SAMUEL PAULINO TONO - unicuritiba.edu.br · ... CAPITALISMO CONSTITUCIONAL x CAPITALISMO ......
Transcript of SAMUEL PAULINO TONO - unicuritiba.edu.br · ... CAPITALISMO CONSTITUCIONAL x CAPITALISMO ......
CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO stricto sensu - MESTRADO EM DIREITO
SAMUEL PAULINO TONO
AUTONOMIA PRIVADA E BOA-FÉ OBJETIVA NAS RELAÇÕES EM PRESARIAIS:
REFLEXOS NA CONTRATAÇÃO
CURITIBA 2011
SAMUEL PAULINO TONO
AUTONOMIA PRIVADA E BOA-FÉ OBJETIVA NAS RELAÇÕES EM PRESARIAIS:
REFLEXOS NA CONTRATAÇÃO
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do Centro Universitário Curitiba, como requisito parcial para obtenção do Título de Mestre em Direito.
Orientador: Professor Doutor Carlyle Popp
CURITIBA 2011
T E R M O D E A P R O V A Ç Ã O
Presidente: _________________ __________________ Prof essor Doutor Carlyle Popp
Orientador ___________________________________ Membro Interno ___________________________________ Membro Externo
Curitiba, de de 2 011
SUMÁRIO
RESUMO 3
ABSTRACT 4
INTRODUÇÃO 5
CAPÍTULO 1 – LIVRE INICIATIVA E ATIVIDADE EMPRESARI AL: DA
CONSTITUIÇÃO PARA O DIREITO PRIVADO
8
1.1 LIVRE INICIATIVA: LIMITES CONSTITUCIONAIS E REGRAS INSTITUCIONAIS
DE MERCADO
8
1.2 EMPREENDEDORISMO LEGAL RELACIONADO AOS DITAMES DOS
PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA ORDEM ECONÔMICA
14
1.3 ATIVIDADE EMPRESARIAL E SUAS CARACTERÍSTICAS ATUAIS DE
ATUAÇÃO: CAPITALISMO CONSTITUCIONAL x CAPITALISMO GLOBAL
21
1.4 CONTRATOS EMPRESARIAIS COMO FERRAMENTAS DE VIABILIZAÇÃO
ECONÔMICA: CARACTERÍSTICAS MERCADOLÓGICAS E ANTAGONISMO
SOCIAL
28
1.5 LIVRE INICIATIVA E AUTONOMIA PRIVADA NA PRÁXIS MERCANTIL 34
1.6 A COMPLEXIDADE NA RELAÇÃO CONTRATUAL EMPRESARIAL:
AUTONOMIA PRIVADA, BOA-FÉ E OS DEVERES DE CONSIDERAÇÃO
40
1.6.1 Da Autonomia Privada 40
1.6.2 Da Boa-Fé 42
1.6.3 Dos Deveres de Consideração 43
CAPÍTULO 2 – LIBERDADE CONTRATUAL: A AUTONOMIA PRIV ADA E A
ATIVIDADE EMPRESARIAL
47
2.1 PRINCIPIOLOGIA CLÁSSICA 47
2.2 NOVOS PRINCÍPIOS DO DIREITO CONTRATUAL 53
2.3 LIMITE OPERACIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA: A DIGNIDADE DA
PESSOA HUMANA
59
2.4 EFEITOS EXTERNOS DO CONTRATO RELACIONADOS À JUSTIÇA SOCIAL 66
2.5 RESPONSABILIDADE CONTRATUAL E A RELAÇÃO OBRIGACIONAL
COMPLEXA
73
CAPÍTULO 3 – BOA-FÉ OBJETIVA E ATIVIDADE EMPRESARIA L 86
3.1 ASPECTOS HISTÓRICOS DA BOA-FÉ OBJETIVA 86
3.2 DISTINÇÃO ENTRE BOA-FÉ SUBJETIVA E OBJETIVA 90
3.3 AS FUNÇÕES DO PRINCÍPIO DA BOA-FÉ E SUA APLICAÇÃO AOS
CONTRATOS EMPRESARIAIS
93
3.3.1 A Função Hermenêutico-integrativa 93
3.3.2 A Função Criativa de Deveres Jurídicos 96
3.3.3 A Função Limitativa ao Exercício de Direitos Subjetivos 102
3.4 DELIMITAÇÃO POSITIVA DO PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA.. 108
3.4.1 O Princípio da Confiança 108
3.4.2 Os Limites do Contrato e a Natureza Obrigacional dos Deveres Laterais. 114
CAPÍTULO 4 – AUTONOMIA PRIVADA E BOA-FÉ: REFLEXOS N A
ATIVIDADE EMPRESARIAL
123
4.1 RESPONSABILIDADE PRÉ-CONTRATUAL E O ROMPIMENTO DAS
TRATATIVAS
123
4.2 DO INADIMPLEMENTO NO DIREITO BRASILEIRO: ESPÉCIES E EFEITOS DO
DESCUMPRIMENTO DA OBRIGAÇÃO
127
4.3 CAUSAS DE EXCLUSÃO DA RESPONSABILIDADE CONTRATUAL 132
4.3.1 Fato do Contratante 132
4.3.2 Fato de Terceiro 136
4.3.3 Caso Fortuito e Força Maior 140
4.3.4 Cláusula de Não-Indenizar 144
4.3.4.1 Cláusulas exoneratórias de responsabilidade 144
4.3.4.2 Cláusulas limitativas de responsabilidade 149
4.4 A VIOLAÇÃO POSITIVA DO CONTRATO 153
4.4.1 Delimitação Conceitual no Contexto do Direito Brasileiro 153
4.4.2 A Violação Positiva do Contrato como Hipótese de Inadimplemento Contratual 156
4.5 CASUÍSTICAS CURITIBANAS: SUBSUNTOS ENSAIADOS DE FATOS REAIS À
NORMA DA BOA-FÉ
161
4.5.1 O Café Migrado 161
4.5.2 O Leito Aviltado 163
4.6 RESPONSABILIDADE PÓS-CONTRATUAL: PERENIDADE DA CONTRATAÇÃO
EMPRESARIAL?
166
CONCLUSÃO
BIBLIOGRAFIA
RESUMO
A liberdade contratual e a liberdade de contratar não são absolutas. Nos estritos limites da legalidade, pode-se afirmar que em função da vigência do Código Civil de 1916 a autonomia privada e a livre iniciativa encontravam finalidades jurídicas em si mesmas. O Direito privado evoluiu para considerar atualmente que a livre iniciativa não mais se estabelece pelos fins meramente patrimoniais. Para além das regras do mercado capitalista, o ordenamento jurídico incrementou novas variáveis à concepção do justo exercício da autonomia particular. A dignidade da pessoa humana é o núcleo do ordenamento jurídico brasileiro, e os fundamentos da ordem econômica e financeira estão pautados nos ditames da justiça social, de observação obrigatória para todas as pessoas jurídicas. Para que seja possível aferir os efeitos deste mandamento necessário se faz verificar o descumprimento do contrato para além do inadimplemento absoluto e da mora, tradicionalmente colocados para caracterizar a frustração da prestação obrigacional. O interesse contratual negativo abre caminho para sopesar eficiência do projeto constitucional de cidadania através de contratação empresarial, e a técnica para viabilizar este preceito é adotar a violação positiva do contrato como hipótese de inadimplemento e de potencial para alavancar motivos que dão ensejo à ampla reparação de danos. O alicerce referencial desta espécie de violação é a boa-fé objetiva, a qual pauta-se no grau de confiança gerada entre partes e terceiros interessados. Palavras-chave: livre iniciativa – liberdade contratual – autonomia privada – boa-fé objetiva – confiança - interesse contratual negativo – violação positiva do contrato – inadimplemento contratual – responsabilidade civil contratual.
