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6 -- TCC/UNICAMP B543r 2007 FEF/529 TAQUELINE DE MEIRA BIS SE A Ruptura entre a Dança Clássica e a Dança Moõerna UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS - ' - FACULDADE DE EDUCAÇAO FISICA- 1999

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6 - -TCC/UNICAMP B543r 2007 FEF/529 TAQUELINE DE MEIRA BIS SE

A Ruptura entre a Dança

Clássica e a Dança Moõerna

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS - ' - FACULDADE DE EDUCAÇAO FISICA-1999

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TCC/UNICAMP A. 8543r V'

11111111111111111111111111 r 1290002007 UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINA

- FACULDADE DE EDUCAÇÃO FÍSICA- L_ __

A Ruptura entre a Dança clássica e a Dança Moõerna

Monografia apresentada como

requisito parcial para a obtenção

do título de licenciado em

Educação Física, sob orientação

da Profa. Dra. Carmen Lúcia

Soares.

CAMPINAS - 1999

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Agr aõecimentos

Aos meus pais1 Armelmilo Bisse e Leomar ile Meira Bisse e1 aos meus irmãos,

Vinicius e Letícia, pela lealilaile1 pelo carinho e pelo amor.

A toilos os amigos e amigas pelos a110s maravilhosos õe viõa.

Em especial para Anõresa1 Débora1 ÉÕen1 Fernanàa e RafaeL Amo vocês!

À carmen Lúcia Soa-res.

À Faculilaõe õe Eàucação Física - Unicamp.

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Resumo A humanidade possui um fundo cultural comum? Esta é uma questão

levantada pelos arqueólogos LEROI-GOURHAN ao observarem a existência de

imitações esquemáticas (danças) em artefatos da antigüidade. Isto nos faz pensar

que a dança nos arrasta mais além do mero movimento, que o gesto e a

necessidade de expressão corporal são constitutivos do ser humano.

A dança modifica-se no tempo histórico, é ressignificada e ritualizada de

acordo com as dinâmicas culturais e transformações culturais.

Ainda em fins do século XIX inicia-se uma revolução na maneira de

conceber o corpo e suas possibilidades expressivas. O gesto e o corpo que o

realiza passam a ser entendidos como os principais modificadores instrumentais

para uma nova qualidade de vida e de arte. O corpo esbelto, que nega a ação da

gravidade, que não é do dançarino ao passo que segue a convenção de uma

música e de um enredo dramático, que se expressa através da pantomima já não é

capaz de traduzir a sensibilidade humana.

Para encontrar o movimento que lhe propiciaria uma melhor e diferente

qualidade de vida, o homem teria que buscar na arte um movimento poético, de

diferentes qualidades, regidos por princípios percebidos como instrumentos

orgânicos.

Surge, então, a dança moderna. Sendo o balé e a dança moderna

reconhecidos como expressões artísticas, qual o significado destas duas artes?

Quais foram as políticas que regeram as mudanças na concepção desses dois

corpos?

Considerei interessante pesquisar essa forma de linguagem - a DANÇA -

enfocando o momento de sua maior ruptura na história, o momento da ruptura da

dança clássica para a dança moderna.

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Sumário

Algumas palavras iniciais r

Capitulo I A /lança na história 3

Capitulo II Arte e técnica e as tenilências no universo ila /lança 22

Capitulo III A moral ilos gestos: iliscursos ile um corpo que i:)ança 43

Algumas palavras ~nais 62

Lista ile Figuras 66

Referências Bibliográ~cas 68

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Fíg 1 - Edvard Munch A dança da vtda. 1899-1900

"A clara noite õe verão, em que viõa e morte1 õia e noite1 vão õe mãos õaõas."

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Algumas palavras iniciais Neste momento atento-me para o sentido deste caminho que me trouxe até

aqui. Se hoje escrevo sobre a dança é porque de alguma forma ou de outra nela

me percebo.

É bem verdade que por um tempo a dança foi para mim ALGUMA forma.

No entanto, sempre (e hoje tenho consciência disso) preferi formas OUTRAS.

A disciplina imposta pelo balé por sete anos tentou marcar-me, tentou fazer

de mim um exemplo do comportamento desejado às meninas. E naquela época fui

eu mesma quem escolheu esse caminho. E como escolher outro? Eu precisava

dançar, já sentia isso, mas tudo que uma menina na minha idade, então, entendia

por dança, era balé clássico.

Olha ... eu bem que me esforçava, mas ...

Era possível que até Zangado risse se me visse fazer um grand battement.

E não pense que o tipo fisico tem algo a ver com a história. Se o biotipo

exigido pelo balé é um corpo magro e esbelto, eu me encaixava muito bem.

O interessante é que eu não era a única com esse 'problema'. Na minha

turma isso acontecia com várias outras, com a maioria. Realmente não levávamos

jeito.

Esses descaminhos levaram-me a experimentar um outro estilo de dança,

no qual adaptei-me melhor.

Está certo que o sapateado era 'menos nobre' que o balé, mas eu não tinha

jeito para AQUELA coisa. Então, precisava buscar OUTRAS.

Já fazia nove anos que o sapateado havia entrado na minha vida. Apesar

de amá-lo, o corpo ainda reclamava. Faltava expressividade. Os pés não deveriam

dançar sós.

Foi então que ingressei na UNICAMP. Depois de uma grande dúvida (não

sabia se queria dança ou educação fisica) me decidi. Cá estou. E muito feliz.

Aqui passei a perceber o corpo, ou seja, perceber a mim mesma de uma

outra maneira- mais sensível.

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Dancei de uma forma jamais dançada. A dança delirou e fez delirar.

Quero ver outros também delirarem.

2

Certa vez lendo Nietzsche, enquanto escrevia esta monografia, uma frase

por ele dita chamou-me atenção. Naquele momento achei que ela expressava uma

certa angústia quanto ao trabalho que seria entregue no final de todo o período.

Contínuo achando essa frase bastante expressiva, e por isso, agora, me remeto a

ela. Assim ele dizia:

" Não sou crítico e cético e dogmático e historiador e

além disso poeta e colecionador e viajante e decifrador

de enigmas e moralista e visionário e 'espírito livre' e

quase tudo (ao mesmo tempo) para percorrer o

circuito de valores e de sentimentos de valor humano

e, com múltiplos olhos e consciências, poder olhar da

altura pare toda distância, da profundeza para toda

altura, do canto para toda amplidão." 1

As palavras que aqui coloco são simples e duplamente prazeirosas.

Primeiramente por acreditar que assim contribuo para uma percepção mais

sensível da dança, e depois, porque para alguém que não viveria sem dançar (mas

que também morre após cada dança) escrever é só mais um prazer de estar viva.

Hoje arrisco-me e ai está minha virtude: não ter minhas vontades

paralisadas.

1 NIETZSCHE, F N;etzsche: obras incompletas, 1983, p 284_

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Capitulo I A õança na história

'VJUti/mentt; o artista recon6edn Hftltl

Onpla missdo sochf: aquel:r q& /f,e era iniJffetamente

imposta pela citk~ pela corporação ou pelo grupo sochf '7

tliJIIefa 4ne /(;e vin/Ja iniJiretameHte M experiêncit1 cofetÍVtl

consciência social As ÕMS missões ndo coinciOkmt

HecesJtJriamente 4 ifllilHiJo passavam a se c6ocar com

ll11ltlf!OHÍS111tJS 110 interior M .>Ode/JaDe." .z

Quando falamos de arte é comum atentarmo-nos para a questão das

transformações estéticas, no entanto, se tentamos nos aproximar de sua

identidade enquanto obra, devemos também nos voltar para a história dos meios

que permitem a sua expressão.

O balé clássico tem suas origens ainda nos "balés da corte", no século XVI.

2 FISCHER, E. A necessidade da arte, 1983, p 56.

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Os "balés da corte", criados a partir das danças populares, que inicialmente,

na época de Luís XIII, era um meio privilegiado de propaganda, passou a um

modo de afirmar o prinípio monárquico, sendo uma cerimônia de adoração à

pessoa do Rei. O balé de corte foi ao princípio um baile organizado ao redor de

uma ação dramática.

O balé transforma-se e ganha maiores dimensões a partir do século XVII,

na França, quando Luis XIV, um amante da dança, funda a Academia Real de

Dança e de Música, a fim de "restabelecer a dança em toda sua perfeição", o que

significava conferi-la a profissionais, o que só ocorreria, realmente a partir de 1681.

Aí criou-se as bases da dança clássica internacional, que se projetaria

extraordinariamente no século seguinte.

As grandes revoluções na dança iniciam-se no século XVIII. Poucos foram

os séculos tão curiosos como este- cheio de contradições.

