Sá-Carneiro e Pessoa - Dina Aparício
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8/20/2019 Sá-Carneiro e Pessoa - Dina Aparício
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Mário de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa:
- O Sujeito como Labirinto
Dina Carvalho Aparício
Resumo: Mário de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa demarcaram-se no contexto do
Modernismo português e continuam a intrigar-nos pelo caráter labiríntico da sua
demanda existencial. Embora contemporâneos, representantes dos arquétipos
mitológicos de Ícaro e Dédalo no seu percurso, concretizam, na arte poética, a fugaque os poderá – ou não – auxiliar na crise da superação de si próprios.
Palavras-chave: Modernismo; crise do sujeito; identidade; pluralidade; superação.
I – O encontro prodigioso
Fernando Pessoa conheceu Mário de Sá-Carneiro no início de 1912 e estaamizade, que se prolongou por três anos e meio, “viveram-na a maior parte do tempo
na ausência, comunicando e comungando por cartas” (BRÉCHON, R., 1997: 171), visto
que Pessoa vivia em Portugal e Sá-Carneiro passou uma boa parte deste tempo em
Paris, a sua cidade-inspiração. Segundo David Mourão-Ferreira, a “alta e límpida
amizade” que se estabeleceu entre ambos viria a constituir um dos “episódios mais
comovedores da nossa história literária” (1992: 195), pois, além do simples encontro
poético, deu-se um verdadeiro encontro de almas que se repercutiu na produçãoliterária de cada um deles, tal como no desenvolvimento de fortes laços afetivos que
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só ocorrem quando se verifica uma comunhão pura de desejos, ambições e temores,
baseada na compreensão e na aceitação do outro como igual. Referimo-nos a uma
amizade fraternal, superior, que “iluminou toda a existência do que sobreviveu ao
outro, e mesmo, para além da sua morte, todo o século” (BRÉCHON, R., 1997: 171).
A correspondência de Sá-Carneiro para Fernando Pessoa1 constitui um elemento
chave, um documento humano, social e histórico que “redige largos parágrafos da
história literária e congrega numerosas páginas sobre a arte e a cultura do princípio
do século […]” (LOPES, T., R., 2004: vi-vii), ao mesmo tempo que “ilumina o percurso
de dois destinos que, exaltados pelo génio próprio, foram atores principais dessa
história” (id., viii), contribuindo para a desmitificação e valorização da vida, da
personalidade e da obra de Sá-Carneiro - até há pouco tempo envoltas em
especulações e efabulações -, assim como para uma compreensão mais profunda do
Modernismo português e a forma como foi implementado, tal como para permitir o
acesso a uma perspetiva mais íntima do próprio Pessoa. Apesar do “desastroso
extravio” (id., iii) da correspondência de Pessoa para Sá-Carneiro, que podia
constituir “o mais íntimo acompanhamento do processo de pluralização” (id., v), a
sua unilateralidade revela-se, ainda assim, um “documento não prescindível à
compreensão do eu multiplicado em outros e criador” (ibid ). Denotamos, em Mário de
Sá-Carneiro, a tendência para reconhecer, no amigo, o mestre, atestada pela
“existência de uma situação de quase discipulato […], não obstante a fraterna
amizade” (MOURÃO-FERREIRA, D., 1992:195). Nestas cartas, cuja resposta o emissor
esperava com ansiedade, deparamo-nos com um sujeito inseguro, inquieto, instável,
frágil e ávido de uma palavra de incentivo, a quem Fernando Pessoa, dois anos mais
velho, se devotou como uma figura tutelar, quase paternal, que lhe respondia de
forma célere e amiga, sempre que o amigo lhe expunha os seus projetos e pedia
conselhos (id ., 196).
Embora, em 1912, Fernando Pessoa ainda não fosse conhecido no mundo das
letras2, Mário de Sá-Carneiro, precoce no talento para a escrita, tinha já um percurso
literário e editorial, iniciado aos nove anos, de que são exemplos as peças de teatro
1 A primeira carta data de 16 de Outubro de 1912 e a última refere-se a 18 de Abril de 1916. Contudo, a última vezque Sá-Carneiro se dirigiu ao amigo parece ter sido num bilhete de despedida, datado de 26 de Abril (SÁ-CARNEIRO, M., 2004: Vols. I e II).2 Em carta de 2 de Dezembro de 1912, Mário de Sá-Carneiro escreve: “ Apenas lastimo que para o público vocêseja por enquanto apenas o «crítico F. Pessoa» e não o Artista” (2004: 18, I). Pessoa “não publicará nenhuma obra
de criação em prosa antes de 1913, nem nenhum poema antes de 1914”, era conhecido pelos artigos que escreviapara a revista A Águia, publicada no Porto e não em Lisboa (BRÉCHON, R., 1997: 177).
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que encenava nas suas brincadeiras, os poemas que começou a escrever aos doze
anos, a publicação do jornal académico humorístico O Chinó e a peça de teatro
Amizade, escrita em parceria com o seu amigo e discípulo Thomas Cabreira Júnior
que, a 9 de Janeiro de 1911, se suicida com uma bala, nas escadas do liceu. Contudo,
este percurso precoce, ao invés de lhe proporcionar alguma autoconfiança, parece terdespertado nele uma consciência mais aguda das suas fragilidades e nem a vida de
sonho que levava em Paris, para onde fora com a finalidade – ou o pretexto - de
estudar Direito na Sorbonne, financiado pelo pai, o satisfazia. Nas cartas que escreve
a Pessoa, perpassam a solidão, a incerteza e os anseios que se refletem na sua
produção literária. Numa carta datada de 16 de Novembro de 1912, escreve a Pessoa:
Não tenho de forma alguma passado feliz nesta terra ideal. Tenho mesmo vivido
ultimamente alguns dos dias piores da minha vida. Porquê? Indagará você. Por coisaalguma – é a minha resposta. Ou antes: por mil pequeninas coisas que somam um totalhorrível e desolador. Olho para trás, e os tempos a que eu chamei desventurados,afiguram-se-me hoje áureos, suaves e benéficos. Diante de mim, a estrada vai pouco a pouco estreitando-se, emaranhando-se, perdendo o arvoredo frondoso que a abrigava dosol e do vento. E eu cada vez mais me convenço de que não saberei resistir ao temporaldesfeito – à Vida, em suma, onde nunca terei um lugar (SÁ-CARNEIRO, M., 2004: I,12).
Começamos aqui a perceber a dimensão da complexidade da personalidade de
Sá-Carneiro e do papel que Pessoa assume na sua vida. Este excerto, de pendor
diarístico e confessional, permite-nos vislumbrar uma personalidade
permanentemente insatisfeita, que procura e não encontra, para quem Pessoa, mais
do que um confidente, se torna “o seu mestre, quase o seu deus” (BRÉCHON, R.,
1997: 178). Não obstante o desaparecimento das cartas de Fernando Pessoa para Sá-
Carneiro, não devemos permitir que o desconhecimento da bilateralidade deste meio
de comunicação nos conduza à assunção que, nesta relação de amizade, a figura
preponderante tenha sido Fernando Pessoa, pois foi, sobretudo, através das cartas de
Sá-Carneiro que as novidades da Europa chegaram a Lisboa, à vida pacata de Pessoa
que, embora lesse e traduzisse muito, não poderia ter uma noção tão vívida do que se
passava nos “boulevards”: o cubismo, o futurismo, os ballets, o dadaísmo, o “espírito
novo” e o surrealismo (id ., 178). Segundo R. Bréchon, é Sá-Carneiro quem
proporciona a Fernando Pessoa “uma consciência cosmopolita europeia” e “na busca
febril do segredo do seu ser, oferecer-lhe-á o modelo do poeta em que ele próprio
gostaria de se tornar” (id ., 179). Também como consequência desta proximidade,
Pessoa começa a ser conhecido em França e, em Portugal, movimenta-se no meio
cultural, iniciando o seu afastamento do movimento saudosista para se dedicar à
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vanguarda com que lhe acena Sá-Carneiro, “mais esteta” e “mais atento à moda”
(ibid .).
