Sá-Carneiro e Pessoa - Dina Aparício

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    Mário de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa:

    - O Sujeito como Labirinto

    Dina Carvalho Aparício

    Resumo: Mário de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa demarcaram-se no contexto do

    Modernismo português e continuam a intrigar-nos pelo caráter labiríntico da sua

    demanda existencial. Embora contemporâneos, representantes dos arquétipos

    mitológicos de Ícaro e Dédalo no seu percurso, concretizam, na arte poética, a fugaque os poderá – ou não – auxiliar na crise da superação de si próprios.

    Palavras-chave: Modernismo; crise do sujeito; identidade; pluralidade; superação.

    I – O encontro prodigioso

    Fernando Pessoa conheceu Mário de Sá-Carneiro no início de 1912 e estaamizade, que se prolongou por três anos e meio, “viveram-na a maior parte do tempo

    na ausência, comunicando e comungando por cartas” (BRÉCHON, R., 1997: 171), visto

    que Pessoa vivia em Portugal e Sá-Carneiro passou uma boa parte deste tempo em

    Paris, a sua cidade-inspiração. Segundo David Mourão-Ferreira, a “alta e límpida

    amizade” que se estabeleceu entre ambos viria a constituir um dos “episódios mais

    comovedores da nossa história literária” (1992: 195), pois, além do simples encontro

    poético, deu-se um verdadeiro encontro de almas que se repercutiu na produçãoliterária de cada um deles, tal como no desenvolvimento de fortes laços afetivos que

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    só ocorrem quando se verifica uma comunhão pura de desejos, ambições e temores,

    baseada na compreensão e na aceitação do outro como igual. Referimo-nos a uma

    amizade fraternal, superior, que “iluminou toda a existência do que sobreviveu ao

    outro, e mesmo, para além da sua morte, todo o século” (BRÉCHON, R., 1997: 171). 

    A correspondência de Sá-Carneiro para Fernando Pessoa1 constitui um elemento

    chave, um documento humano, social e histórico que “redige largos parágrafos da

    história literária e congrega numerosas páginas sobre a arte e a cultura do princípio

    do século […]” (LOPES, T., R., 2004: vi-vii), ao mesmo tempo que “ilumina o percurso

    de dois destinos que, exaltados pelo génio próprio, foram atores principais dessa

    história” (id.,  viii), contribuindo para a desmitificação e valorização da vida, da

    personalidade e da obra de Sá-Carneiro - até há pouco tempo envoltas em

    especulações e efabulações -, assim como para uma compreensão mais profunda do

    Modernismo português e a forma como foi implementado, tal como para permitir o

    acesso a uma perspetiva mais íntima do próprio Pessoa. Apesar do “desastroso

    extravio” (id.,  iii) da correspondência de Pessoa para Sá-Carneiro, que podia

    constituir “o mais íntimo acompanhamento do processo de pluralização” (id.,  v), a

    sua unilateralidade revela-se, ainda assim, um “documento não prescindível à

    compreensão do eu multiplicado em outros e criador” (ibid ). Denotamos, em Mário de

    Sá-Carneiro, a tendência para reconhecer, no amigo, o mestre, atestada pela

    “existência de uma situação de quase discipulato […], não obstante a fraterna

    amizade” (MOURÃO-FERREIRA, D., 1992:195). Nestas cartas, cuja resposta o emissor

    esperava com ansiedade, deparamo-nos com um sujeito inseguro, inquieto, instável,

    frágil e ávido de uma palavra de incentivo, a quem Fernando Pessoa, dois anos mais

    velho, se devotou como uma figura tutelar, quase paternal, que lhe respondia de

    forma célere e amiga, sempre que o amigo lhe expunha os seus projetos e pedia

    conselhos (id ., 196).

    Embora, em 1912, Fernando Pessoa ainda não fosse conhecido no mundo das

    letras2, Mário de Sá-Carneiro, precoce no talento para a escrita, tinha já um percurso

    literário e editorial, iniciado aos nove anos, de que são exemplos as peças de teatro

    1 A primeira carta data de 16 de Outubro de 1912 e a última refere-se a 18 de Abril de 1916. Contudo, a última vezque Sá-Carneiro se dirigiu ao amigo parece ter sido num bilhete de despedida, datado de 26 de Abril (SÁ-CARNEIRO, M., 2004: Vols. I e II).2 Em carta de 2 de Dezembro de 1912, Mário de Sá-Carneiro escreve: “ Apenas lastimo que para o público vocêseja por enquanto apenas o «crítico F. Pessoa» e não o Artista” (2004: 18, I). Pessoa “não publicará nenhuma obra

    de criação em prosa antes de 1913, nem nenhum poema antes de 1914”, era conhecido pelos artigos que escreviapara a revista A Águia, publicada no Porto e não em Lisboa (BRÉCHON, R., 1997: 177).

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    que encenava nas suas brincadeiras, os poemas que começou a escrever aos doze

    anos, a publicação do jornal académico humorístico O Chinó  e a peça de teatro

     Amizade, escrita em parceria com o seu amigo e discípulo Thomas Cabreira Júnior

    que, a 9 de Janeiro de 1911, se suicida com uma bala, nas escadas do liceu. Contudo,

    este percurso precoce, ao invés de lhe proporcionar alguma autoconfiança, parece terdespertado nele uma consciência mais aguda das suas fragilidades e nem a vida de

    sonho que levava em Paris, para onde fora com a finalidade –  ou o pretexto - de

    estudar Direito na Sorbonne, financiado pelo pai, o satisfazia. Nas cartas que escreve

    a Pessoa, perpassam a solidão, a incerteza e os anseios que se refletem na sua

    produção literária. Numa carta datada de 16 de Novembro de 1912, escreve a Pessoa:

     Não tenho de forma alguma passado feliz nesta terra ideal. Tenho mesmo vivido

    ultimamente alguns dos dias piores da minha vida. Porquê? Indagará você. Por coisaalguma  –  é a minha resposta. Ou antes: por mil pequeninas coisas que somam um totalhorrível e desolador. Olho para trás, e os tempos a que eu chamei desventurados,afiguram-se-me hoje áureos, suaves e benéficos. Diante de mim, a estrada vai pouco a pouco estreitando-se, emaranhando-se, perdendo o arvoredo frondoso que a abrigava dosol e do vento. E eu cada vez mais me convenço de que não saberei resistir ao temporaldesfeito  –  à Vida, em suma, onde nunca terei um lugar (SÁ-CARNEIRO, M., 2004: I,12).

    Começamos aqui a perceber a dimensão da complexidade da personalidade de

    Sá-Carneiro e do papel que Pessoa assume na sua vida. Este excerto, de pendor

    diarístico e confessional, permite-nos vislumbrar uma personalidade

    permanentemente insatisfeita, que procura e não encontra, para quem Pessoa, mais

    do que um confidente, se torna “o seu mestre, quase o seu deus” (BRÉCHON, R.,

    1997: 178). Não obstante o desaparecimento das cartas de Fernando Pessoa para Sá-

    Carneiro, não devemos permitir que o desconhecimento da bilateralidade deste meio

    de comunicação nos conduza à assunção que, nesta relação de amizade, a figura

    preponderante tenha sido Fernando Pessoa, pois foi, sobretudo, através das cartas de

    Sá-Carneiro que as novidades da Europa chegaram a Lisboa, à vida pacata de Pessoa

    que, embora lesse e traduzisse muito, não poderia ter uma noção tão vívida do que se

    passava nos “boulevards”: o cubismo, o futurismo, os ballets, o dadaísmo, o “espírito

    novo” e o surrealismo (id ., 178). Segundo R. Bréchon, é Sá-Carneiro quem

    proporciona a Fernando Pessoa “uma consciência cosmopolita europeia” e “na busca

    febril do segredo do seu ser, oferecer-lhe-á o modelo do poeta em que ele próprio

    gostaria de se tornar” (id ., 179). Também como consequência desta proximidade,

    Pessoa começa a ser conhecido em França e, em Portugal, movimenta-se no meio

    cultural, iniciando o seu afastamento do movimento saudosista para se dedicar à

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    vanguarda com que lhe acena Sá-Carneiro, “mais esteta” e “mais atento à moda”

    (ibid .).

