Ruy Mesquita, obituário Estadão, H2

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H2 Especial QUARTA-FEIRA, 22 DE MAIO DE 2013 O ESTADO DE S. PAULO 16/4/1925 Ruy Mesquita nasce em São Paulo. 15/3/1927 Morre seu avô, Julio Mesquita. Seu pai, Julio de Mesquita Fi- lho, e seu tio, Francisco Mes- quita, assumem a direção do Estado, ao lado de Nestor Pes- tana. 1928 Aos 3 anos de idade, é acometi- do por paralisia infantil. Vai com a família para Bolonha, Itália, onde é operado no Insti- tuto Rizzoli. Enquanto fica in- ternado por dois meses, seu pai percorre o país fazendo re- portagens sobre o regime fas- cista. 1929 Em março, a redação e a admi- nistração são transferidas para a Rua Boa Vista, 32, com a ladei- ra Porto Geral. As oficinas pas- sam a operar na Rua Barão de Duprat, com novas rotativas especialmente construídas. Crack na Bolsa de Nova York causa recessão mundial. 1930 O Estado apoia a candidatura de Getúlio Vargas à presidên- cia, em oposição a Júlio Pres- tes, respaldado pelo presiden- te Washington Luís. Prestes ganha as eleições, mais uma vez marcadas por fraudes. Em outubro estoura a Revolução de 30, que depõe Washington Luís e coloca Getúlio Vargas no poder. O jornal alcança a tiragem de 100 mil exemplares e lança aos domingos um suple- mento em rotogravura, com grande destaque para as ilustra- ções fotográficas. AP-29/10/1956 José Maria Mayrink Acordava às 4 horas da madruga- da, lia os jornais antes de tomar o café, ligava para dois ou três colaboradores, chegava à reda- ção ao meio-dia e meia, voltava direto para casa depois do traba- lho. Se houve uma época em que Ruy Mesquita passava pelo clube para tomar um uisqui- nho, era mais para conversar com o irmão, Julio de Mesquita Neto, que morreu em 1996. Con- versavam sobre o Estado eo Jor- nal da Tarde, que eles dirigiam desde 1969, quando morreu o pai, Julio de Mesquita Filho. “A minha vida é isso, sou qua- se um workaholic”, disse Ruy Mesquita numa entrevista pela Rádio Eldorado, resumindo a ro- tina que vinha refazendo, de se- gunda a sexta-feira, por quase 60 anos. Os fins de semana eram, para ele, um plantão sem descanso. Conferia a edição do dia, anotava e cobrava even- tuais falhas, telefonava para a redação nas tardes de sábados e domingos. “O que temos para amanhã?”, perguntava invaria- velmente. Se discordava da manchete prevista, ditava suas instruções, mas também aceita- va contra-argumentos. Com a morte de Julio Neto, em 1996, aumentou a carga de trabalho. Assumiu a direção do Estado, com o nome no cabe- çalho da primeira página, bem embaixo do nome do avô, Julio Mesquita, o patriarca, que diri- giu o jornal de 1891 a 1927. Quan- do era diretor do JT, costumava fazer editoriais. Deixou a tarefa para os editorialistas dos dois jornais, com os quais se reunia diariamente, porque não tinha mais tempo de escrever. A mesa de trabalho de Ruy era coberta de pilhas de papéis, que só ele era capaz de localizar. Lia dezenas de artigos, conferia os textos em pauta, anotava com uma caneta o que tinha a reco- mendar ou corrigir. “Se não en- tender, leve para o Marco Antô- nio Rocha traduzir”, dizia com um risinho de brincadeira, mas falando sério, porque quase nin- guém conseguia decifrar sua le- tra. Fazia observações precisas e, se reclamava, geralmente ti- nha razão. Sua sala, de janelas amplas pa- ra o Rio Tietê, tinha também computadores, a tela aberta nas informações da Agência Estado, mas Ruy não era afeito às novi- dades da internet. “Eu sou com- pletamente incapaz de adquirir as tecnologias modernas, estou muito velho para isso, mas rece- bo diariamente prints feitos es- pecialmente para mim sobre os