Cada um destes autores deve ser perspetivado à luz do contexto histórico,
social e cultural imediatamente anterior e posterior à implantação da República em
Portugal. À crise ideológica finissecular, junta-se a crise de todos os valores sociais
contemporâneos a uma mundividência objetiva e positivista, em que o homem se cria
pleno de certezas. O materialismo, o artificialismo, a hipocrisia perdem o brilho,
revelando um sujeito fragilizado, perdido da sua identidade, que não tem alternativa
senão despertar para um processo de procura a que “preside todo um conjunto de
procedimentos que revelam um sujeito marcado pelos sentimentos de dor, angústia,
intranquilidade, sofrimento e tristeza” (VILA MAIOR, D., 2003: 259). O decadentismo e
o simbolismo surgem, precisamente, como resposta a esta necessidade ontológica do
homem moderno que, em conflito com a realidade, opta por dela se desviar,
contornando-a, de forma a compreendê-la através de si próprio, não objetivamente, à
semelhança do que acontecera com as tendências naturalistas e parnasianas, mas
pela transcensão do imanente como meio de atingir a essência primordial do ser. Ao
focalizar-se no seu interior, o sujeito confronta-se com a polifonia da sua tensão
interna, o que o conduz à consciência da sua pluralidade, “componente que acabaria
inevitavelmente por fazer acentuar nesse sujeito a sensação de incerteza e
indeterminação” (ibid., 266). O saudosismo, em Portugal, surge, igualmente, como
reação à “cegueira triunfalista” que ameaçava fazer ruir o (re)encontro do homem
com a vivência plena e harmoniosa da existência, mas revela-se insuficiente perante
um sujeito que se questiona permanentemente. A busca do eu alarga-se “a toda a
humanidade” (ibid., 269) e, tanto Sá-Carneiro como Pessoa, estão conscientes da
complexidade e superioridade da sua geração, caraterizada pela angústia existencial,
e que somente a poesia, a literatura, a arte da palavra - a manifestação mais pura esublime do espírito humano – poderia conduzi-los a um nível supremo de elevação
ontológica. Numa longa carta datada de 2 de Dezembro de 1912, recordando o
sentimentalismo amoroso da geração neo-romântica que os antecedeu, escreve Sá-
Carneiro: “A nossa geração é mais complicada, creio, e mais infeliz. A iluminar as
suas complicações não existe mesmo uma boca de mulher. Porque somos uma geração
superior” (2004: 17, I).
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Deste desejo de descoberta e conquista do eu, Mário de Sá-Carneiro e Fernando
Pessoa fazem nascer a Geração de Orpheu, a geração que ansiou projetar-se num voo
que vencesse o tempo e planasse acima de tudo o que não constituísse novidade,
pois, a rutura com o passado, mais do que uma moda estética constitui, como
defende Adolfo Casais Monteiro, a ainda embrionária “valorização do humano [que]tende para uma solução da crise do homem e da sociedade” (1985: 25). Ambos
“tinham a consciência da grandeza que é ser poeta […] e o estarem à mesma altura,
bem acima dos outros, aproximou-os numa amizade feita de compreensão, carinho e
admiração mútua” (BERARDINELLI, C., 1985: 182). Álvaro de Campos reconhece o
valor criativo desta amizade ao afirmar:
O Sensacionismo começou com a amizade entre Fernando Pessoa e Mário de Sá-
Carneiro. Será, provavelmente, difícil separar o papel desempenhado por cada um delesna origem do movimento e, decerto, inteiramente inútil determiná-lo. O facto é que, entreos dois, o iniciaram (PESSOA, F., 2007: 187).
Esta citação elucida-nos quanto ao caráter de uma amizade que se revelou
frutuosa, não só humanamente, mas também na definição da especificidade do
Modernismo português pela concretização do Sensacionismo como forma de arte.
Teresa Rita Lopes, citada por Robert Bréchon, refere que se “Pessoa ensinou Sá-
Carneiro a pensar, teremos de acrescentar que Sá-Carneiro, por sua vez, ensinou
Pessoa a sentir” (LOPES, T. R., apud BRÉCHON, R., 1997: 178), sugerindo-nos oenriquecimento naturalmente surgido da simbiose de dois génios que, em vez de se
antagonizarem, se uniram em prol de uma arte maior, reconhecendo-se como
diferentes, mas assumindo-se como iguais na busca de um ideal comum. As diferenças
uniram-nos, em vez de os separarem. “Pessoa é todo inteligência, Sá-Carneiro é todo
sensibilidade. Um é incapaz de sentir presença do mundo […] na sua carne; o outro é
incapaz de se compreender e de compreender o mundo” (id., 178).
Sá-Carneiro foi o poeta da emoção, do sonho, da dispersão, da ascensão, da
derrota e da queda. Pessoa, o poeta do sentimento intelectualizado ou do não sentir,
o sujeito que se apaga na sua unidade, mas que floresce na pluralidade. Por essas
diferenças e pela relação que se estabelece entre ambos, David Mourão-Ferreira,
sugerindo “uma simples interpretação pessoal, uma entre muitas já realizadas e
muitas mais ainda possíveis” (MOURÃO-FERREIRA, D., 1992: 198), faz deste encontro
prodigioso uma leitura sublime, à luz dos arquétipos mitológicos de Ícaro e Dédalo,
em que a “mítica viagem” (id., 196) de fuga do labirinto através do voo, representa afuga do sujeito poético pelo poder libertador da poesia e o processo de conceção e
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construção das asas corresponde à experimentação de uma nova linguagem poética
que conflua no (re)encontro do sujeito, libertando-o de si, das suas dúvidas e
angústias existenciais, retornando-o à harmonia original. Sá-Carneiro, na sua
insegurança de aprendiz, procurava em Pessoa, o artífice da palavra, o incentivo que
lhe faltava para empreender a sua própria viagem. As orientações de Pessoa “eram asasas novas que ensaiava sobre os ombros; só a opinião do amigo distante […] poderia
decidi-lo ao voo” (ibid ). Pessoa, o Dédalo da poesia, inventor e esotérico, “patrono de
ambíguas regiões em que a arte confina com a magia, com a alquimia” (ibid ), o
homem que, criativamente, enceta a possibilidade de existência virtual no
inconsciente, incarnada pelo desdobramento heteronímico do eu, e que procura o
Absoluto no transcendente.