    Cada um destes autores deve ser perspetivado à luz do contexto histórico,

    social e cultural imediatamente anterior e posterior à implantação da República em

    Portugal. À crise ideológica finissecular, junta-se a crise de todos os valores sociais

    contemporâneos a uma mundividência objetiva e positivista, em que o homem se cria

    pleno de certezas. O materialismo, o artificialismo, a hipocrisia perdem o brilho,

    revelando um sujeito fragilizado, perdido da sua identidade, que não tem alternativa

    senão despertar para um processo de procura a que “preside todo um conjunto de

    procedimentos que revelam um sujeito marcado pelos sentimentos de dor, angústia,

    intranquilidade, sofrimento e tristeza” (VILA MAIOR, D., 2003: 259). O decadentismo e

    o simbolismo surgem, precisamente, como resposta a esta necessidade ontológica do

    homem moderno que, em conflito com a realidade, opta por dela se desviar,

    contornando-a, de forma a compreendê-la através de si próprio, não objetivamente, à

    semelhança do que acontecera com as tendências naturalistas e parnasianas, mas

    pela transcensão do imanente como meio de atingir a essência primordial do ser. Ao

    focalizar-se no seu interior, o sujeito confronta-se com a polifonia da sua tensão

    interna, o que o conduz à consciência da sua pluralidade, “componente que acabaria

    inevitavelmente por fazer acentuar nesse sujeito a sensação de incerteza e

    indeterminação” (ibid.,  266). O saudosismo, em Portugal, surge, igualmente, como

    reação à “cegueira triunfalista” que ameaçava fazer ruir o (re)encontro do homem

    com a vivência plena e harmoniosa da existência, mas revela-se insuficiente perante

    um sujeito que se questiona permanentemente. A busca do eu alarga-se “a toda a

    humanidade” (ibid., 269)  e, tanto Sá-Carneiro como Pessoa, estão conscientes da

    complexidade e superioridade da sua geração, caraterizada pela angústia existencial,

    e que somente a poesia, a literatura, a arte da palavra - a manifestação mais pura esublime do espírito humano –  poderia conduzi-los a um nível supremo de elevação

    ontológica. Numa longa carta datada de 2 de Dezembro de 1912, recordando o

    sentimentalismo amoroso da geração neo-romântica que os antecedeu, escreve Sá-

    Carneiro: “A nossa geração é mais complicada, creio, e mais infeliz. A iluminar as

    suas complicações não existe mesmo uma boca de mulher. Porque somos uma geração

    superior” (2004: 17, I). 

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    Deste desejo de descoberta e conquista do eu, Mário de Sá-Carneiro e Fernando

    Pessoa fazem nascer a Geração de Orpheu, a geração que ansiou projetar-se num voo

    que vencesse o tempo e planasse acima de tudo o que não constituísse novidade,

    pois, a rutura com o passado, mais do que uma moda estética constitui, como

    defende Adolfo Casais Monteiro, a ainda embrionária “valorização do humano [que]tende para uma solução da crise do homem e da sociedade” (1985: 25). Ambos

    “tinham a consciência da grandeza que é ser poeta […] e o estarem à mesma altura,

    bem acima dos outros, aproximou-os numa amizade feita de compreensão, carinho e

    admiração mútua” (BERARDINELLI, C., 1985: 182). Álvaro de Campos reconhece o

    valor criativo desta amizade ao afirmar:

    O Sensacionismo começou com a amizade entre Fernando Pessoa e Mário de Sá-

    Carneiro. Será, provavelmente, difícil separar o papel desempenhado por cada um delesna origem do movimento e, decerto, inteiramente inútil determiná-lo. O facto é que, entreos dois, o iniciaram (PESSOA, F., 2007: 187).

    Esta citação elucida-nos quanto ao caráter de uma amizade que se revelou

    frutuosa, não só humanamente, mas também na definição da especificidade do

    Modernismo português pela concretização do Sensacionismo como forma de arte.

    Teresa Rita Lopes, citada por Robert Bréchon, refere que se “Pessoa ensinou Sá-

    Carneiro a pensar, teremos de acrescentar que Sá-Carneiro, por sua vez, ensinou

    Pessoa a sentir” (LOPES, T. R., apud   BRÉCHON, R., 1997: 178), sugerindo-nos oenriquecimento naturalmente surgido da simbiose de dois génios que, em vez de se

    antagonizarem, se uniram em prol de uma arte maior, reconhecendo-se como

    diferentes, mas assumindo-se como iguais na busca de um ideal comum. As diferenças

    uniram-nos, em vez de os separarem. “Pessoa é todo inteligência, Sá-Carneiro é todo

    sensibilidade. Um é incapaz de sentir presença do mundo […] na sua carne; o outro é

    incapaz de se compreender e de compreender o mundo” (id., 178).

    Sá-Carneiro foi o poeta da emoção, do sonho, da dispersão, da ascensão, da

    derrota e da queda. Pessoa, o poeta do sentimento intelectualizado ou do não sentir,

    o sujeito que se apaga na sua unidade, mas que floresce na pluralidade. Por essas

    diferenças e pela relação que se estabelece entre ambos, David Mourão-Ferreira,

    sugerindo “uma simples interpretação pessoal, uma entre muitas já realizadas e

    muitas mais ainda possíveis” (MOURÃO-FERREIRA, D., 1992: 198), faz deste encontro

    prodigioso uma leitura sublime, à luz dos arquétipos mitológicos de Ícaro e Dédalo,

    em que a “mítica viagem” (id., 196) de fuga do labirinto através do voo, representa afuga do sujeito poético pelo poder libertador da poesia e o processo de conceção e

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    construção das asas corresponde à experimentação de uma nova linguagem poética

    que conflua no (re)encontro do sujeito, libertando-o de si, das suas dúvidas e

    angústias existenciais, retornando-o à harmonia original. Sá-Carneiro, na sua

    insegurança de aprendiz, procurava em Pessoa, o artífice da palavra, o incentivo que

    lhe faltava para empreender a sua própria viagem. As orientações de Pessoa “eram asasas novas que ensaiava sobre os ombros; só a opinião do amigo distante […] poderia

    decidi-lo ao voo” (ibid ). Pessoa, o Dédalo da poesia, inventor e esotérico, “patrono de

    ambíguas regiões em que a arte confina com a magia, com a alquimia” (ibid ), o

    homem que, criativamente, enceta a possibilidade de existência virtual no

    inconsciente, incarnada pelo desdobramento heteronímico do eu, e que procura o

    Absoluto no transcendente.