ABSTRACT
Contractual freedom and freedom of contract are not absolute. The strict limits of legality, it can be stated that depending on the duration of the Civil Code of 1916 to private autonomy and free initiative were legal purposes in themselves. The private law has evolved to consider now that free enterprise is established by no more equity purposes only. In addition to the rules of the capitalist market, the new law increased the design variables of the just exercise of private autonomy. The human dignity is the core of Brazilian law, and the foundations of economic and financial order are guided in the dictates of social justice, observing mandatory for all corporations. To be able to assess the effects of this rule is necessary to check the breach of contract in addition to absolute default and arrears, traditionally made to characterize the performance of duty in frustration. The negative contractual interest gives way to weigh efficiency of the constitutional project of citizenship through contracting business, and technology to enable this rule is to adopt a positive violation of contract as the event of default and potential leverage for reasons that give rise to extensive damage repair. The ground reference of this kind of violation is the objective good faith, which is guided in the degree of trust generated between the parties and third parties. Keywords: free enterprise - freedom of contract - private autonomy - objective good faith - trust - contractual interest negative - positive violation of contract - breach of contract - contractual civil liability.
5
INTRODUÇÃO
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 possui uma série
de regras e princípios destinados à regência legal da ordem econômica e financeira
interna. Especificamente a partir do art. 170 e seguintes, combinados com outros
estatutos, verifica-se que o ordenamento jurídico está voltado a estabelecer uma
diretriz quanto às finalidades civis do mundo empresarial.
Em que pese a ordem econômica e financeira interna estar sob influência do
capitalismo global, vê-se que a iniciativa privada não prescinde do critério de estar
alinhada segundo parâmetros de aceitação desenhados pelos variados sistemas
mercadológicos, ainda que socialmente antagônicos. A orientação da atividade
empresarial, por sua vez, também não deveria afastar-se dos preceitos
constitucionais que dão legitimidade ao livre curso do empreendedorismo racional,
mas nem sempre esta regra encontra lugar seguro.
Eis o que dá ensejo ao estudo do presente trabalho. Exemplificativamente,
indaga-se: é possível empreender, contratar, resolver contratos, e desvincular-se de
entidades jurídicas racional e objetivamente pautado em regras estritas da lei e do
mercado? O pragmatismo empresarial (econômico-financeiro) encontra eco no
ordenamento jurídico pátrio? Até que ponto a livre iniciativa pode efetivamente
utilizar-se de sua liberdade contratual (e de contratar) para celebrar e/ou encerrar
negócios à luz do simples fim capitalista?
Partindo-se dos preceitos constitucionais, verifica-se que o Direito privado é
função de uma carta pugnaz, positivado pelo legislador, originário e/ou derivado,
para estabelecer uma identidade capital para exercitar-se a autonomia negocial. Na
práxis mercantil de hoje, o que se quer atingir é um capitalismo identificado com as
orientações da principiologia constitucional.
O discurso ideológico tem muito de retórica, e como tal o que impressiona é a
pseudo-legalidade subsumível de um fato (banalizado) ao marco regulatório. Toma-
se vestígios de um bom direito por indícios de justiça, o que tecnicamente pode não
estar incorreto, mas suportar a idéia de que aspectos interesseiros sejam tomados
apenas no gênero para legitimar interesses espúrios é aviltar a substância de
determinado e justo direito e/ou dever de consideração.
6
Quando se trata de liberdade contratual, no contexto da autonomia privada,
em cotejo com atividade empresarial (capítulo 2), verifica-se que o instituto da leitura
e interpretação da lei pode ter por fundamento a fortaleza de um forte-paço
construído sobre areias movediças. Nesta parte do trabalho, o desafio é
contextualizar uma inovadora dimensão jurídica, possível e legal, aos conceitos de
justiça social, responsabilidade contratual e relação obrigacional complexa. Tudo isto
reafirmando que o núcleo do sistema jurídico continua sendo a dignidade da pessoa
humana. Aliás, demonstra-se que a principiologia contratual concebida desde o
período clássico do capitalismo não foi derrogada, mas, sim, incrementada com
novos valores que maquinam a esperada eficiência econômica da atual conjuntura
mundial.
Neste panorama, entra em cena a boa-fé objetiva (capítulo 3), a qual é
traçada a partir de caracteres que a afeiçoavam desde a antiga cultura de Roma.
Desde então, a cláusula da boa-fé ganha contornos de eficácia supostamente
inalcançáveis pelo cientista do Direito, mormente pelo (pretenso) legislador. Com
braços curtos, escritores diversos enrijecem o potencial da maleabilidade que este
instituto oferece para aplacar o efeito extensivo-saneador de lei sobre querela social.
Demanda aquela que acaba por encarecer produtos, onerar serviços, aumentar
lucros em excesso, desqualificar garantes úteis, ultrajar segurança jurídica,
relativizar eficácia de mandamentos institucionalizados, etc.
Para conter abuso de direito e privilegiar a confiança entre atores sociais
(econômicos e jurídicos), ensaia-se novas medidas que podem dar um novo tom de
cidadania a partir dos efeitos externos que os contratos podem irradiar. Não se
tratam de sugestão ao agente econômico para observar ou não os deveres jurídico-
instrumentais reclamados pela Constituição Federal. Constata-se que a sociedade
tende à auto-limitação geral em sua função operacional para a integração social e à
harmonização nacional. Lógico, sociedade esta qualificada em específico aos
interesses próprios de grupos determinados de ricas ações empresariais. Ao pé do
desqualificado destinatário da benesse global, socorre-se o gênero da incrustação
de uma receita politicamente posta, malogrado com substâncias inertes.
A leveza do plano empresarial se obtém com a hígida levedura do plano
social chamada pela eqüidade, seja entre partes contratantes ou para com terceiros.
Desde a fase pré-contratual, ou na contratual e pós-contratual, o que se avalia das
conseqüências dos negócios empresariais é a imarcescibilidade eficacial no plano
7
jurídico. É por isso que entra em relevo no capítulo 4 a questão do que seja ou não
inadimplemento sob a ótica do Direito Civil-Constitucional. O conceito de
descumprimento deixa de ser imanente às partes diretamente interessadas do
contrato. Este fenômeno alcança o propósito do legislador originário para tipificar a
violação positiva do contrato como hipótese de inadimplemento contratual, ainda que
de forma indireta. E o que é também interessante: demonstra-se que as tradicionais
causas de exclusão e limitação de responsabilidade contratual estão aquém do que
pode ensejar a (nova) fronteira do contexto dos deveres anexos aos contratos.
O potencial de resolução de contrato está além dos deveres principais e/ou
secundários da obrigação. De forma independente, os deveres laterais estão por
dizer que perpetuidade de atividade empresarial deve levar em consideração todas
as influências positivas do mercado, mas, também, as variáveis que recaem
negativamente sobre o projeto nacional de valorização do homem em sua dignidade.
E qual seria, então, a novidade desta questão que transcende a comutatividade de
um “bom” acordo empresarial? Infere-se ser a cotação do desvalor de mercado...
Sugere-se aferir e pleitear este montante, em cada caso concreto, pela perspectiva
que aqui se apresenta.
Dissertando neste tema, relacionam-se duas casuísticas para bem ilustrar os
argumentos teorizados. Noticiam-se os casos do Café migrado e do leito aviltado.
Num dado momento da história local, os Curitibanos ficaram doentes por café! E o
formulário para tratar tal patologia não se encontra na medicina; manipula-se um
remédio perfeito a partir da ciência do Direito.
8
CAPÍTULO 1 – LIVRE INICIATIVA E ATIVIDADE EMPRESARI AL: DA
CONSTITUIÇÃO PARA O DIREITO PRIVADO
1.1. LIVRE INICIATIVA: LIMITES CONSTITUCIONAIS E REGRAS
INSTITUCIONAIS DE MERCADO
A categoria jurídica denominada “livre iniciativa” figura na Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988 (CF/88) em dois importantes momentos
desta carta quando faz referência ao respectivo instituto no art. 1.º, IV, e no art. 170.