A queda de Ícaro deu-se pela imprudência de se deixar guiar, não pela razão,
mas pelo deslumbramento de voar mais alto. Aproximando-se demasiado do Sol –
talvez por ambicionar tocá-lo -, derreteu-se-lhe a cera das asas e Ícaro despenhou-se
das alturas do seu sonho, perdendo a vida no mar. Sá-Carneiro sucumbiu no desejo
fracassado de atingir o “Oiro”, a plenitude, o inalcançável. O seu suicídio, segundo
Eduardo Lourenço, foi o resultado de uma “poética do excesso, mesmo na míngua”
(1990: 10), do exagero proveniente da modernidade, acrescentando que Sá-Carneiro
“não se matou contra ninguém, nem contra a vida, nem mesmo contra si […], mas por
si, pelo seu reino voluntariamente paranóico de anjo caído de nenhum céu” (ibid ) e,
paradoxalmente, conseguiu atingir com a morte o que foi impossível enquanto vivo – a
imortalidade-, como constata Fernando Pessoa, num texto de homenagem póstuma ao
amigo3:
Morre jovem o que os Deuses amam, é um preceito da sabedoria antiga. E por certo aimaginação, que figura novos mundos, e a arte, que em obra os finge, são os sinaisnotáveis desse amor divino. Não concedem os Deuses esses dons para que sejamos
felizes, senão para que sejamos seus pares (PESSOA, F., 2006: 204).
“Pessoa-Dédalo”, após a trágica experiência de “Sá-Carneiro-Ícaro”, também
experimentou o sentimento agudo da “Queda”, embora esta se tenha traduzido numa
relação de irrealidade com a vida e o mundo e no seu isolamento interior, aprisionado
num novo labirinto – o da sua pluralidade (LOURENÇO, E., 1990: 7). Jorge de Sena,
citado por Eduardo Lourenço, complementa esta convicção, defendendo que “dos
dois, o mais suicidário foi – é – o que não se matou” (SENA, J., apud ibid ), permitindo-
nos completar a leitura mitológica de David Mourão-Ferreira, em que refere que, após3 Artigo intitulado «Mário de Sá-Carneiro (1890-1916)”, escrito em 1924.
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a tragédia de Ícaro, Dédalo, que não pode voltar a Atenas, recolhe-se, fatigado no
litoral da Sicília, o que significa que o exílio persiste, não no labirinto, mas noutra
terra, numa ilha, em cansaço e solidão (MOURÃO-FERREIRA, D., 1992: 200). É nesta
solidão, nesta insularidade interior, que, depois do desaparecimento de Sá-Carneiro,
Pessoa sobrevive num “limbo em que se manifestam traços significativos, relâmpagosde impressões, uma antecipação de estados que a experiência empírica ainda não
incorporou a si” (LUCAS, F., 1991: 223), como se o colorido que a amizade de Sá-
Carneiro fosse o elo mais forte que – ainda – o ligava ao mundo concreto:
Nunca supus que isto que chamam morte / Tivesse qualquer espécie de sentido… […]//Como éramos só um, falando! Nós / Éramos como um diálogo numa alma. / Não sei sedormes (…) calma / Sei que, falho de ti, estou um a sós. // […] // Ah, meu maior amigo,nunca mais / Na paisagem sepulta desta vida / Encontrarei uma alma tão querida / Àscoisas que em meu ser são as reais. // Não mais, não mais, e desde que saíste / desta
prisão fechada que é o mundo, / Meu coração é incerto e infecundo / E o que sou é umsonho que está triste […] (PESSOA, F., 2008: 321-322).
Propomo-nos, então, analisar, mais detalhadamente, as principais
especificidades da obra poética de cada um destes autores, de forma a clarificarmos
as variações que, afastando-os um do outro como criadores, os aproxima no ideal de
criação e renovação em que assentaram o movimento modernista e a Geração de
Orpheu.
Integrados num contexto de crise em que o sujeito é o seu próprio labirinto, aprodução estético-literária de Sá-Carneiro e Pessoa tem como objetivo “uma sensação
específica de liberdade, decorrente da separação da banalidade da vida” (VILA
MAIOR, D., 2003: 436), que, por sua vez, ocorre como um “processo de
despersonalização” conducente à “personalização” (ibid). A dispersão de um e a
fragmentação do outro correspondem, respetivamente, à reação do sujeito que se
sente agrilhoado pela condição labiríntica do seu ser. A arte poética constitui, nesta
abordagem, a arte da fuga.
II – A ascensão e a queda na busca pela identidade
A vida e a obra de Mário de Sá-Carneiro permaneceram, durante cerca de meio
século, associada à artificialidade e à teatralidade cristalizadas pelo seu suicídio
anunciado pela “representação estético-literária do derrotismo” (VILA MAIOR, D.,
2003: 266) patente na sua produção literária, inicialmente, de forma subtil, e,
posteriormente, com um pendor mais abrupto, quase invasivo pela carga denegativismo, dor e desolação que dela emana. Personalidade e existência rodeadas
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por “uma aura excecional”, a sua exuberância – pessoal e literária -, a sua
“superpersonalidade”, contrasta com a “não personalidade” de Pessoa (BRÉCHON, R.,
1997: 174). Revelando uma “extraordinariamente complexa e instável” relação
consigo mesmo, evidencia, em simultâneo, tendências narcisistas e baixa autoestima
(id., 176), testemunhadas por uma poética original, mas caraterizada pela buscadesesperada de um eu perdido em si próprio. Como afirma Cleonice Berardinelli, Sá-
Carneiro “preconizava a arte pela arte, mas, ao mesmo tempo, a descida ao próprio
poço, a busca ansiosa do «eu» e a fixação da agitada idade moderna” (1985:181).
Tomado da “doença do Novo”, o poeta combina a tradição decadentista e simbolista
com as tendências de vanguarda, esteticamente cosmopolitas, procurando nesse
encontro a renovação artística, o “aprofundamento intuitivo de autognose” ensaiado
pelo Decadentismo e a aproximação ao sublime através da “magia da decifraçãoórfica do mundo”, defendidas pelo Simbolismo (PEREIRA, J. C. S., 1990: 170).
A sua poesia “não se deixa apreender fora da relacionação com a literatura
finissecular, nem à margem das assimilações e rejeições que intertextualmente essa
literatura lhe suscita”, exercendo-se esta receção ativa do finissecularismo ao longo
de toda a sua trajetória lírica (id .,169). Simultaneamente, Sá-Carneiro oferece ao
nosso panorama literário uma poesia dinâmica e europeizada, mais “liberta de
estratagemas provincianos de notoriedade”, alterando no esteticismo a “proscrição
do moralismo, do didatismo, da militância cívica, […] a subordinação da natureza e
vida à arte, e assim como o lúcido labor, em regime de fingimento, no processo de
criação poética” (id., 170). Deparamo-nos, por conseguinte, com um sujeito autêntico
e polifónico em cuja obra é claramente discernível o diálogo com autores como
Cesário Verde, António Nobre, Camilo Pessanha, Mallarmé, Eugénio de Castro e
Fernando Pessoa (LOURENÇO, E., 1990: 10), mas que, reconhecendo-se como
ausência, eleva a sua voz e se demarca na “sua constante preocupação em seconstruir” (VILA MAIOR, D., 2003: 266). Consequentemente, assistimos ao apelo, à
luta de um eu aprisionado no seu desejo de totalidade que, em conflito com o real, se
evade num mundo disperso e vago que surge como alternativa à dor da sua
indefinição. Apesar de podermos delimitar duas fases na obra de Sá-Carneiro – a da
ascensão, ou do narcisismo, e a da queda, ou desprezo -, Cleonice Berardinelli
defende que não se verifica um progresso e que a obra de Sá-Carneiro, desde o
primeiro poema, “nasce madura como Minerva”, convicção assente no facto de severificar nela uma unidade essencial, independentemente do surgimento de novas
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formas e temas, da mudança de tom, da intensificação da dramaticidade (1985: 185).
