam, definem, esclarecem e aperfeiçoam a

experiência nacional, ao ponto de viabilizar e proporcionar que se possa propor a proteção de

direitos especiais.

Atualmente, é possível dizer que os povos indígenas gozam de uma ampla proteção

jurídica. Esta proteção advém de todos os instrumentos constitucionais no contexto de uma

leitura baseada na construção de um constitucionalismo global - constituições estatais e

instrumentos internacionais de direitos humanos, onde se incluem os instrumentos sobre

meio ambiente -, e as fontes normativas nacionais.

Os direitos dos povos indígenas constituem um complexo jurídico, em que os direitos

são todos dependentes entre si e essenciais à existência e identidade destes povos. Os direitos

ambientais dos povos indígenas se relacionam com a proteção do bem viver e a realização de

seus projetos existenciais, num aspecto físico-ambiental que reflete também nos aspectos

cultural, espiritual e social.

A proposta deste estudo não é a de realizar leituras seccionadas de realidades

protegidas, mas reforçar que a única leitura possível para os povos indígenas é a da

indivisibilidade entre o meio ambiente e seu bem-estar. Esta leitura serve para aperfeiçoar o

próprio sentido do direito ambiental e da proteção do meio ambiente, sob uma ótica

moderada de antropocentrismo e ecocentrismo. Assim, os direitos ambientais dos povos

indígenas reforçam a construção geral do direito (fundamental) ao meio ambiente, que só

pode ser concebido como efeito dessa relação de indivisibilidade entre o meio ambiente, o

bem estar e a qualidade de vida.

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Para atingir este objetivo, foram delineados alguns pontos específicos (variáveis) a

serem analisados: o multiculturalismo, o diálogo entre experiências jurídicas externas e os

direitos ambientais dos povos indígenas na experiência jurídico-constitucional brasileira.

Assim, o estudo se desenvolverá em três capítulos.

Para o desenvolvimento da pesquisa, foi utilizado o método de abordagem dedutivo,

com suporte em pesquisas bibliográficas e monográficas específicas sobre diversos temas,

além de pesquisas normativas e jurisprudenciais, tanto nacionais, quanto estrangeiras e

internacionais.

O referencial teórico será respaldado por uma bibliografia nacional e estrangeira,

destacando-se os autores Will Kymlicka, Ottfried Höfe, David Law, Valerio de Oliveira

Mazzuoli, Marcelo Neves, Laura Westra, James Anaya, Bartolomé Clavero, Erik Jayme,

Patryck de Araújo Ayala, Carlos Frederico Marés de Souza, entre os principais responsáveis

pela formação do marco teórico da pesquisa.

A relevância desta pesquisa está no fato de que tal temática é pouco estudada no

Brasil, motivo pelo qual não há um acervo bibliográfico significativo em língua portuguesa.

Este cenário é visível principalmente no Estado de Mato Grosso, em que 1,4% da população

(mais de 42.500 pessoas) se autodeclara indígena1, e que possui 15% do território ocupado

por 74 terras indígenas legalizadas ou não2.

O primeiro capítulo pretende expor o contexto em que os povos indígenas emergem

como sujeitos de direito e trará uma análise conceitual da expressão povos indígenas. Tratará

do multiculturalismo, da plurinacionalidade e da interculturalidade como realidades

existentes principalmente na América Latina, que subsidiam o surgimento de referências

para a construção de uma noção de cidadania multicultural.

Do contexto do multiculturalismo, em que se reconhece a realidade de pluralidade

cultural e se propõe a afirmar o reconhecimento de direitos coletivos derivados desta

realidade, emerge um conceito diferenciado de nação, como sinônimo de povo,

compreendido como uma comunidade histórica, mais ou menos completa institucionalmente

1 INSTITUTO Brasileiro de Geografia e Estatística. Os indígenas no Censo Demográfico 2010: primeiras

considerações com base no quesito cor ou raça. Rio de Janeiro: IBGE, 2012, p. 11. 2 ESTADO DE MATO GROSSO. Anuário Estatístico de Mato Grosso 2010. Volume 32. Cuiabá: Secretaria

de Estado de Planejamento e Coordenação Geral, 2011. Em todo o Brasil, há 678 terras indígenas. V. POVOS Indígenas no Brasil: localização e extensão das TIs. Instituto Socioambiental (ISA). Disponível em: <http://pib.socioambiental.org/pt/c/terras-indigenas/demarcacoes/localizacao-e-extensao-das-tis>. Acesso em: 29 Mar 2011.

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que ocupa um território ou uma terra natal determinada e que compartilha uma língua e uma

cultura diferenciada, sem que, no entanto, proponha-se direitos de secessão. Com a aplicação

deste conceito verifica-se que a maioria dos Estados é, na verdade, multinacional.

Quando o Estado reconhece esta composição social e a assume, reconstituindo seus

princípios sob uma ótica advinda desta diversidade, pode-se dizer que o Estado é

plurinacional, como são exemplos (ao menos sob o plano da arquitetura constitucional) a

Bolívia e o Equador, que incorporaram a visão indígena em suas constituições.

Os Estados que se declaram plurinacionais e os que apenas reconhecem a sua

multiculturalidade precisam propor-se e estarem disponíveis a um diálogo intercultural para

viabilizar um contexto de convivência democrática culturalmente plural.

Nesse capítulo, pretende-se demonstrar que a sociedade humana é incrivelmente

diversa e dentro desta diversidade, alguns grupamentos humanos se diferenciam pelo seu

modo de vida, que é determinado pela sua coesão cultural, sua espiritualidade e suas

instituições. Estas pequenas nações/povos dentro do Estado são diferentes entre si e são

diferentes da maioria da população, e é esta diferença que permite a proteção jurídica de seus

projetos de vida, diferenciados e determinados culturalmente.

O segundo capítulo examina a necessidade de interação e de comunicação entre as

experiências jurídicas para a determinação de referências importantes para a construção de

uma definição de direitos indígenas, além de propor uma composição entre algumas fontes e

experiências relevantes para a ordem jurídica brasileira.

Primeiramente, serão abordados alguns conceitos que permitem o diálogo entre

experiências jurídicas, em especial as noções de constitucionalismo global,

transconstitucionalismo e diálogo das fontes. Das possíveis interações da Constituição

brasileira com ordens jurídicas estatais e a ordem internacional de direitos humanos,

extraem-se algumas referências importantíssimas: os direitos de bem viver e o direito a um

projeto de vida.

Em seguida, o estudo, pautado por todo este arcabouço teórico, lança-se à construção

de uma noção de direitos ambientais dos povos indígenas, na ordem constitucional brasileira.

É importante frisar neste momento que este estudo, apesar de buscar referências no direito

internacional dos direitos humanos e no direito comparado, é um estudo de direito

constitucional, já que as referências e as experiências buscadas naquele âmbito servem

apenas para reforçar as condições de aplicação do direito brasileiro, e aperfeiçoar a

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capacidade de concretização da experiência jurídica nacional, sempre compreendida por

meio da capacidade de a Constituição nacional se comunicar com experiências externas

visando atingir aquela finalidade: proteção dos direitos fundamentais e, neste caso, de uma

definição de direitos dos povos indígenas. Por isso o estudo, principalmente, do

transconstitucionalismo que propõe a abertura constitucional às outras experiências jurídicas.

Por fim, o terceiro capítulo objetiva demonstrar que a abertura constitucional

brasileira e a comunicação entre as experiências jurídicas proporcionam a definição de

direitos ambientais dos povos indígenas, sob a ótica constitucional brasileira, para o fim de

delinear o alcance da proteção jurídica das identidades coletivas dos povos indígenas.

O capítulo ainda se propõe a discutir os elementos presentes na experiência nacional

em relação aos direitos ambientais nos povos indígenas e no que ela poderia ser reforçada

pelo diálogo com as experiências jurídicas externas estudadas, partindo-se do direito à terra

indígena, amplamente reconhecido pelo texto do artigo 231, a Constituição, e da noção de

mínimo existencial ecológico, englobando a análise jurisprudencial da corte constitucional

brasileira, sobretudo, o caso da Terra Indígena Raposa Terra do Sol.

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1 MULTICULTURALISMO: O CONTEXTO DA SOCIODIVERSIDADE

A sociedade humana é incrivelmente diversa. A diferença cultural existente entre os

mais diversos grupos humanos do globo faz surgir a noção de multiculturalismo. Esta grande

diversidade cultural também é uma realidade existente dentro das fronteiras de grande

número de Estados, como por exemplo, o Brasil.

A maneira como os Estados valorizam a sociodiversidade da sua população dá ensejo

ao reconhecimento, ou não, do direito à própria existência destes grupamentos humanos

culturalmente diferenciados.

Neste capítulo pretende-se demonstrar que a grande diversidade social existente

dentro de um Estado pode ser vista como traço inerente e caracterizador da população estatal,

sendo que alguns grupamentos humanos se diferenciam pelo seu modo de vida, que é

determinado pela sua coesão cultural, sua espiritualidade e suas instituições, e que a melhor

alternativa para a sobrevivência desta diversidade é a sua coexistência sob uma perspectiva

de pluralismo sociocultural, com a proteção jurídica de seus projetos de vida, diferenciados e

determinados culturalmente.

Para isso, o capítulo se aprofundará nos conceitos de multiculturalismo,

plurinacionalidade e interculturalidade.

Para tanto, parte-se do argumento pelo qual o multiculturalismo fixa o contexto no

qual os povos indígenas surgem como sujeitos de diretos diferenciados. Este aspecto está em

conexão com uma definição particular (funcional a esta pesquisa) de nação, como grupos

históricos, complexos institucionalmente e que compartilham uma terra, uma língua e uma

cultura. Em seguida, serão diferenciadas as noções de um Estado pluricultural de um

plurinacional, tendo-se como critério distintivo o reconhecimento constitucional de sua

diversidade cultural.

Na sequência, propor-se-á que a interculturalidade se refere ao diálogo necessário

para a coexistência dos grupos culturalmente diferenciados, especialmente quando inseridos

numa sociedade majoritária. Por fim será sustentada a necessidade da formação de uma

imagem de cidadania multicultural, caracterizada por direitos diferenciados em razão do

pertencimento a grupos diferenciados, como os povos indígenas, imagem esta que se reflete

em identidades socioculturais plurais.

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Na segunda parte do capítulo, serão abordadas as especificidades conceituais da

expressão povos indígenas que é adotada por este estudo.

Pretende-se desenvolver analiticamente a expressão indígena para o fim de lhe

atribuir traços que ultrapassem uma perspectiva meramente temporal. Será proposto que o

critério da autoidentificação é o mais forte para a caracterização da condição indígena do

sujeito.

Igualmente pretende-se justificar a utilização da palavra povos em substituição a

qualquer outra expressão, para o fim de explicitar que a utilização se afasta da concepção de

que cada povo deve necessariamente corresponder a um Estado e se aproxima do conceito de

nação, sem, no entanto, atribuir aos sujeitos um direito, ou direitos de secessão.

1.1 Multiculturalismo, plurinacionalidade e interculturalidade

Esta seção pretende discorrer sobre o multiculturalismo como realidade fática e como

alternativa jurídica para o reconhecimento da sociodiversidade, dentro do contexto de

democracia liberal. Para este fim o texto se desenvolve, basicamente, por meio de teoria de

base vinculada às lições de Will Kymlicka e de Charles Taylor, que propõem o

reconhecimento de direitos diferenciados às minorias culturais.

Aqui o multiculturalismo será visto como vinculado e conexo ao conceito de nação,

sendo que dentro de um Estado podem existir inúmeras nações, o que caracteriza um Estado

Pluricultural e um Estado Plurinacional. A diferença entre os dois estaria principalmente no

reconhecimento constitucional da multiculturalidade existente dentro deles, o que alcança

também questões mais complexas. Este será o assunto da segunda subseção.

No entanto, em qualquer destes dois modelos de Estado, para o efetivo

reconhecimento das diferenças culturais há que se buscar a compreensão e valorização mútua

através de um diálogo intercultural, seja no espaço dos arranjos institucionais, seja no âmbito

da ação judicial de cada Estado, o que será tratado na terceira subseção.

Mais que permitir o diálogo intercultural no seio do Estado torna-se necessário,

também, o reconhecimento de direitos específicos a determinados grupos culturalmente

diferenciados. Para tornar este assunto mais claro, a quarta subseção tratará dos grupos

culturalmente diferenciados que podem existir dentro de um Estado e da necessidade de

construção de uma cidadania multicultural, que inclui o reconhecimento dos direitos

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específicos em função do grupo de pertencimento. Esta é a lógica verificada para justificar a

existência de direitos específicos aos povos indígenas.

1.1.1 Multiculturalismo: realidade e teoria

Há duas concepções possíveis sobre a expressão multiculturalismo, como um fato

social e como uma teoria. No primeiro sentido, refere-se a uma situação derivada das

migrações e da convivência, no seio da mesma sociedade, de pessoas e grupos oriundos de

civilizações diferenciadas em vários graus. No segundo sentido, o multiculturalismo seria

uma das soluções possíveis aos problemas derivados da convivência entre pessoas e grupos

de diferentes culturas, concretamente a que propõe a coexistência entre eles, mantendo cada

um suas próprias pautas culturais e sociais.3

O multiculturalismo como fato social é uma realidade maciça, pois a maioria dos

países é culturalmente diversificada. Dentro dos quase duzentos Estados independentes no

mundo existem mais de seiscentos grupos que falam línguas vivas diferentes e cinco mil

grupos étnicos.4 Apenas no Brasil existem trezentos e cinco povos indígenas que falam mais

de duzentos e setenta línguas e dialetos.5

3 CÁMARA, Ignacio Sánchez. El multiculturalismo como hecho y como solución a un problema. Persona y

derecho, n. 49, 2003, p. 163. Esta diferenciação também pode ser vista na distinção entre pluralismo cultural e multiculturalismo. Por um lado, o pluralismo cultural seria a realidade fática da convivência de diversas culturas no mesmo espaço territorial ou político (ou afirmação de valor que pretende afirmar o direito à existência e à reprodução destas culturas) e o multiculturalismo seria a resposta normativa concreta em relação a este fato, no contexto liberal. V. BARTOLOMÉ, Miguel Alberto. Procesos interculturales: antropología política del pluralismo cultural en América Latina. México: Siglo XXI Editores, 2006, p. 107 e 116-121. Por outro lado, o multiculturalismo expressa “a coexistência de formas culturais ou de grupos caracterizados por culturas diferentes no seio da sociedade ‘moderna’” e possui diferentes noções, como a noção emancipatória que é centralizada no direito à diferença e na coexistência além das diferenças (SANTOS, Boaventura de Sousa; NUNES, João Arriscado. Introdução: para ampliar o cânone do reconhecimento, da diferença e da igualdade. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (Org.). Reconhecer para

libertar: os caminhos do cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 26 e 30); e o pluralismo (jurídico) é valor aberto e democrático que representa distinções, diversidades e heterogeneidade, que tem no multiculturalismo uma de suas formas possíveis de reconhecimento e articulação das diferenças culturais (WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo jurídico: um espaço de resistência na construção de direitos humanos. In: WOLKMER, Antonio Carlos; VERAS NETO, Francisco Q.; LIXA, Ivone M. Pluralismo jurídico: os novos caminhos da contemporaneidade. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 42.). No entanto, tais conceitos são indissociáveis e algumas vezes são usados como sinônimos.

4 KYMLICKA, Will. Ciudadanía multicultural: una teoría liberal de los derechos de las minorías. Tradução de Carme Castells Auleda. Barcelona: Paidós, 2010, p. 13. O fator língua é um dos primeiros a ser considerado para diferenciar culturas. V. JIANG, Wenying. The relationship between culture and language. English Language Teaching Journal. Oxford, v.4, n. 54, p. 328-334, 2000.

5 INSTITUTO Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Demográfico 2010: características gerais dos indígenas. Resultados do universo. Rio de Janeiro: IBGE, 2012, p. 85 e 90.

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Já como teoria, a concepção de multiculturalismo surge como uma solução para os

problemas oriundos da diversidade cultural globalizada no contexto liberal, visto que a

filosofia política e a teoria do direito tradicionais suprimiram as diferenças culturais. Por

isso, os governos muitas vezes se valeram de políticas direcionadas à assimilação coercitiva

ou à eliminação material da diversidade cultural. 6

Will Kymlicka considera que a teoria liberal tradicional é insuficiente para a

compreensão e resolução dos conflitos contemporâneos, pois ela não soube fazer frente às

demandas das culturas. Isto porque, a teoria liberal não desenvolveu um acervo coerente de

conhecimento sobre o papel da cultura na democracia liberal. Para o autor, o projeto liberal

ainda está por terminar e é uma fórmula válida para se estender aos novos direitos coletivos

das culturas e minorias. O autor salienta que é legítimo e inevitável complementar os direitos

humanos tradicionais com os direitos das minorias e que, em um Estado multicultural, uma

teoria da justiça abrangente incluirá tantos os direitos universais, atribuídos aos indivíduos

independentemente de ser membro de algum grupo, como determinados direitos

diferenciados de grupo, é dizer, um status especial para as culturas minoritárias.7

Charles Taylor propõe a política do reconhecimento. Para o autor, o liberalismo

partiu de um erro fundamental: assumiu uma concepção de homem como ser autônomo, que

prescinde de todos os elementos que o constitui verdadeiramente como sujeito, como pessoa,

entre eles, a raça, a religião, o sexo ou a nacionalidade. O liberalismo parte daquilo que é

comum a todos os homens, daqueles recursos que são compartilhados universalmente.8

Para Charles Taylor, a política do universalismo salienta a dignidade igual de todos

os cidadãos e o seu conteúdo foi a igualação de todos os direitos e títulos.9 Este

reconhecimento exige do Estado a proteção dos direitos individuais e a neutralidade diante

das diferentes concepções de vida e as preferências dos indivíduos ou grupos.

6 MALDONADO, Daniel Bonilla. Constitución multicultural. Bogotá: Siglo del Hombre Editores;

Universidad de los Andes; Pontificia Universidad Javeriana, 2006, p. 21. V. STOPLER, Gilda. Contextualizing multiculturalism: a three dimensional examination of multicultural claims. Journal of Law

and Ethics of Human Rights, v. 1, p. 309-353, 2007; COHEN-ALMAGOR, Raphael; ZAMBOTTI, Marco. Liberalism, tolerance and multiculturalism: the bounds of liberal intervention in affairs of minority cultures. In: WOJCIECHOWSKI, Krzysztof; JOERDEN, Jan C.(eds). Ethical liberalism in contemporary societies. Frankfurt: Peter Lang, 2009, p. 79-98.

7 KYMLICKA, Will. Estados, naciones y culturas. Tradução de Juan Jesús Mora. Córdoba: Almuzara, 2004, p. 13 (SORIANO, Ramón; MORA, Juan Jesús. Estudio Preliminar).

8 CÁMARA, Ignacio Sánchez. El multiculturalismo como hecho y como solución a un problema..., p. 169. 9 TAYLOR, Charles. El multiculturalismo y la politica del reconocimiento. México: Fondo de Cultura

Económica, 1993, p. 61.

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Toda pessoa deve ser livre para organizar sua vida a partir de sua autonomia. Mas,

esta política do universalismo ignora a relevância do contexto cultural para a formação da

personalidade. A identidade da pessoa pressupõe todo um conjunto de elementos que

precedem da circunstância cultural e social. A pessoa não é inteligível senão no seio de uma

determinada cultura. A igualdade é abstrata, enquanto o pluralismo e a diversidade são

concretos e reais. A existência de padrões culturais compartilhados pela comunidade é

essencial para a constituição da pessoa e constitui, por ela mesma, um bem que deve ser

protegido pelo Estado. Ademais, todas as culturas possuem concepções de bem, não apenas

diferentes, mas também incomensuráveis entre si. A motivação moral não provém da

autonomia do sujeito, mas das questões morais compartilhadas pela comunidade a que

pertence. Então, dá-se uma íntima vinculação moral entre o indivíduo e a comunidade.10

À política do universalismo, Charles Taylor opõe uma política do reconhecimento,

que justificaria também a concessão de direitos especiais coletivos. Charles Taylor afirma

que atualmente surgem conflitos em torno da política da diferença. Enquanto a política da

dignidade universal lutava por formas de não discriminação inteiramente “cegas” aos modos

pelos quais os cidadãos se diferem, ao contrário, a política da diferença muitas vezes redefine

a não discriminação exigindo que se faça destas distinções a base do tratamento diferenciado.

Deste modo, os membros de grupos indígenas receberam alguns direitos e faculdades das

quais não gozam outros cidadãos e certas minorias receberam o direito de excluir as outras

para conservar sua integridade cultural.11

Segundo Axel Honneth, os conflitos sociais surgem como lutas por reconhecimento

em razão de experiências individuais de desrespeitos sociais, que seriam resumidamente, a

violação e privação de direitos e a degradação de formas de vida ou crenças. 12 Essas lutas

passam a ser consideradas como sociais quando os objetivos individuais passam a ser

coletivos. Portanto, luta social é o

[...] processo prático no qual experiências individuais de desrespeito são interpretadas como experiências cruciais típicas de um grupo inteiro, de forma que elas podem influir, como motivos diretores da ação, na exigência coletiva por relações ampliadas de reconhecimento 13

10 CÁMARA, Ignacio Sánchez. El multiculturalismo como hecho y como solución a un problema..., p. 169-

170. 11 TAYLOR, Charles. El multiculturalismo y la politica del reconocimiento..., p. 63. 12 HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. 2. ed. São Paulo:

Editora 34, 2009, p. 227-228. 13 Ibid., p. 257.

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Ambos os autores, Will Kymlicka e Charles Taylor, vêem o multiculturalismo como

um fato, uma realidade concreta, e ambos desenvolvem uma teoria que engloba os direitos

coletivos derivados da realidade de pluralidade cultural no contexto do liberalismo, a

realidade social do “ocidente”.14

Convém destacar que a expressão multiculturalismo, como fato social, pode englobar

diversas formas de pluralismo cultural. No entanto, para o objetivo traçado para este estudo

será adotada a lição de Will Kymlicka, que defende que o multiculturalismo decorre da

coexistência dentro de um determinado Estado, de mais de uma nação.15

Nação, para o autor, significa uma comunidade histórica, mais ou menos completa

institucionalmente que ocupa um território ou uma terra natal determinada e que compartilha

uma língua e uma cultura diferenciada. O autor explica que a noção de nação, neste sentido

sociológico, e que por sua vez, é distinto do sentido tradicionalmente associado à teoria do

Estado16, está estritamente relacionada com a ideia de povo ou de cultura, e que ambas as

ideias são intercambiáveis. Assim, um país que contém mais de uma nação não é, portanto,

um Estado-nação, mas um Estado multinacional, onde as culturas minoritárias estão

presentes nas maiorias nacionais.17

Esta diferenciação é importante para excluir do conceito aqui utilizado, uma extensa

gama de grupos sociais não étnicos que, por diversas razões, foram excluídos ou

marginalizados do núcleo majoritário da sociedade, como os grupos dos portadores de

necessidades especiais, homossexuais, mulheres, trabalhadores ou ateus.

É a complexidade da expressão cultura que faz com que comumente a expressão

multicultural possa incluir tais grupos. A expressão cultura pode ser entendida para incluir

todos os grupos que possuem modos de ser, fazer e viver distintos nos sentidos habituais da

14 O debate sobre o multiculturalismo surgiu nos anos 70 para se referir às políticas públicas de Estados

liberais sobre o pluralismo étnico existente em razão da imigração. V. ANG, Ien. Multiculturalism. Disponível em: <http://media.wiley.com/product_ancillary/92/06312256/DOWNLOAD/Multiculturalism.pdf>. Acesso em: 14 Jan 2012. Nesta seara há muitas críticas sobre a relação multiculturalismo-liberalismo perante os indivíduos, no entanto, sempre com a ressalva de que as críticas não atingem o multiculturalismo relacionado aos povos indígenas, pois sempre mencionam o aspecto individual e não o coletivo. V. JOPPKE, Christian. The retreat of multiculturalism in the liberal state: theory and policy. The British

Journal of Sociology, v. 55, n. 2, p. 237-257, 2004; e BARRY, Brian. Liberalism and multiculturalism. Ethical Perspectives, v. 4, p. 2-11, 1997.

15 KYMLICKA, Will. Ciudadanía multicultural…, p. 26. 16 V. DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos da teoria geral do Estado. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2000; e

AZAMBUJA, Darcy. Teoria geral do Estado. 5. ed. Porto Alegre: Globo, 1957. 17 KYMLICKA, op. cit., p. 26.

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expressão no conceito de multiculturalismo. De um lado, de forma mais estrita e específica,

cultura alude aos costumes distintos ou perspectivas de um grupo ou associação, quando se

fala, por exemplo, de uma cultura gay ou de uma cultura burocrática. Em outro extremo,

cultura pode ser empregada de forma mais ampla, de modo que se pode dizer que todas as

democracias ocidentais compartilham uma cultura comum, pois compartilham uma

civilização moderna, urbana, laica e industrializada, em contraste com o mundo feudal,

agrícola e teocrático ancestral. 18

Apesar de semelhante conjunto de divergências, Will Kymlicka emprega a expressão

cultura em um sentido diferente, como caracterizadora de nação ou povo, é dizer, de uma

comunidade intergeracional, mais ou menos completa institucionalmente, que ocupa um

território determinado e compartilha uma língua e uma história específicas. Ele não inclui o

tipo de estilos de vida grupal, movimentos sociais e associações voluntárias que outros

autores podem incluir dentro do âmbito do multiculturalismo. O autor ainda explica que ele

não pensa que estes grupos não sejam importantes, mas acredita que a acomodação das

diferenças étnicas e nacionais é apenas um dos aspectos da luta mais ampla para alcançar

uma democracia mais tolerante e inclusiva.19

O estudo do multiculturalismo torna necessário ressaltar a diferenciação realizada por

Bartolomé Clavero entre Estado pluricultural ou multicultural e Estado plurinacional, uma

categoria mais ampla, o que será objeto da próxima seção.

1.1.2 Estado Pluricultural e Plurinacional

Bartolomé Clavero afirma que há uma diferença substancial entre um Estado que se

reconheça culturalmente diverso (multicultural ou pluricultural) e um Estado que assuma sua

composição como nacionalmente plural (plurinacional), pois só no segundo caso é que se

está reconhecendo a necessidade de uma reconstituição a fundo e sob novos princípios, como

certamente ocorreu no Equador e na Bolívia, ao menos textualmente sob o plano político-

normativo20.

18 KYMLICKA, Will. Ciudadanía multicultural…, p. 35. V. BARTOLOMÉ, Miguel Alberto. Procesos

interculturales…, p. 87-88. 19 Ibid., p. 36 20 Bartolomé Clavero diz que as atuais políticas da Bolívia e do Equador não correspondem ao novo

paradigma constitucional que propõem. Isto se deve basicamente pelo fato de ser um novo

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A plurinacionalidade é mais ampla que o reconhecimento da diversidade cultural da

sociedade e das relações de interculturalidade necessárias, com toda a importância inerente,

pois implica o respeito não apenas das culturas em si, mas também implica o respeito de suas

expressões, como no caso indígena, organização em comunidades, formas de representação e

jurisdição indígena.

A plurinacionalidade se vincula ao reconhecimento constitucional de outras nações

dentro do Estado, uma nação maior, como fazem as novas constituições do Equador e da

Bolívia ao reconhecerem os povos indígenas como nações. Por isso, este estudo ao falar de

plurinacionalidade se referirá unicamente aos povos indígenas, já que as constituições dos

estados plurinacionais existentes reconhecem os povos indígenas como nações internas.

Portanto, em tese, nada obsta que outros Estados reconheçam outros grupos que se

caracterizam como nações, e os direitos inerentes a este reconhecimento, tornando-se

também estados plurinacionais.

Assim, a multiculturalidade interessa, desde já, a mais culturas que as indígenas, mas

não chega a transcender ao sistema todo. É a plurinacionalidade o que pode caracterizar um

novo paradigma constitucional, pois envolve a reconstrução do Estado moderno. O Estado

moderno tem apenas uma nação (no sentido populacional) e ao enfrentar a

plurinacionalidade tem que combinar diferentes conceitos de nação dentro de um mesmo

Estado, para abarcar a sua essência multicultural.21

Por isso, o Estado plurinacional se vincula, antes de tudo, ao reconhecimento

constitucional da existência dos povos indígenas com direitos próprios de alcance político,

como os direitos de autonomia e consulta. Bartolomé Clavero afirma que foi o

reconhecimento constitucional dos povos indígenas como sujeitos de direitos políticos

próprios, anteriores ao próprio Estado, e não o registro da plurinacionalidade, que levou a

constitucionalismo latinoamericano em processo de concretização a partir de um Estado que deu o primeiro passo reconhecendo sua formação multicultural para então se tornar plurinacional oficialmente. CLAVERO, Bartolomé. Estado plurinacional o bolivariano: nuevo o viejo paradigma constitucional americano. Borrador. Bartolomé Clavero Ensayos, opiniones y actualidad. 02 Mai 2011. Disponível em: <http://clavero.derechosindigenas.org/wp-content/uploads/2011/05/Estado-Plurinacional.pdf>. Acesso em: 05 Maio 2011, p. 3.

21 SANTOS, Boaventura de Sousa. Las paradojas de nuestro tempo y la Plurinacionalidad. In: ACOSTA, Alberto; MARTÍNEZ, Esperanza (Comp.). Plurinacionalidad: democracia en la diversidad. Quito: Abya-Yala, 2009, p. 37.

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renovação profunda da Constituição boliviana com o estabelecimento do Estado

Plurinacional da Bolívia, com tal denominação oficial.22

A plurinacionalidade contém uma exigência histórica de reconhecimento da

diversidade cultural, mas entendendo que o cultural também envolve os aspectos econômicos

e políticos, pelo que se exige a desconstrução das relações sociais, inclusive do Estado. Esta

exigência é histórica, porque em algum momento no tempo se produziu a ocultação ou a

negação da diversidade.23

Alberto Acosta afirma que “a plurinacionalidade não é apenas um reconhecimento

passivo da diversidade de povos e de nações, é fundamentalmente uma declaração pública do

desejo de incorporar perspectivas diferentes com relação à sociedade e à natureza” 24. Entre a

plurinacionalidade e a natureza há uma relação que passa pela visão indígena de Pachamama

ou Mãe Terra, por espaços andinos e amazônicos, a que as Constituições do Equador e da

Bolívia também dedicam atenção25. É uma relação que passa por estes e por mais assuntos de

interesse agora constitucional em virtude do reconhecimento dos direitos dos povos

indígenas como direitos próprios e moldados, portanto, ao entendimento de seus sujeitos.

O Estado plurinacional não se limita ao seu simples significado literal de Estado

reconhecidamente formado por uma pluralidade de nações, ele tem objetivo de encontrar

respostas não apenas a formas distintas de pertencimento ao território, mas também a

questões mais amplas, como o racismo e a falta de democracia.26

Bartolomé Clavero afirma que a plurinacionalidade representa um estágio distinto e

cumulativo em relação à multiculturalidade. Não há contradição nem oposição entre

plurinacionalidade de um lado e multi e interculturalidade de outro.27 Elas dialogam, pois os

últimos são imprescindíveis à existência do primeiro conceito.

22 CLAVERO, Bartolomé. Estado plurinacional o bolivariano..., p. 5. 23 VARGAS, Edwar. La Plurinacionalidad: um paradigma de trasnformación social. In: ACOSTA, Alberto;

MARTÍNEZ, Esperanza (Comp.). Plurinacionalidad..., p. 37. 24 ACOSTA, Alberto. El Estado Plurinacional, puerta para una sociedade democrática. In: ACOSTA, Alberto;

MARTÍNEZ, Esperanza (Comp.). Plurinacionalidad..., p. 18. (tradução nossa) 25 V. por exemplo ECUADOR. Constitución de la República del Ecuador. 2008. Disponível em:

<http://www.asambleanacional.gov.ec/documentos/constitucion_de_bolsillo.pdf>. Acesso em: 12 Abr 2011, preâmbulo, artigos 71, 250, 259; e BOLIVIA. Constitución de la República de Bolivia. 2009. Disponível em: <http://pdba.georgetown.edu/Constitutions/Bolivia/bolivia09.html>. Acesso em: 03 Dez 2011, preâmbulo e artigo 392.

26 CLAVERO, op. cit., p. 3-6. 27 Ibid., p. 2.

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25

A ideia de plurinacionalidade envolve, igualmente, as ideias de pós-colonialidade e

interculturalidade.

Sobre a pós-colonialidade é importante mencionar que constitui o reconhecimento de

que o colonialismo não terminou com a independência dos países colonizados e que entre a

independência e o pós-colonialismo há um período de tempo muito amplo. Por exemplo,

somente 184 anos após a independência, o Brasil reconheceu que é uma sociedade racista e

que necessitava de uma ação afirmativa, um sistema de cotas e discriminação positiva. Até

ali a marginalização social das populações afrodescendentes era considerada um problema de

classe, sem especificidade; agora se reconhece que além de problema de classe, é também

um problema racial e que para combatê-lo é necessária a ação afirmativa. Deve-se

reconhecer o racismo para eliminá-lo.28

As principais ideias trazidas pela pós-colonialidade são: que o Estado não pode ser

culturalmente neutro, porque se é neutro, objetivamente, favorece a cultura dominante; a

necessidade de reconhecimento de direitos coletivos; e a necessidade de um pluralismo

jurídico. Enfim, a ideia de pós-colonialidade significa que se houve uma injustiça histórica,

deverá haver um período transicional em que haja um tempo de discriminação positiva a

favor das populações oprimidas. Isto pode ocorrer através de distribuição de riqueza, atos

políticos, entre outros.29

Por seu turno, a interculturalidade, que será desenvolvida na subseção seguinte deste

estudo, representa a inserção do reconhecimento do multiculturalismo no Estado, podendo ou

não declarar sua plurinacionalidade.

1.1.3 Interculturalidade: um diálogo necessário

Interculturalidade pode ser entendida como “filosofia crítico-cultural, como horizonte

de diálogo equitativo, [...] ‘como reconhecimento do pluralismo cultural [...] em que

nenhuma cultura é um absoluto, senão uma possibilidade constitutivamente aberta a possível

fecundação por outras culturas’”. 30 Apesar de estar sempre relacionada ao multiculturalismo,

ou como uma variante deste, a interculturalidade tem especificidade própria, pois, “tendo em

28 SANTOS, Boaventura de Sousa. Las paradojas de nuestro tempo y la Plurinacionalidad..., p. 38-39. 29 Ibid., p. 40. 30 WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo jurídico, direitos humanos e interculturalidade. Sequência, n. 53,

2006, p. 120.

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conta o pluralismo cultural e a nova hermenêutica filosófica, revela-se ‘um horizonte de

diálogo’; define-se, conforme Isidoro Moreno, como ‘um quadro comum de referência

metacultural’ compatibilizando ‘conceitos, estratégias, identificação de problemas, valores e

formas e negociação de cada parte’”.31

Para Ricardo Salas Astrain, a interculturalidade “alude a um tipo de sociedade

emergente, em que as comunidades étnicas, os grupos e classes sociais se reconhecem em

suas diferenças e buscam sua mútua compreensão e valorização”, o que se efetiva por meio

de “instâncias dialogais”.32

O conceito teórico de interculturalidade nasceu nos Estados Unidos, nos anos 60, no

âmbito da educação. Surgiu de uma maior consciência sobre a existência de várias culturas

que conviviam no país, sem nunca ter uma forte inter-relação, cuja resolução requeria um

modelo educativo intercultural que promoveu uma política educativa que favoreceu o

pluralismo cultural. Depois, o debate se estendeu para a Europa na questão social das

culturas locais, minoritárias ou não, e dos imigrantes.33 Atualmente, na América Latina o

conceito foi redefinido pela luta dos povos indígenas pelo reconhecimento de seus direitos

como povos.

A coexistência de culturas diferenciadas requer estratégias de relação intercultural,

pelo que o pluralismo e o multiculturalismo não são imagináveis sem o desenvolvimento de

um diálogo intercultural. Para o antropólogo Miguel Alberto Bartolomé, a interculturalidade

pode ser entendida como o estabelecimento de relações entre membros de diferentes culturas,

bem como mecanismos sociais necessários para atingir uma comunicação eficaz, sem que

nenhum dos participantes seja necessariamente forçado a renunciar à sua singularidade

cultural.34

No âmbito do direito, Otfried Höffe chega a propor um direito intercultural, conceito

desenvolvido por ele a partir do diálogo com as questões penais que envolvam,

31 WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo jurídico..., p. 120. O autor cita MORENO, Isidoro. Derechos

humanos, ciudadanía e interculturalidad. In: DÍAZ, Emma Martín; SIERRA, Sebatián de la Obra (ed.). Repensando la ciudadanía. Sevilla: El Monte, 1998, p. 31.

32 SALAS ASTREIN, Ricardo. Ética intercultural e pensamento latino-americano: Problemas e perspectivas de uma ética intercultural no marco da globalização cultural. In: Encuentro del Corredor de las Ideas, 5., 2002, Rio Cuarto, Córdoba, Argentina. Anais... Rio Cuarto: UNRC, 2002. Disponível em: <http://juanfilloy.bib.unrc.edu.ar/completos/corredor/corredef/panel/SALASRIC.HTM>. Acesso em: 05 Maio 2011.

33 VALAREZO, Galo Ramón. ¿Plurinacionalidad o interculturalidad em la Constitución?. In: ACOSTA, Alberto; MARTÍNEZ, Esperanza (Comp.).Plurinacionalidad..., p. 133-134.

34 BARTOLOMÉ, Miguel Alberto. Procesos interculturales…, p. 121 e 124.

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27

simultaneamente, culturas diferenciadas. O sociólogo afirma que a globalização está

ameaçando um elemento irrenunciável para o ser humano: o pertencimento a grupos

determinados. Isso afeta não só o bem-estar, mas toda a identidade pessoal que ao ser

colocada em perigo ameaça bens jurídicos tão elementares como o direito à religião, à língua

e à cultura próprias.35

Na visão do autor o direito intercultural é aquele que engloba os institutos comuns a

todas as culturas, deduzidos da razão natural comum a todos os seres humanos. Ele assevera

que os direitos humanos e a democracia liberal não são fenômenos específicos europeus ou

ocidentais, pois neles há algo humano e universal.36

O sociólogo defende que há os direitos humanos puros, genuínos e sem acréscimos

específicos e os direitos humanos que já sofreram interferência ocidental, apresentando

particularidades, experiências e até interesses específicos. O autor ainda defende que a

tolerância e o reconhecimento do outro são traços universais da democracia liberal, que

convive numa realidade pluralista. Ele afirma que estes princípios (direitos humanos e

democracia) devem ser universais sem uniformidade, estando abertos às culturas. É o que o

autor chama de estratégia da universalidade moderada37. Assim, os direitos humanos deixam

transparecer peculiaridades da época e da cultura e também da situação. Eles são princípios

formais que basicamente estão abertos a uma definição material distinta a cada caso. A sua

‘materialização’ depende da cultura e do contexto. 38

Otfried Höffe assinala que a observância dos direitos humanos pelas culturas não

ocidentais só pode ser exigida se lhes é reconhecido um alto grau de independência39. Ele

35 HÖFFE, Otfried. Derecho intercultural. Trad. de Rafael Sevilla. Barcelona: BEG, 2008, p. 26. 36 Ibid., p. 135. V. PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos, democracia e integração regional: os desafios da

globalização. Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, n. 54, p. 221-247, 2000; BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita. Os direitos humanos como valor universal. Lua Nova, n. 34, p. 179-188, 1994.

37 Joaquin Herrera Flores defende que o universalismo abstrato dos direitos humanos (universalismo de ponto de partida), que exige uma racionalidade jurídica/formal, assim como o universalismo localista, que exige uma racionalidade material/cultural (universalismo de retas paralelas), são produtos de visões reducionistas da realidade e acabam por dogmatizar seus pontos de vista, pois funcionam como um padrão de medidas e de exclusão. Em razão disso, o autor propõe uma prática intercultural (universalismo de chegada, de confluência ou de entrecruzamentos), que exige uma racionalidade de resistência, a partir de uma visão complexa dos direitos, cujo conteúdo advém da incorporação dos diferentes contextos físicos e simbólicos na experiência do mundo. FLORES, Joaquín Herrera. A (re)invenção dos direitos humanos. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009, p. 151-170.

38 HÖFFE, op. cit., p. 136-139. 39 Joaquín Herrera Flores salienta que “[r]eivindicar a interculturalidade não se restringe [...] ao necessário

reconhecimento do outro. É preciso, também, transferir poder, ‘empoderar’ os excluídos do processo de construção da hegemonia. FLORES, op. cit., p. 170.

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observa, ainda, que a abertura cultural não deve ser observada apenas pelo legislador, mas

especialmente pelos juízes para que possam apreciar o que é justo em casos típicos de

conflitos culturais.40

Para Fernando Antonio de Carvalho Dantas, o diálogo intercultural se configura:

[...] como um “espaço e um instrumento” da nova cidadania indígena, diferenciada, multicultural, dinâmica, criativa e participativa no sentido de construir os direitos diferenciados indígenas e, como conseqüência, criar, também, contextos plurais e heterogêneos onde a convivência democrática possibilite o desenvolver das ações da vida sem opressão, sem exclusão.

41

Em sua relação com a plurinacionalidade, Boaventura de Sousa Santos lembra que a

interculturalidade não é simplesmente cultural, mas também política e pressupõe uma cultura

comum, uma cultura compartilhada. A cultura compartilhada nas sociedades plurinacionais é

a maneira como cada sociedade organiza sua plurinacionalidade. É assim que as sociedades

vão criando formas de convivência intercultural de maneira específica. O autor destaca que a

plurinacionalidade é mais ampla que a interculturalidade. “Pode haver interculturalidade sem

plurinacionalidade, mas não pode haver plurinacionalidade sem interculturalidade.” 42

Ao contrário, Galo Ramón Valarezo afirma que a plurinacionalidade possui menor

alcance que a interculturalidade. Ele assevera que o alcance e a precisão da interculturalidade

permite uma saída em longo prazo, pois:

a) a interculturalidade reconhece ao mesmo tempo o direito à diferença e à

diversidade, mas enfatiza a necessidade de construir a unidade reconhecendo e

estabelecendo instituições e mecanismos que possibilitem o encontro criativo e

equitativo entre os diferentes;

b) a interculturalidade não permite que os povos indígenas sejam tratados como

minorias, a quem é dado uma parte minúscula do Estado, mas atravessa todas as

normas, instituições e práticas do país; a interculturalidade permite um tratamento

flexível às distintas formas da diversidade, porque se aplica tanto aos territórios

habitados por apenas um povo, como aos compartilhados por vários povos, pois

40 HÖFFE, Otfried. Derecho intercultural..., p. 140-141. 41 DANTAS, Fernando Antonio de Carvalho. A “cidadania ativa” como novo conceito para reger as relações

dialógicas entre as sociedades indígenas e o Estado Multicultural Brasileiro. Hileia, n. 2, 2004, p. 221. 42 SANTOS, Boaventura de Sousa. Las paradojas de nuestro tempo y la Plurinacionalidad..., p. 37 e 38.

(tradução nossa)

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promove o conhecimento, a convivência, a equidade e a ação criativa entre os

diferentes; e,

c) a interculturalidade oferece uma saída aos povos afrodescendentes e aos mestiços,

para encontrar elementos de unidade com o mundo indígena e converter o problema

da construção de um Estado includente em um problema de todos e não só dos índios.

43

Independentemente da posição adotada, é fato que os conceitos de multiculturalismo,

plurinacionalidade e interculturalidade andam juntos, e muitas vezes são indissociáveis, e

suas ideias refletem a busca por uma cidadania multicultural.

1.1.4 Cidadania multicultural

Will Kymlicka destaca duas manifestações de pluralismo cultural por meio de grupos

intergeracionais que se diferenciam no interior de um Estado por suas culturas diversas:

minorias nacionais e grupos étnicos. As minorias nacionais são grupos que possuem

vínculos históricos com o território, possuíam autogoverno, mas que por alguma razão estão

incorporados a um Estado que possui uma maioria cultural predominante. O exemplo mais

claro de minorias nacionais são os povos indígenas americanos, incorporados a um Estado

devido à invasão e colonização de seu território. Os grupos étnicos são os formados no

interior de um Estado por meio da imigração e que mantém algumas de suas particularidades

étnicas. Estes grupos não são nações e suas especificidades se manifestam fundamentalmente

em sua vida familiar e em associações voluntárias.44

Em todas as democracias liberais um dos principais mecanismos usados para

acomodar as diferenças culturais é a proteção dos direitos civis e políticos dos indivíduos. Os

direitos fundamentais são vistos como instrumento para a proteção das diferenças. Estes

direitos permitem aos indivíduos formarem e manterem grupos e associações distintos que

constituem a sociedade civil, adaptar estes grupos às circunstâncias e, por último, fomentar

suas perspectivas e interesses na totalidade da população.45

43 VALAREZO, Galo Ramón. ¿Plurinacionalidad o interculturalidad em la Constitución?..., p. 126. 44 KYMLICKA, Will. Ciudadanía multicultural…, p. 26 e 31. 45 Esta universalidade da cidadania liberal é criticada por Iris Marion Young em YOUNG, Iris Marion. Polity

and Group Difference: a critique of the ideal of universal citizenship. Ethics, n. 99, p. 250-274, 1989.

