Safatle, Vladimir - O Estado Oligárquico de Direito

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12/12/2015 Facebook https://www.facebook.com/ 1/2 Neste exato momento, a população brasileira vê, atônita, a preparação de um golpe de estado tosco, primário e farsesco. Alguém poderia contar a história da seguinte forma: em uma república da América Latina, o vicepresidente, uma figura acostumada às sombras dos bastidores, conspira abertamente para tomar o cargo da presidente a fim de montar um novo governo com próceres da oposição que há mais de uma década não conseguem ganhar uma eleição. Como tais luminares oposicionistas da administração pública se veem como dotados de um direito divino e eterno de governar as terras da nossa república, para eles, "ganhar eleições" é um expediente desnecessário e supérfluo. O vice tem como seu maior aliado o presidente da Câmara: um chantagista barato acostumado, quando pego em suas mentiras e casos de corrupção, a contar histórias grotescas de fortunas feitas com vendas de carne para a África e contas na Suíça com dinheiro depositado sem que se saiba a origem. Ele comanda uma Câmara que funciona como sala de reunião de oligarcas eleitos em eleições eivadas de dinheiro de grandes empresas e tem ainda o beneplácito de setores importantes da imprensa que costumam contar a história do comunismo a espreita e do bolivarianismo rompante para distrair parte da população e alimentála com uma cota semanal de paranoia. O nome de sua empresa diz tudo a respeito do personagem: "Jesus.com". O golpe ganha um ritmo irreversível enquanto a presidenta afunda em suas manobras palacianas estéreis e nos incontáveis casos de corrupção de seu governo. Ela havia dado os anéis para conservar os dedos; depois deu os dedos para guardar os braços. Mais a frente, lá foram os braços para preservar o corpo, o corpo para guardar a alma e, por fim, descobriuse que não havia mais alma alguma. Reduzida à condição de um holograma de si mesma e incapaz de mobilizar o povo que um dia acreditou em suas promessas, sua queda era, na verdade, uma segunda queda.Ela já tinha sido objeto de um golpe que tomou seu governo e a reduziu à peça decorativa. Agora, nem a decoração restou. Bem, este romance histórico ruim e eternamente repetido parece ser a história do fim da Nova República brasileira. Que ela termine com um golpe de estado primário, fruto de um pedido de impeachment feito em cima da denúncia de "manobras fiscais" em um país no qual o orçamento é uma ficção assumida por todos, isto diz muito a respeito do que a Nova República realmente foi. Incapaz de criar uma democracia real por meio do aprofundamento da participação popular nos processos decisórios do Estado e equilibrandose na gestão do atraso e do fisiologismo, ela acabou por ser engolida por aquilo que tentou gerir. Para justificar o impeachment, alguns são mais honestos e afirmam que um governo inepto deveria ser afastado. É verdade, só me pergunto por que então conservar Alckmin, Richa, Pezão e cia. O fato é que, no lugar da Nova República, o Brasil depois do golpe assumirá, de vez, sua feição de Estado Oligárquico de Direito. Um estado governado por uma oligarquia que, como na República velha, transformou as eleições em uma pantomima vazia. Uma oligarquia que já mostrou seu projeto: uma política de austeridade que não temerá privatizar escolas (como já está sendo feita em Goiás), retirar o caráter público dos serviços de saúde, destruir o que resta dos direitos trabalhistas por meio da ampliação da terceirização e organizar a economia segundo os interesses não mais da elite cafeeira, mas da elite financeira. Mas como a população brasileira descobriu o caminho das ruas (haja vista as ocupações dos estudantes paulistas), enganase aqueles que acreditam poder impor ao país os princípios de uma "unidade de pacificação". Contem com um aumento exponencial das revoltas contra as políticas de um governo que será, para boa parte da população, ilegítimo e ilegal. Mas como já estamos dotados de leis antiterroristas e novas peças de aparato repressivo, preparemse para um Estado policial, feito em cima de leis aprovadas, vejam só vocês, por um "governo de esquerda". Faz parte do comportamento oligarca este recurso constante à violência policial e ao arbítrio para impor sua vontade. Ele será a tônica na era que parece se iniciar agora. Contra ela, podemos nos preparar para a guerra ou agir de forma a parar de vez com este romance ruim.