Esta unidade essencial fundamenta-se nos temas constantes na obra de Sá-Carneiro: -
o anseio de fuga, a certeza de ser grande, a busca ideal de beleza, a solidão e a
herança simbolista manifestada pela recorrente insistência em vocábulos como
“oiro”, “cristal”, “esfinge”, “auréola”, “labirinto”, quimera”, “bruma” (ibid ), que,num “tom de confidência autobiográfica”, o aproximam de Nobre ( id ., 190) e nos
remetem para as correspondências baudelaireanas, evocativas da realidade inefável e
transcendente, o “Oiro”, que Sá-Carneiro buscava.
Neste sentido, a sua obra pode ser lida como o testemunho de uma demanda
empreendida por um sujeito em permanente inquietação espiritual que cultiva uma
sensibilidade requintadamente agónica, aspirando ao isolamento aristocrático na sua
“torre de Marfim”, mas, em contrapartida, sofrendo as consequências da solidão
(auto)imposta pelo sentimento de inadaptação. Verifica-se um processo de dissolução
da realidade, de desaparecimento do sujeito enquanto ser social e concreto, tal como
uma reação antiobjetivista, traduzida pela “desvalorização do universo físico e da
imanência fenoménica a que, em favor do universo psíquico e da transcendência
espiritual, procederam o Decadentismo e o Simbolismo finisseculares” (id., 172). Esta
tendência, que corporiza a primeira poética sensacionista de Sá-Carneiro e Pessoa
Ortónimo4, revela-se “marcada por um processo de contaminação neo-romântica,
denunciada pelas sincréticas senhas de «mistério», «sonho», «vago», …” (LOPES, T.
R., apud id ., 173). Neste estádio, não nos referimos ainda ao sensacionismo de Álvaro
de Campos, mas ao “sensacionismo do incorpóreo” (ibid ), da captação da beleza por
uma sensibilidade desperta para o inefável. Acima de tudo, a originalidade da escrita
de Sá-Carneiro afirma-se através de uma polifonia de “elementos românticos,
simbolistas e vanguardistas, muito violentamente díspares” que nela encontrou “um
improvável mas inconfundível equilíbrio” (LOPES, T. R., 2004: 10). Referimo-nos auma arte da “ampliação”, em que o sujeito procura tornar o seu objeto superior a si
próprio”, pois “busca nele uma qualquer espécie de além -ele” (LOPES, T. R., 1971:
19).
A obra Dispersão, composta por doze poemas, corresponde à fase ascensional
de Sá-Carneiro, e concretiza, poeticamente, “pela via decadente e simbolista” (VILA
MAIOR, D., 2000: 231), a expressão estético-literária de um sujeito que se busca na
4 Álvaro de Campos e Almada Negreiros afastam-se desta abordagem sensacionista ao procurarem “sentir tudo detodas as maneiras”.
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subjetividade, centrando-se em dualidades temáticas antagónicas, reveladoras da sua
constante busca do ideal - ascensão e queda, interior e exterior; alma e corpo;
multiplicidade e unidade; vida e morte; ideal e real (id., 230). O poema “Partida”,
profundamente significativo, não só pelo seu conteúdo, mas pelo próprio título,
sugere o dinamismo essencial à busca. O eu, consciente da efemeridade da vida,sente-se atraído pelo apelo do longe, do desconhecido de que faz parte (“Afronta-me
um desejo de fugir / Ao mistério que é meu e me seduz. / Mas logo me trunfo. A sua
luz / Não há muitos que a sabem refletir.” – SÁ-CARNEIRO, M., 2010: 15),
reconhecendo a necessidade de “saltar na bruma” para buscar a beleza, num ímpeto
vertiginoso de subir, como Ícaro, “além dos céus / Que as nossas almas acumularam”
(ibid ). Na partida destemida contra “a montanha”, o estado material e inferior,
cingido “de quimera e d’irreal” (ibid ), o sujeito evoca o sensacionismo (“E numaextrema-unção d’alma ampliada” – id ., 16) como forma de empreender a viagem em
direção a “outros sentidos, outras vidas” (ibid ), com uma atitude confiante no seu
poder ilimitado e criativo (“Alastro, venço, chego e ultrapasso; / Sou labirinto, sou
licorne e acanto” – ibid ), numa antecipada fusão com o Absoluto que anseia (“Sei a
Distância, compreendo o Ar; / Sou chuva de ouro e sou espasmo de luz; Sou taça de
cristal lançada ao mar, / Diadema e timbre, elmo real e cruz… - ibid ). Decidido,
avança rumo ao triunfo, deixando, no entanto, pressentir o drama de um sujeito quesó se realizará na unidade do Absoluto (“Unicamente custa muito caro: / A tristeza de
nunca sermos dois…” - id., 17), como o anjo caído que lamenta a queda e o
afastamento da harmonia genesíaca (“Vêm-me saudades de ter sido Deus… - ibid ). Em
“Escavação” e “Inter-Sonho”, o inicial movimento ascendente, efusivo e triunfante a
raiar a loucura, é substituído por uma busca em sentido descendente, em que o eu,
“Numa ânsia de ter alguma cousa” (id., 18), se centra em si próprio, no seu interior,
onde nada encontra. Decide-se, então, a criar (“Brando a espada: sou luz harmoniosa
/ E chama genial que tudo ousa / Unicamente à força de sonhar… - ibid ), mas a
consciência das suas limitações humanas conduzem-no a um mórbido desalento
derrotista, à antevisão da queda antes da conquista (“Mas a vitória fulva esvai-se
logo… / E cinzas, cinzas só, em vez do fogo… / Onde existo que não existo em mim? –
ibid ), suspendendo-se voluptuosamente numa imagética da artificialidade e da
aparência que pretende superar (“Um cemitério falso sem ossadas, / Noites d’amor
sem bocas esmagadas - / Tudo outro espasmo que princípio ou fim… - ibid ). O apelo
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do Absoluto manifesta-se-lhe em estado de vigília e enquanto dorme5. O sono é o
refúgio da alma que, liberta, procura (re)encontrar as “Reminiscências de Aonde” que
perturbam o sujeito “em nostalgia” (id., 19), o que nos remete para uma analogia
com o saudosismo de Pascoaes, em que a criação e a materialidade foram erro divino,
traduzindo a saudade o eco da nostalgia da plenitude divina, pressentida pela almahumana nesse desejo de regresso ao incorpóreo. No sonho, revela-se a chave que
poderá projetar o sujeito para o Infinito: o sensacionismo interseccionista (“Pressinto
um grande intervalo, / Deliro todas as cores, / Vivo em roxo e morro em som…” –
ibid ). Este entrecruzar de planos, cores, matérias, sentimentos e sensações
intensifica-se em “Álcool”, expressando a desorientação do eu, a sua dispersão de
pendor decadentista (“[…] O que me ardeu, / Foi álcool mais raro e penetrante: / É
só de mim que eu ando delirante - / Manhã tão forte que me anoiteceu.” – id ., 21).Atentemos no vocabulário que, até este ponto, indicia o desfecho trágico - “esvai-
se”, “cinzas”, “fogo”, “cemitério”, “ossadas”, “esmagadas”, “espasmo”, “ardeu”,
“anoiteceu” – intensificado pelo desejo de dormir expresso em “Vontade de Dormir”
(“Fios d’ouro puxam por mim / A soerguer-me na poeira […] // - Ai que saudades da
morte… // Quero dormir… ancorar… // Arranquem-me esta grandeza! / - Pra que me
sonha a beleza, / Se a não posso transmigrar?...” – id., 22), em que a morte
representa o retorno à tão ansiada origem.