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A proteção que proporciona estes direitos comuns de cidadania é suficiente para

muitas das formas legítimas de diversidade na sociedade. Algumas vezes algumas formas de

diferença cultural apenas podem acomodar-se mediante medidas legais ou constitucionais

especiais, que vão além dos direitos comuns de cidadania. No entanto, algumas formas de

diferenças derivadas do pertencimento a um grupo apenas podem se acomodar se seus

membros possuem alguns direitos específicos como grupo, é dizer, uma “cidadania

diferenciada”, uma cidadania multicultural.46

Os direitos específicos de grupos, como se pode aferir logicamente, são direitos

coletivos. Para Will Kymlicka, existem pelo menos três formas de direitos específicos em

função do grupo de pertencimento: direitos de autogoverno, direitos poliétnicos e direitos

especiais de representação.47

Os direitos de autogoverno podem englobar desde algum tipo de autonomia política

ou territorial, para ter assegurado o pleno e livre desenvolvimento de suas culturas e os

melhores interesses dos seus integrantes, até, no outro extremo, a secessão. O autor aponta o

federalismo como uma possibilidade de oferecer um amplo autogoverno a uma minoria

nacional, pois garantirá sua capacidade de tomar decisões em determinadas áreas sem sofrer

o rechaço da sociedade global. Outro exemplo é o autogoverno vinculado ao sistema de

terras reservadas aos povos indígenas. Nos Estados Unidos, o governo federal transferiu

competências importantes aos conselhos tribais que governam cada reserva, apesar deste

processo não ser muito claro. Em muitas partes do mundo, a esperança de chegar a ter

poderes políticos é praticamente uma utopia e o objetivo mais imediato é simplesmente

assegurar a base territorial existente para que não sofram maiores danos nas mãos de

exploradores de seus recursos. Os direitos de autogoverno não são medidas temporárias ou

meros remédios para alguma forma de opressão. Eles são descritos como direitos intrínsecos,

e, portanto, permanentes, o que constitui uma das razões para que as minorias nacionais

aspirem que sejam contemplados da Constituição.48

46 KYMLICKA, Will. Ciudadanía multicultural…, p. 46. Cidadania diferenciada é uma expressão de Iris

Marion Young em YOUNG, Iris Marion. Polity and Group Difference… Sobre como a cidadania individual foi usada nos Estados Unidos para destruir a soberania dos povos indígenas e para justificar o fim dos seus direitos tribais, V. BERGER, Bethany R. The anomaly of citizenship for indigenous rights. In: HERTEL, Shareen; LIBAL, Kathryn (eds.). Human rights in the United States: beyond exceptionalism. New York, Cambridge University Press, 2011, p. 217-233.

47 KYMLICKA, op. cit., p. 47. 48 Ibid., p. 48 e 51-52.

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Os direitos poliétnicos têm como objetivo ajudar aos grupos étnicos e às minorias

religiosas a expressarem suas particularidades e seu orgulho cultural sem que isso

obstaculize seu êxito nas instituições econômicas e políticas da sociedade dominante. Da

mesma forma que os direitos de autogoverno, não são considerados temporários, pois as

diferenças culturais que protegem não são algo que se pretenda eliminar. Medidas

antirracistas não são consideradas no contexto dos direitos poliétnicos e da cidadania

diferenciada em função do grupo, pois se destinam a assegurar o exercício efetivo dos

direitos comuns de cidadania.49

Os direitos especiais de representação refletem a crescente preocupação das

democracias ocidentais para que o processo político seja representativo, no sentido de que

consiga refletir a diversidade da população. As tentativas desta realização incluem eliminar

barreiras que inibem certos grupos, como mulheres, minorias étnicas, pobres, etc., de se

transformarem em candidatos ou dirigentes políticos; adotar formas de representação

proporcional associadas com candidaturas mais abertas e inclusivas; e, reservas de cadeiras

no legislativo aos membros de grupos desfavorecidos. Os direitos de representação derivados

do pertencimento a um grupo muitas vezes são defendidos como resposta a certas

desvantagens ou barreiras sistêmicas presentes no processo político, que impedem que a

opinião destes grupos esteja devidamente representada. Assim, os direitos especiais de

representação seriam uma forma de “ação positiva” política. Este assunto é complexo, pois

os direitos de representação em função do grupo podem se fundamentar em questões de

opressão, mas também como corolário do autogoverno. O direito ao autogoverno de uma

minoria seria gravemente debilitado se algum organismo externo pudesse revisar ou revogar

suas competências unilateralmente, é dizer, sem consultar a minoria nem assegurar seu

consentimento.50

Em suma, a ideia do autor é que a cidadania multicultural inclui além dos direitos

individuais, certos direitos coletivos, ou seja, determinados pelo pertencimento a alguns

grupos.

Para Luis Macas não é correto o uso da expressão cidadania quando se fala em

plurinacionalidade. Ele afirma que pensar que um membro de uma comunidade é um

cidadão, é individualizar as comunidades e os povos, passando por alto os conceitos de

49 KYMLICKA, Will. Ciudadanía multicultural…, p. 52-53. 50 Ibid., p. 53-54.

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reciprocidade, solidariedade e complementariedade, ficando omissos os direitos internos de

cada povo. Dentro dos povos indígenas, as questões são resolvidas coletivamente. A

cidadania é a relação do Estado com o indivíduo, mas não considera os povos nem as futuras

gerações. Este conceito apenas aprofundaria o individualismo. 51

No entanto, como afirmam Joaquin Herrera Flores e Rafael Rodríguez Pietro, em

primeiro lugar, a cidadania tem a ver com algo mais do que pertencer a um Estado-nação e

sua correspondente legalidade. No mundo contemporâneo existem múltiplos espaços e

legalidades que fazem da cidadania algo mais complexo do que a simples nacionalidade. Em

segundo lugar, a cidadania não outorga algum estado ontológico. Não se é cidadão ou se tem

ou não cidadania. Em terceiro lugar, a cidadania não é um status, é uma técnica, um

instrumento que usado corretamente pode nos permitir exercer a busca e a consolidação de

outros instrumentos ou meios que nos aproximem do objetivo/projeto de autogoverno. 52

Portanto, entende-se que se pode falar em cidadania multicultural, em que são

expressas questões individuais e coletivas, não havendo individualização de forma a

descaracterizar os povos indígenas. Fernando Antonio de Carvalho Dantas usa a

nomenclatura cidadania diferenciada indígena e afirma:

[...] cidadania diferenciada indígena deve expressar um repensar das noções clássicas de sociedade, de Estado e do direito, e conseqüentemente, do próprio conceito de cidadania, buscando, dialogicamente, a inserção pela participação democrática da pluralidade de sujeitos diferenciados indígenas desde seus contextos e identidades particulares, no contexto maior do Estado. 53

Assim, a cidadania multicultural ou a cidadania diferenciada indígena54 se revela

como a síntese de como um Estado multicultural e plurinacional deve se posicionar para que

seja democrático e equitativo.

A Declaração da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre os Direitos dos Povos

Indígenas55 ao incluir direitos coletivos ao lado de direitos individuais, criou um terceiro

51 MACAS, Luis. Construyendo desde la historia: resistencia del movimento indígena en el Ecuador. In:

ACOSTA, Alberto; MARTÍNEZ, Esperanza (Comp.). Plurinacionalidad…, p. 96. 52 FLORES, Joaquín Herrera; PRIETO, Rafael Rodríguez. Hacía la nueva ciudadanía: consecuencias del uso

de una metodología relacional en la reflexión sobre la democracia. Crítica Jurídica: Revista latinoamericana de política, filosofia e direito, n. 17, 2000, p. 302-303 apud DANTAS, Fernando Antonio de Carvalho. A “cidadania ativa”..., p. 220.

53 DANTAS, Fernando Antonio de Carvalho. A “cidadania ativa”..., p. 219. 54 Sobre a ideia de cidadania planetária ambiental, que inclui uma diversidade de identidades, V. SILVA,

Solange Teles da. A emergência de uma cidadania planetária ambiental. In: MARQUES, Claudia Lima; MEDAUAR, Odete; SILVA, Solange Teles da. O novo direito administrativo ambiental e urbanístico: estudos em homenagem à Jaqueline Morand-Deviller. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 375-383.

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status, nem estatal, nem individual, que não é novo nem inconsistente com a igualdade, ao

contrário, ele reflete o respeito mútuo e a dignidade que a igualdade requer56. Em suma,

parece que a Declaração da ONU respalda uma cidadania diferenciada, multicultural.

Daniel Bonilla Maldonado sugere cinco critérios normativos para amenizar as

disparidades da jurisprudência constitucional colombiana em relação à acomodação

apropriada da diversidade cultural e ampliar a visão tradicional, que podem criar um marco

útil para interpretar os desafios de um país multicultural57. Estas sugestões podem ser úteis

para os mesmos objetivos no Brasil, que enfrenta desafio multicultural semelhante à

Colômbia.

Os critérios sugeridos são: a) o Estado deve ser imparcial (não neutro) frente às

comunidades culturais; b) a maximização do direito de autogoverno dos povos indígenas; c)

a mínima intervenção do Estado (no autogoverno dos povos indígenas) e a máxima

intervenção da sociedade civil (as melhores soluções para a violação da moral mínima são

aquelas que se originam dentro da comunidade e não as impostas de fora pelo Estado); d) se

quiserem, os membros de povos indígenas devem ter a possibilidade de abandonar sua

comunidade (não devem ser obrigados a obedecer perpetuamente princípios ou práticas que

considerem questionáveis), e e) a transformação dos critérios que governam a coexistência

de diferentes culturas deve realizar-se através de diálogos interculturais. 58

Diante disto, o autor conclui que para

[...] reconhecer e acomodar de forma justa as comunidades indígenas deve-se interpretar a tensão entre unidade e diversidade cultural de maneira que o direito ao autogoverno dos povos indígenas seja maximizado e a intervenção do Estado em seus assuntos internos seja minimizado. A intervenção do Estado só justificável para neutralizar qualquer ação das autoridades indígenas dirigida a violar os valores transculturais da vida, integridade cultural e liberdade (interpretados de maneira não densa). [...] A tensão constitucional deve também ser interpretada de maneira que se promova diálogos interculturais no caso em que os padrões que governam as relações intergrupais (e suas regras de interpretação) queiram ser modificados por alguma das comunidades que existam no país.

59

55 ORGANIZAÇÃO das Nações Unidas. Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos

Indígenas. Disponível em: <http://www.un.org/esa/socdev/unpfii/documents/DRIPS_pt.pdf>. Acesso em: 02 Maio 2010.

56 BERGER, Bethany R. The anomaly of citizenship for indigenous rights…, p. 229. 57 MALDONADO, Daniel Bonilla. Constitución multicultural..., p. 271. 58 Estes critérios estão explicados em: Ibid., p. 271-282. 59 Ibid., p. 283. (tradução nossa)

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Após as discussões sobre o multiculturalismo, e outras ideias afins, como contexto da

emergência dos povos indígenas como sujeitos de direitos diferenciados, faz-se necessário

um aprofundamento no conceito de povo indígena, já que é o objeto central deste estudo.

1.2 Povos indígenas: uma análise conceitual

O desenvolvimento de um conceito de povos indígenas60 não é um processo

consensual. Quanto mais o conceito se torna importante, maiores são as controvérsias sobre o

seu significado e implicações legais e políticas.

Um conceito muito restrito pode excluir alguns povos indígenas do manto de

proteção jurídica internacional. De outro lado, não estabelecer um conceito, ou estabelecê-lo

de forma falha, pode levar outros grupos a se intitularem como indígenas apenas para obter o

status legal e a proteção jurídica a ele inerente.

Os povos indígenas são considerados minorias nacionais por Will Kymlicka. Isto por

que eles se encaixariam no conceito de nações, como comunidades históricas, mais ou menos

completas institucionalmente que ocupam um território ou uma terra natal determinada e que

compartilham uma língua e uma cultura diferenciada. No entanto, tentar especificá-los não é

tarefa tão simples.

Por isso, esta seção se dividirá em duas subseções. Na primeira a expressão indígena

será desenvolvida analiticamente. Esta abordagem é muito importante porque examinará os

critérios apontados para identificar os povos indígenas, que em muitos casos, devem estar

bem claros para não excluir povos que possuem características merecedoras da proteção

jurídica oferecida aos povos indígenas.

A segunda subseção examinará sob o mesmo grau de consideração, a expressão

povos. A importância deste aprofundamento se dá principalmente para o fim de esclarecer

que um povo não deve corresponder necessariamente a um Estado, e que reconhecer os

povos indígenas como tais, não lhes dá direito de secessão.

60 V. COOK, Amelia; SARKIN, Jeremy. Who Is Indigenous?: indigenous rights globally, in Africa, and

among the San in Botswana. Tulane Journal of International and Comparative Law, v. 18, n. 1, p. 93-130, 2009.

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1.2.1 Por que “indígena”?

O termo índio (ou indígena) é sinônimo de nativo, de originário. Esta expressão tem

origem na época da construção do império europeu e da colonização a partir do séc. XVI,

quando os habitantes nativos das “novas terras” foram chamados de aborígenes ou indígenas.

“Na realidade, o termo indígena se refere em geral aos atuais descendentes dos povos que

habitaram os territórios antes da invasão, territórios que agora estão dominados por outros.”61

No entanto, não é possível restringir o conceito de povos indígenas aos povos

originários dos territórios colonizados pelos países europeus a partir do séc. XVI, pois este

passado histórico não é semelhante ao de diversos povos indígenas da Ásia e da África.

Segundo Martinez Cobo, em seu estudo sobre o problema da discriminação contra

populações indígenas para as Nações Unidas, em 1986, comunidades, povos e nações

indígenas são aquelas que têm uma continuidade histórica62 com as sociedades pré-coloniais

que se desenvolveram em seus territórios, se consideram distintas de outros setores da

sociedade agora prevalentes em seus territórios, ou em parte deles. O autor afirma que

atualmente eles formam setores não dominantes da sociedade e estão determinados a

preservarem, desenvolverem e transmitirem para as futuras gerações seus territórios

ancestrais e sua identidade étnica, como base para a continuação de sua existência como

povo, de acordo com seus padrões culturais, instituições sociais e sistemas legais. Ele

menciona ainda que um indivíduo para ser considerado indígena deve se autoidentificar

como membro do grupo (consciência grupal) e ser reconhecido pelo grupo como tal

(aceitação pelo grupo).63

A definição de Martinez Cobo se fundamenta nas características da

autoidentificação e do conjunto comum de aspirações e reivindicações. Tal definição não é

61 ANAYA, James. Los pueblos indígenas en el derecho internacional. Madrid: Trotta, 2005, p. 24 “En la

actualidade, el término indígena se refiere en general a los actuales descendientes de los pueblos que habitaban los territorios antes de la invasión, territorios ahora dominados por otros.” (tradução nossa)

62 A continuidade histórica, segundo o relator, pode consistir na continuação, por um longo período até o presente, de um ou mais dos seguintes fatores: a) ocupação territorial, b) ancestralidade com os ocupantes originais da terra, c) cultura em geral ou em manifestações específicas, d) língua, e) estar em certas partes do país ou do planeta, f) outros fatores relevantes. COBO, José R. Martínez. Final report of Study of the

Problem of Discrimination Against Indigenous Populations. Third part. E/CN.4/Sub.2/1983/21/Add.). ONU, 1983, p. 50-51, par. 380. Este relatório foi elaborado pelo relator especial da ONU José R. Martinez Cobo, sendo conhecido, inclusive, como “o estudo de Martinez Cobo”, como se vê no sítio da ONU na internet: <http://social.un.org/index/IndigenousPeoples/Library/Mart%C3%ADnezCoboStudy.aspx>. Acesso em: 31 Jan 2012, pelo que optou-se por citar o relator como autor do texto, ao invés da ONU.

63 Ibid., par. 375 e 379.

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sobre identificar quais grupos deveriam ou devem ser considerados indígenas, mas sobre

entender quais grupos compartilham características e interesses em comum com aqueles que

se autointitulam indígenas.64

O passado colonial não deve ser conditio sine qua non para a caracterização de um

povo como indígena. Povo indígena tem conotações e significados muito mais amplos do

que a questão de quem “veio primeiro”. Atualmente é uma expressão e um movimento

global de luta por direitos e justiça para aqueles grupos que foram deixados à margem do

desenvolvimento e que são percebidos negativamente pelos atuais paradigmas dominantes de

desenvolvimento, cujas culturas e modos de vida estão sujeitos à discriminação e desprezo e

cuja própria existência está sob risco de extinção. 65

Tampouco se pode afirmar que todos os povos indígenas constituem setores não

dominantes da sociedade. Na Bolívia, por exemplo, os Quechua e outros povos indígenas

constituem de 51 a 71% da população. Os Fijianos são aproximadamente 51% da população

de Fiji e o povo Inuit constitui mais de 80% da população da Groelândia. 66

Na esfera jurídica brasileira encontra-se referência legal a uma definição de índio e de

comunidade indígena na Lei n.º 6.001/73, o Estatuto do Índio:

Art. 3º, I – Índio ou Silvícola – É todo indivíduo de origem e ascendência pré-colombiana que se identifica e é identificado como pertencente a um grupo étnico cujas características culturais o distinguem da sociedade nacional; II – Comunidade Indígena ou Grupo Tribal – É um conjunto de famílias ou comunidades índias, quer vivendo em estado de completo isolamento em relação aos outros setores da comunhão nacional, quer em contatos intermitentes ou permanentes, sem contudo estarem neles integrados. 67

Apesar de estar contido em uma legislação parcialmente não recepcionada pela

Constituição Federal de 1988, este ainda é o único dispositivo que tenta fazer tal definição.

Nas palavras de Manuela Carneiro da Cunha, “estas definições pecam pela lógica e

antropologicamente [...]; misturam critérios heterogêneos e se prestam a ser mal

64 ANAYA, James. International human rights and indigenous peoples. New York, Aspen Publishers, 2009,

p. 28. 65 Ibid., p. 33. V. BOWEN, John R. Should we have a universal concept of 'indigenous peoples' rights'?:

ethnicity and essentialism in the twenty-first century. Anthropology Today, v. 16, n. 4, p. 12-16, 2000. 66 CORNTASSEL, Jeff J. Who is indigenous? ‘Peoplehood’ and ethnonationalist approaches to rearticulating

indigenous identity. Nationalism and Ethnic Politics, v. 9, n. 1, 2003, p. 89. 67 BRASIL. Lei n.º 6.001, de 19 de dezembro de 1973. Estatuto do Índio. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6001.htm>. Acesso em: 22 Fev 2010.

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interpretadas”68. A autora explica que a origem e a ascendência pré-colombiana não devem

ser entendidas como um critério biológico ou definidor de uma raça, já que a própria

existência de raças humanas é contestada. Também não deve ser entendida no sentido de

genealogia, pois esta só pode ser provada em um pequeno número de gerações. Elas devem

ser entendidas como a consciência de um vínculo histórico com comunidades pré-

colombianas, que é transmitida dentro do grupo. O critério cultural deve ser interpretado de

forma a excluir o entendimento de que a cultura é uma característica primária e de que deve

ser obrigatoriamente a cultura ancestral. Em primeiro lugar porque a cultura é produto do

grupo e não o inverso, e em segundo por que a cultura é um processo dinâmico, tendo em

vista interações com outros grupos, adaptações sociais e ecológicas etc. “Em suma, traços

culturais poderão variar no tempo e no espaço, como de fato variam, sem que isso afete a

identidade do grupo”.69

O importante é que os povos indígenas possuem características culturais distintas

que os diferenciam da maioria da sociedade em que vivem. 70

Mas a definição legal do Estatuto do Índio traz um importante aspecto, a identificação

por si e pelos outros, correto do ponto de vista antropológico, e que engloba os outros dois

aspectos (origem pré-colombiana e identidade cultural). Isso significa que apenas a

comunidade indígena pode decidir quem são seus membros. Manuela Carneiro da Cunha

afirma, nesse sentido, que “Comunidades indígenas são aquelas que se consideram

segmentos distintos da sociedade nacional em virtude da consciência de sua continuidade

histórica com sociedades pré-colombianas.”71

Também se deve ter cuidado ao vincular os povos indígenas com as sociedades pré-

colombianas, já que este é um contexto unicamente americano e os povos indígenas existem

por todo o globo. Por isso, a Convenção n.º 169 da OIT se refere também aos povos tribais,

para não deixar qualquer dúvida quanto ao seu alcance.

Por outro lado, a expressão silvícola designa aquele que vive ou nasce na selva e é

totalmente inadequada porque o que faz de alguém indígena não é o fato de viver ou ter

68 CUNHA, Manuela Carneiro da. Os direitos do índio: ensaios e documentos. São Paulo: Brasiliense, 1987,

p. 23. 69 Ibid., p. 23-25. 70 GRUPO de Trabalho sobre Populações Indígenas. Note by the Chairperson-Rapporteur of the Working

Group on Indigenous populations, Ms. Erica-Irene Daes, on criteria which might be applied when

considering the concept of indigenous peoples. E/CN.4/Sub.2/AC.4/1995/3. ONU, 1995, p. 6. 71 CUNHA, op. cit., p. 25 e 26.

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nascido na "selva",72 mas o vínculo histórico com um povo que se autoidentifica no âmbito

social, político e cultural. Ademais, a população indígena urbana no Brasil em 2010 era de

mais de 315 mil indivíduos. 73

A Convenção nº 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais define povos

indígenas em seu artigo 1.1.b:

[...] povos em países independentes, considerados indígenas pelo fato de descenderem de populações que habitavam o país ou uma região geográfica pertencente ao país na época da conquista ou da colonização ou do estabelecimento das atuais fronteiras estatais e que, seja qual for sua situação jurídica, conservam todas as suas próprias instituições sociais, econômicas, culturais e políticas, ou parte delas. 74

O texto da referida Convenção também dispõe que: “A consciência de sua

identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental para

determinar os grupos aos que se aplicam as disposições da presente Convenção.” 75

Em suma estabelece os seguintes critérios: a) estar em país independente; b)

descender de povos que habitavam o local antes da colonização ou estabelecimento das

fronteiras atuais; c) possuir instituições sociais, econômicas, culturais ou políticas próprias;

e, d) autoidentificação.

A Declaração sobre Povos Indígenas da ONU76 é silente quanto a uma definição.

Entretanto, James Anaya afirma que a Declaração não define, mas deixa claro quais são as

características dos grupos a que é dirigida e as questões que são comuns a eles. A Declaração

tem uma orientação programática e tende a tornar a questão da definição em algo mais do

que descrever quais grupos, num sentido prático, são relevantes para o foco programático, e

vice-versa, algo mais do que uma questão de primeiro descrever abstratamente quais grupos

se qualificam como indígenas, e implicitamente quais não, e em seguida atribuir-lhes

direitos.77 No seu preâmbulo, especialmente nos parágrafos 5, 6, 7 e 11, fica explícito que a

72 POVOS Indígenas do Brasil: quem são. Instituto Socioambiental (ISA). Disponível em:

<http://Pib.Socioambiental.Org/Pt/C/No-Brasil-Atual/Quem-Sao/Povos-Indigenas>. Acesso em: 12 Out 2010.

73 INSTITUTO Brasileiro de Geografia e Estatística. Os indígenas no Censo Demográfico 2010..., p. 12. 74 BRASIL. Decreto n.º 5051, de 19 de abril de 2004. Convenção n.º 169 da Organização Internacional do

Trabalho – OIT sobre os povos indígenas e tribais. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5051.htm>. Acesso em: 22 Fev 2010, artigo 1.2.

75 Ibid., artigo 1.1.b. 76 ORGANIZAÇÃO das Nações Unidas. Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos

Indígenas... 77 ANAYA, James. International human rights and indigenous peoples…, p. 29.

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Declaração é dirigida à proteção de grupos que possuem algumas características como

organização, instituições políticas e econômicas, cultura, crenças, costumes e língua que se

diferem das características da sociedade dominante, além de compartilharem uma

experiência comum de marginalização e discriminação profundamente enraizada em eventos

históricos.

Um conceito estrito de povo indígena não é necessário nem desejável, assim como

um conceito muito amplo e flexível. É muito mais relevante e construtivo tentar delinear as

principais características, que podem ajudar a identificar quem são os povos indígenas,

especialmente na África e na Ásia.

James Anaya aponta como principais características dos povos que se identificam

como indígenas78a) culturas e modos de vida consideravelmente diferenciados da sociedade

dominante; b) cultura sob ameaça, em alguns casos, de extinção; c) sobrevivência deste

modo de vida diferenciado depende do acesso e direito às suas terras tradicionais e seus

recursos naturais; d) sofrem discriminação; e) frequentemente vivem em lugares de difícil

acesso, geograficamente isoladas; f) sofrem marginalização política e social; g) estão sujeitos

à dominação e à exploração dentro da política e estrutura econômica nacional, que refletem

os interesses e atividades da maioria. 79

Para Laura Westra, o papel vital do meio ambiente, apenas presente em grupos que

dependem da terra, agregado à localização (longe dos centros de poder), à miséria e à falta de

poder, torna imperativa a extensão da proteção que eles precisam, sem se prender à

semântica para distinguir povos locais de outros povos indígenas. Dessa forma, para Laura

Westra, a expressão grupos ou povos indígenas deve ser interpretada para incluir todas as

minorias locais que dependam da terra, que não fizeram parte da conquista imperial, como os

Inuit do Ártico, os aborígenes da Austrália, os Maori da Nova Zelândia e povos tribais

africanos, pois eles convergem num único conceito que é a sua conexão com a terra.80

A autora lista algumas características que unificam todos estes povos e possibilita

que sejam cobertos pelo conceito de povos indígenas: a) eles se veem como povos distintos;

78 Vários povos da África que não sofreram um passado de colonização européia se identificaram como povos

indígenas e aderiram ao movimento internacional pelos direitos dos povos indígenas. Por isso, a argumentação de Anaya para indicar características que superem o critério histórico-colonial que o termo indígena invocava.

79 ANAYA, James. International human rights and indigenous peoples…, p. 34. 80 WESTRA, Laura. Environmental justice and the rights of indigenous peoples. London: Earthscan, 2008, p.

20-21.

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40

b) habitam seus territórios desde tempos imemoriais; c) possuem uma língua, uma religião e

uma cultura comuns; d) se veem como curadores do meio ambiente; e) se definem, pelo

menos em parte, por meio do habitat que os provê; f) possuem formas tribais ou

comunitárias de relações sociais e de gestão dos recursos; g) possuem identidade relacionada

com suas terras; e h) veem o ecossistema que habitam ou habitaram tradicionalmente com

significado religioso.81

A relação harmoniosa com o meio natural é tão importante quanto a

autoidentificação para delinear uma definição de povos indígenas.

O relatório da Comissão de Direitos Humanos na ONU sobre o relacionamento dos

povos indígenas com a terra sintetizou alguns elementos que são únicos para os povos

indígenas: a) profundo relacionamento existente com suas terras, territórios e recursos; b)

este relacionamento tem várias dimensões e responsabilidades sociais, culturais, espirituais,

econômicas e políticas; c) a dimensão coletiva deste relacionamento é significante; e, d) o

aspecto intergeracional deste relacionamento é também crucial para a identidade,

sobrevivência e viabilidade cultural dos povos indígenas.82

Um dos problemas apontados pelo relatório em relação a este relacionamento é a

falha dos Estados em proteger a integridade ambiental das terras e territórios indígenas. Isto

envolve tanto problemas ambientais globais como iniciativas de desenvolvimento nacional.83

O relacionamento profundo e altamente complexo e sensível que os povos indígenas têm

com suas terras e recursos deve ser considerado na proteção da integridade do seu meio

ambiente da degradação.

Jeff J. Corntassel propôs uma definição de povos indígenas que inclui quatro

conceitos entrelaçados:

a) Povos que acreditam que são ancestralmente aparentados e se identificam, com

base em histórias orais ou escritas, como descendentes dos habitantes originários das

suas terras natais ancestrais;

b) Povos que podem, mas não necessariamente, ter instituições políticas, econômicas

e sociais, formais e/ou informais, que tendem a ser baseadas na comunidade e

81 WESTRA, Laura. Environmental justice and the rights of indigenous peoples…, p. 20. 82 ORGANIZAÇÃO das Nações Unidas. Indigenous peoples and their relationship to land: Final working

paper. Relatora: Erica-Irena A. Daes. E/CN.4/Sub.2/2001/21. ONU, 2001, p. 9. 83 Ibid., p. 25.

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refletem seus ciclos cerimonias distintos, redes de parentesco e tradições culturais em

constante desenvolvimento;

c) Povos que falam (ou falaram) uma língua indígena, geralmente distinta da língua

da sociedade dominante – mesmo onde a língua indígena não é falada, dialetos

distintos ou expressões exclusivamente indígenas podem perdurar como uma forma

de identidade indígena;

d) Povos que se distinguem da sociedade dominante e/ou outros grupos culturais,

enquanto mantem uma relação muito próxima com suas terras natais e sítios sagrados,

que podem estar ameaçados pela contínua invasão militar, econômica ou política, ou

podem ser lugares onde os povos indígenas foram anteriormente expulsos, enquanto

buscam realçar sua autonomia política, econômica e cultural. 84

O autor assinala que as características apontadas podem não ser cumulativas, pelo que

podem ser incluídos os povos indígenas que representam parcela majoritária da sociedade em

que estão inseridos. Ele explica que manteve a questão da não dominação, porque isto é um

dado comum à grande maioria dos povos indígenas no mundo. 85

A busca por um conceito global não permite que vários critérios sejam considerados

determinantes, como é caso do passado colonial e da ascendência pré-colombiana. Assim, as

principais características globais dos povos indígenas são resumidas em: a)

autoidentificação; b) distintividade cultural e social; c) profundo relacionamento com suas

terras e seus recursos naturais; e d) continuidade histórica.

Tão importante quanto identificar as principais características que permitem a

identificação como indígena, é demonstrar porque os povos indígenas devem ser

considerados povos, sendo este o objeto da próxima subseção.

84 CORNTASSEL, Jeff J. Who is indigenous? ‘Peoplehood’..., p. 91-93. Neste artigo, o autor analisa e critica

diversos conceitos/critérios apresentados por estudiosos, instituições intergovernamentais e instituições indígenas, para ao final sugerir estes critérios de definição de povos indígenas.

85 Ibid., p. 93.

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1.2.2 Por que “povo”?

As normas brasileiras não empregam a expressão povos indígenas. Elas não seguem a

tendência internacional que teve início na década de 80, quando a Convenção n.º 107 da OIT

foi substituída pela Convenção n.º 169.

À época a substituição foi controversa, pois vários países-membros afirmaram que da

utilização do conceito de povo indígena poderia derivar, no Direito Internacional Público, o

direito à autodeterminação e o direito à secessão. O problema permanece porque não se sabe

exatamente o que o direito à autodeterminação implica. Muitos receiam, que o uso da

expressão povos abriria a porta para a autodeterminação no sentido de autorizar a secessão

dos Estados existentes. 86

Por outro lado, a nova terminologia expressava a renúncia aos objetivos visados até

então pelas políticas nacionais de integração forçada e o direito ao respeito de suas próprias

culturas. A expressão povo indígena denota com muito mais força a ideia da própria

identidade. 87

No âmbito da Organização Internacional do Trabalho – OIT, a expressão foi

utilizada, mesmo com a resistência de alguns países, pelo fato da Convenção n.º 169

expressamente prever que a utilização não deveria ser interpretada como se tivesse algum

efeito referente aos direitos que, conforme o Direito Internacional Público, poderiam ser

relacionadas com aquela expressão.

A Constituição brasileira usa indistintamente os termos índios, populações indígenas,

comunidades indígenas e grupos indígenas nos diversos dispositivos que tutelam direitos dos

povos indígenas.88

Entretanto, no direito brasileiro estas expressões não devem ser interpretadas de

forma a lhes dar significados distintos, pois elas possuem o mesmo sentido. Com o

reconhecimento do multiculturalismo pela Constituição Federal de 1988, e por instrumentos

internacionais, tais nomenclaturas devem ser lidas como povos indígenas.

86 V. ANAYA, James. Los pueblos indígenas en el derecho internacional..., p. 96-102 e 141-149. 87 KAYSER, Hartmut-Emanuel. Os direitos dos povos indígenas do Brasil: desenvolvimento histórico e

estágio atual. Tradução de Maria da Glória Lacerda Rurack e Klaus-Peter Rurack. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2010, p. 39.

88 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em: 15 Abr 2010, artigos 20, XI; 22, XIV; 129, V; 210, §2º; 231 e 232.

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As pessoas indígenas possuem direitos individuais como qualquer outra pessoa, na

ordem jurídica interna e internacional, e como povos possuem direitos de natureza coletiva

que delineiam principalmente o direito à diferença, à identidade, à autodeterminação e à

integridade cultural.

A expressão populações denota transitoriedade e contingencialidade, enquanto povo

se refere a segmentos nacionais com identidade e organizações próprias, cosmovisão

específica e relação especial com a terra que habitam.89

A expressão povos indígenas expressa com muito mais força a ideia de identidade

própria e culturalmente diferenciada e deve estar decisivamente vinculada ao critério de

autodefinição.

No Brasil, o Projeto de Lei n.º 2057/9190 trata de sociedades indígenas, demonstrando

ainda o temor pelo uso da expressão povos. Da mesma forma, o Supremo Tribunal Federal

interpreta a Constituição fomentando o controverso pavor pela autodeterminação dos povos

indígenas como afronta à soberania nacional, conforme pode ser aferido do destaque do

acórdão que segue reproduzido:

[...] O DESABONO CONSTITUCIONAL AOS VOCÁBULOS "POVO", "PAÍS", "TERRITÓRIO", "PÁTRIA" OU "NAÇÃO" INDÍGENA. [...] A Constituição teve o cuidado de não falar em territórios indígenas, mas, tão-só, em "terras indígenas". A traduzir que os "grupos", "organizações", "populações" ou "comunidades" indígenas não constituem pessoa federada. Não formam circunscrição ou instância espacial que se orne de dimensão política. Daí não se reconhecer a qualquer das organizações sociais indígenas, ao conjunto delas, ou à sua base peculiarmente antropológica a dimensão de instância transnacional. Pelo que nenhuma das comunidades indígenas brasileiras detém estatura normativa para comparecer perante a Ordem Jurídica Internacional como "Nação", "País", "Pátria", "território nacional" ou "povo" independente. Sendo de fácil percepção que todas as vezes em que a Constituição de 1988 tratou de "nacionalidade" e dos demais vocábulos aspeados (País, Pátria, território nacional e povo) foi para se referir ao Brasil por inteiro.

91

Em 1989, ocorreu o encontro internacional de especialistas da UNESCO para um

estudo do conceito de direito dos povos. Eles enumeraram diversas características não

89 CONVENÇÃO nº 169 sobre povos indígenas e tribais em países independentes e Resolução referente à

ação da OIT sobre povos indígenas e tribais. Organização Internacional do Trabalho. 2a ed. Brasília: OIT, 2005, p. 11.

90 BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n.º 2057/1991. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=17569>. Acesso em 03 Dez 2011. V. ALBUQUERQUE, Antonio Armando Uilian do Lago. Multiculturalismo e direito à

autodeterminação dos povos indígenas. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2008, p. 232-240. 91 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário. RE n. 183.188-0/MS. Relator: Ministro

Ayres Brito. Brasília, 14 de fevereiro de 1997. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 18/10/2010.

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cumulativas que descrevem povo, que podem ser alocadas ao lado do critério da

autoidentificação dos povos indígenas, a saber:

a) grupo de indivíduos que compartilham uma tradição histórica, identidade racial ou

étnica, homogeneidade cultural, unidade lingüística, afinidade ideológica ou religiosa,

conexão territorial ou vida econômica;

b) número de indivíduos suficiente para não caracterizar mera associação isolada de

pessoas;

c) grupo se identifica e quer ser identificado como um povo ou tem consciência de sê-

lo; e/ou;

d) o grupo dispõe de instituições ou outros meios para expressar as características

comuns e o desejo pela identidade.92

Várias destas características descritivas merecem ser rebatidas pelas críticas já citadas

em relação ao termo indígena. No entanto, vale lembrar que especificam tão-somente povos

e que as características de identidade cultural, vínculo histórico e autoidentificação não são

critérios exclusivos para a identificação dos povos indígenas, o que ressalta a importância da

cultura como elemento intrínseco à definição de povo.

Jeff J. Corntassel afirma que o que dá “status de povo” ou peoplehood aos povos

indígenas é a intercomunicação dos quatro fatores: língua, história sagrada, território e ciclo

cerimonial, descritos na seção anterior. 93

Os povos indígenas são indígenas porque têm vínculos ancestrais com as terras em

que vivem, ou nas que desejam viver, de maneira muito mais profunda que outros setores da

população que vivem nessas mesmas terras ou em suas imediações. São povos porque

constituem comunidades diferenciadas com uma continuidade de existência e identidade das

comunidades, tribos ou nações do seu passado ancestral94, compartilhando cultura e

instituições.

92 UNESCO. Final report and recommendations of International meeting of experts on further study of the

concept of the rights of peoples. SHS-89/CONF. 602/7. Paris: UNESCO, 1990. p. 7. V. também KAYSER, Hartmut-Emanuel. Os direitos dos povos indígenas do Brasil..., p. 39-41.

93 V. CORNTASSEL, Jeff J. Who is indigenous? ‘Peoplehood’..., p. 91-93; STRATON, Billy J.; WASHBURN, Frances. The Peoplehood Matrix: a new theory for american indian literature. Wicazo Sa

Review, v. 23, n. 1, p. 51-72, 2008. 94 ANAYA, James. Los pueblos indígenas en el derecho internacional…, p. 24.

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Manter identidades pressupõe uma noção de dignidade em um sentido mais alargado.

Esse sentido não propõe graus diferenciados de proteção, mas um pluralismo de valores e de

conteúdos para definir o âmbito de proteção do que significa dignidade. Estes valores e

conteúdos necessários para a definição do âmbito de proteção da dignidade podem ser

buscados em diversas experiências jurídicas e o diálogo entre elas fornece referências para a

construção da noção de direitos ambientais dos povos indígenas, como uma faceta primordial

da proteção da dignidade e da identidade destes povos.

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2 O DIÁLOGO ENTRE EXPERIÊNCIAS JURÍDICAS COMO FONTE DE

REFERÊNCIAS PARA A CONSTRUÇÃO DA NOÇÃO DE DIREITOS

AMBIENTAIS DOS POVOS INDÍGENAS

Os direitos dos povos indígenas são intimamente entrelaçados e todos são

indispensáveis para a sua própria existência, como será visto ainda neste capítulo. No

entanto, a construção deste conceito engloba referências que extrapolam o direito estatal

brasileiro, o que torna a interação e a comunicação entre as experiências jurídicas externas e

brasileiras extremamente necessárias nesta tarefa.

Este diálogo é necessário, igualmente, porque, muitas vezes, os instrumentos

apontados para a defesa de uma esfera de proteção são úteis para a defesa de todo o conjunto

complexo de interesses dos povos indígenas. A realidade prática mostra que alguns

elementos são mais facilmente protegidos pela ordem jurídica. Destarte, muitas vezes os

direitos territoriais ou o argumento da integridade cultural se mostram fortes para a defesa

dos direitos indígenas e acabam por proteger os interesses sobre a integridade ecológica das

terras ou a autodeterminação, o que corrobora para a proteção dos direitos dos povos

indígenas. Tal constatação pode ser verificada na ordem jurídica brasileira, na ordem jurídica

internacional e na ordem jurídica de diversos Estados. Destarte, o diálogo entre as

experiências jurídicas se mostra necessário também para a defesa dos direitos dos povos

indígenas dentro do direito brasileiro.

Primeiramente, será abordada a abertura do constitucionalismo às experiências

externas, que se dá principalmente porque todas as Constituições têm um acervo comum de

interesses, dos quais se destacam os direitos fundamentais. Isto permite que as ordens

constitucionais dialoguem, consubstanciando o chamado transconstitucionalismo. 95

No entanto, esses assuntos comuns não são interesses apenas dos Estados nacionais,

senão também da sociedade internacional.96 Em razão disso, as possibilidades de diálogo das

Constituições estatais se ampliam, podendo ser realizado com a ordem internacional dos

direitos humanos.

95 V. NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009. 96 Sociedade internacional é formada por Estados e organizações internacionais intergovernamentais, e é

disciplinada pelo direito internacional público, com reflexos voltados também para a atuação dos indivíduos no plano internacional. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de direito internacional público. 4. ed. rev. atual. ampl. São Paulo, RT, 2010, p. 40. V. FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 7-8.

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No entanto, é importante ressaltar que o diálogo deve se pautar também em alguns

limites, como os princípios pro homine97 e da vedação do retrocesso dos direitos humanos e

fundamentais98.

Das possíveis interações com ordens jurídicas estatais e com a ordem internacional de

direitos humanos, se extraem algumas referências importantíssimas para este estudo: os

direitos de bem viver e o direito a um projeto de vida. Estes conceitos foram reconhecidos e

construídos por ordens constitucionais e internacional de direitos humanos, respectivamente,

e permeiam a construção da definição dos direitos ambientais dos povos indígenas.

2.1 Constitucionalismo global e a abertura a experiências jurídicas externas

As referências necessárias para a construção de uma definição de direitos indígenas,

seus conteúdos e sua concretização transbordam a experiência jurídica brasileira. É por isto

que é imperioso construir uma noção de constitucionalismo estatal aberto a outras

experiências jurídicas, pois as experiências externas acabam formando um arcabouço sólido

que pode servir de referência à construção teórica e aos tribunais brasileiros no deslinde das

causas envolvendo interesses indígenas.

Em razão disso, serão analisados nesta seção os conceitos de constitucionalismo

global e de transconstitucionalismo.

Com a mitigação do conceito de Estado-nação99, surgiu a discussão sobre a

constitucionalização do direito internacional100, além de várias propostas sobre a superação

97 O princípio pro homine é um critério hermenêutico que informa todo o direito dos direitos humanos, em

virtude do qual se deve aplicar a norma mais ampla ou a interpretação mais extensiva quando se trata de reconhecer os direitos protegidos e, inversamente, a norma ou a interpretação mais restrita quando se trata de estabelecer restrições permanentes sobre o exercício dos direitos ou sua suspensão extraordinária. Este princípio coincide com a característica fundamental do direito dos direitos humanos, ou seja, estar sempre em favor do homem. PINTO, Mônica. El principio pro homine. Criterios de hermenéutica y pautas para la regulación de los derechos humanos. Disponível em: <http://luismezquita.com/Minugua%20%28E%29/Docs%20AGeneral/Derechos%20Humanos/CDROM/cd-rom/data/300/332J.HTM>. Acesso em: 31 Jan 2012. V. HENDERSON, Humberto. Los tratados internacionales de derechos humanos en el ordem interno: la importancia del principio pro homine. Revista

IIDH, v. 39, p. 71-99, 2004; VILARREAL, Álvaro Francisco Amaya. El principio pro homine: interpretación extensiva vs. el consentimiento del Estado. Internacional Law: Revista colombiana de derecho internacional, n. 5, p. 337-380, 2005.

98 O princípio da vedação ao retrocesso significa que ao Estado é vedado adotar políticas e medidas, ou derrogar direitos, que mudem para pior a situação alcançada pelos direitos fundamentais naquele momento. V. por todos: SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 433-457.

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das fronteiras nacionais, sempre tendo em vista refazer a ordem mundial em moldes

constitucionais. Destas aspirações de ordenação constitucional global emerge a ideia de

constitucionalismo global, ou seja, de que os ideais normativos do constitucionalismo, como

a proteção dos direitos humanos e o estado de direito, são projetados sobre o mundo, regendo

o nascente regime global de ordenamento constitucional. 101

2.1.1 Constitucionalismo global

A noção de constitucionalismo global102 surge no contexto em que os direitos

fundamentais e humanos emergem como elo civilizacional da atualidade, fazendo com que

as ordens jurídicas internacionais, globais e nacionais formem uma comunidade global de

99 V. SCHAPIRO, Robert A. In the twilight of the nation-state: subnational constitutions in the new world

order. Rutgers Law Journal, v. 39, p. 801-835, 2008; GIUMELLI, Riccardo. Beyond the local and the

global: the end of the nation-state and the new global identity, 2010. Disponível em: <http://ssrn.com/abstract=1692146>. Acesso em: 14 Jan 2012; ENGLE, Eric Allen. The failure of the nation state and the new international economic order: multiple converging crises present opportunity to elaborate a new jus gentium. St. Thomas Law Review, v. 16, 187-205, 2003; KHAN, Ali. The extinction of nation-states. American University Journal of. International Law and Policy, v. 7, p. 197-234, 1992; TANZI, Vito. The demise of nation-state? Fundo Monetário Internacional, 1998; e CLASTRES, Pierre. A sociedade

contra o Estado. Tradução de Theo Santiago. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1978, p. 132-152. 100 V. WALKER, Neil. Making a World of Difference? Habermas, Cosmopolitanism and the

Constitutionalization of International Law. European University Institute Working Paper Law No. 2005/17. Disponível em: <http://ssrn.com/abstract=891036>. Acesso em: 14 Jan 2012; KADELBACH, Stefan; KLEINLEIN, Thomas. International law – a constitution for mankind? an attempt at a re-appraisal with an analysis of constitutional principles. German Yearbook of International Law, v. 50, 2007. Também disponível em: < http://publikationen.ub.uni-frankfurt.de/frontdoor/index/index/docId/7786>. Acesso em: 14 Jan 2012; DOYLE, Michael W. A Global Constitution? The Struggle over the UN Charter. NYU Symposium, 2010. Disponível em: < http://www.iilj.org/courses/documents/HC2010Sept22.Doyle.pdf>. Acesso em: 14 Jan 2012.

