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1 | 17 0 SNHCT ANAIS ELETRÔNICOS Ver/fazer ciência. A fotografia na prática científica ROSANA HORIO MONTEIRO Investigo nesse artigo as imagens científicas premiadas entre 2013 e 2018 no concurso Fotografia - Ciência & Arte do CNPq. A partir da compreensão de estética como partilha do sensível, conforme propõe Rancière, e de um diálogo entre os Estudos de Cultura Visual, a História da Ciência e a História da Arte, pro- curo entender como pensam essas imagens e como elas nos fazem pensar sobre a prática científica contemporânea. Argumento que vários elementos que atuam na produção das imagens científicas se conectam entre si e ao sujeito que as percebe, criando uma estética, uma nova distribuição do sensível. O processo de produção de imagens científicas pode também estar repleto de escolhas consi- deradas artísticas, ainda que seus propósitos possam ser inteiramente diferentes. Fotografia e ciência Desde os seus primordios no século XIX a fotografia foi utilizada na obser- vação científica, devido à sua capacidade de capturar a realidade natural em um único momento e preservá-la para um exame minucioso. O físico francês Fran- çois Arago, em seu discurso de apresentação da daguerreotipia à Câmara dos Deputados francesa em 1839, já enumerava a utilização dos daguerreótipos na arqueologia, astronomia, fotometria, topografia etc., paralelamente às artes em geral, qualificando as imagens obtidas como “exatas”, “fiéis”, “reais”. Na astronomia, as primeiras imagens do sol e de um eclipse solar foram produzidas já na década de 1840 através da daguerreotipia. No final do século XIX, imagens fotográficas - baseadas então em uma nova técnica de transferên- cia de imagens de placas de vidro revestidas de prata para papel – já tinham se tornado uma ferramenta essencial na divulgação da ciência, com o aparecimento frequente de imagens fotográficas em revistas científicas. Desde então, o papel da fotografia na ciência só cresceu. Por que os cientistas sempre tiveram tanto apreço pela fotografia? A obser- vação cuidadosa de evidências está no centro do método científico moderno e a fotografia sempre foi valorizada como uma técnica objetiva de observação, su- postamente livre do potencial de erro humano implícito no método mais antigo

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Ver/fazer ciência. A fotografia na prática científica

ROSANA HORIO MONTEIRO

Investigo nesse artigo as imagens científicas premiadas entre 2013 e 2018 no concurso Fotografia - Ciência & Arte do CNPq. A partir da compreensão de estética como partilha do sensível, conforme propõe Rancière, e de um diálogo entre os Estudos de Cultura Visual, a História da Ciência e a História da Arte, pro-curo entender como pensam essas imagens e como elas nos fazem pensar sobre a prática científica contemporânea. Argumento que vários elementos que atuam na produção das imagens científicas se conectam entre si e ao sujeito que as percebe, criando uma estética, uma nova distribuição do sensível. O processo de produção de imagens científicas pode também estar repleto de escolhas consi-deradas artísticas, ainda que seus propósitos possam ser inteiramente diferentes.

Fotografia e ciênciaDesde os seus primordios no século XIX a fotografia foi utilizada na obser-

vação científica, devido à sua capacidade de capturar a realidade natural em um único momento e preservá-la para um exame minucioso. O físico francês Fran-çois Arago, em seu discurso de apresentação da daguerreotipia à Câmara dos Deputados francesa em 1839, já enumerava a utilização dos daguerreótipos na arqueologia, astronomia, fotometria, topografia etc., paralelamente às artes em geral, qualificando as imagens obtidas como “exatas”, “fiéis”, “reais”.

Na astronomia, as primeiras imagens do sol e de um eclipse solar foram produzidas já na década de 1840 através da daguerreotipia. No final do século XIX, imagens fotográficas - baseadas então em uma nova técnica de transferên-cia de imagens de placas de vidro revestidas de prata para papel – já tinham se tornado uma ferramenta essencial na divulgação da ciência, com o aparecimento frequente de imagens fotográficas em revistas científicas. Desde então, o papel da fotografia na ciência só cresceu.

Por que os cientistas sempre tiveram tanto apreço pela fotografia? A obser-vação cuidadosa de evidências está no centro do método científico moderno e a fotografia sempre foi valorizada como uma técnica objetiva de observação, su-postamente livre do potencial de erro humano implícito no método mais antigo

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de esboçar observações experimentais. Além disso, a fotografia consegue coletar dados que não podem ser detectados ou processados pelo olho humano.