Deter-nos-emos em “Dispersão”, por ser um poema dialógico, emblemático da
busca e dispersão do sujeito distintivas em Sá-Carneiro, em que o eu revela a causa
da sua dispersão (“Perdi-me dentro de mim / Porque eu era labirinto” – id., 23) e
onde assistimos ao entrecruzamento de vozes poéticas como Cesário, pelo
deambulismo interior (“Passei pela minha vida / Um astro doido a sonhar” 6; Nobre,
pelo saudosismo (“Para mim é sempre ontem” – ibid) e pelo autocompadecimento (“E
tenho pena de mim, / Pobre menino ideal…” – id., 25); Pessanha, pelodesprendimento decadentista (“Álcool dum sono outonal / Me penetrou vagamente” –
ibid ); Pessoa, pelo desejo de evasão num passado imaginado (“As minhas grandes
saudades / São do que nunca enlacei.” – id., 25). Em “Estátua Falsa”, torna-se
evidente a postura derrotista do sujeito, que, num tom de desilusão, se desmaracara
5 Como se verifica nos poemas “Escavação” e “Inter-Sonho”. 6 Ousamos considerar a existência de um “deambulismo interior”, no sentido em que o sujeito vagueia pelo seupróprio interior, descrevendo-nos a as suas memórias – reais ou imaginárias -, adotando o tom entediado edescritivo de Cesário, assim como os “apartes”, o que confere, ao poema, uma certa teatralidade, também ela
uma caraterística de Cesário amplificada em Sá-Carneiro.
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e desqualifica, depois de ter construído de si uma imagem de predestinada
superioridade. Num momento de lucidez, parece tomar consciência da
inatingibilidade do seu Ideal (“Só de ouro falso os meus olhos se douram” – id, 27) e,
de súbito, este sujeito disperso - mas, anteriormente, deslumbrado pela possibilidade
de realizar o seu sonho dourado – foge da luz e esconde-se na sombra (“Gomos de luzem treva se misturam” – ibid ), refugia-se numa apatia que o protege da inquietação
que o mistério outrora lhe provocara (“Já não estremeço em face do segredo” – ibid ),
perde o medo da morte (“A vida corre sobre mim em guerra, / E nem sequer um
arrepio de medo!” – ibid ) e afirma a sua loucura, a sua insignificância (“Sereia louca
que deixou o mar;/ Sou templo prestes a ruir sem deus, / Estátua falsa ainda erguida
ao ar…” – ibid ).
A voz poética do sujeito torna-se mais desalentada, quanto mais se
consciencializa de tudo o que ambicionou, mas não alcançou, tal como o exprime no
poema “Quási”: “Um pouco mais de sol – eu era brasa, / Um pouco mais de azul – eu
era além. / Para atingir, faltou-me um golpe d’asa… / se ao menos eu permanecesse
aquém…//[…]// Num ímpeto difuso de quebranto, / Tudo encetei e nada possuí…”
(id ., 28-29). Parece-nos significativo o verso “se ao menos eu permanecesse aquém”,
pois sugere que o sujeito desconhece o seu paradeiro, não está “além” – porque não
conseguiu lá chegar -, mas também não está “aquém”, lugar que nunca lhe suscitou
sentimentos de pertença. Que paradeiro será o seu? Suspenso, perdido, disperso entre
a ascensão e a queda? Provavelmente, num limbo que justifica o seu isolamento, a
estranheza (“Não sou amigo de ninguém […]// - Serei um emigrado doutro mundo /
Que nem na minha dor posso encontrar-me?...” – id ., 30), a situação de marginalidade
afetiva e social descrita em “Como Eu Não Possuo”. Em “Além-Tédio”, poema que
apresenta semelhanças ideológicas com a fase abúlica de Álvaro de Campos, o
sujeito, já autodesmistificado, reduzido a uma existência de desencanto, descreve umsentimento transcendente ao próprio tédio (“Nada me expira já, nada me vive - /
Nem a tristeza nem as horas belas, […] / Como eu quisera, enfim d’alma esquecida, /
Dormir em paz num leito d’hospital…” – id ., 32). Refere-se à inutilidade do sonho, da
partida e da busca que, em vez de culminarem no brilho dourado do Ideal, o
conduziram à ruína das quimeras coloridas que tecera, acreditando na sua genialidade
predestinada para uma existência superior. O eu deixa-se, assim, caminhar para o
aniquilamento, para a escuridão (“Eu próprio me traguei na profundura, / Me sequeitodo, endureci de tédio.” – ibid ), restando-lhe apenas a alegria enigmática do
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escoamento do tempo e consequente aproximação da morte (“[…] de tão iguais e tão
vazios, / Os instantes me esvoam dia a dia / Cada vez mais velozes, mais esguios…” –
ibid ). Em “A Queda”, o último poema desta obra, o sujeito assume-se “rei de toda
esta incoerência” (id ., 37) e, numa teatralização poética, refere-se ao seu
autoesmagamento, à sua aniquilação, como se encontrasse um certo prazer mórbido esádico na possibilidade de ser ele próprio a concretizar a sua “dispersão” final:
Não me pude vencer, mas posso-me esmagar, / - Vencer às vezes é o mesmo que tombar -/ E como inda sou luz, num grande retrocesso, / Em raivas ideais, ascendo até ao fim: /Olho do alto o gelo, ao gelo me arremesso… / ………………………………….. /Tombei… / E fico só esmagado sobre mim!... (ibid )
Percebemos, com este excerto, que a luta do sujeito não foi uma luta contra o
mundo, com os outros, mas consigo próprio. Com a força que lhe resta, a luz sombria
da queda, ascende uma última vez, não para tocar o Infinito, mas para se esmagar asi e aos seus ideais.