No terreno político, jamais a monarquia havia sido tão absoluta em teoria,

mas o principio de autoridade era questionado. Havia um forte espírito de reforma

no governo, mas a aplicação dessas reformas, quando chegavam a ser tomadas,

eram reduzidas e novamente questionadas.

Um nova classe em ascenção era, agora, o eixo social - a burguesia rica

formada por generais arrendatários e pelos 'financeiros'.

No campo ideológico, a cidade passa a ser o centro e não mais a corte. A

cidade quer assumir sua própria função social. Desta forma passava a existir um

público maior de pagantes anônimos que consumiam arte. A dança, assim como

as outras artes, precisavam transformar-se para atingir tal público.

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As novas idéias, as Luzes, são um novo modo de iluminar as doutrinas pela

razão, liberada das imposições da autoridade, e se estendem especialmente aos

salões. Aí se encontravam os nobres, os burgueses e os 'talentos' - artistas e

intelectuais.

Havia na metade do século se formado um novo humanismo, da felicidade

imediata. O Homem, enquanto individuo, passa a ser o valor essencial.

ANTROPOCENTRISMO. Daí se deduziram duas conseqüências aparentemente

contraditórias, mas na realidade complementares: de um lado, o gosto pelo

realismo, inclusive utilitário, do contato direto com a realidade material e, por outro,

a sensibilidade difusa.

As artes mostram como o grande negócio do século era ser feliz. Já não

interessavam as grandes máquinas com intenções moralizadoras ou heróicas, se

não as obras que têm um rosto humano (pintura).

Numa revolução exatamente paralela, a dança que conservara no principio

do século o formalismo da escola clássica (herdeira direta de Luís XIV) agora

necessitava de reformulação.

A parte literária do balé deveria ser o elemento principal do espetáculo,

sobrepujando mesmo a dança. A partir de então surge uma nova fórmula - o

drama-balé-pantomima, em que o elemento narrativo declamado foi convertido

numa ação pantomímica, ou seja, sem palavras. A dança de ação ganha, então,

um sentido ao enredo, tornado dramático, além da beleza dos cenários, dos

figurinos e da cor local. Noverre se esforçará em alcançar o realismo nos temas e,

através da técnica, a expressão e a sensibilidade.

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O século XVIII é marcante para a dança.

"Estavam já reunidos todos os elementos para

que alcançasse o êxito: um amplo público em

potencial, um sentido de festa que leva a uma

inflexão no lirismo 'heróico' o que levou a

produzir uma ópera mais atraída pelo prazer dos

olhos e ouvidos; uma técnica que trazia essa

forma de felicidade imediata que é o virtuosismo

um tanto que material para um espetáculo."'

Essas grandes transformações sociais ainda em meados do século XVIII já

antecipavam as grandes revoluções ocorridas entre 1789 e 1848, época da dupla

revolução na Europa, da Revolução Industrial (mais tecnológica) e da Revolução

Francesa (mais política). A ideologia burguesa triunfava.

3 BOURCIER, P. Historia de ladanza en occidente, 1981, p 126.

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Fig. 2 - O balé de ação de Noverre, 1782

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Após um período de poucos investimentos em arte (arquitetura, museus,

teatros, etc.), as artes ressurgem e expandem-se. Passa a haver uma grande

difusão dos acontecimentos artísticos entre as nações.

" Se fôssemos resumir as relações entre o

artista e a sociedade naquela época em uma só

frase, poderíamos dizer que a Revolução

Francesa inspirava-o com seu exemplo; que a

Revolução Industrial com seu horror, enquanto

que a sociedade burguesa, que surgiu de

ambas, transformava a sua própria experiência

e estilos de criação." '

A transformação da sociedade que resultou numa mudança na forma de

produção foi responsável também pela intensificação da subordinação do tempo

do homem ao tempo da máquina.

Quem detém o poder nesta nova sociedade?

A burguesia, ainda revolucionária, com seus vinculas com artistas,

intelectuais e com o povo, busca afirmar-se contra o poder da Igreja.

Os artistas nessa época eram. sem dúvida, inspirados e envolvidos pelas

questões públicas. Suas obras eram denúncias contra as práticas corruptas do

Estado, da maçonaria e contra os abusos sociais.

---------4 HOBSBAWM, E. .E'ra da revoluções: r;urupa 1789- 1848, 1996, p 278.

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Mesmo nas artes tradicionalmente dependentes das classes dirigentes, que

refletiam menos estes renascimentos nacionais, ou nas artes de uma pequena

minoria sentiam-se as turbulências que abalavam toda a sociedade.

Na época pré-revolução Francesa os românticos apoiaram a burguesia e

colaboraram para sua glorificação, uma vez que a consideravam como um

seguimento social cujos sentimentos verdadeiros e simples contrastavam com os

da firme camada superior de uma sociedade corrupta, e que seria portanto capaz

de varrer o artifício da corte e do clericanismo. Uma vez que a burguesia tomou o

poder, passou inquestionavelmente a ser vista como inimiga. As idéias do

romantismo e da burguesia não mais podiam ser conciliadas.

Entretanto, "a busca ininterrupta e ilimitada por mais" (acumulação de

capital), "além dos cálculos da racionalidade ou do propósito, a necessidade ou os

extremos do luxo" 5, tudo isso encantava os românticos antes da revolução. Assim,

o elemento romântico permaneceu subordinado, mesmo na fase da revolução

francesa.

Esse movimento - o romantismo -teve sua tônica em uma crença no valor

supremo da experiência individual, configurando nesse sentido uma reação contra

o racionalismo iluminista e a ordem do estilo clássico. O romantismo é

normalmente tido como uma antítese do classicismo, todavia, tanto os artistas

românticos como os clássicos concentram sua atenção mais no ideal que no real;

tanto o romantismo quanto o classicismo acalenta conceitos de nobreza, virtude,

s HOBSBAWM, E. op. cit, 1996, p 281.

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lO

grandeza e superioridade. Mas enquanto o classicismo parece propor um ideal

possivel, no qual o individuo se adapta a sua sociedade e a sociedade se molda

em um ambiente ordenado que se adequa a ele, o romantismo visa algo

inatingivel, algo situado além dos limites de adaptabilidade do individuo e do todo

social.

O balé de corte apesar de apresentar uma estrutura dramática mais

elaborada que a do ballet comique de la reine ainda era divertissement para

nobres, feito por nobres, que cumpria uma função social especifica. Nada mais era

que a incorporação, no espetáculo, dos bailes.

Apesar das Revoluções por que passaram a sociedade no decorrer dos

séculos, o status quo do balé não se alterou. Continuou a ser uma dança das

elites, que nem interessava ao povo e, que ao mesmo tempo continuou exigindo

corpos perfeitos, seguindo um modelo de beleza esbelta e inexpressiva.

A hierarquia seguida pelo balé em respeito ao posicionamento dos

bailarinos refletia a hierarquia existente na corte.

" Dança e etiqueta são igualmente

importantes na definição do lugar que ocupa ou

pode ocupar um cortesão na rede de suas

relações mundanas.' 6

6 MONTEIRO, M. Noverre: cartas sobre a dança, 1998, p 36.

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O balé de corte é uma forma teatral de organizar, em símbolos, as relações

sociais.

No fim do séc. XVIII e inicio do XIX, considerava-se que a viga mestra do

balé de ação (balé romântico) seria a imitação da natureza 7, a estruturação do

enredo baseado em fábulas e mitos ou na mera invenção poética. Se

considerarmos esses elementos como definidores do gênero podemos dizer que o

balé de ação estaria mais ligado à tradição que à renovação, uma vez que tais

elementos já podiam ser encontrados nos balés do século XVII.

Noverre, então, passa a ressaltar que o balé de ação opunha-se ao

divertissement do balé de corte. Desta forma o balé de ação deixaria de "agradar

apenas aos olhos para agradar à alma. 'B

Para Noverre, a dança seria a arte da imitação, e a pantomima estaria

associada à dança.

Contudo o momento era especial. Não se poderia utilizar da pantomima

como na Antigüidade, quando os gestos eram codificados e reconhecidos por

todos, ou da mesma forma como era utilizada na côrte. O público agora era

heterogêneo. Era preciso encontrar uma fórmula original e inédita para utilizar a

pantomima associada à dança. A pantomima moderna deveria emocionar a partir

da história, da fábula, da expressão de paixões, sem utilizar-se de código algum.

Noverre aspirando por uma dança mais expressiva chega a colocar:

7 A questão da imitação da natureza, no entanto, era vista de forma diversificada nos dois momentos do balé. 8 Cf Noverre apud MONTEIRO. Op. cit., 1998, p 46.

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"Essa combinação de passos numerosos bem

ou mal encadeados, esse desempenho difícil,

esses movimentos complicados despojam, por

assim dizer, a dança de palavras. Mais

simplicidade, mais doçura, maior suavidade nos

movimentos dariam ao bailarino mais facilidade

de retratar e de exprimir-se; poderia dividir-se

entre o mecanismo dos passos e os

movimentos próprios à expressão das paixões.