101 KUO, Ming-Sung. The end of constitutionalism as we know it? Boundaries and the state of global constitutional (dis)ordering. Transnational Legal Theory, v. 1, n. 3, 2010. Disponível em: <http://ssrn.com/abstract=1653277>. Acesso em 13 Jan 2012, p. 2-3. V. GARDBAUM, Stephen. Human rights as international constitutional rights. The European Journal of International Law, v. 19, n. 4, p. 749-768, 2008; e PETERS, Anne. The merits of global constitutionalism. Indiana Journal of Global Legal

Studies, v. 16, n.2, p. 397-411, 2009. 102 V. SCHWÖBEL, Christine E. J. Global constitutionalism in international legal perspective. Leiden;

Boston: Martinus Nijhoff Publishers, 2011; FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo moderno...; FERRAJOLI, Luigi. Más allá de la soberanía y la ciudadanía: un constitucionalismo global. Isonomia, v. 1, n. 9, p. 173-184, 1998; CLEVE, Clemerson Merlin. Direito constitucional, novos paradigmas, constituição global e processos de integração. Revista Crítica Jurídica, n. 25, p. 305-316, 2006; LAW, David S.; VERSTEEG, Mila. The evolution and the ideology of global constitutionalism. California Law Review, v. 99, p. 1163-1253, 2011; PETERS, Anne. The merits of global constitutionalism… (na introdução do estudo, a autora diferencia constitucionalismo de constitucionalização global); YOUNG, Ernest A. The trouble with global constitutionalism. Texas International Law Journal, v. 38, p. 527-545, 2003; KUO, Ming-Sung. The end of constitutionalism as we know it?…

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valores constitucionais, fundada na dimensão universalista do direito constitucional, pois a

base e o fundamento de todas as constituições modernas são inegavelmente os mesmos.

Por exemplo, há sete mecanismos comumente associados à constitucionalização: a)

alocação horizontal da autoridade (separação das funções executiva, legislativa e judiciária),

b) alocação vertical da autoridade (relação entre os componentes mais e menos centralizados

de governo), c) supremacia constitucional (Constituição é hierarquicamente superior às

demais normas), d) estabilidade (modificações constitucionais são mais difíceis de serem

realizadas do que em outras normas), e) direitos fundamentais, f) revisão (controle de

constitucionalidade), e g) responsabilidade (prestação de contas) ou democracia (pela

existência dos mecanismos anteriores). 103

Paulo Ferreira da Cunha afirma que o “constitucionalismo global funda-se sobre

valores e princípios constitucionais gerais, também eles globalizados. Um dos primeiros

exemplos [...] [é] a busca da felicidade (pursuit of happiness) já presente na declaração de

independência dos EUA”.104 Este novo constitucionalismo que começa a ser reconhecido é

global e mundializado, porque se não limita aos países singularmente. “É certo que não

recusa as suas raízes. Mas retoma-as a um nível superior, como que numa espiral.”105

Diversos interesses contribuem para o surgimento de um constitucionalismo

globalizado. Constituições não são apenas provisões de identidade e aspirações nacionais que

servem para diferenciar os países uns dos outros. Elas também são escritas para satisfazer e

influenciar diversas questões: desde setores internos cujo apoio é necessário para garantir a

estabilidade do regime até investidores estrangeiros que procuram garantias de que seus

investimentos estão seguros de expropriação e a aprovação de outros países, o que é crucial

para assegurar reconhecimento diplomático e segurança nacional. Assim como outras formas

de direito, o direito constitucional é um instrumento político empregado pelos Estados para

alcançar determinados objetivos, como a competição com outros países por capital e mão de

103 DUNOFF, Jeffrey L.; TRACHTMAN, Joel P. A functional approach to global constitutionalism. Harvard

Public Law Working Paper No. 08-57, 2009. Disponível em: <http://ssrn.com/abstract=1311983>. Acesso em: 14 Jan 2012, p. 16-19.

104 CUNHA, Paulo Ferreira da. Do constitucionalismo global. Revista Brasileira de Direito Constitucional, v. 1, n. 15, 2010, p. 252. No preâmbulo da Declaração de Independência dos Estados Unidos, de 1776, consta: “We hold these truths to be self-evident, that all men are created equal, that they are endowed, by their Creator, with certain unaliable Rights, that among these are Life, Liberty and Pursuit of Happiness”, que em tradução nossa significa: “Consideramos que estas verdades são evidentes, que todos os homens são criados iguais, que são dotados por seu Criador de certos Direitos inalienáveis, dentre os quais estão a Vida, a Liberdade e a Busca da Felicidade”.

105 Ibid., p. 251.

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obra especializada na economia global ou sinalizar conformidade às normas e padrões da

comunidade internacional. Por isso, não é de surpreender que a busca por objetivos comuns

levem os países a adotar políticas similares, incluindo Constituições similares. 106

David Law e Mila Versteeg apontam quatro razões teóricas para se alcançar pelo

menos algum grau de convergência constitucional nas Constituições escritas, o que é uma

característica primordial do constitucionalismo global. A primeira é a aprendizagem

constitucional. Segundo os autores, o sucesso alimenta a imitação. No processo de

aprendizagem com a experiência alheia, os países copiam as inovações constitucionais e

legais dos rivais mais bem sucedidos na esperança de alcançar sucesso similar, e quanto mais

este tipo de imitação ocorre, mais similares as Constituições se tornam. A segunda razão para

a convergência constitucional é a competição constitucional que ocorre entre os países para

atrair investimentos e mão de obra especializada107. A globalização aumentou a mobilidade

de capital financeiro e humano, cruciais para o crescimento econômico. Uma das vantagens

competitivas é o oferecimento de garantias constitucionais aos direitos de propriedade

(capital financeiro) e aos direitos humanos e liberdades civis (capital humano). O terceiro

fator é a conformidade constitucional, o que significa que os países sofrem pressão para de

adequarem às normas constitucionais globais para ganhar aceitação e apoio da comunidade

internacional. Em regra, os países dominantes são conhecidos por impor um modelo

constitucional aos países mais fracos ou exigem este modelo como condição para o

estabelecimento de relações normais. Esta pressão é reforçada pela existência de instituições

internacionais como o ONU. Em troca da conformidade constitucional os países gozam da

condição de membro da comunidade internacional e de todos os benefícios tangíveis e

intangíveis a ela inerentes. Entre estes benefícios estão: privilégios diplomáticos e

embaixadas, aceitação política por outros governos e autoridade nacional um pouco maior.

Por fim, a quarta razão para a convergência constitucional apontada pelos autores são as

redes constitucionais. O constitucionalismo é caracterizado por uma rede de efeitos que

premiam os países que adotam o mesmo regime constitucional já adotado por outros.

Conforme a rede aumenta, a utilidade da rede aumenta por si. Os efeitos são, além de

econômicos, relacionados com a paz e a segurança militar; eles ultrapassam as relações

106 LAW, David S.; VERSTEEG, Mila. The evolution…, p. 1172. 107 V. LAW, David S. Globalization and the future of constitutional rights. Northwestern University Law

Review, v. 102, n. 3, p. 1277-1350, 2008. David Law neste artigo enumera cinco hipóteses de competição constitucional e detalha as hipóteses de competição por capital financeiro e humano.

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comerciais próximas das democracias e chegam ao fato de que as democracias liberais são

mais tendentes a declarar guerra a outros tipos de regimes.108 Enfim, os quatro fatores, ou

razões, enumerados apontam para uma convergência constitucional centrada, muitas vezes,

nos direitos fundamentais, que podem ser garantidos por outros instrumentos constitucionais

como a separação dos poderes, independência do judiciário etc.

Mais do que a convergência dos textos constitucionais, há também outros fatores que

subsidiam o constitucionalismo global. Anne-Marie Slaughter defende a existência de uma

comunidade jurídica global formada por juízes de cortes constitucionais. Os juízes das cortes

constitucionais do mundo agora se encontram regularmente em conferências acadêmicas e

outras conferências, e alguns trabalham com outros juízes em órgãos transnacionais. A

autora sugere que a interação pessoal encoraja os juízes a considerar e adotar soluções para

problemas que eles verificam serem comuns nos sistemas constitucionais. O nível mais

informal de contato judicial transnacional é o conhecimento das decisões estrangeiras e

internacionais e uma correspondente disposição de citá-las. 109 Esta rede transnacional é

muito mais facilitada com a globalização da informação, principalmente através das atuais

tecnologias de informação e comunicação.

Há ainda a influência de Organizações Não Governamentais (ONGs) transnacionais

focadas em questões constitucionais, especialmente em relação aos direitos humanos, que

fornecem outra referência institucional direcionada à globalização do direito constitucional.

Estas ONGs intervêm em disputas constitucionais domésticas em vários países e estimulam

um entendimento universalista dos direitos humanos. Estas ONGs tendem a apresentar uma

perspectiva unificada em favor dos direitos humanos e representam uma pressão significativa

nas cortes domésticas. Não há como não mencionar, igualmente, a pressão advinda dos

órgãos de tratados transnacionais, cujas decisões possuem implicações constitucionais

domésticas, seja por força de lei ou através de mecanismos mais difusos, como efeitos na

reputação. O exemplo mais claro é a Corte Europeia de Direitos Humanos. As cortes

nacionais europeias encontram na revisão de suas posições, em conformidade com a

108 V. LAW, David S.; VERSTEEG, Mila. The evolution…, p. 1173-1187. 109 SLAUGHTER, Anne-Marie. The real new world order. Foreign Affairs, v. 76, n. 5, 1997, p. 186.

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jurisprudência do órgão transnacional, como forma de evitar anulações, constrangimento e

talvez sanções financeiras contra o governo doméstico. 110

Em razão de todas estas pressões internas e externas citadas para que os Estados

adequem as constituições domésticas, Mark Tushnet afirma que a globalização do direito

constitucional é inevitável. 111

Ao analisar a evolução global do constitucionalismo desde a Segunda Guerra

Mundial, David Law e Mila Versteeg constataram três tendências, todas relacionadas com os

direitos humanos e fundamentais: garantia de um número crescente de direitos, aumento de

revisões constitucionais e a existência de direitos genéricos. Tornou-se prática usual as

constituições incluírem disposições explícitas de direitos, tipicamente em forma de bill of

rights112 e o número de direitos ali incluídos segue aumentando. Esta tendência inclui não

apenas os direitos fundamentais de primeira geração (direitos civis e políticos), mas também

os direitos de segunda (econômicos e sociais) e de terceira gerações (coletivos).113 Todos

eles seguem a mesma tendência. Os autores também constataram uma tendência de aumento

do número de constituições que preveem algum mecanismo de revisão do texto

constitucional. Em 1946, o número de países com esta sorte de disposição correspondia a

25% dos países; em 2006, a proporção aumentou para 82%. A terceira tendência apontada

pelos autores é a existência de direitos constitucionais genéricos. Estes seriam tão ubíquos ou

onipresentes que podem ser facilmente descritos como genéricos. Tal tipo de direitos pode

ser encontrado na grande maioria das constituições pelo mundo e fazem parte da prática

global de constitucionalismo. Como exemplos estão: liberdade religiosa, liberdade de

expressão, direito à propriedade privada e igualdade. Estes direitos estão em 97% de todas as

constituições existentes em 2006. Além destes, o direito à privacidade, proibição de prisão

110 TUSHNET, Mark. The inevitable globalization of constitutional law. Virginia Journal of International Law,

v. 49, n. 4, p. 989-990. 111 V. Id. 112 Carta, declaração ou lista de direitos. 113 A divisão dos direitos humanos em gerações ou dimensões de direitos é muito simplista e por isso criticada

pela doutrina, pois o que ocorre não é uma sucessão de direitos, mas expansão, cumulação e fortalecimento dos direitos humanos consagrados. Independentemente da forma como são classificados, revelam uma natureza complementar, já que interagem uns com os outros, ou seja, admitir a existência de gerações não implica negar a indivisibilidade entre todos os direitos humanos para o fim de assegurar um grau mínimo de dignidade para a existência humana, duradoura e permanente. V. CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Direitos humanos e meio ambiente: paralelo dos sistemas de proteção internacional. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1993, p. 191-192 e 222.

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arbitrária, direito de reunião e associação e direitos das mulheres estão presentes em 90% das

constituições.114

Portanto, os direitos humanos estão no centro do debate sobre o constitucionalismo

global. Stephen Gardbaum ao questionar se o direito internacional dos direitos humanos é

constitucionalizado, afirma que há três similaridades importantes entre as declarações de

direitos humanos internacionais e nacionais, e apenas duas diferenças. 115

As semelhanças são: a) possuem a mesma função básica de estabelecer limites ao que

os governos podem fazer com as pessoas em seus territórios; b) foram criadas após 1945,

como resposta às violações de direitos fundamentais antes e durante a Segunda Guerra

Mundial, e; c) o conteúdo e estruturas gerais, pois, em regra, os direitos contidos nos três

instrumentos de direitos humanos gerais116 são amplamente similares em substância aos

direitos contidos na maioria das constituições modernas, sendo que ambas as declarações de

direitos compartilham uma estrutura de direitos comum, caracterizada pela limitação

justificada da maioria dos direitos fundamentais quando necessário para promover objetivos

de políticas públicas importantes, mas conflitantes com estes direitos. São exemplos de tais

limitações: a suspensão de alguns direitos em situações de emergência nacional e disposições

gerais ou especiais de limitação.117

As diferenças entre as declarações de direitos humanos internacionais e nacionais são:

os métodos de aplicação ou execução e o fato de que as declarações internacionais de direitos

humanos geralmente têm status constitucional, ou quase constitucional, nos sistemas

jurídicos nacionais. Na verdade esta última questão acaba por diminuir a diferença entre as

declarações de direitos humanos internacionais e nacionais, pois as internacionais, de alguma

forma, já se tornaram constitucionais. Isto reafirma a constitucionalização do direito

internacional dos direitos humanos. 118

Assim, verifica-se que há um crescente acervo comum e universal no

constitucionalismo mundializado, o que significa dizer que o diálogo entre as constituições

de Estados diferentes, no contexto democrático, é possível, porque elas têm o mesmo ponto

114 LAW, David S.; VERSTEEG, Mila. The evolution…, p. 1194-1200. 115 GARDBAUM, Stephen. Human rights as international constitutional rights…, p. 750-752. 116 Declaração Universal dos Direitos Humanos, Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e

Culturais, e Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos. 117 GARDBAUM, op. cit., p. 750-751. 118 Ibid., p. 751-752.

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de partida, têm uma base compartilhada, falam a mesma “linguagem”. É a partir dessa noção

que é possível pensar em transconstitucionalismo.

2.1.2 O transconstitucionalismo como veículo de comunicação entre as experiências

jurídicas

O transconstitucionalismo implica o reconhecimento de que as diversas ordens

jurídicas, entrelaçadas na solução de um problema constitucional que lhes seja

concomitantemente relevante, a saber, de direitos fundamentais ou humanos e de

organização legítima do poder, devem buscar formas transversais de articulação para a

solução do problema, cada uma delas observando a outra para compreender seus próprios

limites e possibilidades para solucioná-lo.119

Marcelo Neves explica que não existem limites territoriais para os problemas

relacionados aos direitos fundamentais e por isso apenas o direito estatal é insuficiente para

resolvê-los:

Com o tempo, o incremento das relações transterritoriais com implicações normativas fundamentais levou à necessidade de abertura do constitucionalismo para além do Estado. Os problemas dos direitos fundamentais ou dos direitos humanos ultrapassam fronteiras, de tal maneira que o direito constitucional estatal passou a ser uma instituição limitada para enfrentar esses problemas.120

O autor continua afirmando que a “fragmentação dos problemas constitucionais

permaneceria desestruturada se cada ordem jurídica pretendesse enfrentá-los isoladamente a

cada caso. Impõe-se, pois, um ‘diálogo’ ou uma ‘conversação’ transconstitucional.”121

Aqui, a ordem constitucional é considerada um instrumento aberto capaz de interagir

com a cultura constitucional de outras experiências jurídicas. Nas palavras de Marcelo

Neves:

119 NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo, con especial referencia a la experiencia lationoamericana. In:

BOGDANDY, Armin von; MAC-GREGOR, Eduardo Ferrer; ANTONIAZZI, Mariela Morales (Coords.). La justicia constitucional y su internacionalización: ¿Hacia um ius Constitucionale Commune en America Latina? Tomo II. México: Universidad Autônoma del México, 2010, p. 749.

120 NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo..., p. 120. 121 Ibid., p. 122. Sobre o diálogo das fontes, conceito desenvolvido por Erik Jayme, V. próxima subseção;

JAYME, Erik. Identité culturelle et intégration: Le droit internationale privé postmoderne. Recueil des

Cours de l’ Académie de Droit International de la Haye, v. 251, p. 9-267, 1995; e MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Tratados internacionais de direitos humanos e direito interno. São Paulo: Saraiva, 2010.

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O transconstitucionalismo, como modelo de entrelaçamento que serve à racionalidade transversal entre ordens jurídicas diversas, abre-se a uma pluralidade de perspectivas para a solução de problemas constitucionais, melhor adequando-se às relações entre as ordens jurídicas do sistema jurídico heterárquico da sociedade mundial.122

Marcelo Neves menciona o transconstitucionalismo entre a) o direito estatal e o

direito internacional, b) entre o direito estatal e o direito supranacional, c) entre ordens

jurídicas estatais, d) entre estas e ordens jurídicas transnacionais, e e) entre ordens estatais e

locais extraestatais.123

O diálogo entre o direito estatal e o direito internacional público é cada vez mais

frequente para encontrar soluções úteis para as diversas ordens envolvidas.124 Um dos

exemplos mais expressivos, no Brasil, é o caso da importação de pneus usados discutido no

Supremo Tribunal Federal na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental

(ADPF) n.º 101, envolvendo o direito ao meio ambiente sadio125. No voto da relatora,

ministra Cármen Lúcia, é possível verificar o diálogo com a Organização Mundial do

Comércio (OMC), já que a ministra menciona que o STF deve considerar as obrigações

internacionais assumidas pelo país perante aquele órgão.126

Conforme afirma Danielle Aleixo Reis do Valle Souza: “Houve, nesse caso, portanto,

uma interessante abertura do Judiciário nacional a temas sensíveis da agenda de política

122 NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo..., p. 131. 123 Poder-se-ia sugerir, ainda, o transconstitucionalismo entre a ordem constitucional estatal e ordens

constitucionais subnacionais ou sub-estatais, conceito estudado no âmbito do federalismo. Num avanço sobre a autodeterminação dos povos indígenas, poder-se-ia dizer que a ordem jurídica indígena agora vista como extraestatal se tornaria constitucional subnacional. Sobre o constitucionalismo subnacional V. GARDNER, James A. In Search of Subnational Constitutionalism. European Constitutional Law Review, v. 4, n. 2, p. 325-343, 2008. Também disponível em: <http://ssrn.com/abstract=1017239>. Acesso em: 04 Fev 2012; MORENO, Luis. Subnational constitutionalism in Spain. In: Conference on Subnational Constitutions and Federalism: Design & Reform, 2004, Bellagio. Papers... Camden: Center for State Constitutional Studies, 2004. Disponível em: <http://camlaw.rutgers.edu/statecon/subpapers/moreno.pdf>. Acesso em: 04 Fev 2012; TARR, G. Allan. Subnational constitutions and minority rights: a perspective on Canadian provincial constitutionalism. Rutgers Law Journal, v. 40, n. 4, p. 767-792, 2009.

124 NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo..., p. 132. 125 A ADPF n.º 101/DF foi ajuizada pelo Presidente da República, e discute se decisões judiciais que autorizam

a importação de pneus usados ofendem os preceitos inscritos nos artigos 196 e 225 da CF (direito à saúde e ao meio ambiente sadio e equilibrado). Sustenta o arguente que numerosas decisões judiciais têm sido proferidas em contrariedade a normas infraconstitucionais que vedam a importação de bens de consumo usados, com especial referência aos pneus usados. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Informativo n.º 538. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 20 Jan 2012. V. NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo..., p. 246-249, o primeiro autor a examinar este contexto.

126 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. APDF n.º 101/DF. Relator: Ministra Cármen Lúcia. Voto da Relatora. Brasília, 24 de junho de 2009. Disponível em: <http://www.sbdp.org.br/arquivos/material/683_101%20CL.PDF>. Acesso em: 22 Jan 2012, p. 77.

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externa brasileira e, igualmente, ao reconhecimento da existência de obrigações jurídicas do

Estado frente ao Direito Internacional.” 127

Sobre o transconstitucionalismo entre ordens estatais e locais extraestatais, Marcelo

Neves afirma que as ordens jurídicas locais extraestatais, como as dos povos indígenas, em

regra, não estão em condições de admitir problemas jurídicos constitucionais, pois não se

compatibilizam com o modelo de constitucionalismo do Estado. Ele destaca que ordens deste

tipo exigem mais um transconstitucionalismo unilateral de tolerância e de aprendizado:

“embora haja ordens jurídicas que estão à margem do transconstitucionalismo, esse não pode

excluir o desenvolvimento de institutos que possam levar a uma relação construtiva de

aprendizado e intercâmbio com essas ordens.”128

Na America Latina, em muitos casos, enfrentam-se problemas jurídicos

constitucionais decorrentes do entrelaçamento entre ordens normativas nativas e ordens

constitucionais dos Estados com o modelo de integração constitucional da pluralidade

resultante das particularidades normativas dos povos indígenas.129

Como solução, as Constituições do Peru e da Bolívia, por exemplo, fornecem

critérios de articulação entre o direito estatal e as ordens normativas das comunidades

indígenas. A Constituição boliviana, inclui as comunidades indígenas como unidades

políticas com poder e direito de autonomia e autogoverno, assim como participantes da

formação da vontade estatal130. A Constituição peruana estabelece uma jurisdição indígena,

baseada no direto consuetudinário, sob reserva, porém, de que o exercício da jurisdição não

leve à violação dos direitos fundamentais131.

A principal forma de diálogo132, ou conversação constitucional, ou

transconstitucionalismo, entre as ordens estatais é a citação recíproca, de suas legislações

constitucionais e de sua jurisprudência. Isto é plenamente viável na realidade que é a

127 SOUZA, Danielle Aleixo Reis do Valle. A judicialização da política externa brasileira: a disputa na OMC

sobre os pneus reformados e a arguição de descumprimento de preceito fundamental no STF. 2010. Dissertação (Mestrado em Relações Internacionais)-Universidade de Brasília, Brasília, 2010, p. 78.

128 NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo..., p. 217. 129 Id. 130 BOLIVIA. Constitución de la República de Bolivia..., artigos 2, 30-32, 146, 147, 269.I e 289-296. 131 PERÚ. Constitución Política del Perú. 1993. Disponível em:

<http://www.tc.gob.pe/legconperu/constitucion.html>. Acesso em: 03 Dez 2011, artigo 149. 132 David Law e Wen-Chen Chang consideram que o uso da expressão diálogo como metáfora para a análise

comparativa encontrada em decisões constitucionais é incorreta e melhor se caracterizaria como monólogo. V. LAW, David S.; CHANG, Wen-Chen. The limits of global judicial dialogue. Washington Law Review, v. 86, n. 3, 2011, p. 532.

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globalização, principalmente no que concerne à informação e à comunicação. A rede de

conhecimento global formada por juízes de cortes constitucionais por todo o mundo

possibilita aos juízes considerar e adotar soluções para problemas que eles verificam serem

comuns nos sistemas constitucionais alienígenas.

Decisões proferidas por tribunais estrangeiros não tem qualquer valor oficial. Elas são

significativas por causa de seu poder lógico intrínseco ou porque o tribunal, invocando-as,

procura ganhar legitimidade, vinculando-se a uma comunidade maior de tribunais que

consideram questões semelhantes. Os tribunais nacionais tornaram-se cada vez mais

conscientes de que eles e os seus congéneres estrangeiros muitas vezes são envolvidos em

um esforço comum para delimitar as fronteiras dos direitos individuais em face de um

interesse público aparentemente superior.133

Na América Latina, existe uma tendência de inclusão de referências a textos

constitucionais e precedentes jurisprudenciais de Estados estrangeiros como parte não só da

obter dictum como também da ratio decidendi134. Na experiência brasileira mais recente, o

transconstitucionalismo, vem se desenvolvendo no âmbito do Supremo Tribunal Federal-

STF. Em decisões de grande relevância em matéria de direitos fundamentais, a invocação da

jurisprudência constitucional estrangeira não se apresenta apenas nos votos singulares dos

ministros, mas se expressa nas decisões colegiadas, como parte da ratio decidendi.135 Um

133 SLAUGHTER, Anne-Marie. The real new world order…, p. 187. 134 A ratio decidendi são os fundamentos jurídicos que sustentam a decisão; a opção hermenêutica adotada na

sentença, sem a qual a decisão não teria sido proferida como foi; trata-se da tese jurídica acolhida pelo órgão julgador no caso concreto. Já o obiter dictum (obiter dicta, no plural) consiste nos argumentos que são expostos apenas de passagem na motivação da decisão, consubstanciando juízos acessórios, provisórios, secundários, impressões ou qualquer outro elemento que não tenha influência relevante e substancial para a decisão (“prescindível para o deslinde da controvérsia”), sendo apenas algo que se fez constar “de passagem”, não podendo ser utilizado com força vinculativa por não ter sido determinante para a decisão. DIDIER JR, Fredie. Notas sobre a distinção entre ratio decidendi e obiter dictum. Disponível em: <www.lfg.com.br/material/fredie//int_pcivil_ratio_22_11.pdf>. Acesso em: 20 Jan 2012.

135 NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo, con especial referencia a la experiencia lationoamericana…, p. 725. Outros exemplos são: BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar em Habeas Corpus. HC n.º 109544/BA. Relator: Ministro Celso de Mello. Brasília, 09 de agosto de 2011. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 22 Jan 2012 (e outros relacionados com imputação de crime militar em sentido impróprio a civil); BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus. HC n.º 87585/TO. Relator: Ministro Marco Aurélio. Brasília, 03 de dezembro de 2008. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 22 Jan 2012 (e outros sobre a prisão de depositário infiel); BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo

Regimental em Mandado de Injunção. MI n.º 772/RJ. Relator: Ministro Celso de Mello. Brasília, 24 de outubro de 2007. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 22 Jan 2012 (sobre capacidade postulatória); BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança. MS n.º 26603/DF. Relator: Ministro Celso de Mello. Brasília, 04 de outubro de 2007. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 22 Jan 2012 (e outros sobre infidelidade partidária); BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de

Descumprimento de Preceito Fundamental. APDF n.º 132/RJ. Relator: Ministro Ayres Britto. Brasília, 06

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exemplo é a do Habeas Corpus n.º 82.424/RS, em que o Plenário do STF, em novembro de

2003, caracterizou como crime de racismo136 a publicação de livro com conteúdo

antissemítico (negação da existência do Holocausto).137 Nos votos, os ministros discutiram

sobre precedentes judiciais, dispositivos constitucionais e legislação de Estados estrangeiros,

como Estados Unidos, Inglaterra, França, Espanha e Portugal.

Destarte, a partir das noções de constitucionalismo global e transconstitucionalismo,

verifica-se que é possível que uma ordem constitucional, como a brasileira, possa dialogar

com outras ordens jurídicas na busca da realização dos direitos fundamentais, que é um

objetivo global, neste estudo especificamente dos povos indígenas. Este diálogo poderá

ocorrer com outras ordens estatais, como as latinoamericanas, mais experientes no que diz

respeito aos direitos dos povos indígenas; com os próprios povos indígenas, num diálogo

intercultural138; e, com o direito internacional dos direitos humanos, estudado em maior

profundidade na próxima seção.

2.1.3 A comunicação entre ordens constitucionais e a ordem internacional na proteção

dos direitos humanos

A noção de direitos humanos, individuais ou coletivos, tornou-se o aspecto central do

constitucionalismo globalizado, embora varie a cada país em forma e aplicação. Cerca de

de maio de 2011. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 22 Jan 2012 (união homoafetiva); BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus. HC n.º 108780/PE. Relator: Ministro Gilmar Mendes. Brasília, 11 de outubro de 2011. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 22 Jan 2012 (duração razoável do processo penal); BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus. HC n.º 108563/TO. Relator: Ministro Gilmar Mendes. Brasília, 06 de setembro de 2011. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 22 Jan 2012 (intimação pessoal do condenado da sentença condenatória penal).

136 O crime de racismo é imprescritível. V. BRASIL. Constituição…, artigo 5º, XLII: “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”.

137 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus. HC n.º 82.424/RS. Relator: Ministro Moreira Alves. Redator do Acórdão: Ministro Maurício Corrêa. Brasília, 17 de setembro de 2003. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 20 Jan 2012.

138 Não é objetivo deste estudo verificar como ocorrem os diálogos entre as ordens jurídicas estatais, institucionalizadas e “ocidentais”, e as ordens indígenas, especialmente porque o Estado brasileiro não reconhece ainda a jurisdição indígena plena e tampouco e autonomia e autodeterminação dos povos indígenas. Este seria em elemento importante para a ordem constitucional brasileira dialogar com determinadas ordens constitucionais latino-americanas. Este estudo se limita às relações entre as ordens constitucionais e destas com a ordem internacional de direitos humanos. Um exemplo de como, na atual realidade, pode ocorrer tal diálogo é o trazido por Ottfried Höffe, cujo conceito de direito intercultural, no âmbito do direito penal, engloba o diálogo dos juízes com a cultura diferenciada em que os réus podem estar inseridos, a cada caso. V. HÖFFE, Ottfried. Derecho intercultural..., p. 17-46.

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metade dos Estados-membros das Nações Unidas incorporou o rol de direitos fundamentais

ou alguma forma de direitos individuais ou coletivos em suas constituições. Apesar da

aparente contradição entre a adoção de normas universais e as particularidades da estrutura

institucional de cada país e mesmo dos entendimentos divergentes sobre as obrigações

advindas desses compromissos, são exatamente os modos por meio dos quais o que é

específico é limitado pelo universal que caracterizam o constitucionalismo no início do

século XXI139.

Por isso, a conversação constitucional entre as ordens estatais e a ordem internacional

de direitos humanos flui mais facilmente, seja porque as constituições já incorporam as

normas internacionais de direitos humanos de alguma forma ao ordenamento interno, seja

porque as decisões judiciais as utilizam como referência e fundamentação.

Na esteira globalizante, o constitucionalismo ibero-americano atual, além de

incorporar direitos fundamentais, expressa a tendência de dar aos direitos humanos

estabelecidos em tratados internacionais o mesmo nível dos direitos consagrados

expressamente em suas constituições. Para isso, elas utilizam diversas técnicas, que podem

ser enumeradas em: técnica interpretativa, técnica declarativa, técnica das cláusulas

enunciativas e técnica de incorporação normativa140.

A técnica interpretativa ocorre pela incorporação de um dispositivo constitucional

que indica que os direitos reconhecidos expressamente na Constituição deverão ser

interpretados à luz dos tratados internacionais de direitos humanos141. Um exemplo de uso

desta técnica é a Constituição da Espanha, de 1978, que estatui que as normas relativas aos

direitos fundamentais e às liberdades que a Constituição reconhece serão interpretadas em

conformidade com a Declaração Universal dos Direitos do Homem e os tratados e acordos

internacionais sobre a mesma matéria ratificados pela Espanha142. Outro exemplo é a Carta

do Peru, de 1993, em que os direitos constitucionalmente reconhecidos se interpretam de

139 KLUG, Heinz. Transnational human rights: exploring the persistence and globalization of human rights.

Annual Review of Law and Social Science, n. 1, 2005, p. 96. 140 GOMÉZ, Alberto León. La aplicación de los tratados de derechos humanos por los tribunales nacionales: el

derecho internacional como fuente de derechos y obligaciones en el derecho interno. In: GOMÉZ, Alberto León et al. La aplicación judicial de los tratados internacionales. Bogotá: ILSA, 2006, p. 27-28.

141 Ibid., p. 28. 142 ESPAÑA. Constitución Española. Madrid: Boletin Oficial del Estado, 1978. Disponível em:

<http://www.boe.es/boe/dias/1978/12/29/pdfs/A29313-29424.pdf>. Acesso em: 03 Dez 2011, artigo 10.2: “Las normas relativas a los derechos fundamentales y a las libertades que la Constitución reconoce se interpretarán de conformidade con la Declaración Universal de Derechos Humanos y los tratados y acuerdos internacionales sobre las mismas matérias ratificados por España.”

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conformidade com a Declaração Universal dos Direitos do Homem e com os tratados de

direitos humanos ratificados pelo Peru143.

Na técnica declarativa, a constituição possui declarações que indicam um

reconhecimento explícito dos direitos humanos consagrados em tratados internacionais,

omitindo-se quanto ao nível hierárquico dos tratados e à incorporação destes no direito

interno. Esses dispositivos podem estar no preâmbulo ou no próprio corpo da Constituição. A

Constituição da Guatemala traz tal declaração em seu preâmbulo144. As Constituições do

Chile145 e Nicarágua146 trazem-na no corpo do texto.

As cláusulas enunciativas reconhecem expressamente tais direitos, que não estão

diretamente incorporados no texto da Constituição, em nível constitucional. Na opinião de

Léon Gómez, esta seria a técnica da Constituição do Brasil expressa no artigo 5º, §2º147.

Outro exemplo é a constituição da Colômbia, cujo artigo 94 expressa que a enunciação dos

direitos e garantias contidos na Constituição e em convênios internacionais vigentes não

deve ser entendida como negando outros que, sendo inerentes à pessoa humana, não figurem

143 PERÚ. Constitución… Disposiciones Finales y Transitorias. “Cuarta. Las normas relativas a los derechos y

a las libertades que la Constitución reconoce se interpretan de conformidad con la Declaración Universal de Derechos Humanos y con los tratados y acuerdos internacionales sobre las mismas materias ratificados por el Perú.”

144 GUATEMALA. Constitución Política. 1985 reformada por Acuerdo Legislativo No. 18-93 del 17 de Noviembre de 1993. Disponível em: <http://pdba.georgetown.edu/Constitutions/Guate/guate93.html>. Acesso em: 03 Dez 2011, preámbulo: “Nosotros, los representantes del pueblo de Guatemala, electos libre y democráticamente, reunidos en Asamblea Nacional Constituyente, con el fin de organizar jurídica y políticamente el Estado; [...] decididos a impulsar la plena vigencia de los Derechos Humanos dentro de un orden institucional estable, permanente y popular, donde gobernados y gobernantes procedan con absoluto apego al derecho.”

145 CHILE. Constitución Política de Chile. 1980 reformada até 2005. Disponível em: <http://www.leychile.cl/Navegar?idNorma=242302>. Acesso em: 03 Dez 2011, artigo 5º, segunda parte: “El ejercicio de la soberanía reconoce único como limitación el respeto a los derechos esenciales que emanan de la naturaleza humana. Es deber de los órganos del Estado respetar y promover tales derechos, garantizados por esta Constitución, así como por los tratados internacionales ratificados por Chile y que se encuentren vigentes.”

146 NICARÁGUA. Constitución de Nicarágua. 1987. Disponível em: <http://www.constitution.org/cons/nicaragu.htm>. Acesso em: 03 Dez 2011, artigo 46: “En el territorio nacional toda persona goza de la protección estatal y del reconocimiento de los derechos inherentes a la persona humana, del irrestricto respeto, promoción y protección de los derechos humanos, y de la plena vigencia de los derechos consignados en la Declaración Universal de los Derechos Humanos; en la Declaración Americana de Derechos y Deberes del Hombre, en el Pacto Internacional de Derechos Económicos, Sociales y Culturales, en el Pacto Internacional de Derechos Civiles y Políticos de la Organización de las Naciones Unidas y en la Convención Americana de Derechos Humanos de la Organización de Estados Americanos.”

147 GOMÉZ, Alberto León. La aplicación de los tratados de derechos humanos..., p. 29.

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expressamente neles148. A Constituição da Argentina, de 1994, estabelece que determinados

tratados e instrumentos internacionais têm hierarquia constitucional149.

Na técnica da incorporação normativa, ocorre a conversão do direito internacional em

direito interno. Ainda a Constituição da Colômbia exemplifica essa técnica em seu artigo 53,

que estatui que as convenções internacionais de trabalho devidamente ratificadas fazem parte

da legislação interna. 150

A Constituição do Equador, de 2008, prevê que os tratados internacionais sobre

direitos humanos fazem parte do direito estatal, no entanto, estão em um nível hierárquico

abaixo da Constituição151.

Outros exemplos podem ser mencionados, apesar de não serem específicos sobre

direitos humanos, mas que, por sua generalidade, os englobam: as Constituições da Áustria,

de 1920, em que as regras geralmente conhecidas de direito internacional são consideradas

148 COLOMBIA. Constitución Política de la República de Colômbia. 1991 reformada até 2005. Disponível em:

<http://pdba.georgetown.edu/constitutions/colombia/col91.html>. Acesso em: 03 Dez 2011, artigo 94: “La enunciación de los derechos y garantías contenidos en la Constitución y en los convenios internacionales vigentes, no debe entenderse como negación de otros que, siendo inherentes a la persona humana, no figuren expresamente en ellos.”

149 ARGENTINA. Constitución de la Nación Argentina. 1994. Disponível em: <http://www.senado.gov.ar/web/consnac/consnac.htm>. Acesso em: 03 Dez 2011, artigo 75.22: “La Declaración Americana de los Derechos y Deberes del Hombre; la Declaración Universal de Derechos Humanos; la Convención Americana sobre Derechos Humanos; el Pacto Internacional de Derechos Económicos, Sociales y Culturales; el Pacto Internacional de Derechos Civiles y Políticos y su Protocolo Facultativo; la Convención sobre la Prevención y la Sanción del Delito de Genocidio; la Convención Internacional sobre la Eliminación de todas las Formas de Discriminación Racial; la Convención sobre la Eliminación de todas las Formas de Discriminación contra la Mujer; la Convención contra la Tortura y otros Tratos o Penas Crueles, Inhumanos o Degradantes; la Convención sobre los Derechos del Niño; en las condiciones de su vigencia, tienen jerarquía constitucional, no derogan artículo alguno de la primera parte de esta Constitución y deben entenderse complementarios de los derechos y garantías por ella reconocidos. Sólo podrán ser denunciados, en su caso, por el Poder Ejecutivo nacional, previa aprobación de las dos terceras partes de la totalidad de los miembros de cada Cámara.”

150 COLOMBIA. Constitución Política de la República de Colômbia…, artigo 53.4: “Los convenios internacionales del trabajo debidamente ratificados, hacen parte de la legislación interna.”

151 ECUADOR. Constitución de la República del Ecuador..., artigo 417: “Los tratados internacionales ratificados por el Ecuador se sujetarán a lo establecido en la Constitución. En el caso de los tratados y otros instrumentos internacionales de derechos humanos se aplicarán los principios pro ser humano, de no restricción de derechos, de aplicabilidade directa y de cláusula abierta establecidos en la Constitución.”; artigo 424.2: “La Constitución y los tratados internacionales de derechos humanos ratificados por el Estado que reconozcan derechos más favorables a los contenidos en la Constitución, prevalecerán sobre cualquier otra norma jurídica o acto del poder público.” e artigo 425.1: “El orden jerárquico de aplicación de las normas será el siguiente: La Constitución; los tratados y convenios internacionales; las leyes orgánicas; las leyes ordinarias; las normas regionales y las ordenanzas distritales; los decretos y reglamentos; las ordenanzas; los acuerdos y las resoluciones; y los demás actos y decisiones de los poderes públicos.”

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parte integrante da lei federal152; da Espanha, de 1978, em que os tratados internacionais,

logo que publicados oficialmente naquele país, farão parte da ordem interna espanhola153; do

Peru, de 1993, que estabelece que os tratados celebrados pelo Estado e em vigor formam

parte do direito nacional154, e a de Portugal, de 1976, que expressa que as “normas e os

princípios de direito internacional geral ou comum fazem parte integrante do direito

português” e que as “normas constantes de convenções internacionais regularmente

ratificadas ou aprovadas vigoram na ordem interna após a sua publicação oficial e enquanto

vincularem internacionalmente o Estado Português.” 155

Quanto à Constituição brasileira, poder-se-ia dizer que utiliza a técnica das cláusulas

enunciativas, na opinião de vasta doutrina nacional, que entende que os direitos expressos em

tratados internacionais sobre direitos humanos fazem parte do bloco de constitucionalidade

brasileiro156. Contudo, a posição da jurisprudência brasileira se encaixaria na técnica

declarativa, pois o Supremo Tribunal Federal interpreta o texto do artigo 5, §2º como uma

declaração de reconhecimento dos direitos humanos como norma interna, mas não com nível

constitucional, teriam nível supralegal157.

Entretanto, com a Emenda Constitucional nº 45 de 2004, que inseriu o §3º no artigo

5º, surgiu a possibilidade de os tratados internacionais sobre direitos humanos terem nível

constitucional. O texto prevê que: “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos

humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por

três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas

constitucionais”. 158

152 ÁUSTRIA. Austria Constitution. 1920. Disponível em: <http://www.servat.unibe.ch/icl/au00000_.html>.

Acesso em: 12 Abr 2011, artigo 9.1: “The generally recognized rules of international law are regarded as integral parts of federal law.”

153 ESPAÑA. Constitución Española..., artigo 96.1: “Los tratados internacionales validamente celebrados, una vez publicados oficialmente em España, formarán parte del ordenamiento interno.”

154 PERÚ. Constitución Política del Perú…, artigo 55: “Los tratados celebrados por el Estado y en vigor forman parte del derecho nacional.”

155 PORTUGAL. Constituição da República Portuguesa. 1974 revisada em 2005. Disponível em: <http://www.parlamento.pt/Legislacao/Paginas/ConstituicaoRepublicaPortuguesa.aspx>. Acesso em: 12 Abr 2011, artigos 8.1 e 2.

156 V. por todos SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais..., p. 119-140. 157 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário. RE 349.703/RS. Relator: Ministro Ayres

Brito. Brasília, 03 de dezembro de 2008. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 18/10/2010. 158 BRASIL. Constituição…, artigo 5º, §3º.

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A posição atual159 da Corte Constitucional brasileira é pela supralegalidade dos

tratados internacionais sobre direitos humanos incorporados sem a observância no disposto

no citado §3º. Em 2009, o STF firmou esse entendimento com base no

[...] caráter especial desses diplomas internacionais sobre direitos humanos [que] lhes reserva lugar específico no ordenamento jurídico, estando abaixo da Constituição, porém acima da legislação interna. O status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil torna inaplicável a legislação infraconstitucional com ele conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de adesão160.

No entanto, renomados doutrinadores como Flávia Piovesan, Antônio Augusto

Cançado Trindade e Valerio de Oliveira Mazzuoli, apesar de reconhecerem a importância,

discordam da posição adotada pelo STF: os tratados sobre direitos humanos têm hierarquia

constitucional. Além de apresentarem caráter especial que os distinguem dos tratados

comuns, porque possuem superioridade no plano internacional161 e transcendem os meros

compromissos recíprocos entre Estados, há previsão constitucional que lhes fornece tal

status.

Os tratados internacionais sobre direitos humanos transcendem a normatividade

internacional tradicional, pois seu objetivo é a proteção de valores e de direitos

indispensáveis à existência e ao livre desenvolvimento dos seres humanos,

independentemente de sua nacionalidade, tanto em face de seu Estado quanto em face da

sociedade internacional. Ao assumirem tais compromissos, os Estados se submetem a uma

ordem legal em que se atribuem várias obrigações em relação aos indivíduos. Portanto os

tratados sobre direitos humanos vinculam os Estados e estabelecem garantias aos

indivíduos.162

O fundamento constitucional encontrado no §2º do artigo 5º levou à abertura da

Constituição brasileira para incluir os direitos humanos no bloco de constitucionalidade. O

159 Até 1977, a Suprema Corte entendia que os tratados internacionais tinham o status hierárquico de normas

supralegais. A partir de 1977, houve um retrocesso no entendimento com o julgamento do Recurso Extraordinário n.º 80.004. Naquela decisão, o STF firmou entendimento de que os tratados estão em paridade com a lei federal, o que foi mudado apenas em 2009.

160 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário. RE 349.703/RS... 161 Pois integrariam o jus cogens, direito internacional cogente e inderrogável. PIOVESAN, Flávia. Tratados

internacionais de proteção aos direitos humanos: Jurisprudência do STF. Revista Internacional de Direito e

Cidadania, São Paulo, v. 1, n. 1, 2008, p. 49. V. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Tratados internacionais

de direitos humanos e direito interno..., 2010; CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Direitos

humanos e meio ambiente... 162 PIOVESAN, op. cit., p. 49.

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dispositivo assim prescreve: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não

excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados

internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.163

Há desta forma, dupla fonte normativa de direitos e garantias fundamentais: os

decorrentes do texto constitucional, de forma explícita e implícita, e os reconhecidos em

tratados internacionais. Os direitos decorrentes de tratados não se incorporam ao texto da

Constituição Federal, mas ampliam os direitos e garantias nela consagrados.164 Nesta seara a

doutrina os consagra com o status de normas materialmente constitucionais.165

Em contraponto, os direitos decorrentes dos tratados aprovados por meio do

procedimento previsto do §3º, são normas, além de material, formalmente constitucionais166,

haja vista a equivalência com as Emendas Constitucionais.167

A tentativa da Constituição de resolver as antinomias entre a norma interna e um

tratado internacional sobre direitos humanos, por meio da possibilidade de equivalência com

Emenda Constitucional, traz questões complexas como as colisões entre normas internas e

externas.

As formas clássicas de solução de conflitos (critérios cronológico, de especialidade e

hierárquico) não são suficientes para dirimir as antinomias entre normas tão relevantes,

porque em regra terminam com a exclusão de uma fonte de direito.168 E não raro a norma

excluída é a mais favorável para o mais fraco na relação concreta.

Como ensina Erik Jayme: “A existência de várias fontes individuais, típica dos atuais

sistemas legais, requer a busca de solução de conflitos que possam surgir entre elas. [...] é

preferível um método que tente coordená-las do que uma solução hierárquica.” 169

Assim, o pluralismo de fontes jurídicas pós-moderno faz com que surja a necessidade

de coordenação entre as leis, como exigência para um sistema jurídico eficiente e justo. Essa

163 BRASIL. Constituição…, artigo 5º, §2º. 164 V. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. O controle jurisdicional da convencionalidade das leis. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 2009, p. 23 165 PIOVESAN, Flávia. Tratados internacionais de proteção aos direitos humanos..., p. 62. 166 V. Id. 167 BRASIL. op. cit., artigo 5º, §3º. 168 V. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Tratados internacionais de direitos humanos e direito interno..., p.