Da obra Indícios de Oiro, conjunto de poemas de tom mais lúgubre, intimista,
de desencanto, de reconhecimento do fracasso, interessa-nos aflorar algumas
temáticas não tão evidentes em Dipersão, mas igualmente fundamentais para uma
perspetiva global da poética de Sá-Carneiro. Em primeiro lugar, destacamos aquilo a
que José Carlos Seabra Pereira designa por “reconversão da auréola pós-romântica de
sagração maldita” (1990:174), em que o sujeito poético magnifica “o acúmulo de
ostracismo e desgraça, ou de misantropia e amargura” (ibid ), como se pode perceber
nos versos de “Taciturno”, poema de influência estética simbolista e decadentista:
“Há oiro marchetado em mim, a pedras raras, / Oiro sinistro em sons de bronzes
medievais - / Jóia profunda a minha alma a luzes caras, / Cibório triangular de ritos
infernais” (SÁ-CARNEIRO, M., 2010: 70). O eu poético maldito, perseguido pelo
destino, percorre, em desespero e solidão, a sala interior da sua “torre de Marfim”, à
espera da morte libertadora. Enquanto não chega a hora, revolta-se contra si,
desdenhosamente, grita a sua loucura e destrói a imagética fulgurosa de que se
rodeou numa ambicionada grandeza. “A última ilusão foi partir os espelhos - / E nas
salas ducais, os frisos de esculturas / Desfizeram-se em pó… / Todas as bordaduras /
Caíram de repente aos reposteiros velhos”7 (id., 72) – o que restava da imagem
construída, desfaz-se. Tudo se transforma em pó e o brilho do passado desvaneceu-se
na ruína que progride e tudo invade. Nada é o que era. Nada parece o que parecia.
Então, recolhe-se em si e, em “Elegia”, despede-se do que foi, dos anseios que o7 Poema “O Resgate”
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animaram, que o levaram a acreditar que era um príncipe quando não passava de um
clown, dos boulevards a que nunca pertenceu (“Meus boulevards de Europa e beijos /
Onde fui só um espetador…” – id ., 81), admitindo ter teatralizado – intencionalmente
- uma existência que se revelara pobre demais para um espírito como o dele (“Eu fui
alguém que se enganou / E achou mais belo ter errado… / Mantenho o tronomascarado / Onde me sagrei Pierrot” – ibid ).
Nos Últimos Poemas, publicados postumamente por Fernando Pessoa, as
temáticas mantêm-se, confirmando as palavras de Cleonice Berardinelli ao referir que
a poesia de Sá-Carneiro “nasceu madura como Minerva” (1985: 185). No entanto,
pretendemos destacar “Aquele Outro”, um poema em que o sujeito se detém na
figura do “duplo”, aquela que aparecerá tantas vezes projetada e ampliada nas suas
narrativas8. “Aquele Outro” é o outro de si, a desconstrução de si próprio em que,
com desdém e sarcasmo, revela a distorção da autoimagem construída na fase da
ascensão:
O dúbio mascarado – o mentiroso / Afinal, que passou na vida incógnito. / O rei-lua postiço, o falso atónito – / Bem no fundo, o cobarde rigoroso. // […] // O sem nervos nemânsia – o papa-açorda, / (Seu coração talvez movido a corda…) / Apesar de seus berros aoIdeal. // O raimoso, o corrido, o desleal - / O balofo arrotando Império astral: / O magosem condão – o esfinge gorda… (SÁ-CARNEIRO, M., 2010: 121)
Carnavalização de si próprio reveladora do ceticismo sem retorno que,inexoravelmente, o conduz à queda – a morte – que também desmistifica, através de
um último desafio condicente com a atitude modernista de provocação:
– Quando eu morrer batam em latas, / Rompam aos berros e aos pinotes - / Façam estalarno ar chicotes, / Chamem palhaços e acrobatas. // Que o meu caixão vá sobre um burro /Ajaezado à andaluza: / A um morto nada se recusa, / E eu quero por força ir de burro…(id., 122)
Eduardo Lourenço, ao contrário do que se verifica em muitos autores,
desdramatiza o suicídio de Sá-Carneiro ao interpretá-lo como um ato poético,afirmando que não constitui “o «fim» de herói vencido, de amante da Morte como
substância (ou insubstância) universal das coisas” (1990: 8), mas, “literalmente uma
explosão, e o ritual da sua morte não se vincula já ao Simbolismo nem ao Romantismo
sua fonte, mas poética vital e poética […] do Futurismo” (ibid ). E, certamente, a arte
poética como arte de fuga também consta entre os pressupostos do Futurismo. Com
base nesta leitura, podemos até afirmar que Mário de Sá-Carneiro se revelou
8 A produção narrativa de Sá-Carneiro pode ser vista como a continuidade do seu discurso lírico: os temasrepetem-se como que teatralizados, como se a vida fosse a projeção da arte e não o contrário.
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Futurista, não com “Manucure” e “Apoteose”, meras adaptações do que se fazia na
Europa, mas com a expressão poética do seu labiríntico interior e o desejo de
encontrar um avatar que o libertasse das angústias existenciais próprias da sua época.
“Não voava em céus ou para céus que não havia. Voava nele mesmo, experi mentando
na queda aquele pavor fulgurante que remata os pesadelos onde se cai para ladonenhum, infindamente” (id.,11-12).
III – Da multiplicidade à unidade
A grandeza e a imortalidade de Fernando Pessoa devem-se, sobretudo, segundo
Adolfo Casais Monteiro, ao facto de integrar “no próprio coração da realidade poética
os problemas do homem despojado da verdade, do homem ao qual roubaram a
consciência, que é o homem como o modelou a sociedade atual” (1985: 49),distinguindo-se por ser um poeta “destruidor de mitos”, porque nasceu da
necessidade de autenticidade, para oferecer ao homem “a verdade de que não havia
verdade” (id., 50), desconstruindo toda uma tradição literária baseada na
artificialidade para dar voz à condição humana e abrindo o caminho para a literatura
moderna, cujo objetivo é a crescente humanização da literatura, a par do
desenvolvimento da psicologia como ciência. “A missão da poesia não é construir, mas
pôr o homem face a face com a sua própria condição” (ibid ) e, neste contexto, a
sinceridade ou insinceridade do poeta deixa de ser o fulcro da questão. O que é
realmente importante não é ler na poesia a biografia do poeta, mas a vivência do
sujeito enquanto humanidade. O poeta não tem de “ser sincero, mas […] verídico.[…]
A sinceridade que dele esperamos é a de encontrar na sua voz o eco da sinceridade de
todos os homens” (ibid ). Desta forma, a questão das múltiplas vozes de Pessoa torna-
se menos relevante, pois a voz de Pessoa é polifónica e múltipla, sem deixar de ser
autêntica, perspetiva que simplifica a criação heteronímica como criação poética
através do processo de fingimento que não é mais do que intelectualização do sentir
universal. O seu desdobramento fónico não impede que não nos debrucemos nele
como uno, pois os outros constituem, apenas, outros de si, o que ultrapassa a
duplicidade presente nas personagens da narrativa de Sá-Carneiro, por exemplo, e se
torna, “por estratégia artística ou por temperamento psíquico, […] um fenómeno
radical e único na literatura ocidental” (LOURENÇO, A. A., 2009: 53), explicável pelo
facto de cada um dos heterónimos, além de apresentar uma “personalidade estética e
ideológica diferente da do seu criador” (ibid ), dispor de uma biografia e um retrato
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físico, o que os coloca acima de uma “outra” voz do eu, mas que também não lhes dá
o estatuto de personagem.
A verdade é mais simples: os heterónimos são a totalidade fragmentada e nenhumaexegese por mais hábil ou subtil a pode reconstruir a partir deles. Por isso mesmo e poressência não têm leitura individual , mas igualmente não têm dialética senão na luz dessa
totalidade de que não são partes, mas plurais e hierarquizadas maneiras de uma única edecisiva fragmentação. […] A totalidade fragmentada que os heterónimos são não é umaquimera destinada a introduzir coerência num «puzzle» que tem resistido a ela. É a poesiade Pessoa anterior ao surgimento de Caeiro, Campos e Reis (LOURENÇO, E., 2003: 33).