A dança livre das pequenas coisas poderia

então dedicar-se às grandes." 9

Devemos ressaltar que foi justamente por as regras da dança estarem

acentuadamente atreladas às regras de conduta sociável da corte que impediu o

desenvolvimento de sua autonomia enquanto uma das belas artes, no século XVII.

Contudo, a partir de então, o balé romântico seria a expressão da dança. O

balé romântico seria hegemônico até os anos novecentos.

A crise da sociedade liberal burguesa do século XIX refletia diretamente nas

artes. As bases de sua existência, de seus valores, convenções e entendimento

intelectual estavam sendo demolidos.

O nítido aumento do tamanho e da riqueza de uma classe média urbana

capaz de dar mais atenção à cultura, assim como a grande extensão da classe

9 MONTEIRO, M. op.cit, 1998, p 65.

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baixa e de setores das classes trabalhadoras instruidos e com sede de cultura,

teria sido suficiente para garantir o desenvolvimento das artes.

Nesse momento de democratização, as artes que antes eram indicadores

de status passam agora a expressar as aspirações das mais amplas camadas. As

artes representavam não apenas os anseios individuais, mas também coletivos,

também simbolizavam objetivos e aspirações políticas.

Contudo, a classe mais elevada estava pouco a vontade na sociedade. Foi

buscando nas artes um símbolo de status cultural mais exclusivo que recorreram

aos 'clássicos'. Essas eram as artes tidas como 'elevadas'.

No início do século XX, nada ilustra melhor a crise de identidade por que

passava a sociedade do que as artes.

A guerra civil espanhola, a revolução russa, as duas grandes guerras

mundiais, a recessão americana na década de 30, o nazi-fascismo de Hitler e

Mussolini, a guerra fria, tudo contribuiu para transformar o cenário da dança no

século XX.

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Fig 4 - O romantismo de Giselle.

Fig 5 Martha Graham dança LeLter to the world.

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A dança assim como as outras artes não podia escapar das convulsões que

estremeceram todo o mundo. Não se podia dançar ao som de tiros.

Tanto as artes quanto o público estavam sem referências. As artes, em

reação a esta situação, dariam um salto para frente rumo à inovação e à

experimentação.

Houve uma grande internacionalização das artes.

A revolução cultural do século XX iniciou-se antes que o mundo, cuja crise

era expressa pelas vanguardas, desabasse. O que poderia ser identificado por

modernismo já estava em cena antes da I Grande Guerra: cubismo;

expressionismo; abstracionismo puro na pintura; funcionalismo e ausência de

ornamentos na arquitetura; o abandono da tonalidade na música; o rompimento

com a tradição na literatura.

Essa revolução foi marcada por uma grande diversidade de vanguardas, e

não por uma cultura unificada. Muitos dançarinos apesar de 'inovadores', não eram

rebeldes e continuavam a manter a tradição do balé, do clássico ao abstrato.

Outros foram verdadeiros reformadores negando a tradição clássica e assumindo

uma nova postura na relação do homem e a dança. Foram os pioneiros do que se

chamou de dança moderna.

A eurritmia de Jacques Dalcroze influenciaria tanto Nijinski como Mary

Wigmam. Martha Graham, Doris Humphrey, Ruth Saint-Denis, a própria lsadora

Duncan e Laban incorporariam os principias delsartianos.

A dança livre de lsadora Duncan inspirava bailarinos como Fokine ao

mesmo tempo que rompia com a tradição clássica.

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O método desenvolvido por Laban faria dele um artista consagrado da

dança expressionista ao mesmo tempo em que seu sistema de escrita da dança

(Labanotation ou cinetografia) muito interessava aos nazistas, que a utilizariam em

suas monumentais paradas místicas, exibições de ginástica e procissões de

bandeiras.

Toda essa diversidade contribuiria para a caracterização (descaracterizada)

da dança do século XX ou da "nova dança"1o.

Nessa época de grandes cismas, de grande colapso, podem ser

observadas três coisas:

"a vanguarda se tornou, por assim dizer, parte

da cultura estabelecida; foi pelo menos em parte

absorvida pela vida cotidiana; e - talvez acima

de tudo tornou-se dramaticamente

politizada. "11

No começo do século XX, nada havia restado na Itália ou na França dos

grandes balés românicos dos quais Giselle foi o apogeu.

Para encontrar uma tradição viva do balé era preciso voltar-se à Rússia.

10 "Nova dança" é o tenno empregado por Roger GARAUDY para representar essa diversidade de estilos presentes na dança no século XX Talvez seja justamente essa diversidade sua característica mais marcante. 11 HOBSBA WM, E. Era dos extremos: O breve século XX -1914-1991, 1995, p181.

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Por mais de cem anos as Companhias Imperiais e suas escolas estiveram

sobre a proteção do Czar, o que permitiu que se estabelecesse uma tradição russa

autêntica, o estilo clássico de emoção controlada.

O balé russo, contudo, permanecia no século XIX. Mas a sociedade russa

se industrializava rapidamente, enquanto as estruturas políticas e sociais se

atrasavam, provocando tensões que enfraqueceram o regime czarista.

O balé russo, representante da aspiração por uma revolução cultural, para o

qual o grande empresário Diaghilev mobilizou os compositores e pintores mais

exóticos e revolucionários, "visava, sem hesitações, a uma elite de esnobes

culturais bem-nacidos e bem-relacionados. "12

Na Rússia, em 1917, os surrealistas provocavam mais escândalo do que as

criações de Diaghilev. O seu Bailei Russes era criticado como sendo anti­

bolchevique a serviço da burguesia.

Muitos artistas futuristas viam a subida dos bolcheviques ao poder como um

passo decisivo para a liberdade. Contudo, quando, em outubro deste mesmo ano,

os bolcheviques chegam ao poder, resolvem banir todos os sinais do antigo

regime.

Diaghilev deixaria a Rússia levando seu balé para toda a Europa.

Um outro grande dançarino, apoiado por um empresário americano, tentou

estabelecer o balé nos Estados Unidos, na década de 30. No entanto, o pais

estava no meio de uma recessão, entre greves e marchas de fome.

12 HOBSBAWM, E. Era dos impérios: 1875-1914, 1988, p 336.

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O sofrimento americano era ainda mais profundo devido à ilusão de

prosperidade ilimitada.

A arte tratava de realidade e a realidade era dura e cruel. Os lideres da

dança moderna nos Estados Unidos, entre eles Martha Graham, Ruth Saint-Denis,

Ted Shawn e Doris Humphrey, refletiam essas questões. Já os dançarinos

clássicos, buscando estabelecer uma arte cara e elitista, pareciam negar.

Na Alemanha, Laban e Mary Wigmam criaram suas escolas.

Questionamentos sobre os limites da linguagem, a busca de um corpo livre e

saudável, sem a repressão da máquina, tudo isso inspirava suas criações.

O movimento Expressionista 13 , que inspirou Mary Wigmam, era o retrato da

sociedade alemã que vinha se desconstruindo e que foi reforçado pelo clima entre

as duas grandes guerras mundiais.

Vinha em oposição ao Impressionismo e, esteticamente privilegiava a

emoção, a intuição, o inconsciente, como criadores da obra artística, exprimindo

uma nova visão de um novo mundo e de um novo humanismo. A beleza era

categoria de pouca ou nenhuma importância. A faça expressiva valia muito mais.

Com o início da guerra esses grandes dançarinos mudaram a escola de

cidade, aproximando-se dos dadaistas em Zurique, recusando-se a participar da

guerra.

13 Conforme o Dicionário Oxford de Arte, expressionismo é o tenno aplicado pela critica e pela história da arte a toda arte em que as idéias tradicionais de naturalismo (representação dos objetos tais como são observados empiricamente) são abandonadas em favor de distorções ou exageros de forma e cor e que expressam, de modo premente, a emoção do artista. Esse movimento foi a força dominante na arte alemã de cerca de 1905 a cerca de 1930.

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19

No inicio dos anos 30, na Alemanha, a dança moderna era muito mais forte

que o balé clássico. Era o único local na Europa em que isso acontecia.

No entanto, a crise econômica e politica no ano de 1933 trouxe grande

sofrimento para a Alemanha e deixou a dança expressionista marcada para

sempre.

Com a ascenção do Partido Nacional Socialista de Hitler ao poder, as

tensões se intensificaram ainda mais.

Os dançarinos que permaneciam no 'Império' eram isolados. A dança

expressionista perdeu sua voz, ao menos dentro da Alemanha, mas suas

influências se expandiram pela Europa e pelo Mundo.