As mais tradicionais histórias da visão sugerem que as inovações tecnológi-cas, tais como a fotografia ou o cinema, resultaram numa suposta documentação crescentemente objetiva das imagens. Jonathan Crary (1995), em Techniques of the observer, chama a atenção para a suposta neutralidade atribuída a tais tec-nologias e sugere que a invenção de muitos artefatos ópticos a partir de meados do século 19, como o diorama, o caleidoscópio e o estereoscópio, encorajaram o observador a ver de uma forma “codificada” e “rigidamente definida”; um modo de ver novo inerentemente relacionado à modernidade. Para Crary, a moderni-zação da sociedade teria encorajado a transformação da visão humana em “algo mensurável e mutável” (1995: 17).

Usando a tecnologia que capturou o caminho disperso de feixes de raios X invisíveis, por exemplo, a cientista Rosalind Franklin, em 1952, foi capaz de revelar a estrutura precisa de moléculas de DNA entrelaçadas - a dupla hélice. As câmeras telescópicas podem registrar galáxias localizadas a bilhões de anos-luz de distân-cia da Terra, como mostram imagens produzidas pela NASA. E a fotografia pode até “desacelerar” eventos que normalmente são rápidos demais para os olhos. Em 1878, por exemplo, as revolucionárias fotografias de Eadweard Muybridge de um cavalo em movimento resolveram uma longa disputa sobre se os quatro pés de um cavalo em movimento estão fora do solo ao mesmo tempo – e estão! Na década de 1950, o físico do MIT (Massachusetts Institute of Technology) Harold Edgerton usou um flash estroboscópico para produzir imagens dos padrões pre-cisos feitos por uma bala passando por uma maçã, uma gota de leite espirrando em um copo e um beija-flor batendo suas asas.

Essas descobertas ilustram um padrão fundamental: avanços tecnológicos em ótica, câmeras e controle de iluminação contribuiram para avanços e desco-bertas científicas. Um exemplo dessa dinâmica envolve câmeras digitais. Desen-volvidas no início dos anos 1980, câmeras computadorizadas que usam um chip eletrônico sensível à luz chamado CCD (Charge-coupled device – Dispositivo de carga acoplado) permitiram que comprimentos de onda de luz fossem converti-dos em cargas eletrônicas (e não em grãos de prata oxidados), possibilitando um controle mais sensível sobre os tempos de exposição. Os cientistas rapidamente perceberam que com a possibilidade de capturar imagens em condições muito escuras as câmeras CCD poderiam ser usadas para registrar formas e estruturas no interior de tecidos biológicos ou sob uma lente de microscópio.

Cientistas e engenheiros continuam trabalhando juntos para desenvolver tec-nologias de imagem científicas mais poderosas, como a ressonância magnética funcional (fMRI), que mede os campos magnéticos de moléculas de oxigênio no interior do tecido cerebral para rastrear a atividade cerebral e a microscopia de força atômica (AFM), com o uso de feixes de laser refletidos para mapear as super-fícies minúsculas e complexas de átomos de carbono ligados em nanomateriais.

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Mais recentemente, em abril de 2019, por intermédio de uma enorme rede de telescópios, cientistas de diferentes nacionalidades obtiveram dados que podem mudar o que se sabe sobre a gravidade. Trata-se do ponto culminante de décadas de trabalho no desenvolvimento de uma técnica chamada de interferometria de base muito longa, que é o esforço de combinar os dados de vários radiotelescó-pios separados por longa distância numa única imagem. A primeira observação feita pela equipe foi em 2006, mas os cobiçados dados que culminaram nessa apresentação de abril foram gerados dois anos antes, em abril de 2017, a partir de oito conjuntos de radiotelescópios, espalhados pela Europa, Estados Unidos, Chile e até mesmo o Polo Sul. Depois de cinco noites de observação, os astrônomos, fi-nalmente, capturaram a primeira imagem do famoso buraco gravitacional conhe-cido como buraco negro. O que se observa a partir dessa pequena introdução é que as histórias da ciência e da fotografia estão entrelaçadas desde o surgimento dos primeiros processos de registro e fixação da imagem no século XIX.

Fotografia - Ciência & ArteCriado em 2011, durante a comemoração do aniversário de 60 anos do CNPq,

o prêmio divide-se desde 2013 em duas modalidades: imagens produzidas por câmeras fotográficas e imagens produzidas por instrumentos especiais (lupa, mi-croscópio, microscópio eletrônico, telescópio, imagem de satélite, raio x, ultras-som, ressonância magnética, endoscópio, colposcópio, e PET Scan e tomografia computadorizada.