O sujeito poético pessoano, ao representar o “lado lunar” que se opõe ao “lado
solar” de Sá-Carneiro, carateriza-se por ser um eu descendente, que se distingue pelo
desejo de apagamento, pela busca do vácuo, pela fragmentação. O poeta que anuncia
a vinda de um “supra-Camões” centra-se em si próprio e procura decifrar o ser e a
existência. Confrontado com uma realidade confusa, um mundo em mudança com o
qual não se identifica, busca a sua identidade – a preocupação do homem moderno -,
com a esperança de poder obter a compreensão plena da existência e do Ser.
Enquanto Sá-Carneiro, deslumbrado e ansioso, se lançou numa aventura fatal,
Fernando Pessoa, menos emocional, confiante na inteligência, busca o seu próprio
sentido para poder encontrar o do mundo. Na perspetiva de Eduardo Lourenço,
também ele teve o sentimento agudo da “Queda”, mas a sua manifestação transmitiu-
lhe uma sensação de irrealidade do mundo, como se os habitantes do mundo físico
não fossem mais do que “esgares e assomos” (1990: 10). A noção de transcendência é
tão premente em Pessoa que, ao focar-se no seu mundo interior, procura as respostas
em todas as direções, inclusivamente no ocultismo, no esoterismo e na maçonaria.
Tão depressa se reconhece como que “teledirigido com um sentimento de missão”,
como se “assume como senhor absoluto de quanto escreve e realiza”, resultando daí
uma arte poética “em que razão e anti-razão se digladiam, a consciência e o
inconsciente se entrecruzam e aniquilam” (MOURÃO-FERREIRA, D., 1992: 199). À luz
das teorias de Jung, Mourão-Ferreira carateriza-o como um “poeta de tipo
introvertido”, segundo a qual “a conceção de liberdade total da criação […] é uma
ilusão da própria consciência: ele julgar nadar, quando é uma corrente invisível que o
arrasta” (ibid ). Esta “corrente invisível” consiste na repetição obsessiva de
determinados temas que nos remetem para o labirinto interior do eu: - o projeto, a
demanda, o cansaço, o tédio, a angústia existencial, a nostalgia, o sonho, a
necessidade de evasão, a fragmentação e a procura da unidade.
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Empenhado na busca de um rumo, Pessoa encontra, desde muito cedo, na arte
poética a arte da evasão e acredita, como poeta da modernidade, na consciência
como fonte criativa. “O real não pode ser apreendido, assimilado em sua forma pura
e direta, mas filtrado pelo pensamento e pelo saber” (BRANDÃO, R. O., 1991: 273). O
sujeito moderno pretende despir o ser do saber e “a grande tarefa será recuperar afunção vivificadora dos sentidos como órgão de apreensão do fluxo da existência”
(ibid ), o que nos remete, de imediato, para o fingimento poético como processo
criativo e para Alberto Caeiro, o mestre de Pessoa Ortónimo e dos outros
heterónimos, no desenvolvimento do Sensacionismo como estética. Teresa Rita Lopes9
refere-se a três dimensões de Sensacionismo (1971) – visíveis na obra pessoana – que
nos permitem uma leitura clara, sequencial e evolutiva das cambiantes da sua
produção poética e consequente posicionamento no Modernismo português. Segundo aautora, o “sensacionismo a uma dimensão” equivale ao Paulismo10, com “Pauis”
(“Pauis de roçarem ânsias pela minh’alma em ouro… / […] Silêncio que as folham
fitam em nós… Outono delgado / Dum canto de vaga ave… Azul esquecido em
estagnado…” - PESSOA, F., 2008: 57) e “Hora Absurda” (“O teu silêncio é uma nau
com todas as velas pandas… /[…]// Meu coração é uma ânfora que cai e que se
parte… /[…] Tu és a tela em que erro em cor a minha arte…” – id ., 60) como poemas
emblemáticos, em que as sensações se sucedem na consciência do sujeito através demetáforas, remetendo-nos para uma reminiscente influência de Rimbaud, a quem
Pessoa dedica um poema em que exprime a sua identificação com a estética
transcendentalista de que foi apologista:
E eu, que serei sempre como cobarde ante o Longe, / Que nunca partirei definitivamente,/ Procuro o meu sonho, embora o reze, do Oriente, / Mas ficarei eternamente monge /Dentro em meu próprio sonho dele ausente (id ., 64).
Ao conceito paulista, em que “todo o estado de alma é uma paisagem”, subjaz
uma conceção cinematográfica da arte: a necessidade de objetivar o subjetivo,
captando-o por imagens, neste caso, poéticas e metafóricas. A objetivação a uma
dimensão evolui, naturalmente, para o “sensacionismo a duas dimensões”,
equivalente ao Interseccionismo de “Chuva Oblíqua”, em que os estados de alma já
não se resumem a paisagens, mas sucedem-se uns aos outros, “interseccionando-se” e
procurando, pela sobreposição de imagens, a complexidade do relevo e do movimento
9 Artigo intitulado “Pessoa, Sá-Carneiro e as três dimensões do Sensacionismo” 10 No que concerne ao Paulismo, destacamos a definição proposta por Fernando Alvarenga que a fundamenta nopoema “o que em mim sente está pensando”: “a sensibilidade e o pensamento passam a encontrar-se, diluindo-seum no outro para uma junção orgânica de essências comuns” (1991: 230).
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(“[…] Não sei quem me sonho… / Súbito toda a água do mar do porto é transparente /
E vejo no fundo, como uma estampa enorme que lá estivesse desdobrada, / Esta
paisagem toda, renque de árvores, estrada a arder em aquele porto […]” – id , 67).
Esta fase pretende atribuir ao poema uma “dimensão quase plástica que transmitisse
a complexidade da sensação” (1971: 20). Por último, o “sensacionismo a trêsdimensões”, concretizado no poema dramático “O Marinheiro”, em que o autor
expurga a sua obra da subjetividade, permitindo o sentimento por imagens ao atribuir
forma concreta às suas sensações sem lhes dar vida.
Esta evolução “sensacionista” ilustra o percurso da despersonalização, da
intelectualização do sentir, “estados de alma pensados e não sentidos, sentidos
imaginativamente” (id., 22), que, idealmente, conduziriam ao apagamento do sujeito
no discurso poético, transformando o lirismo em drama criativo. Enquanto Sá-Carneiro
permaneceu no penúltimo patamar, “o do poeta que, vivendo analiticamente [o seu]
estado de alma, fez dele como que a expressão de um outro personagem” ( id., 23), o
duplo como prolongamento de si próprio. Pessoa atingiu a terceira fase, ao tornar-se
num poeta que fosse vários poetas, um poeta dramático escrevendo em poesia lírica
(id., 22) através da criação heteronímica, sendo esta a meta do sensacionismo
definido por Pessoa e teorizado por Álvaro de Campos no Ultimatum. Após a morte de
Sá-Carneiro, Pessoa desinteressou-se do Sensacionismo, “o –ismo bandeira”
desapareceu, mas permaneceu a conquista do Sensacionismo integral – o encontro de
Pessoa com a sua vocação de poeta dramático.