    A queda de Ícaro deu-se pela imprudência de se deixar guiar, não pela razão,

    mas pelo deslumbramento de voar mais alto. Aproximando-se demasiado do Sol – 

    talvez por ambicionar tocá-lo -, derreteu-se-lhe a cera das asas e Ícaro despenhou-se

    das alturas do seu sonho, perdendo a vida no mar. Sá-Carneiro sucumbiu no desejo

    fracassado de atingir o “Oiro”, a plenitude, o inalcançável. O seu suicídio, segundo

    Eduardo Lourenço, foi o resultado de uma “poética do excesso, mesmo na míngua”

    (1990: 10), do exagero proveniente da modernidade, acrescentando que Sá-Carneiro

    “não se matou contra ninguém, nem contra a vida, nem mesmo contra si […], mas por

    si, pelo seu reino voluntariamente paranóico de anjo caído de nenhum céu” (ibid ) e,

    paradoxalmente, conseguiu atingir com a morte o que foi impossível enquanto vivo – a

    imortalidade-, como constata Fernando Pessoa, num texto de homenagem póstuma ao

    amigo3:

     Morre jovem o que os Deuses amam, é um preceito da sabedoria antiga. E por certo aimaginação, que figura novos mundos, e a arte, que em obra os finge, são os sinaisnotáveis desse amor divino. Não concedem os Deuses esses dons para que sejamos

    felizes, senão para que sejamos seus pares (PESSOA, F., 2006: 204).

    “Pessoa-Dédalo”, após a trágica experiência de “Sá-Carneiro-Ícaro”, também

    experimentou o sentimento agudo da “Queda”, embora esta se tenha traduzido numa

    relação de irrealidade com a vida e o mundo e no seu isolamento interior, aprisionado

    num novo labirinto – o da sua pluralidade (LOURENÇO, E., 1990: 7). Jorge de Sena,

    citado por Eduardo Lourenço, complementa esta convicção, defendendo que “dos

    dois, o mais suicidário foi – é – o que não se matou” (SENA, J., apud  ibid ), permitindo-

    nos completar a leitura mitológica de David Mourão-Ferreira, em que refere que, após3 Artigo intitulado «Mário de Sá-Carneiro (1890-1916)”, escrito em 1924. 

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    a tragédia de Ícaro, Dédalo, que não pode voltar a Atenas, recolhe-se, fatigado no

    litoral da Sicília, o que significa que o exílio persiste, não no labirinto, mas noutra

    terra, numa ilha, em cansaço e solidão (MOURÃO-FERREIRA, D., 1992: 200). É nesta

    solidão, nesta insularidade interior, que, depois do desaparecimento de Sá-Carneiro,

    Pessoa sobrevive num “limbo em que se manifestam traços significativos, relâmpagosde impressões, uma antecipação de estados que a experiência empírica ainda não

    incorporou a si” (LUCAS, F., 1991: 223), como se o colorido que a amizade de Sá-

    Carneiro fosse o elo mais forte que – ainda – o ligava ao mundo concreto: 

     Nunca supus que isto que chamam morte / Tivesse qualquer espécie de sentido… […]//Como éramos só um, falando! Nós / Éramos como um diálogo numa alma. / Não sei sedormes (…) calma / Sei que, falho de ti, estou um a sós. // […] // Ah, meu maior amigo,nunca mais / Na paisagem sepulta desta vida / Encontrarei uma alma tão querida / Àscoisas que em meu ser são as reais. // Não mais, não mais, e desde que saíste / desta

     prisão fechada que é o mundo, / Meu coração é incerto e infecundo / E o que sou é umsonho que está triste […] (PESSOA, F., 2008: 321-322).

    Propomo-nos, então, analisar, mais detalhadamente, as principais

    especificidades da obra poética de cada um destes autores, de forma a clarificarmos

    as variações que, afastando-os um do outro como criadores, os aproxima no ideal de

    criação e renovação em que assentaram o movimento modernista e a Geração de

    Orpheu. 

    Integrados num contexto de crise em que o sujeito é o seu próprio labirinto, aprodução estético-literária de Sá-Carneiro e Pessoa tem como objetivo “uma sensação

    específica de liberdade, decorrente da separação da banalidade da vida” (VILA

    MAIOR, D., 2003: 436), que, por sua vez, ocorre como um “processo de

    despersonalização” conducente à “personalização” (ibid). A dispersão de um e a

    fragmentação do outro correspondem, respetivamente, à reação do sujeito que se

    sente agrilhoado pela condição labiríntica do seu ser. A arte poética constitui, nesta

    abordagem, a arte da fuga.

    II – A ascensão e a queda na busca pela identidade

    A vida e a obra de Mário de Sá-Carneiro permaneceram, durante cerca de meio

    século, associada à artificialidade e à teatralidade cristalizadas pelo seu suicídio

    anunciado pela “representação estético-literária do derrotismo” (VILA MAIOR, D.,

    2003: 266) patente na sua produção literária, inicialmente, de forma subtil, e,

    posteriormente, com um pendor mais abrupto, quase invasivo pela carga denegativismo, dor e desolação que dela emana. Personalidade e existência rodeadas

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    por “uma aura excecional”, a sua exuberância –  pessoal e literária -, a sua

    “superpersonalidade”, contrasta com a “não personalidade” de Pessoa (BRÉCHON, R.,

    1997: 174). Revelando uma “extraordinariamente complexa e instável”  relação

    consigo mesmo, evidencia, em simultâneo, tendências narcisistas e baixa autoestima

    (id.,  176), testemunhadas por uma poética original, mas caraterizada pela buscadesesperada de um eu perdido em si próprio. Como afirma Cleonice Berardinelli, Sá-

    Carneiro “preconizava a arte pela arte, mas, ao mesmo tempo, a descida ao próprio

    poço, a busca ansiosa do «eu» e a fixação da agitada idade moderna” (1985:181).

    Tomado da “doença do Novo”, o poeta combina a tradição decadentista e simbolista

    com as tendências de vanguarda, esteticamente cosmopolitas, procurando nesse

    encontro a renovação artística, o “aprofundamento intuitivo de autognose” ensaiado

    pelo Decadentismo e a aproximação ao sublime através da “magia da decifraçãoórfica do mundo”, defendidas pelo Simbolismo (PEREIRA, J. C. S., 1990: 170). 

    A sua poesia “não se deixa apreender fora da relacionação com a literatura

    finissecular, nem à margem das assimilações e rejeições que intertextualmente essa

    literatura lhe suscita”, exercendo-se esta receção ativa do finissecularismo ao longo

    de toda a sua trajetória lírica (id .,169). Simultaneamente, Sá-Carneiro oferece ao

    nosso panorama literário uma poesia dinâmica e europeizada, mais “liberta de

    estratagemas provincianos de notoriedade”, alterando no esteticismo a “proscrição

    do moralismo, do didatismo, da militância cívica, […] a subordinação da natureza e

    vida à arte, e assim como o lúcido labor, em regime de fingimento, no processo de

    criação poética” (id., 170). Deparamo-nos, por conseguinte, com um sujeito autêntico

    e polifónico em cuja obra é claramente discernível o diálogo com autores como

    Cesário Verde, António Nobre, Camilo Pessanha, Mallarmé, Eugénio de Castro e

    Fernando Pessoa (LOURENÇO, E., 1990: 10), mas que, reconhecendo-se como

    ausência, eleva a sua voz e se demarca na “sua constante preocupação em seconstruir” (VILA MAIOR, D., 2003: 266). Consequentemente, assistimos ao apelo, à

    luta de um eu aprisionado no seu desejo de totalidade que, em conflito com o real, se

    evade num mundo disperso e vago que surge como alternativa à dor da sua

    indefinição. Apesar de podermos delimitar duas fases na obra de Sá-Carneiro – a da

    ascensão, ou do narcisismo, e a da queda, ou desprezo -, Cleonice Berardinelli

    defende que não se verifica um progresso e que a obra de Sá-Carneiro, desde o

    primeiro poema, “nasce madura como Minerva”, convicção assente no facto de severificar nela uma unidade essencial, independentemente do surgimento de novas

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    formas e temas, da mudança de tom, da intensificação da dramaticidade (1985: 185).