Ainda sob o soluço de uma inspirativa leitura do preâmbulo da Constituição
Federal, verifica-se que da abertura deste parágrafo, ao ponto final de seu conteúdo,
nada mais seria necessário para dizer-se qual é o bem supremo da humanidade,
não fosse necessária a sistematização de procedimentos objetivos diversos para a
consecução da ampla finalidade que o constituinte quis imprimir neste documento-
fruto da benevolente vida em sociedade (pelo menos em termos potenciais).
Para desdobrá-lo, abre-se o contexto da normativa com, talvez, o mais
significativo preceito estabelecido pelo legislador aos destinatários da poderosa lex:
em seu primeiro artigo relaciona os princípios dos direitos fundamentais (Título I),
sobre os quais se assentam os fundamentos da República Federativa do Brasil,
quais sejam: i) a soberania; ii) a cidadania; iii) a dignidade da pessoa humana; iv) os
valores sociais do trabalho; v) os valores sociais da livre iniciativa; e, vi) o pluralismo
político.
Por conseguinte, ao demarcar a regulação da atividade econômica e
financeira do Estado, relaciona, também, no art. 170, os princípios gerais da
atividade econômica (Título VII), estabelecendo que esta vertente fundamenta-se na
valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, a qual tem por finalidade1
assegurar a existência digna de todos, conforme os ditames da justiça social.
Verifica-se na espécie alguns caracteres que merecem uma rápida reflexão
de sua abrangência para efeitos de bem dimensionar o tipo em estudo. A começar
1 Sobre a relação entre função e finalidade: v. BRANCO, Gerson Luiz Carlos. Função Social dos Contratos. São
Paulo: Editora Saraiva, 2009, p. 270.
9
pelo aspecto de ser livre no mundo: depreende-se que neste relativo estado de
natureza insubmissível encontra-se o atributo supremo da liberdade para a efetiva
apropriação da existência pessoal ou relacional do homem, pois, para qualquer
efeito interativo, o último recanto da discórdia estará banido pelo vértice do
imaginado arbítrio pessoal legalmente institucionalizado para os bons fins a que se
destina. Por conseguinte, o exercício do livre-arbítrio, ou da liberdade, faz com que o
homem subordine a natureza para os seus fins específicos (“a que se chama de
espírito”), e o resultado desta criação humana dará ensejo a sua cultura.2
A partir desta prerrogativa, o que se dirá, analiticamente, da iniciativa (pura e
simples) para a consecução de um determinado fim? A idéia central está
consubstanciada, por exemplo, num elemento geral chamado “início para
determinada ação”, cujo perímetro de compreensão do fenômeno denota um raio de
atuação que tem por comprimento uma medida que se origina na inércia e se
estende, por conseqüência, ao ponto da atividade (humana) em si.
Em termos práticos, quer-se dizer: na dinâmica social da esfera econômica,
toda e qualquer pessoa – legalmente autorizada, física ou jurídica, é livre para
empreender qualquer negócio permitido em lei, ou que não o seja proibido, pois os
valores sociais da livre iniciativa perfazem um daqueles que são os fundamentos da
república elencados no supracitado artigo (mencionando-se, ainda, que é,
essencialmente, na atividade econômica que reside o programa que pode assegurar
a existência digna pretendida pelo constituinte).
É neste espaço ideológico que se configura o berço adequado para a inter-
relação social dos cidadãos – e das empresas - com os propósitos econômicos que
se quer concretizar e que estão impressos na Constituição.
Uma vez que a premissa constitucional faz uma demarcação relativamente
precisa dos termos aos quais estão referenciados os propósitos de enriquecimento
da nação (pautada pelos aspectos da justiça social), os quais a tornará potencial e
programaticamente endinheirada para os fins da ampla dignificação da existência
material, concebe-se que a todos é possível assenhorear-se (comprando) dos meios
de produção e/ou de comercialização de bens e/ou de serviços para atingir-se os
objetivos que satisfaçam as necessidades primárias, secundárias, etc., da vida das
pessoas, seja de forma individual ou coletiva.
2 POPP, Carlyle. Responsabilidade Civil Pré-Negocial: o rompimento das tratativas. Curitiba: Juruá, 2008, p. 34.
10
É fato (e incontestável é o princípio) que o cerne da questão, ou, da finalidade
da norma constitucional, quando da regulação programática da atividade econômica,
é a efetividade da dignidade da pessoa humana, conforme prescrito no artigo 1.º, III,
da Constituição Federal. Depreende-se, entretanto, que não só a variável
identificadora do que deve ser feito está prescrita para os fins pretendidos do
sistema atual, mas, também, o delineamento da parcela que faz perceber o efeito
prático destes projetos sociais faz-se conhecer pelo regime capitalista que se
imprime ao modelo que será analisado.
É neste sentido que se perquire uma leitura de fundo para identificar o liame
que dá ensejo aos aspectos da realidade empresarial que ora se extrai da
Constituição Federal para consecução desta averiguação acadêmica.
Mas, antes de avançar no tema, outro aspecto deve ser considerado. O
art.170, da CF/88, prescreve no caput que a finalidade da ordem econômica é
assegurar aos seus destinatários existência digna. Esta manifestação, através de
contratos ou de políticas econômicas, deve estar conformada com “os ditames da
justiça social”, sob pena de inconstitucionalidade dos feitos.3 Importante destacar
que a categoria justiça social não se confunde com os conceitos de direitos sociais
previstos no art. 6.º ao 11, ou, ainda, com os preceitos em específico da Ordem
Social relacionados a partir do art. 193 da CF/88.
Evidentemente que a teoria da justiça social, por si só, é suficiente para dar
ensejo a um trabalho de porte que não o pretendido nesta disciplina, pois não é o
foco deste trabalho. Quer-se aqui apenas dizer que esta condicionante do artigo 170
é uma atenção pontual e contextual que deve ser dada quando da operacionalização
da atividade econômica, pois conforme está escrito, esta atividade não pode ser
desdobrada à revelia dos critérios positivados que configuram os amplos aspectos
da mecânica social projetados e estabelecidos pelo legislador constituinte.
Observe-se que da seara filosófica acerca da justiça, alguns conceitos devem
ser relembrados (sem a pretensão de esgotá-los), tais como, i) da justiça comutativa:
sendo o que é devido nas relações entre os particulares; ii) da justiça distributiva:
sendo aquilo que a comunidade deve aos particulares; iii) da justiça social: sendo
aquilo que os particulares devem à comunidade.4 Naturalmente que os aspectos
3 POPP, 2008, p. 67.
4 BARZOTTO, Luis Fernando. Justiça Social – Gênese, estrutura e aplicação de um conceito. Disponível em: <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_48/artigos/ART_LUIS.htm#II>. Acesso em: 05 abr.2011.
11
qualitativos e quantitativos dos diversos vetores que possibilitam o tráfego de tais
“bens”, entre os mencionados setores da população, definitivamente, dependem das
várias características que são inerentes a cada ordenamento jurídico.
Quando o artigo 170 da CF/88 reclama o dever de observar-se a
conformidade dos ditames da justiça social para qualificar o conceito de existência
digna, a qual deve estar assegurada pela ordem econômica, vincula-se o preceito,
então, na exata medida da igualdade e/ou desigualdades dos fatores econômicos
que existem na realidade de mercado, os quais estão interagindo livremente (em
operação), pelos mecanismos e meios próprios que melhor traduzem os fins das leis
puramente econômicas. Esta lógica não é a que nasceu no berço da Ética à
Nicômaco,5 muito menos é a que se prestou para melhor compreender o conceito de
justiça social nos tempos atuais, mas, sim, constituiu “o mercado pró-global” como
ferramenta ou caminho para se atingir os objetivos sociais genericamente
estabelecidos na Constituição Federal.
No que tange às regras institucionais de mercado, algumas importantes
considerações devem ser feitas, sem a influência do observador do direito positivo,
as quais, primacialmente, podem bem ser explicadas pela ciência da economia
política.