130. 169 JAYME, Erik. Identité culturelle et integration…, p. 60-61. Em tradução nossa de: “L'existence de plusiers

sources, caractéristique des systèmes juridiques actuels, necessite la recherche de solution des conflits qui peuvent naître entre elles. [...] une méthode qui tend à coordonner les sources est préférable à une solution hiérarchique.”

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eficiência não se refere apenas ao aspecto hierárquico das normas, mas ao aspecto funcional,

de modo a evitar antinomias, incompatibilidades e incoerências170.

A solução apresentada por Erik Jayme é o diálogo das fontes:

[...] a solução de conflitos de lei surge como resultado do diálogo entre as fontes mais heterogêneas. Os direitos humanos, constituições, convenções internacionais, os sistemas nacionais: todas essas fontes não são mutuamente exclusivas, eles "falam" umas com as outras. Os juízes são necessários para coordenar essas fontes, ouvindo o que elas dizem.

171

Trata-se de um sistema de aplicação simultânea, coerente e coordenada de diversas

fontes normativas em um mesmo sistema jurídico plural, fluido, mutável e complexo172.

Quando duas normas regem o mesmo fato, o juiz não precisa expelir uma dessas

normas, mas pode buscar em cada uma delas os melhores preceitos para fazer justiça ao caso

concreto. Em lugar de excluir do sistema certa norma jurídica, deve-se buscar a convivência

entre essas mesmas normas por meio de um diálogo, ou da harmonização de fontes

heterogêneas que não se excluem mutuamente, mas, ao contrário, falam uma com a outra173.

O exemplo mais famoso de aplicação do diálogo das fontes no direito brasileiro é o

caso da prisão do devedor de alimentos. A Convenção Americana de Direitos Humanos, ou

Pacto de San José da Costa Rica, estabelece no artigo 7.7 que: “Ninguém deve ser detido por

dívidas. Este princípio não limita [...] [a prisão] em virtude de inadimplemento de obrigação

alimentar”.174

Este simples artigo da Convenção Americana oferece duas posições diferentes em

relação ao artigo 5º, LXII, da Constituição brasileira, que prevê que “não haverá prisão civil

por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de

obrigação alimentícia e a do depositário infiel”.175

170 BENJAMIN, Antônio Herman V.; MARQUES, Claudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de

direito do consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 87. 171 JAYME, op. cit., p. 259. Em tradução nossa de: “[...] la solution des conflits de lois émerge comme résultat

d’un dialogue entre les sources le plus hétérogènes. Les droit de l’homme, les constitutions, les conventions internationales, les systèmes nationaux: toutes ces sources ne s’excluent pas mutuellement; elles ‘parlent’ l’une à l’autre. Les juges sont tenus de coordonner ces sources en écoutant ce qu’elles disent.”

172 BENJAMIN; MARQUES; BESSA, op. cit., p. 87. 173 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Tratados internacionais de direitos humanos e direito interno..., p. 132-

133. 174 BRASIL. Decreto n.º 678, de 6 de novembro de 1992. Convenção Americana sobre Direitos Humanos

(Pacto de São José da Costa Rica). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D0678.htm>. Acesso em: 03 Dez 2011, artigo 7.7.

175 BRASIL. Constituição…, artigo 5º, LXII.

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A Convenção Americana é mais favorável ao depositário infiel e menos favorável ao

devedor de alimentos, uma vez que a Constituição Federal impõe uma condição restritiva à

prisão do devedor de obrigação alimentar, a de inadimplemento voluntário e inescusável.

A melhor interpretação a ser feita é pela aplicação da Convenção Americana de

Direitos Humanos ao depositário infiel e a aplicação da norma interna ao devedor de

alimentos, por serem, em cada caso, a norma que melhor se coaduna com a dignidade da

pessoa humana. Não há necessidade de excluir nenhuma delas da aplicação jurídica; há

necessidade apenas de promover-lhes o diálogo, observando assim o princípio pro homine.

O princípio pro homine é uma ferramenta interpretativa advinda da ordem

internacional dos direitos humanos. Ele pode ser visto como princípio geral de direito, como

princípio vinculado às normas interpretativas contidas nos próprios tratados de direitos

humanos176, e também incluído na interpretação de boa-fé dos tratados177, segundo o objeto e

a finalidade dos mesmos.

176 Por exemplo, BRASIL. Decreto n.º 592, de 6 de julho de 1992. Pacto Internacional sobre Direitos Civis e

Políticos. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D0592.htm>. Acesso em: 22 Fev 2010, artigo 5; BRASIL. Decreto n.º 4.377, de 13 de setembro de 2002. Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4377.htm>. Acesso em: 03 Fev 2012, artigo 23; BRASIL. Decreto n.º 99710, de 21 de novembro de 1990. Convenção sobre os Direitos da Criança. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D99710.htm>. Acesso em: 25 Fev 2011, artigo 41; ORGANIZAÇÃO das Nações Unidas. Resolução 43/173 da Assembleia Geral, de 9 de dezembro de 1988. Conjunto de Princípios para a proteção de todas as pessoas sujeitas a qualquer forma de detenção ou prisão. Disponível em: <http://www.mp.ma.gov.br/site/centrosapoio/DirHumanos/conjPrisao.htm>. Acesso em: 03 Fev 2012, princípio 3; BRASIL. Decreto n.º 40, de 15 de fevereiro de 1991. Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D0040.htm>. Acesso em: 03 Fev 2012, artigo 1.2; ORGANIZAÇÃO das Nações Unidas. Declaração sobre a proteção de todas as pessoas contra os

desaparecimentos forçados. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/desaparec/lex71.htm>. Acesso em: 03 Fev 2012, artigo 21; BRASIL. Senado Federal. Decreto Legislativo n.º 661, de 1 de setembro de 2010. Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas Contra o Desaparecimento Forçado. Disponível em: <http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaTextoIntegral.action?id=241749&norma=262644>. Acesso em: 03 Fev 2012, artigo 37; BRASIL. Decreto n.º 678, de 6 de novembro de 1992. Convenção Americana sobre Direitos Humanos..., artigo 29; BRASIL. Senado Federal. Decreto Legislativo n.º 127, de 8 de abril de 2011. Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas. Disponível em: <http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaTextoIntegral.action?id=243367&norma=263546>. Acesso em: 03 Fev 2012, artigo xv; BRASIL. Decreto n.º 3.956, de 8 de outubro de 2001. Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2001/d3956.htm>. Acesso em: 03 Fev 2012, artigo vii.

177 V. BRASIL. Decreto n.º 7.030, de 14 de dezembro de 2009. Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Decreto/D7030.htm>. Acesso em: 03 Fev 2012, artigo 31.1.

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Este princípio se baseia na ideia de que os direitos inerentes à pessoa humana

reconhecidos pela consciência jurídica universal devem ser protegidos contra a ação

ilegítima do Estado, de seus agentes, das suas hierarquias de comando, dos grupos

clandestinos e irregulares a seu serviço, assim como da rede de relações institucionais que

favorecem, permitem ou amparam as violações de direitos em um cenário de impunidade.178

A aplicação do princípio pro homine se manifesta de três maneiras diferentes: a

aplicação da norma mais protetiva, a conservação da norma mais favorável e a interpretação

com sentido tutelar. A aplicação da norma mais protetiva se dá em determinada situação

concreta, em que o juiz ou interprete deve selecionar dentre várias normas concorrentes, a

que contenha proteções melhores ao indivíduo em relação aos seus direitos como pessoa,

independente do seu nível hierárquico na ordem jurídica. A conservação da norma mais

favorável se refere à temporalidade das normas, ou seja, mesmo com norma posterior com

vocação para derrogar norma mais favorável ao ser humano, deve-se conservar a última. A

interpretação com sentido tutelar ocorre quando o juiz se encontra frente a uma norma que

possibilita várias interpretações. Neste caso, o juiz deverá adotar a interpretação que melhor

tutele o indivíduo, ou seja, deve buscar o significado de um preceito ambíguo para lhe dar o

alcance que melhor proteja o ser humano.179

No caso brasileiro sobre a prisão do depositário infiel, a solução apresentada pelo

diálogo das fontes propõe uma aplicação ainda mais extensiva do princípio pro homine, pois

resultou na aplicação da norma mais protetiva no caso do depositário infiel e deixou

precedente interpretativo para a conservação da norma mais favorável no caso do devedor de

alimentos, já que neste último caso a Constituição brasileira é mais favorável por restringir a

prisão ao devedor voluntário e inescusável.

A conversação entre estas experiências jurídicas são facilitadas pela existência de

cláusulas de diálogos, ou vasos comunicantes nos tratados internacionais de direitos

humanos e nos textos constitucionais, que objetivam que se respeite sempre a norma mais

favorável ao homem.180 Alguns exemplos dessas cláusulas de comunicação são o artigo 5º,

§2º da Constituição brasileira, e o artigo 29 da Convenção Americana sobre Direitos

Humanos, que prescreve que nenhuma das suas disposições pode ser interpretada no sentido

178 HENDERSON, Humberto. Los tratados internacionales de derechos humanos…, p. 91. 179 Ibid., p. 93-96. 180 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Tratados internacionais de direitos humanos e direito interno..., p. 116-

119.

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de limitar o gozo e exercício de qualquer direito ou liberdade que venham a ser reconhecidas

pelo direito interno ou por outras convenções.181 Aplicando-se o diálogo das fontes e o

princípio pro homine será possível uma maior proteção dos direitos humanos.

A dupla proteção dos direitos das pessoas, constitucional e internacional, reforça a

interação e o diálogo que devem ter o sistema internacional e o direito interno, quando se

tratar de amparar e proteger um direito assegurado e permitir que ele possa ser vindicado de

forma eficaz.182

O princípio pro homine subsidia não apenas conversação constitucional formal entre

Constituição estatal e tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Estado ou

instrumentos não vinculativos de direitos humanos, como permite um diálogo das cortes

constitucionais estatais com tratados que ainda nem foram ratificados, ou seja, permite um

diálogo com a toda a ordem internacional de direitos humanos. Essa comunicação entre

ordens constitucionais e os direitos humanos é possível não apenas no diálogo entre fontes

positivas, como a Constituição e os tratados internacionais, ratificados ou não, mas também

na busca de referências jurisprudenciais nos órgãos internacionais de direitos humanos, nos

estudos e relatórios dos relatores especiais por estes órgãos designados, consubstanciando, de

fato, num diálogo entre fontes de direito, atingindo, assim, um diálogo entre experiências

jurídicas. É dizer, um diálogo não só entre as fontes de um ordenamento jurídico, sejam elas

fontes estatais ou internacionais, como também entre estas e fontes alienígenas, como a

constituição e a jurisprudência constitucional de outros países, consubstanciando no

transconstitucionalismo.183

Para melhor estabelecer uma noção de direitos ambientais dos povos indígenas na

experiência jurídica constitucional brasileira, é necessário buscar referências em experiências

jurídicas externas, mais especificamente, os direitos de bem viver de experiências

latinoamericanas e o direito a um projeto de vida de experiências do direito internacional dos

direitos humanos.

181 BRASIL. Decreto n.º 678, de 6 de novembro de 1992. Convenção Americana sobre Direitos Humanos...,

artigo 29. Outros exemplos V. nota 168. 182 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Tratados internacionais de direitos humanos e direito interno..., p. 20. 183 NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo..., p. 217.

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69

2.2 Os direitos de bem viver e o direito a um projeto de vida

O diálogo de ordens jurídicas estatais com a ordem internacional em matéria de

proteção dos direitos humanos é mais facilmente verificado, em razão da incorporação dos

direitos humanos nas ordens estatais, pela existência de cláusulas de diálogo nos

instrumentos normativos e pela própria ideia de constitucionalização do direito internacional

de direitos humanos.

Entretanto, não apenas os direitos humanos podem dialogar com ordens jurídicas

estatais. As ordens estatais podem interagir entre si. Em relação aos direitos dos povos

indígenas, destacam-se as constituições latino-americanas, como as do Equador e da

Colômbia, mais abertas à realidade de pluralidade e de diversidade cultural.

Com tais possibilidades de diálogo, buscam-se duas referências importantes para a

construção da noção de direitos ambientais dos povos indígenas: os direitos de bem viver e o

direito a um projeto de vida. Primeiramente esta seção desenvolverá a noção dos direitos de

bem viver no âmbito constitucional latino-americano, para depois analisar a ideia de direito a

um projeto de vida, advindo da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

2.2.1 O novo constitucionalismo latinoamericano e os direitos de bem viver

Boaventura de Souza Santos assinala que está emergindo um novo tipo de

constitucionalismo, um constitucionalismo plurinacional, que começou nos anos 80, quando

algumas Constituições da América Latina assumiram a confirmação constitucional da

plurinacionalidade, pluriculturalidade, plurietnicidade e a interculturalidade dos países. O

autor afirma que este constitucionalismo se distingue do constitucionalismo moderno em

vários aspectos. 184

O principal deles é que há um pluralismo jurídico. Os países não podem ter um

sistema jurídico unitário; ele deve ser unificado, mas não uniforme. Ele defende que deve

haver dois sistemas jurídicos: um nos moldes eurocêntricos e um indígena, mas eles não

devem ser totalmente separados. Devem ser criadas formas de convivência, como, por

exemplo, uma corte constitucional plurinacional, intercultural e pós-colonial. Aqui o autor

184 SANTOS, Boaventura de Sousa. La reinvención del Estado y el Estado plurinacional. Santa Cruz de La

Sierra: CENDA, 2007, p. 22-24.

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destaca um princípio fundamental do constitucionalismo intercultural, cujo objetivo não é

um consenso pela uniformidade, mas um consenso pelo reconhecimento das diferenças: as

diferenças exigem instituições apropriadas e as semelhanças exigem instituições

compartilhadas. Por isso o Estado deverá ter instituições compartilhadas e instituições

apropriadas à identidade cultural das diversas nações dentro do Estado.185

Os países latino-americanos têm um comum um passado colonial violento e um

passado mais recente de alternância entre ditaduras e democracia formal. Segundo Carlos

Frederico Marés de Souza Filho, a

[...] relação destes Estados constituídos no começo do século XIX com os povos originários em seus territórios também são similares, herdaram um passado colonial comum, usaram os povos nas guerras de independência, acreditaram que poderiam integrá-los como cidadãos garantindo-lhes direitos individuais, inclusive de propriedade da terra, desconsiderando seus usos, costumes, tradições, línguas, crenças e territorialidade; quando em conflito, enfrentaram-nos em guerras sórdidas ou repressão direta. Os direitos dos povos indígenas, por serem coletivos, foram omitidos das legislações escritas.

186

As novas Constituições reescritas desde a década de 80 são muito parecidas, embora

possam usar terminologias diferentes. A Constituição paraguaia reconhece a existência dos

povos indígenas e se declara como um país pluricultural e bilíngue, considerando as demais

línguas patrimônio cultural da Nação187. A Constituição colombiana reconhece e protege a

diversidade étnica e cultural188. A do México assume que tem uma composição

pluricultural189. A Constituição do Peru apenas admite como línguas oficiais ao lado do

castelhano, o quechua, o aimara e outras línguas aborígenes190. A Constituição da Argentina

185 SANTOS, Boaventura de Sousa. La reinvención del Estado..., p. 24. 186 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés. Multiculturalismo e Direitos Coletivos. In: SANTOS, Boaventura

de Sousa (Org.). Reconhecer para libertar..., p. 92. 187 PARAGUAY. Constitución de la República de Paraguay. 1992. Disponível em:

<http://www.oas.org/juridico/mla/sp/pry/sp_pry-int-text-const.pdf>. Acesso em: 03 Dez 2011, artigo 140: “El Paraguay es un país pluricultural y bilingüe. Son idiomas oficiales el castellano y el guaraní. La ley establecerá las modalidades de utilización de uno y otro. Las lenguas indígenas, así como las de otras minorías, forman parte del patrimonio cultural de la Nación.”

188 COLOMBIA. Constitución Política de la República de Colômbia…., artigo 7: “El Estado reconoce y protege la diversidad étnica y cultural de la Nación colombiana.”

189 MÉXICO. Constitución Política de los Estados Unidos Mexicanos. 1917 reformada até 2011. Disponível em: <http://www.diputados.gob.mx/LeyesBiblio/pdf/1.pdf>. Acesso em: 03 Dez 2011, artigo 2.2: “La Nación tiene una composición pluricultural sustentada originalmente en sus pueblos indígenas que son aquellos que descienden de poblaciones que habitaban en el territorio actual del país al iniciarse la colonización y que conservan sus propias instituciones sociales, económicas, culturales y políticas, o parte de ellas.”

190 PERÚ. Constitución Política del Perú…, artigo 48: “Son idiomas oficiales el castellano y, en las zonas donde predominen, también lo son el quechua, el aimara y las demás lenguas aborígenes, según la ley.”

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reconhece a preexistência de povos indígenas191. “Outras, embora não usem a palavra

diversidade ou pluralismo, definem os direitos dos povos indígenas e os protegem, como a

brasileira (1988) e a nicaraguense (1987).”192

No entanto o que há de realmente novo no constitucionalismo latino-americano é a

incorporação de noções indígenas de relação harmoniosa com a natureza nas Constituições

do Equador e da Bolívia.

A Constituição do Equador de 2008 inovou no âmbito do direito ambiental quando

consagrou a natureza como sujeito de direito193, rompendo com o paradigma antropocentrista

de proteção ao meio ambiente, alargando a comunidade moral e ampliando os padrões éticos.

Isto de deve à incorporação da noção de buen vivir, ou bem viver. Logo no seu preâmbulo,

destaca a decisão de construir uma nova forma de convivência cidadã, em diversidade e

harmonia com a natureza para alcançar o buen vivir ou sumak kawsay194. A Constituição da

Bolívia de 2009 fala em vivir buen. 195

Como afirma Magdalena León, a noção de bem viver surgiu como um possível

paradigma alternativo de desenvolvimento. As evidências incontestáveis sobre o fenômeno

das mudanças climáticas provocado pelo modelo depredador imposto em quase todo o

planeta motivaram um consenso mundial antes ignorado, sobre a necessidade de transitar

para outros modos de produzir, consumir e organizar a vida. A autora observa que o bem

viver sintetiza visões e práticas ancestrais, debates e propostas atuais, o acumulado de

pensamento crítico e lutas sociais de décadas recentes. Reúne dinâmicas nacionais e

internacionais de resposta ao modelo de desenvolvimento e ao modelo de civilização que

conduziram a sua situação reconhecida como insustentável. Ela afirma que o bem viver,

inseparável da concepção de diversidade, se mostrou útil para responder ao sentido de

urgência da mudança que motivou o processo constituinte no Equador, e para orientar

191 ARGENTINA. Constitución de la Nación Argentina…, artigo 75.17: “Reconocer la preexistencia étnica y

cultural de los pueblos indígenas argentinos.” 192 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés. Multiculturalismo e Direitos Coletivos..., p. 94. 193 V. ACOSTA, Alberto; MARTINEZ, Esperanza (Comp.). Derechos de la naturaleza: el futuro es ahora.

Quito: Abya-Yala: 2009. 194 ECUADOR. Constitución de la República del Ecuador...., preâmbulo: “NOSOTRAS Y NOSOTROS, el

pueblo soberano del Ecuador [...]Decidimos construir una nueva forma de convivencia ciudadana, en diversidad y armonía con la naturaleza, para alcanzar el buen vivir, el sumak kawsay”

195 BOLIVIA. Constitución…. No preâmbulo e artigos 8, 80, 306 e 313.

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transformações estratégicas, que tem um prazo mais amplo para o amadurecimento. Assim, o

bem viver se transforma ao mesmo tempo em objetivo e caminho.196

A Constituição da República do Equador prescreve que: “O regime de

desenvolvimento é o grupo organizado, sustentável e dinâmico dos sistemas econômicos,

políticos, sócio-cultural e ambiental, que garante a realização do bem viver, do sumak

kawsay”197. A Constituição do Estado Plurinacional da Bolívia assenta: “O Estado assume e

promove como princípios éticos-morais da sociedade plural: ama qhilla, ama llulla, ama

suwa (não ser preguiçoso, não mentir ou roubar), suma qamaña (vivir bien), ñandereko (vida

harmoniosa), teko kavi (vida boa), ivi maraei (terra sem mal) e qhapaj ñan (caminho ou vida

nobre)”. 198

A concepção do bem viver se afirma e se difunde atualmente como alternativa ao tipo

de desenvolvimento irresponsável com a humanidade e depredatório com a natureza.

Bartolomé Clavero afirma que não se trata de um slogan, mas de uma visão integradora de

humanidade e natureza com raízes seculares.199

O sumak kawsay em quíchua, ou suma qamaña em aimará, ou teko porã em guarani,

é a concepção andina do bem viver; é um conceito indígena de convivência harmônica com a

natureza decorrente da interação das dimensões material e espiritual, conciliando interesses

privados e comunitários, e que envolve o mundo animal, o vegetal, da terra, das divindades e

das pessoas. Esta interação processa forças e energias de toda a natureza visível e invisível,

do dia e da noite e resultam numa excelência de vida de bem-estar e harmonia ou sofrimento

e mal-estar em pobreza e opressão. O balanceamento destas duas possibilidades é o bem

viver.200

196 LEÓN T., Magdalena. El buen vivir: objetivo y camino para outro modelo. In: BORJA, Raúl. Analisis:

Nueva Constitución. Quito: ILDIS; Revista La Tendencia, 2008, p. 137-138. 197 ECUADOR. Constitución de la República del Ecuador..., artigo 275: “El régimen de desarrollo es el

conjunto organizado, sostenible y dinámico de los sistemas económicos, políticos, socio-culturales y

ambientales, que garantizan la realización del buen vivir, del sumak kawsay.” 198 BOLIVIA. Constitución de la República de Bolivia…., artigo 8.I: “El Estado asume y promueve como

principios ético-morales de la sociedad plural: ama qhilla, ama llulla, ama suwa (no seas flojo, no seas

mentiroso ni seas ladrón), suma qamaña (vivir bien), ñandereko (vida armoniosa), teko kavi (vida buena),

ivi maraei (tierra sin mal) y qhapaj ñan (camino o vida noble)” 199 CLAVERO, Bartolomé. Suma Qamaña, Sumak Kawsay, Buen Vivir. Bartolomé Clavero Ensayos, opiniones

y actualidad. 03 Mar 2010. Disponível em: <http://www.clavero.derechosindigenas.org/?p=5600#more-5600>. Acesso em: 11 Maio 2011.

200 ENTREVISTA com Simón Yampara Huarachi por Moisés Sbardelotto. O bem viver como perspectiva ecobiótica e cosmogônica. Revista do Instituto Humanitas Unisinos, n. 340. Disponível em: <http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=3446&secao=340>. Acesso em: 19 Abr 2011.

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O sumak kawsay advém e se sintoniza com as culturas andinas da América do Sul e

eleva uma cosmovisão de harmonia das comunidades humanas com a natureza, na qual o ser

humano é parte de uma comunidade de pessoas, que por sua vez é um elemento constituinte

da mãe terra, a Patchamama. O sumak kawsay praticado pelas comunidades indígenas se

sustenta num modo de vida em que as pessoas, sendo parte da natureza, vivem sob princípios

antigos e fundamentais que determinam que só se toma da natureza o necessário. 201

Isto porque para a cosmovisão indígena a natureza não é uma coisa ou um objeto, é

um espaço de vida. Deve-se reconhecer, primeiramente, que os indígenas reconhecem uma

simbiose entre o natural e o sobrenatural, que há uma mediação dos espíritos nos fenômenos

da vida diária: a água, a terra, as florestas, e não apenas os animais e as pessoas, têm vida. 202

Bartolomé Clavero afirma que estas expressões indígenas para o bem viver se

vinculam a uma determinada concepção da natureza tão inclusiva que a humanidade

manteria com ela una relação de dependência por filiação203. O autor assinala que as

Constituições da Bolívia e do Equador estão formando um novo paradigma constitucional

que engloba uma categoria normativa nova, o Estado plurinacional já mencionado no

primeiro capítulo. Ele afirma que o bem viver é, então, a concretização da plurinacionalidade

como contribuição específica das nações indígenas a um constitucionalismo mais humano e

mais natural. Entre as Constituições do Equador e da Bolívia, e não exatamente com as

políticas que estão sendo desenvolvidas sob a égide delas, o que se está aumentando

definitivamente é uma nova antropologia para os direitos humanos, uma antropologia de base

mais humana que a que vem representando até agora tanto o direito constitucional como o

direito internacional.204

A Constituição de 2008 do Equador foi delineada pelo objetivo de alcançar o bem

viver. Sob tal paradigma a nova Constituição reconheceu os direitos da natureza e tem como

projeto um novo tipo de desenvolvimento, um novo pacto social.

Nas palavras de Alberto Acosta, o bem viver, como marco constituinte transformador

equatoriano foi construído a partir de diferentes perspectivas, com argumentos novos, 201 SUARÉZ, Diana Quirola. Sumak Kawsay. Hacia um nuevo pacto social en armonía con la naturaleza. In:

ACOSTA, Alberto; MARTINEZ, Esperanza (Comp.). El Buen Vivir: una vía para el desarrollo. Quito: Abya-Yala: 2009, p. 104-105.

202 QUINTERO, Rafael. Las innovaciones conceptuales de la Constitución de 2008 y el Sumak Kawsay. In: ACOSTA, Alberto; MARTINEZ, Esperanza (Comp.). El Buen Vivir…, p. 83-84.

203 V. SALMON, Enrique. Kincentric Ecology: Indigenous Perceptions of the Human-Nature Relationship. Ecological Applications, v. 10, n. 5, p. 1327-1332, 2000.

204 CLAVERO, Bartolomé. Estado plurinacional o bolivariano…, p. 14

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distintos e alternativos, longe daquelas visões tradicionais, dogmáticas e ortodoxas, que

impõem seus critérios. A proposta abre a discussão, não é um ponto de chegada, mas de

partida para um processo de construção de um país sustentável em todos os aspectos.205

Sob tal contexto, o desenvolvimento é um processo dinâmico e permanente para a

consecução do bem viver do todo em comum, segundo seus diversos imaginários coletivos e

individuais, em paz e harmonia com a natureza e entre culturas, de modo que sua existência

se prolongue no tempo.206

O bem viver é construído continuamente por meio de reivindicações que buscam uma

visão que vai além dos estreitos limites quantitativos do economicismo e permite a

implementação de um novo paradigma, cujo objetivo não são os processos de acumulação de

material, mecanicista e interminável de bens, mas que promova uma estratégia econômica

inclusiva, sustentável e democrática, é dizer, que incorpore aos processos de acumulação e

redistribuição os atores que historicamente foram excluídos da lógica do mercado capitalista,

assim como aquelas formas de produção e reprodução que se fundamentam em princípios

diferentes da tal lógica de mercado.207

Ele pressupõe que o exercício dos direitos, das liberdades, capacidades,

potencialidades e oportunidades reais dos indivíduos e das comunidades se ampliem, de

modo que permitam lograr simultaneamente aquilo que as sociedades, os territórios e as

diversas identidades coletivas e cada um – visto como ser humano universal e particular –

valora como objetivo de vida desejável.208

O desenvolvimento, neste contexto, exige uma reinterpretação da relação entre a

natureza e os seres humanos, de forma que as atividades humanas usem os recursos naturais

respeitando a geração e regeneração natural dos mesmos. O bem viver se constrói também a

partir da busca da igualdade e justiça social e a partir do reconhecimento, valorização e

diálogo dos povos e suas culturas, saberes e modos de vida. O bem viver é um conceito

complexo, não linear, historicamente construído e em constante resignificação. Identifica

como finalidades: a satisfação das necessidades, a conquista de uma qualidade de vida e

205 ACOSTA, Alberto. Siempre más democracia, nunca menos: a manera de prólogo. In: ACOSTA, Alberto;

MARTINEZ, Esperanza (Comp.). El Buen Vivir…, p. 19. 206 MELO, Mario. Los derechos de la Naturaleza en la nueva Constitución ecuatoriana. In: ACOSTA, Alberto;

MARTINEZ, Esperanza (Comp.). Derechos de la naturaleza…, p. 54-55. 207 ECUADOR. Plan nacional de desarrollo: plan nacional para o buen vivir 2009-2013. Versión resumida.

Quito: SENPLADES, 2009, p. 6. 208 GALLEGOS, René Ramirez. Igualmente pobres, desigualmente ricos. Quito: PNUD, 2008, p. 387.

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morte digna, o amar e ser amado, o florescimento da saúde para todos, em paz e harmonia

com a natureza, e a prolongação indefinida de culturas, o tempo livre para a contemplação e

a emancipação, e que as liberdades e oportunidades, capacidades e potencialidades se

ampliem e floresçam.209

Diante destas considerações, é possível verificar que o bem viver consiste num

projeto existencial de vida digna, em que o significado de dignidade se aproxima do

significado de felicidade e de vida dentro de uma cultura determinada, diferenciada e em

harmonia com a natureza.

Para alcançar tal objetivo, a Constituição do Equador reconhece os direitos de bem

viver, que incluem água e alimentação; meio ambiente sadio; comunicação livre,

intercultural, includente e participativa e acesso à informação; cultura e ciência, educação,

habitação, saúde, trabalho e seguridade social. 210

Todos estes direitos estão permeados pelo princípio sumak kawsay, estando sempre

entrelaçados com o direito à identidade cultural e ao pertencimento a comunidades culturais.

O artigo 275 da carta equatoriana coloca o bem viver como objetivo a ser alcançado pelo

desenvolvimento, e prescreve que “o bem viver requererá que as pessoas, comunidades,

povos e nacionalidades gozem efetivamente de seus direitos e exerçam responsabilidades sob

o marco da interculturalidade, do respeito às suas diversidades, e da convivência harmônica

com a natureza.”211

2.2.2 Direito a um projeto de vida coletivo

Uma das principais referências para a construção de um conceito de direitos

ambientais dos povos indígenas advindas das experiências jurídicas no âmbito do direito

internacional dos direitos humanos é a noção de direito a um projeto de vida212 coletivo.

209 ECUADOR. Plan nacional de desarrollo…, p. 6. 210 ECUADOR. Constitución de la República del Ecuador..., artigo 12-34. 211 Ibid., artigo 275. 212 Em 1993, o autor peruano Carlos Fernández Sessarego já falava de dano ao projeto de vida, como espécie

do gênero dano à pessoa, como se pode ver em SESSAREGO, Carlos Fernández. Hacia una nueva

sistematizacion del daño a la persona. Lima: Pontificia Universidad Católica del Perú, 1993. Disponível em: <http://dike.pucp.edu.pe/bibliotecadeautor_carlos_fernandez_cesareo/articulos/ba_fs_9.PDF>. Acesso em 15 Ago 2011. O autor afirma que o conceito surgiu no Peru na década de 80 e foi exposto por ele, pela primeira vez com esta nomenclatura, em 1985, no Congresso Internacional sobre o Código Civil peruano e o sistema jurídico latino-americano, como se vê em SESSAREGO, Carlos Fernandez; QUIROS, Carlos Cardenas. Estudio preliminar comparativo de algunos aspectos del código civil peruano de 1984 en relación

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Em diversas ocasiões, a Corte Interamericana de Direitos Humanos reconheceu a

existência de direito a projeto de vida e o direito à reparação por danos a projetos

existenciais213 individuais, familiares e comunitários ou coletivos.

O conceito de dano ao projeto de vida já era discutido no âmbito da doutrina peruana

na década de 80 e no âmbito da jurisprudência argentina e peruana desde 1992. No entanto,

não passou do plano individual. A Corte Interamericana de Direitos Humanos avançou muito

no conceito, aplicando-o ao plano coletivo e até à pós-vida214. Por isso, este estudo entende

que o conceito advém da jurisprudência da Corte, porque interessa aplicá-lo como direito

coletivo dos povos indígenas. 215

No caso Loayza Tamayo contra o Peru, houve o primeiro avanço jurisprudencial a

respeito do tema. María Elena Loayza Tamayo havia sido absolvida do crime de traição

contra a pátria (terrorismo agravado) pela justiça militar e foi processada pelos mesmos fatos

capitulados como terrorismo pela justiça comum, ficando presa de fevereiro de 1993 até

setembro de 1997. A Corte considerou que foram violadas as garantias judiciais reconhecidas

no artigo 8º da Convenção Americana de Direitos Humanos, especificamente relacionados ao

princípio non bis in idem. 216

A sentença de 27 de novembro de 1998 considerou que houve

dano ao projeto de vida da requerente e estabeleceu uma noção conceitual: “o denominado

‘projeto de vida’ atende à realização integral da pessoa afetada, considerando as vocações

con el código civil italiano de 1942. In: Congresso Internacional sobre el Código Civil peruano y el sistema jurídico latinoamericano, 1985, Lima. Anais... Lima: Editorial Cultural Cuzco, 1986, p. 99-157.

213 V. RAMÍREZ, Sergio García. Las reparaciones en la jurisprudência de la Corte Interamericana de Derechos Humanos. Anuario Iberoamericano de Justicia Constitucional, n. 3, p. 329-348, 1999; RODRIGUES, Renata Cenedesi Bom Costa. El nuevo concepto del derecho a la vida en la jurisprudencia de la Corte Interamericana de Derechos Humanos. Foro constitucional ibero-americano, n. 9, p, 74-112, 2005.

214 V. CORTE Interamericana de Direitos Humanos. Caso de la Comunidad Moiwana Vs. Suriname. Sentencia de 15 de junio de 2005. Este contexto foi citado pela primeira vez em: LEITE, José Rubens Morato; AYALA, Patryck de Araújo. Dano ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial. Teoria e prática. 3. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 333-336.

215 V. SESSAREGO, Carlos Fernandez. El “daño al proyecto de vida” en la doctrina y la jurisprudencia contemporâneas. Revista de responsabilidad civil y seguros, n. 10, p. 14-47, 2010. Disponível em: <http://www.parellada.com.ar/bajando.php?id=195_Fernandez_Sessarego_EL_DANO_AL_PROYECTO_DE_VIDA_EN_EL_DERECHO_COMPARADO.doc>. Acesso em: 21 Jan 2012. Neste artigo, o autor enumera diversos casos da jurisprudência argentina, a partir de 1992, e peruana, a partir de 1996. V. HILARIO, Leysser León. Inflando los resarcimientos con automatismos el daño al proyecto de vida y otros

espejismos de nuestra magistratura. Disponível em: <http://works.bepress.com/leysser_leon/7>. Acesso em: 21 Jan 2012.

216 CORTE Interamericana de Direitos Humanos. Caso Loayza Tamayo Vs. Perú. Sentencia de 17 de septiembre de 1997 (Fondo). Serie C No. 33, par. 149.

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aptidões, circunstâncias, potencialidades e aspirações, que lhe permitam fixar razoavelmente

determinadas expectativas e alcançá-las”. 217 De forma mais detalhada, a Corte expõe:

O “projeto de vida” se associa ao conceito de realização pessoal, que se sustenta nas opções que o sujeito pode ter para conduzir sua vida e alcançar o destino que se propõe. A rigor, as opções são a expressão e garantia da liberdade. Dificilmente se poderia dizer que uma pessoa é verdadeiramente livre se carece de opções para encaminhar sua existência e leva-la a sua culminação natural. Estas opções possuem em si mesmas, um alto valor existencial.

218

O juiz Antônio Augusto Cançado Trindade, em seu voto separado no caso Gutiérrez

Soler contra a Colômbia, expôs os fundamentos de sua posição a respeito da noção de

projeto de vida. Ele enfatiza a dimensão temporal do vocábulo projeto e afirma que o

conceito de projeto de vida tem um valor essencialmente existencial, atendo-se à ideia de

realização pessoal integral. É dizer, no marco da transitoriedade da vida, a cada um cabe

escolher as opções que lhe pareçam acertadas, no exercício de plena liberdade pessoal, para

alcançar a realização de seus ideais. 219

Assim, a temporalidade se mostra como um elemento do conceito de projeto de vida.

Nos planos individuais, a temporalidade indica a brevidade da vida e enfatiza a importância

da liberdade para as escolhas pessoais. No entanto, nos planos coletivos, nos projetos de vida

de povos indígenas, a temporalidade indica o oposto. Os povos indígenas não estão fadados

ao desaparecimento, assim verifica-se que seus projetos existenciais são infinitos.

A noção de projeto de vida está intrinsecamente ligada à existência humana digna, em

conformidade com o principio da dignidade da pessoa humana, que goza de indiscutível

primazia nas ordens jurídicas estatais brasileira e internacional. Nas palavras de Samia Roges

Jordy Barbieri:

A dignidade, como valor moral e, também espiritual, seria um mínimo indispensável e invulnerável de valores que devem ser respeitados pela sociedade, tendo o ser humano o direito à autodeterminação e à liberdade na condução da própria vida, devendo ser protegido pelo Direito e suas normas, como medida de reconhecimento da própria essência e da condição de ser humano.

220

217 CORTE Interamericana de Direitos Humanos. Caso Loayza Tamayo vs. Perú. Sentencia de 27 de

noviembre de 1998 (Reparaciones y Costas). Serie C No. 42, par. 147. (tradução nossa) 218 Ibid., par. 148. (tradução nossa) 219 CORTE Interamericana de Direitos Humanos. Caso Gutiérrez Soler vs. Colombia. Sentencia de 12 de

septiembre de 2005. Serie C No. 132. Voto Razonado del juez A.A. Cançado Trindade, par. 3-5. 220 BARBIERI, Samia Roges Jordy. Os direitos constitucionais dos índios e o direito à diferença, face o

princípio da dignidade da pessoa humana. Coimbra: Almedina, 2008, p. 23.

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Antônio A. Cançado Trindade assevera que a busca da realização do projeto de vida

revela, assim, um alto valor existencial, capaz de dar sentido à vida de cada um.221 E,

acrescente-se, à vida coletiva de cada povo. O magistrado esclarece que cabe aos Estados

assegurar a plena vigência dos direitos humanos, que são essenciais para a realização do

projeto de vida.222

Apesar de ser facilmente identificado como um direito individual223, o direito a um

projeto de vida familiar224 já foi reconhecido pela Corte Interamericana de Direitos

Humanos, no caso “Niños de la Calle” (Villagrán Morales y otros) contra a Guatemala.225

O caso se referiu ao assassinato de cinco menores de idade, meninos de rua, restando

um gravemente ferido. Os fatos ocorreram numa época em que existia na Guatemala um

padrão comum de ações à margem da lei, perpetradas por agentes de segurança pública

contra meninos de rua. Esta prática incluía ameaças, prisões, atos cruéis, desumanos e

degradantes, e homicídios como meio de controlar a deliquência e ociosidade juvenil.226

A Corte considerou que houve danos aos projetos de vida das vítimas e estendeu as

indenizações aos familiares.227 Em voto em separado à sentença de mérito, os juízes Antônio

Augusto Cançado Trindade e Abreu Burelli afirmam que as vítimas, por suas condições

anteriores ao crime, já eram privados de criar e desenvolver um projeto de vida e de procurar

um sentido para a própria existência, pois não viviam em condições dignas. Eles afirmam

que uma pessoa que em sua infância vive na humilhação da miséria, sem a menor condição

sequer de criar um projeto de vida, experimenta um estado de padecimento equivalente à

morte espiritual. A morte física que vem na sequência é a culminação da destruição total do

ser humano. Os juízes ressaltam que as queixas atingem não só as vítimas diretas, em corpo e

221 CORTE Interamericana de Direitos Humanos. Caso Gutiérrez Soler vs. Colombia..., par. 3-5. 222 Id. 223 V. CORTE Interamericana de Direitos Humanos. Caso Myrna Mack Chang Vs. Guatemala. Sentencia de 25

de noviembre de 2003 (Fondo, Reparaciones y Costas). Serie C No. 101; e CORTE Interamericana de Direitos Humanos. Caso de los Hermanos Gómez Paquiyauri Vs. Perú. Sentencia de 8 de julio de 2004 (Fondo, Reparaciones y Costas). Serie C No. 110.

224 V. CORTE Interamericana de Direitos Humanos. Caso Cantoral Benavides Vs. Perú. Sentencia de 3 de diciembre de 2001 (Reparaciones y Costas). Serie C No. 88; e CORTE Interamericana de Direitos Humanos. Caso Molina Theissen Vs. Guatemala. Sentencia de 3 de julio de 2004 (Reparaciones y Costas). Serie C No. 108.

225 V. CARMONA RUANO, Miguel. El derecho a la vida en la jurisprudencia de la Corte Interamericana de Derechos Humanos: el caso Villagrán Morales y otros. Jueces para la democracia, n. 42, p. 71-79, 2001.

226 CORTE Interamericana de Direitos Humanos. Caso de los “Niños de la Calle” (Villagrán Morales y otros)

Vs Guatemala. Sentencia de 19 de noviembre 1999 (Fondo). Serie C No. 63, p. 26. 227 CORTE Interamericana de Direitos Humanos. Caso de los “Niños de la Calle” (Villagrán Morales y otros)

Vs Guatemala. Sentencia de 26 de mayo 2001 (Reparaciones y Costas). Serie C No. 77, p. 41.

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espírito, elas se projetam dolorosamente em seus entes queridos, especialmente as mães, que

compadecem também do estado de abandono. Por isso, é possível incluir, em uma noção

ampliada de vítima, as mães dos meninos assassinados. 228

Assim, verifica-se que neste caso houve danos aos projetos de vida familiares das

vítimas. A noção de projeto de vida individual foi ampliada e atingiu a família próxima das

vidas, pois não foram só os projetos de vida individuais das vítimas que foram frustrados,

mas também o projeto de vida da família como um todo. O desaparecimento de um membro

da família frustra o projeto de vida familiar e faz dos familiares mais próximos vítimas.

Igualmente, o direito a um projeto de vida comunitário229 ou coletivo já foi

reconhecido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso Masacre Plan de

Sánchez contra a Guatemala.

Na década de 80, o Exército da Guatemala, com fundamento na segurança nacional,

identificou os membros do povo indígena maia como inimigos internos, por considerar que

constituíam ou podiam constituir a base social da guerrilha. Estes povos foram vítimas de

massacres e operaciones de tierra arrasada que significaram a destruição completa de suas

comunidades, moradias, gado, lavouras e outros elementos de sobrevivência, sua cultura, o

uso de seus próprios símbolos culturais, suas instituições sociais, econômicas e politicas,

seus valores e práticas culturais e religiosas.230

A perita Nieves Gómez Dupuis concluiu que o projeto de vida coletivo daquele povo

foi gravemente danificado pela desarticulação do grupo, pela perda de referências sociais,

pela destruição da cultura, assim como pela eliminação de seus líderes.231

Diante disto, a Corte condenou o Estado a pagar uma indenização pelo dano imaterial

causado, dentre outras causas, pela alteração das condições de existência do povo maia de

Plan Sánchez.232

228 CORTE Interamericana de Direitos Humanos. Caso de los “Niños de la Calle” (Villagrán Morales y otros)

Vs Guatemala. Sentencia de 19 de noviembre 1999 (Fondo). Voto Concurrente Conjunto de los jueces A.A. Cançado Trindade y A. Abreu Burelli. Serie C No. 63. V. GALDÁMEZ ZELADA, Liliana. Protección de la víctima, cuatro criterios de la Corte Interamericana de Derechos Humanos: interpretación evolutiva, ampliación del concepto de víctima, daño al proyecto de vida y reparaciones. Revista Chilena de Derecho, v. 34, n. 3, p. 439-455, 2007.

229 V. MELO, Mario. Últimos avances en la justiciabilidad de los derechos indígenas en el sistema interamericano de derechos humanos. SUR – Revista Internacional de Derechos Humanos, n. 4, p. 31-49, 2006.

230 CORTE Interamericana de Direitos Humanos. Caso Masacre Plan de Sánchez Vs. Guatemala. Sentencia de 29 de abril de 2004 (Fondo). Serie C No. 105, par. 42.7.

231 CORTE Interamericana de Direitos Humanos. Caso Masacre Plan de Sánchez Vs. Guatemala. Sentencia de 19 de noviembre de 2004 (Reparaciones). Serie C No. 116, p. 22.

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O projeto de vida é inseparável do direito à existência e requer para seu

desenvolvimento condições de vida digna, de segurança e de integridade da pessoa

humana.233 As condições de vida digna para a realização do projeto de vida coletivo dos

povos indígenas incluem a qualidade dos recursos naturais existentes nas terras indígenas,

especialmente o acesso à água limpa. 234

É importante verificar que a coexistencialidade é um dos pressupostos existenciais do

projeto de vida, junto com a liberdade e a temporalidade. Apesar do projeto existencial ser

uma decisão livre, ela só pode se realizar com a contribuição dos demais seres no seio da

sociedade. O projeto de vida se formula e decide para a sua realização em sociedade, em

companhia dos outros. A consistência coexistencial do ser humano faz possível sua

realização comunitária.235

Diante disto, é possível verificar a existência de projetos de vida coletivos,

especialmente em relação aos povos indígenas. Os projetos de vida individuais e familiares

são pautados no contexto em que estão inseridos, e a realidade cultural comum faz com que

surja um projeto de vida da comunidade como um todo.

Destarte, no caso dos povos indígenas, o meio ambiente é uma condição de

existência, é um elemento indispensável para o desenvolvimento do projeto de vida

comunitário destes povos, principalmente se considerado o paradigma do bem viver,

consagrado em determinadas constituições latinas. Em razão disto, a noção de projeto de

vida é indispensável para a construção de uma noção de direitos ambientais dos povos

indígenas.

232 CORTE Interamericana de Direitos Humanos. Caso Masacre Plan de Sánchez Vs. Guatemala. Sentencia de

19 de noviembre de 2004 (Reparaciones). Serie C No. 116, par. 83. 233 CORTE Interamericana de Direitos Humanos. Caso de los “Niños de la Calle” (Villagrán Morales y otros)

Vs Guatemala. Sentencia de 19 de noviembre 1999 (Fondo). Voto Concurrente…, p. 8. 234 V. CORTE Interamericana de Direitos Humanos. Caso Comunidad indígena Yakye Axa Vs. Paraguay.