assuntos que me interessam.” Queria saber o que a imprensa, especialmente a americana e a europeia, estava publicando. “Eu sei que isso está meio fo- ra da moda”, reconhecia com sinceridade, mas não alterava a rotina. “No fim de semana, pas- so o dia inteiro em casa lendo livros. Há muito tempo não leio um romance. Procuro ler os li- vros que discutem os proble- mas políticos e econômicos da atualidade. Não entendo jorna- lismo a não ser assim.” Gostava de discutir sobre política e so- bre economia, matéria-prima preferencial do jornal de seus sonhos. Acreditava ser essa a sua fun- ção. “O jornal é a obra mais pere- cível que o homem faz: começa e se completa a cada 24 horas. En- tão, você tem de estar todo dia orientando, discutindo o que vo- cê acha que deve ser mais realça- do numa determinada edição, no dia seguinte fazendo a crítica da edição que saiu, para poder cumprir seu papel da melhor ma- neira possível”, disse em entre- vista à revista Imprensa. Foi uma lição que veio do ber- ço. Ruy Mesquita acompanhou a vida atribulada do jornal des- de menino. Tinha 7 anos de ida- de, quando o pai, Julio de Mes- quita Filho, e o irmão dele, Fran- cisco Mesquita, foram presos e enviados ao exílio em Portugal porque o jornal apoiou a Revo- lução Constitucionalista de 1932. A família foi junto. Aliás, as famílias. “Éramos duas famí- lias, pois eram dois irmãos (os Mesquitas) casados com duas irmãs Vieira de Carvalho.” Fo- ram morar num chalé na Praia do Estoril, perto de Lisboa. O pai aproveitou o exílio para levar Ruy à Itália, onde passou dois meses em tratamento no Instituto Rizzoli, na cidade de Bolonha. Nascido em 16 de abril de 1925, ele tinha paralisia infan- til desde os 3 anos. “Eu tinha um aparelho que pe- gava a perna inteira. Meu pai me levou para a Itália, porque ali ha- via o maior, mais moderno e mais adiantado centro de orto- pedia, e o médico mais renoma- do do mundo, dr. Putti. Fui ope- rado por esse médico, que me fez andar sem aparelhos o res- tante da vida.” Enquanto Ruy fi- cava dois meses internado no hospital em companhia da mãe, Marina Vieira de Carvalho Mes- quita, o pai percorria a Itália fa- zendo reportagens sobre o regi- me fascista de Mussolini. Marina relatou numa carta bem-humorada ao marido, em 2 de junho de 1933, como o filho se comportava na clínica: “Va- mos bem. O Ruy, firme nos seus tratamentos. Sempre com uma paciência sem limites, ajudan- do o quanto pode a sua cura. Se- rá o cúmulo que Deus não re- compense tanto sacrifício da parte de um coitadinho de 8 anos. Tem feito sucesso na gi- nástica por causa de seus já céle- bres olhos. Ontem havia lá três moças encantadas com ele. Dis- se-me na volta que isso o aborre- ce, porque de repente ele gosta de uma e o que será então das outras coitadas! O convenci- mento é um fato...” Ruy guardou boas lembran- ças dessa primeira passagem forçada pela Europa. “Foi um exílio até agradável para nós, meninos. Logo que chegamos a Portugal, fomos pa- ra o colégio. Eu estava começan- do o curso primário e Júlio, meu irmão, estava no terceiro ano. Fomos todos juntos – os pri- mos Luís, Juca e Cecília, e o meu outro irmão, o Carlão (Luís Carlos Mesquita). Tinha um monte de exilados brasilei- ros lá. Ficamos todos amigos.” Voltaram todos, menos de dois anos depois, quando Getú- lio Vargas acenou com promes- sas de liberalização e nomeou Armando de Salles Oliveira, cunhado de Julio de Mesquita Filho, interventor de São Paulo. Eleito em seguida governador, Armando Salles encarregou Ju- lio de Mesquita Filho de coorde- nar a criação da Universidade de São Paulo (USP), um orgu- lho para a família. A trégua, no entanto, durou