Os dançarinos do inicio do século tratavam dos mesmos temas: a angústia

da época, a busca dolorosa pelo significado, a humanidade face a face com a

morte.

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Fig 6 Revolução Russa, 1917

Filas õe rostos murmuranõo Máscaras õe meào

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21

Todo esse meio cercado por contradições e sofrimentos transformaram o

ser humano neste século. Transformaram as expressões artísticas.

Os artistas 'avançados' demoliam as convenções burguesas ,.,

As expressões da modernidade - expressionismo, cubismo, dadaísmo,

surrealismo - foram capazes de revolucionar, de modificar para sempre o curso

das artes na história. Nunca mais as artes seriam as mesmas. Nunca mais a dança

seria a mesma. Nunca mais o Homem seria o mesmo. A Humanidade sobreviveu.

As artes populares estavam prestes a conquistar o mundo.

" Se eu tivesse que resumir o século XX, diria que

despertou as maiores esperanças já concebidas pela

humanidade e destruiu todas as ilusões e ideais."

(Yehudi Menuhin -músico, Grã~Bretanha)

14 As artes <elevadas' (o retomo às obras clássicas), que se auto-denominaram avant-garde, não

foram capazes de realizar a revolução cultural do século XX. Em nada inovaram. Nada experimentaram

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Capitulo li Arte e Técnica e as tenõências no

Universo õa Dança

~p;-fa en(:im que entra na exceçdo e

22

Antes de iniciar o diálogo sobre Arte e Técnica acho fundamental ir à raiz

destes termos.

Mesmo tendo origens diferentes (Arte do latin ars e Técnica do grego

techne) ambas surgiram significando aquilo que é ordenado, que é regido por

regras.

Estes dois termos permaneceram sem diferenciação entre si por muito

tempo.

15 VALÉRY, P. A alma e a dança, 1996, p 38.

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23

No entanto, na idade Antiga, havia uma diferenciação entre artes ou técnicas

liberais e artes ou técnicas servis ou mecânicas.

Eram consideradas como artes liberais a gramática, retórica, lógica,

aritmética, geometria, astronomia (e somente estas eram valorizadas como

conhecimento e dignas do homem livre). As artes mecânicas compreendiam todas

as outras atividades técnicas como medicina, agricultura, pintura, escultura,

etc.(sendo próprias do trabalhador manual).

Durante o Renascimento houve luta pela valorização das artes mecânicas,

que passaram a ser reconhecidas como conhecimento como as artes liberais.

No fim do século XVII as artes mecânicas passaram a ser distinguidas por

sua finalidade: as úteis aos homens (medicina, agricultura, etc.) e aquelas cujo fim

é o belo (pintura, escultura, dança, etc.).

Foi desta distinção entre a arte da utilidade e a arte da beleza que houve a

dissociação, a diferenciação entre Arte e Técnica tal como conhecemos hoje.

A Arte passou a ser pensada no domínio do belo, da ação sensível

individual, dotada de inspiração, já a técnica no sentido de utilidade, seguida de

regras.

Os símbolos que mais profundamente expressam as emoções e

sentimentos são alterados conforme a época, sendo transpostos para a forma

estética. A Arte é expressão através de símbolos estéticos.

Quando falamos em técnica podemos pensar em mecanização. Apesar de

a explosão do automatismo mecânico ter ocorrido no século XVIII, é desde o

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24

século XVI que o homem segue a máquina como modelo, o que influenciou em

todos os âmbitos da vida, seja político, econômico, social ou das artes.

Descartes foi o primeiro arquiteto da visão mecanicista, da visão do Mundo

como máquina tendo o relógio como modelo. A partir disso a natureza (e portanto,

o Ser Humano) passa a funcionar como um grande relógio. Você a desmonta, a

reduz a um monte de peças fáceis de entender, analisa-as e, aí, passa a entender

o todo.

A VIDA é, então, uma metáfora do RELÓGIO. O SER HUMANO, da

MÁQUINA.

A visão de Descartes apesar de ter sido uma dádiva para o século XVII,

uma vez que possibilitou pela primeira vez uma representação do mundo que não

fosse colocada pela ótica religiosa, desencadeou uma crise de percepção do

Mundo.

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25

" Um cartesiano olharia para uma árvore e a dissecaria,

mas ele jamais entenderia a natureza da árvore. Um

pensador de sistemas 16 veria as trocas sazonais entre

a árvore e a terra, entre a terra e o céu. Ele veria o

ciclo anual que é como uma gigantesca respiração que

a Terra realiza com suas florestas, dando-nos o

oxigênio. O sopro da vida, ligando a terra ao céu e, nós

ao Universo"."

Não se poderia imaginar que a Humanização da máquina tivesse o efeito

paradoxal de mecanizar a humanidade. Neste momento as artes, outrora tão

importantes para o enriquecimento humano, se tornariam igualmente áridas e

seriam, " ... incapazes de actuar como contrapeso desse desenvolvimento técnico

unifatera/"18.

A metáfora do relógio abrangeu o campo das artes.

As coisas passaram a mudar rápido nas mãos dos Homens (o novo

Tempo), a Natureza se fragilizou. A 'bruxa' (como a Natureza era vista por Bacon)

foi torturada. O Homem cegou-se.

16 Poderiamos interpretar a expressão 'pensador de sistemas' em referência à pessoa capaz de perceber ~ue somos todos parte de uma teia inseparável de relações. 1 Filme "Ponto de Mutação". Dirigido por Bemt Capra. Este filme foi feito a partir do livro de Fritjof Capra de mesmo título. 18 MUNFORD, L. Arte e técnica, 1986, p 10.

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26

"Tal como a Arte, a Técnica radica-se na

utilização que o homem faz do próprio corpo.(. .. )

No entanto, a tendência para a organização

mecânica acabou por reduzir o Homem a uma

mera sombra da máquina por ele criada.""

O Homem ficou deslocado no palco da vida. No seu centro, agora, estava a

máquina.

Os corpos foram privados de sua existência independente.

E como já foi dito que as artes também tornaram-se áridas, o balé clássico

foi só mais uma expressão de afirmação desse processo. A técnica do balé

clássico não é propriedade do dançarino, constituindo-se em códigos fixados/

fechados de movimentos. Esses movimentos são externos aos corpos, e daí a

construção de valores de corpo ideal, movimento ideal, e conseqüente

desvalorização dos corpos diferentes em função de um modelo a ser reproduzido e

não para ser recriado.

O ideal de corpo valorizado é aquele que mais se aproxima ao modelo da

máquina.

Foi desse corpo-máquina que o balé apropriou-se. Máquina de movimentos

'perfeitos' e que expressam idéias já estabelecidas.

Quando falamos de corpo devemos tê-lo como um corpo que é marcado por

nossa experiência social e histórica num contexto específico. A linguagem é parte

19 MUNFORD, L op.cit., 1986, p 11.

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da experiência corporal. Entre as linguagens não há uma tradução exata, mas sim

um processo de tradução parcial, metafórico e criativo.

A dança é uma das linguagens que produzem sentido em relação ao corpo.

Outras linguagens criaram outros corpos, diferentes períodos da história criaram

diferentes corpos, assim como distintas perspectivas dentro de uma mesma

linguagem.

Nos séculos XVII e XVIII, a transformação do espaço enquanto dimensão

corporalmente significativa, sensível e vivencial, em um espaço matemático

estandardizado por procedimentos normatizados, possibilitou a abstração e

redução da experiência humana.

O corpo que surge desse modo de experienciar e conceber o mundo (o

corpo do balé clássico) é um corpo físico mensurável e estereotipado dentro de um

eixo de coordenadas, um corpo separado da emocionalidade, um arquétipo de

valores neutros, alheios a si próprio, um corpo separado da experiência corporal,

do conhecimento.

Assim como se concebeu o conhecimento, o corpo do balé clássico é

marcado pelo objetivismo, pela racionalidade.

A objetividade supõe que nem a corporalidade dos sujeitos (sua

peculiaridade perceptiva e emocional e sua forma de ação no mundo), nem sua

subjetividade, nem os vínculos que estabelece influem no conhecimento do

mundo.

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28

" A racionalidade nivelou as emoções, censurou o

desperdício de vitalidade, normatizou o prazer de viver

e explicou o mundo natural assim como disciplinou a

vida moral. Ao domesticar o ambiente e as relações do

Homem com a Natureza, domesticou, também, o Ser

Humano ( .. .) e ao enfatizar um viver social marcado

pelo racional e funcionalista, extraiu das diferenças a

unidade absoluta. ••o

O mecanicismo alienou o Homem, tornando-o cada vez mais escravo do

Tempo. Isto teve como conseqüências a desigualdade social, a imposição de

comportamentos pré-estabelecidos.

A música ditava o Tempo, o maitre du bailei pré-estabelecia a coreografia.