Sentencia de 17 de junio de 2005. Serie C No. 125. 235 SESSAREGO, Carlos Fernández. Deslinde conceptual entre “daño a la persona”, “daño al proyecto de

vida” y “daño moral”. Lima: Pontificia Universidad Católica del Perú, 2003. Disponível em: <http://dike.pucp.edu.pe/bibliotecadeautor_carlos_fernandez_cesareo/articulos/ba_fs_6.PDF>. Acesso em: 15 Ago 2011.

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2.3 A construção de uma noção de direitos ambientais dos povos indígenas

Um direito específico dos povos indígenas não encerra um conceito isolado. Ao

contrário, seu conteúdo permeia e é permeado pelos demais direitos indígenas. Não há como

conceber um povo com autoridade sobre o seu destino (direito à autodeterminação), mas que

não tenha respeitado seu direito à integridade cultural ou à não discriminação, que não tenha

liberdade para exercer seu autogoverno ou mesmo que não possua terras com limites

definidos e protegidos pelos institutos do direito individualístico, que não possa viver

segundo sua cultura e suas normas consuetudinárias ou que não seja consultado em decisões

governamentais que o afete.

Destaque-se que os povos indígenas se diferenciam por possuírem uma cultura

determinada, na maioria das vezes, pelo seu relacionamento harmonioso com a natureza.

Esta seção tem por objetivo construir uma noção de direitos ambientais dos povos

indígenas. Para atingir tal propósito, primeiramente, serão abordados os direitos dos povos

indígenas como um complexo de direitos interdependentes, para depois serem destacados e

analisados os direitos ambientais dos povos indígenas, de forma mais específica, levando em

consideração as referências externas até aqui abordadas neste estudo.

2.3.1 Os direitos dos povos indígenas

Todos os direitos dos povos indígenas são interdependentes, inter-relacionados e

caracterizam o povo como sujeito de direitos para uma existência digna.

Esta interdependência acontece do mesmo modo que com os direitos humanos e suas

“gerações de direitos”236. “Os direitos humanos compõem [...] uma unidade indivisível,

interdependente e inter-relacionada, capaz de conjugar o catálogo de direitos civis e políticos

ao catálogo de direitos sociais, econômicos e culturais”237. Apenas o reconhecimento integral

236 A divisão dos direitos humanos em gerações ou dimensões de direitos é muito simplista e por isso criticada

por renomados doutrinadores, pois o que ocorre não é uma sucessão de direitos, mas expansão, cumulação e fortalecimento dos direitos humanos consagrados. Independentemente da forma como são classificados, revelam uma natureza complementar, já que interagem uns com os outros.

237 PIOVESAN, Flavia. Direitos Sociais: proteção nos sistemas internacional e regional interamericano. Revista

Internacional de Direito e Cidadania, n. 5, 2009, p. 69.

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de todos estes direitos pode assegurar a existência real de cada um deles, já que sem a

efetividade de gozo estes direitos se reduzem a meras categorias formais.238

Desta forma, há que se pensar nos direitos dos povos indígenas como um complexo

jurídico, em que os direitos se interpenetram e interdependem, não podendo ser concebido

um direito sem os outros.

Todos os direitos dos povos indígenas, verificados individualmente, contribuem para

a realização de um direito maior, que é o de realizar um projeto de vida239. No caso dos

povos indígenas, o projeto existencial é muito mais sensível tendo em vista a sua cultura

diferenciada. Em razão disto, apenas a título de exemplo, eles precisam ser vistos como

povos com autonomia e liberdade para determinar seu próprio destino, participar das

decisões estatais que possam afetá-los, precisam ter suas culturas reconhecidas e protegidas,

assim como suas terras.

Estes direitos, individualmente, estão reconhecidos pelas normas estatais e

internacionais, sendo o diálogo entre elas imprescindível para a concretização de um todo.

Identificar quais são os fundamentos, ou seja, os motivos, as causas ou as razões que

justifiquem a existência dos direitos dos povos indígenas é uma tarefa árdua para o

pesquisador da ciência jurídica.

James Anaya entende que todos os direitos dos povos indígenas fluem do direito à

autodeterminação, que se resume no direito de todos os setores da sociedade de controlar seu

próprio destino240. Apesar de muito coerente, este entendimento vai de encontro à noção

exposta neste estudo. Isto porque o direito à autodeterminação é apenas um elemento dentro

de rol imprescindível para a realização do projeto de vida de um povo indígena.

Inicialmente, é possível pensar que os direitos dos povos indígenas se fundamentam

numa espécie de medida de compensação pela discriminação histórica, que seria a

concretização do princípio da igualdade.

Neste sentido, os direitos dos povos indígenas seriam uma modalidade de ação

afirmativa. As ações afirmativas são “estratégias promocionais capazes de estimular a

238 PIOVESAN, Flavia. Direitos Sociais: proteção nos sistemas internacional e regional interamericano..., p.

70. 239 V. Subseção 2.4.1. 240 ANAYA, James. Los pueblos indígenas en el derecho internacional…, p. 137.

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inserção e inclusão de grupos socialmente vulneráveis nos espaços sociais.”241 Nas palavras

de Flávia Piovesan:

Elas constituem medidas especiais e temporárias que, buscando remediar um passado discriminatório, objetivam acelerar o processo com o alcance da igualdade substantiva por parte de grupos vulneráveis, como as minorias étnicas e raciais e as mulheres, entre outros grupos.242

Charles Taylor defende uma política da diferença em oposição à política da igualdade

universal e afirma que um dos erros mais flagrantes da “cegueira” em relação à diferença são

as medidas de discriminação inversa, ou discriminação positiva, que permitem às pessoas

dos grupos antes desfavorecidos obter uma vantagem competitiva por empregos ou vagas nas

universidades. Esta prática tem sido justificada aduzindo que a discriminação histórica criou

um padrão conforme o qual os menos desfavorecidos lutam em posição de desvantagem. A

discriminação positiva é defendida como uma medida temporal que gradualmente nivelará o

contexto e permitirá que as velhas regras “cegas” retornem com todo o seu vigor, de tal

forma que não se discrimine ninguém. Ele assevera que o argumento das ações afirmativas

não justifica algumas medidas que hoje se pede em nome da diferença e cujo objetivo não é o

de retroceder a um espaço social “cego” à diferença, mas pelo contrário, objetivam conservar

e atender às distinções, não apenas agora, mas para sempre. Ele questiona: “Se a identidade é

o que nos preocupa, então o que é mais legítimo que nossa aspiração a nunca perdê-la?”243

É dizer, as medidas de discriminação positiva têm o escopo de alcançar a igualdade

universal. E elas não podem ser igualadas aos direitos dos povos indígenas, pois estes

objetivam exatamente o oposto: reconhecer a diferença coletiva e permitir que os

“diferentes” se mantenham assim, conforme a sua própria vontade.

Não obstante as condições resultantes de um passado de discriminação atribuírem aos

indígenas o direito à compensação e mesmo à reparação244, assim como aos outros grupos

vulneráveis, estas necessidades especiais advindas da própria vulnerabilidade social não são

os fundamentos dos direitos dos povos indígenas. Afinal são medidas temporárias e o destino

das populações indígenas não é a extinção, como era até pouco tempo.

241 PIOVESAN. Flavia. Ações afirmativas da perspectiva dos direitos humanos. Cadernos de Pesquisa, v. 35,

n. 124, jan./abr. 2005, p. 49. 242 Id. 243 TAYLOR, Charles. El multiculturalismo y la politica del reconocimiento…, p. 63-64. 244 V. LENZERINI, Federico (Ed.) Reparations for indigenous peoples: international and comparative

perspectives. Oxford: Oxford, 2008.

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Não é sequer justo enxergar a complexidade dos direitos dos povos indígenas

justificada meramente por uma realidade de pobreza, discriminação e vulnerabilidade social.

De fato, os indivíduos indígenas merecem ser destinatários das políticas de discriminação

positiva.245 No entanto, esta busca pela igualdade individual não fundamenta seus direitos

coletivos.

No Brasil, doutrina e jurisprudência246 tendem a adotar o indigenato como

fundamento dos direitos dos povos indígenas. O indigenato é um instituto jurídico luso-

brasileiro colonial que tem sua primeira expressão legislativa em 1º de Abril de 1680, por

meio de Alvará que firmou “o princípio de que, nas terras outorgadas a particulares, seria

sempre reservado o direito dos índios, primários e naturais senhor delas”.247

Assim, o indigenato representa desde a época colonial, no Brasil, o reconhecimento

do direito originário à terra, anterior à lei e ao Estado, congênito dos índios, derivado de sua

posse imemorial e tradicional. Do que se conclui que o direito à terra, reconhecido desde

sempre, seria o fundamento dos direitos dos povos indígenas.

Com efeito, a terra é um dos elementos mais importantes a serem protegidos pelos

direitos dos povos indígenas, visto como um complexo jurídico indivisível, pois além de ser

substrato material para a sobrevivência material dos povos indígenas, é da relação com a

terra que advém toda a diferenciação que fazem deles povos indígenas. Portanto, a terra, a

patchamama, ou mãe terra, subsidiaria todos os seus direitos.

O projeto de Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas da Organização dos

Estados Americanos – OEA248 considera a história e a relação harmoniosa com a natureza

como fundamentos para os direitos dos povos indígenas. Em seu preâmbulo, leva em conta 245 Não é o escopo deste estudo discutir sobre a efetividade ou não das ações afirmativas, apenas de analisá-las

sob o prisma da possibilidade de serem vistas como fundamento de direitos de povos que sofreram discriminação histórica, mas que são culturalmente diferenciados.

246 Da qual são exemplos: BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Mandado de Segurança. MS n. 3803/AM. Relator: Ministro Adhemar Maciel. Brasília, 09 de outubro de 1996. Disponível em: <www.stj.jus.br>. Acesso em: 24 Fev 2012; BRASIL. Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Apelação Cível. AC n.

199701000641510/MT. Relator: Desembargador Federal I'talo Fioravanti Sabo Mendes. Brasília, 22 de agosto de 2005. Disponível em: <www.trf1.jus.br>. Acesso em: 24 Fev 2012; BRASIL. Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Apelação Cível. AC n. 206519974013901/PA. Relator: Desembargador Federal Carlos Olavo. Brasília, 18 de aabril de 2005. Disponível em: <www.trf1.jus.br>. Acesso em: 24 Fev 2012; entre vários outros.

247 SILVA, José Afonso da. Terras tradicionalmente ocupadas pelos índios. In: SANTILLI, Juliana (Coord.). Os direitos indígenas e a Constituição. Brasília: Núcleos de Direitos Indígenas; Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1993, p. 48.

248 ORGANIZAÇÃO dos Estados Americanos. Projeto de Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos

Indígenas. Disponível em: <http://www.cidh.org/Projeto%20de%20Declaracao.htm>. Acesso em: 09 Dez 2010.

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que os povos indígenas são sociedades originárias que formam parte integral das Américas e

que seus valores e culturas estão vinculados indissociavelmente à identidade dos países que

habitam e da região em seu conjunto, além da relação especial que mantém com suas terras e

recursos naturais que se baseia no respeito e em práticas sustentáveis.

No entanto, apesar de serem argumentos muitos fortes, o direito à terra e a relação

histórica com a terra, não são suficientes para fundamentar os direitos dos povos indígenas,

como um todo. Estes são elementos indispensáveis e subsidiam a conclusão desta seção, mas

por si só não podem ser vistos como fundamento.

A respeito dos direitos territoriais indígenas, Will Kymlicka assinala que eles não se

baseiam em noções de justiça compensatória. O argumento compensatório sustenta que,

considerado que os povos indígenas eram os proprietários legais de seus territórios

tradicionais e que suas terras lhes foram arrebatadas ilegalmente, então se deve lhes

compensar por este erro histórico. O autor afirma que é irrefutável o fato de que os povos

indígenas foram vítimas de injustiças imensas ao serem despossuídos de suas terras, assim

como eles deveriam ser compensados de alguma maneira por isso. Entretanto afirma que é

um erro colocar tanta ênfase nos direitos de propriedade históricos, pois este pressuposto não

explica por si mesmo porque os povos indígenas têm direito a autogovernar-se. Ele explica

que outros grupos foram injustamente privados de suas propriedades e outras oportunidades

econômicas e que eles têm direito a certas formas de justiça compensatória. Mas sofrer

injustiças históricas não lhes dá direitos de autogoverno. Do contrário, devolver todas as

terras tomadas injustamente dos povos indígenas traria injustiças maciças já que os primeiros

colonizadores deixaram milhões de descendentes que estão na única terra que conhecem

como pátria.249

Will Kymlicka defende que os direitos territoriais indígenas são fundamentados pelo

argumento da igualdade. Tal argumento se baseia na ideia de que a acomodação das

diferenças constitui a essência da verdadeira igualdade e para acomodar as diferenças são

necessários direitos específicos em função do grupo.250 Note-se que estes direitos específicos

são diferentes das ações afirmativas descritas acima, baseadas na vulnerabilidade dos grupos.

O critério aqui é a diferença cultural no contexto do multiculturalismo.

249 KYMLICKA, Will. Ciudadanía multicultural…, p. 155-156. 250 Ibid…, p. 152.

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O autor afirma que o objetivo do argumento da igualdade para o direito à terra é

proporcionar o tipo de base territorial necessário para manter a viabilidade das comunidades

minoritárias autogovernadas, e, por conseguinte, impedir prejuízos injustos em relação ao

pertencimento cultural, no presente e no futuro. Assim, os direitos territoriais estariam no

contexto da justiça distributiva251 e não de uma justiça compensatória.252

Portanto, tem-se que o principal fundamento para os direitos diferenciados dos povos

indígenas é o que decorre da sua cultura diferenciada, muitas vezes ligada a uma concepção

de relação íntima e espiritual com a natureza. Rechaça-se a ideia de que os direitos indígenas

são meras compensações pelas injustiças históricas. Mais que isto, os direitos diferenciados

são decorrentes de uma noção de justiça distributiva, em que os bens sociais são distribuídos

conforme o valor social que representa para cada nicho da sociedade.

Assim, os povos indígenas possuem direitos na ordem de terras amplas,

autodeterminação, consulta, participação, informação, proteção cultural e ambiental, não

porque eles foram vítimas de um passado e um presente de massacres e despojamento, mas

porque possuem uma visão de mundo diferenciada, um projeto existencial diferenciado que

muitas vezes engloba manter o bem viver ou vida harmoniosa, e têm o direito de permanecer

assim.

2.3.2 Os direitos ambientais dos povos indígenas

A proteção ao meio ambiente é assunto legislativo relativamente novo, enquanto a

proteção aos povos indígenas remonta à época colonial. O encontro destes dois direitos gera

diversas discussões a respeito da possibilidade de limitações recíprocas, do que é exemplo a

discussão acerca da sobreposição de terras indígenas e unidades de conservação, e a respeito

da noção de direitos ambientais dos povos indígenas.

O Direito Internacional conquistou uma face ambientalista com a emergência

concreta do Direito Internacional do Meio Ambiente após a Conferência das Nações Unidas 251 Michael Walzer desenvolve uma teoria de justiça distributiva em que os princípios da distribuição de bens

sociais consideram as particularidades de cada comunidade, suas características históricas e culturais, ou seja, a distribuição dos bens deve ser pautada no significado social para a comunidade de cada bem distribuído. V. WALZER, Michael. As esferas da justiça: uma defesa do pluralismo e da igualdade. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

252 KYMLICKA, op. cit., p. 157. Sobre a reparação das injustiças históricas sofridas pelos povos indígenas V. SHELTON, Dinah. Reparations for indigenous peoples: the present value of past wrongs. In: LENZERINI, Federico (Ed.) Reparations for indigenous peoples…, p. 47-72.

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sobre o Meio Ambiente Humano de 1972, em Estocolmo253, resultado da percepção das

nações ricas e industrializadas a respeito da degradação ambiental causada por seu modelo de

crescimento econômico, que acarretou progressiva escassez de recursos naturais.

Assim, o direito ambiental surge primeiramente como uma preocupação com a

qualidade de vida diante da escassez de recursos e dos riscos gerados pela degradação

ambiental desenfreada. O reconhecimento do direito ao meio ambiente e em contrapartida ao

desenvolvimento trouxe a lume o grande desafio de compatibilizar ambos os conceitos e

alcançar êxito com um desenvolvimento ambientalmente sadio e sustentável, que promova o

bem-estar humano e a participação, negando concepções meramente economicistas de

desenvolvimento.

Em relação aos povos indígenas, o direito ao meio ambiente se torna ainda mais

sensível, levando em consideração que estes povos, sua cultura e meios de subsistência estão

intimamente ligados as suas terras e recursos naturais. Neste contexto, a degradação

ambiental nas terras indígenas é devastadora. Nos países cujas economias se centram na

exploração de recursos naturais, como o Brasil, em grande parte, a pressão pela exploração

dos recursos ambientais das terras indígenas é muito forte.254

Atualmente, é possível dizer que os povos indígenas gozam de uma ampla proteção

jurídica. Esta proteção advém de todos os instrumentos constitucionais no contexto do

constitucionalismo global - constituições estatais e instrumentos internacionais de direitos

humanos, onde se incluem os instrumentos sobre meio ambiente – e as fontes normativas

nacionais.

253 V. SOARES, Guido Fernando Silva. Direito internacional do meio ambiente: emergência, obrigações e

responsabilidades. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2003, NASCIMENTO E SILVA, Geraldo Eulálio do. Direito

ambiental internacional. 2. ed. Rio de Janeiro: Thex, 2002; e SILVA, Solange Teles da. O direito ambiental

internacional... 254 YAÑEZ, Nancy Adriana. Reconocimientos legislativos de los derechos ambientales indígenas en el ámbito

internacional. In: BERRAONDO, Mikel (coord.). Pueblos indígenas y derechos humanos. Bilbao: Universidad de Deusto, 2006, p. 490. Não é escopo deste estudo discutir se os povos indígenas são ou não “ambientalistas naturais”, tampouco se eles podem ou não causar degradação ambiental. V. CALLICOTT , J. Baird. In defense of the land ethic: essays in environmental philosophy. Albany: State of Universityof New York Press, 1989; CALLICOTT , J. Baird; NELSON, Michael P. American indian environmental

ethics. Basic ethics in action. Prentice Hall, 2004; HARKIN, Michael Eugene; LEWIS, David Rich. Native

americans and the environment: perspectives on the ecological Indian. Lincoln: University of Nebraska Press, 2007; e KRECH III, Shepard. The ecological indian: myth and history. New York: W.W. Norton & Company, 2000.

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Da convergência desses ramos e espécies de direitos, fundamentais e humanos,

indígena e ambiental, é possível propor a existência de direitos ambientais dos povos

indígenas.

À luz de certas referências obtidas por meio do diálogo entre experiências jurídicas, é

possível construir uma noção de direitos ambientais dos povos indígenas.

Primeiramente, a partir de um contexto social multicultural, verifica-se que a

sociedade humana é incrivelmente diversa e dentro desta diversidade alguns grupamentos

humanos se diferenciam pelo seu modo de vida, que é determinado pela sua coesão cultural,

sua espiritualidade e suas instituições. Estas pequenas nações dentro do Estado são diferentes

e é esta diferença que permite ao Estado lhes dar direitos diferenciados. Este é o real

significado do princípio da igualdade, a permissão de ser e permanecer diferente, conforme a

própria vontade.

Dentre estas nações, destacam-se os povos indígenas, que se diferenciam por

possuírem uma cultura determinada, na maioria das vezes, pelo seu relacionamento com a

natureza. Não se quer afirmar aqui que todos os povos indígenas do mundo tenham hábitos

ecologicamente corretos, mesmo porque este é um conceito inerente à cultura ocidental que

deve ser analisado com muita cautela quando aplicado a povos que vivenciam outras

culturas.

Do diálogo com experiências jurídicas latino-americanas, extrai-se a importante

referência que é o bem viver255, visto como objetivo, caminho e novo paradigma de

desenvolvimento. Os povos indígenas da região andina da América do Sul, como os

Quíchuas, Guaranis e Aimaras, fundamentam seu modo de vida no sumak kawsay, ou bem

viver, que resume uma certa forma de desenvolver seus próprios destinos numa relação

harmoniosa com a natureza. Esta relação não é apenas física ou econômica, mas também

social, política e espiritual.

Isto quer dizer que estes povos almejam alcançar seus ideais, vivendo de uma

maneira, na maioria das vezes, sustentável, pois além de tudo, seu projeto de vida tem um

caráter intergeracional. O bem viver permite verificar a extrema importância do papel

desempenhado pelo meio ambiente no projeto existencial dos povos indígenas, que chega a

ser fundamental, pois é a base da cultura, da espiritualidade e da coesão social. Qualquer

255 V. Subseção 2.3.1.

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ameaça ambiental que possa afetar de alguma forma os povos indígenas é um dano ao seu

projeto de vida256.

Isto porque o bem viver é parte do projeto de vida de muitos povos indígenas. A

noção de projeto de vida é uma importante referência extraída de experiências jurídicas no

âmbito dos direitos humanos, que se funde com a noção de direitos dos povos indígenas,

especialmente os direitos ambientais. É importante lembrar que o direito ao projeto de vida

envolve desenvolver seu destino conforme suas próprias opções, convicções e ideais e por

isso se aproxima muito da noção de autodeterminação.

Portanto, os direitos ambientais dos povos indígenas são aqueles que envolvem a

proteção do bem viver e a realização de seus projetos existenciais, num aspecto físico-

ambiental que afeta sua existência social, cultural e espiritual. Por isso, englobam todos os

direitos que envolvem a proteção e gestão ambiental dos territórios indígenas ou de áreas que

possam afetá-los, e afetar ao povo que ali vive de forma material ou imaterial.

É dizer que, diante da proximidade existente entre povos indígenas e natureza e a

visão de os direitos dos povos indígenas são indissociáveis e interdependentes devido a esta

relação, também é possível dizer que todos os direitos indígenas são permeados por seus

direitos ambientais.

Os direitos ambientais dos povos indígenas ainda podem ser concebidos como

materiais e procedimentais. Os primeiros são os direitos ambientais substanciais que detém

os povos indígenas, como a integridade ecológica das terras indígenas e a integridade

cultural. Já os segundos englobam os direitos por meio dos quais é possível concretizar os

direitos ambientais materiais dos povos indígenas. Por exemplo, no Brasil, os povos

indígenas têm direito a um meio ambiente sadio e equilibrado que subsidie sua integridade

social, econômica, cultural e espiritual, em suma seu projeto existencial. Para a concretização

deste direito substancial, eles têm direito à consulta, à participação, entre outros. Ademais,

256 V. AYALA, Patryck de Araujo. Mínimo existencial ecológico e transconstitucionalismo na experiência

jurídica brasileira: uma primeira leitura de jurisprudência comparada. Revista de Direito Ambiental, v. 59, p. 312-350, 2010.

As expressões projeto de vida e projeto existencial são utilizadas neste estudo tanto no singular como no plural, no mesmo sentido. Cada pessoa ou cada povo tem um projeto próprio, o que significa dizer que quando se fala em projeto de vida dos povos indígenas não significa dizer que todos os povos indígenas possuem o mesmo projeto existencial.

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possuem legitimidade para defender seus direitos por meio do Poder Judiciário como entes

coletivos e terão os interesses tutelados também pelo Ministério Público Federal.257

No entanto, é sempre importante frisar que os direitos ambientais são parte de um

todo que objetiva permitir a realização do projeto de vida dos povos indígenas, que é

culturalmente determinado, intergeracional e infinito.

César Nava Escudero aponta que é a existência de disposições em matéria de direitos

indígenas vinculadas a matéria ambiental que geram os direitos indígenas ambientais. Ele

identifica estes direitos indígenas quando mencionam expressamente o meio ambiente,

quando tratam de temas ou conceitos estreitamente ligados ao campo ambiental, quando se

referem a recursos naturais ou quando tratam de áreas com evidentes repercussões

ambientais.258 Assim, as provisões mais explícitas em relação ao componente ambiental da

existência indígena seriam apontadas como direitos ambientais dos povos indígenas.

No âmbito dos direitos humanos259, três autores - James Anaya, Cherie Metcalf e

Laura Westra - defendem modelos de proteção e concepção dos direitos ambientais dos

povos indígenas, a partir da leitura e análise dos instrumentos de direito internacional.

O primeiro modelo propõe ênfase ao direito à autodeterminação e é defendido

principalmente por James Anaya, que afirma que todos os direitos dos povos indígenas

decorrem do direito à autodeterminação dos povos. O conteúdo do direito à

autodeterminação se refere a um conjunto de normas de direitos humanos que se aplicam

257 V. BRASIL. Constituição…, em especial os artigos 225, 231 e 232; BRASIL. Decreto n.º 5051, de 19 de

abril de 2004. Convenção n.º 169..., em especial os artigos 6, 7, 15, 17 e 22. 258 NAVA ESCUDERO, César. De los derechos indígenas ambientales o de por qué existem preceptos

constitucionales virtuales. In: CARMONA TINOCO, Jorge Ulisses; HORI FOJACO, Jorge M. (Coord.). Derechos Humanos y Medio Ambiente. México: UNAM, 2010, p. 109-110.

259 Os direitos ambientais dos povos indígenas surgem como objeto de discussão no âmbito dos direitos humanos, tendo em vista a emergência dos seus titulares na condição de participantes da arena internacional. V. GILBERT, Jérémie. Indigenous peoples' land rights under international law: from victims to actors. Ardsley: Transnational Publications, 2006; OGUAMANAN, Chidi. Indigenous peoples and international law: The making of a regime. Queens Law Journal, v. 30, n. 1, p. 348-399, 2004; MUEHLEBACH, Andrea. “Making place” at United Nations: Indigenous cultural politcs at the UN Working Group on Indigenous Populations. Cultural Anthropology, v. 16, n. 3, p. 415-448, 2001; LACERDA, Roseane F. Povos indígenas: A longa marcha pelo reconhecimento da humanidade roubada. In: SYDOW, Evanize; MENDONÇA, Maria Luiza (orgs.). Direitos Humanos no Brasil 2009: Relatório da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos. São Paulo: Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, 2009, p. 95-103; DAVIS, Megan. Indigenous struggles in standard-setting: the United Nations Declaration on the Rights of Indigenous Peoples. Melbourne Journal of International Law, v. 9, p. 440-471, 2008; BELLIER, Irene. The Declaration on the Rights of Indigenous Peoples and the World Indigenous Movement. Griffith

Law Review, v. 14, n. 2, p. 227-246, 2005; GILBERT, Jémérie. Indigenous rights in the making: The United Nations Declaration on the Rights of Indigenous Peoples. International Journal on Minority and Group

Rights, v. 14, p. 207-230, 2007; SILVA, Solange Teles da. O direito ambiental internacional. São Paulo: Del Rey, 2009. (Coleção para entender), p. 82-85.

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genericamente aos povos, inclusive os povos indígenas, e que se baseiam a ideia de que

todos os setores da humanidade têm o mesmo direito a controlar o seu próprio destino.260

A partir do momento em que um povo se considera e é reconhecido

internacionalmente como tal, ele passa a ter direitos na estatura dos direitos a não

discriminação, à terra e aos seus recursos naturais, ao desenvolvimento e ao bem-estar social,

ao autogoverno, à autonomia e à participação, além do direito à integridade cultural e direitos

ambientais. Desta forma, os direitos ambientais dos povos indígenas fluem do direito à

autodeterminação. O direito à autodeterminação não significa necessariamente que todos os

grupos têm o direito de alcançar a independência ou a secessão.261

Neste modelo, os direitos indígenas relacionados ao meio ambiente são reconhecidos

porque os povos indígenas são aceitos como titulares do direito à autodeterminação. A

existência dos povos indígenas como comunidades distintas fornece um grau próprio de

autonomia e controle sobre o seu próprio desenvolvimento. A legitimidade dos direitos dos

povos indígenas para tomar decisões relacionadas com suas terras e recursos deriva deste

direito inerente de determinar a própria evolução da sua sociedade.

O segundo modelo dá ênfase à integridade cultural, e é defendido dentre outros pela

canadense Cherie Metcalf, que afirma que a integridade cultural dos povos indígenas

depende inteiramente da proteção da integridade ecológica das áreas que ocupam. O modelo

da integridade cultural reconhece os direitos ambientais dos povos indígenas como um

corolário para a proteção e preservação da cultura indígena. Diante desta concepção a autora

afirma que o meio ambiente poderá ser protegido por meio dos instrumentos de proteção aos

direitos humanos, dentre os quais se encontra o direito cultural.262

A autora afirma que o modelo da integridade cultural permite o desenvolvimento do

direito internacional do meio ambiente baseado numa abordagem de direitos humanos da

qualidade ambiental. A associação que o modelo da integridade cultural faz com os direitos

ambientais dos povos indígenas e com os direitos humanos lato sensu é também importante,

porque as normas de direitos humanos podem suplantar a soberania estatal. O

desenvolvimento de direitos ambientais para os povos indígenas associados à integridade

cultural cria uma possibilidade de que os princípios associados ao direito ambiental se

260 ANAYA, James. Los pueblos indígenas en el derecho internacional…, p. 137. 261 WESTRA, Laura. Environmental justice and the rights of indigenous peoples…, p. 11-12. 262 METCALF, Cherie. Indigenous rights and the environment: evolving international law. Ottawa Law

Review, v. 35, n. 1, 2004, p. 101.

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tornem eficazes dentro do Estado.263 Na verdade, tal constatação é valida para todos os

modelos de direitos ambientais dos povos indígenas no âmbito dos direitos humanos.

O modelo da integridade cultural classifica os povos indígenas como um caso

especial em que os direitos humanos e o meio ambiente se interceptam, ao invés de se apoiar

em uma conexão mais geral entre os dois. 264

O terceiro modelo, defendido por Laura Westra, é baseado na ideia de que direitos

básicos, como o direito à vida e à segurança física ou à subsistência - em suma, o direito à

integridade biológica - precedem conceitualmente e temporalmente o direito à

autodeterminação e o direito à integridade cultural. E a integridade biológica é inteiramente

dependente da integridade ecológica do meio ambiente em que as pessoas vivem. E esse fato

é muito mais relevante no caso dos povos indígenas em que, “a necessidade de um ambiente

saudável é vital [...], [porque eles] vivem mais perto da terra e são inteiramente dependentes

dela para sua sobrevivência.”265

Ao contrário dos outros dois modelos, em que se afirma que os direitos indígenas à

cultura e à autodeterminação dependem da integridade ecológica dos territórios, e por isso

ela deve ser protegida, o terceiro modelo apresenta a lógica inversa. Só é possível a

concessão de direitos aos povos indígenas se, primeiro, for amparado o direito ao meio

ambiente sadio, um direito básico de sobrevivência ao lado da vida e da saúde.

No entanto, neste estudo defende-se que os direitos dos povos indígenas compõem

um emaranhado de direitos inter-relacionados que visam à consecução de um projeto de vida

culturalmente diferenciado e determinado. Assim, todos os direitos previstos nas ordens

jurídicas estatais e internacionais são importantes individualmente, mas é a sua concretização

global que permite a realização da vida digna. Dignidade aqui deve ser vista como uma ideia

ligada ao projeto de vida comunitário, determinado principalmente pela cultura de um

determinado povo, que na maioria das vezes está ligada intimamente ao meio ambiente.

Assim, o fato de se identificar o direito à autodeterminação ou o direito à integridade

cultural passa a ser uma ferramenta para acessar os tribunais internacionais de direitos

263 METCALF, Cherie. Indigenous rights and the environment…, p. 101. 264 Ibid., p. 104-106. 265 WESTRA, Laura. Environmental justice and the rights of indigenous peoples…, p. 7. . [...] the requirement

for a healthy environment is vital [...] [because they] live closer to the land and are intirely dependent upon it for their survival. (Tradução nossa)

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humanos para a defesa dos direitos dos indígenas, inclusive os direitos ambientais à

integridade ecológica e biológica que estão inseridos neste complexo jurídico.

No campo constitucional brasileiro, pode-se dizer que os direitos ambientais dos

povos indígenas decorrem das disposições dos capítulos constitucionais sobre o meio

ambiente e sobre “os índios”.

Direitos ambientais é uma construção muito mais ampla que o conteúdo delimitado

ao direito fundamental ao meio ambiente, insculpido na Constituição brasileira. O artigo 225

oferece este direito, que engloba o direito de todos a um meio ambiente ecologicamente

equilibrado, que é essencial à sadia qualidade de vida. É um direito intergeracional visto que

alcança além das presentes, as futuras gerações humanas, assim definido, in verbis:

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.266

No caso dos direitos ambientais dos povos indígenas, há uma relação direta entre os

direitos associados ao artigo 231 da Constituição e as realidades existenciais protegidas pelo

artigo 225. O artigo 231 reconhece aos povos indígenas o direito à cultura, à organização

social e à espiritualidade próprias e o direito sobre suas terras e recursos naturais.267

No entanto, esta seria uma proteção incompleta e imperfeita se não fosse possível

reconhecer que o artigo 225 supõe uma proteção que se estende além do meio ambiente

natural.

O texto do artigo 225 precisa ser compreendido como uma referência aberta à

comunicação com outras realidades conexas, para o fim de assegurar a proteção de

realidades existenciais mais alargadas, e que possuem os recursos naturais como vetor de um

modelo diferenciado de desenvolvimento humano.268

Assim, pode ser realizada a interação com as referências buscadas nas experiências

jurídicas externas e com o texto do artigo 231 para assegurar a proteção dos direitos

ambientais dos povos indígenas. Aqui, constata-se que o meio ambiente natural confunde-se

com o meio ambiente cultural dos povos indígenas.

266 BRASIL. Constituição…, artigo 225, caput. 267 Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os

direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. Ibid., artigo 231, caput.

268 AYALA, Patryck de Araújo. Em reunião de orientação, 2011.

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Por meio dessa compreensão integrada entre as relações culturais, territoriais,

espirituais e ecológicas viabilizada pelo âmbito de proteção dos dois direitos fundamentais,

sustenta-se a possibilidade de se visualizar não mais direitos originários de povos indígenas,

limitados ao conteúdo do artigo 231, da Constituição, mas direitos ambientais dos povos

indígenas, oriundos da combinação entre os dois âmbitos de proteção previstos pelos artigos

225 e 231.

Todas as realidades descritas no artigo 231 e outros aspectos que lhes são inerentes

constituem os direitos ambientais dos povos indígenas, concebidos na ordem jurídica

constitucional brasileira, pois são intimamente ligados ao meio ambiente. A sobrevivência

dos povos indígenas não se separa do meio ambiente ecologicamente equilibrado. Por isso, é

possível dizer que direitos ambientais dos povos indígenas é um conceito mais amplo que o

direito fundamental ao meio ambiente, pois a sadia qualidade de vida dos povos indígenas269

depende mais do meio ambiente que outros setores da sociedade.

Construída essa noção conceitual de direitos ambientais dos povos indígenas, o

capítulo seguinte abordará com mais profundidade estes direitos na ordem constitucional

brasileira.

269 Alguns setores da sociedade brasileira também são muito sensíveis quanto à sua dependencia direta do meio

ambiente, tais como os quilombolas e algunas populações tradicionais, no entanto, este estudo foca os povos indígenas, que na opinião desta pesquisadora, são os mais vulneráveis, tendo em vista a pressão cultural e econômica que sofrem em detrimento de sua cultura e espiritualidade.

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3 OS DIREITOS AMBIENTAIS DOS POVOS INDÍGENAS NA ORDEM

CONSTITUCIONAL BRASILEIRA

O Brasil é um Estado multicultural ou multinacional270, pois dentro dos seus limites

territoriais convivem comunidades históricas, mais ou menos completas institucionalmente e

que compartilham línguas e culturas diferenciadas, além de uma cosmovisão de harmonia

das comunidades humanas com a natureza, na qual o ser humano é parte de uma comunidade

de pessoas, que por sua vez é um elemento constituinte da mãe terra. Estes grupos nacionais

que integram minoritariamente a sociedade brasileira são representados em grande parte

pelos povos indígenas.271

Partindo da premissa de que os direitos diferenciados de cidadania multicultural são

fundamentados num contexto de justiça distributiva que almeja a igualdade por meio da

distribuição dos bens sociais conforme o seu significado para cada grupo destinatário,

verifica-se que o meio ambiente sadio emerge como bem social de extrema importância para

os povos indígenas. Isto porque o meio ambiente aparece para os povos indígenas como um

elemento intrínseco ao seu projeto de vida. A natureza é vista, geralmente, como fonte de

tudo que é necessário para que eles atinjam seus ideais da forma determinada por sua cultura.

Por isso, afirma-se que os direitos ambientais dos povos indígenas se relacionam com

a proteção do bem viver e a realização de seus projetos existenciais, num aspecto físico-

ambiental que reflete também nos aspectos cultural, espiritual e social.

O direito brasileiro tende a reconhecer o direito indígena à terra como essencial à

consecução dos direitos dos povos indígenas. O meio ambiente é um elemento intrínseco a

270 O Brasil não é um Estado plurinacional nos termos do novo paradigma constitucional lançado pelo Equador

e pela Bolívia, pois apenas reconhece grupos diferenciados culturalmente. Não os vêem como nações, aliás, o STF rechaça esta visão. V. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Popular. Demarcação da Terra

Indígena Raposa Serra do Sol. Petição n.º 3.388. Relator: Ministro Ayres Brito. Brasília, 19 de março de 2009. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 18/10/2010. V. também ACOSTA, Alberto; MARTÍNEZ, Esperanza (Comp.). Plurinacionalidad...; e SANTOS, Boaventura de Sousa. La reinvención

del Estado y el Estado plurinacional... 271 Seguindo os conceitos de Will Kymlicka, pode-se afirmar que o Brasil é um país multicultural na plena

acepção da palavra, pois aqui se encontram grupos nacionais e grupos étnicos. As minorias ou grupos nacionais são grupos que possuem vínculos históricos com o território, possuíam autogoverno, mas que por alguma razão forma incorporados a um Estado que possui uma maioria cultural predominante, como os povos indígenas. Os grupos étnicos são os formados no interior de um Estado através da imigração e que mantém algumas de suas particularidades étnicas. Estes grupos não são nações e suas especificidades se manifestam fundamentalmente em sua vida familiar e em associações voluntárias, como os descendentes da colonização europeia, africana e japonesa. KYMLICKA, Will. Ciudadanía multicultural..., p. 26 e 31.

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este direito e por isso, o direito à terra é o principal direito ambiental dos povos indígenas

brasileiros.

No entanto, a experiência jurídica brasileira peca ao, aparentemente, tratar de outros

direitos indígenas, que possuem natureza também ambiental, de modo particularizado e

segmentado, sem enfatizar semelhante conexão com a consideração necessária. Direitos

entre os quais se destacam especialmente à autodeterminação, à participação e à consulta.

Todos esses direitos são parte de uma gama de outros direitos, que apenas fazem sentido em

conjunto para determinar uma identidade indígena, e apenas em conjunto permitem que os

povos indígenas busquem a realização de seu projeto existencial.

Ao passo que é possível afirmar que os direitos ambientais dos povos indígenas

constituem um conceito mais amplo que o direito fundamental ao meio ambiente sadio tal

como se encontra inscrito no artigo 225. Aqui, propõe-se uma relação direta entre os direitos

associados ao artigo 231 da Constituição e o direito fundamental ao meio ambiente. Aqui,

sustenta-se que é possível extrair do texto constitucional, não apenas os direitos originários

de povos indígenas, limitados ao conteúdo do artigo 231, mas direitos ambientais dos povos

indígenas, oriundos da combinação entre os dois âmbitos de proteção dos dispositivos já

referidos.

É dizer que o direito fundamental dos povos indígenas ao meio ambiente

ecologicamente equilibrado está embutido em cada um de seus direitos constitucionais, e

com eles estabelece uma conexão indivisível e indissociável. Isso se deve ao fato de que

estes últimos incluem uma enorme variedade de variáveis dependentes do meio ambiente,

que atingem a sua própria existência e identidade como povo.

Constata-se que a experiência jurídica nacional pode avançar significativamente nas

questões relacionadas aos direitos dos povos indígenas, principalmente aos direitos

ambientais dos povos indígenas, se estiver aberta ao diálogo com outras experiências

jurídicas, mais avançadas nestas questões. Posto isso, este estudo analisará como os direitos

ambientais dos povos indígenas vêm sendo tratados na ordem constitucional brasileira e

como isto pode avançar, no sentido de conferir maior proteção das realidades existenciais

destes povos, através da interação com experiências jurídicas externas.

Primeiramente, será abordado o direito à terra indígena, que pode ser considerado o

direito ambiental dos povos indígena com maior reconhecimento pelas experiências jurídicas

brasileiras, como uma realidade indissociável da noção de mínimo existencial ecológico.

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Em seguida, constatar-se-á que as proteções conferidas aos componentes ambiental e

cultural acabam por alargar seus âmbitos protecionais para incluir um ao outro, e que há

importantes referências externas para dialogar com a ordem jurídica brasileira.

Na sequência, o estudo passa a analisar duas experiências brasileiras: o caso da Terra

Indígena Raposa Serra do Sol e o caso da Hidrelétrica de Belo Monte. Na análise de ambos

os casos serão verificadas as incompreensões, lacunas e deficiências na aplicação dos direitos

conferidos pelo texto constitucional e como a interação com outras experiências jurídicas

pode reforçar, esclarecer e aperfeiçoar a experiência nacional.

3.1 O mínimo existencial ecológico e o direito à terra indígena

Não há dúvidas, por meio da dicção do artigo 225 da Constituição brasileira, que o

direito fundamental ao meio ambiente sadio está cristalizado na ordem jurídica brasileira272.

Para a sua efetivação faz-se necessária uma ecologização do Direito e das tarefas do Estado,

integradas em um projeto político e existencial, comprometido com a durabilidade da vida

em uma escala temporal alargada, que relacione as presentes e as futuras gerações.273

Isto porque o Estado se propõe, por meio da Constituição, garantir um mínimo

existencial ecológico, ou seja, garantir um mínimo de condições existenciais que permita

assegurar a dignidade de vida e a qualidade de vida.

A noção de um mínimo ecológico de existência advém da analogia com o

reconhecimento de um mínimo social de existência, atrelado ao principio da dignidade da

pessoa humana.274 A noção de um mínimo social de existência, ou seja, de um “direito

fundamental (e, portanto, também de uma garantia fundamental) às condições materiais que

asseguram uma vida com dignidade”275 se originou na Alemanha, no início da década de

272 Os direitos fundamentais não são apenas aqueles enumerados do art. 5º da Constituição de 1988, visto que é

o conteúdo do direito que caracteriza sua fundamentalidade material. Ademais, o próprio art. 5º, §2º inclui outros direitos explícitos no texto constitucional, como o art. 225, os implícitos no regime e princípios adotados pela Constituição, e os expressos em tratados internacionais ratificados pelo Brasil. V. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais..., p. 63-74 e 75; PIOVESAN, Flávia. Tratados internacionais de proteção aos direitos humanos..., p. 48.

273 AYALA, Patryck de Araújo. Constituição ambiental e sensibilidade ecológica: notas para a reflexão sobre um direito ambiental de segunda geração na jurisprudência brasileira. Revista de Direito Ambiental, v. 1, n. 60, 2010, p. 12.

274 AYALA, Patryck de Araújo. Mínimo existencial ecológico e transconstitucionalismo..., p. 315-316. 275 SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana Flinchtiner. Reserva do possível, mínimo existencial e

direito à saúde: algumas aproximações. Direitos Fundamentais & Justiça, n.1, 2007, p. 178.

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1950, quando o jurista alemão Otto Bachof “considerou que o princípio da dignidade da

pessoa humana [...] não reclama apenas uma garantia de liberdade, mas também um mínimo

de segurança social, já que, sem os recursos materiais para uma existência digna, a própria

dignidade [...] ficaria sacrificada.”276 Em seguida, as experiências jurisprudenciais

constitucionais alemãs resultaram no reconhecimento definitivo do status constitucional da

garantia do mínimo existencial.277

O mínimo existencial ecológico278 surge da noção de que “um projeto digno de vida

somente pode ser alcançado por meio da proteção e garantia de todos os direitos

fundamentais, agregando-se aqui uma realidade ecológica, e situando-se esta realidade

com[o] parte integrante de uma definição de mínimo existencial.”279 Pois o núcleo essencial

do princípio a dignidade da pessoa humana envolve uma dimensão social e uma dimensão

ambiental, e “somente um projeto jurídico-político que contemple conjuntamente tais

objetivos [...] atingirá um quadro compatível com a condição existencial humana” 280 digna.

Igualmente, a garantia constitucional de padrões ambientais mínimos está atrelada ao

princípio da vedação do retrocesso. Isto significa que os direitos humanos e fundamentais,

entre eles o direito ao meio ambiente, “devem sempre agregar algo de novo e melhor ao ser

humano, não podendo o Estado proteger menos do que já protegia anteriormente. Ou seja, os

Estados estão proibidos de retroceder em matéria de proteção de direitos humanos.” 281

276 SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana Flinchtiner. Reserva do possível, mínimo existencial e

direito à saúde..., p. 179. 277 Id. 278 Na jurisprudência do STJ é possível notar indícios de reconhecimento do mínimo existencial ecológico na

experiência jurídica brasileira. V. AYALA, Patryck de Araújo. Mínimo existencial ecológico e transconstitucionalismo..., p. 328; BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso especial. Resp n.º 332.772/SP. Relator Ministro João Otávio de Noronha. Brasília, 28 de junho de 2006. Disponível em: <www.stj.jus.br>. Acesso em: 20 Jan 2012.

279 AYALA, Patryck de Araújo. O princípio da proibição de retrocesso ambiental na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça – o caso City Lapa. Revista de Direito Ambiental, v. 62, 2011, p. 410.

