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H2 Especial QUARTA-FEIRA, 22 DE MAIO DE 2013 O ESTADO DE S. PAULO

16/4/1925Ruy Mesquita nasce em SãoPaulo.

15/3/1927Morre seu avô, Julio Mesquita.Seu pai, Julio de Mesquita Fi-lho, e seu tio, Francisco Mes-quita, assumem a direção doEstado, ao lado de Nestor Pes-tana.

1928Aos 3 anos de idade, é acometi-do por paralisia infantil. Vaicom a família para Bolonha,Itália, onde é operado no Insti-tuto Rizzoli. Enquanto fica in-ternado por dois meses, seupai percorre o país fazendo re-portagens sobre o regime fas-cista.

1929Em março, a redação e a admi-nistração são transferidas paraa Rua Boa Vista, 32, com a ladei-ra Porto Geral. As oficinas pas-sam a operar na Rua Barão deDuprat, com novas rotativasespecialmente construídas.Crack na Bolsa de Nova Yorkcausa recessão mundial.

1930O Estado apoia a candidaturade Getúlio Vargas à presidên-cia, em oposição a Júlio Pres-tes, respaldado pelo presiden-te Washington Luís. Prestesganha as eleições, mais umavez marcadas por fraudes. Emoutubro estoura a Revoluçãode 30, que depõe WashingtonLuís e coloca Getúlio Vargasno poder. O jornal alcança a

tiragem de 100 mil exemplarese lança aos domingos um suple-mento em rotogravura, comgrande destaque para as ilustra-ções fotográficas.

AP-29/10/1956

José Maria Mayrink

Acordava às 4 horas da madruga-da, lia os jornais antes de tomaro café, ligava para dois ou trêscolaboradores, chegava à reda-ção ao meio-dia e meia, voltavadireto para casa depois do traba-lho. Se houve uma época emque Ruy Mesquita passava peloclube para tomar um uisqui-nho, era mais para conversarcom o irmão, Julio de MesquitaNeto,que morreu em 1996. Con-versavam sobre o Estado e o Jor-nal da Tarde, que eles dirigiamdesde 1969, quando morreu opai, Julio de Mesquita Filho.

“A minha vida é isso, sou qua-se um workaholic”, disse RuyMesquita numa entrevista pelaRádio Eldorado, resumindo a ro-tina que vinha refazendo, de se-gunda a sexta-feira, por quase60 anos. Os fins de semanaeram, para ele, um plantão semdescanso. Conferia a edição dodia, anotava e cobrava even-tuais falhas, telefonava para aredação nas tardes de sábados edomingos. “O que temos paraamanhã?”, perguntava invaria-velmente. Se discordava damanchete prevista, ditava suasinstruções, mas também aceita-va contra-argumentos.

Com a morte de Julio Neto,em 1996, aumentou a carga detrabalho. Assumiu a direção doEstado, com o nome no cabe-çalho da primeira página, bemembaixo do nome do avô, JulioMesquita, o patriarca, que diri-giu o jornal de 1891 a 1927. Quan-do era diretor do JT, costumavafazer editoriais. Deixou a tarefapara os editorialistas dos doisjornais, com os quais se reuniadiariamente, porque não tinhamais tempo de escrever.

A mesa de trabalho de Ruy eracoberta de pilhas de papéis, quesó ele era capaz de localizar. Liadezenas de artigos, conferia ostextos em pauta, anotava comuma caneta o que tinha a reco-mendar ou corrigir. “Se não en-tender, leve para o Marco Antô-nio Rocha traduzir”, dizia comum risinho de brincadeira, masfalando sério, porque quase nin-guém conseguia decifrar sua le-tra. Fazia observações precisase, se reclamava, geralmente ti-nha razão.

Sua sala, de janelas amplas pa-ra o Rio Tietê, tinha tambémcomputadores, a tela aberta nasinformações da Agência Estado,mas Ruy não era afeito às novi-dades da internet. “Eu sou com-pletamente incapaz de adquiriras tecnologias modernas, estoumuito velho para isso, mas rece-bo diariamente prints feitos es-pecialmente para mim sobre osassuntos que me interessam.”Queria saber o que a imprensa,especialmente a americana e aeuropeia, estava publicando.