Assim, os gestos do balé clássico eram totalmente alheios ao bailarino.

As danças do campo ou da côrte seguiam regras diferenciadas a partir da

determinação de classe social. O balé clássico, como expressão reconhecida no

universo da dança, tem como objetivo construir desenhos no espaço enquanto o

corpo move-se decorativamente, expressando conteúdos que são narrativas de

caráter pantomímico, que partem do exterior de si.

A dança clássica, nascida na corte, teve que seguir os padrões

determinados naquela época, quando a moral e etiqueta exigiam a

convencionalidade de um código como medida para sua organização e existência

20 REZENDE, AL.M. Pós-modernidade- o vitalismo no 'Chaos', 1993, p 5.

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social que não poderia correr o risco da espontaneidade: o pé deveria estar aberto

em asa, a coluna reta, o busto em eminência, silhueta fina e alongada.

''Assim nascem as regras corporais exigidas pelo balé,

que transmite uma idéia de dança através de um

código arbitrán·o que tende ao rompimento da

organicidade ontológica, pois limita a gestua/idade a

instrumento de desenho suportado por um corpo que

não é." 21

A emoção do belo, elevado, perfeito e virtuoso toma conta e representa a

"idealização de uma dança - uma idéia sobre a dança e não a própria dança. " 22

21 LOPES, J. Coreodramaturgia: a dramaturgia do movimento, 1998, p 19. 22 LOPES,J op. cit., 1998, p23.

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' . .,

Fig. 8 - Ópera Herculanum, 1859

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31

Desde que se reconheça o papel geralmente desempenhado pelo símbolo

na subjetividade e personalização do mundo, pode-se compreender as limitações

da ciência e da técnica, uma vez que são internacionalmente uma expressão

daquela parte da personalidade da qual a emoção, o sentimento, o desejo e a

simpatia- que formam o substrato quer da vida quer da Arte- foram eliminados.

Se a significação da Arte está nas transformações internas, num sinal

visível de um estado interior de graça e harmonia, de apurada percepção e

elevada sensibilidade, postas em foco e intensificadas pela própria forma na qual o

artista traduz o seu estado interior, não seria o balé uma arte superficial?

O corpo, máquina automática do balé, se paralisou frente a toda aquela

parte da personalidade que não se conforma facilmente com suas necessidades

mecânicas.

Como MUNFORD coloca, o crescimento da cultura humana não é marcado

simplesmente por uma transferência de interesse e poder do mundo exterior para o

mundo interior, mas marcado igualmente por uma transferência da interioridade do

homem para o mundo exterior, com a correspondente materialização dos poderes

subjetivos do homem e a respectiva manifestação externa da sua criatividade

interna.

A Arte não é um substituto da vida, nem uma fuga à vida.

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"A arte é apenas uma das maneiras pelas quais

o homem reordena, reflete sobre e representa a

sua experiência para si próprio numa tentativa

de parar a vida no seu fluxo e movimentos

perpétuos, de forma a que a experiência

humana se possa destacar, no objeto estético,

na sua perfeição e realizações finais." 23

A Arte é uma manifestação de impulsos e valores significantes que não

encontram outra forma de expressão. Utiliza um minimo de material concreto para

expressar o máximo de significado. É uma forma de manter viva a memória das

partes mais preciosas da existência humana.

Artistas dos últimos dois séculos têm se manifestado contra a máquina e

proclamado autonomia do espirito humano: a sua autonomia, a sua

espontaneidade, a sua inesgotável criatividade.

O inicio do século é marcado por uma revolução na maneira de conceber o

corpo e suas possibilidades expressivas. O movimento humano e o corpo que o

realiza passam a ser entendidos como os principais modificadores instrumentais

para uma nova qualidade de vida e de arte, diferenciando-o do passado. Para

encontrar esse movimento que lhe propiciaria uma melhor e diferente qualidade

de vida, o homem teria que buscar na arte um movimento poético, de diferentes

qualidades, regidos por principies percebidos como instrumentos orgânicos. Desta

23 MUNFORD, L. op.cit., 1986, p 123.

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33

forma quando falamos em dança, falamos mais do que em movimentos, falamos

em poética gestual. Devemos pensá-la enquanto poética do gesto distanciada do

seu caráter utilitário.

"A arte moderna revisita os arquétipos do grupo grego,

do ditirambo dionisíaco, e do coro da tragédia grega,

através das obras de Wagner e Nietszche - que

influenciam diretamente os primeiros dançarinos

modernos. Como forma de rompimento com a estrutura

individualista do balé, na dança moderna o grupo

representa a união dos indivíduos, introduzindo no

palco a questão da força das massas - reflexo direto

do momento social existente, de formação de

sindicatos fortes e de movimentos políticos como o

socialismo, o nazismo, o fascismo e o anarquismo". 24

24 MADUREIRA, J. R. MORAES, J. MORETTr, A PINTO, C. Reflexões sobre o "En danse 97", 1998, pZO,

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Fig. 9 - Eurritmia de Jaques-Dalcroze

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Segundo Oswald de Andrade, o século XX estava à procura de fontes

emotivas, das origens concretas e metafísicas da arte. Desta forma, a arte do

século XX parece caracterizada por uma paradoxal tradição de heresia, uma quase

institucionalizada vontade de transgressão, de ruptura em relação a forma

precedente.

Na dança a pluralidade de técnicas e políticas freqüentemente encontradas

mais por negação e contraste que por filiação tem sua origem na heresia fundante

dos artistas, mestre dos primeiros decênios do século, iniciadores da nova tradição

moderna.

O problema para a dança moderna, "uma vez que ela quisesse realmente

participar da humanização da vida, seria o de realizar a primeira grande inversão

da história da dança desde o Renascimento: em vez de fazerem os movimentos

partirem de fora, dirigidos por uma 'etiqueta senhorial', um protocolo ou um código

convencional estabelecido", como o balé tinha aceito, "e também contrariamente à

dança romântica do século XIX, que era a evasão da sociedade industrial, a dança

moderna procurava recriar os movimentos partindo de dentro, buscava criar uma

ordem humana. "25

O esforço do século na dança e nas outras artes do espetáculo foi

recuperar a expressão subjetiva do indivíduo e do grupo.

25 GARAUDY, R Dançara vida, 1980, p48.

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• Sócrates

- 6 meus amigos, o que é verõaõeiramente a õança?

Erixímaco

- Que queres õe mais claro sobre a õança1 além /la /lança nela mesma?

Sócrates

- A wanõe õança1 ó meus amigos, não será essa libertação õe nosso corpo possuí/lo pelo espírito õa mentira, e /la música, que é mentira, e ébrio com

a negação õe qualquer realiõaõe?

• Sócrates e Erixímaco são personagens de Paul Va1éry. O diálogo acima foi extraído de sua obra A alma e a dança. As questões, no entanto, não se apresentam na mesma ordem ·em que aparecem no livro.

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A dança moderna fazendo do corpo inteiro, centrado em si, um instrumento

controlado de expressão e de criação, deu novamente à arte e, em particular, à

dança seu papel mais importante: desenvolver um arte que é a própria vida, que é

a única em que o próprio artista é sua obra .

Essa nova tradição da dança moderna iniciou-se ainda por volta de 1860

com François Delsarte, que retoma a relação do corpo e das emoções. Os

principias fundamentais da reflexão de Delsarte são os mecanismos pelos quais o

corpo traduz os estados sensiveis interiores. O delsartismo é então aplicado à

dança moderna pelas escolas de Henriette Crane, de Geneviêre Stebbins (que

ensinará o método à lsadora Duncan) e à mãe de Ruth Saint-Denis (que passou o

método à filha). Mais tarde Ruth Saint-Denis e Ted Shawn, muito impressionados e

influenciados por lsadora, criaram a primeira escola que formou os principais

criadores da dança moderna.

A dança moderna atinge, então, a Alemanha através de lsadora Duncan, a

pioneira nesta arte.

Arte pura das metamorfoses.

Arquétipo do fugitivo.

Pelo gesto exprime-se o que de outra forma é inexpressável, porque ele se

limita e expressar de forma tal que não somos mais do que ele próprio. A dança é

essa prática poética.

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Fig. tO- lsadora Duncan, l899.

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dança.

39

"É operação de construção do ser, incessante, a

todo momento retomada, demolida e

reconstruída. É apossamento do ser por ele

mesmo, revelação de si para si no mundo;

descoberta, acréscimo de ser ao ser. '~6

lsadora Duncan, no inicio do século, revive e redescobre a dança pela

Ela trouxe uma nova concepção de dança que representa a quebra do

tradicional balé. Trouxe também uma nova concepção de vida. A dança

expressava a liberdade. Um dos princípios básicos da dança moderna é o da

expressívidade dos movimentos. A dança deveria ser uma expressão da vida.