pouco. Com o golpe e a instituição do Estado Novo em 1937, Julio de Mesquita Filho voltou ao exí- lio. Depois de ser preso 17 ve- zes, foi embarcado para Lisboa, de onde se mudou para Buenos Aires. Ruy e seus irmãos perma- neceram em São Paulo. “Papai não tinha recursos para nos le- var. Minha mãe o acompanhou e nos deixou na casa do tio Fran- cisco, que era como meu pai. Fo- mos tratados igualzinho a nos- sos primos. Estávamos estudan- do aqui, o Julio quase entrando na universidade.” Ruy, que iniciara o primeiro ano ginasial no Colégio São Luís em 1935, foi expulso e se transfe- riu para o Rio Branco em 1938. Motivo da expulsão: a insatisfa- ção dos padres jesuítas do São Luís com a família Mesquita, por causa da oposição do Estado ao general Franco, quando tropas franquistas atacaram o governo republicano na Espanha. Após o colegial, Ruy se matri- culou na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Estu- dou até o terceiro ano, mas não concluiu o curso. Estudou Ciên- cias Sociais na Faculdade de Fi- losofia da USP, mas sua forma- ção foi mais a de um autodidata. “Eu fui educado primeiro na lei- tura de Tucídides, depois de Fustel de Coulanges e, depois, de Alexis de Tocqueville”, disse Ruy Mesquita, apontando os au- tores que fundamentalmente contribuíram para o ideário até hoje mantido, com as necessá- rias adaptações, pelo Estado. Em 1944, participou como ator da peça Heffman, escrita e dirigida por Alfredo Mesquita e encenada no Teatro Municipal. Ao seu lado, a escritora Lygia Fa- gundes Telles, colega no Largo São Francisco. “Ele se revelou um ator muito esforçado e teve boa presença em cena”, relem- bra a autora, que fazia parte do Grupo de Teatro Experimental, dirigido por Alfredo Mesquita. Com três atos, Heffman era uma comédia ligeira sobre um grupo de jovens que, reunidos em uma casa, recebem a visita de um refugiado da guerra, que vai modificar sua rotina. Ruy vi- via Antonio Augusto, enquanto Lygia interpretava Nair. Tam- bém estudou piano por 2 anos. Em 1948, aos 23 anos de ida- de, foi trabalhar no jornal. Co- meçou pela Editoria Internacio- nal, então chamada de Seção do Exterior, sob o comando do ita- liano Giannino Carta, seu mes- tre e amigo. Quando Giannino voltou para a Europa, em 1956, Ruy assumiu a chefia da seção. Assumiu também a coluna De um dia para outro, que assinou até maio de 1961. Comentava notícias internacionais. “De Gaulle é um homem de opinião e calado”, escreveu na estreia, em 12 de julho de 1958, quando também falou da políti- ca externa da então União Sovié- tica. “A Rússia não deseja criar dificuldades para o marechal Ti- to nem para seu governo.” So- bre os rumos da Revolução Cubana, escreveu já em 9 de ja- neiro de 1959: “Se os atuais líde- res revolucionários não estive- rem à altura da tarefa que se im- puseram, Cuba viverá, num fu- turo próximo, momentos ainda mais dramáticos que o atual”. Seis meses após a vitória dos guerrilheiros de Fidel Castro, foi conferir em Havana, onde já esti- vera em 1956, os primeiros pas- sos do novo governo. Subiu ao palanque das autoridades na pri- meira comemoração do 26 de Ju- lho. “Eu fui apresentado à multi- dão na Plaza de la Revolución co- mo o jornalista que mais tinha defendido a revolução de Sierra Maestra. A revolução de Sierra Maestra foi uma brincadeira que deu certo, porque eram 21 ou 22 malucos que desembarcaram nas costas de Cuba e ficaram lá. Não houve grandes combates, não houve tiroteio nem nada. O Batista acabou de podre...” Quase 50 anos depois, quan- do Fidel renunciou à reeleição, em fevereiro de 2008, Ruy Mes- quita traçou dele um perfil críti- co em que deixava clara sua