280 FENSTERSEIFER, Tiago. O estado socioambiental de direito e o princípio da solidariedade como seu marco jurídico-constitucional. Direitos Fundamentais & Justiça, n. 2, 2008, p. 134. Peter Häberle afirma que “os objetivos estatais do ‘Estado social de Direito’ e do ‘Estado cultural’, assim como do ‘Estado do Meio Ambiente’ são, em seus conteúdos fundamentais, consequências do dever jurídico-estatal de respeito e proteção da dignidade humana, no sentido de uma atualização viva do princípio”, o que acaba por exigir uma “medida mínima de proteção ambiental”. HÄBERLE, Peter. A dignidade humana como fundamento da comunidade estatal. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Dimensões da dignidade: ensaios de filosofia do direito e direito constitucional. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 83.

281 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de direito internacional público..., p. 754.

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Se padrões mínimos de existência são garantidos, qualquer retrocesso na proteção

destes padrões é uma ameaça à própria existência humana. Segundo Patryck de Araújo

Ayala:

Um mínimo ecológico de existência tem a ver, portanto, com a proteção de uma zona existencial que deve ser mantida e reproduzida; mínimo que não se encontra sujeito a iniciativas revisoras [...] legislativas. É neste ponto que a construção de uma noção de mínimo existencial (também para a dimensão ambiental) estabelece relações com um princípio de proibição do retrocesso, para admitir, também ali, uma dimensão ecológica que deve ser protegida e garantida contra iniciativas retrocessivas que possam, em alguma medida, representar ameaça a padrões ecológicos elementares de existência.282

A proibição do retrocesso é um princípio atrelado à progressividade dos direitos

humanos, prevista na Convenção Americana de Direitos Humanos283 e em outros

instrumentos284. Igualmente um princípio específico de direito ambiental.

Enquanto o Estado deve progredir na proteção dos direitos humanos, ele também não

pode retroceder no que já foi conquistado. A progressividade projeta-se ao futuro e a vedação

do retrocesso impede o retorno ao passado. Ambos os princípios se aplicam na atuação

estatal nas esferas legislativa, executiva e judicial.

O princípio da vedação do retrocesso ambiental não é previsto expressamente na

Constituição Federal de 1988, mas está implícito no texto constitucional e pode ser

reconhecido pela ordem jurídica brasileira.285 A Constituição brasileira se propõe proteger o

282 AYALA, Patryck de Araújo. Mínimo existencial ecológico e transconstitucionalismo..., p. 317. 283 BRASIL. Decreto n.º 678, de 6 de novembro de 1992. Convenção Americana sobre Direitos Humanos...,

artigo 26. Desenvolvimento progressivo: “Os Estados Partes comprometem-se a adotar providências, tanto no âmbito interno como mediante cooperação internacional, especialmente econômica e técnica, a fim de conseguir progressivamente a plena efetividade dos direitos que decorrem das normas econômicas, sociais e sobre educação, ciência e cultura, constantes da Carta da Organização dos Estados Americanos, reformada pelo Protocolo de Buenos Aires, na medida dos recursos disponíveis, por via legislativa ou por outros meios apropriados.”

284 O artigo 11.1 do Protocolo de San Salvador, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais define o direito ao meio ambiente saudável nas mesmas condições dos demais Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, e, em razão disto, o sujeita ao mesmo regime geral de progressividade definido no seu artigo 1. AYALA, Patryck de Araújo. O princípio da proibição de retrocesso ambiental..., p. 412. V. ORGANIZAÇÃO dos Estados Americanos. Protocolo adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em matéria de direitos econômicos, sociais e culturais, “Protocolo de San Salvador”. Disponível em: <http://www.cidh.oas.org/Basicos/Portugues/e.Protocolo_de_San_Salvador.htm>. Acesso em: 09 Fev 2012, artigos 1 e 11.

285 V. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso especial. Resp n.º 302.906/SP. Relator: Ministro Herman Benjamim. Brasília, 01 de dezembro de 2010. Disponível em: <http://www.stj.jus.br>. Acesso em: 22 Jan 2012; AYALA, Patryck de Araújo. O princípio da proibição de retrocesso ambiental..., p. 408-417.

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meio ambiente natural como a base natural da vida, e tal objetivo não admite retrocesso nos

padrões de proteção já existentes.286

Para os povos indígenas, o meio ambiente sadio é mais que essencial à qualidade de

vida, é essencial para a realização do bem viver, para a concretização do seu projeto de vida,

em suma, da realização de seus direitos ambientais. Aqui as noções de qualidade de vida e

dignidade se aproximam da referência de viver bem e em harmonia com a natureza,

conforme determina o contexto cultural indígena. Logo, qualquer retrocesso ambiental,

relacionado às terras indígenas, afeta não só o meio natural em que vivem os povos

indígenas, mas também todo o seu contexto cultural e social, afeta, portanto seu bem viver e

seu objetivo de realização de um projeto de vida.

Por isso, os padrões ecológicos mínimos necessários para a existência dos povos

indígenas devem levar em conta que todos os modos de ser, fazer e viver deles são

permeados pela natureza. A Constituição Federal parece considerar tal aspecto ao estabelecer

a extensão das “terras tradicionalmente ocupadas pelos índios”.287

A primeira ação necessária é garantir um mínimo necessário para a consecução do

bem viver e verificar a proteção das terras indígenas. Isto porque, a terra indígena é a

realidade em que o meio ambiente é mais presente no projeto existencial dos povos

indígenas. É a representação de sua territorialidade, de sua terra natal, do seu espaço de

pertencimento e concretização de seu projeto de vida.

A Constituição de 1988 reconheceu o direito originário à terra indígena, cuja extensão

foi delineada de forma ampla, de modo que as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios

incluem as terras habitadas em caráter permanente, as terras utilizadas para as atividades

produtivas, as terras imprescindíveis à conservação dos recursos ambientais necessários a seu

bem-estar e as terras necessárias à reprodução física e cultural, segundo os usos, costumes e

tradições dos povos indígenas, além do usufruto exclusivo das riquezas do seu solo e

águas.288

Esta amplitude não deixou de englobar as terras imprescindíveis à conservação dos

recursos ambientais necessários ao bem estar dos povos indígenas, o que reforça que a terra

286 V. AYALA, Patryck de Araújo. Mínimo existencial ecológico e transconstitucionalismo..., p. 365. 287 BRASIL. Constituição…, artigo 231. 288 Id.

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indígena integra a realidade do mínimo existencial ecológico destes povos. Além disso, todos

os outros aspectos da terra indígena acabam permeados por um conteúdo ambiental.

Verifica-se que o instituto terra indígena não se encaixa no direito individualístico

vigente, pois se destina à preservação do habitat de sociedades que se organizam social,

econômica e culturalmente de maneira diferenciada da sociedade nacional mais ampla.

A noção de territorialidade vai além da percepção de que a terra é a base material

para a sobrevivência física e cultural, pois é tão importante para um povo cuja cultura é

muito íntima do meio ambiente, que dissociá-los seria lhes extinguir a identidade. A natureza

é a mãe provedora de tudo necessário para viver, é de onde provem a cosmologia e a religião.

A espiritualidade tem fundamento na natureza, de onde surgem os espíritos, os seres

mitológicos ou mesmo é onde permanecem as almas dos antepassados.

Convém destacar que a Constituição brasileira é aberta no sentido de incluir no

contexto constitucional os tratados internacionais sobre direitos humanos,289 pelo que há que

se mencionar a Convenção n.º 169 da Organização Internacional do Trabalho - OIT sobre

Povos Indígenas e Tribais290, que é o único instrumento internacional vinculativo (hard law)

sobre os povos indígenas e fornece a base do direito à terra indígena.

O artigo 14 da convenção assim prescreve:

1. Dever-se-á reconhecer aos povos interessados os direitos de propriedade e de posse sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Além disso, nos casos apropriados, deverão ser adotadas medidas para salvaguardar o direito dos povos interessados de utilizar terras que não estejam exclusivamente ocupadas por eles, mas às quais, tradicionalmente, tenham tido acesso para suas atividades tradicionais e de subsistência. Nesse particular, deverá ser dada especial atenção à situação dos povos nômades e dos agricultores itinerantes. 2. Os governos deverão adotar as medidas que sejam necessárias para determinar as terras que os povos interessados ocupam tradicionalmente e garantir a proteção efetiva dos seus direitos de propriedade e posse. 3. Deverão ser instituídos procedimentos adequados no âmbito do sistema jurídico nacional para solucionar as reivindicações de terras formuladas pelos povos interessados.291

A Convenção n.º 169 da OIT constrói a preservação das terras indígenas como uma

condição necessária para a sobrevivência dos povos indígenas como grupos sociais distintos.

289 A respeito da discussão sobre o status hierárquico dos tratados internacionais sobre direitos humanos no

direito interno, V. PIOVESAN, Flavia. Tratados internacionais de proteção aos direitos humanos...; e MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Tratados internacionais de direitos humanos e direito interno...

290 A Convenção n.º 169 da Organização Internacional do Trabalho - OIT sobre Povos Indígenas e Tribais foi adotada em junho de 1989, em Genebra, Suíça. Foi ratificada em 2002 pelo Brasil, aprovada pelo Senado Federal por meio do Decreto Legislativo nº 143/2002 e promulgada pelo Decreto nº 5051/2004.

291 BRASIL. Decreto n.º 5051, de 19 de abril de 2004. Convenção n.º 169…, artigo 14.

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Assim, não basta a demarcação das terras indígenas, é necessário que se proteja os

limites destas terras e que se garanta seus direitos de propriedade e de posse. Para

concretização dos direitos ambientais dos povos indígenas, deve-se garantir a integridade

ecológica destas terras, para que, reflexamente, sua existência e identidade estejam

garantidas.

A relação de interdependência entre os povos indígenas e suas terras faz com que

qualquer atividade que coloque em perigo as funções ecossistêmicas dos seus territórios é um

ataque à integridade ecológica do território e à integridade biológica dos seus habitantes, e

então também às suas vidas, saúde e funções normais.

Laura Westra defende que todos os ataques contra a pessoa humana, por meio de

atividades que poluem descontroladamente, devem ser vistos como crimes, assim como

geram responsabilidade civil, principalmente quando as pessoas prejudicadas ou em perigo

não expressaram consentimento para a realização destas atividades, quando estas pessoas

pertençam a grupos que não se beneficiam direta ou indiretamente delas e ainda não estão em

posição de serem removidas ou realocadas, como as terras de um povo indígena, pois apenas

este e nenhum outro território restou para eles. No caso dos povos indígenas é um crime

ainda mais odioso aniquilar as terras e águas que formam a base para a vida e a saúde deles,

ainda mais porque eles possuem significados culturais e religiosos muito particulares.292

Para Laura Westra estes ataques ambientais contra os povos indígenas se encaixam na

categoria de genocídio do povo afetado.293 Isto porque genocídio é definido como atos

cometidos com a intenção de destruir no todo, ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial

ou religioso como tal.294

Diante de tudo isto, verifica-se que a terra indígena é o instituto de direito ambiental

indígena brasileiro mais fortemente protegido e reconhecido, seja pela Constituição Federal,

seja pela Convenção n.º 169 da OIT, e está intimamente ligado ao direito à integridade

292 WESTRA, Laura. Environmental justice and the rights of indigenous peoples…, p. 29. 293 Ibid., p. 30. 294 BRASIL. Decreto n.º 30.822, de 6 de maio de 1952. Convenção para a prevenção e a repressão do crime de

Genocídio. Disponível em: < http://www2.camara.gov.br/legin/fed/decret/1950-1959/decreto-30822-6-maio-1952-339476-publicacaooriginal-1-pe.html>. Acesso em: 22 Fev 2010, artigo II: “Na presente Convenção entende-se por genocídio qualquer dos seguintes atos, cometidos com a intenção de destruir no todo ou em parte, um grupo nacional. étnico, racial ou religioso, como tal: a) matar membros do grupo; b) causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo; c) submeter intencionalmente o grupo a condição de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial; d) adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio de grupo; e) efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo.”

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cultural dos povos indígenas, já que está intimamente ao desenvolvimento do seu projeto de

vida.

3.2 Integridade cultural e ecológica295: convergência para uma proteção recíproca

Os povos indígenas possuem um distinto e profundo relacionamento material e

espiritual com suas terras e com o ar, águas, costas, mar, gelo, flora, fauna e outros recursos.

Este relacionamento tem várias dimensões e responsabilidades sociais, culturais, espirituais,

econômicas e políticas.296 O aspecto intergeracional desta relação também é crucial para a

identidade, a sobrevivência e a viabilidade cultual dos povos indígenas.

O relacionamento com a terra e com todas as coisas vivas está no coração das

sociedades indígenas. Por exemplo, o sistema de posse de terras conhecido como Kipat, do

povo indígena Limbu, do Nepal, fornece um meio de pertencimento de uma comunidade

distinta a um local, no qual um é inseparável do outro. Eles juntos, comunidade e local,

conforme o Kipat, são uma tribo. O sistema Kipat se funde e se articula com a cultura e

qualquer ataque a ele é visto como uma ameaça à própria existência do povo Limbu como

uma comunidade independente no seio da sociedade.297

O relatório da ONU sobre os povos indígenas e seu relacionamento com a terra cita

James Sakej Henderson que observa que a visão indígena sobre a propriedade é um espaço

ecológico que cria consciência, não uma construção ideológica ou um recurso fungível. A

visão deles é de domínios diferentes envolvidos por um espaço sagrado, que é fundamental

para a sua identidade, personalidade e humanidade. A noção de si não termina com a sua

carne, mas continua com o alcance de seus sentidos para a terra.298

295 O princípio da integridade ecológica está definido na Carta da Terra (princípios 5 a 8) como seu segundo

tema principal e é a finalidade do princípio da sustentabilidade, agregando o elemento humano ao ecológico. A integridade ecológica reflete a visão de que há processos naturais necessários para manter os sistemas de suporte à vida na Terra (interações entre as várias formas de vida), dos quais dependem os seres humanos e toda a vida. BOSSELMANN, Klaus. The principle of sustainability. Transforming law and governance. Aldershot: Ashgate, 2008, p. 75 e 93. V. COMISSÃO da Carta da Terra. Carta da Terra. Disponível em: <http://www.cartadaterrabrasil.org/prt/text.html>. Acesso em: 09 Fev 2012, princípios 5 a 8; AYALA, Patryck de Araújo. O princípio da proibição de retrocesso ambiental..., p. 406. Sobre a importância da Carta da Terra para os direitos dos povos indígenas, V. WESTRA, Laura. Environmental justice and the rights of

indigenos peoples..., p. 257-259. 296 ORGANIZAÇÃO das Nações Unidas. Indigenous peoples and their relationship to land…, p. 38. 297 Ibid., p. 7. 298 Id.

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Assim, tendo uma relação tão íntima entre a natureza e a cultura, a espiritualidade e a

organização social dos povos indígenas, a proteção do meio ambiente, principalmente dos

seus territórios e entornos, acaba sendo uma fonte primordial de proteção à própria

identidade indígena.

A preservação da identidade cultural dos povos representa o elemento central da sua

proteção. A identidade cultural de todo ser humano é moldada pelo contexto cultural coletivo

a que pertence. Isso é particularmente e especialmente aplicável aos povos indígenas, que

orgulhosamente conservam uma forte ligação com suas raízes culturais, num contexto em

que a identidade individual de qualquer membro indissociavelmente emerge com a condição

mística coletiva de ser parte de uma comunidade que é indissolúvel em sua identidade

antropológica, social e espiritual, ou cultural.

Os direitos culturais recebem uma ampla proteção na Constituição Federal brasileira e

na ordem jurídica internacional no domínio da proteção dos direitos humanos. Em razão da

íntima e explícita relação cultural dos povos indígenas com o meio ambiente, esta proteção

jurídica acaba por proteger a integridade ecológica de suas terras e por isso integram os

direitos ambientais dos povos indígenas.

Nas subseções seguintes serão analisadas: a tendência da jurisprudência

constitucional brasileira em reconhecer a íntima relação cultural dos povos indígenas com

suas terras e os precedentes jurisprudenciais que podem trazer referências no âmbito da

ordem jurídica internacional, além de explanar direitos em espécie.

3.2.1 Integridade cultural e direito à terra indígena na experiência jurídica brasileira

A maioria das reivindicações dos povos indígenas se relacionam com o direito à terra.

Tal assertiva é verdadeira tanto no Brasil como em outras ordens jurídicas estatais e

internacionais no âmbito dos direitos humanos, tendo em vista a grande demanda judicial em

relação às terras indígenas.

O ordenamento jurídico brasileiro tem avançado significativamente em relação aos

direitos dos povos indígenas. O principal avanço foi ter incluído na Constituição Federal um

capítulo dedicado a eles. Ali se reconhece o direito dos indígenas à identidade e autonomia

cultural, ou seja, de poderem continuar a serem índios. As garantias são dadas pela própria

Constituição que reconheceu o direito à terra indígena, assim como o direito à integridade

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cultural destes povos. Os reconheceu também como titulares de direitos coletivos que podem

ter acesso ao Judiciário para defenderem seus interesses e direitos.

A ordem constitucional interna brasileira estabelece uma proteção cultural aos povos

indígenas. Ela assegura a todos uma educação que valorize o respeito aos valores culturais e

artísticos nacionais e regionais, bem como uma educação bilíngüe e com processos próprios

de aprendizagem para as crianças indígenas299. Garante a todos o pleno exercício dos direitos

culturais e acesso às fontes culturais, apóia e incentiva a valorização e difusão das

manifestações culturais, assim como protege as manifestações das culturas populares,

indígenas, afro-brasileiras e de outros grupos formadores da sociedade brasileira300.

Reconhece aos povos indígenas sua organização social, seus costumes, línguas, crenças e

tradições, bem como reconhece o direito a terra necessária para a sobrevivência e identidade

dos povos indígenas. Assegura a eles o acesso individual e coletivo à justiça. Todo este

complexo normativo revela o reconhecimento da multiculturalidade do país.

Outros avanços se deram com a ratificação da Convenção n.º 169 da OIT e com o

apoio à adoção da Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas. A ONU

constatou que apesar destes avanços teóricos, assim como a existência de programas voltados

aos direitos territoriais, desenvolvimento, saúde e educação, os povos indígenas do Brasil

encaram vários obstáculos para o efetivo gozo dos seus direitos humanos, especialmente no

que se refere no livre controle de suas terras e participação efetiva nas decisões que afetem,

de acordo com seus padrões culturais e estruturas de autoridade.301

O Relatório sobre os Direitos Humanos do Brasil, de 1997, inclui um capítulo sobre

os direitos indígenas. Entre os problemas discutidos estão a destruição ambiental que gera

diversas consequências severas na saúde e na cultura dos povos indígenas do Brasil.

Especificamente, a integridade cultural e física deles é relatada como sob constante ameaça e

ataque de invasores e a poluição ambiental que eles geram. 302 A proteção estatal contra estas

299 BRASIL. Constituição…, artigo 210. 300 Ibid., artigo 215. 301 ORGANIZAÇÃO das Nações Unidas. Report on the situation of human rights of indigenous peoples in

Brazil. Relator: James Anaya. ONU, 2009, A/HRC/12/34/Add.2, p.2. 302 COMISSÃO Interamericana de Direitos Humanos. Relatório sobre a situação dos direitos humanos no

Brasil. Aprovado em 29 de setembro de 1997. Disponível em: < http://www.cidh.oas.org/countryrep/brazil-port/Indice.htm>. Acesso em 11 Abr. 2011.

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invasões é relatada como irregular e deficitária, levando a constante perigo e deterioração

ambiental.303

No Brasil a terra indígena é a maior fonte de litígios envolvendo direitos indígenas.

Porém, o Supremo Tribunal Federal vem reconhecendo a importância da relação cultural dos

povos indígenas com o meio ambiente.

No caso da comunidade indígena de Jaguapiré, em que a comunidade e outros órgãos

recorreram contra a decisão do Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul que

concedeu a reintegração de posse de terras, em processo de demarcação como território

indígena, “invadidas” pelos índios, o Relator, Ministro do STF bem assinalou:

Emerge claramente do texto constitucional que a questão da terra representa o aspecto fundamental dos direitos e das prerrogativas constitucionais assegurados ao índio, pois este sem a possibilidade de acesso às terras indígenas, expõe-se ao risco gravíssimo da desintegração cultural, da perda da sua identidade étnica, da dissolução de seus vínculos históricos, sociais e antropológicos e da erosão da sua própria percepção e consciência como integrante de um povo e de uma nação que reverencia os locais místicos de sua adoração espiritual e que celebra, neles, os mistérios insondáveis do universo em que vive.304

O caso mais emblemático é o da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. O processo de

demarcação se arrastou por quase um século. Desde 1917, quando foi limitada pela primeira

vez por meio da Lei do Estado do Amazonas n.º 941, os povos Ingarikó, Macuxi, Wapixana

e Taurepang, e outros viveram a expectativa de terem certeza sobre as terras que sempre

habitaram.

Após muitas discussões e retrocessos, finalmente, em 2009, a demarcação foi

reconhecida definitivamente, pois foi declarada constitucional a demarcação contínua do

território, realizada em 2005. A demarcação foi contestada por fazendeiros, que invadiram a

área para produzir arroz em larga escala, com o apoio do Estado de Roraima. Eles alegavam

que além de inconstitucional, a demarcação contínua afrontava o desenvolvimento

econômico também protegido pela Constituição. Oficiais do Exército brasileiro também

argumentaram que a demarcação de uma área tão grande na fronteira do país era uma ameaça

à soberania nacional.

O STF, então, decidiu pela demarcação contínua reconhecendo que a terra indígena:

303 SHELTON, Dinah. Human Rights and Environment: jurisprudence of human rights bodies. Environmental

Policy and Law, v. 3-4, n. 32, 2002, p. 162. 304 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário. RE n. 183.188-0/MS...

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[...] no imaginário coletivo aborígine, não é um simples objeto de direito, mas ganha a dimensão de verdadeiro ente ou ser que resume em si toda ancestralidade, toda coetaneidade e toda posteridade de uma etnia. Donde a proibição constitucional de se remover os índios das terras por eles tradicionalmente ocupadas, assim como o reconhecimento do direito a uma posse permanente e usufruto exclusivo, de parelha com a regra de que todas essas terras "são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis" (§ 4º do art. 231 da Constituição Federal). O que termina por fazer desse tipo tradicional de posse um heterodoxo instituto de Direito Constitucional, e não uma ortodoxa figura de Direito Civil. 305

A ONU assinala que este caso representou o choque de duas visões opostas do

desenvolvimento e do lugar dos povos indígenas em relação a ele: uma que vê os povos

indígenas na posse dos territórios do seu uso e ocupação tradicional, e outra que vê nesses

territórios abertos para o desenvolvimento econômico pelas forças do mercado, com os

povos indígenas relegados a pequenas parcelas de terra. A este respeito, a decisão do tribunal

foi, sem dúvida, uma vitória para as comunidades indígenas do país, pois confirmou a

legalidade essencial do modelo de demarcação, e rejeitando a visão de que o modelo ameaça

o desenvolvimento ou a segurança do Estado brasileiro. 306

3.2.2 Referências para o diálogo da ordem jurídica brasileira com a jurisprudência

internacional de direitos humanos

Sob a ótica do transconstitucionalismo e do diálogo das fontes torna-se imperioso

conhecer a realidade jurídica nos órgãos de diretos humanos, pois tais experiências podem

conversar com a realidade jurídica brasileira no intuito de alcançar soluções condizentes com

os direitos ambientais dos povos indígenas. Verifica-se que a jurisprudência da Corte

Interamericana de Direitos Humanos sobre meio ambiente geralmente envolve os direitos

dos povos indígenas.307 Também se encontram casos nos órgãos globais de direitos humanos.

Considerando o contexto de que a ordem constitucional brasileira é aberta ao diálogo

com experiências jurídicas externas, torna-se necessário colher algumas destas experiências

que podem servir de referência para o tratamento dos direitos ambientais indígenas no Brasil.

305 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Popular. Demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol... 306 ORGANIZAÇÃO das Nações Unidas. Report on the situation of human rights of indigenous peoples in

Brazil…, p. 11. 307 V. SHELTON, Dinah. Human Rights and the Environment: jurisprudence of human rights bodies.

Environmental Policy and Law, v. 3-4, n. 32, 2002, p. 160.

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Vislumbra-se em muitos casos da jurisprudência internacional de direitos humanos

que o direito à integridade cultural indígena foi o fundamento para a proteção da integridade

ecológica dos seus territórios.

No Comitê de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas – ONU a análise

da relação entre meio ambiente e o direito à cultura dos povos indígenas se limitou a

reconhecê-la e a confirmar que os danos ambientais violam o direito à cultura quando sua

quantificação é expressiva.

O caso mais relevante é o Bernard Ominayak e Grupo Lubicon contra o Canadá308,

analisado pelo Comitê em 1984, em que os impetrantes alegaram que o governo da Província

de Alberta privou o grupo dos seus meios de subsistência e do seu direito à autodeterminação

ao conceder permissões para a exploração de petróleo e gás em seus territórios. O Comitê

caracterizou a reivindicação como relacionada aos direitos das minorias sob o artigo 27 do

Pacto de Direitos Civis e Políticos309 e fundamentou que as desigualdades históricas e o

desenvolvimento mais recente, como o de exploração de petróleo e gás, estavam ameaçando

o modo de vida e a cultura do grupo, e, então, estavam violando o artigo 27.310

O Comitê de Direitos Humanos da ONU, no Comentário Geral n.º 23, de 1994, sobre

os direitos das minorias e o artigo 27 do Pacto sobre Direitos Civis e Políticos, afirmou que o

direito de gozar uma cultura particular também inclui o modo de vida que é associado com o

território e o uso dos seus recursos, especialmente no caso dos povos indígenas. Assim, este

direito é direcionado à garantia da sobrevivência e continuidade do desenvolvimento

cultural, da religiosidade e da identidade social das minorias, e, então, enriquecer a sociedade

como um todo.311

O fato relevante neste caso é o reconhecimento de que danos ambientais podem afetar

o modo de vida de um grupo cuja cultura particular é essencialmente ligada ao meio

ambiente, território e recursos naturais.

308 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Comitê de Direitos Humanos. Communication No. 167/1984:

Canada, 10/05/1990. CCPR/C/38/D/167/1984. 309 BRASIL. Decreto n.º 592, de 6 de julho de 1992. Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos...,

artigo 27: Nos Estados em que haja minorias étnicas, religiosas ou lingüísticas, as pessoas pertencentes a essas minorias não poderão ser privadas do direito de ter, conjuntamente com outros membros de seu grupo, sua própria vida cultural, de professar e praticar sua própria religião e usar sua própria língua.

310 SHELTON, Dinah. Human Rights and the Environment…, p. 158. 311 ORGANIZAÇÂO DAS NAÇÕES UNIDAS. General Comment No. 23: The rights of minorities (Art. 27):

08/04/1994. CCPR/C/21/Rev.1/Add.5, par. 3 e 7.

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Os demais casos no âmbito do Comitê da ONU trazem como referência para o direito

brasileiro o fato de verificarem que danos ambientais expressivos violam o direito à

integridade cultural. De fato, nos casos abaixo citados, não houve o reconhecimento da

violação aos direitos culturais, pois o Comitê considerou que as atividades contestadas não

traziam tanto impacto aos povos afetados. É dizer, aqueles impactos eram toleráveis.

O caso Ilmari Lansman et al contra a Finlândia foi um dos poucos que foram

julgados no mérito. O comitê, em 1994, apesar de ter concluído que atividades extrativas que

têm impacto limitado sobre o modo de vida da comunidade não violam necessariamente o

direito à cultura, determinou que medidas fossem tomadas para minimizar os impactos ao

meio ambiente e à atividade de criação de renas.312

O caso Apirana Mahuika et al contra a Nova Zelândia colocou o problema do

equilíbrio entre os direitos indígenas aos recursos naturais e as metas governamentais de

proteger o meio ambiente, mais especificamente a regulação da pesca comercial e não

comercial. O povo Maori tem o direito exclusivo e absoluto de posse sobre as terras,

florestas, áreas e pesca e outras propriedade que ocupam coletivamente ou individualmente,

conforme legislação específica. Em 1992 foi negociado entre o governo e o povo Maori a

regulação de todas as questões sobre pesca. Os impetrantes fazem parte de grupos que não

concordaram com a negociação. Eles alegaram falta de informação, o que prejudicou a

tomada da decisão, alegaram que os negociadores não representavam tribos específicas, e,

por fim, que o acordo lhes negou o direito à autodeterminação, que engloba o direito de

livremente determinarem seu desenvolvimento econômico, social e cultural, e que isto

ameaça o modo de vida e a cultura das tribos. 313

O Comitê de Direitos Humanos da ONU, em 2000, mais uma vez, concluiu que se os

impactos são limitados, eles não afetam o direito à cultura. Isto porque ele aceitou que o

governo considerou adequadamente que a pesca é um elemento essencial da cultura e

religiosidade Maori e tomou medidas efetivas para assegurar a participação das comunidades

no processo de tomada de decisão.314

312 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Comitê de Direitos Humanos. Communication No. 511/1992:

Finland, 08/11/1994. CCPR/C/52/D/511/1992. 313 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Comitê de Direitos Humanos. Communication No. 547/1993:

New Zealand, 27/10/2000. CPR/C/70/D/547/1993 (2000). 314 Id.

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No âmbito do sistema interamericano de direitos humanos a integridade cultural

geralmente está atrelada ao direito à terra, sendo um forte fundamento para a sua defesa.

O caso da comunidade Awas Tingny Mayagma (Sumo) contra a Nicarágua envolveu a

proteção das florestas da Nicarágua em terras tradicionalmente ocupadas pelo povo indígena

e talvez seja a grande referência obtida da ordem jurídica dos direitos humanos para o

diálogo com o direito brasileiro. O povo Awas Tingny alegou que o governo da Nicarágua

violou seus direitos a integridade cultural, religião, proteção e participação no governo

quando concedeu permissão para uma empresa explorar os recursos florestais de suas terras

sem consultá-los. A Corte Interamericana de Direitos Humanos julgou, em 2001, que a

Nicarágua violou o direito de proteção jurídica e o direito à propriedade do povo indígena, e

determinou que as terras fossem demarcadas bem como estabeleceu indenização. 315

Esse julgado foi extremamente importante porque reconheceu o direito dos povos

indígenas em viver em seus territórios ancestrais e a importância dessa vivência com a sua

cultura e espiritualidade num contexto intertemporal:

Os povos indígenas, em virtude de sua própria existência, têm o direito de viver livremente no seu próprio território; os laços dos povos indígenas com a terra devem ser reconhecidos e compreendidos como a base fundamental de suas culturas, sua vida espiritual, sua integridade e sobrevivência econômica. Para as comunidades indígenas, a relação com a terra não é apenas uma questão de posse e de produção, mas um elemento material e espiritual de que devem gozar plenamente, inclusive para preservar seu legado cultural e transmitir às gerações futuras.316

Essa relação também foi verificada pela corte no caso da comunidade indígena

Sawhoyamaxa contra o Paraguai, em 2006, cuja sentença afirmou que a cultura dos membros

das comunidades indígenas corresponde a um estilo de vida particular de ser, ver e agir no

mundo, constituído a partir de sua estreita relação com suas terras tradicionais e recursos

naturais, não só porque estes são os seus principais meios de subsistência, mas também,

porque constituem parte integrante da sua cosmovisão, religiosidade e, portanto, de sua

identidade cultural.317

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos admitiu e remeteu à Corte

Interamericana o caso do povo Kichwa de Sarayaku contra o Equador, em 2010. A comissão 315 CORTE Interamericana de Direitos Humanos. Caso de la Comunidad Mayagna (Sumo) Awas Tingni.

Sentencia de 31 de agosto de 2001. Serie C No. 79. 316 Ibid., par. 149. 317 CORTE Interamericana de Direitos Humanos. Caso Comunidad Indígena Sawhoyamaxa. Sentencia de 29

de marzo de 2006. Serie C No. 146, par. 117.

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concluiu que o Equador ao permitir a exploração de petróleo nas terras tradicionais deste

povo sem a sua consulta violou os seus direitos de propriedade, de liberdade de expressão

(consulta prévia), direitos políticos, direito à vida, à circulação e residência e à integridade

física. Um dos danos verificados pela comissão demonstra a intensa relação daquele povo

com os recursos naturais do seu território, que chega a ser um dano espiritual. Relata a

comissão que a empresa petrolífera destruiu um local muito especial e importante para a vida

religiosa e espiritual do povo de Sarayaku. Após a destruição de uma imensa árvore chamada

Lispungu, o xamã afirmou que por isto estava sem forças para curar as doenças de seus filhos

e familiares.318

No caso do povo Moiwana contra o Suriname os danos espirituais foram

reconhecidos mais especificamente pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, em

2005. A comunidade de N’djuka Maroon sofreu um massacre em 1986 e a perícia

antropológica constatou que houve danos espirituais. Para a comunidade a terra é uma

personificação da sua identidade coletiva e também serve como depositária de sua história

cultural e é sua principal fonte de subsistência.319

A relação com a terra é tão intrínseca à cultura e à religiosidade que quando os

membros viajam rituais devem ser realizados em sua aldeia de origem, o que lhes permite

continuar expressando sua continuidade como comunidade. Quando um membro da

comunidade morre, são iniciadas uma série de rituais religiosos e cerimônias, que duram de

seis meses a um ano. Estes rituais são de uma importância crítica, porque é fundamental que

os mortos sejam honrados adequadamente. Para isto, a família deve possuir os restos mortais

do membro falecido, pois a forma em que o cadáver é tratado reflete o grau de respeito que

se tinha pela pessoa durante a sua vida. É necessário, ainda, que os restos mortais sejam

colocados no lugar apropriado de enterro da família. Para eles a ideia de cremação é

repugnante. Se os rituais não terminam, isto é uma ofensa moral tanto ao falecido quanto aos

outros ancestrais falecidos. Isto leva a uma série de enfermidades espirituais que se

manifestam como enfermidades físicas reais. Estas doenças atingem todo o grupo familiar,

apenas são curadas por meios sociais e cerimoniais e podem persistir por gerações. 320

318 COMISSÃO Interamericana de Direitos Humanos. Demanda ante la Corte Interamericana de Derechos

Humanos en el caso del Pueblo Indígena Kichwa de Sarayaku y sus miembros contra Ecuador, 26 de abril de 2010, par. 97.

319 CORTE Interamericana de Direitos Humanos. Caso de la Comunidad Moiwana Vs. Suriname…, p. 27 e 47. 320 Ibid., p. 27.

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Justiça e responsabilidade coletiva são os princípios centrais da sociedade N'djuka. Se

é causado dano a um membro da comunidade, a família - que inclui todos os membros da

linhagem materna - são obrigados a vingar o crime. Se alguém mata um membro da família,

os N'djuka acreditam que seu espírito não poderá descansar até que a justiça seja feita.

Enquanto o crime não recebe punição, os espíritos dos mortos com raiva podem assombrar

seus parentes vivos. Por isso a perícia concluiu que a situação da comunidade N’djuka

Maroon era catastrófica e sem precedentes, já que após mais de vinte anos, a comunidade

sequer pode iniciar os rituais fúnebres ou alcançar a justiça pelos assassinatos.321

Assim, houve provas de “uma particular forma de experiência ou de relacionamento

dos vivos perante seus mortos, os quais assumiram uma responsabilidade de assegurar um

enterro condigno e de buscar a realização da justiça, cenário que propôs um nítido dever ou

obrigação de conteúdo cultural, que transmite entre as gerações.”322

O juiz Antônio Augusto Cançado Trindade reconheceu à comunidade “o direito a um

projeto de vida e de pós-vida e o direito à reparação por danos materiais, imateriais, e bem

assim, por danos espirituais, que em sua dicção, representaria, fundamentalmente, um dano

intergeracional.”323

Em seu voto, o magistrado afirmou que o destino dos restos mortais das vítimas

diretas, a falta de cumprimento dos ritos fúnebres e das cerimônias e a falta de uma adequada

sepultura, desorganizaram a relação harmoniosa do povo com seus mortos. Os danos às

tumbas geraram mais que danos psicológicos, mas verdadeiro dano espiritual que afetou não

só os vivos, mas os que ainda nascerão e seus mortos.324

O reconhecimento de danos espirituais decorrentes de danos ambientais representa o

reconhecimento de danos ambientais coletivos extrapatrimoniais. Segundo Patryck de Araújo

Ayala:

A afirmação de danos espirituais implica admitir efeitos extrapatrimoniais suscetíveis de reparação [embora através de medidas especiais e diferenciadas], viabilizando portanto, afirmação da hipótese de reparação de danos morais ou extrapatrimoniais de conteúdo ambiental.

325

321 CORTE Interamericana de Direitos Humanos. Caso de la Comunidad Moiwana Vs. Suriname…, p. 27. 322 LEITE, José Rubens Morato; AYALA, Patryck de Araújo. Dano ambiental..., p. 333. 323 Id. 324 CORTE, op. cit., p. 118. 325 LEITE; AYALA, op. cit., p. 335.

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A Comissão Interamericana de Direitos Humanos admitiu também o caso da

comunidade Xámok Kásek do povo Enxet-lengua contra o Paraguai, em 2009, relacionado

com a não demarcação do seu território. A comissão destaca que a transcendência do caso

está na possibilidade de proteger os direitos individuais e coletivos da comunidade por meio

do reconhecimento do nexo vital mantido com seus territórios ancestrais.

O Paraguai também impedia a utilização dos recursos naturais da área pelos povos

indígenas, pois criou ali uma unidade de conservação. Diante disto, a comissão enfatizou que

a estreita relação dos povos indígenas com a terra deve ser reconhecida e compreendida

como a base fundamental de suas culturas, sua via espiritual, sua integridade e sobrevivência.

Frisou ainda que o direito à terra (propriedade) incorpora o direito aos recursos naturais

tradicionalmente usados e necessários para a sobrevivência, desenvolvimento e continuidade

do modo de viver das comunidades indígenas. Assim, apesar de ser valoroso o interesse do

Estado na proteção ambiental, especialmente porque a conservação das terras e seus recursos

naturais é um dos fatores mais importantes para a sobrevivência da cultura dos povos

indígenas, a proteção ambiental não pode ser realizada à custa da sobrevivência de uma

comunidade indígena e seus membros.

Segundo a Comissão, a imposição de restrições ao uso dos recursos naturais pelo

povo indígena com o objetivo de proteger o meio ambiente implica desconhecer que as

comunidades indígenas têm séculos de coexistência harmoniosa com a natureza e defende

que se consultados ambas as finalidades poderiam ter sido alcançadas: proteção da natureza e

sobrevivência do povo indígena. 326

Na sentença que julgou o caso da comunidade indígena Yakye Axa contra o Paraguai,

em 2005, a Corte ao fixar o montante da indenização por danos imateriais levou em

consideração o significado especial que a terra tem para o povo indígena. Ela entendeu que

toda a negação ao gozo dos direitos territoriais implica o menosprezo de valores muito

importantes para os membros do povo indígena, que correram o perigo de perder ou sofrer

danos irreparáveis em suas vidas e identidades culturais e no patrimônio cultural a ser

transmitidos para as futuras gerações.327

326 COMISSÃO Interamericana de Direitos Humanos. Demanda ante la Corte Interamericana De Derechos

Humanos en el caso Comunidad indígena Xákmok Kásek del pueblo Enxet- Lengua y sus miembros contra

la República del Paraguay, 3 de julho de 2009, par. 172-176. 327 CORTE Interamericana de Direitos Humanos. Caso Comunidad indígena Yakye Axa Vs. Paraguay.

Sentencia de 17 de junio de 2005. Serie C No. 125, par. 202-206.

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No caso do povo Saramaka contra o Suriname328 a construção de uma hidroelétrica e

consequente inundação deslocou o grupo, reduziu os recursos de subsistência, destruiu sítios

sagrados, inclusive os cemitérios ancestrais, o que é considerado imensurável falta de

respeito aos falecidos. Em 2005, a Corte reconheceu a forte conexão espiritual deste povo

com o seu território. Para eles a terra é mais que fonte de subsistência, é uma fonte necessária

para a continuidade da vida e da identidade cultural. As terras e os recursos naturais fazem

parte da essência social, ancestral e espiritual do povo. A sentença concluiu pela reparação

dos danos materiais e imateriais, além de outras medidas.

Assim, verifica-se que a jurisprudência no âmbito do sistema interamericano de

direitos humanos traz fortes referências sobre o relacionamento cultural e espiritual dos

povos indígenas com suas terras e traz referências muito relevantes para situações existentes

no Brasil, como as atividades produtivas e energéticas que afetam territórios indígenas e a

sobreposição com unidades de conservação.

3.3 Terra Indígena Raposa Serra do Sol: as condições restritivas fixadas pelo STF aos

direitos indígenas e a necessidade de diálogo com outras experiências jurídicas

O julgamento do caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol representou um grande

avanço na proteção dos direitos dos povos indígenas brasileiros, principalmente pela

demarcação contínua do território. No entanto, apesar deste imenso avanço jurisprudencial

brasileiro, que ultrapassou diversos interesses contrários aos direitos indígenas, a decisão

pecou por restringir diversos destes direitos. O STF, no que parece ser exercício atípico,

quem sabe arbitrário, da função legislativa, impôs diversas condições para a concretização da

demarcação. Essas condições confirmam os direitos constitucionais indígenas e também os

limitam, especificando os poderes do Estado sobre as terras indígenas no pressuposto de

propriedade estatal final.

Um certo número de condições afirmam a autoridade da União Federal, por meio de

seus órgãos competentes, para controlar a extração de recursos naturais em terras indígenas,

implantação de projetos de obras públicas, e para estabelecer nessas terras, sem ter de

consultar os povos indígenas interessados, a presença militar ou policial. Outras disposições

328 CORTE Interamericana de Direitos Humanos. Caso del Pueblo Saramaka vs. Surinam. Sentencia del 28 de

noviembre de 2007.

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autorizam as instituições de governo para exercer certos poderes de controle sobre as terras

indígenas, em especial para fins de conservação e regular a entrada de pessoas não

indígenas.329

Estas condições contrariam diversos tratados e normas de direito internacional que o

Brasil se comprometeu a cumprir. As disposições constitucionais deveriam ser interpretadas

em consonância com as normas internacionais pertinentes.

O Artigo 27 da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas

afirma o direito dos povos indígenas de “possuir, utilizar, desenvolver e controlar as terras,

territórios e recursos” que tradicionalmente ocupam, por sua vez, a Convenção 169 da OIT

declara em seu artigo 14, que “Os direitos de propriedade e posse dos povos em questão

sobre as terras que tradicionalmente ocupam devem ser reconhecidos.”

À luz dessas normas internacionais, que o Brasil comprometeu-se a cumprir, os povos

indígenas devem efetivamente gozar de direitos equivalentes à propriedade sobre suas terras

e os interesses do Estado na propriedade das terras indígenas devem funcionar apenas como

um meio de proteção e não como um meio de interferência. Além disso, tanto sob a

Declaração (artigos 19, 30, 32) quanto sob a Convenção 169 da OIT (artigos 6 º, 15.2), os

povos indígenas têm o direito de serem consultados sobre qualquer decisão que os afetem,

com o objetivo de alcançar a sua concordância ou consentimento, incluindo no que diz

respeito à exploração dos recursos do subsolo pertence ao Estado ou a criação de instalações

militares. 330

Os direitos materiais restringidos pelo STF como condição para a demarcação das

Terras Indígenas se resumem a: autodeterminação, participação, consulta, terras e recursos

naturais, os quais serão examinados adiante.

3.3.1 Autodeterminação: negação em nome da soberania estatal

A autodeterminação, ou livre determinação, é um princípio fundamental dos direitos

indígenas331. O conteúdo do direito à autodeterminação se refere a um conjunto de normas de

direitos humanos que se aplicam genericamente aos povos, inclusive os povos indígenas, e

329 ORGANIZAÇÃO das Nações Unidas. Report on the situation of human rights of indigenous peoples in

Brazil…, p. 12. 330 Ibid., p. 12-13. 331 ANAYA, James. Los pueblos indígenas en el derecho internacional…, p. 135.

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que se baseiam a idéia de que todos os setores da humanidade têm o mesmo direito a

controlar o seu próprio destino332.

No contexto do constitucionalismo aberto a outras experiências jurídicas, torna-se

necessário verificar experiências jurídicas externas que reconhecem e protegem os direitos

dos povos indígenas.

O direito à autodeterminação dos povos é reconhecido pelas Constituições de

diversos Estados e por instrumentos internacionais de direitos humanos, como a Carta da

Organização das Nações Unidas - ONU, a Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos

Indígenas, o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e a Convenção

n.º 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT.

Os dois últimos instrumentos citados são tratados internacionais sobre direitos

humanos ratificados pelo Brasil, e na ordem jurídica interna, são normas, no mínimo,

supralegais333, que irradiam por todo ordenamento jurídico em consonância com a

Constituição Federal.

No desenvolver da ação popular no STF, verifica-se a intensa preocupação com a

soberania nacional. É neste sentido que se constata a resistência em reconhecer o direito à

autodeterminação dos povos indígenas. De início há a resistência mesma em reconhecê-los

como povos. No acórdão da Petição n.º 3.388, o STF deixa muito claro a resignação pela

utilização da expressão povos:

O DESABONO CONSTITUCIONAL AOS VOCÁBULOS "POVO", "PAÍS", "TERRITÓRIO", "PÁTRIA" OU "NAÇÃO" INDÍGENA. Somente o "território" enquanto categoria jurídico-política é que se põe como o preciso âmbito espacial de incidência de uma dada Ordem Jurídica soberana, ou autônoma. O substantivo "terras" é termo que assume compostura nitidamente sócio-cultural, e não política. A Constituição teve o cuidado de não falar em territórios indígenas, mas, tão-só, em "terras indígenas". A traduzir que os "grupos", "organizações", "populações" ou "comunidades" indígenas não constituem pessoa federada. Não formam circunscrição ou instância espacial que se orne de dimensão política. Daí não se reconhecer a qualquer das organizações sociais indígenas, ao conjunto delas, ou à sua base peculiarmente antropológica a dimensão de instância transnacional. Pelo que nenhuma das comunidades indígenas brasileiras detém estatura normativa para comparecer perante a Ordem Jurídica Internacional como "Nação", "País", "Pátria", "território nacional" ou "povo" independente.