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Neste exato momento, a população brasileira vê, atônita, a preparação de um golpe de estadotosco, primário e farsesco. Alguém poderia contar a história da seguinte forma: em uma repúblicada América Latina, o vice­presidente, uma figura acostumada às sombras dos bastidores, conspiraabertamente para tomar o cargo da presidente a fim de montar um novo governo com próceres daoposição que há mais de uma década não conseguem ganhar uma eleição. Como tais luminaresoposicionistas da administração pública se veem como dotados de um direito divino e eterno degovernar as terras da nossa república, para eles, "ganhar eleições" é um expedientedesnecessário e supérfluo.

O vice tem como seu maior aliado o presidente da Câmara: um chantagista barato acostumado,quando pego em suas mentiras e casos de corrupção, a contar histórias grotescas de fortunasfeitas com vendas de carne para a África e contas na Suíça com dinheiro depositado sem que sesaiba a origem. Ele comanda uma Câmara que funciona como sala de reunião de oligarcas eleitosem eleições eivadas de dinheiro de grandes empresas e tem ainda o beneplácito de setoresimportantes da imprensa que costumam contar a história do comunismo a espreita e dobolivarianismo rompante para distrair parte da população e alimentá­la com uma cota semanal deparanoia. O nome de sua empresa diz tudo a respeito do personagem: "Jesus.com".

O golpe ganha um ritmo irreversível enquanto a presidenta afunda em suas manobras palacianasestéreis e nos incontáveis casos de corrupção de seu governo. Ela havia dado os anéis paraconservar os dedos; depois deu os dedos para guardar os braços. Mais a frente, lá foram osbraços para preservar o corpo, o corpo para guardar a alma e, por fim, descobriu­se que nãohavia mais alma alguma. Reduzida à condição de um holograma de si mesma e incapaz demobilizar o povo que um dia acreditou em suas promessas, sua queda era, na verdade, umasegunda queda. Ela já tinha sido objeto de um golpe que tomou seu governo e a reduziu à peçadecorativa. Agora, nem a decoração restou.

Bem, este romance histórico ruim e eternamente repetido parece ser a história do fim da NovaRepública brasileira. Que ela termine com um golpe de estado primário, fruto de um pedido deimpeachment feito em cima da denúncia de "manobras fiscais" em um país no qual o orçamento éuma ficção assumida por todos, isto diz muito a respeito do que a Nova República realmente foi.Incapaz de criar uma democracia real por meio do aprofundamento da participação popular nosprocessos decisórios do Estado e equilibrando­se na gestão do atraso e do fisiologismo, elaacabou por ser engolida por aquilo que tentou gerir. Para justificar o impeachment, alguns sãomais honestos e afirmam que um governo inepto deveria ser afastado. É verdade, só me perguntopor que então conservar Alckmin, Richa, Pezão e cia.

O fato é que, no lugar da Nova República, o Brasil depois do golpe assumirá, de vez, sua feição deEstado Oligárquico de Direito. Um estado governado por uma oligarquia que, como na Repúblicavelha, transformou as eleições em uma pantomima vazia. Uma oligarquia que já mostrou seuprojeto: uma política de austeridade que não temerá privatizar escolas (como já está sendo feitaem Goiás), retirar o caráter público dos serviços de saúde, destruir o que resta dos direitostrabalhistas por meio da ampliação da terceirização e organizar a economia segundo os interessesnão mais da elite cafeeira, mas da elite financeira.

Mas como a população brasileira descobriu o caminho das ruas (haja vista as ocupações dosestudantes paulistas), engana­se aqueles que acreditam poder impor ao país os princípios de uma"unidade de pacificação". Contem com um aumento exponencial das revoltas contra as políticas deum governo que será, para boa parte da população, ilegítimo e ilegal. Mas como já estamosdotados de leis antiterroristas e novas peças de aparato repressivo, preparem­se para um Estadopolicial, feito em cima de leis aprovadas, vejam só vocês, por um "governo de esquerda". Fazparte do comportamento oligarca este recurso constante à violência policial e ao arbítrio paraimpor sua vontade. Ele será a tônica na era que parece se iniciar agora. Contra ela, podemos nospreparar para a guerra ou agir de forma a parar de vez com este romance ruim.

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Gabriel Giorgi Si, creo q Denilson lo sintetizo, pero al menos se puede leerCurtir · Responder · 9 h

Denilson LOpes é a coluna de Vladimir Safatle na Folha de São Paulo que pode ficar fechada para quem nãoé assinante. Mas o texto é integralCurtir · Responder · 2 · 9 h

Gabriel Giorgi Ah desculpas, Denilson LOpes, melhor. O textoe legal,obrigado pelo postingCurtir · Responder · 9 h

Denilson LOpes Sem problema. Os espaços para artigos na grande imprensa brasileira estão cada vezmenores...Curtir · Responder · 9 h