Na página do prêmio na internet é possível visualizar as imagens vencedoras, ter informações sobre seus autores, através de seus currículos Lattes, acesso ao regulamento do prêmio, às comissões julgadoras e aos critérios de julgamento das imagens.

Constituem-se em objeto de interesse dessa pesquisa especificamente as imagens produzidas por instrumentos especiais. De acordo com o regulamen-to do prêmio, somente imagens inscritas nessa categoria podem receber “reto-ques artísticos (tratamento, edição ou manipulação)”. Além do contato com as imagens, enviei perguntas por email aos autores das imagens premiadas. Inte-ressam-me os dados referentes à imagem digital produzida, bem como o texto explicativo sobre a imagem, exigido para a inscrição e não disponibilizado na página do prêmio.1

A questão do dispositivo é uma das questões a serem exploradas na pesqui-sa, sobretudo porque, como argumenta Campos,

os dispositivos ‘fazem’ as imagens, cunham-nas com determinadas especificidades, não apenas de natureza técnica mas igualmente simbólica e ideológica. Isto porque as tecnologias nunca são neutras, operam sobre uma matriz cultural e ideológica par-ticular, retratam de alguma forma jeitos de conceber e manipular o mundo. (2013: 18)

1 Ver regulamento do prêmio em http://premios.cnpq.br/web/pfca/regulamento

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Uma mesma imagem reproduzida através de mecanismos e suportes diver-sos adquire tonalidades especiais e exige da parte do espectador atitudes dis-semelhantes. Portanto, “fará, então, sentido falar de imagens sem as reconstituir em função dos dispositivos e dos circuitos midiáticos que as alojam?” (CAMPOS, 2013: 18)

No caso específico das fotografias de ciência, os pesquisadores precisam visu-alizar os fenômenos de forma que eles possam ser lidos fácil e corretamente. Para os atores envolvidos na produção de tais imagens, elas devem ser lidas e transfor-madas em conhecimento considerado “objetivo”. Essas imagens se referem a um discurso simbólico e normativo da ciência, que adquirem significado a partir de um sistema referencial do conhecimento produzido em cada área de conhecimento.

Valores estéticos tornam-se aparentes quando pesquisadores ao produzirem imagens se referem a noções que pertencem à teoria da arte e a técnicas de ma-nipulação digital da imagem. Para criar imagens de ressonância magnética, por exemplo, os técnicos usam complexos softwares e operações matemáticas alia-dos a preocupações estéticas. Parâmetros e padrões estéticos, como contraste de cor, resolução, matizes, a transparência diferente de cada estrutura anatômica, brilho, luminosidade, tamanho total da imagem, representação em 3-D, são to-dos fundamentais para uma efetiva visualização.

Os objetivos desse prêmio são fomentar a produção de imagens com a te-mática de ciência, tecnologia e inovação, contribuir com a divulgação e a popu-larização da ciência e tecnologia e ampliar o banco de imagens do CNPq. Podem participar estudantes de graduação e pós-graduação, docentes e pesquisadores brasileiros que atuam em diferentes áreas ligadas às atividades científicas ou tec-nológicas, com a exigência de que o trabalho inscrito tenha sido produzido como parte do projeto de pesquisa ao qual está vinculado.2

Até 2017 foram recebidas 5.344 inscrições de estudantes de graduação e pós-graduação, docentes e pesquisadores brasileiros, premiados 60 trabalhos oriundos de todas as regiões do país, notadamente 38 da sudeste, 9 da sul, 5 da centro-oeste, 3 da nordeste e 5 do norte e nomeados por portaria 49 pesquisa-dores para a composição das comissões julgadoras. Na oitava edição (2018) do Prêmio foram inscritos 1023 trabalhos, sendo 487 da Categoria “Imagens pro-duzidas por câmeras fotográficas” e 268 da Categoria “Imagens produzidas por instrumentos especiais”.

O contato com os autores das imagens premiadas possibilitou acesso a in-formações mais detalhadas sobre a imagem digital produzida, bem como aos textos referentes às imagens produzidas, exigidos para a inscrição e não dis-ponibilizados na página do Prêmio. Como Berger afirma, “nunca olhamos para uma coisa apenas; estamos sempre olhando para a relação entre as coisas e nós mesmos.” (1999: 11)

2 Ver http://premios.cnpq.br/web/pfca/home#apresentacao

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As imagensAs imagens premiadas são apresentadas na página do Prêmio ordenadas

hierarquicamente de acordo com sua classificação final (1º, 2º e 3º lugares) e divididas conforme a categoria de inscrição (Figura 1). Como nesse primeiro mo-mento a questão do dispositivo não será explorada, não me interessava essa categorização, por isso, decidi rearranjar as imagens, aleatoriamente, misturando imagens premiadas nas duas categorias e em anos diferentes e com elas interagir (Figuras 2 e 3).