de- cepção com o que ocorreu de- pois. Sua avaliação, depois de confessar que havia acompa- nhado “a saga revolucionária de Fidel Castro” com grande entu- siasmo: “O regime castrista, que já dura 49 anos, é a maior tragédia política da história mo- derna, como está sendo de- monstrado hoje, pois, 49 anos depois, a economia cubana está pior do que no momento em que Castro assumiu o governo. É o que se pode chamar de hiber- nação econômica de um país que durou quase 50 anos.” O noticiário internacional sempre mereceu especial aten- ção de Ruy Mesquita. Mesmo quando dirigia o Jornal da Tarde – um vespertino ágil e moderno lançado sob sua responsabilida- de em janeiro de 1966 – ele moni- torava a antiga Seção do Exte- rior do Estado, cobrando falhas e sugerindo temas. “Quem é essa Sônia Cristina que está escrevendo no Esta- do?”, perguntou, ao ler um arti- go sobre os 30 anos da Organiza- ção do Tratado do Atlântico Nor- te (Otan) que não combinava com a linha do jornal. Não gos- tou do artigo, mas recebeu a reda- tora, quando ela bateu à sua por- ta para defender o texto. Mante- ve sua opinião e respeitou a diver- gência. Tanto que aconselhou Sônia a continuar escrevendo. Ruy Mesquita podia discor- dar, mas respeitava seus profis- sionais. Quando Gilles Lapouge, correspondente em Paris, avi- sou em 1964 que não escreveria para um jornal que havia apoia- do o golpe militar, foi ele quem o fez mudar de ideia. Garantia que, se a Revolução de 31 de Março se desviasse de seus objetivos, o Es- tado retiraria o apoio – o que, de fato, acabaria acontecendo. “Meu caro Ruy, seu telegrama comoveu-me e perturbou-me ao mesmo tempo. Não me sur- preendi: já sabia que suas deci- sões são sempre tomadas com base nos mais nobres motivos”, respondeu Lapouge numa lon- ga carta, reproduzida na íntegra, em que revia sua posição. Conti- nuaram amigos. Divergiam em questões importantes, mas nem por isso o jornal deixava de publi- car o que Lapouge escrevia. Mes- mo que tivesse de discordar dele explicitamente em editorial. Ruy Mesquita não gostava de Getúlio Vargas e tinha razões para isso. Depois de mandar prender e exilar os proprietá- rios do Estado, por causa da re- sistência deles à ditadura, o go- verno interveio no jornal e ocu- pou suas instalações durante mais de cinco anos – de março de 1940 a dezembro de 1945. A polícia do interventor Ade- mar de Barros alegou que os Mesquitas estocavam metra- lhadoras para derrubar o gover- no. Mandado para Lisboa, de onde foi para Buenos Aires, Ju- lio de Mesquita Filho se arris- cou a voltar em 1943. Não tinha como sobreviver. Foi confina- do na fazenda da família em Louveira, onde ficou isolado até a queda de Getúlio. Quando ocorreu o atentado da Rua Tonelero contra Carlos Lacerda e, em consequência de- le, o suicídio de Getúlio, em 1954, Ruy Mesquita estava dirigindo temporariamente a sucursal do Estado no Rio. Fez a cobertura da crise que, como diria 50 anos depois, foi “muito facciosa”, em- bora “não deliberadamente fac- ciosa”, porque a reportagem se deixou levar “pela atmosfera que reinou naquela ocasião”. Adversário, mas não inimigo de Getúlio, “o Estado rendeu as 1925 2013 Uma vida dedicada ao jornalismo, uma história guiada por princípios Ao longo de 60 anos de trabalho no ‘Estado’ e no ‘Jornal da Tarde’, manteve-se fiel ao ideal de liberdade que herdou de seu pai e seu avô Cuba. Ruy (2º à esq.) durante reunião da SIP em Havana, quando castristas foram fuzilados Cronologia Ruy Mesquita O pai e o tio foram presos e enviados ao exílio em Portugal. As famílias foram junto Foi expulso do São Luís por causa da oposição do jornal ao general Franco, da Espanha