    Esta unidade essencial fundamenta-se nos temas constantes na obra de Sá-Carneiro: -

    o anseio de fuga, a certeza de ser grande, a busca ideal de beleza, a solidão e a

    herança simbolista manifestada pela recorrente insistência em vocábulos como

    “oiro”, “cristal”, “esfinge”, “auréola”, “labirinto”, quimera”, “bruma” (ibid ), que,num “tom de confidência autobiográfica”, o aproximam de Nobre ( id ., 190) e nos

    remetem para as correspondências baudelaireanas, evocativas da realidade inefável e

    transcendente, o “Oiro”, que Sá-Carneiro buscava.

    Neste sentido, a sua obra pode ser lida como o testemunho de uma demanda

    empreendida por um sujeito em permanente inquietação espiritual que cultiva uma

    sensibilidade requintadamente agónica, aspirando ao isolamento aristocrático na sua

    “torre de Marfim”, mas, em contrapartida, sofrendo as consequências da solidão

    (auto)imposta pelo sentimento de inadaptação. Verifica-se um processo de dissolução

    da realidade, de desaparecimento do sujeito enquanto ser social e concreto, tal como

    uma reação antiobjetivista, traduzida pela “desvalorização do universo físico e da

    imanência fenoménica a que, em favor do universo psíquico e da transcendência

    espiritual, procederam o Decadentismo e o Simbolismo finisseculares” (id., 172). Esta

    tendência, que corporiza a primeira poética sensacionista de Sá-Carneiro e Pessoa

    Ortónimo4, revela-se “marcada por um processo de contaminação neo-romântica,

    denunciada pelas sincréticas senhas de «mistério», «sonho», «vago», …” (LOPES, T.

    R., apud  id ., 173). Neste estádio, não nos referimos ainda ao sensacionismo de Álvaro

    de Campos, mas ao “sensacionismo do incorpóreo” (ibid ), da captação da beleza por

    uma sensibilidade desperta para o inefável. Acima de tudo, a originalidade da escrita

    de Sá-Carneiro afirma-se através de uma polifonia de “elementos românticos,

    simbolistas e vanguardistas, muito violentamente díspares” que nela encontrou “um

    improvável mas inconfundível equilíbrio” (LOPES, T. R., 2004: 10).  Referimo-nos auma arte da “ampliação”, em que o sujeito procura tornar o seu objeto superior a si

    próprio”, pois “busca nele uma qualquer espécie de além -ele” (LOPES, T. R., 1971:

    19).

    A obra Dispersão, composta por doze poemas, corresponde à fase ascensional

    de Sá-Carneiro, e concretiza, poeticamente, “pela via decadente e simbolista” (VILA

    MAIOR, D., 2000: 231), a expressão estético-literária de um sujeito que se busca na

    4 Álvaro de Campos e Almada Negreiros afastam-se desta abordagem sensacionista ao procurarem “sentir tudo detodas as maneiras”. 

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    subjetividade, centrando-se em dualidades temáticas antagónicas, reveladoras da sua

    constante busca do ideal - ascensão e queda, interior e exterior; alma e corpo;

    multiplicidade e unidade; vida e morte; ideal e real (id., 230). O poema “Partida”,

    profundamente significativo, não só pelo seu conteúdo, mas pelo próprio título,

    sugere o dinamismo essencial à busca. O eu, consciente da efemeridade da vida,sente-se atraído pelo apelo do longe, do desconhecido de que faz parte (“Afronta-me

    um desejo de fugir / Ao mistério que é meu e me seduz. / Mas logo me trunfo. A sua

    luz / Não há muitos que a sabem refletir.” –  SÁ-CARNEIRO, M., 2010: 15),

    reconhecendo a necessidade de “saltar na bruma” para buscar a beleza, num ímpeto

    vertiginoso de subir, como Ícaro, “além dos céus / Que as nossas almas acumularam”

    (ibid ). Na partida destemida contra “a montanha”, o estado material   e inferior,

    cingido “de quimera e d’irreal” (ibid ), o sujeito evoca o sensacionismo (“E numaextrema-unção d’alma ampliada” – id ., 16) como forma de empreender a viagem em

    direção a “outros sentidos, outras vidas” (ibid ), com uma atitude confiante no seu

    poder ilimitado e criativo (“Alastro, venço, chego e ultrapasso; / Sou labirinto, sou

    licorne e acanto” –  ibid ), numa antecipada fusão com o Absoluto que anseia (“Sei a

    Distância, compreendo o Ar; / Sou chuva de ouro e sou espasmo de luz; Sou taça de

    cristal lançada ao mar, / Diadema e timbre, elmo real e cruz… - ibid ). Decidido,

    avança rumo ao triunfo, deixando, no entanto, pressentir o drama de um sujeito quesó se realizará na unidade do Absoluto (“Unicamente custa muito caro: / A tristeza de

    nunca sermos dois…” - id., 17), como o anjo caído que lamenta a queda e o

    afastamento da harmonia genesíaca (“Vêm-me saudades de ter sido Deus… - ibid ). Em

    “Escavação” e “Inter-Sonho”, o inicial movimento ascendente, efusivo e triunfante a

    raiar a loucura, é substituído por uma busca em sentido descendente, em que o eu,

    “Numa ânsia de ter alguma cousa” (id., 18), se centra em si próprio, no seu interior,

    onde nada encontra. Decide-se, então, a criar (“Brando a espada: sou luz harmoniosa

    / E chama genial que tudo ousa / Unicamente à força de sonhar… - ibid ), mas a

    consciência das suas limitações humanas conduzem-no a um mórbido desalento

    derrotista, à antevisão da queda antes da conquista (“Mas a vitória fulva esvai-se

    logo… / E cinzas, cinzas só, em vez do fogo… / Onde existo que não existo em mim? –  

    ibid ), suspendendo-se voluptuosamente numa imagética da artificialidade e da

    aparência que pretende superar (“Um cemitério falso sem ossadas, / Noites d’amor

    sem bocas esmagadas - / Tudo outro espasmo que princípio ou fim… - ibid ). O apelo

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    do Absoluto manifesta-se-lhe em estado de vigília e enquanto dorme5. O sono é o

    refúgio da alma que, liberta, procura (re)encontrar as “Reminiscências de Aonde” que

    perturbam o sujeito “em nostalgia” (id.,  19), o que nos remete para uma analogia

    com o saudosismo de Pascoaes, em que a criação e a materialidade foram erro divino,

    traduzindo a saudade o eco da nostalgia da plenitude divina, pressentida pela almahumana nesse desejo de regresso ao incorpóreo. No sonho, revela-se a chave que

    poderá projetar o sujeito para o Infinito: o sensacionismo interseccionista (“Pressinto

    um grande intervalo, / Deliro todas as cores, / Vivo em roxo e morro em som…” – 

    ibid ). Este entrecruzar de planos, cores, matérias, sentimentos e sensações

    intensifica-se em “Álcool”, expressando a desorientação do eu, a sua dispersão de

    pendor decadentista (“[…] O que me ardeu, / Foi álcool mais raro e penetrante: / É

    só de mim que eu ando delirante - / Manhã tão forte que me anoiteceu.” – id ., 21).Atentemos no vocabulário que, até este ponto, indicia o desfecho trágico - “esvai-

    se”, “cinzas”, “fogo”, “cemitério”, “ossadas”, “esmagadas”, “espasmo”, “ardeu”,

    “anoiteceu” –  intensificado pelo desejo de dormir expresso em “Vontade de Dormir”

    (“Fios d’ouro puxam por mim / A soerguer-me na poeira […] // - Ai que saudades da

    morte… // Quero dormir… ancorar… // Arranquem-me esta grandeza! / - Pra que me

    sonha a beleza, / Se a não posso transmigrar?...” –  id., 22), em que a morte

    representa o retorno à tão ansiada origem.