Preliminarmente, deve-se conceber alguns conceitos básicos que explicam o
fenômeno denominado mercado, o qual integra o escopo do presente trabalho.
Carlos GALVES descreve uma noção de mercado anotando que, “na
linguagem comum, é o lugar – localidade, terreno, edifício -, onde se negociam
certas coisas. O conceito econômico, porém, é diferente, interessando-se antes
pelas relações econômicas do que por sua ubicação (sic): mercado é o conjunto das
relações de demanda e oferta, a propósito de certa coisa ou serviço úteis.”6
Este autor sugere um cenário pelo qual se pode visualizar, imaginariamente,
todos os homens do planeta fazendo seus respectivos negócios num dado
momento, ou num dado dia, nas circunstâncias que se apresentam as operações
mercadológicas de rotina. Da apreciação deste fenômeno pode o infante-
administrador perguntar: de quem é o comando diário, instantâneo, oportuno, ou
pontual, para determinar preços e decidir quais negócios fazer, etc.?
5 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução Julián Marias. Madri: Centro de Estudios Constitucionales, 1999.
6 GALVES, Carlos. Manual de Economia Política Atual. Ed. Forense Universitária: Rio de Janeiro, 2004, p. 216.
12
Aliás, perpassa por esta questão o objeto de estudo da economia, para a qual
o grande desafio desta ciência é identificar quais são as leis que regem os fatos da
micro e da macroeconomia.
Naturalmente, esta resposta está na essência do próprio mercado. É ele
quem faz todo o movimento (a atividade) negocial, envolvendo indivíduos, empresas
e Estado.
As hastes deste diapasão chamado mercado têm nome, a saber: demanda e
oferta. Estas são estudadas pela parte da economia denominada “circulação”. Nesta
vertente da ciência, procura-se compreender como os bens, as utilidades, os
serviços, etc., passam dos produtos para os adquirentes, ou seja, “do produtor para
o comerciante, e deste para o consumidor, ou para o investidor”.7
No procedimento de troca concorda-se entre si a demanda (compra) e a
oferta (venda) de mercadorias ou serviços que integram a atividade econômica,
pelas quais se consubstanciam o fenômeno da vontade de comprar, ou o desejo de
se satisfazer alguma necessidade em virtude da sobrevivência necessária do
homem, ou por simplesmente estar influenciado pelo capricho ou por uma
propaganda qualquer de “determine” um novo conceito ou estilo de consumo.
Nisto consiste a importância do mercado amplamente estruturado para bem
atender as expectativas do demandador e do ofertador, os quais concatenam-se
pelos aspectos das ações e reações próprias as quais são inerentes ao comércio
categorizado em mercado de produtos e mercado de produtores. Diz-se próprias
pelo fato que a dinâmica de mercado não tem por motivador algum regime em
específico que o controle externamente em seus meios, como, por exemplo, em
economias planificadas.
O sistema “mercado” possui fundamentos próprios, que deve funcionar em
função de seus próprios dinamismos, e esta característica somente será latente –
sensível ou quase-real – se os indivíduos que o integram forem livres para a
consecução de seus fins empresariais. Nas palavras do mencionado autor, “o
sistema de mercado cabe em quatro palavras: demanda, oferta, preços, e
liberdade.”8
Curioso é observar o fenômeno coloquial sobre a categoria mercado quando
alguém diz (ou quer-se dizer) que este ente possui vida em si mesmo.
7 GALVES, Carlos. Manual de Economia Política Atual. Ed. Forense Universitária: Rio de Janeiro, 2004, p. 207.
8 Id., p. 217.
13
Evidentemente trata-se de uma figura de pensamento – prosopopéia (ou
personificação)9 que atribui característica de um ser vivo para um fenômeno
econômico que reage aos mais diversos interesses de seus agentes na busca de
seus ideais (por exemplo: quando se comercializa títulos de crédito em bolsa de
valores).
Ou ainda, considerando-se um estado ideal de liberdade de mercado para o
desenvolvimento da atividade econômica, importante observar como se dá ou como
se organiza os meios de produção para que os objetivos e metas sejam atingidos
pelo sistema capital. Paula Andrea FORGIONI trata do tema (o mercado) como
“fenômeno poliédrico”.10
Para exemplificar a busca incessante da eficácia plena dos propósitos do
mercado (que tem “sentimentos”): os empresários criam métodos e procedimentos
diferenciados com o intuito de melhorar ou inovar as estruturas de operações
negociais que fazem concorrer no âmbito da economia.
Gláucia Maria Vasconcellos VALE apresenta uma importante reflexão dos
motivos pelos quais se formam territórios vitoriosos no plano dos mercados,
discutindo o papel das redes organizacionais.11 Nesta obra pode-se perceber uma
sistemática de atuação de empresas pelo que ela classifica de “capital relacional”,
pois as mesmas, deste contexto, tendem a se organizarem em redes de diversos
tipos e modelos para se consolidarem e se desenvolverem, tornando-se cada vez
mais competitivas nos mercados que atuam.
Os mercados podem ser classificados de diversas maneiras, dependendo de
qual ponto de vista quer-se observar. Carlos GALVES relaciona as perspectivas
quanto ao âmbito espacial coberto pelas relações de demanda e oferta, quais sejam:
a) quanto ao objeto visado pelas demandas e ofertas; b) quanto à legalidade das
operações; c) quanto à regulamentação12; e, d) quanto ao número de participantes.
Esta é a que mais interessa ao economista, pois é a que melhor pode explicar a
9 CADORE, Luís Agostinho. Curso Prático de Português. Ed. Ática: São Paulo, 1995.
10 FORGIONI. Paula Andrea. A Evolução do Direito Comercial Brasileiro: da mercancia ao mercado. São Paulo:
Editora Saraiva, 2009, p. 187. 11
VALE, Gláucia Maria Vasconcellos. Territórios Vitoriosos: o papel das redes organizacionais. Ed. Garamond: Rio de Janeiro, S. d. 12
“Quanto à regulamentação, o mercado pode ser classificado em: a) o mercado organizado, ou regulamentado, quando o Estado edita lei regulamentando as suas atividades, no que respeita às pessoas que dele participam, aos bens negociáveis, à fixação dos preços, aos modos de pagamento etc.; b) o mercado livre, quando não está sujeito a regulamentação especial” (GALVES, Carlos. Manual de Economia Política Atual. Ed. Forense Universitária: Rio de Janeiro, 2004, p. 218).
14
formação dos preços em geral. O autor relaciona como espécies desta classificação
“a) o mercado da livre concorrência; b) o mercado do monopólio; e, c) o mercado da
concorrência imperfeita.”
Quando se aborda o tema relativo à economia de mercado, quer-se dizer que
a premissa deste contexto é a verdadeira democracia econômica que norteia os
negócios como um todo no território nacional. Este mercado possui atributos
próprios de funcionamento, como qualquer outro da esfera globalizada, e como tal é
impulsionado pelas mesmas leis econômicas que regem as ordens financeiras de
qualquer país civilizado a partir dos ensinamentos liberais.
Entretanto, não se pode olvidar que a ciência do Direito é instrumental útil,
necessário, e positivamente posto para revelar quais são os pontos demarcadores
de uma área que supostamente podem delimitar a liberdade não-anarquista, a qual
deve ser, também, desprovida de restrições subjetivas por eventuais interpretações
errôneas do sistema jurídico que enquadra os preceitos da legislação. Neste sentido,
os mercados também são destinatários das diversas regulamentações impostas pelo
Estado, seja qual for seu regime político e/ou econômico.