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H2 Especial QUARTA-FEIRA, 22 DE MAIO DE 2013 O ESTADO DE S. PAULO

16/4/1925Ruy Mesquita nasce em SãoPaulo.

15/3/1927Morre seu avô, Julio Mesquita.Seu pai, Julio de Mesquita Fi-lho, e seu tio, Francisco Mes-quita, assumem a direção doEstado, ao lado de Nestor Pes-tana.

1928Aos 3 anos de idade, é acometi-do por paralisia infantil. Vaicom a família para Bolonha,Itália, onde é operado no Insti-tuto Rizzoli. Enquanto fica in-ternado por dois meses, seupai percorre o país fazendo re-portagens sobre o regime fas-cista.

1929Em março, a redação e a admi-nistração são transferidas paraa Rua Boa Vista, 32, com a ladei-ra Porto Geral. As oficinas pas-sam a operar na Rua Barão deDuprat, com novas rotativasespecialmente construídas.Crack na Bolsa de Nova Yorkcausa recessão mundial.

1930O Estado apoia a candidaturade Getúlio Vargas à presidên-cia, em oposição a Júlio Pres-tes, respaldado pelo presiden-te Washington Luís. Prestesganha as eleições, mais umavez marcadas por fraudes. Emoutubro estoura a Revoluçãode 30, que depõe WashingtonLuís e coloca Getúlio Vargasno poder. O jornal alcança a

tiragem de 100 mil exemplarese lança aos domingos um suple-mento em rotogravura, comgrande destaque para as ilustra-ções fotográficas.

AP-29/10/1956

José Maria Mayrink

Acordava às 4 horas da madruga-da, lia os jornais antes de tomaro café, ligava para dois ou trêscolaboradores, chegava à reda-ção ao meio-dia e meia, voltavadireto para casa depois do traba-lho. Se houve uma época emque Ruy Mesquita passava peloclube para tomar um uisqui-nho, era mais para conversarcom o irmão, Julio de MesquitaNeto,que morreu em 1996. Con-versavam sobre o Estado e o Jor-nal da Tarde, que eles dirigiamdesde 1969, quando morreu opai, Julio de Mesquita Filho.

“A minha vida é isso, sou qua-se um workaholic”, disse RuyMesquita numa entrevista pelaRádio Eldorado, resumindo a ro-tina que vinha refazendo, de se-gunda a sexta-feira, por quase60 anos. Os fins de semanaeram, para ele, um plantão semdescanso. Conferia a edição dodia, anotava e cobrava even-tuais falhas, telefonava para aredação nas tardes de sábados edomingos. “O que temos paraamanhã?”, perguntava invaria-velmente. Se discordava damanchete prevista, ditava suasinstruções, mas também aceita-va contra-argumentos.

Com a morte de Julio Neto,em 1996, aumentou a carga detrabalho. Assumiu a direção doEstado, com o nome no cabe-çalho da primeira página, bemembaixo do nome do avô, JulioMesquita, o patriarca, que diri-giu o jornal de 1891 a 1927. Quan-do era diretor do JT, costumavafazer editoriais. Deixou a tarefapara os editorialistas dos doisjornais, com os quais se reuniadiariamente, porque não tinhamais tempo de escrever.

A mesa de trabalho de Ruy eracoberta de pilhas de papéis, quesó ele era capaz de localizar. Liadezenas de artigos, conferia ostextos em pauta, anotava comuma caneta o que tinha a reco-mendar ou corrigir. “Se não en-tender, leve para o Marco Antô-nio Rocha traduzir”, dizia comum risinho de brincadeira, masfalando sério, porque quase nin-guém conseguia decifrar sua le-tra. Fazia observações precisase, se reclamava, geralmente ti-nha razão.

Sua sala, de janelas amplas pa-ra o Rio Tietê, tinha tambémcomputadores, a tela aberta nasinformações da Agência Estado,mas Ruy não era afeito às novi-dades da internet. “Eu sou com-pletamente incapaz de adquiriras tecnologias modernas, estoumuito velho para isso, mas rece-bo diariamente prints feitos es-pecialmente para mim sobre osassuntos que me interessam.”Queria saber o que a imprensa,especialmente a americana e aeuropeia, estava publicando.