" Nada, sem dúvida, nada de mais mórbido em

si mesmo, nada de tão inimigo da natureza, do

que ver as coisas como elas são. Uma fria e

perfeita clareza é veneno impossível de

combater. O real, em estado puro, paralisa

instantaneamente o coração." (Eriximaco) "

26 Cf. Antonio Artaud in COELHO, T. Antonin Artaud, 1985, p. 15_ 27 Erixímaco é personagem de Paul Valéry emA alma e a dança, 1996, p 53.

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Quando falamos que a dança deveria expressar a vida, tratamos da

realidade, mas não desta forma fria, porque

" A arle quando espelha a vida fá-lo com

espelhos especiais. A arle não deixa de ser

realista por alterar as proporções, deixa-o sim

quando se altera de tal modo que o público, ao

utilizar as reproduções, na prática, em idéias e

impulsos, naufraga na própria realidade." 28

lsadora negava o balé (dizia que dança clássica era uma ginástica rígida e

vulgar, que ía de encontro aos preceitos da natureza - insistia em dançar contra a

ação da gravidade), mas se aproximava da dança clássica da antigüidade, como

dança não narrativa que abria-se (e ainda abre) para a relação concreta com a

natureza, expressão de beleza e felicidade.

lsadora criticava a dança clássica principalmente pelo fato de esta não

passar de uma narrativa de caráter pantomímico. Para ela era absurdo substituir

as palavras por gestos, uma vez que os gestos são capazes de exprimir o indizível.

28 Cf Brecht apud LOPES, J. op. cit., 1998, p 33.

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Fig. 1 I- Princípios da dança moderna

Fig. 12 - Posições do bale. ..,.~)

((,•

. \ \ \

\ Ofqi .. - ___..;. ~ \

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lsadora fala de uma nova escola, onde os gestos partiriam de um centro

espiritual, da alma.

São os principias ze e não as técnicas que marcam a dança do século XX.

'Quando falamos de princípios e não de

técnicas ressaltamos que a origem do

conhecimento arliculador de nossa arle não está

na assimilação mecânica da informação e

repetição sem com-ciência, mas no manipular

de elementos, instrumentos e idéias em função

de uma política individual ou de grupo. " ''

A dança moderna vem propor uma nova forma de percepção do mundo.

Através da dança, a vida sente a si mesma.

29 Cf. MADUREIRA, J. R. MORAES, J. MORETTI, A PINTO, C. op. cit., 1998, dentre os princípios temos o peso, a respiração, a resistência, a tensão, contração e expansão, a queda e a recuperação_ 30 MADUREIR.A, J R MORAES, J. MORETTI, A PINTO, C. op. cit., 1998, p TI.

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Capitulo III A moral Õos oestos: õiscursos ()e um corpo

que õança

Discursar sobre a gestualidade considerando o corpo que dança, vem neste

texto ter seu espaço por estar tratando especificamente de uma manifestação

corporal e artística - a dança - e sobre sua expressão em diferentes épocas e,

portanto, em diferentes contextos sociais.

"O discurso que se faz sobre o gesto (...)', neste caso enfocando a dança

clássica e a dança moderna, " ( ... ) é sobretudo moral, mesmo hoje."31 Por isso,

remetendo-nos aos modelos de gestos tidos como ideais nas diferentes épocas e

suas transformações, podemos observar as mudanças históricas mais gerais.

31 Cf Jean-C!aude Schmitt in SANT' ANNA, D. B. (org.) Políticas do corpo, 1995, p !57.

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Mareei MAUSS já nos falava sobre a idéia de técnica corporal como as

maneiras como os Homens, sociedade por sociedade e de maneira tradicional,

sabem servir-se de seus corpos. Desta forma a dança seria apenas mais uma

dessas maneiras dos Homens utilizarem seus corpos e, portanto, servirem-se de si

mesmos.

A idéia de técnica corporal vem, contudo, acompanhada de alguns

pressupostos. Temos, então, idéias interessantes, que são a de tradição e eficácia.

A tradição é a transmissão oral de fatos, lendas e valores através das

gerações. Se não há tradição não há transmissão. O que é tido como tradicional

em determinada época nem sempre é possível de ser encontrado na forma escrita

a seu tempo, no entanto, todos a conhecem e a exercem (ou não).

" Os gestos, as atitudes, os comportamentos

individuais são aquisições sociais, o fruto de

aprendizagens e mimetismos formais ou

inconscientes. Se, no entanto, eles parecem

'naturais' é porque são o bem comum de uma

sociedade inteira e de uma cultura ( .. .) é

também porque eles não. evoluem quase nada

ao longo do tempo, senão de forma

imperceptível."''

32 Cf. Jean-Claude Schmitt in SANT' ANNA, O_ B.(org.) op.cit., 1995, p 141

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Desta forma pode-se fazer a distinção em técnica da dança clássica e

técnica da dança moderna, considerando-as enquanto marcas da tradição de

determinada época, épocas entre si distintas.

A outra importante característica do ato ou do gesto técnico é a questão da

eficiência. Não existe técnica se ela não for tradicional e eficaz.

Essa eficácia de certos atos, entretanto, não é só física, mas também moral,

mágica e ritual.

Podemos pensar, então, numa eficácia social dos gestos.

'O gesto social é o gesto significativo

para a sociedade, que permite tirar

conclusões que se apliquem às

condições desta sociedade. "33

A permanência de tais gestos, através do tempo,

"deve-se à vitalidade dos modelos de educação

e, além disso, à estabilidade dos esquemas que

estruturam as culturas e as ideologias, à

resistência dos princípios nos quais se enraízam

os códigos e as normas. " 34

33 Cf Brecht apud LOPES, J_ op_ cit., 1998, p 33 34 Cf Jean- Claude Schmitt in SANT' ANNA, D. B. (org.) op cit, 1995, p 141.

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Fig. J3 Ruth S1int-Dems e Ted Shawn

Fig 14 - Degas. A dançarina de quatorze anos, 1881

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47

O balé foi expressão hegemônica da dança por quase 300 anos porque

representava exatamente os anseios da sociedade (da classe) onde teve sua

origem. Nascido na Corte do Rei Luis XIV, no século XVII, acabou por seguir os

valores da nobreza. Uma vez que tais ideais persistiram por tão longa data'', o

balé também permaneceu.

Assim, o balé é representação da educação clássica, em que os corpos têm

somente conformações a oferecer, aparências a refletir. O balé vem manter e

reforçar as convenções da nobreza, segue a "etiqueta senhorial".

As fórmulas espaciais simétricas repetidas pelo balé - a uniformidade do

corpo de baile (corpos massificados onde não há espaço para a subjetividade), a

simetria da

composição (que possibilita uma única visão ao telespectador) e a organização

hierárquica do espaço (primeiros solistas no centro do palco, na boca de cena e,

gradativamente, os graus de categoria vão afastando-se para as laterais e para os

fundos)- representam o desejo de uma ordem pré-estabelecida, de uma hierarquia

de poder. Essas estruturas podem mesmo representar a passividade, a postura

não participativa do povo naquela época, através da relação entre público e

platéia.

Nos séculos XVII e XVIII era uma descortesia dançar de perfil ou de costas

para o público, pois este era constituído por reis, príncipes e demais nobres da

corte.

,5Mesmo a burguesia tendo assumido o poder no século XVIII, os valores da nobreza mantiveram-se,

pois, apesar do discurso, a burguesia sempre aspirou aos ideais nobres.

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48

A tendência a reagir contra a força da gravidade, evitando movimentos

pesados, em busca da elevação para a vertical reforça a conduta tida como ideal

pela nobreza.

" O nível alto pode expressar a dicotomia entre o

corpo e espírito através dos movimentos em

busca do etéreo (espírito), negando o peso

material do corpo, expresso em leveza

(Romantismo). "36

"A relação do corpo e da alma estabelecida

pelos gestos pode sugerir uma ação sobre o

corpo, uma disciplina dos gestos, influindo sobre

a alma, para conformá-la às normas morais.'"'

Essa dicotomia entre corpo e alma colocada na citação acima é marca da

forma como a sociedade ocidental concebe seu corpo. Partindo desse

pressuposto, o gesto é considerado como a expressão física e exterior da alma

interior.

36 ROBATTO, L_ Dança em processo: a linguagem do indizível, 1994. 37 Cf. Jean-Claude Schmitt ;n SANT'ANNA, D. B. (org.) op. cit., 1995, p 142.

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49

"A moral dos gestos é, portanto, inteiramente

social. ·~a

O que é tido como moral é relativo aos princípios do que é tido como bem e

como mal em determinado contexto. O que é tido como moral está geralmente

associado à idéia do bom, do virtuoso, e, também, em se cumprir toda ação com

ordem e medida.

Desta maneira os gestos na dança clássica, assim como o andar, não

deveriam ser 'vivos demais'.