    Deter-nos-emos em “Dispersão”, por ser um poema dialógico, emblemático da

    busca e dispersão do sujeito distintivas em Sá-Carneiro, em que o eu revela a causa

    da sua dispersão (“Perdi-me dentro de mim / Porque eu era labirinto” –  id.,  23) e

    onde assistimos ao entrecruzamento de vozes poéticas como Cesário, pelo

    deambulismo interior (“Passei pela minha vida / Um astro doido a sonhar” 6; Nobre,

    pelo saudosismo (“Para mim é sempre ontem” – ibid) e pelo autocompadecimento (“E

    tenho pena de mim, / Pobre menino ideal…” –  id., 25); Pessanha, pelodesprendimento decadentista (“Álcool dum sono outonal / Me penetrou vagamente” – 

    ibid ); Pessoa, pelo desejo de evasão num passado imaginado (“As minhas grandes

    saudades / São do que nunca enlacei.” –  id.,  25). Em “Estátua Falsa”, torna-se

    evidente a postura derrotista do sujeito, que, num tom de desilusão, se desmaracara

    5 Como se verifica nos poemas “Escavação” e “Inter-Sonho”. 6  Ousamos considerar a existência de um “deambulismo interior”, no sentido em que o sujeito vagueia pelo seupróprio interior, descrevendo-nos a as suas memórias  –  reais ou imaginárias -, adotando o tom entediado edescritivo de Cesário, assim como os “apartes”, o que confere, ao poema, uma certa teatralidade, também ela

    uma caraterística de Cesário amplificada em Sá-Carneiro.

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    e desqualifica, depois de ter construído de si uma imagem de predestinada

    superioridade. Num momento de lucidez, parece tomar consciência da

    inatingibilidade do seu Ideal (“Só de ouro falso os meus olhos se douram” – id, 27) e,

    de súbito, este sujeito disperso - mas, anteriormente, deslumbrado pela possibilidade

    de realizar o seu sonho dourado – foge da luz e esconde-se na sombra (“Gomos de luzem treva se misturam” – ibid ), refugia-se numa apatia que o protege da inquietação

    que o mistério outrora lhe provocara (“Já não estremeço em face do segredo” – ibid ),

    perde o medo da morte (“A vida corre sobre mim em guerra,  / E nem sequer um

    arrepio de medo!” – ibid ) e afirma a sua loucura, a sua insignificância (“Sereia louca

    que deixou o mar;/ Sou templo prestes a ruir sem deus, / Estátua falsa ainda erguida

    ao ar…” – ibid ).

    A voz poética do sujeito torna-se mais desalentada, quanto mais se

    consciencializa de tudo o que ambicionou, mas não alcançou, tal como o exprime no

    poema “Quási”: “Um pouco mais de sol – eu era brasa, / Um pouco mais de azul – eu

    era além. / Para atingir, faltou-me um golpe d’asa… / se ao menos eu permanecesse

    aquém…//[…]// Num ímpeto difuso de quebranto, / Tudo encetei e nada possuí…”

    (id ., 28-29). Parece-nos significativo o verso “se ao menos eu permanecesse aquém”,

    pois sugere que o sujeito desconhece o seu paradeiro, não está “além” – porque não

    conseguiu lá chegar -, mas também não está “aquém”, lugar que nunca lhe suscitou

    sentimentos de pertença. Que paradeiro será o seu? Suspenso, perdido, disperso entre

    a ascensão e a queda? Provavelmente, num limbo que justifica o seu isolamento, a

    estranheza (“Não sou amigo de ninguém […]// - Serei um emigrado doutro mundo /

    Que nem na minha dor posso encontrar-me?...” – id ., 30), a situação de marginalidade

    afetiva e social descrita em “Como Eu Não Possuo”. Em “Além-Tédio”, poema que

    apresenta semelhanças ideológicas com a fase abúlica de Álvaro de Campos, o

    sujeito, já autodesmistificado, reduzido a uma existência de desencanto, descreve umsentimento transcendente ao próprio tédio (“Nada me expira já, nada me vive - /

    Nem a tristeza nem as horas belas, […] / Como eu quisera, enfim d’alma esquecida, /

    Dormir em paz num leito d’hospital…” – id ., 32). Refere-se à inutilidade do sonho, da

    partida e da busca que, em vez de culminarem no brilho dourado do Ideal, o

    conduziram à ruína das quimeras coloridas que tecera, acreditando na sua genialidade

    predestinada para uma existência superior. O eu deixa-se, assim, caminhar para o

    aniquilamento, para a escuridão (“Eu próprio me traguei na profundura, / Me sequeitodo, endureci de tédio.” –  ibid ), restando-lhe apenas a alegria enigmática do

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    escoamento do tempo e consequente aproximação da morte (“[…] de tão iguais e tão

    vazios, / Os instantes me esvoam dia a dia / Cada vez mais velozes, mais esguios…” – 

    ibid ). Em “A Queda”, o último poema desta obra, o sujeito assume-se “rei de toda

    esta incoerência” (id ., 37) e, numa teatralização poética, refere-se ao seu

    autoesmagamento, à sua aniquilação, como se encontrasse um certo prazer mórbido esádico na possibilidade de ser ele próprio a concretizar a sua “dispersão” final:

     Não me pude vencer, mas posso-me esmagar, / - Vencer às vezes é o mesmo que tombar -/ E como inda sou luz, num grande retrocesso, / Em raivas ideais, ascendo até ao fim: /Olho do alto o gelo, ao gelo me arremesso… / …………………………………..   /Tombei… / E fico só esmagado sobre mim!... (ibid )

    Percebemos, com este excerto, que a luta do sujeito não foi uma luta contra o

    mundo, com os outros, mas consigo próprio. Com a força que lhe resta, a luz sombria

    da queda, ascende uma última vez, não para tocar o Infinito, mas para se esmagar asi e aos seus ideais.