“Eu sei que isso está meio fo-ra da moda”, reconhecia comsinceridade, mas não alterava arotina. “No fim de semana, pas-so o dia inteiro em casa lendolivros. Há muito tempo não leio

um romance. Procuro ler os li-vros que discutem os proble-mas políticos e econômicos daatualidade. Não entendo jorna-lismo a não ser assim.” Gostavade discutir sobre política e so-bre economia, matéria-primapreferencial do jornal de seussonhos.

Acreditava ser essa a sua fun-ção. “O jornal é a obra mais pere-cível que o homem faz: começa ese completa a cada 24 horas. En-tão, você tem de estar todo diaorientando, discutindoo que vo-cê acha que deve ser mais realça-do numa determinada edição,no dia seguinte fazendo a críticada edição que saiu, para podercumprirseu papeldamelhor ma-neira possível”, disse em entre-vista à revista Imprensa.

Foi uma lição que veio do ber-ço. Ruy Mesquita acompanhoua vida atribulada do jornal des-de menino. Tinha 7 anos de ida-de, quando o pai, Julio de Mes-quita Filho, e o irmão dele, Fran-

cisco Mesquita, foram presos eenviados ao exílio em Portugalporque o jornal apoiou a Revo-lução Constitucionalista de1932. A família foi junto. Aliás,as famílias. “Éramos duas famí-lias, pois eram dois irmãos (osMesquitas) casados com duasirmãs Vieira de Carvalho.” Fo-ram morar num chalé na Praiado Estoril, perto de Lisboa.

O pai aproveitou o exílio paralevar Ruy à Itália, onde passoudois meses em tratamento noInstituto Rizzoli, na cidade deBolonha. Nascido em 16 de abrilde 1925, ele tinha paralisia infan-til desde os 3 anos.

“Eu tinha um aparelho que pe-gava a perna inteira. Meu pai melevou para a Itália, porque ali ha-via o maior, mais moderno emais adiantado centro de orto-

pedia, e o médico mais renoma-do do mundo, dr. Putti. Fui ope-rado por esse médico, que mefez andar sem aparelhos o res-tante da vida.” Enquanto Ruy fi-cava dois meses internado nohospital em companhia da mãe,Marina Vieira de Carvalho Mes-quita, o pai percorria a Itália fa-zendo reportagens sobre o regi-me fascista de Mussolini.

Marina relatou numa cartabem-humorada ao marido, em2 de junho de 1933, como o filhose comportava na clínica: “Va-mos bem. O Ruy, firme nos seustratamentos. Sempre com umapaciência sem limites, ajudan-do o quanto pode a sua cura. Se-rá o cúmulo que Deus não re-compense tanto sacrifício daparte de um coitadinho de 8anos. Tem feito sucesso na gi-nástica por causa de seus já céle-bres olhos. Ontem havia lá trêsmoças encantadas com ele. Dis-se-me na volta que isso o aborre-ce, porque de repente ele gostade uma e o que será então dasoutras coitadas! O convenci-mento é um fato...”

Ruy guardou boas lembran-ças dessa primeira passagemforçada pela Europa.

“Foi um exílio até agradávelpara nós, meninos. Logo quechegamos a Portugal, fomos pa-ra o colégio. Eu estava começan-do o curso primário e Júlio, meuirmão, estava no terceiro ano.Fomos todos juntos – os pri-mos Luís, Juca e Cecília, e omeu outro irmão, o Carlão(Luís Carlos Mesquita). Tinhaum monte de exilados brasilei-ros lá. Ficamos todos amigos.”

Voltaram todos, menos dedois anos depois, quando Getú-lio Vargas acenou com promes-sas de liberalização e nomeouArmando de Salles Oliveira,cunhado de Julio de MesquitaFilho, interventor de São Paulo.Eleito em seguida governador,Armando Salles encarregou Ju-lio de Mesquita Filho de coorde-nar a criação da Universidadede São Paulo (USP), um orgu-

lho para a família. A trégua, noentanto, durou pouco.