As bailarinas clássicas são as perfeitas representantes dos anseios da

nobreza, tanto por suas posturas, como pela suavidade ou pela sua aproximação

do etéreo. As bailarinas são como mulheres imaginárias, padrão de todas as

virtudes 3'.

"As senhoritas eretas, silenciosas, imóveis, presas em espartilhos ... " 40 era

essa a imagem que se desejava da mulher daquela época. Os espartilhos de boa

postura tornavam as jovens polidas e de nobres maneiras, como as damas da

Corte do Grande Rei Luis XIV.

Não fosse pela expressão "presas em espartilhos", poderíamos associar a

imagem à da bailarina. Imagem pálida e anacrônica. Um retrato daquela

sociedade. Retrato, a realidade transposta para a tela, enQUADRADA.

38 Cf. Jean-Claude Schmitt in SANT' ANNA, D. B. (org.) op. cit., 1995, p 144. 39 Virtude: disposição firme para o bem; boa qualidade moral; castidade; austeridade de vida. 4° Cf Georges Vigarello ;n SANT' ANNA, D_ B. (org.) op.cit, 1995, p 32.

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50

" ... são os movimentos e as atitudes do corpo, o

caminhar, a maneira de se sentar, de se inclinar

à mesa, o rosto, os olhos, o movimento das

mãos, 'o movimento e os gestos' que traduzem

para o exterior, sob os olhos e o julgamento dos

outros, a excelência do espírito e a nobreza de

cada um deles.""

A conduta ideal seria a dos corpos contidos, conduzidos pela boa qualidade

moral originário da alma.

"Conserva-te firme em ti mesmo. Não te lances

para baixo, não te eleves pena o alto, não te

percas em lentidão, não te estendas em

amplidão. Mantém o meio, se não queres perder

a medida. O lugar médio é seguro. O meio é a

sede da medida, e a medida é a sede da

virtude.""

Poderiamos, ao ler esta citação, se não dermos a devida atenção,

confundirmo-nos, achando que se trata da orientação (ordem) de um maitre du

ballet. No entanto, ela foi dita por São Bernardo (1091-1153),ou seja, século XII,

buscando definir a norma do comportamento ideal. De lá até a então 'época' do

41 Cf Jean-Ciaude Schmitt in SANT' ANNA, D. B. (org_) op.cit., 1995, p 144. 42 Cf São Bernardo {1091-1153). Jean-Ciaude Schmitt in SANT' ANNA (org.). op. cit, 1995, p 150.

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balé parece que pouco alterou-se. As regras são rígidas para que o corpo não caia

em pecado e o mal não se apodere da alma. A bailarina torna-se (romantismo) o

modelo do virtuosismo, dos bons modos. Na tentativa de aproximá-la dos anjos

(talvez) colocaram-na na ponta dos pés, transformaram-na em fada. Foi símbolo

da pureza desejada por todos.

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Fig 15 - Degas. Danseuse posem/ che:: un photographe, 1875.

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54

A citação anterior foi feita por Alain de Lille 43, autor de sermões e de obras

práticas destinadas aos confessores e aos pregadores, angustiado com os

progressos da heresia.

Não mera coincidência de fatos tamanha a semelhança.

A estrutura da arte é um elemento do desenvolvimento mais amplo das

unidades sociais que, num determinado momento, dão a estrutura de referência

para a criação artistica.

No caso dos maitres du bailei, artistas-artesãos 44 que trabalham para um

cliente conhecido- que no século XVII eram os Reis europeus e, no século XIX, os

Czares na Rússia - , o produto - o Balé - é criado com um propósito especifico,

socialmente determinado. Sua produção sempre está subordinada a um padrão

social de produção artistica, consagrado pela tradição e garantido, portanto, pelo

poder de quem consome arte. Assim sua forma é modelada menos por sua função

para o artista-artesão - maitre du bailei - e mais por sua função para o cliente

(nobreza ou burguesia) que a utiliza, de acordo com a estrutura de poder. Portanto,

"uma das funções importantes da obra de arte é ser uma maneira de a sociedade

se exibir, como grupo ou como uma série de indivíduos dentro de um grupo. "45

Se o Ser Humano não existe senão através de suas formas corporais, que o

colocam no mundo, toda modificação de sua forma engaja uma outra definição de

sua humanidade.

43 Alain de Lille apud Jean-Claude Schmitt in SANT' ANNA, D. B. (org.) op.cit, 1995, p 154_ 44 A distinção entre artista-artesão e artista é feita por Norbert Elias em Mozart: a sociologia de um gênio, onde trata o artista-artesão como aquele que tem sua arte subordinada a um patrono, e que portanto, não tem a liberdade completa de expressão subjetiva. Já o artista seria aquele que, não subordinado a um fatrono, tem sua expressividade e próprio sentimento de gosto altamente individualizados.

5 ELIAS, N_ Mozart: sociologia de um gênio, 1994, p 49.

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A dança moderna não trouxe apenas uma nova concepção em dança neste

ponto, trouxe também uma nova concepção da humanidade do Ser Humano.

Esse novo Homem precisava de espaço para existir. Na sociedade do

século XIX não havia esse espaço para a manifestação dos novos corpos, havia

apenas para os corpos-máquina.

A realidade dos fins do século XIX e início do XX é de um mundo em crise,

instável, tomado por abalos brutais, onde se opunham duas idéias: a de um corpo

contido e a busca do Homem Humano, marcado por mudanças rápidas; um

universo inquietante do qual os corpos carregam traços.

Dessa tensão (sofrida pelo próprio corpo), dessa necessidade de libertação

dos corpos dá-se então a ruptura. E essa ruptura não ocorreria sem dor. Dor que

faz contorcer, contrair, vibrar, desfigurar, DE(S)FORMAR.

Nos corpos manifestam-se as vontades de transformação, nele temos,

então, novas marcas, novas técnicas. O Homem é seu próprio mito. Sua técnica

corporal não se espelha mais em modelos alheios. Seu modelo é sua própria

organicidade.

Em meio ao vazio (ao mesmo tempo pleno em poesia), o corpo ressurge,

impera.

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~ig 16 - Martha Graham dança Lamentalion, 1930.

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Os fundadores da modernidade na dança ignorando a sentença que sobre

eles se abatia (sentença essa que buscava imprimir sobre os corpos os ideais

sociais do corpo-máquina) colocaram em foco o Ser Humano e suas verdades.

Esses artistas puderam guiar para novas direções o padrão estabelecido de

dança e de arte. O público em geral pôde ir lentamente aprendendo a ver com os

olhos dos artistas e a dançar com seus próprios corpos.

Delsarte desenvolveu a Lei Trinitária que reuniu corpo, alma e espírito em

um só corpo indivisível, que veio romper com a idéia da dualidade, do homem

fragmentado, criação da cultura ocidental. O corpo duo degladia-se. Tem por um

lado o corpo, morada dos pecados e, por outro a alma, plena em pureza, capaz de

conduzir o corpo à salvação eterna. CÉU X INFERNO. SANTO X DEMÓNIO.

CORPO X ALMA. Delsarte vem para recriar o corpo. Já podemos falar dele com

unicidade.

lsadora Duncan retoma à antigüidade grega, trazendo em sua arte a

torrente e o transbordamento de seu próprio bem-estar, de sua perfeição. O Ser

Humano está integrado ao meio em que vive, relaciona-se, compõe com o mundo.

A dança é o gozo de si próprio.

As outras artes também foram expressão dessas ansiedades, mas as artes

corporais e ai a dança perturbavam mais, pois traziam suas marcas nos corpos.

Os corpos são as obras. Os mesmos corpos que call)inham pelas ruas, que

trabalham, que brincam ...

As posturas corporais alteram-se, tendendo do natural ao distorcido. O

corpo pesa e denuncia os contrastes por quedas logo recuperadas em saltos.

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" Se o corpo é um símbolo da sociedade, toda

ameaça sobre sua forma afeta simbolicamente o

vínculo social. Os limites do corpo desenham na

sua escala a ordem moral e significante do

mundo. Pensar o corpo é outra maneira de

pensar o mundo e o vinculo social; uma

perturbação introduzida na configuração do

corpo é uma perturbação introduzida na

coerência do mundo. " 46

SUBVERSÃO ... Corpos que desafiavam os valores sociais vigentes até

então.

Através da dança moderna buscou-se ficar acirna da rnoral: poder flutuar e

brincar acima dela.

NIETZSCHE nos traz uma idéia interessante a respeito da moral. Para ele, .