332 ANAYA, James. Los pueblos indígenas en el derecho internacional…, p. 137. 333 O Supremo Tribunal Federal considera os tratados internacionais sobre direitos humanos que não passaram

pela aprovação por meio do procedimento especial do art. 5º, §3º, ou seja, que não são equivalentes à emendas constitucionais, com status de normas supralegais, abaixo da constituição, mas acima da legislação comum. Autores como Cançado Trindade, Valerio Mazzuoli e Flavia Piovesan defendem que estes tratados possuem status de normas constitucionais, entendimento este adotado por este estudo.

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Sendo de fácil percepção que todas as vezes em que a Constituição de 1988 tratou de "nacionalidade" e dos demais vocábulos aspeados (País, Pátria, território nacional e povo) foi para se referir ao Brasil por inteiro. 334

Esta perspectiva do STF resume uma visão que é bem explicada por Carlos Frederico

Marés de Souza: “Sob a cultura de que não pode haver nem território, nem povo, sem

Estado, o direito à autodeterminação dos povos passou a ser o direito de constituir-se em

Estado.”335

No entanto, como ensina James Anaya, a resistência em reconhecer que a

autodeterminação implica direitos para, literalmente, todos os povos se baseia no equívoco

de que a autodeterminação em sentido amplo equivale ao direito à formação de um estado

independente336.

Povo, ainda nas palavras de James Anaya, se refere a comunidades diferenciadas,

com características sociais, culturais e políticas próprias, firmemente enraizadas na história.

Do contrário, condensará uma visão limitada de um mundo dividido em comunidades

territoriais soberanas e mutuamente excludentes.337 Na verdade, esse é o pensamento

ocidental tradicional que encapsula a humanidade em apenas duas categorias: indivíduo ou

estado, ignorando as múltiplas esferas de comunidade, autoridade e interdependência e

amplo espectro de parâmetros culturais e de sociabilidade que realmente existem na

experiência humana338.

Como visto acima, a posição oficial brasileira é de que não existem povos indígenas,

exatamente por eles não se revestirem de conteúdo estatal, pois não são sujeitos de direito

internacional, capazes de comparecer perante a Ordem Internacional. Este entendimento, que

ocorre pelo receio de secessão, acaba por mitigar o verdadeiro sentido de ser povo.

A Constituição Federal de 1988 ao reconhecer aos índios sua organização social,

costumes, línguas, crenças e tradições, no artigo 231, reconhece por via oblíqua as

características que os fazem povos. Mas, por infindáveis argumentos de proteção à soberania

nacional, deixa de assim reconhecê-los.

334 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Popular. Demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol...,

ementa (grifo nosso). 335 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. O Renascer dos Povos Indígenas para o Direito. Curitiba:

Juruá, 2008, p. 77. 336 ANAYA, James. Los pueblos indígenas en el derecho internacional..., p. 149. 337 Ibid., p. 141. 338 Ibid., p. 145.

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Por meio do dispositivo mencionado e de outros, a Constituição reconheceu o Brasil

como um país multicultural, assim, os povos diferenciados culturalmente passam a ter o

direito formal à identidade diferenciada, e de terem as condições propícias para mantê-la.

Os termos usados pela Constituição para se referir aos povos indígenas, como

população e comunidade, não carregam em si o conteúdo semântico que os diferencie. A

própria expressão “populações” tem um caráter de transitoriedade e não tem o condão de

reconhecer aos indígenas a sua identidade como um ente coletivo.

Segundo Carlos Frederico Marés de Souza Filho:

Esta determinação de considerar todos os povos indígenas numa única categoria é uma constante na história das relações dos colonizadores com os povos indígenas tendo gerado um único termo “índio” em contraposição ao nome de cada uma das nações [...].339

Os “povos indígenas” são compostos por diversos povos culturalmente diferenciados,

não só do restante da população nacional, mas também entre si. O próprio termo índio, ou

indígena, pode ser considerado discriminador exatamente por não considerar esta

sociodiversidade e tentar homogeneizá-la.

Um dos aspectos da negação do direito à autodeterminação dos povos indígenas no

Brasil é a invisibilidade de direitos que lhe dá concretude, como os direitos à participação e à

consulta.

3.3.2 Participação e consulta: direitos invisíveis

Os direitos à participação e à consulta constituem uma face do autogoverno, que

complementa o direito à autodeterminação. A outra face é a autonomia, que diz respeito a

manutenção de instituições próprias, normas consuetudinárias e mecanismos de resolução de

conflitos, de modo que permitam o exercício da autodeterminação continuada340.

A participação e a consulta se referem às esferas de decisões que estão além das

instituições internas autônomas. Numa realidade em que os povos indígenas estão inseridos

no contexto estatal brasileiro, a participação e a consulta são os institutos necessários para

que determinado povo indígena se desenvolva conforme a sua vontade, de acordo com o seu

autogoverno, para a consecução de seu projeto de vida. 339 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. O Renascer dos Povos Indígenas para o Direito..., p. 73. 340 ANAYA, James. Los pueblos indígenas en el derecho internacional..., p. 228.

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Frise-se que os direitos à participação e à informação são direitos ambientais

clássicos, direitos fundamentais da pessoa humana, além de princípios do direito ambiental.

341 Logo, não são específicos dos povos indígenas e eles aparecem novamente como uma

reafirmação necessária de direitos, que por si só não são suficientes para oferecer proteção

aos povos indígenas.

Estes direitos, além de reconhecidos constitucionalmente, em relação ao

aproveitamento de certos recursos naturais das terras indígenas: recursos hídricos e minerais

(artigo 231, §3º, da Constituição Federal342), são internacionalmente consagrados.

A Convenção n.º 169 da OIT, ratificada pelo Brasil em 2002, consolida o direito à

participação e à consulta em todo o seu texto e é enfática no artigo 6:

1. Ao aplicar as disposições da presente Convenção, os governos deverão: a) consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, por meio de suas instituições representativas, sempre que se tenham em vista medidas legislativas ou administrativas capazes de afetá-los diretamente; b) criar meios pelos de poderem esses povos participar livremente, pelo menos na mesma proporção que os demais segmentos da população, em todos os níveis de tomada de decisões em instituições eletivas ou organismos administrativos e de outra natureza responsáveis por políticas e programas que lhes digam respeito; 343

Da mesma forma a Declaração da ONU sobre os direitos dos povos indígenas

prescreve que

Os Estados consultarão e cooperarão de boa-fé com os povos indígenas interessados, por meio de suas instituições representativas, a fim de obter seu consentimento livre, prévio e informado antes de adotar e aplicar medidas legislativas e administrativas que os afetem.

344

Não se trata de mera informação, apesar de sua necessidade para a formação da

convicção do povo afetado por alguma medida nacional, os povos indígenas têm que ter o

poder de influenciar na decisão.

Os procedimentos da consulta devem ser desenhados de forma que conceda aos

povos indígenas a oportunidade de influenciar de forma efetiva nas decisões que afetam seus

341 Sobre a ideia de imparcialidade em todo proceso de decisão ambientalmente relevante V. AYALA, Patryck

de Araújo. Devido proceso ambiental e o direito fundamental ao meio ambiente. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 338-378.

342 BRASIL. Constituição…, artigo 231, §3º. 343 BRASIL. Decreto n.º 5051, de 19 de abril de 2004. Convenção n.º 169..., artigo 6. 344 ORGANIZAÇÃO das Nações Unidas. Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos

Indígenas..., artigo 19.

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interesses. Isto requer que os governos estabeleçam um diálogo com estes povos sobre as

possíveis conseqüências destas decisões antes delas serem tomadas345.

No acórdão estudado foram estabelecidas diversas condições para a efetivação da

demarcação das Terras Indígenas, dentre elas, que:

(v) o usufruto dos índios não se sobrepõe ao interesse da política de defesa nacional; a instalação de bases, unidades e postos militares e demais intervenções militares, a expansão estratégica da malha viária, a exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico e o resguardo das riquezas de cunho estratégico, a critério dos órgãos competentes (Ministério da Defesa e Conselho de Defesa Nacional), serão implementados independentemente de consulta às comunidades indígenas envolvidas ou à FUNAI; (vi) a atuação das Forças Armadas e da Polícia Federal na área indígena, no âmbito de suas atribuições, fica assegurada e se dará independentemente de consulta às comunidades indígenas envolvidas ou à FUNAI; [...] (x) o trânsito de visitantes e pesquisadores não-índios deve ser admitido na área afetada à unidade de conservação nos horários e condições estipulados pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade; 346

As três condições transcritas, sendo a última em caso de sobreposição de unidades de

conservação e de terras indígenas, são afrontas claras ao direito à participação e à consulta

dos povos indígenas em todas as medidas com potencial de afetá-los.

A entrada de pessoas estranhas em Terras Indígenas, sem o consentimento de seus

habitantes, afronta não apenas a sua autodeterminação, autogoverno, autonomia e

participação/consulta, como colocam em risco a integridade ecológica do território e a

integridade biológica e cultural do povo.

A opção de relacionar-se com outras pessoas deve ser do próprio povo e não ficar a

cargo do governo nacional. As terras indígenas fazem parte do território nacional, com bem

afirmou o STF no acórdão estudado, e por isso, em caso de necessidade de entrada de

servidores públicos em prol da segurança nacional, isso será possível, desde que as

comunidades sejam consultadas. Deve-se haver o respeito pelo povo ali residente, e a maior

prova de respeito é um pedido de permissão.

Muito pior é a situação das terras indígenas com áreas em superposição com unidades

de conservação. Não é sequer lógico restringir a autonomia de um povo indígena para

permitir o trânsito de visitantes e pesquisadores livremente, conforme o Instituto Chico

345 ANAYA, James. Los pueblos indígenas en el derecho internacional..., p. 235. 346 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Popular. Demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol...

(grifo nosso).

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Mendes consagrar conveniente. Mesmo antes desta restrição inconveniente surgir no

ordenamento jurídico brasileiro por meio do STF, nunca foi impossível visitar ou pesquisar

em uma terra indígena, desde que houvesse o consentimento do povo.

Os direitos dos povos indígenas à terra são originários, e assim são reconhecidos pela

ordem constitucional, somado aos seus usos, em regra, sustentáveis, não dão ensejo a esta

restrição da territorialidade indígena em nome do meio ambiente.

Mais do que mera entrada provisória nas Terras Indígenas, a “defesa nacional”, a

partir de agora, tem respaldado na constitucionalidade condicional das demarcações a

possibilidade de instalar bases militares, expandir a malha viária estratégica, explorar

alternativas energéticas de cunho estratégico e resguardar riquezas de cunho estratégico, sem

consultar os povos afetados. Isso é uma grave violação do direito à autodeterminação dos

povos indígenas, em nome da estratégia militar e da mitológica soberania nacional.347

Há ainda outras condições impostas pelo STF para a demarcação de terras indígenas

que por não mencionarem a consulta dão a entender que independem dela:

(ii) o usufruto dos índios não abrange o aproveitamento de recursos hídricos e potenciais energéticos, que dependerá sempre de autorização do Congresso Nacional; (iii) o usufruto dos índios não abrange a pesquisa e lavra das riquezas minerais, que dependerá sempre de autorização do Congresso Nacional, assegurando-se-lhes a participação nos resultados da lavra, na forma da lei; [...] (vii) o usufruto dos índios não impede a instalação, pela União Federal, de equipamentos públicos, redes de comunicação, estradas e vias de transporte, além das construções necessárias à prestação de serviços públicos pela União, especialmente os de saúde e educação; 348

Os recursos hídricos e as riquezas minerais são de propriedade e exploração da

União, diferentemente da terra e de suas outras riquezas que são de propriedade da União e

de posse permanente e usufruto exclusivo dos povos indígenas. É um contrassenso tentar

conciliar a posse e o usufruto dos índios com estradas e vias de transporte, por exemplo. O

347 V. GROSSI, Paolo. Mitologias Jurídicas da Modernidade. 2. ed., ver. e atual. Tradução de Arno Dal Ri

Júnior. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2007 (o autor reflete sobre as reduções simplistas do direito moderno em face da complexidade desta época); FARAGE, Nádia. As Muralhas dos Sertões: os povos indígenas no Rio Branco e a colonização. Rio de Janeiro: Paz e Terra; ANPOCS, 1991 (a autora expõe como os povos indígenas da região da fronteira com a Guiana ajudaram Portugal a impedir invasões holandesas, no século XVIII); e FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo moderno..., 2002 (o autor explica porque entende que a soberania, hoje, é um pseudoconceito, especialmente frente ao direito internacional).

348 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Popular. Demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol...

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Brasil provê aos índios suas terras tradicionalmente ocupadas, mas as tolhe sempre que

quiser.

No voto, o Min. Ayres Brito, frisou que

A conciliação das coisas [eventual presença de não-índios e instalação de equipamentos, abertura de estradas etc] é possível, reafirme-se, desde que tudo se processe debaixo da liderança institucional da União, controle do Ministério Público e atuação coadjuvante de entidades tanto da Administração Federal quanto representativas dos próprios indígenas. 349

Tal atuação coadjuvante dos povos indígenas não vai ao encontro da ordem jurídica

constitucional e muito menos dos direitos humanos reconhecidos internacionalmente aos

povos indígenas, os quais o Brasil se obrigou a cumprir perante a ordem internacional. Esta

coadjuvação é exatamente o papel que a decisão estudada relegou aos povos indígenas ao

tolher-lhes os direitos à autodeterminação, ao autogoverno, à participação/consulta, à terra e

aos seus recursos naturais, à integridade física e cultural.

O STF e o ordenamento jurídico brasileiro parecem deixar os direitos à participação e

à consulta em segundo plano, o que é inconcebível. No entanto, diversas experiências

jurídicas externas expõem referências muito significativas que poderão fazer avançar o

direito brasileiro na direção da efetividade dos direitos ambientais dos povos indígenas. É o

caso das cortes constitucionais de diversos Estados latinoamericanos. Os precedentes

jurisprudenciais a seguir citados foram escolhidos em razão da clareza com que expõem os

direitos à participação e à consulta dos povos indígenas e em razão de serem oriundos de

tribunais constitucionais da América Latina, cujos povos indígenas compartilham realidade,

passada e presente, semelhante à dos povos indígenas brasileiros.

A Corte Constitucional da Colômbia estabeleceu claramente a necessidade de

consulta aos povos indígenas, fixando as bases de interpretação da exigência de uma consulta

apropriada e invalidando atos administrativos e legislativos adotados sem que se cumpra

plenamente esse requisito.350

No caso da Comunidade U’wa contra o Ministério do Meio Ambiente e a Sociedade

Ocidental da Colômbia, em 1997, a Corte afirmou que o direito à consulta é fundamental,

pois é um meio de assegurar a subsistência da comunidade como grupo social, suspendeu a

349 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Popular. Demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol...,

par. 81 (grifo nosso). 350 COURTIS, Christian. Anotações sobre a aplicação da Convenção 169 da OIT sobre Povos Indígenas por

Tribunais da América Latina. SUR Revista Internacional de Direitos Humanos, n. 10, ano 6, 2009, p. 64-65.

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licença ambiental concedida mediante uma consulta incompleta e inadequada, realizada

somente com alguns líderes e determinou a realização de uma consulta de forma adequada. A

Corte destacou que os interesses de exploração dos recursos naturais para garantir um

desenvolvimento sustentável e o direito de conservação da identidade cultural, étnica das

comunidades indígenas devem ser harmonizados. A forma de harmonização e equilíbrio

desses interesses é por meio de um mecanismo de participação das comunidades nas decisões

que possam afetá-las. Destacou, ainda, que a consulta deve buscar o conhecimento pleno da

comunidade sobre o projeto e os efeitos que causaria em seu entorno social, cultural,

econômico e político, como também a avaliação das vantagens e desvantagens. Em caso de

desacordo, a atuação administrativa não deve ser arbitrária e, em todo caso, devem ser

arbitrados mecanismos para mitigar, corrigir ou restaurar os impactos causados à

comunidade.351

A Corte colombiana foi ainda mais longe ao declarar a inconstitucionalidade de uma

lei por falta de consulta adequada às comunidades potencialmente afetadas pela norma, nos

termos do artigo 6º da Convenção 169. Ressalte-se que a Colômbia atribui status

constitucional aos tratados internacionais de direitos humanos, integrando-os ao bloco de

constitucionalidade.

Prescreve o referido artigo que ao aplicar as disposições da Convenção, os governos

deverão “consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e,

particularmente, por meio de suas instituições representativas, sempre que se tenham em

vista medidas legislativas ou administrativas capazes de afetá-los diretamente”.

A Corte, na sentença C-030/2008, concluiu que a Lei Geral Florestal afetava

diretamente comunidades indígenas e afrodescendentes, porque, apesar de prever a

preservação da autonomia das comunidades para o aproveitamento florestal em seus

territórios, estabelecia políticas gerais, definições, pautas e critérios suscetíveis de afetar

áreas nas quais se encontram assentadas comunidades indígenas e afrodescendentes, com a

possibilidade de que o fato repercutisse sobre suas formas de vida e sobre a relação estreita

que mantêm com a floresta. Assim, a consulta às comunidades era imprescindível e na sua

ausência a norma foi considerada inconstitucional.352

351 COURTIS, Christian. Anotações sobre a aplicação da Convenção 169..., p. 65-66. 352 Ibid., p. 66-67.

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Em 2011, a Corte Constitucional Colombiana outorgou a proteção aos direitos

fundamentais à consulta prévia, à existência, à autonomia, à integridade e à identidade

cultural e social do povo Emberá-katio, pois considerou que estes e outros direitos foram

violados pelos trabalhos relacionados a uma estrada que atravessaria seu território, pelo

projeto de uma interconexão elétrica entre a Colômbia e o Panamá, pelos trâmites para uma

concessão para exploração de ouro e pela invasão ilegal de seus territórios, assim como pelo

perigo de deslocamento pela expectativa econômica das obras e projetos. O acórdão afirma

que não se pode obrigar uma comunidade étnica e renunciar sua forma de vida e cultura pela

mera chegada de uma obra de infraestrutura ou projeto de exploração. 353

Nestes casos, em que os projetos têm potencialidade de desfigurar ou fazer

desaparecer seus modos de vida, a Corte entendeu ser necessário que a consulta prévia e o

consentimento livre, prévio e informado das comunidades étnicas para que possa ser

determinada a alternativa menos lesiva àqueles eventos que, entre outros, impliquem a

transferência ou o deslocamento das comunidades, estejam relacionados com o

armazenamento ou despejo de resíduos tóxicos nas terras étnicas, e, representem um alto

impacto social, cultural e ambiental em uma comunidade étnica, que coloque em risco a sua

existência.

O acórdão ainda observa que mesmo quando se executa a alternativa menos lesiva

com a participação das comunidades étnicas, se sobre este processo estiver provado que as

alternativas são prejudiciais e que a concretização de uma delas levaria ao aniquilamento ou

desaparecimento do grupo, prevalecerá a proteção dos direitos das comunidades étnicas sob

o princípio interpretativo pro homine.

Em relação à estrada, a Corte determinou a suspensão das obras nos trechos indígenas

e o imediato início dos trâmites para a consulta e busca pelo consentimento livre, prévio e

informado, ponderando por alternativas concretas de alteração do traçado.

A empresa mineradora alegou que a área não é demarcada como área indígena ou

zona de mineração para as minorias étnicas. A Corte afirmou que existe risco certo e

potencial deque a atividade de mineração afetará o rio, que é parte fundamental das

comunidades indígenas em questão, já que os principais assentamentos e lugares coletivos se

encontram nas proximidades de um afluente deste rio, de onde as comunidades se abastecem

353 COLOMBIA. Corte Constitucional. Sentencia de Colombia. Sentencia T-129/11, de 03/03/2011. Disponível

em: <http://www.corteconstitucional.gov.co/relatoria/2011/T-129.htm>. Acesso em: 24 Maio 2011.

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com água. Em razão disso, toda intervenção ou efeitos que o rio possa sofrer por algum tipo

de exploração, especialmente a mineração que acarreta profundos impactos ambientais, a

consulta prévia às comunidades se faz indispensável.354

No caso Arcos v. Dirección Regional de Minería, em 2002, o Tribunal Constitucional

do Equador ordenou a suspensão de uma concessão de mineração na província de

Esmeraldas, território de comunidades chachis e comunidades afrodescendentes, por dentre

outros motivos terem sido ignorados os requisitos de consulta prévia obrigatória e de

avaliação de impacto ambiental, além de ficar provado que a concessão afetaria

ambientalmente o território e o modo de vida das comunidades.

Christian Courtis destaca que é interessante o fato da defesa estatal sobre ausência de

regulamentação legal da consulta ter sido rechaçada, ao argumento de que não se pode alegar

falta de regulamentação legal para desconhecer o direito dos povos indígenas a ser

consultados, previsto tanto na Constituição como na Convenção 169.355

A Corte de Constitucionalidade da Guatemala, em dezembro de 2009, sentenciou a

favor do povo Maya-Kaqchikel contra acordos e atitudes do município de San Juan

Scatepéquez em benefício da empresa Cementos Progreso S.A, burlando o direito indígena à

consulta. Com base no direito internacional, a Corte definiu o direito indígena à consulta

como direito fundamental de caráter coletivo e considerou que este direito é parte integrante

do bloco de constitucionalidade da Guatemala. Bartolomé Clavero observa que este foi o

primeiro direito humano assim reconhecido. Isto traz como consequência o entendimento de

que o direito internacional sobre os direitos dos povos indígenas, especialmente o direito à

consulta e ao consentimento, deve ser sobreposto ao direito interno da Guatemala, tendo,

assim, status de norma constitucional. Em suma, a Corte reconheceu o direito à consulta

como um direito fundamental que tem proteção constitucional.356

O Tribunal Constitucional da Bolívia, em 2006, declarou a constitucionalidade dos

artigos da Lei sobre Hidrocarbonetos que dispõem sobre a obrigatoriedade de consulta aos

povos e comunidades campesinos, indígenas e originários, de forma prévia, obrigatória e

oportuna, para o desenvolvimento de qualquer atividade que explore estes recursos. Foi

354 COLOMBIA. Corte Constitucional. Sentencia de Colombia. Sentencia T-129/11... 355 COURTIS, Christian. Anotações sobre a aplicação da Convenção 169..., p. 67-68. 356 CLAVERO, Bartolomé. Guatemala: importante jurisprudencia constitucional. Bartolomé Clavero Ensayos,

opiniones y actualidad. 18 Jan 2010. Disponível em: <http://clavero.derechosindigenas.org/?p=5085>. Acesso em: 24 Maio 2011. Neste sítio é possível obter a sentença em sua integralidade.

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interposto um recurso direito de inconstitucionalidade contra tal lei, em que se alegou que os

artigos violam o princípio da igualdade ao estabelecer um tratamento mais favorável aos

povos indígenas, e que o caráter obrigatório da consulta e do respeito às decisões que dela

surjam. Alegou-se, ainda, que a obrigação de indenizar a utilização de determinadas terras e

a proibição de expropriar outras violaria a função social da propriedade.

Considerando que a Convenção 169 da OIT faz parte do bloco de constitucionalidade

boliviano, sendo parâmetro para o controle de constitucionalidade, o Tribunal entendeu que a

consulta é obrigatória, nos termos do artigo 15.2 da Convenção. No entanto, de acordo com a

sua interpretação, o artigo não estabelece o acordo das comunidades como requisito

necessário para a realização das atividades. A consulta prévia estaria destinada a quantificar

o dano que os povos indígenas possam sofrer pela extração dos hidrocarbonetos. Assim, a

consulta seria compatível com a Constituição e com a Convenção 169 da OIT e não teria o

caráter de vetar a exploração, ou seja, o caráter vinculante do resultado da consulta seria

inconstitucional. A lei garante o pagamento de uma indenização equitativa para que os

interesses dos povos indígenas não fiquem desprotegidos.357

Constata-se, portanto, que as Cortes Constitucionais estrangeiras, especialmente as

latinoamericanas, oferecem substanciais referências sobre os direitos à participação e à

consulta, enfim, à autodeterminação, as quais podem ser buscadas pelo poder judiciário

brasileiro para concretizar os direitos ambientais dos povos indígenas, numa interação de

aprendizagem que a arquitetura aberta de constitucionalismo global permite.

3.3.3 Direito à terra e aos recursos naturais

A terra e seus recursos são imprescindíveis para a sobrevivência das culturas dos

povos indígenas e também para a sua autodeterminação. A terra é seu espaço de vida e

liberdade, e a cultura é permeada e dependente do meio ambiente. Carlos Frederico Marés de

Souza Filho assevera que:

[...] a existência física de um território, com um ecossistema determinado e o domínio, controle ou saber que um povo tenha sobre ele, é determinante para a própria existência do povo. É no território e em seus fenômenos naturais que se assentam as crenças, a religiosidade, a alimentação, a farmacopéia e arte de cada

357 COURTIS, Christian. Aplicación del Convenio Núm. 169 de la OIT por tribunales nacionales e

internacionales en América Latina: una recompilación de casos. Genebra: OIT, 2009, p. 57-59.

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povo. [...] Destituir, assim, um povo de seu território equivale a condená-lo à morte [...]358.

O direito à terra indígena é uma premissa aceita internacionalmente do âmbito dos

direitos dos povos indígenas, baseado especialmente na preferência pela administração

coletiva da terra e na existência de vínculos emocionais e espirituais fortes com a terra e seus

recursos359. O direito indígena sobre a terra e seus recursos naturais é de natureza coletiva e é

constituído de uma combinação de direitos de posse, uso e administração360.

A Constituição de 1988 explicitou a extensão que as terras indígenas devem atender.

Assim nos termos do artigo 231, §1º, as terras indígenas devem conter as terras habitadas, as

terras utilizadas para atividades produtivas, as terras imprescindíveis à preservação dos

recursos ambientais necessários ao bem-estar e as terras necessárias para a reprodução física

e cultural, segundo os usos, costumes e tradições dos povos indígenas. 361

A demarcação contínua da terra indígena Raposa Serra do Sol coaduna perfeitamente

com a previsão constitucional, neste sentido. No entanto a decisão peca ao condicioná-la à

restrição de direitos.

Uma dessas restrições é a condição n.º xvii que veda a ampliação da terra indígena já

demarcada. Esta restrição sugerida pelo Min. Menezes Direito se baseia no marco temporal

apontado pelo Relator Min. Ayres Brito, a data de promulgação da Constituição, 05/10/1988,

a qual seria o paradigma para a apuração da ocupação indígena. Nas palavras do Min. Direito

em seu voto-vista:

[...] o procedimento de regularização da terra indígena é um procedimento destinado à apuração do fato indígena, isto é a presença indígena em 05/10/1988, com a sua respectiva extensão, esta determinada com base nas já suas referidas expressões. Ora, uma vez estabelecido e constatado este fato, com base no qual terá sido homologada a área da terra indígena, não pode haver mais espaço ou ensejo para uma revisão dessa área. Cuida-se aqui de verdadeira preclusão administrativa que impedirá qualquer discussão sobre a área e os limites homologados. [...] A existência desses interesses, direitos de natureza individual consolidados com a não-abrangência na terra indígena, impede uma aplicação absoluta do poder-dever de revisão dos atos da administração. 362

358 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. O Renascer dos Povos Indígenas para o Direito..., p. 120. 359 ANAYA, James. Los pueblos indígenas en el derecho internacional..., p. 202. 360 Ibid., p. 206. 361 BRASIL. Constituição…, artigo 231, §1º. 362 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Popular. Demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol...

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A própria Constituição ao delimitar espacialmente a terra indígena teve como

fundamento o respeito à integridade ecológica das terras e de seus recursos ambientais bem

como o respeito à integridade cultural dos povos indígenas, assim, estes fundamentos devem

ser respeitados também em relação às terras indígenas que foram demarcadas antes de 1988,

principalmente porque a política anterior visava à assimilação dos povos indígenas à

comunhão nacional, ou seja, visava a sua extinção.

A nova ordem reconheceu aos povos indígenas o direito de continuarem sendo índios,

e para que isso ocorra, os povos que já possuem suas terras demarcadas têm o direito à

ampliação para atender os objetivos constitucionais. Direitos individuais e contratos não

devem ser obstáculos à complementação das terras indígenas - cujos direitos dos índios

relacionados a elas são imprescritíveis - e à concretização dos direitos constitucionais dos

povos indígenas, por expressa previsão no artigo 231, §6º: “São nulos e extintos, não

produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse

das terras a que se refere este artigo [...].”363

Ao garantir e reconhecer aos povos indígenas o direito de se organizar de maneira

própria, a Constituição garantiu que a demarcação das terras indígenas subsidie o bem estar

dos povos, independente do tamanho das suas populações. Em outras palavras, os povos

podem ter crescimento populacional e seus direitos territoriais permanecem garantidos.

No entanto, a condição imposta pelo STF viola claramente a Constituição ao impedir

que as terras indígenas tenham as proporções devidas no futuro, seja porque houve acréscimo

demográfico, seja porque foi inicialmente demarcada de forma insuficiente, sob outro

contexto constitucional.

Por isso, não só a vedação da ampliação, mas também o estabelecimento de um

marco temporal para a ocupação tradicional acabam por delinear limites muito rígidos para

as necessidades de povos culturalmente diferenciados, cujas necessidades futuras são uma

incógnita.

Aliás, vale deixar consignado que a tradicionalidade da ocupação indígena, nada tem

a ver com imemorialidade. Por mais que muitos povos indígenas ocupem suas terras desde

tempos imemoriais, não se pode usar o tempo como critério para delimitar uma terra

indígena. O que se deve ter mente é o modo com que o povo se relaciona com esta terra.

363 BRASIL. Constituição…, artigo 231, §6º.

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129

Ainda o artigo 231, § 2º, garante aos povos indígenas posse permanente das terras

tradicionalmente ocupadas, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios

e dos lagos nelas existentes.364

A própria Constituição estabelece restrições ao usufruto dos povos indígenas. Essas

restrições não são específicas, ou seja, não se aplicam apenas às terras indígenas. Elas se

aplicam a todos os brasileiros proprietários ou usufrutuários, e se referem exatamente aos

recursos hídricos e aos recursos minerais.

Entretanto, o aproveitamento dessas riquezas naturais depende de consulta aos povos

afetados de forma que eles possam influenciar na decisão. É isto que estabelece o artigo 231,

§3º da Constituição365, que ainda prevê que a exploração destes recursos naturais dependem

de autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas e garantindo-lhes a

participação nos resultados.

No entanto o STF traz diversas restrições ao usufruto indígena, dentre as quais se

destacam:

(i) o usufruto das riquezas do solo, dos rios e dos lagos existentes nas terras indígenas (art. 231, § 2º, da Constituição Federal) pode ser relativizado sempre que houver, como dispõe o art. 231, § 6º, da Constituição, relevante interesse público da União, na forma de lei complementar; [...] (viii) o usufruto dos índios na área afetada por unidades de conservação fica sob a responsabilidade do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade; 366

O primeiro aspecto a ser destacado é que, mais uma vez, o direito à consulta dos

povos indígenas não foi mencionado.

O segundo é a explícita limitação do direito ao autogoverno em contraponto com a

proteção ambiental por meio de unidades de conservação.

Não se discute o fato de que os índios que residem no Brasil devem seguir a

legislação brasileira, sendo as infrações discutidas pontualmente, caso a caso, considerando

as normas do próprio povo e a proteção à sua integridade cultural. Isso significa que a

legislação ambiental também deve ser seguida no âmbito das terras indígenas, exceto no que

conflite com a cultura tradicional do povo, em consonância com a proteção constitucional.

364 BRASIL. Constituição…, artigo 231, §2º. 365 Ibid., artigo 231, §3º. 366 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Popular. Demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol...

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Para Carlos Frederico Marés de Souza Filho, as incumbências do Poder Público para

assegurar a efetividade do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, nos termos

do artigo 225, §1° da CF, não implicam em restrições aos direitos indígenas, mesmo porque

não se admitiria a ocorrência de conflitos de normas emanadas do poder constituinte

originário. Em suas palavras:

[...] não há limitação ambiental para o uso de suas terras quando diretamente para seu sustento físico e cultural do próprio povo indígena. [...] Já, quando se trata de produção de excedentes, nas normas gerais de proteção incidem sobre as terras indígenas, proteção da mata ciliar, topos de morros, caça de animais etc., mas é defeso ao poder público a criação de restrições específicas [...]367

Considerando este pensamento do autor, o máximo que é possível extrair desta

condição é que o órgão ambiental em questão teria a competência para dialogar com os

povos indígenas para orientar sobre determinadas práticas que por qualquer motivo possam

ser não sustentáveis. Entender de outra forma afrontaria de modo grosseiro o direito dos

povos indígenas de desenvolverem-se do seu modo, segundo seu projeto existencial, ou seja,

afrontaria a sua autodeterminação.

Como bem afirmou James Anaya, as condições colocadas pelo STF contrariam

diversos tratados e normas de direito internacional que o Brasil se comprometeu a cumprir.

As disposições constitucionais deveriam ser interpretadas em consonância com as normas

internacionais pertinentes. 368

O Artigo 27 º da Declaração das Nações Unidas afirma o direito dos povos indígenas

de “possuir, utilizar, desenvolver e controlar as terras, territórios e recursos” que

tradicionalmente ocupam, por sua vez, a Convenção 169 da OIT declara em seu artigo 14,

“Os direitos de propriedade e posse dos povos em questão sobre as terras que

tradicionalmente ocupam devem ser reconhecidos.” O artigo 15 prevê o direito aos recursos

naturais, que abrange também “o direito desses povos de participarem da utilização,

administração e conservação desses recursos”. Este artigo ainda prescreve o direito à

consulta aos povos indígenas antes de “empreender ou autorizar qualquer programa de

prospecção ou exploração dos recursos”, nos casos em que a propriedade de recursos

minerais e de subsolo pertença ao Estado ou no caso do Estado ter direitos sobre outros

367 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. O Renascer dos Povos Indígenas para o Direito..., p. 147-148. 368 ORGANIZAÇÃO das Nações Unidas. Report on the situation of human rights of indigenous peoples in

Brazil..., p. 11-13.

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recursos existentes na terra, “para definir se e até que ponto seus interesses seriam

prejudicados”.

À luz dessas normas internacionais, que o Brasil comprometeu-se a cumprir, os povos

indígenas devem efetivamente gozar de direitos equivalentes à propriedade sobre suas terras

e os interesses do Estado na propriedade das terras indígenas devem funcionar apenas como

um meio de proteção e não como um meio de interferência.

Segundo o relatório da ONU sobre soberania dos povos indígenas sobre recursos

naturais as leis e os sistemas legais que arbitrariamente declararem que os recursos que

pertencem aos povos indígenas são de propriedade do Estado são discriminatórios contra os

povos indígenas, cuja posse dos recursos antecede o Estado, e são, portanto, contrários ao

direito internacional. As leis do Estado e as políticas que arbitrariamente negarem ou

limitarem os interesses dos povos indígenas sobre os recursos naturais existentes em suas

terras parecem ser resquícios do colonialismo que deveria ser abandonados.369

Assim, quando a lei complementar citada na condicionante e no artigo 231, §6º da

CF370 for produzida pelo poder legislativo brasileiro, a relativização do usufruto exclusivo

dos povos indígenas sobre as riquezas do solo e águas371 não deverá ocorrer de forma

arbitrária, sob pena de violação de todo o complexo de direitos dos povos indígenas. Por

isso, o “relevante interesse público da União” deve estar profundamento fundamentado e

justificado, a relativização não poderá ameaçar o projeto de vida das comunidades afetadas e

só poderá ocorrer com a devida consulta e prevenção de maiores danos. A relativização

também só poderia acontecer em casos gravíssimos ou catastróficos, pois, se o relevante

interesse público incluir interesses econômicos e desenvolvimentistas, a política da

invisibilidade dos povos indígenas e de seus direitos estaria de volta.

369 ORGANIZAÇÃO das Nações Unidas. Indigenous peoples’ permanent sovereignty over natural

resources…, p. 18. 370 BRASIL. Constituição…, artigo 231, § 6º: “São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos

que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé.”

371 Ibid., artigo 231, § 2º: “As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.”

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132

A consulta é obrigatória também para medidas legislativas. Caso a futura lei

complementar não seja formalizada com a consulta aos povos indígenas afetados, ela poderá

ser objeto de controle de convencionalidade.372

Isto porque todos os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo

Brasil fazem parte do bloco de constitucionalidade nacional, como visto na seção 2.2, para a

qual se remete para maior aprofundamento. Os tratados internacionais de direitos humanos

aprovados pelo procedimento previsto no artigo 5º, §3º da CF, têm nível material e

formalmente constitucionais, enquanto os demais são materialmente constitucionais.

A Convenção n.º 169 da Organização Internacional do Trabalho sobre os povos

indígenas e tribais em países independentes, é uma norma internacinal de direitos humanos,

foi ratificada pelo Brasil em 25 de julho de 2002, e foi promulgada pelo Decreto n.º 5051, de

19 de abril de 2004. Então, faz parte do direito brasileiro como normal materialmente

constitucional, sendo passível de funcionar como paradigma de controle de

convencionalidade.

O artigo 6º da Convenção 169 prescreve que os governos deverão “consultar os povos

interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, por meio de suas

instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou

administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente.”373

Assim, a consulta é necessária para o próprio processo legislativo da lei

complementar, devendo anteceder a promulgação da lei, sob pena dela ser inconstitucional,

pois afetará diretamente os povos indígenas brasileiros.

Também seria prudente que a lei complementar vislumbrasse mecanismos de

consulta aos povos afetados, em caso de relativização do seu direito ao usufruto exclusivo

das riquezas naturais de suas terras. Mesmo porque, a consulta também deve anteceder as

medidas administrativas suscetíveis de afetar diretamente os povos indígenas.

Este controle de constitucionalidade já foi realizado pela Corte Constitucional da

Colômbia. Na sentença C-030/2008, a Corte concluiu que a Lei Geral Florestal afetava

372 V. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. O controle jurisdicional da convencionalidade das leis... 373 BRASIL. Decreto n.º 5051, de 19 de abril de 2004. Convenção n.º 169..., artigo 6.1.a (grifo nosso).

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diretamente comunidades indígenas e afrodescendentes e que a consulta às comunidades era

imprescindível. Na ausência da consulta, a norma foi considerada inconstitucional.374

Ainda vale mencionar algumas outras experiências jurídicas relevantes no âmbito das

ordens constitucionais latinoamericanas375 e da ordem internacional dos direitos humanos

sobre o direito dos povos indígenas à terras e seus recursos.

Os direitos de acesso e participação na gestão dos recursos ambientais estão

intimamente relacionados com os direitos a terra e consulta livre, prévia e informada,

principalmente se considerada a noção de direitos dos povos indígenas estudado no capítulo

um, construída como um complexo indissociável com objetivo de realização de um projeto

existencial em harmonia com a natureza.

Tal direito à participação na gestão dos recursos ambientais foi analisado pela Corte

Suprema de Justiça da Nação Argentina, em 2003, que confirmou o julgamento que anulou

dois decretos que autorizavam atividade de desmatamento em território ancestral indígena. A

comunidade Hoktek T’Oi do povo Wichi questionou a constitucionalidade dos decretos, pois

estes violariam seus direitos constitucionais às terras tradicionalmente ocupadas e à

participação na gestão dos seus recursos naturais e outros interesses que os afetem. A decisão

ainda faz referencia ao direito indígena à participação nos estudos de impactos ambientais e

na proteção do meio ambiente.376

A Corte Suprema do Chile reconheceu, em 25 de novembro de 2009, o direito

ancestral dos povos indígenas de acesso à água. No caso, a empresa Agua Mineral Chusmiza

recorreu contra as sentenças favoráveis à comunidade Chusmiza-usmanaga do povo Aimara,

que lhes tinham garantido o aproveitamento das águas de terras indígenas, com a anulação da

concessão administrativa. A empresa alega o direito à propriedade das águas, quando está

sendo usada por pessoas que não sejam as titulares e que o direito ao aproveitamento se

constitui por ato da autoridade administrativa.

No entanto, a Corte recorda que estão discutindo direitos ancestrais da comunidade

indígena. Sendo assim, o direito de aproveitamento das águas reconhecido à comunidade é

374 COURTIS, Christian. Anotações sobre a aplicação da Convenção 169 da OIT sobre Povos Indígenas por

Tribunais da América Latina..., p. 66-67. 375 Precedentes jurisprudenciais selecionados em razão da relevância judicial e por serem de Estados

latinoamericanos, cujos povos indígenas compartilham realidade e história semelhantes aos povos indígenas brasileiros.

376 COURTIS, Christian. Aplicación del Convenio Núm. 169 de la OIT por tribunales nacionales e

internacionales en América Latina…, p. 43-44.

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anterior a qualquer constituição de direito originada por ato administrativo a favor de

terceiros e, por conseguinte, é anterior aos direitos da empresa recorrente. A sentença ainda

frisa que não se está concedendo um novo direito à comunidade, mas apenas regularizando o

uso imemorial dos recursos hídricos reconhecido pela lei indígena específica chilena, que em

seu artigo 64, é direta e inequívoca ao prescrever que se deverão proteger as águas das

comunidades indígenas.377

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em 2009, admitiu o caso da

comunidade Xámok Kásek do povo Enxet-lengua contra o Paraguai, relacionado com a não

demarcação do seu território, já mencionado neste capítulo. O Paraguai impedia a utilização

dos recursos naturais da área pelos povos indígenas, pois criou ali uma unidade de

conservação. Diante disto, a comissão enfatizou que apesar de ser valoroso o interesse do

Estado na proteção ambiental, especialmente porque a conservação das terras e seus recursos

naturais é um dos fatores mais importantes para a sobrevivência da cultura dos povos

indígenas, a proteção ambiental não pode ser realizada à custa da sobrevivência de uma

comunidade indígena.

Segundo a Comissão, uma saída para o conflito preservação da natureza e direitos

indígenas, é a realização da consulta do povo afetado, pois assim poderiam ser alcançados os

dois objetivos.378

Enfim, as condições impostas pelo STF em relação à vedação à ampliação das terras

indígenas e usufruto sob a responsabilidade do Estado em caso de sobreposição com

unidades de conservação, contrariam o próprio texto constitucional, pois violam o princípio

da vedação do retrocesso dos direitos fundamentais, diminuindo as possibilidades de que os

povos indígenas prossigam com a realização de seus projetos de vida.

As condições colocadas pelo STF para a demarcação desta terra indígena podem

refletir em futuras demarcações, o que maximiza o seu potencial lesivo aos direitos dos

povos indígenas. Um primeiro passo foi dado pela Advocacia Geral da União, que expediu a

377 CLAVERO, Bartolomé. Chile: reconocimiento judicial de derechos ancestrales (com aplicación del

Convenio 169). Bartolomé Clavero Ensayos, opiniones y actualidad. 30 Nov 2009. Disponível em: <http://clavero.derechosindigenas.org/?p=4439>. Acesso em 24 Maio 2011.

378 COMISSÃO Interamericana de Direitos Humanos. Demanda ante la Corte Interamericana De Derechos

Humanos en el caso Comunidad indígena Xákmok Kásek…, par. 172-176.

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Portaria n.º 303, de 16 de julho de 2012379, que normatizou estas condições absurdas para a

atuação da AGU.

O desrespeito aos direitos ambientais dos povos indígenas está evidente em outro

caso marcante da experiência jurídica brasileira, da usina hidrelétrica de Belo Monte, que

será analisado na subseção seguinte.

3.4 O caso da usina Hidrelétrica Belo Monte

A implantação da usina hidrelétrica de Belo Monte no rio Xingu, na região da cidade

de Altamira-PA, é discutida desde a década de 70, quando o aproveitamento hidrelétrico da

Amazônica entrou na pauta do projeto desenvolvimentista de industrialização brasileira.380

Tal implantação é foco de grandes controvérsias em razão da magnitude e da natureza de

seus impactos.

Aos povos indígenas, os impactos ambientais provenientes de megaprojetos da

magnitude da usina de Belo Monte são ainda mais graves do que aparentam, pois a relação

profunda e altamente complexa e sensível com o meio ambiente é uma das características

marcantes dos povos indígenas. Esta relação possui dimensões individuais e, principalmente,

coletivas e intergeracionais, pois atinge vários aspectos do bem viver dos povos indígenas

afetados, o que inclui sua identidade e sobrevivência física, social e cultural. Por isso, deve

ser levada em consideração na proteção das terras indígenas contra a degradação ambiental.

A água é um importante elemento no bem viver dos povos indígenas, que abrange

não apenas os aspectos físicos, como fonte de alimentação e transporte, mas também

aspectos simbólicos e culturais. Antônio Carlos Diegues afirma:

A água é um dos elementos centrais da reprodução não somente material mas também simbólica dos povos indígenas e comunidades tradicionais. Ela está presente em inúmeros mitos de criação dessas populações, da qual as divindades separaram as terras firmes. Também aparece nos mitos criadores das próprias

379 BRASIL. Advocacia Geral da União. Portaria n.º 303, de 16 de julho de 2012. Disponível em:

<http://www.agu.gov.br/SISTEMAS/SITE/PaginasInternas/NormasInternas/AtoDetalhado.aspx?idAto=596939&ID_SITE>. Acesso em: 29 Ago 2012.