Figura 1 - Fotos premiadas da edição 2018. Fonte: CNPq

Figura 2 - Fotos premiadas no concurso Fotografia-Ciência & Arte. Fonte: CNPq

Figura 3 - Fotos premiadas no concurso Fotografia-Ciência & Arte. Fonte: CNPq

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Fotografia na ciênciaSobre a fotografia, Mitchell observa que

o papel específico da fotografia, naquilo que Joel Snyder chamou de "Picturing the invisible" - mostrando-nos o que não vemos ou não podemos ver a olho nú (rápidos movimentos do corpo, o comportamento da matéria, o comum e o diário) -, torna difícil pensar nela como uma mídia visual em qualquer sentido objetivo. A fotogra-fia desse tipo poderá ser mais bem entendida como um dispositivo para traduzir o não-visto ou o não-visível em algo que pareça uma imagem de algo que jamais poderíamos ver. (2011: 170)

No caso específico das fotografias de ciência, os pesquisadores precisam vi-sualizar os fenômenos de forma que eles possam ser lidos fácil e corretamente. Para os atores envolvidos na produção de tais imagens, elas devem ser lidas e transformadas em conhecimento considerado “objetivo”. Tais imagens se referem a um discurso simbólico e normativo da ciência, e adquirem significado a partir de um sistema referencial do que é produzido em cada área de conhecimento.

Sobre as imagens científicas, Dummit e Burri argumentam que uma maneira de estudar as imagens científicas e sua visualização é

investigar o que acontece quando tais imagens circulam fora do ambiente científico e se difundem em outros contextos, explorando suas trajetórias, desde a produção e leitura até sua difusão, implantação e adoção em diferentes mundos sociais e sua incorporação nas vidas e identidades de indivíduos, grupos e instituições. (2007: 299)

Ou seja, seguir a vida social dessas imagens, como fizeram o sociólogo da ciência Michael Lynch e o historiador da arte Samuel Edgerton (1988) em um estudo sobre o modo como os astrônomos lidam com as imagens. Lynch e Ed-gerton concluíram que os astrônomos comumente fazem dois tipos de imagens: “imagens bonitas” para livros de mesa e revistas científicas populares, tais como Scientific American, e “imagens científicas”, normalmente em preto e branco, para publicações como o Journal of Astrophysics. “Imagens bonitas” geralmente rece-bem cores falsas, fortemente cromáticas, e, por isso, Lynch e Edgerton esperavam, inicialmente, encontrar evidências de que a pintura expressionista poderia estar por trás dessa prática, tornando as imagens astronômicas interessantes exem-plos de difusão da arte erudita. No entanto, de acordo com seus informantes no laboratório, a arte erudita não influencia nem as “imagens científicas” nem as “imagens bonitas”.

Lynch e Edgerton (1988) concluíram que os cientistas estão intensamente pre-ocupados com suas imagens científicas porque querem torná-las tão claras, não ambíguas, simples, graficamente elegantes e úteis quanto possível, empregando uma variedade de ferramentas de processamento de imagem para “limpar” os dados crus fornecidos pelos telescópios, como se observa também no processa-mento de algumas imagens premiadas no concurso Fotografia – Ciência & Arte.

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A imagem reproduzida na figura 4, por exemplo, intitulada “Águas correm e sedimentos colorem os rios e lagos da Amazônia” (2017), foi criada a partir de 1196 imagens de satélite e elucida, segundo texto apresentado pela auto-ra, de forma original alguns processos que ocorrem nesse ambiente. Na figura 5, “Hóspedes do coração”, seu autor também destaca na descrição da imagem a utilização das cores vermelha, verde e azul. A imagem mostra, em ambien-te laboratorial, cardiomiócitos (células do coração) gerados in vitro infectados com Trypanosoma cruzi (cepa G expressando a proteína fluorescente verde, GFP). Em azul está marcado o DNA da célula (núcleo) e dos parasitas (núcleo e cineto-plasto). Em vermelho está marcada a rede de filamentos de actina (citoesqueleto) dos cardiomiócitos revelando o seu perímetro e morfologia.