    Da obra Indícios de Oiro, conjunto de poemas de tom mais lúgubre, intimista,

    de desencanto, de reconhecimento do fracasso, interessa-nos aflorar algumas

    temáticas não tão evidentes em Dipersão, mas igualmente fundamentais para uma

    perspetiva global da poética de Sá-Carneiro. Em primeiro lugar, destacamos aquilo a

    que José Carlos Seabra Pereira designa por “reconversão da auréola pós-romântica de

    sagração maldita” (1990:174), em que o sujeito poético magnifica “o acúmulo de

    ostracismo e desgraça, ou de misantropia e amargura” (ibid ), como se pode perceber

    nos versos de “Taciturno”, poema de influência estética simbolista e decadentista:

    “Há oiro marchetado em mim, a pedras raras, / Oiro sinistro em sons de bronzes

    medievais - / Jóia profunda a minha alma a luzes caras, / Cibório triangular de ritos

    infernais” (SÁ-CARNEIRO, M., 2010: 70). O eu poético maldito, perseguido pelo

    destino, percorre, em desespero e solidão, a sala interior da sua “torre de Marfim”, à

    espera da morte libertadora. Enquanto não chega a hora, revolta-se contra si,

    desdenhosamente, grita a sua loucura e destrói a imagética fulgurosa de que se

    rodeou numa ambicionada grandeza. “A última ilusão foi partir os espelhos - / E nas

    salas ducais, os frisos de esculturas / Desfizeram-se em pó… / Todas as bordaduras /

    Caíram de repente aos reposteiros velhos”7  (id., 72) –  o que restava da imagem

    construída, desfaz-se. Tudo se transforma em pó e o brilho do passado desvaneceu-se

    na ruína que progride e tudo invade. Nada é o que era. Nada parece o que parecia.

    Então, recolhe-se em si e, em “Elegia”, despede-se do que foi, dos anseios que o7 Poema “O Resgate” 

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    animaram, que o levaram a acreditar que era um príncipe quando não passava de um

    clown, dos boulevards a que nunca pertenceu (“Meus boulevards de Europa e beijos /

    Onde fui só um espetador…” – id ., 81), admitindo ter teatralizado – intencionalmente

    - uma existência que se revelara pobre demais para um espírito como o dele (“Eu fui

    alguém que se enganou / E achou mais belo ter errado… / Mantenho o tronomascarado / Onde me sagrei Pierrot” – ibid ).

    Nos Últimos Poemas, publicados postumamente por Fernando Pessoa, as

    temáticas mantêm-se, confirmando as palavras de Cleonice Berardinelli ao referir que

    a poesia de Sá-Carneiro “nasceu madura como Minerva”  (1985: 185). No entanto,

    pretendemos destacar “Aquele Outro”, um poema em que o sujeito se detém na

    figura do “duplo”, aquela que aparecerá tantas vezes projetada e ampliada nas suas

    narrativas8. “Aquele Outro” é o outro de si, a desconstrução de si próprio em que,

    com desdém e sarcasmo, revela a distorção da autoimagem construída na fase da

    ascensão:

    O dúbio mascarado  –   o mentiroso / Afinal, que passou na vida incógnito. / O rei-lua postiço, o falso atónito –  / Bem no fundo, o cobarde rigoroso. // […] // O sem nervos nemânsia –  o papa-açorda, / (Seu coração talvez movido a corda…) / Apesar de seus berros aoIdeal. // O raimoso, o corrido, o desleal - / O balofo arrotando Império astral: / O magosem condão –  o esfinge gorda… (SÁ-CARNEIRO, M., 2010: 121)

    Carnavalização de si próprio reveladora do ceticismo sem retorno que,inexoravelmente, o conduz à queda – a morte – que também desmistifica, através de

    um último desafio condicente com a atitude modernista de provocação:

     –  Quando eu morrer batam em latas, / Rompam aos berros e aos pinotes - / Façam estalarno ar chicotes, / Chamem palhaços e acrobatas. // Que o meu caixão vá sobre um burro /Ajaezado à andaluza: / A um morto nada se recusa, / E eu quero por força ir de burro…(id., 122)

    Eduardo Lourenço, ao contrário do que se verifica em muitos autores,

    desdramatiza o suicídio de Sá-Carneiro ao interpretá-lo como um ato poético,afirmando que não constitui “o «fim» de  herói vencido, de amante da Morte como

    substância (ou insubstância) universal das coisas” (1990: 8), mas, “literalmente uma

    explosão, e o ritual da sua morte não se vincula já ao Simbolismo nem ao Romantismo

    sua fonte, mas poética vital e poética […] do Futurismo” (ibid ). E, certamente, a arte

    poética como arte de fuga também consta entre os pressupostos do Futurismo. Com

    base nesta leitura, podemos até afirmar que Mário de Sá-Carneiro se revelou

    8  A produção narrativa de Sá-Carneiro pode ser vista como a continuidade do seu discurso lírico: os temasrepetem-se como que teatralizados, como se a vida fosse a projeção da arte e não o contrário.

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    Futurista, não com “Manucure” e “Apoteose”, meras adaptações do que se fazia na

    Europa, mas com a expressão poética do seu labiríntico interior e o desejo de

    encontrar um avatar que o libertasse das angústias existenciais próprias da sua época.

    “Não voava em céus ou para céus que não havia. Voava nele mesmo, experi mentando

    na queda aquele pavor fulgurante que remata os pesadelos onde se cai para ladonenhum, infindamente” (id.,11-12).

    III – Da multiplicidade à unidade

    A grandeza e a imortalidade de Fernando Pessoa devem-se, sobretudo, segundo

    Adolfo Casais Monteiro, ao facto de integrar “no próprio coração da realidade poética

    os problemas do homem despojado da verdade, do homem ao qual roubaram a

    consciência, que é o homem como o modelou a sociedade atual” (1985: 49),distinguindo-se por ser um poeta “destruidor de mitos”, porque nasceu da

    necessidade de autenticidade, para oferecer ao homem “a verdade de que não havia

    verdade” (id., 50), desconstruindo toda uma tradição literária baseada na

    artificialidade para dar voz à condição humana e abrindo o caminho para a literatura

    moderna, cujo objetivo é a crescente humanização da literatura, a par do

    desenvolvimento da psicologia como ciência. “A missão da poesia não é construir, mas

    pôr o homem face a face com a sua própria condição” (ibid ) e, neste contexto, a

    sinceridade ou insinceridade do poeta deixa de ser o fulcro da questão. O que é

    realmente importante não é ler na poesia a biografia do poeta, mas a vivência do

    sujeito enquanto humanidade. O poeta não tem de “ser sincero, mas […] verídico.[…]

    A sinceridade que dele esperamos é a de encontrar na sua voz o eco da sinceridade de

    todos os homens” (ibid ). Desta forma, a questão das múltiplas vozes de Pessoa torna-

    se menos relevante, pois a voz de Pessoa é polifónica e múltipla, sem deixar de ser

    autêntica, perspetiva que simplifica a criação heteronímica como criação poética

    através do processo de fingimento que não é mais do que intelectualização do sentir

    universal. O seu desdobramento fónico não impede que não nos debrucemos nele

    como uno, pois os outros  constituem, apenas, outros de si, o que ultrapassa a

    duplicidade presente nas personagens da narrativa de Sá-Carneiro, por exemplo, e se

    torna, “por estratégia artística ou por temperamento psíquico, […] um fenómeno

    radical e único na literatura ocidental” (LOURENÇO, A. A., 2009: 53), explicável pelo

    facto de cada um dos heterónimos, além de apresentar uma “personalidade estética e

    ideológica diferente da do seu criador” (ibid ), dispor de uma biografia e um retrato

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    físico, o que os coloca acima de uma “outra” voz do eu, mas que também não lhes dá

    o estatuto de personagem.

    A verdade é mais simples: os heterónimos são a totalidade fragmentada  e nenhumaexegese por mais hábil ou subtil a pode reconstruir a partir deles. Por isso mesmo e poressência não têm leitura individual , mas igualmente não têm dialética senão na luz dessa

    totalidade de que não são  partes, mas plurais e hierarquizadas maneiras de uma única edecisiva fragmentação. […] A totalidade fragmentada que os heterónimos  são não é umaquimera destinada a introduzir coerência num «puzzle» que tem resistido a ela. É a poesiade Pessoa anterior ao surgimento de Caeiro, Campos e Reis (LOURENÇO, E., 2003: 33).