46 Mary Douglas apud SANT' ANNA, D. (org_) in Politicas do corpo, 1995, p 64.

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Fig. 18

(I) Mary Wigman. (2) fokin e sua mulher, (3) T Karsavina e V. Níjinskí. 1911

Fig. 19

Fig 17

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" Toda moral é, em oposição ao laisser aller,

uma parte de tirania contra a 'natureza', e

também contra a 'razão'; isso, porém, não é

ainda uma objeção contra ela, senão já se teria

de decretar outra vez, a partir de alguma moral,

que toda espécie de tirania e irrazão não é

permitida.( .. .) O curioso estado de coisas,

porém, é que tudo o que há ou houve de

liberdade, refinamento, ousadia, dança e

segurança magistral sobre a terra, seja no

próprio pensar, ou no governar, ou no falar e

persuadir, nas artes assim como nas eticidades,

só se desenvolveu em virtude da 'tirania de tais

/eis arbitrárias'.""

A estruturação de códigos minimizam a linguagem e fazem com que a

criação artística decorra da combinação desses códigos, como é o caso da

música, da linguagem escrita e do balé.

A dança moderna foi capaz de libertar-se do código previamente

determinado pelo balé, códigos que afrouxavam a sensibilidade no Ser Humano,

que lhes enfraquecia o gosto, que massificava seus corpos.

47 NIETZSCHE, F. Nietzsche_ Série Os pensadores, 1983, p 280.

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A dança moderna opôs-se à tirania (ocultada) do código do balé e, em sua

'irracionalidade' também foi tirana, ao passo que martirizou a moral da época.

Como coloca GARAUDY 48,

48 GARAUDY, R. Dançara vida, 1980.

"A arte autêntica nunca é reflexo. É superação.

É transcendência."

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Algumas Palavras Finais

"Não existe 'porquê' quanõo o que se trata é àa viõa."

Panl Va1Í'Q1-Colõquio bentro ~e Hm ser

O discurso sobre a dança que até o momento foi pronunciado está

intimamente relacionado à licenciatura, se pensarmos que o espaço social onde

dá-se tal discurso, assim como o espaço da escola, é o espaço de manifestação

do ser humano.

Falamos, portanto, do corpo e suas manifestações e, de modo especial,

sobre a dança.

O Ser Humano é cultural. É capaz de pensar em si próprio, tornando-se

objeto de seu pensamento. O gesto humano é, antes de tudo, um fenômeno sócio-

cultural.

No universo da cultura corporal pode-se dizer, portanto, que os

significados/objetivos do homem e os significados/objetivos da sociedade se

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interpenetram numa relação dialética. "Bernfeld sugere justamente denominar de

EDUCAÇÃO ao 'Todo destas RELAÇÕES sociais'. "49

Entretanto, o modo como a sociedade está organizada reforça uma visão

fragmentada da realidade. Essa visão aparece na oposição que estabelecemos

entre sentimento e razão, entre obrigação e satisfação, entre o pensar e o agir,

entre dever e prazer, entre trabalho e lazer, entre o aprender e o brincar.

" Se as portas da percepção se abrissem, tudo apareceria como é.""

O conhecimento não pode ser repartido.

"É absurdo levar uma pessoa a uma sala e

dizer-lhe: agora, vou formar sua inteligência;

depois levá-/a ao ginásio e dizer-lhe: agora, vou

formar seu corpo; para em seguida levá-/a à

igreja e dizer-lhe: agora, vou formar sua alma. O

homem é uno. Dividi-lo é mutilá-lo. "51

A dança em educação física é caminho para a expressão do Humano no

Homem, onde as emoções não sejam excluídas pelo processo de racionalismo

instrumental desenvolvido na escola e na sociedade em geral. A dança em

educação física assume um engajamento com um ser humano mais humanizado.

Na escola cabem formas diferentes de se compreender o mundo. Essas

diferentes formas de compreensão dão-se através de diferentes linguagens.

49 Cf. Bemfeld apud KUNZ, E. Transformação didático-pedagógica do esporte, 1994, p 66. ~o Cf. citação de Willian Blake (poeta do século XVIII) no filme Ponto de Mutação de Bemt Capra. 51 Cf Ted Shawn apud GARAUDY, R op. cit., I980, p 74.

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A dança é uma dessas linguagens. Simboliza a necessidade do ser

humano expressar aquilo que há de mais belo em si.

Dançar é conhecimento humano. É diálogo entre o que é sentido (vivido) e

o que é simbolizado.

" Dançar é tão importante para uma criança

quanto falar, contar ou aprender geografia. É

essencial para a criança que nasce dançando,

não desaprender essa linguagem pela influência

de uma educação repressiva e frustrante." 52

Pensemos a dança não como o mesmo, como o conhecido demais de

composições banais.

Dança é ato educativo, pois transforma o conhecimento corporal. É arte

que permite ao Ser Humano tocar na vida verdadeira, que permite acreditar nos

sentimentos e dar-lhes vida.

"A arte capacita o homem para compreender a

realidade e o ajuda não só a suportá-la com a

transformá-la, aumentando-lhe a determinação

de torná-la mais humana e mais hospitaleira

para a humanidade. '53

A Educação para a Arte necessita de convivência com a Arte.

É fundamental, portanto, uma educação que não se limite apenas a ensinar

como apreciar as obras, as atitudes, os movimentos que expõem o seu

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conhecimento, mas, sobretudo, possibilite ao aluno a experienciação de seu

próprio conhecimento e sua maneira de perceber o mundo.

A educação deve abrir caminhos para que o Ser Humano encontre espaço

para uma autonomia de conhecimento.

Um processo educacional, que se pretenda emancipatório, não deve se

resumir apenas num saber-fazer, mas também (e antes de tudo), deve possibilitar

um saber-pensar e um saber-sentir.

" Uma verdadeira educação deve formar, num

mesmo movimento, um corpo pronto para agir

com facilidade e prazer para poder exprimir e

servir a uma vida voluntária, uma inteligência

lúcida, acostumada a todos os mecanismos do

pensamento e capaz, sobretudo, de definir os

fins da ação e da vida, e um coração cheio de

vida e de fogo, cujas paixões animem a

vontade, amando a beleza e empenhando-se na

luta por uma causa que o transcenda.""

A escola deve ser um espaço onde o aluno possa exigir, exercer,

excitar a liberdade geral das formas de sua linguagem.

52 Cf Maurice Béjart apud GARAUDY, R op. cit., 1980, p 10. 53 FISCHER, E. op. cit., 1983, p 57. '4 Cf Ted Shawm apud GARAUDY, R. op. cit, 1980, p 74.

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Lista õe Figuras Fig. 1 - Edvard Munch. A dança da vida, 1899-1900.

FONTE: Coleção Découvrons L'Art 20e. siecle. Munch.

Fig. 2 -O balé de ação de Noverre, 1782.

FONTE: HOFMANN e HOFMANN. Le Baile!. p 28.

Fig. 3- Gestualidade no séc. XVIII.

FONTE: MONTEIRO. Noverre: cartas sobre a dança. p128.

Fig. 4 - O romantismo de Gise//e.

FONTE: HOFMANN e HOFMANN. op. cit., p 222.

Fig. 5 - Martha Graham dança Lelter to lhe world.

FONTE: HORST. Baile! international.

Fig. 6- Revolução Russa, 1917.

FONTE: HOBSBAWM. Era dos extremos: 1914-1991.

Fig. 7 -Coral de homens e mulheres.

FONTE: WIGMAN. Le langage de la danse. p 96.

Fig. 8 -A ópera Herculanum, 1859.

FONTE: HOFMANN e HOFMANN. op. cit., p 209.

Fig. 9- Eurritmia de Jaques-Dalcroze.

FONTE: HOFMANN e HOFMANN. op. cit., p 51.

66

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Fig. 10 -lsadora Duncan, 1899.

FONTE: HOFMANN e HOFMANN. op. cit., p 53.

Fig. 11 -Princípios da dança moderna.

FONTE: HOFMANN E HOFMANN. op. cit., p 183 e 185.

Fig. 12- Posições do balé.

FONTE: HOFMANN e HOFMANN. op. cit., p 176.

Fig. 13- Ruth Saint-Denis e Ted Shawn.

FONTE: HOFMANN e HOFMANN. op. cit., p 55.

Fig. 14- Degas. A dançarina de quatorze anos, 1881.

FONTE: HÜTTINGER. Degas. p 58.

Fig. 15- Degas. Danseuse posant chez un photographe, 1875.

FONTE: Coleção Découvrons L'Art 19e. siecle. Degas.

Fig. 16- Martha Graham dança Lamentation, 1930.

FONTE: HOFMANN e HOFMANN. op. cit..

Fig. 17 - Fokine e sua mulher.

FONTE: MACDONALD. Diaghilev observed. p 114.

Fig.18- T. Karsavinae V. Nijinski, 1911.

FONTE: HOFMANN e HOFMANN. op. cit., p 65.

Fig. 19- Mary Wigman.

FONTE: WIGMAN. op. cit., p 71.

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