Figura 4 – “Aguas correm e sedimentos colorem os rios e lagos da Amazônia” (2017). Fonte: CNPq

Figura 5: “Hóspedes do coração” (2017). Fonte: CNPq

Valores estéticos tornam-se aparentes quando pesquisadores ao produzirem imagens se referem a noções que pertencem à teoria da arte e a técnicas de ma-nipulação digital da imagem. Para criar imagens de ressonância magnética, por exemplo, os técnicos usam complexos softwares e operações matemáticas alia-dos a preocupações estéticas. Parâmetros e padrões estéticos, como contraste de cor, resolução, matizes, a transparência diferente de cada estrutura anatômica, brilho, luminosidade, tamanho total da imagem, representação em 3-D, são to-dos fundamentais para uma efetiva visualização.

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Como conclui Elkins (2011), o estudo de Lynch e Edgerton indica que o tipo de cuidado demonstrado pelos pesquisadores não está desvinculado de um con-ceito de estética. Isso é precisamente o sentido original pré-kantiano de estética como o aperfeiçoamento da realidade,

a própria doutrina que governou a pintura do Renascimento. Ou seja, as estratégias que os cientistas usam para manipular as imagens bem podem ser chamadas de estéticas no sentido original da palavra, uma vez que almejam aperfeiçoar e raciona-lizar as transcrições da natureza. (ELKINS, 2011: 35)

Para Rancière (2005), as práticas artísticas não diferem de outras práticas tais como as científicas; mais que isso, elas reconfiguram a distribuição dos elementos daquelas práticas. A estética seria, então, o entrelaçamento entre obras de arte e outros domínios de experiência aos quais essas obras se relacionam. Rancière (2005) argumenta que a estética lida com o tempo e o espaço mais do que com o gosto e o belo, definindo estética como “distribuição — ou partilha — do sen-sível”, como um modo de articulação entre formas de fazer, suas formas corres-pondentes de visibilidade e possíveis formas de pensar suas relações. O autor re-fere-se à forma na qual os modos de produção, ação e percepção são articulados em um mundo social comum. Essa expressão se refere às regras que estabelecem modos de percepção para coisas e formas, delimitando, por exemplo, o que pode ser visto e o que não pode ser visto, o que pode ser ouvido, que espaço algo ou alguém ocupa num determinado mundo social. Tal definição abre o campo da estética para aqueles artefatos e práticas que naturalmente não pertencem ao universo da arte.

Para finalizar, como argumenta Samain (2012: 31), “sem chegar a ser um su-jeito, a imagem é muito mais que um objeto: ela é o lugar de um processo vivo, ela participa de um sistema de pensamento. A imagem é pensante.” Ela é uma forma que pensa e nos convida a pensar com ela.

AgradecimentosEsse artigo resulta de minha pesquisa de pós-doutorado, desenvolvida na

Faculdade de Educação da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) no pe-ríodo de setembro de 2018 a agosto de 2019, junto ao Grupo de Pesquisa Humor Aquoso.

Referências

BURRI, Valerie and DUMIT, Joseph. Social studies of scientific imaging and visu-alization. In: HACKET, Edward J.; AMSTERDANSKA, Olga; LYNCH, Michael; WAJC-MAN, J. (eds.). The handbook of Science and Technology Studies 2008, p. 297-317.

COOPMANS, Catelijene; VERTESI, Janet; LYNCH, Michael and WOOLGAR, Steve. Representation in scientific practice revisited. Cambridge, Mass.: MIT Press, 2014.

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DUMIT, Joseph. Picturing personhood: brain scans and biomedical identity. Prin-ceton: Princeton University Press, 2004.

ELKINS, James. História da arte e imagens que não são arte. Trad. Daniela Kern. PortoArte, V. 18, n. 30, Maio, 2011, p. 8-42.

GRAU, Oliver and VEIGL, Thomas (ed.). Imagery in the 21st Century. Mass.: MIT Press, 2011.

LYNCH, Michael and EDGERTON, Samuel Y. Aesthetics and digital image pro-cessing: representational craft in contemporary astronomy. In FYFE, G. and LAW, J. (eds.). Picturing power: visual depiction and social relations. London: Routledge and Kegan Paul, 1988, p. 184-220.

MITCHEL, WILLIAM J.T. Não existem mídias visuais. In: DOMINGUES, Diana (org.). Arte, ciência e tecnologia. Passado, presente e desafios. São Paulo: Editora Unesp, 2009, 167-177.

RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível. Estética e política. São Paulo: Ed. 34, 2005.

SAMAIN, Etienne (org.). Como pensam as imagens. Campinas, SP: Ed. da Unicamp, 2012.