Com o golpe e a instituiçãodo Estado Novo em 1937, Juliode Mesquita Filho voltou ao exí-lio. Depois de ser preso 17 ve-zes, foi embarcado para Lisboa,de onde se mudou para BuenosAires. Ruy e seus irmãos perma-neceram em São Paulo. “Papainão tinha recursos para nos le-var. Minha mãe o acompanhoue nos deixou na casa do tio Fran-cisco, que era como meu pai. Fo-mos tratados igualzinho a nos-sos primos. Estávamos estudan-do aqui, o Julio quase entrandona universidade.”

Ruy, que iniciara o primeiroano ginasial no Colégio São Luísem 1935, foi expulso e se transfe-riu para o Rio Branco em 1938.Motivo da expulsão: a insatisfa-ção dos padres jesuítas do SãoLuís com a família Mesquita, porcausa da oposição do Estado aogeneral Franco, quando tropasfranquistas atacaram o governorepublicano na Espanha.

Após o colegial, Ruy se matri-culou na Faculdade de Direitodo Largo de São Francisco. Estu-dou até o terceiro ano, mas nãoconcluiu o curso. Estudou Ciên-cias Sociais na Faculdade de Fi-losofia da USP, mas sua forma-ção foi mais a de um autodidata.“Eu fui educado primeiro na lei-tura de Tucídides, depois deFustel de Coulanges e, depois,de Alexis de Tocqueville”, disseRuy Mesquita, apontando os au-tores que fundamentalmentecontribuíram para o ideário atéhoje mantido, com as necessá-rias adaptações, pelo Estado.

Em 1944, participou comoator da peça Heffman, escrita edirigida por Alfredo Mesquita eencenada no Teatro Municipal.Ao seu lado, a escritora Lygia Fa-gundes Telles, colega no LargoSão Francisco. “Ele se revelouum ator muito esforçado e teveboa presença em cena”, relem-bra a autora, que fazia parte doGrupo de Teatro Experimental,dirigido por Alfredo Mesquita.

Com três atos, Heffman erauma comédia ligeira sobre umgrupo de jovens que, reunidosem uma casa, recebem a visitade um refugiado da guerra, quevai modificar sua rotina. Ruy vi-via Antonio Augusto, enquantoLygia interpretava Nair. Tam-bém estudou piano por 2 anos.

Em 1948, aos 23 anos de ida-de, foi trabalhar no jornal. Co-meçou pela Editoria Internacio-nal, então chamada de Seção doExterior, sob o comando do ita-liano Giannino Carta, seu mes-tre e amigo. Quando Gianninovoltou para a Europa, em 1956,Ruy assumiu a chefia da seção.Assumiu também a coluna Deum dia para outro, que assinouaté maio de 1961. Comentavanotícias internacionais.

“De Gaulle é um homem deopinião e calado”, escreveu naestreia, em 12 de julho de 1958,quando também falou da políti-ca externa da então União Sovié-tica. “A Rússia não deseja criardificuldades para o marechal Ti-to nem para seu governo.” So-bre os rumos da RevoluçãoCubana, escreveu já em 9 de ja-neiro de 1959: “Se os atuais líde-res revolucionários não estive-rem à altura da tarefa que se im-puseram, Cuba viverá, num fu-turo próximo, momentos aindamais dramáticos que o atual”.

Seis meses após a vitória dosguerrilheiros de Fidel Castro, foiconferirem Havana,ondejá esti-vera em 1956, os primeiros pas-sos do novo governo. Subiu aopalanquedas autoridades na pri-meiracomemoraçãodo26 deJu-lho. “Eu fui apresentado à multi-dãonaPlaza de laRevolución co-mo o jornalista que mais tinhadefendido a revolução de SierraMaestra. A revolução de SierraMaestra foi uma brincadeira quedeu certo, porque eram 21 ou 22malucos que desembarcaramnas costas de Cuba e ficaram lá.Não houve grandes combates,não houve tiroteio nem nada. O

Batista acabou de podre...”Quase 50 anos depois, quan-

do Fidel renunciou à reeleição,em fevereiro de 2008, Ruy Mes-quita traçou dele um perfil críti-co em que deixava clara sua de-cepção com o que ocorreu de-pois. Sua avaliação, depois deconfessar que havia acompa-nhado “a saga revolucionária deFidel Castro” com grande entu-siasmo: “O regime castrista,que já dura 49 anos, é a maiortragédia política da história mo-derna, como está sendo de-monstrado hoje, pois, 49 anosdepois, a economia cubana estápior do que no momento emque Castro assumiu o governo.É o que se pode chamar de hiber-nação econômica de um paísque durou quase 50 anos.”