“Eu sei que isso está meio fo-ra da moda”, reconhecia comsinceridade, mas não alterava arotina. “No fim de semana, pas-so o dia inteiro em casa lendolivros. Há muito tempo não leio

um romance. Procuro ler os li-vros que discutem os proble-mas políticos e econômicos daatualidade. Não entendo jorna-lismo a não ser assim.” Gostavade discutir sobre política e so-bre economia, matéria-primapreferencial do jornal de seussonhos.

Acreditava ser essa a sua fun-ção. “O jornal é a obra mais pere-cível que o homem faz: começa ese completa a cada 24 horas. En-tão, você tem de estar todo diaorientando, discutindoo que vo-cê acha que deve ser mais realça-do numa determinada edição,no dia seguinte fazendo a críticada edição que saiu, para podercumprirseu papeldamelhor ma-neira possível”, disse em entre-vista à revista Imprensa.

Foi uma lição que veio do ber-ço. Ruy Mesquita acompanhoua vida atribulada do jornal des-de menino. Tinha 7 anos de ida-de, quando o pai, Julio de Mes-quita Filho, e o irmão dele, Fran-

cisco Mesquita, foram presos eenviados ao exílio em Portugalporque o jornal apoiou a Revo-lução Constitucionalista de1932. A família foi junto. Aliás,as famílias. “Éramos duas famí-lias, pois eram dois irmãos (osMesquitas) casados com duasirmãs Vieira de Carvalho.” Fo-ram morar num chalé na Praiado Estoril, perto de Lisboa.

O pai aproveitou o exílio paralevar Ruy à Itália, onde passoudois meses em tratamento noInstituto Rizzoli, na cidade deBolonha. Nascido em 16 de abrilde 1925, ele tinha paralisia infan-til desde os 3 anos.

“Eu tinha um aparelho que pe-gava a perna inteira. Meu pai melevou para a Itália, porque ali ha-via o maior, mais moderno emais adiantado centro de orto-

pedia, e o médico mais renoma-do do mundo, dr. Putti. Fui ope-rado por esse médico, que mefez andar sem aparelhos o res-tante da vida.” Enquanto Ruy fi-cava dois meses internado nohospital em companhia da mãe,Marina Vieira de Carvalho Mes-quita, o pai percorria a Itália fa-zendo reportagens sobre o regi-me fascista de Mussolini.

Marina relatou numa cartabem-humorada ao marido, em2 de junho de 1933, como o filhose comportava na clínica: “Va-mos bem. O Ruy, firme nos seustratamentos. Sempre com umapaciência sem limites, ajudan-do o quanto pode a sua cura. Se-rá o cúmulo que Deus não re-compense tanto sacrifício daparte de um coitadinho de 8anos. Tem feito sucesso na gi-nástica por causa de seus já céle-bres olhos. Ontem havia lá trêsmoças encantadas com ele. Dis-se-me na volta que isso o aborre-ce, porque de repente ele gostade uma e o que será então dasoutras coitadas! O convenci-mento é um fato...”

Ruy guardou boas lembran-ças dessa primeira passagemforçada pela Europa.

“Foi um exílio até agradávelpara nós, meninos. Logo quechegamos a Portugal, fomos pa-ra o colégio. Eu estava começan-do o curso primário e Júlio, meuirmão, estava no terceiro ano.Fomos todos juntos – os pri-mos Luís, Juca e Cecília, e omeu outro irmão, o Carlão(Luís Carlos Mesquita). Tinhaum monte de exilados brasilei-ros lá. Ficamos todos amigos.”

Voltaram todos, menos dedois anos depois, quando Getú-lio Vargas acenou com promes-sas de liberalização e nomeouArmando de Salles Oliveira,cunhado de Julio de MesquitaFilho, interventor de São Paulo.Eleito em seguida governador,Armando Salles encarregou Ju-lio de Mesquita Filho de coorde-nar a criação da Universidadede São Paulo (USP), um orgu-

lho para a família. A trégua, noentanto, durou pouco.