380 V. TRISTE História da Hidrelétrica de Belo Monte I, A: o descompasso entre o discurso teórico e a prática do setor de energía. Blog do Philip Fearnside. Disponível em: < http://g1.globo.com/platb/natureza-philipfearnside/2009/11/04/a-triste-historia-da-hidreletrica-de-belo-monte-i-o-descompasso-entre-o-discurso-teorico-e-a-pratica-do-setor-de-energia/>. Acesso em: 24 Fev 2012; ESPECIAL Belo Monte: cronologia histórica. Instituto Socioambiental (ISA). Disponível em: <http://www.socioambiental.org/esp/bm/hist.asp>. Acesso em: 24 Fev 2012.

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sociedades, muitas vezes como dádiva dos deuses aos antepassados. Presente na criação do mundo, as águas são consideradas dádivas divinas abundantes e por isso mesmo o seu desaparecimento significa o fim da própria sociedade. [...] A água de rios, riachos, igarapés, igapós e lagos tem uma importância vital para os povos indígenas e alguns mitos narram que algumas dessas sociedades tem sua origem relacionada com a água doce, considerada um ser vivo que deve ser respeitado.Muitas dessas sociedades dependem da pesca e da caça de animais que vivem à beira dos rios.

381

Um dos aspectos problemáticos na relação entre o Estado e os povos indígenas

apontados pela ONU, é a falha dos Estados em proteger a integridade ambiental das terras

indígenas, especialmente quando envolvem iniciativas de desenvolvimento nacional. 382

Os impactos ambientais decorrentes da implantação da usina de Belo Monte

ameaçam diversos povos indígenas residentes da região e em regiões rio acima, pois a

implantação desta usina abre as portas para a implantação de diversas outras, sob a

justificativa de que estas outras represas aumentariam substancialmente a produção elétrica

de Belo Monte, ao regularizar a vazão do rio Xingu, que é altamente sazonal.383

Segundo Philip N. Fearnside, o “reservatório de Belo Monte é pequeno em relação à

capacidade de suas duas casas de força, mas os cinco reservatórios rio acima seriam grandes,

até mesmo para os padrões amazônicos.”384 Assim, a real ameaça de Belo Monte são as

futuras represas rio acima, que não terão óbice lógico para a construção depois que Belo

Monte já estiver em funcionamento, o que maximiza todos os argumentos contra a

construção da usina.

Após o 1º Encontro dos Povos Indígenas do Xingu, em fevereiro, em Altamira-PA,

em 1989385, a usina até então chamada de Kararaô recebeu o nome de Belo Monte, e em

381 DIEGUES, Antônio Carlos. Água e cultura nas populações tradicionais brasileiras. In: Encontro

internacional sobre governança da água na América Latina, 1, 2007, São Paulo. Anais...São Paulo, 2007. Disponível em: <http://www.usp.br/nupaub/simbolagua.pdf>. Acesso em: 24 Fev 2012, p. 1 e 15.

382 ORGANIZAÇÃO das Nações Unidas. Indigenous peoples and their relationship to land…, p. 25. 383 FEARNSIDE, Philip M. As hidrelétricas de Belo Monte e Altamira (Babaquara) como fontes de gases de

efeito estufa. Novos Cadernos NAEA, v. 12, n. 2, 2009, p. 6. 384 Id. 385 O encontro ganhou repercussão mundial quando durante a exposição de José Antonio Muniz Lopes (então

diretor de Engenharia e Obras da Eletronorte) sobre a construção da usina Kararaô, a índia Tuíra levanta-se da platéia e encosta a lâmina de seu facão no rosto do diretor da estatal num gesto de advertência, expressando sua indignação. A cena é reproduzida em jornais de diversos países e torna-se histórica. Na ocasião, Muniz Lopes anuncia que, por significar uma agressão cultural aos índios, a usina Kararaô - nome que significa grito de guerra em Kaiapó - receberia um outro nome e não seriam mais adotados nomes indígenas em usinas hidrelétricas. ESPECIAL Belo Monte: cronologia histórica. Instituto Socioambiental

(ISA). Disponível em: <http://www.socioambiental.org/esp/bm/hist.asp>. Acesso em: 24 Fev 2012. Este encontro demonstra a resistência social à implantação do megaprojeto desde o início das discussões.

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razão de dificuldades de aprovação em órgãos ambientais, um segundo plano foi formulado

sem a presunção de regularização da vazão rio acima, presente no plano anterior, de 1980. 386

A partir desta visão da usina de Belo Monte de forma individualizada, iniciaram-se os

estudos de viabilidade e os estudos de impactos ambientais – EIA. A continuação dos

estudos foi obstada pela justiça federal em 2001, pois a organização social responsável foi

contratada sem licitação, os estudos prosseguiam sem intervenção do IBAMA e IPHAN, e

houve ausência de autorização do Congresso Nacional nos termos do art. 231, §3º CF, entre

outros fundamentos.387

Em 26 de outubro de 2002, o presidente do STF, ministro Marco Aurélio Mello,

negou o pedido da União e manteve suspensos os Estudos de Impacto Ambiental de Belo

Monte. Segundo o ministro:

Realmente, o aproveitamento de recursos hídricos, tendo em conta a possibilidade de serem alcançadas terras indígenas, pressupõe autorização do Congresso Nacional, de acordo com o disposto no § 3o do artigo 231 da Carta da República. A razão é única e diz respeito às repercussões passíveis de acontecer. Nem se diga tratar-se de simples estudos de impacto ambiental para a implantação da usina hidrelétrica. O § 6o do citado artigo é abrangente, ao prever ser nulo e extinto todo e qualquer ato que tenha por objeto "a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes". A exceção ocorre quando há relevante interesse da União, exigindo-se a existência de lei complementar. [...] Não se trata de criar óbice ao desenvolvimento, mas de se proceder com segurança, visando-se a elucidar os parâmetros que devem nortear o almejado progresso. Hão de estar, em tudo, afinados com os ditames constitucionais. 388

A defesa da União de que Belo Monte está voltada ao desenvolvimento do potencial

energético nacional foi rebatida pelo presidente do STF pela necessidade de se “proceder

com segurança, visando-se a elucidar os parâmetros que devem nortear o almejado

progresso” 389.

Nesta decisão, o ministro deu destaque à necessidade de autorização do Congresso

Nacional para o aproveitamento de recursos hídricos em terras indígenas, na forma do artigo

231, §3º, da Constituição Federal, devendo esta autorização anteceder, inclusive, os estudos

386 FEARNSIDE, op. cit., p. 6. 387 BRASIL. Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Apelação Cível n.º 2001.39.00.005867-6/PA. Relatora

Convocada: Juíza Federal Maria Maura Martins Moraes Tayer. Brasília, 14 de outubro de 2009. Disponível em: <http://arquivo.trf1.jus.br/>. Acesso em: 24 Fev 2012, relatório e voto da relatora.

388 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Petiçãon.º 2604. Decisão do presidente ministro Marco Aurélio Melo. Brasília, 26 de outubro de 2002. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 24 Fev 2012.

389 Id.

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de impacto ambiental. Apesar de não mencionar expressamente, deve ser salientado que a

autorização do Congresso Nacional depende de prévia consulta aos povos indígenas

afetados, nos termos do mesmo dispositivo constitucional.

Em 2005, o Congresso Nacional emitiu tal autorização, mas não consultou os povos

indígenas, como se vê a seguir.

3.4.1 A (in)constitucionalidade do Decreto Legislativo n.º 788/2005

Em 2005 foi promulgado o Decreto Legislativo n.º 788/2005, em que o Congresso

Nacional autoriza a implantação do “Aproveitamento Hidroelétrico Belo Monte no trecho do

Rio Xingu, denominado “Volta Grande do Xingu”, localizado no Estado do Pará, a ser

desenvolvido após estudos de viabilidade técnica, econômica, ambiental e outros que julgar

necessários.” 390

No entanto, o procedimento legislativo de tal decreto ignorou o direito à consulta dos

povos indígenas previamente, como estabelece o artigo 231, §3º da Constituição Federal, a

Convenção n.º 169 da OIT e a Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas.

Sob este fundamento principal, iniciou-se uma batalha judicial.

Em 26/08/2005, o Procurador Geral da República ajuizou a Ação Direta de

Inconstitucionalidade – ADI n.º 3573/DF com o objetivo de que o Decreto Legislativo n.º

788/2005 fosse declarado inconstitucional por violação ao direito à consulta dos povos

indígenas afetados e por ausência da Lei Complementar prevista no artigo 231, §6º da CF.

Entretanto, em 01/12/2005, a ADIN não foi conhecida pelo Supremo Tribunal

Federal, pois o decreto questionado é um ato jurídico de efeito concreto, desvestido do

conteúdo normativo que autorizaria o controle concentrado de constitucionalidade, conforme

a ementa do julgamento transcrita a seguir:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. DECRETO LEGISLATIVO N. 788, DE 2005, DO CONGRESSO NACIONAL. AUTORIZAÇÃO AO PODER EXECUTIVO PARA IMPLEMENTAR O APROVEITAMENTO HIDROELÉTRICO BELO MONTE NO TRECHO DO RIO XINGU, LOCALIZADO NO ESTADO DO PARÁ. ATO CONCRETO. LEI-MEDIDA. AUSÊNCIA DE ABSTRAÇÃO E GENERALIDADE NECESSÁRIOS AO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE CONCENTRADO.

390 BRASIL. Senado Federal. Decreto Legislativo n.º 788, de 13 de julho de 2005. Disponível em

<http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaTextoIntegral.action?id=231371>. Acesso em: 23 Fev 2012, artigo 1º.

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INVIABILIDADE DA AÇÃO DIRETA. ARTIGO 102, INCISO I, “a”, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. 1. Compete ao Supremo Tribunal Federal julgar originariamente a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual [artigo 102, I, “a”, CB/88. Os atos normativos que se sujeitam ao controle de constitucionalidade concentrado reclamam generalidade e abstração. 2. Não cabe ação direta como via de impugnação de lei-medida. A lei-medida é lei apenas em sentido formal, é lei que não é norma jurídica dotada de generalidade e abstração. 3. Ação direta de inconstitucionalidade não conhecida.

391

Sendo o caso de ato concreto, este seria impugnável, por exemplo, mediante ação

civil pública. Assim fez o Ministério Público Federal, que em 24/03/2006, ajuizou a ação

civil pública n.º 2006.39.03.000711-8 na Justiça Federal do Pará, com pedido de liminar,

contra o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis – IBAMA, e

contra Centrais Elétricas do Norte do Brasil S/A – ELETRONORTE. A liminar foi deferida

para suspender o procedimento do IBAMA e da ELETRONORTE para licenciamento da

Usina Hidrelétrica de Belo Monte. Posteriormente, o juízo de 1º grau reconsiderou sua

decisão revogando a liminar anteriormente concedida.392

Contra a referida decisão, que permitiu a continuidade do procedimento de

licenciamento, o Ministério Público Federal interpôs o Agravo de Instrumento nº

2006.01.00.017736-8, que recebeu decisão monocrática que deferiu o efeito suspensivo

vindicado “para sustar a eficácia da decisão até o julgamento definitivo do agravo” 393. A

decisão liminar foi confirmada pela 5ª Turma do TRF em 13/12/2006, que considerou o

decreto inválido. 394

Entretanto, a União ingressou, perante o Supremo Tribunal Federal com o pedido de

Suspensão de Liminar nº 125-6/PA, objetivando a suspensão da decisão proferida no citado

agravo. A ministra Ellen Gracie, então presidente do STF, acatando a tese da União,

entendeu que o Decreto Legislativo n.º 788/2005 é constitucional, dentre vários argumentos,

porque o referido decreto não violaria o artigo 231,§3º da Constituição Federal, porque o seu

391 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade. ADI n.º 3573/DF. Relator:.

Min. Carlos Britto. Brasília, 01 de dezembro de 2005. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 24 Fev 2012.

392 BRASIL. Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Apelação Cível n.º 2006.39.03.000711-8/PA. Relatora: Desembargadora Federal Selene Almeida. Brasília, 14 de novembro de 2011. Disponível em: <http://arquivo.trf1.jus.br/>. Acesso em: 24 Fev 2012, relatório.

393 BRASIL. Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Agravo de Instrumento n.º 2006.01.00.017736-8/PA. Relatora: Desembargadora Federal Selene Almeida. Brasília, 24 de maio de 2006. Disponível em: <http://arquivo.trf1.jus.br/>. Acesso em: 24 Fev 2012, decisão liminar da relatora.

394 Ibid., ementa.

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texto prevê “que os estudos citados no art. 1º são determinantes para viabilizar o

empreendimento e, se aprovados pelos órgãos competentes, permitirão que o Poder

Executivo adote as medidas previstas em lei objetivando a implantação do aproveitamento

hidroelétrico em apreço.”395 Segundo a ministra, o artigo 2º, em seu inciso IV, prevê a

explícita observância do artigo 231, § 3º, da Constituição Federal. Ou seja, a ministra acatou

a tese de que os termos condicionais do decreto são o que o fazem constitucional.

Importante mencionar que, ao contrário do ministro Marco Aurélio Mello, a ministra

Ellen Gracie enumerou como argumento relevante para a sua decisão que “a não-viabilização

do empreendimento, presentemente, compromete o planejamento da política energética do

país”. 396

A sentença nos autos da ação civil pública, em primeiro grau, considerou o decreto

válido, assim como a 5ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, que contrariando

o voto da relatora, mudou seu entendimento e considerou válido o decreto no julgamento da

Apelação, conforme os argumentos da decisão da ministra Ellen Gracie:

CONSTITUCIONAL, ADMINISTRATIVO e AMBIENTAL. AUSÊNCIA DE VÍCIOS FORMAIS DO PROCESSO LEGISLATIVO QUE CULMINOU COM A PROMULGAÇÃO DO DECRETO LEGISLATIVO 788/2005 — QUE AUTORIZA O PODER EXECUTIVO A IMPLANTAR O APROVEITAMENTO HIDROELÉTRICO BELO MONTE. INEXISTÊNCIA, POIS, DE OFENSA ÀS NORMAS FUNDAMENTAIS DOS ARTS. 170, VI, E 231, § 3º, AMBAS DA LEI MAIOR. 1. Não se acha inquinado do vício de inconstitucionalidade o Decreto Legislativo 788/2005, que autoriza o Poder Executivo a implantar o Aproveitamento Hidroelétrico Belo Monte, localizado em trecho do Rio Xingu, no Estado do Pará, a ser desenvolvido, após estudos de viabilidade, pela Centrais Elétricas Brasileiras S.A. (Eletrobrás). 2. O Supremo Tribunal Federal, na sua relevante missão de intérprete maior da Constituição da República, já decidiu inexistir vício de formação no aludido decreto legislativo, por violação ao art. 231, § 3º, da Constituição da República, ante a falta de consulta prévia às comunidades afetadas (Suspensão de Liminar n. 125/2006, Ministra Ellen Grace). O ato emanado da então Presidente daquela Alta Corte Judiciária apreciou e deliberou, expressamente, sobre as seguintes questões essenciais, a saber: a) considerou acórdão anterior desta Quinta Turma ofensivo à ordem pública, entendida esta no contexto da ordem administrativa, e à economia pública, no ponto em que este Órgão Colegiado considerou inválido o decreto legislativo 788/2005 e proibiu ao IBAMA que elaborasse a consulta política às comunidades interessadas; [...] f) levou em consideração, à vista da alegada violação ao artigo 231, § 3º, da CF, que o artigo 3º do Decreto legislativo 788/2005 prevê que os estudos citados no art. 1º são determinantes para viabilizar o empreendimento, e concluiu que, se aprovados os

395 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Suspensão de Liminar n.º 125. Decisão da presidente ministra Ellen

Gracie. Brasília, 16 de março de 2007. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 24 Fev 2012. 396 Id.

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estudos pelos órgãos competentes, o Poder Executivo poderá adotar as medidas previstas em lei objetivando a implantação do empreendimento hidroelétrico em apreço; g) teve por certo que os estudos em referência estão definidos no art. 2º, o qual, em seu inciso IV, prevê a explícita observância do mencionado art. 231, § 3º, da Constituição Federal, pelo que é fora de dúvida que a questão atinente ao pretenso desrespeito pelo Congresso Nacional da norma inscrita no parágrafo 3º do art. 231 da lei Magna ficou, no mínimo, implicitamente afastada; h) ao deliberar acerca do argumento de que os estudos de natureza antropológica têm por finalidade indicar, com precisão, quais as comunidades serão afetadas, emitiu pronunciamento inequívoco acerca da necessidade de que as comunidades indígenas fossem ouvidas somente a posteriori; não, porém, conforme sustenta o Autor nesta ação, vale dizer, previamente à autorização congressual; e i) teve, ainda, por relevante, o argumento estatal no sentido de que se não fosse viabilizado o aproveitamento hidroelétrico, naquele momento, haveria o comprometimento do planejamento da política energética do país.[...] 3. Evidencia-se, portanto, que a Corte Constitucional assegurou o prosseguimento do processo de licenciamento da obra em questão, em função da qual já foram despendidos consideráveis recursos públicos, além de adotadas múltiplas e diversificadas ações, medidas e providências pela Administração, bem como por parte do empreendedor. 4. Ante todo o contexto da lide, é imprescindível reconhecer a preexistência de fatos e o transcurso de etapas que, sob qualquer ponto de vista, tornam irreversível a continuidade do empreendimento [...] 5. O art. 231, § 3º, da Carta da República enuncia dois requisitos prévios para o aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, quais sejam: autorização do Congresso Nacional e oitiva das comunidades afetadas. Não explicita, contudo, a precedência de uma medida sobre a outra. Nesse contexto, em observância ao princípio da razoabilidade, cumpre concluir que a oitiva das comunidades localizadas na área de influência do empreendimento somente pode ocorrer após a realização dos respectivos estudos (EIA/RIMA), até mesmo porque nesses estudos é que serão delimitadas as estratégias do empreendimento, de forma a mitigar os impactos ambientais e definir as efetivas repercussões do projeto. [...] 8. O ato congressual em discussão não se revela, outrossim, ofensivo à Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais, cujas normas estabelecem a consulta aos índios sobre medidas legislativas e administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente. Isso porque, no caso concreto, a oitiva das comunidades afetadas efetivamente ocorreu, tal como amplamente esclarecido no memorial apresentado pela própria FUNAI e demonstrado por documentos nos autos, uma vez que, em diversos momentos, foram realizadas consultas às comunidades locais, não só indígenas, como também de ribeirinhos. E, de outro lado, as normas inscritas em tal convenção não estabelecem que a consulta aos povos indígenas deva ser prévia à autorização do Congresso Nacional. Destaca-se, inclusive, a eficácia de tais reuniões realizadas com as aludidas comunidades, tanto é assim que o projeto referente ao empreendimento passou por diferentes alterações, resultantes de ações mitigadoras e reparadoras de danos que poderiam decorrer da implantação do AHE na região.[...]

397

Em 13 de agosto de 2012, a 5ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, em

julgamento de embargos de declaração apresentado pelo Ministério Público Federal, mudou

de opinião. Reconheceu seu equívoco e omissão e, com base na Constituição e na Convenção

397 BRASIL. Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Apelação Cível n.º 2006.39.03.000711-8/PA..., ementa.

(grifo nosso)

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n.º 169 da OIT, determinou a imediata paralisação das obras em razão do fato de que a

autorização do Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo n.º 788/2005,

[...] afigura-se manifestamente viciada, em termos materiais, à mingua de audiência prévia das comunidades indígenas afetadas, que deveria ocorrer à luz dos elementos colhidos previamente pelo estudo de impacto ambiental, que não pode, em hipótese alguma, como determinou o Decreto Legislativo 788/2005, ser um estudo póstumo às consultas necessárias à participação das comunidades indígenas. 398

O TRF da 1ª Região avançou não só em relação ao direito indígena à consulta, mas

também levou em consideração conceitos como mínimo existencial-ecológico, princípios da

prevenção, precaução e proibição do retrocesso ecológico, revelando-se, finalmente, sensível

aos direitos ambientais dos povos indígenas:

IX – Nesse contexto de desafios das metas de desenvolvimento para todos os seres vivos, neste novo milênio, na perspectiva da Conferência das Nações Unidas – Rio+20, a tutela jurisdicional-inibitória do risco ambiental, que deve ser praticada pelo Poder Judiciário Republicano, como instrumento de eficácia dos princípios da precaução, da prevenção e da proibição do retrocesso ecológico, como no caso em exame, no controle judicial de políticas públicas do meio ambiente, a garantir, inclusive, o mínimo existencial-ecológico dos povos indígenas atingidos diretamente e indiretamente em seu patrimônio de natureza material e imaterial (CF, art. 216, caput, incisos I e II) pelo Programa de Aceleração Econômica do Poder Executivo Federal, há de resultar, assim, dos comandos normativos dos arts. 3º, incisos I a IV e 5º, caput e incisos XXXV e LXXVIII e respectivo parágrafo 2º, c/c os arts. 170, incisos I a IX e 225, caput, e 231, § 3º, da Constituição da República Federativa do Brasil, em decorrência dos tratados e convenções internacionais, neste sentido, visando garantir a inviolabilidade do direito fundamental à sadia qualidade de vida, bem assim a defesa e preservação do meio ambiente ecologicamente equilibrado, em busca do desenvolvimento sustentável para as presentes e futuras gerações. 399

No entanto, poucos dias depois, o STF, através de decisão monocrática do seu

presidente, o ministro Carlos Ayres Britto, suspendeu os efeitos da decisão do TRF da 1ª

Região, sem adentrar no mérito da questão. 400

Os autos ainda estão tramitando no referido tribunal, sendo ainda possível a

interposição de recursos, até a data da redação deste texto, inclusive o recurso extraordinário

398 BRASIL. Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Embargos de Declaração na Apelação Cível n.º

2006.39.03.000711-8/PA. Relatora: Desembargadora Federal Selene Almeida. Relator para Acórdão: Desembargador Federal Souza Prudente. Brasília, 13 de agosto de 2012. Disponível em: <http://arquivo.trf1.jus.br/>. Acesso em: 29 Ago 2012.

399 Id. 400 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Reclamação n.º 14404. Decisão do presidente ministro Ayres Britto.

Brasília, 27 de agosto de 2012. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 29 Ago 2012.

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que pode permitir que o Supremo Tribunal Federal, de forma colegiada, analise

profundamente a (in)constitucionalidade do Decreto Legislativo n.º 788/2005.

3.4.2 A distorção dos direitos à consulta e ao consentimento

Na Constituição Federal brasileira, o direito à consulta aos povos indígenas é previsto

expressamente no artigo 231, §3º, no caso do aproveitamento dos recursos de propriedade

federal:

§ 3º - O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.

401

Da simples leitura do dispositivo constitucional, é possível apreender que a oitiva das

comunidades afetadas deve ser anterior à autorização do Congresso Nacional. Como afirma a

Desembargadora Federal Selene Almeida, em seu voto no julgamento da Apelação n.º

2006.39.03.000711-8/PA, esta é uma questão de interpretação lógica:

[...] a ausência da norma expressa na Constituição Federal sobre o momento da oitiva das comunidades afetadas nos induz a olhar a lógica das coisas e não os interesses em conflito. A lógica indica que o Congresso só pode autorizar a obra em área indígena depois de ouvir a comunidade. [...] Não se autoriza para depois se consultar. Ouve-se os indígenas e depois autoriza-se, ou não, a obra.

402

O direito à consulta é amplamente previsto na ordem jurídica dos direitos humanos. A

Convenção n.º 169 da OIT403 o prevê principalmente em seu artigo 6º e 15:

Artigo 6º 1. Ao aplicar as disposições da presente Convenção, os governos deverão: a) consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente; [...]

401 BRASIL. Constituição…, artigo 231, §3º. 402 BRASIL. Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Apelação Cível n.º 2006.39.03.000711-8/PA..., voto da

relatora, p. 20. 403 Frise-se que a Convenção n.º 169 da OIT faz formalmente parte do ordenamento jurídico interno, eis que

ratificada e promulgada internamente e segundo entendimento do STF tem status hierárquico supralegal, ou seja, superior às leis.

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2. As consultas realizadas na aplicação desta Convenção deverão ser efetuadas com boa fé e de maneira apropriada às circunstâncias, com o objetivo de se chegar a um acordo e conseguir o consentimento acerca das medidas propostas. Artigo 15 [...] 2. Em caso de pertencer ao Estado a propriedade dos minérios ou dos recursos do subsolo, ou de ter direitos sobre outros recursos, existentes na terras, os governos deverão estabelecer ou manter procedimentos com vistas a consultar os povos interessados, a fim de se determinar se os interesses desses povos seriam prejudicados, e em que medida, antes de se empreender ou autorizar qualquer programa de prospecção ou exploração dos recursos existentes nas suas terras. Os povos interessados deverão participar sempre que for possível dos benefícios que essas atividades produzam, e receber indenização equitativa por qualquer dano que possam sofrer como resultado dessas atividades. 404

Assim, um dos compromissos assumidos pelo Brasil ao ratificar a convenção foi o de

consultar de boa-fé os povos indígenas a cada previsão de medida administrativa ou

legislativa capaz de afetá-los diretamente, especialmente no caso de se relacionarem à

exploração dos recursos existentes em suas terras.

O princípio da boa-fé que deve presidir todo o processo de consulta prévia significa

que a consulta não deve ser mera etapa burocrática, tomada apenas para legitimar decisões

estatais já tomadas em detrimento dos direitos e dos interesses dos povos indígenas. É dizer

que:

[...] significa, dentre outras coisas, que as informações prestadas as populações tribais não podem ser distorcidas, que a comunidade não pode ser manipulada e consulta não pode ser levada a cabo somente depois de tomada a medida legislativa ou administrativa, eis que em tal hipótese tem por única e exclusiva finalidade legitimar decisões já tomadas pelo Estado e desfavoráveis a comunidade indígena ou tribal. 405

No caso do Decreto Legislativo n.º 788/2005, o principal argumento a favor de sua

constitucionalidade é que a autorização foi dada em termos condicionais. Aqui faz-se

necessário transcrever o texto do referido decreto:

Art. 1º É autorizado o Poder Executivo a implantar o Aproveitamento Hidroelétrico Belo Monte no trecho do Rio Xingu, denominado “Volta Grande do Xingu”, localizado no Estado do Pará, a ser desenvolvido após estudos de viabilidade técnica, econômica, ambiental e outros que julgar necessários. Art. 2º Os estudos referidos no art. 1º deste Decreto Legislativo deverão abranger, dentre outros, os seguintes: I - Estudo de Impacto Ambiental - EIA; II - Relatório de Impacto Ambiental - Rima; III - Avaliação Ambiental Integrada - AAI da bacia do Rio Xingu; e

404 BRASIL. Decreto n.º 5051, de 19 de abril de 2004. Convenção n.º 169..., artigos 6º e 15. 405 BRASIL. Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Apelação Cível n.º 2006.39.03.000711-8/PA..., voto da

relatora, p. 26.

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IV - estudo de natureza antropológica, atinente às comunidades indígenas localizadas na área sob influência do empreendimento, devendo, nos termos do § 3º do art. 231 da Constituição Federal, ser ouvidas as comunidades afetadas. Parágrafo único. Os estudos referidos no caput deste artigo, com a participação do Estado do Pará, em que se localiza a hidroelétrica, deverão ser elaborados na forma da legislação aplicável à matéria. Art. 3º Os estudos citados no art. 1º deste Decreto Legislativo serão determinantes para viabilizar o empreendimento e, sendo aprovados pelos órgãos competentes, permitem que o Poder Executivo adote as medidas previstas na legislação objetivando a implantação do Aproveitamento Hidroelétrico Belo Monte.

406

A decisão da Ministra da STF, Ellen Gracie, na suspensão de liminar, influenciou a

decisão posterior do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, em ação civil pública, que

considerou o referido decreto válido, pois ela considerou que:

[...] o art. 3º do Decreto Legislativo 788/2005 prevê que os estudos citados no art. 1º são determinantes para viabilizar o empreendimento e, se aprovados pelos órgãos competentes, permitirão que o Poder Executivo adote as medidas previstas em lei objetivando a implantação do aproveitamento hidroelétrico em apreço. Esses estudos estão definidos no art. 2º, o qual, em seu inciso IV, prevê a explícita observância do mencionado art. 231, § 3º, da Constituição Federal. Sobreleva, também, o argumento no sentido de que os estudos de natureza antropológica têm por finalidade indicar, com precisão, quais as comunidades que serão afetadas.

407

O desembargador federal Fagundes de Deus, no voto vencedor no julgamento da

Apelação n.º 2006.39.03.000711-8/PA, neste sentido, afirma que:

[...] parece-me certo que inexistiu ofensa à Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais. É que as normas inscritas em tal convenção não estabelecem que a consulta aos povos indígenas deva ser prévia à autorização do Congresso Nacional. Essa autorização congressual consubstancia fase antecedente de qualquer outra, pois enseja a implantação do aproveitamento hidroelétrico, condicionando-a, contudo, à posterior comprovação de sua viabilidade. Se os posteriores estudos demonstrarem a sua inviabilidade, o empreendimento nem sequer será efetivado. Assim, a edição do Decreto Legislativo, por si só, não significa a efetivação do empreendimento. Tanto é assim que o próprio Decreto Legislativo 788/2005 determina, em seu art. 2º, que, antes do efetivo aproveitamento hidroelétrico de Belo Monte, sejam realizados estudos de viabilidade, incluindo a oitiva das comunidades envolvidas, e, segundo o seu § 3º, a aprovação desses estudos tem caráter determinante para a efetiva implantação do aproveitamento hidroelétrico de Belo Monte. Considero, pois, que a Convenção 169 da OIT estabelece, sim, é que a oitiva dos índios deva anteceder ao início da implantação ou autorização efetiva das obras, o que, na espécie, efetivamente ocorreu, uma vez que, em diversos momentos, foram realizadas consultas às comunidades locais, não só indígenas,

406 BRASIL. Senado Federal. Decreto Legislativo n.º 788..., artigos 1º, 2º e 3º. (grifo nosso) 407 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Suspensão de Liminar n.º 125. Decisão da presidente ministra Ellen

Gracie...

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como também ribeirinhos, passíveis de serem afetados em decorrência da implementação da usina. 408

Aqui se vislumbra um contrassenso: se a consulta aos povos indígenas é condição

para a autorização do Congresso Nacional (artigo 231, §3º, da Constituição), como é possível

conceder autorização condicionada (artigos 1º e 3º, do Decreto) a estudo posterior, que

deverá incluir a consulta (artigo 2º, IV, do Decreto)?

O que se percebe é uma interpretação distorcida do texto constitucional, contrário ao

texto da Convenção n.º 169 da OIT e ao texto da Declaração da ONU sobre os Direitos dos

Povos Indígenas.

A Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas prevê expressamente o

direito à consulta prévia dos povos indígenas, como se lê:

Artigo 19 Os Estados consultarão e cooperarão de boa-fé com os povos indígenas interessados, por meio de suas instituições representativas, a fim de obter seu consentimento livre, prévio e informado antes de adotar e aplicar medidas legislativas e administrativas que os afetem. [...] Artigo 32 [...] 2. Os Estados celebrarão consultas e cooperarão de boa-fé com os povos indígenas interessados, por meio de suas próprias instituições representativas, a fim de obter seu consentimento livre e informado antes de aprovar qualquer projeto que afete suas terras ou territórios e outros recursos, particularmente em relação ao desenvolvimento, à utilização ou à exploração de recursos minerais, hídricos ou de outro tipo.

O direito à consulta prévia requer que o Estado estabeleça diálogos de boa-fé antes de

medidas administrativas ou legislativas que possam afetar determinados povos indígenas. O

objetivo da consulta prévia é o Estado alcançar o consentimento, que deve ser livre prévio e

informado, ou estabelecer um acordo com os povos indígenas a serem afetados.

Caso não se alcance o consentimento ou aceitação da medida, inicia-se um processo

de negociação para chegar a um acordo. Não acontecendo o acordo, o Estado deve tomar

uma decisão, que deve ser fundamentada e deve levar em conta os direitos fundamentais dos

povos indígenas, as suas prioridades de desenvolvimento, a minimização dos riscos, a

408 BRASIL. Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Apelação Cível n.º 2006.39.03.000711-8/PA..., voto vista

do desembargador federal Fagundes de Deus, p. 8.

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garantia de benefícios, indenizações e outros, conforme estabelece a Convenção n.º 169, da

OIT.409

No caso do Decreto Legislativo n.º 788/2005 estas etapas foram invertidas e

desvirtuaram o objetivo do direito à consulta prévia para os povos indígenas, que é

concretizar seu “direito de escolher suas, próprias prioridades no que diz respeito ao processo

de desenvolvimento” 410. Não houve diálogo de boa-fé, consentimento prévio ou negociação

frustrada que viabilizasse uma decisão estatal. Houve apenas a decisão e a previsão de

consulta futura, de caráter meramente burocrático que servirá apenas para confirmar a

decisão estatal já tomada.

É importante frisar que a 5ª Turma do TRF da 1ª Região mudou seu entendimento no

julgamento dos embargos de declaração apresentados pelo Ministério Público Federal.

No caso de implantação de usina hidrelétrica de tamanha magnitude, apreende-se da

interação com experiências externas, especialmente no âmbito dos direitos humanos, que a

finalidade da consulta deveria ser apenas uma: alcançar o consentimento livre, prévio e

informado dos povos indígenas.

O consentimento livre prévio e informado é um direito de caráter específico, que

constitui um requisito adicional ao exercício de outros direitos, como o direito à participação

e à consulta prévia, para que o Estado possa tomar uma decisão, quando a matéria em

questão se refere a atos que possam afetar direitos fundamentais dos povos indígenas e por

em risco sua integridade.411

Existem casos em que a decisão estatal está condicionada não apenas à consulta

prévia dos povos afetados, mas também ao seu consentimento prévio. A Convenção n.º 169

da OIT prevê o caso de translado de população412. A Declaração da ONU prevê os casos de

409 FAJARDO, Raquel Z. Yrigoyen. De la tutela indígena a la libre determinación del desarrollo, la

participación, la consulta y el consentimiento. El otro derecho, n. 40, 2009, p. 28. 410 BRASIL. Decreto n.º 5051, de 19 de abril de 2004. Convenção n.º 169..., artigo 7.1: “Os povos interessados

deverão ter o direito de escolher suas, próprias prioridades no que diz respeito ao processo de desenvolvimento, na medida em que ele afete as suas vidas, crenças, instituições e bem-estar espiritual, bem como as terras que ocupam ou utilizam de alguma forma, e de controlar, na medida do possível, o seu próprio desenvolvimento econômico, social e cultural. Além disso, esses povos deverão participar da formulação, aplicação e avaliação dos planos e programas de desenvolvimento nacional e regional suscetíveis de afetá-los diretamente.”

411 FAJARDO, Raquel Z. Yrigoyen. De la tutela indígena..., p. 30. 412 BRASIL, op. cit., artigo 16.2: “2. Quando, excepcionalmente, o translado e o reassentamento desses povos

sejam considerados necessários, só poderão ser efetuados com o consentimento dos mesmos, concedido livremente e com pleno conhecimento de causa. Quando não for possível obter o seu consentimento, o translado e o reassentamento só poderão ser realizados após a conclusão de procedimentos adequados

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translado de populações, de eliminação e armazenagem de materiais perigosos e de

atividades militares em terras indígenas, além de projetos que as afetem, especialmente os

relacionados à exploração de recursos minerais e hídricos. 413

No caso Saramaka vs. Suriname, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, com

base no artigo 32.2 da Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas, decidiu

que o consentimento é imprescindível em caso de megaprojetos que possam afetar o modo

de vida dos povos indígenas. 414

A Corte Constitucional da Colômbia possui diversos julgados no sentido da

imprescindibilidade do direito à consulta e ao consentimento livre, prévio e informado que

podem fornecer subsídios para uma melhor interpretação e aplicação destes direitos no

Brasil.415

O Decreto n.º 788/2005, por enquanto, é considerado válido pelo poder judiciário

brasileiro. No entanto, há uma chance de, em sede recursal, o STF analisar e aplicar os

direitos dos povos indígenas que já estão incorporados formalmente no ordenamento jurídico

interno brasileiro, através da Convenção n.º 169 da OIT, bem como de buscar interagir com

as referências jurídicas externas, de modo que faça valer os direitos indígenas à consulta, à

participação e ao consentimento, de forma a remover as incompreensões e as deficiências de

proteção dos direitos ambientais dos povos indígenas no Brasil.

estabelecidos pela legislação nacional, inclusive enquetes públicas, quando for apropriado, nas quais os povos interessados tenham a possibilidade de estar efetivamente representados.”

413 ORGANIZAÇÃO das Nações Unidas. Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos

Indígenas..., artigo 10: “Os povos indígenas não serão removidos à força de suas terras ou territórios. Nenhum traslado se realizará sem o consentimento livre, prévio e informado dos povos indígenas interessados e sem um acordo prévio sobre uma indenização justa e eqüitativa e, sempre que possível, com a opção do regresso.”; artigo 29.2: “Os Estados adotarão medidas eficazes para garantir que não se armazenem, nem se eliminem materiais perigosos nas terras ou territórios dos povos indígenas, sem seu consentimento livre, prévio e informado.”; artigo 30.1: “Não se desenvolverão atividades militares nas terras ou territórios dos povos indígenas, a menos que essas atividades sejam justificadas por um interesse público pertinente ou livremente decididas com os povos indígenas interessados, ou por estes solicitadas.”; e artigo 32.2: “Os Estados celebrarão consultas e cooperarão de boa-fé com os povos indígenas interessados, por meio de suas próprias instituições representativas, a fim de obter seu consentimento livre e informado antes de aprovar qualquer projeto que afete suas terras ou territórios e outros recursos, particularmente em relação ao desenvolvimento, à utilização ou à exploração de recursos minerais, hídricos ou de outro tipo.”

414 CORTE Interamericana de Direitos Humanos. Caso del Pueblo Saramaka vs. Surinam. Sentencia del 28 de noviembre de 2007, par. 134 e 135.

415 V. Subseção 3.3.2.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os direitos ambientais dos povos indígenas constituem um complexo de direitos

interdependentes ligados à proteção do bem viver dos povos indígenas, no contexto da

realização de seus projetos existenciais, noções estas intimamente conectadas ao meio

ambiente sadio, direito fundamental insculpido na Constituição brasileira.

A construção desta noção de direitos ambientais dos povos indígenas apenas foi

possível a partir da incursão nos conceitos de multiculturalismo e constitucionalismo aberto a

experiências externas.

No multiculturalismo, constata-se que a sociedade humana é incrivelmente diversa e

dentro desta diversidade alguns grupamentos humanos se diferenciam pelo seu modo de

vida, que é determinado pela sua coesão cultural, sua espiritualidade e suas instituições,

constituindo nações. Dentre estas nações, destacam-se os povos indígenas, que se

diferenciam por possuírem uma cultura determinada, na maioria das vezes, pelo seu

relacionamento com a natureza. Esta diferenciação social e cultural permite a existência de

direitos diferenciados. A Constituição Federal brasileira reconhece o país como um estado

multicultural, pois, dentre outros motivos, reconhece o modo de vida dos povos indígenas

brasileiros e lhes provê direitos para protegê-lo.

O constitucionalismo aberto a experiências jurídicas externas revela um

constitucionalismo com uma arquitetura aberta à busca de referências em outras realidades

que não o do próprio texto constitucional. Este pensamento é possível considerando as atuais

discussões sobre o constitucionalismo global, a constitucionalização do direito internacional,

principalmente dos direitos humanos, e o transconstitucionalismo. As cláusulas de

conversação entre textos constitucionais estatais e normas internacionais de direitos humanos

e a constitucionalização destas normas previstas em textos constitucionais podem ser

apontados como indícios do constitucionalismo aberto às experiências externas.

Estas duas noções iniciais foram importantes para alcançar a noção de direitos

ambientais dos povos indígenas proposta por este estudo. Ao Brasil, estado multicultural e

inserido no contexto do constitucionalismo aberto a experiências jurídicas externas, é

permitida a busca de referências fora de seu contexto constitucional formal. Frise-se que tais

referências estão em plena consonância com a constitucionalidade brasileira.

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Estas referências são os direitos de bem viver e o direito a um projeto de vida. Estes

direitos surgem para a experiência jurídica brasileira como outra forma de ver os direitos

insculpidos na Constituição Federal.

Os direitos de bem viver advêm da experiência constitucional de países

latinoamericanos, como o Equador e a Bolívia, que incorporaram as cosmovisões indígenas

ao seu ordenamento jurídico. O buen vivir dos países vizinhos representa uma forma

diferente de ver o meio ambiente, como parte de uma relação de convivência harmônica, e

propõe uma nova forma de desenvolvimento. Ele é a síntese de constitucionalismo mais

humano e mais natural.

A noção de direito a um projeto de vida surgiu no âmbito da doutrina jurídica peruana

e foi amadurecida pela jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos. O

direito ao projeto de vida envolve o direito a desenvolver seu destino conforme suas próprias

opções, convicções e ideais, e por isso se aproxima muito da noção de autodeterminação.

Portanto, os direitos ambientais dos povos indígenas são aqueles que envolvem a

proteção do bem viver e a realização de seus projetos existenciais, num aspecto físico-

ambiental que afeta sua existência social, cultural e espiritual.

Toda esta contextualização é perfeitamente compatível com a ordem constitucional

brasileira. Neste estudo defende-se que os direitos ambientais dos povos indígenas decorrem

das disposições dos capítulos constitucionais sobre o meio ambiente e sobre “os índios”.

Defende-se neste estudo, ainda, que o conceito de direitos ambientais dos povos indígenas

extrapola o conteúdo do direito fundamental ao meio ambiente, insculpido no artigo 225 da

Constituição Federal. Isto porque há uma relação direta dos direitos originários indígenas

(associados ao artigo 231) e o meio ambiente (protegido pelo artigo 225). A proteção

fornecida pelos direitos constitucionais indígenas seria insuficiente, incompleta e imperfeita

se não fosse possível estender a proteção do direito fundamental ao meio ambiente a outras

realidades que não apenas a do meio ambiente natural.

É dizer, a proteção conferida pelos direitos ambientais dos povos indígenas ultrapassa

a proteção do direito fundamental ao meio ambiente, porque a associa às realidades

protegidas pelos direitos constitucionais indígenas, fornecendo, portanto, uma proteção

jurídica complexa e completa. Portanto, o artigo 225 deve ser compreendido como um

dispositivo aberto à comunicação com outras realidades (como o artigo 231 e as experiências

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externas citadas) para assegurar proteção aos povos indígenas, que possuem um modelo

diferenciado de desenvolvimento humano.

Os direitos ambientais dos povos indígenas carecem de observância pela experiência

jurídica nacional. Por isso, a abertura do constitucionalismo às experiências externas faz-se

igualmente necessária. Esta abertura foi importante para a construção do conceito de direitos

ambientais dos povos indígenas e será importante para a concretização destes direitos.

A experiência jurídica nacional não merece muitos reparos quanto ao reconhecimento

do direito a terra indígena e sua demarcação, base de um mínimo ecológico de existência. É

sabido que existem áreas pendentes de demarcação, mas isto ultrapassa a seara jurídica. Em

relação às terras indígenas, o que preocupa são algumas condições colocadas pelo STF no

julgamento da demarcação da Terra Indígenas Raposa Serra do Sol, que restringem a

ampliação e estabelecem um marco temporal para a caracterização da ocupação

“tradicional”, que podem afetar as demais terras indígenas brasileiras.

Estas e outras condições colocadas pelo STF, amplamente discutidas neste estudo,

ainda estão num plano abstrato, cuja aplicação não parece distante diante da normatização

expedida pela AGU. Elas se mostram como uma prévia das violações e restrições aos direitos

indígenas que estão por vir.

Entretanto, o caso na Usina Hidrelétrica de Belo Monte representa uma ameaça real e

atual, que ainda pode ser evitada. As decisões proferidas a favor da constitucionalidade do

Decreto Legislativo que autorizou a implantação do megaprojeto sem o procedimento de

consulta prévia dos povos indígenas afetados mostram como a experiência jurídica nacional

precisa se abrir para as experiências externas, para que forneça a proteção devida aos povos

indígenas. As decisões do STF neste caso não consideraram o texto da Constituição Federal e

da Convenção n.º 169 da OIT, devidamente ratificado e incorporado ao ordenamento jurídico

pátrio, nunca apreciando o mérito das questões sobre o direito à consulta.

O poder judiciário brasileiro, mais especificamente o STF, guardião da Constituição,

ignorou os direitos ambientais dos povos indígenas, sejam materiais ou procedimentais. A

principal violação, que também se revela no caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, se

refere ao direito à consulta prévia dos povos indígenas.

O direito à consulta, assim como o direito ao consentimento livre, prévio e informado

e o direito à autonomia, sofre um processo de invisibilização, da mesma forma que seus

titulares. Estes direitos não são aplicados e por isso as disposições constitucionais sobre os

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direitos ambientais dos povos indígenas acabam fornecendo uma proteção insuficiente e

incompleta, muito distante do seu real potencial, em prol do desenvolvimento a qualquer

custo.

Depois de tamanho retrocesso jurídico com o caso da Terra Indígena Raposa Serra do

Sol, surge a oportunidade dos tribunais brasileiros avançarem dando concretude aos direitos

ambientais dos povos indígenas. O TRF da 1ª Região deu um primeiro passo voltando a

reconhecer o direito à consulta prévia dos povos indígenas. Agora, o STF pode reparar, de

certa forma, as injustiças cometidas no caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, o

reconhecendo também, lhe dando a visibilidade necessária para um início de concretização e

oferecendo segurança jurídica aos povos indígenas brasileiros.

Muitas referências podem ser buscadas em outras experiências jurídicas, estando

muitas delas mencionadas neste estudo. O que se espera é que o direito brasileiro as busque e

forneça a proteção jurídica necessária para a sobrevivência dos povos indígenas, no gozo de

todos os seus direitos, vivendo bem e mantendo seus projetos existenciais. Em suma, que

sejam respeitados os direitos ambientais dos povos indígenas.

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REFERÊNCIAS

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______; MARTINEZ, Esperanza (Comp.). El buen vivir: una vía para el desarrollo. Quito: Abya-Yala: 2009.

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