    O sujeito poético pessoano, ao representar o “lado lunar” que se opõe ao “lado

    solar” de Sá-Carneiro, carateriza-se por ser um eu descendente, que se distingue pelo

    desejo de apagamento, pela busca do vácuo, pela fragmentação. O poeta que anuncia

    a vinda de um “supra-Camões” centra-se em si próprio e procura decifrar o ser e a

    existência. Confrontado com uma realidade confusa, um mundo em mudança com o

    qual não se identifica, busca a sua identidade – a preocupação do homem moderno -,

    com a esperança de poder obter a compreensão plena da existência e do Ser.

    Enquanto Sá-Carneiro, deslumbrado e ansioso, se lançou numa aventura fatal,

    Fernando Pessoa, menos emocional, confiante na inteligência, busca o seu próprio

    sentido para poder encontrar o do mundo. Na perspetiva de Eduardo Lourenço,

    também ele teve o sentimento agudo da “Queda”, mas a sua manifestação transmitiu-

    lhe uma sensação de irrealidade do mundo, como se os habitantes do mundo físico

    não fossem mais do que “esgares e assomos” (1990: 10). A noção de transcendência é

    tão premente em Pessoa que, ao focar-se no seu mundo interior, procura as respostas

    em todas as direções, inclusivamente no ocultismo, no esoterismo e na maçonaria.

    Tão depressa se reconhece como que “teledirigido com um sentimento de missão”,

    como se “assume como senhor absoluto de quanto escreve e realiza”, resultando daí

    uma arte poética “em que razão e anti-razão se digladiam, a consciência e o

    inconsciente se entrecruzam e aniquilam” (MOURÃO-FERREIRA, D., 1992: 199). À luz

    das teorias de Jung, Mourão-Ferreira carateriza-o como um “poeta de tipo

    introvertido”, segundo a qual “a conceção de liberdade total da criação […] é uma

    ilusão da própria consciência: ele julgar nadar, quando é uma corrente invisível que o

    arrasta” (ibid ). Esta “corrente invisível” consiste na repetição obsessiva de

    determinados temas que nos remetem para o labirinto interior do eu: - o projeto, a

    demanda, o cansaço, o tédio, a angústia existencial, a nostalgia, o sonho, a

    necessidade de evasão, a fragmentação e a procura da unidade.

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    Empenhado na busca de um rumo, Pessoa encontra, desde muito cedo, na arte

    poética a arte da evasão e acredita, como poeta da modernidade, na consciência

    como fonte criativa. “O real não pode ser apreendido, assimilado em sua forma pura

    e direta, mas filtrado pelo pensamento e pelo saber” (BRANDÃO, R. O., 1991: 273). O

    sujeito moderno pretende despir o ser do saber e “a grande tarefa será recuperar afunção vivificadora dos sentidos como órgão de apreensão do fluxo da existência”

    (ibid ), o que nos remete, de imediato, para o fingimento poético como processo

    criativo e para Alberto Caeiro, o mestre de Pessoa Ortónimo e dos outros

    heterónimos, no desenvolvimento do Sensacionismo como estética. Teresa Rita Lopes9 

    refere-se a três dimensões de Sensacionismo (1971) – visíveis na obra pessoana – que

    nos permitem uma leitura clara, sequencial e evolutiva das cambiantes da sua

    produção poética e consequente posicionamento no Modernismo português. Segundo aautora, o “sensacionismo a uma dimensão” equivale ao Paulismo10, com “Pauis”

    (“Pauis de roçarem ânsias pela minh’alma em ouro… / […] Silêncio que as folham

    fitam em nós… Outono delgado  / Dum canto de vaga ave… Azul esquecido em

    estagnado…” - PESSOA, F., 2008: 57) e “Hora Absurda”  (“O teu silêncio é uma nau

    com todas as velas pandas… /[…]// Meu coração é uma ânfora que cai e que se

    parte… /[…] Tu és a tela em que erro em cor a minha arte…” – id ., 60) como poemas

    emblemáticos, em que as sensações se sucedem na consciência do sujeito através demetáforas, remetendo-nos para uma reminiscente influência de Rimbaud, a quem

    Pessoa dedica um poema em que exprime a sua identificação com a estética

    transcendentalista de que foi apologista:

    E eu, que serei sempre como cobarde ante o Longe, / Que nunca partirei definitivamente,/ Procuro o meu sonho, embora o reze, do Oriente, / Mas ficarei eternamente monge /Dentro em meu próprio sonho dele ausente (id ., 64).

    Ao conceito paulista, em que “todo o estado de alma é uma paisagem”, subjaz

    uma conceção cinematográfica da arte: a necessidade de objetivar o subjetivo,

    captando-o por imagens, neste caso, poéticas e metafóricas. A objetivação a uma

    dimensão evolui, naturalmente, para o “sensacionismo a duas dimensões”,

    equivalente ao Interseccionismo de “Chuva Oblíqua”, em que os estados de alma   já

    não se resumem a paisagens, mas sucedem-se uns aos outros, “interseccionando-se” e

    procurando, pela sobreposição de imagens, a complexidade do relevo e do movimento

    9 Artigo intitulado “Pessoa, Sá-Carneiro e as três dimensões do Sensacionismo” 10  No que concerne ao Paulismo, destacamos a definição proposta por Fernando Alvarenga que a fundamenta nopoema “o que em mim sente está pensando”: “a sensibilidade e o pensamento passam a encontrar-se, diluindo-seum no outro para uma junção orgânica de essências comuns” (1991: 230).  

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    (“[…] Não sei quem me sonho… / Súbito toda a água do mar do porto é transparente /

    E vejo no fundo, como uma estampa enorme que lá estivesse desdobrada, / Esta

    paisagem toda, renque de árvores, estrada a arder em aquele porto […]” –  id , 67).

    Esta fase pretende atribuir ao poema uma “dimensão quase plástica que transmitisse

    a complexidade da sensação” (1971: 20). Por último, o “sensacionismo a trêsdimensões”, concretizado no poema dramático “O Marinheiro”, em que o autor

    expurga a sua obra da subjetividade, permitindo o sentimento por imagens ao atribuir

    forma concreta às suas sensações sem lhes dar vida.

    Esta evolução “sensacionista” ilustra o percurso da despersonalização, da

    intelectualização do sentir, “estados de alma pensados e não sentidos, sentidos

    imaginativamente” (id., 22), que, idealmente, conduziriam ao apagamento do sujeito

    no discurso poético, transformando o lirismo em drama criativo. Enquanto Sá-Carneiro

    permaneceu no penúltimo patamar, “o do poeta que, vivendo analiticamente [o seu]

    estado de alma, fez dele como que a expressão de um outro personagem” ( id., 23), o

    duplo como prolongamento de si próprio. Pessoa atingiu a terceira fase, ao tornar-se

    num poeta que fosse vários poetas, um poeta dramático escrevendo em poesia lírica

    (id., 22) através da criação heteronímica, sendo esta a meta do sensacionismo

    definido por Pessoa e teorizado por Álvaro de Campos no Ultimatum. Após a morte de

    Sá-Carneiro, Pessoa desinteressou-se do Sensacionismo, “o –ismo  bandeira” 

    desapareceu, mas permaneceu a conquista do Sensacionismo integral – o encontro de

    Pessoa com a sua vocação de poeta dramático.