Com o golpe e a instituiçãodo Estado Novo em 1937, Juliode Mesquita Filho voltou ao exí-lio. Depois de ser preso 17 ve-zes, foi embarcado para Lisboa,de onde se mudou para BuenosAires. Ruy e seus irmãos perma-neceram em São Paulo. “Papainão tinha recursos para nos le-var. Minha mãe o acompanhoue nos deixou na casa do tio Fran-cisco, que era como meu pai. Fo-mos tratados igualzinho a nos-sos primos. Estávamos estudan-do aqui, o Julio quase entrandona universidade.”

Ruy, que iniciara o primeiroano ginasial no Colégio São Luísem 1935, foi expulso e se transfe-riu para o Rio Branco em 1938.Motivo da expulsão: a insatisfa-ção dos padres jesuítas do SãoLuís com a família Mesquita, porcausa da oposição do Estado aogeneral Franco, quando tropasfranquistas atacaram o governorepublicano na Espanha.

Após o colegial, Ruy se matri-culou na Faculdade de Direitodo Largo de São Francisco. Estu-dou até o terceiro ano, mas nãoconcluiu o curso. Estudou Ciên-cias Sociais na Faculdade de Fi-losofia da USP, mas sua forma-ção foi mais a de um autodidata.“Eu fui educado primeiro na lei-tura de Tucídides, depois deFustel de Coulanges e, depois,de Alexis de Tocqueville”, disseRuy Mesquita, apontando os au-tores que fundamentalmentecontribuíram para o ideário atéhoje mantido, com as necessá-rias adaptações, pelo Estado.

Em 1944, participou comoator da peça Heffman, escrita edirigida por Alfredo Mesquita eencenada no Teatro Municipal.Ao seu lado, a escritora Lygia Fa-gundes Telles, colega no LargoSão Francisco. “Ele se revelouum ator muito esforçado e teveboa presença em cena”, relem-bra a autora, que fazia parte doGrupo de Teatro Experimental,dirigido por Alfredo Mesquita.

Com três atos, Heffman erauma comédia ligeira sobre umgrupo de jovens que, reunidosem uma casa, recebem a visitade um refugiado da guerra, quevai modificar sua rotina. Ruy vi-via Antonio Augusto, enquantoLygia interpretava Nair. Tam-bém estudou piano por 2 anos.

Em 1948, aos 23 anos de ida-de, foi trabalhar no jornal. Co-meçou pela Editoria Internacio-nal, então chamada de Seção doExterior, sob o comando do ita-liano Giannino Carta, seu mes-tre e amigo. Quando Gianninovoltou para a Europa, em 1956,Ruy assumiu a chefia da seção.Assumiu também a coluna Deum dia para outro, que assinouaté maio de 1961. Comentavanotícias internacionais.

“De Gaulle é um homem deopinião e calado”, escreveu naestreia, em 12 de julho de 1958,quando também falou da políti-ca externa da então União Sovié-tica. “A Rússia não deseja criardificuldades para o marechal Ti-to nem para seu governo.” So-bre os rumos da RevoluçãoCubana, escreveu já em 9 de ja-neiro de 1959: “Se os atuais líde-res revolucionários não estive-rem à altura da tarefa que se im-puseram, Cuba viverá, num fu-turo próximo, momentos aindamais dramáticos que o atual”.

Seis meses após a vitória dosguerrilheiros de Fidel Castro, foiconferirem Havana,ondejá esti-vera em 1956, os primeiros pas-sos do novo governo. Subiu aopalanquedas autoridades na pri-meiracomemoraçãodo26 deJu-lho. “Eu fui apresentado à multi-dãonaPlaza de laRevolución co-mo o jornalista que mais tinhadefendido a revolução de SierraMaestra. A revolução de SierraMaestra foi uma brincadeira quedeu certo, porque eram 21 ou 22malucos que desembarcaramnas costas de Cuba e ficaram lá.Não houve grandes combates,não houve tiroteio nem nada. O

Batista acabou de podre...”Quase 50 anos depois, quan-

do Fidel renunciou à reeleição,em fevereiro de 2008, Ruy Mes-quita traçou dele um perfil críti-co em que deixava clara sua de-cepção com o que ocorreu de-pois. Sua avaliação, depois deconfessar que havia acompa-nhado “a saga revolucionária deFidel Castro” com grande entu-siasmo: “O regime castrista,que já dura 49 anos, é a maiortragédia política da história mo-derna, como está sendo de-monstrado hoje, pois, 49 anosdepois, a economia cubana estápior do que no momento emque Castro assumiu o governo.É o que se pode chamar de hiber-nação econômica de um paísque durou quase 50 anos.”