No Brasil, pode-se mencionar, como exemplo do marco regulatório dos
mercados, a própria Constituição Federal de 1988 (nos pontos anteriormente
abordados, dentre outros); a lei de repressão aos abusos do poder econômico;13 a
lei dos crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de
consumo;14 o Código Civil; o Código Penal; etc., todos “visando ao seu
funcionamento livre de abusos”.15
1.2. EMPREENDEDORISMO LEGAL RELACIONADO AOS DITAMES DOS
PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA ORDEM ECONÔMICA
O vocábulo empreender16 é verbo transitivo direto e traduz o ato de colocar
em prática, por deliberação própria, a realização de [algum “projeto”]; neste contexto:
uma empresa, por exemplo. Ao se colocar uma empresa em funcionamento, e
13
Lei n.º 8.884, de 11 de julho de 1994 (também chamada de Lei Antitruste). 14
Lei n.º 8.137, de 27 de dezembro de 1990. 15
GALVES, Carlos. Manual de Economia Política Atual. Ed. Forense Universitária: Rio de Janeiro, 2004, p. 227. 16
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Ed. Nova Fronteira: Rio de Janeiro, S. d.
15
verificando-se que esta venha a atingir suas metas negociais, caracterizada estará a
capacidade de inovação do respectivo agente que tomou a iniciativa. Esta é a
essência do empreendedorismo: inovar no mercado, mas, não, porém, sem alguns
atributos mercadológicos que determinam - ou não - a continuidade ou a existência
da empresa.
Em termos de economia globalizada a capacidade de inovar não mais se
sustenta sozinha. Segundo Gláucia Maria Vasconcellos VALE, além da capacidade
de inovar, o empreendedor deve ter a capacidade de conectar-se com os demais
agentes econômicos, bem como deve ter habilidade suficiente para utilizar-se das
instituições em geral que funcionam como entes políticos para fomentar as conexões
diversas que perfazem e ampliam o leque dos relacionamentos empresariais.17
Neste sentido, o empreendedorismo ganhou nova conotação em tempos
atuais. O que prevalece em termos estratégicos para a consolidação de negócios
são as redes empresariais organizadas – de produção e distribuição. Cada vez mais
adquirem condições e habilidade para costurar e ampliar novos capitais
relacionais,18 cujo intuito exclusivo é reunir e aplicar os diversos recursos possíveis
com a finalidade precípua de se obter os melhores resultados financeiros (os lucros).
Perceba-se, não vai aqui qualquer insinuação abaixo da crítica à vista do
fenômeno em comento. Aliás, registre-se mais uma vez, o empreendedorismo é ato
voluntário, livre, incentivado, e apoiado pelo Estado, para a consecução de seus
próprios fins. Basta consultar a legislação pertinente para perceber-se, ainda, que o
empreendedorismo de fato é ferramenta útil, necessária e obrigatória, para o Estado,
quando quer e deve realizar os programas sociais estabelecidos pelo legislador
originário.
Sendo a natureza da finalidade do empreendimento egoística ou não,
organizado de forma individual ou coletiva, o fato é que, dentro dos limites da
legalidade, qualquer pessoa, física ou jurídica, provida dos necessários recursos
materiais, pode constituir uma empresa para bem explorá-la de acordo com os
17
VALE, Gláucia Maria Vasconcellos. Territórios Vitoriosos: o papel das redes organizacionais. Ed. Garamond: Rio de Janeiro, S. d., p. 88. 18
Id., p. 71. “Características e propriedades inerentes ao capital relacional: O capital relacional possui um
conjunto de características e propriedades, cujas identificação e explicitação permitem uma melhor
delimitação do fenômeno de interesse. Tais características e propriedades se situam em quatro áreas: i) o
reconhecimento da importância das interações entre relações sociais e mercantis; ii) a noção de que laços
fortes ou fracos podem ser tanto locais como globais; iii) a identificação das classes de recursos enraizados nas
redes; e iv) o reconhecimento do capital relacional como um tipo particular de capital.”
16
ditames do mercado. Trata-se de uma plataforma organizacional que, além de estar
fixada para os fins negociais a que se propõe, deverá estar voltada, também, para
os fins coletivos e sociais previstos na legislação. Eis os motivos, então, de o Estado
apoiar a livre iniciativa para os fins empresariais.
Para que seja possível operacionalizar este apoio às pequenas, médias, e
grandes empresas, necessário se faz que o Estado esteja aparelhado com um
ordenamento jurídico que repita ou esteja em perfeita consonância com os anseios
do meio empresarial e da sociedade como um todo. Da sociedade vem a demanda
pelo desenvolvimento do sistema econômico, e o Estado, na qualidade de
fomentador, regula os imperativos das diversas plataformas de trabalho público e
privado que levam a conceber os resultados pretendidos pelos produtores e
distribuidores dos bens de consumo (mercadorias e serviços).19
Em função da ingerência reclamada do Estado, o qual deve atuar para
atender aos fins individuais, coletivos, e sociais, em função dos quais está inserido
no sistema econômico, outorga-se-lhe a prática legiferativa para regular o processo
de produção e circulação de bens. Neste contexto, consubstancia sua atuação
através dos preceitos constitucionais em vigência. Estas premissas são os princípios
constitucionais da ordem econômica, encontrados no artigo 170 da Constituição
Federal de 1988.
Da simples leitura destes tópicos verificar-se-á que o Estado não prescinde da
possibilidade (e necessidade) de desenvolver-se economicamente, pois é nesta
vertente que o programa constitucional pode e deve ganhar relevo em sua plenitude.
Entretanto, registre-se, este pretendido desenvolvimento tem uma finalidade bem
definida, qual seja: propiciar a todos existência digna, “segundo os ditames da
justiça social.”
Referido artigo da Constituição relaciona os seguintes princípios gerais da
atividade econômica, quais sejam: i) soberania nacional; ii) propriedade privada; iii)
função social da propriedade; iv) livre concorrência; v) defesa do consumidor; vi)
defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o
impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e
prestação; vii) redução das desigualdades sociais e regionais; viii) busca do pleno
19
A Constituição Federal (1988) “é o instrumento de proteção dos chamados Direitos Humanos. É o ser humano a razão de existência da sociedade, logo ele deve ser o principal foco das atenções” (POPP, 2008, p. 44).
17
emprego; e, ix) tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte
constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.
A República Federativa do Brasil abre a sua Constituição e já no inciso I do
primeiro artigo declara constituir-se em Estado Democrático de Direito e que seu
fundamento, dentre outros, se assenta na soberania. O princípio constitucional
econômico da soberania nacional, previsto no inciso I do art. 170, também traduz a
idéia de autonomia e independência no planejamento e execução de sua política
econômica.
Essencialmente, esta afirmação tem amplo valor para os fins formais que
caracterizam a existência e o reconhecimento de um Estado, pois é exatamente em
função da soberania que o mesmo pode ser senhor de seu território, e nele governar
conforme os ditames de sua organização interna.
Ocorre que em se tratando de economia, especialmente em função da
globalização, este princípio, sofre, na materialidade, os efeitos da vulneração que lhe
sobrevém em decorrência da dinâmica dos mercados. Aliás, ainda que se desejasse
estar isolado das influências externas dos mercados, isto não seria possível, pois,
em tempos hodiernos, o desenvolvimento nacional somente pode ocorrer se a
política econômica local estiver em consonância com o “encaminhamento da política
econômica internacional”.20
Outrossim, a propriedade privada no contexto da Constituição possui uma
finalidade específica, que é a proteção pessoal. Se esta propriedade não estiver
revestida desta função, a ideologia constitucional está autorizada a desconsiderá-la
como direito fundamental e, portanto, de dar-lhe a proteção legal.
O aspecto mais importante do princípio constitucional econômico da
propriedade privada (art. 170, II, CF/88) reside no fato de este imprimir uma
especialidade acerca da detenção e/ou do domínio sobre os bens de produção. Ora,
diante do contexto do poder de usar, gozar, e dispor, dos bens de produção, verifica-
se também que nesta tulha encontra-se o dever de tal proprietário em observar a
finalidade a que veio este parque-capital, senão que a todos deve ser assegurado
existência digna, “conforme os ditames da justiça social”.
Neste sentido, a propriedade dos bens de produção não pode ser tomada de
forma egoística, pois está adstrita à sua necessária função social, a qual deve ser
20
PETTER, Lafayete Josué. Princípios Constitucionais da Ordem Econômica. 2.ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 212.