    Robert Bréchon defende que o treino da despersonalização e a criação

    heteronímica poderiam constituir a hipótese de fuga de Pessoa: “Bloqueado em si,

    num eu que é simultaneamente prisão e labirinto, o ser inventa uma voz, outras

    vozes, para poder sair”. O dia triunfal – 8 de Março de 1914 – momento de explosão

    criativa em que se definiram as vozes de Caeiro, Reis e Campos, poderia ter sido a

    resposta para a busca de Pessoa, mas a demanda continuou perante a permanente

    questionação do eu e, esgotada a emoção inicial do jogo heteronímico, dedica-se à

    poesia como meio de atingir o transcendente. “Além-Deus” constitui o seu primeiro

    poema esotérico e ocultista, de “inspiração iniciática e gnóstica”. Em 1913, escrevera

    “Gládio”, a origem dos poemas nacionalistas de “inspiração épica e  mística”

    compilados, em 1932, na obra Mensagem (BRÉCHON, R., 1997: 201).

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    No caso de Pessoa, a busca constante será salvação ou loucura? Bréchon, afirma

    que a excecionalidade do poeta reside no facto de ter demasiada alma para o seu eu

    e que a sua salvação seria a dedicação integral “a uma missão que transcend[esse]

    esse «eu», essas circunstâncias, essa condição demasiado humana” (1997: 205) que,

    tal como Sá-Carneiro não tinha capacidade para suportar. Tal como as figurasarquetípicas de Dédalo ou do Eremita11, Pessoa movimenta-se na penumbra da vida,

    questionando-se e buscando-se na sucessão de sensações e imagens que,

    interseccionadas, lhe permitem vislumbres do desconhecido. Poeta do desassossego,

    da inquietude no mais profundo de si, na esperança de desocultar o nevoeiro que o

    impede de aceder à realidade:

    Toda a vida da alma humana é um movimento na penumbra. Vivemos num

    lusco-fusco da consciência, nunca certos com o que somos ou com o que nos supomosser. Nos melhores de nós vive a vaidade de qualquer coisa, e há um erro cujo ângulo nãosabemos. Somos qualquer coisa que se passa no intervalo de um espectáculo; por vezes, por certas portas, entrevemos o que talvez não seja senão cenário. Todo o mundo éconfuso, como vozes na noite.

    Estas páginas em que registo com uma clareza que dura para elas, agora mesmoas reli e me interrogo. Que é isto, e para que é isto? Quem sou quando sinto? Que coisanarro quando sou?

    Como alguém que, de muito alto, tente distinguir as vidas do vale, em mimmesmo me contemplo de um cimo, e sou, como tudo, uma paisagem indistinta e diversa(PESSOA, F., 2008: 402).

    Este excerto do Livro do Desassossego dá-nos conta dessa busca constante do

    sujeito pessoano e dialoga com a frase de Shakespeare “All the world’s a stage and

    all men and women merely player s”, convergindo para o “Teatro do Ser” com que

    Teresa Rita Lopes definiu a despersonalização e o fenómeno heteronímico, em que,

    no diálogo estabelecido entre Pessoa e cada um dos seus heterónimos, se forma uma

    “espécie de imenso drama” (apud , BRÉCHON, R., 1997: 187). Um drama fora do

    tempo e do espaço, encenado na intemporalidade do sonho, “o único país real que ele

    habitou” (LOURENÇO, E., 1991: 157), o único lugar onde é possível sobreviver ao vazioe “à monotonia insuportável do tempo” (ibid ). Esta “intemporalidade inapreensível”

    vemo-la metaforizada em Alberto Caeiro, como um rio que corre sem cessar. A

    temporalidade é a “ilusão e a caminhada irreversível que parece criar o caminho que

    é sempre regresso a essa pátria anterior, a esse cais platónico de onde todos

    partimos” (id ., 158), o que justifica a tonalidade onírica e nostálgica da poética

    pessoana que parece procurar a perdida Idade de Ouro, alegorizada na infância feliz

    11 Arquétipo do Tarot, representativo da busca solitária e persistente pelo conhecimento esotérico que revela arelação do homem com o transcendente e os segredos do Universo.

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    que fingiu e onde se refugia. O tempo em Pessoa é fragmentado como a sua alma e

    esse é o seu labirinto –  a angústia de não ser “à luz de um tempo que nem pode

    mesmo ser perdido, pois jamais consente que o façamos nosso” ( id ., 164). Em cada

    um dos seus heterónimos, metaforiza uma noção de temporalidade - em Alberto

    Caeiro, um “tempo falsamente eterno”; em Álvaro de Campos, um “tempo noturno”;em Ricardo Reis, um “tempo de paz fictícia” – acreditando (ou não) que o fingimento

    do tempo lhe permitiria resolver o enigma (ibid ).

    Eduardo Lourenço, citado por António Apolinário Lourenço, afirma:

    a ficção do eu não foi para Pessoa […] uma mera experiência do repisar da identidadevazia. Foi também a figura do desejo infinito de realidade, que para sempre impediu de sefechar completamente sobre si, sob pena de fechar consigo o mundo (LOURENÇO, E.,apud  LOURENÇO, A. A., 2009: 197).

    Pessoa foi, assim, um sonhador que se buscava na ausência que não é, segundo

    Octavio Paz, “só privação, mas pressentimento duma presença que nunca se mostra

    inteiramente” (apud  LOURENÇO, A. A., 2009: 201).

    IV – Para além do voo: o destino

    Como temos vindo a verificar, Pessoa era um espetador do mundo e de si

    próprio. Procurava o evanescente que se esconde por detrás da realidade visível.

    Poeta da alma, do sonho, do não-tempo, treina a despersonalização até ao limite,

    para se (re)encontrar nas pequenas coisas, nas sensações primordiais, de alma

    despida, como que para se expurgar do acessório e encontrar o essencial. O Ser,

    labirinticamente (trans)vestido pelo tempo e pela sociedade, busca no misticismo a

    sua “espantosa realidade” (GARCEZ, M. H. N., 1991: 129). Mário de Sá-Carneiro, por

    seu turno, “deplora a sua condição de espetador porque, ao não saber ver, não

    participa da realidade e fica às voltas com a sua mórbida insatisfação” ( id.,128). Por

    isso, prisioneiro do seu Narcisismo, da obsessiva contemplação de si próprio. Sá-

    Carneiro perdeu-se, porque não soube ter o “pasmo essencial” de Alberto Caeiro,

    heterónimo criado por Pessoa “para lhe pregar uma partida” 12. Também esta

    “partida” permanece um enigma: - pretenderia ele surpreendê-lo com a aparição de

    outro de si, ou, conhecendo a dimensão do drama do amigo, oferecer-lhe um

    “presente”, o contraponto de si próprio, uma lição de vida que o ajudasse a sair do

    novelo intrincado em que se enredara? “A realidade só é dececionante quando não se

    12 Conforme refere na carta a Gaspar Simões, em que explica a origem dos heterónimos.

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    sabe olhar para ela, é a grande lição do guardador de rebanhos ao sonhador de

    «Asas»” (id., 127).

    Contudo, cada um tinha de cumprir o seu destino e, como nos diz Teresa Rita

    Lopes, “um destino cumpre-se sempre a sós. Cada um dos poetas deixou a sua própria

    cicatriz” (1971: 26), eternizando a sua angústia e inscrevendo na nossa memória

    coletiva o percurso sofrido de duas almas que se sabiam caídas da harmonia

    primordial.

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