O noticiário internacional

sempre mereceu especial aten-ção de Ruy Mesquita. Mesmoquando dirigia o Jornal da Tarde– um vespertino ágil e modernolançado sob sua responsabilida-de em janeiro de 1966 – ele moni-torava a antiga Seção do Exte-rior do Estado, cobrando falhase sugerindo temas.

“Quem é essa Sônia Cristinaque está escrevendo no Esta-do?”, perguntou, ao ler um arti-go sobre os 30 anos da Organiza-çãodoTratadodo AtlânticoNor-te (Otan) que não combinavacom a linha do jornal. Não gos-toudoartigo,masrecebeuareda-tora, quando ela bateu à sua por-ta para defender o texto. Mante-vesuaopiniãoerespeitouadiver-gência. Tanto que aconselhouSônia a continuar escrevendo.

Ruy Mesquita podia discor-dar, mas respeitava seus profis-sionais. Quando Gilles Lapouge,correspondente em Paris, avi-sou em 1964 que não escreveriapara um jornal que havia apoia-do o golpe militar, foi ele quem ofezmudar deideia. Garantiaque,se a Revolução de 31 de Março sedesviassedeseusobjetivos,oEs-tado retiraria o apoio – o que,de fato, acabaria acontecendo.

“Meu caro Ruy, seu telegramacomoveu-me e perturbou-meao mesmo tempo. Não me sur-preendi: já sabia que suas deci-sões são sempre tomadas combase nos mais nobres motivos”,respondeu Lapouge numa lon-ga carta, reproduzida na íntegra,em que revia sua posição. Conti-nuaram amigos. Divergiam emquestões importantes, mas nemporissoojornaldeixavadepubli-car oque Lapouge escrevia.Mes-mo que tivesse de discordar deleexplicitamente em editorial.

Ruy Mesquita não gostava deGetúlio Vargas e tinha razõespara isso. Depois de mandarprender e exilar os proprietá-rios do Estado, por causa da re-sistência deles à ditadura, o go-verno interveio no jornal e ocu-pou suas instalações durantemais de cinco anos – de marçode 1940 a dezembro de 1945.

A polícia do interventor Ade-mar de Barros alegou que osMesquitas estocavam metra-lhadoras para derrubar o gover-no. Mandado para Lisboa, deonde foi para Buenos Aires, Ju-lio de Mesquita Filho se arris-cou a voltar em 1943. Não tinhacomo sobreviver. Foi confina-do na fazenda da família emLouveira, onde ficou isoladoaté a queda de Getúlio.

Quando ocorreu o atentadoda Rua Tonelero contra CarlosLacerda e, em consequência de-le, osuicídio de Getúlio, em 1954,Ruy Mesquita estava dirigindotemporariamente a sucursal doEstado no Rio. Fez a coberturada crise que, como diria 50 anosdepois,foi “muito facciosa”,em-bora “não deliberadamente fac-ciosa”, porque a reportagem sedeixou levar “pela atmosferaque reinou naquela ocasião”.

Adversário, mas não inimigode Getúlio, “o Estado rendeu as

1925 2013✝

Uma vida dedicada ao jornalismo,uma história guiada por princípiosAo longo de 60 anos de trabalho no ‘Estado’ e no ‘Jornal da Tarde’, manteve-se fiel ao ideal de liberdade que herdou de seu pai e seu avô

Cuba. Ruy (2º à esq.) durante reunião da SIP em Havana, quando castristas foram fuzilados

Cronologia

Ruy Mesquita

O pai e o tio forampresos e enviados aoexílio em Portugal.As famílias foram junto

Foi expulso do São Luíspor causa da oposiçãodo jornal ao generalFranco, da Espanha