18
exercida racionalmente. Esta propriedade (ideal) viabiliza o projeto constitucional
pelo fato de permitir e suportar a livre iniciativa empresarial, cuja característica
denota a própria atividade econômica por excelência.21
O terceiro princípio é o da função social da propriedade. Em termos gerais, a
propriedade deixou de ser um direito intangível (subjetivo), disposto exclusivamente
aos fins interesseiros de seu detentor. Toda e qualquer atividade econômica
depende de recursos materiais para sua consecução, no caso, os bens de produção.
Tais bens, móveis – máquinas operatrizes, veículos, equipamentos diversos, etc. – e
imóveis – terrenos, barracões, etc., são adquiridos, organizados, e operados
conforme os fins do objetivo social a que ser quer atingir.
O fato de estes bens representarem maior ou menor capital social empregado
no negócio que se quer perquirir não traduz, correspondentemente, maior ou menor
responsabilidade com o princípio comentado, uma vez que o comando operacional
deste parâmetro não se restringe aos aspectos qualitativos ou quantitativos das
mencionadas exações de produção e/ou de comercialização abarcadas pelo
empreendedor.
Uma vez que tais recursos são empregados na forma e pelos fins
relacionados a tal ordem, é dever do investidor consignar em seu negócio que tal
atividade somente terá condições de desenvolver-se com sustentabilidade legal se
observado que os elementos de riqueza social também serão privilegiados com os
resultados positivos que serão produzidos em tais propriedades. E não apenas isso,
esta sensibilidade requer remodelação contínua às constantes mudanças que
operam no dia a dia, o que lhe imprime um caráter dinâmico ao conceito estudado.22
Importante princípio constitucional da ordem econômica é o da livre
concorrência (art. 170, IV, da CF/88), pois nele se adscreve uma das relevantes
matérias de estudo da economia política, qual seja: o fenômeno da demanda e da
oferta em livre curso para troca de bens e serviços de qualquer natureza.
Em economias planificadas, os meios de produção são controlados ao ponto
de se tornar padrão as matrizes de custos que formam os preços de venda. Nada
pior do que isto para o desenvolvimento econômico, e até humano. A livre
concorrência viabiliza a competição saudável da oferta, propicia melhoramentos nas
21
PETTER, 2008, p. 231. 22
Id., p. 232.
19
diversas áreas humanas e sociais, e pode configurar crescimento sustentável dos
diversos mercados que operam no atendimento das necessidades pessoais.
Entretanto, este atributo da economia possui limites estruturais. Por exemplo:
o Estado não pode concorrer com empresas particulares para atender demandas
que não sejam imperativos da segurança nacional ou de relevante interesse coletivo
(art. 173 da CF/88). Da mesma forma, menciona-se a Lei n.º 8.884/1990 a qual veio
para proteger a ordem econômica, reprimindo o abuso do poder econômico que vise
à eliminação da concorrência, à dominação dos mercados e ao aumento arbitrário
dos lucros. Estas regras preservam a qualidade do sistema econômico adotado, cuja
higidez preserva as boas bases da livre iniciativa.23
Outro importante mecanismo de defesa da ordem econômica é a defesa do
consumidor, levada a cabo com o advento da Lei n.º 8.078/1990. Destinado
exclusivamente para regulamentar a política nacional das relações de consumo,
acaba por induzir ao desenvolvimento econômico pretendido pelo legislador, pois é
da transparência no trato com os consumidores que os fornecedores em geral
poderão estabelecer-se numa rota de agregação social reclamada pela Constituição.
Deste preceito, nasce o desdobramento das atenções que devem ser dadas à
dignidade da pessoa humana, saúde e segurança, proteção de interesses
econômicos mútuos, melhoria da qualidade de vida, etc., dos destinatários do
sistema econômico, pois “além de preocupação constitucional, é princípio geral de
Direito”.24
A conotação que deve ser destacada com o advento da legislação
consumerista é o fato de o homem deixar de ser objeto da mercantilização, e passa
a ser, efetivamente, um sujeito de direitos em face dos novos valores que devem ser
praticados para privilegiar a personalidade humana em todos os seus aspectos
subjetivos. Neste contexto, fica necessariamente preterido o caráter individualista e
patrimonialista das relações mercantis, pois o núcleo do sistema passa a ser o
consumidor em todas as suas perspectivas existenciais.25
Da mesma forma, os princípios constitucionais econômicos do meio
ambiente,26 da redução das desigualdades sociais e regionais,27 do pleno
23
PETTER, 2008, p. 247. 24
POPP, 2008, p. 59. 25
Id., 260. 26
Art. 170, VI, da Constituição Federal de 1988. 27
Art. 170, VII, da Constituição Federal de 1988.
20
emprego,28 e do tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte,29 estão
voltados com a finalidade precípua de proteção da atividade econômica.
Quer-se dizer “precípuo” pelo fato de que no contexto regulado destas
matérias existirem diversas outras nuances que podem deturpar a interpretação
quando da leitura da legislação que rege o contexto destas vertentes constitucionais.
Sobre o meio ambiente há farta legislação infraconstitucional a qual regula os
interesses individuais, coletivos, difusos, etc., relacionados ao tema. O fato é que
para desenvolver-se atividade econômica no Brasil, o meio ambiente deverá ser
respeitado em todos os termos e condições impostas para preservação da natureza
(em sentido lato).
Uma característica importante que se denota aos princípios elencados nos
incisos VII, VIII, e IX, do artigo 170, da CF/88, é o fato de os mesmos poderem ser
objeto de regulação pelo mecanismo de incentivos fiscais os quais podem ser
concedidos pelos governos federal, estaduais, e municipais. Através desta
ferramenta é possível colocar em curso, e assim também é feito, os procedimentos e
atitudes políticas que minimizem as mazelas reclamadas nesta “doutrina”
constitucional.
Ainda no referido artigo, encontrar-se-á o fundamento legal para o livre
exercício de qualquer atividade empresarial, sem que haja obrigação de obter-se
autorização prévia por parte de qualquer órgão público, ressalvados os casos
excetuados pela lei (vide parágrafo único).
Mas, o que chama atenção nesta parte do trabalho é o conteúdo comum da
principiologia apresentada. Se bem analisados sob a ótica da crítica apreciável,
perceber-se-á que cada inciso do artigo 170 da CF/88 traz em seu bojo um misto de
a) parcial realidade factual, d´antes e atual à Constituição; b) realidade em potencial
para condições sociais do statu quo e ad quem; c) programação ideal para o futuro
do subjuntivo; e, d) o subjetivismo do comando relacionado ao desenvolvimento
econômico possui endereço certo, a carta magna.
Referidas características tem atributos próprios que podem justificar tais
entendimentos cuja concepção está pautada na própria realidade dos fatos
empresariais e sociais. O modelo econômico que está impresso atualmente (e em
funcionamento) no Brasil não atende, ainda, aos ditames da Constituição, uma vez
28
Art. 170, VIII, da Constituição Federal de 1988. 29
Art. 170, IX, da Constituição Federal de 1988.
21
que a mesma requer ainda providências estruturais inafastáveis para melhorar-se a
realidade do mercado.
Não pode o legislador omitir-se na tarefa de criar circunstâncias legais que
venham confirmar objetivamente ou viabilizar positivamente os propósitos do
legislador originário. É evidente que tais disposições, colocadas sobre a forma de
princípios, nem sempre podem implicar na eficácia pretendida pelo comando
genérico destas normas, pois carecem de força normativa na espécie.
Lafayte Josué PETTER sintetiza uma advertência pertinente à questão,
traduzindo os ensinamentos da hermenêutica moderna, dizendo “que não é este ou
aquele dispositivo isolado da Constituição que permite captar o sentido da ordem
econômica, mas sim todo o contexto de suas disposições.”30 Destarte, finaliza uma
idéia fazendo advertência que a conquista da efetividade desta principiologia
depende de “coercibilidade que singulariza as normas jurídicas no contexto da
atividade econômica”, pois, em linhas gerais, o sistema não cede aos propósitos
requeridos para o grande programa de cidadania que tem a dignidade da pessoa
humana como núcleo de todo o ordenamento em comento.