Robert Bréchon defende que o treino da despersonalização e a criação
heteronímica poderiam constituir a hipótese de fuga de Pessoa: “Bloqueado em si,
num eu que é simultaneamente prisão e labirinto, o ser inventa uma voz, outras
vozes, para poder sair”. O dia triunfal – 8 de Março de 1914 – momento de explosão
criativa em que se definiram as vozes de Caeiro, Reis e Campos, poderia ter sido a
resposta para a busca de Pessoa, mas a demanda continuou perante a permanente
questionação do eu e, esgotada a emoção inicial do jogo heteronímico, dedica-se à
poesia como meio de atingir o transcendente. “Além-Deus” constitui o seu primeiro
poema esotérico e ocultista, de “inspiração iniciática e gnóstica”. Em 1913, escrevera
“Gládio”, a origem dos poemas nacionalistas de “inspiração épica e mística”
compilados, em 1932, na obra Mensagem (BRÉCHON, R., 1997: 201).
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No caso de Pessoa, a busca constante será salvação ou loucura? Bréchon, afirma
que a excecionalidade do poeta reside no facto de ter demasiada alma para o seu eu
e que a sua salvação seria a dedicação integral “a uma missão que transcend[esse]
esse «eu», essas circunstâncias, essa condição demasiado humana” (1997: 205) que,
tal como Sá-Carneiro não tinha capacidade para suportar. Tal como as figurasarquetípicas de Dédalo ou do Eremita11, Pessoa movimenta-se na penumbra da vida,
questionando-se e buscando-se na sucessão de sensações e imagens que,
interseccionadas, lhe permitem vislumbres do desconhecido. Poeta do desassossego,
da inquietude no mais profundo de si, na esperança de desocultar o nevoeiro que o
impede de aceder à realidade:
Toda a vida da alma humana é um movimento na penumbra. Vivemos num
lusco-fusco da consciência, nunca certos com o que somos ou com o que nos supomosser. Nos melhores de nós vive a vaidade de qualquer coisa, e há um erro cujo ângulo nãosabemos. Somos qualquer coisa que se passa no intervalo de um espectáculo; por vezes, por certas portas, entrevemos o que talvez não seja senão cenário. Todo o mundo éconfuso, como vozes na noite.
Estas páginas em que registo com uma clareza que dura para elas, agora mesmoas reli e me interrogo. Que é isto, e para que é isto? Quem sou quando sinto? Que coisanarro quando sou?
Como alguém que, de muito alto, tente distinguir as vidas do vale, em mimmesmo me contemplo de um cimo, e sou, como tudo, uma paisagem indistinta e diversa(PESSOA, F., 2008: 402).
Este excerto do Livro do Desassossego dá-nos conta dessa busca constante do
sujeito pessoano e dialoga com a frase de Shakespeare “All the world’s a stage and
all men and women merely player s”, convergindo para o “Teatro do Ser” com que
Teresa Rita Lopes definiu a despersonalização e o fenómeno heteronímico, em que,
no diálogo estabelecido entre Pessoa e cada um dos seus heterónimos, se forma uma
“espécie de imenso drama” (apud , BRÉCHON, R., 1997: 187). Um drama fora do
tempo e do espaço, encenado na intemporalidade do sonho, “o único país real que ele
habitou” (LOURENÇO, E., 1991: 157), o único lugar onde é possível sobreviver ao vazioe “à monotonia insuportável do tempo” (ibid ). Esta “intemporalidade inapreensível”
vemo-la metaforizada em Alberto Caeiro, como um rio que corre sem cessar. A
temporalidade é a “ilusão e a caminhada irreversível que parece criar o caminho que
é sempre regresso a essa pátria anterior, a esse cais platónico de onde todos
partimos” (id ., 158), o que justifica a tonalidade onírica e nostálgica da poética
pessoana que parece procurar a perdida Idade de Ouro, alegorizada na infância feliz
11 Arquétipo do Tarot, representativo da busca solitária e persistente pelo conhecimento esotérico que revela arelação do homem com o transcendente e os segredos do Universo.
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que fingiu e onde se refugia. O tempo em Pessoa é fragmentado como a sua alma e
esse é o seu labirinto – a angústia de não ser “à luz de um tempo que nem pode
mesmo ser perdido, pois jamais consente que o façamos nosso” ( id ., 164). Em cada
um dos seus heterónimos, metaforiza uma noção de temporalidade - em Alberto
Caeiro, um “tempo falsamente eterno”; em Álvaro de Campos, um “tempo noturno”;em Ricardo Reis, um “tempo de paz fictícia” – acreditando (ou não) que o fingimento
do tempo lhe permitiria resolver o enigma (ibid ).
Eduardo Lourenço, citado por António Apolinário Lourenço, afirma:
a ficção do eu não foi para Pessoa […] uma mera experiência do repisar da identidadevazia. Foi também a figura do desejo infinito de realidade, que para sempre impediu de sefechar completamente sobre si, sob pena de fechar consigo o mundo (LOURENÇO, E.,apud LOURENÇO, A. A., 2009: 197).
Pessoa foi, assim, um sonhador que se buscava na ausência que não é, segundo
Octavio Paz, “só privação, mas pressentimento duma presença que nunca se mostra
inteiramente” (apud LOURENÇO, A. A., 2009: 201).
IV – Para além do voo: o destino
Como temos vindo a verificar, Pessoa era um espetador do mundo e de si
próprio. Procurava o evanescente que se esconde por detrás da realidade visível.
Poeta da alma, do sonho, do não-tempo, treina a despersonalização até ao limite,
para se (re)encontrar nas pequenas coisas, nas sensações primordiais, de alma
despida, como que para se expurgar do acessório e encontrar o essencial. O Ser,
labirinticamente (trans)vestido pelo tempo e pela sociedade, busca no misticismo a
sua “espantosa realidade” (GARCEZ, M. H. N., 1991: 129). Mário de Sá-Carneiro, por
seu turno, “deplora a sua condição de espetador porque, ao não saber ver, não
participa da realidade e fica às voltas com a sua mórbida insatisfação” ( id.,128). Por
isso, prisioneiro do seu Narcisismo, da obsessiva contemplação de si próprio. Sá-
Carneiro perdeu-se, porque não soube ter o “pasmo essencial” de Alberto Caeiro,
heterónimo criado por Pessoa “para lhe pregar uma partida” 12. Também esta
“partida” permanece um enigma: - pretenderia ele surpreendê-lo com a aparição de
outro de si, ou, conhecendo a dimensão do drama do amigo, oferecer-lhe um
“presente”, o contraponto de si próprio, uma lição de vida que o ajudasse a sair do
novelo intrincado em que se enredara? “A realidade só é dececionante quando não se
12 Conforme refere na carta a Gaspar Simões, em que explica a origem dos heterónimos.
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sabe olhar para ela, é a grande lição do guardador de rebanhos ao sonhador de
«Asas»” (id., 127).
Contudo, cada um tinha de cumprir o seu destino e, como nos diz Teresa Rita
Lopes, “um destino cumpre-se sempre a sós. Cada um dos poetas deixou a sua própria
cicatriz” (1971: 26), eternizando a sua angústia e inscrevendo na nossa memória
coletiva o percurso sofrido de duas almas que se sabiam caídas da harmonia
primordial.
Bibliografia Ativa
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