O noticiário internacional

sempre mereceu especial aten-ção de Ruy Mesquita. Mesmoquando dirigia o Jornal da Tarde– um vespertino ágil e modernolançado sob sua responsabilida-de em janeiro de 1966 – ele moni-torava a antiga Seção do Exte-rior do Estado, cobrando falhase sugerindo temas.

“Quem é essa Sônia Cristinaque está escrevendo no Esta-do?”, perguntou, ao ler um arti-go sobre os 30 anos da Organiza-çãodoTratadodo AtlânticoNor-te (Otan) que não combinavacom a linha do jornal. Não gos-toudoartigo,masrecebeuareda-tora, quando ela bateu à sua por-ta para defender o texto. Mante-vesuaopiniãoerespeitouadiver-gência. Tanto que aconselhouSônia a continuar escrevendo.

Ruy Mesquita podia discor-dar, mas respeitava seus profis-sionais. Quando Gilles Lapouge,correspondente em Paris, avi-sou em 1964 que não escreveriapara um jornal que havia apoia-do o golpe militar, foi ele quem ofezmudar deideia. Garantiaque,se a Revolução de 31 de Março sedesviassedeseusobjetivos,oEs-tado retiraria o apoio – o que,de fato, acabaria acontecendo.

“Meu caro Ruy, seu telegramacomoveu-me e perturbou-meao mesmo tempo. Não me sur-preendi: já sabia que suas deci-sões são sempre tomadas combase nos mais nobres motivos”,respondeu Lapouge numa lon-ga carta, reproduzida na íntegra,em que revia sua posição. Conti-nuaram amigos. Divergiam emquestões importantes, mas nemporissoojornaldeixavadepubli-car oque Lapouge escrevia.Mes-mo que tivesse de discordar deleexplicitamente em editorial.

Ruy Mesquita não gostava deGetúlio Vargas e tinha razõespara isso. Depois de mandarprender e exilar os proprietá-rios do Estado, por causa da re-sistência deles à ditadura, o go-verno interveio no jornal e ocu-pou suas instalações durantemais de cinco anos – de marçode 1940 a dezembro de 1945.

A polícia do interventor Ade-mar de Barros alegou que osMesquitas estocavam metra-lhadoras para derrubar o gover-no. Mandado para Lisboa, deonde foi para Buenos Aires, Ju-lio de Mesquita Filho se arris-cou a voltar em 1943. Não tinhacomo sobreviver. Foi confina-do na fazenda da família emLouveira, onde ficou isoladoaté a queda de Getúlio.

Quando ocorreu o atentadoda Rua Tonelero contra CarlosLacerda e, em consequência de-le, osuicídio de Getúlio, em 1954,Ruy Mesquita estava dirigindotemporariamente a sucursal doEstado no Rio. Fez a coberturada crise que, como diria 50 anosdepois,foi “muito facciosa”,em-bora “não deliberadamente fac-ciosa”, porque a reportagem sedeixou levar “pela atmosferaque reinou naquela ocasião”.

Adversário, mas não inimigode Getúlio, “o Estado rendeu as

1925 2013✝

Uma vida dedicada ao jornalismo,uma história guiada por princípiosAo longo de 60 anos de trabalho no ‘Estado’ e no ‘Jornal da Tarde’, manteve-se fiel ao ideal de liberdade que herdou de seu pai e seu avô

Cuba. Ruy (2º à esq.) durante reunião da SIP em Havana, quando castristas foram fuzilados

Cronologia

Ruy Mesquita

O pai e o tio forampresos e enviados aoexílio em Portugal.As famílias foram junto

Foi expulso do São Luíspor causa da oposiçãodo jornal ao generalFranco, da Espanha