Assim, é preciso dizer: a livre iniciativa é inerente aos aspectos da “ação” do
empreendedor, mas o amplo fundamento legal que lhe magnetiza nos fins da
atividade econômica não encontra ressonância nos propósitos constitucionais para a
concretização dos efeitos previstos pelos princípios relacionados à área. Falta, neste
ponto, uma conexão de regras objetivas e claras que poderiam sistematizar a
efetividade de tais programas-fruto dos aspectos imaginários que atualmente
entrelaçam os elementos do mosaico do teto republicano nacional.
1.3. ATIVIDADE EMPRESARIAL E SUAS CARACTERÍSTICAS ATUAIS DE
ATUAÇÃO: CAPITALISMO CONSTITUCIONAL x CAPITALISMO GLOBAL
Não há dúvidas de que o capitalismo é um sistema econômico, e como tal
duas são as suas componentes para lhe caracterizar a existência, quais sejam: a
propriedade privada dos meios de produção, somada à liberdade para empreender.
30
PETTER, 2008, p. 305.
22
Vale relembrar que “sistema econômico é a maneira como está organizada e
como funciona a economia de um país.”31 E ainda, pode-se distinguir o que seja
sistema e regime econômico: “o sistema é o modelo ideal, ou abstrato, de
organização da economia de um país; o regime é o modo como o sistema está
realizado num determinado país.32
Ainda que determinado Estado adote o sistema de democracia econômica,
nada garante que o seu funcionamento, ou o seu grau de desenvolvimento, será
semelhante aos resultados obtidos de outro contexto nacional, pois os aspectos
práticos da vida diária dão ensejo a um regime próprio cuja peculiaridade lhe
imprimirá um atributo de exclusividade. É por isso que, eventualmente, se diz:
regime econômico do Brasil; ou: regime econômico do país tal.
Analisou-se anteriormente alguns aspectos do art. 170, II, da CF/88, acerca
do princípio constitucional da propriedade privada, cujo principal fator que recai
sobre este direito é a prerrogativa de usar, gozar, e dispor livremente dos bens de
produção. Pois bem, no que tange ao exercício da atividade do capitalista, ao
observar este princípio, é o fato de a ele não estar mensurado, pela legislação, qual
é o grau de liberdade que lhe cabe para manejar os recursos de geração de
riquezas.
Quer-se dizer: ainda que o Estado diga qual é o sistema econômico que deve
ser operado por seus agentes, não consegue o “príncipe” encontrar uma fórmula
“matemática” para bem dimensionar qual é o conjunto de variáveis que poderia
imprimir uma característica peculiar ao regime econômico adotado pelo mercado.
Isto ocorre porque ao Estado cabe somente o poder de ingerência, mas não o de
gerenciamento direto dos meios que transformam a realidade econômica.
Eis aqui o elo que liga os atributos negativos da principiologia constitucional
da propriedade privada com o da livre empresa. A economia de mercado é fruto da
livre iniciativa de seus cidadãos concatenada com a propriedade privada, e neste
contexto é operacionalizada, objetivamente, em função de seus próprios interesses
intrínsecos, e, subjetivamente, para os aspectos extrínsecos ao fenômeno
puramente econômico.
Assim, em que pese haver implicação legal superior reclamando pelo
burilamento dos negócios particulares aos fins sociais programados pelo sistema
31
GALVES, 2004, p. 479. 32
Id.
23
jurídico, é de apontar-se que o capitalismo possui uma chamada própria - e natural -
para os fins de acumulação de riqueza, alheia ao controle estatal; e ainda que o
norte aponte para o outro prato da balança (a sociedade civil) a fidelidade sempre
recai à apropriação do dinheiro para a auto-afortunação.
Entretanto, não há dúvidas também que, no caso do Brasil, o artigo 170 da
CF/88, prescreveu o capitalismo como plataforma de sua atividade econômica, mas
este modelo não ficou imune à orientação de assegurar-se a todos, sob este
fundamento, a existência digna quando da exploração dos meios de produção.
A propósito, é aqui, então, que entra em relevo a necessidade de refletir-se
sobre o que é crescimento econômico e o que é desenvolvimento econômico, pois
somente com a evolução econômica positiva é possível dizer-se se determinado
mercado está a viabilizar ou a ceder aos fins propostos pela Constituição, ou seja,
se está a realizar a efetiva e constante melhoria das justas condições de vida da
população.33
As empresas de um modo geral integram sistemas econômicos, e como
células que são de dinâmicos organismos (ou setores) de negócios nacionais e
internacionais, atuam e sofrem a incidência de mudanças constantes, cuja
metamorfose é resultado de tendências diversas da economia global. Estas
influências (desejáveis ou não) quase sempre são incontroláveis, pois os vetores
que as perfazem possuem forças de origens endógenas e exógenas ao sistema, e
como tais, obrigatoriamente, transcorrem a evolução da economia local, regional e
global por um paralelo muito simples: a sobrevivência da empresa no transcurso do
tempo indeterminado pelo sujeito.
É de considerar-se que a evolução econômica (no gênero) de um país (ou de
uma empresa) pode ser: no sentido do mero crescimento34 ou da estagnação, ou da
involução ou do desenvolvimento propriamente dito.
33
Neste ponto do trabalho, far-se-á uma breve análise dos aspectos que diferenciam a categoria desenvolvimento econômico de crescimento econômico, pois aquele fenômeno está diretamente relacionado aos aspectos internos das empresas em geral, as quais funcionam como células de transformação social para os fins do grande projeto nacional de cidadania (no qual tem a dignidade da pessoa física como núcleo de todo o sistema). 34
Segundo Carlos GALVES (op. cit., p. 417), há vários critérios para se medir se determinado país está ou não em desenvolvimento econômico. O principal fator de medição é o Produto Nacional Bruto (soma dos produtos e serviços produzidos) relacionado ao crescimento da população num determinado período. Se o crescimento do PNB for superior ao crescimento da população, pode-se dizer, por este método, que houve desenvolvimento. Mas, se for igual, por exemplo, e em se verificando que houve uma evolução positiva da economia, será o caso, apenas, de crescimento. Se esta relação for de modo inverso, estará caracterizada uma involução, pois, neste caso o crescimento da população é maior que o PNB. A estagnação ocorre quando “a
24
Sem pretensão de se verticalizar na análise destes conceitos da economia
política, vale aqui, academicamente, o entendimento ensaiado para aplicação de
alguns fins dentro da ciência do Direito. O objetivo da República é o
desenvolvimento econômico sustentado, porém o que se diz desta fórmula não se
traduz em como se faz para equacionar esta variável conjugando-a com o fenômeno
chamado liberdade, uma vez que este atributo possui um sem-número de definições
e modos de operar-se em seus meios e propósitos empresariais.
Nos tópicos seguintes, far-se-á um melhor detalhamento de como as
empresas e os contratos se inserem no contexto dos negócios empresariais. Por
ora, vale estudar apenas quais são as condicionantes da liberdade em comento,
pois esta, mormente, se fia para os efeitos da globalização, e não, essencialmente,
para os aspectos internos propriamente ditos.
Sobre o conceito de globalização, vale mencionar, de passagem, o
entendimento prático de este fenômeno ser a extinção formal dos limites geográficos
(ou, nas palavras de Domingos Leite LIMA FILHO,35 “o processo de expansão das
fronteiras mundiais, em particular no âmbito econômico”) das nações diversas que
integram o sistema capitalista. Não só dos limites geográficos, mas dos arranjos
sócio-culturais que também regridem no sentido de adequar-se a homogeneização
direcionada aos valores institucionais do mercado sem fronteiras.
Importante destacar que este processo é histórico, o qual sempre se
desenvolveu a partir das relações sociais de produção e de comercialização, desde
o advento do mercantilismo, entretanto esta dinâmica não está desprovida de um
trilho condutor que regule o trato destas interações entre os setores públicos e/ou
particulares, pois a Constituição tem um papel definitivo para regular o
disciplinamento destes vínculos,36 sejam eles no modo qualitativo ou quantitativo.
Não se tem como falar de globalização sem que esta discussão perpasse
obrigatoriamente pelas categorias de o capital37 e de [os sentidos] do trabalho.38
Mais ainda, tais temas são abrangentes e variadas fontes podem inaugurar e
delimitar os debates em torno deste plexo cujos vieses afetam diretamente as
demanda agregada, ou o dispêndio nacional, não cresce igual à oferta agregada; os empresários não investem, ou, se investem, tem-se o aparecimento da capacidade produtiva ociosa, geral ou setorial, na economia.” 35
LIMA FILHO, Domingos Leite. Dimensões e Limites da Globalização. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 2004, p. 9. 36
POPP, 2008, p. 49. 37
MARX, Karl. O Capital. Ed. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 2001. 38
ANTUNES, Ricardo. Os Sentidos do Trabalho. Boitempo Ed.: São Paulo, 1999.
25
discussões em torno dos aspectos jurídico-político, econômico, ideológico, e
psicossociológico.
Até bem recentemente (2.ª Guerra Mundial)39 as economias continham
diretrizes de planejamento com abrangência local e regional. A partir do pós-guerra,
e especialmente com o advento da revolução industrial, a globalização passa a se
desenvolver de forma contínua e progressiva. Em sua plataforma de realização
sempre houve o patrocínio do Estado, com a combinação das relações sociais de
produção.
Já se relacionou os fundamentos constitucionais do Brasil que dão suporte ao
sistema econômico adotado nesta economia. Falta, neste momento, refletir um
pouco melhor de como se dá o regime que opera o capitalismo na essência
administrativa das empresas nacionais, especialmente quando em cotejo com os
amplos conceitos do sistema econômico em referência.
Sempre se levanta pesadas críticas ao capitalismo posto em andamento nos
países de livre mercado, mas deve-se dizer que o regime adotado pode ser avaliado
de forma despretensiosa, ainda que pesem alguns ou vários fatores de negatividade
do fenômeno, pois, no aspecto ideológico da economia, esta vertente pode ser um
interessante caminho para se obter os melhoramentos pretendidos para a vida de
seus cidadãos. E, sob o viés da política adota, o contexto pode ser indevidamente
pichado pelos socialistas de plantão, talvez por não se distinguir adequadamente
quais são as reais classificações interativas dos vetores que compõem o referido
sistema.
Por exemplo, a mencionar-se a civilização do automóvel:40 segundo Thomas
GOUNET (crítico belga do toyotismo e de seus mecanismos de funcionamento e
dominação), o próprio capitalismo cria condições objetivas para a sua ruína, quando
a) nutre a exploração dos trabalhadores; b) aumentando a exploração dos operários,
os capitalistas criam e agravam a crise econômica, pois incrementam a capacidade
de produção pensando em vender tudo o que produz, em detrimento dos
concorrentes; e, c) buscando desenfreadamente o lucro, acumula riquezas de forma
39
“Ainda que sob perspectivas analíticas e teóricas distintas, é possível encontrar um certo consenso na consideração de que o período de relativo equilíbrio ou de expansão da economia mundial iniciado ao final do segundo pós-guerra teve o seu esgotamento no decorrer nos anos de 1970” (LIMA FILHO, Domingos Leite. Dimensões e Limites da Globalização. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 2004, p. 10). 40
GOUNET, Thomas. Fordismo e Toyotismo na Civilização do Automóvel. Boitempo Ed.: São Paulo, 1992.
26
egoística, e, neste caso, o próprio sistema capitalista estará sendo atingido pela
crise econômica.
Em linhas gerais, o autor preconiza que este sistema econômico é o mal do
trabalhador, que vive explorado e escravizado em sua própria essência no regime
que se apresenta ao mundo atual. Entretanto, algumas considerações devem ser
feitas! Não é por coincidência que se está a abordar a questão dos automóveis
neste ponto do trabalho, pois, para contextualizar a projeção desta dissertação,
provocativamente ao curso natural da história, a mesma será finalizada com
questões político-jurídicas acerca destes abusos do capitalismo no setor industrial
(local) do café.
Pelo que se depreende da história política e econômica mundial, o capitalismo
foi e está sendo o último reduto que pode viabilizar um sistema de troca e circulação
de bens e serviços que melhor atenda aos interesses da população. Basta verificar
qual é a lógica psicocultural, biológica, etc., que opera neste contexto econômico e
social. O homem jamais poderá prescindir de sua ampla liberdade, seja em qual
dimensão for. Em segundo lugar, a todos é conferido o poder formal de apropriar-se
dos necessários bens para auto-preservação, ou em “família”, enquanto ser humano
(seja em qual linha for as suas necessidades vitais).
Ocorre que o verdadeiro sentido do regime capitalista foi deturpado, o qual
veio para conferir aos seus destinatários amplos meios para prover-se dos
elementos necessários à subsistência. Lamentavelmente, a intendência organizada
em pessoa jurídica (a empresa), por exemplo, distorceu a ideologia do bem-estar e
transformou-a em berço de dominação irrestrita sobre os que efetivamente possuem
a capacidade de proceder ao metabolismo social (os trabalhadores).
Rememore-se o episódio da seguinte cena do teatro da vida, denunciada por
Thomas GOUNET (na Bélgica, em agosto de 1999):
“Desde que Louis Schweitzer, o dirigente da Renault, anunciou, em 27 de fevereiro de 1997, o fechamento da fábrica de Vilvorde, apesar de ser essa uma unidade moderna, cheia de robôs e com boa performance no plano da produtividade, da flexibilidade e da qualidade, cada trabalhador europeu sabe que não está mais protegido, mesmo se aceita todas as concessões possíveis e imagináveis feitas a seu patrão. Uma decisão na cúpula do poder capitalista e ele é jogado na rua, como um incompetente. É a lei da ditadura do capital.”
27
É sobre este sentido, modo, jeito, postura, ou atitude, etc., de manejar o
capital, que se está a pensar se há ou não limites jurídicos objetivos no contexto da
ideologia social efetivamente praticada pelas empresas em geral. Esta realidade
deve ser analisada e colocada em cotejo com a ideologia que está preconizada pela
Constituição Federal de 1988.41
Perceba-se que esta chamada à comparação do que acontece no mundo
factual da arena capitalista com os preceitos cidadãos da Constituição merece um
aprofundado estudo da qualidade legiferante do poder político. Isto é, não basta o
diploma legal dizer o que deve ser feito (pela pauta da principiologia), mas, em
muitos casos, o certame deverá ser desdobrado, quantas vezes necessário, em
legislação infra-constitucional até encontrar-se o pranchão que dá sustentação e
direciona a caminhada rumo aos objetivos concretos de realização plena dos direitos
do homem e da mulher (aqueles que perfazem o núcleo do sistema, traduzido em
dignidade humana).
Evidentemente que nem todas as empresas estão preparadas e sustentadas
para agir nesta direção, pois um outro fator que deve ser levado em consideração é
a ineficácia estatal na condução dos “negócios” políticos e sociais, pois sequer
consegue (ou, jamais conseguirá) dar concretude ao mandamento do “pleno
emprego”. Ou, porventura: não seria um paradoxo o Estado brasileiro instituir o
capitalismo como plataforma de seu sistema econômico, e preconizar, nesta mesma
carta, que a ordem econômica se funda na missão, dentre outras, de buscar o pleno
emprego (art. 170, VIII)?
Não se quer conotar e/ou denotar aqui qualquer demérito para o grande
“projeto” da atual Constituição da República Federativa do Brasil. O objetivo desta
reflexão é demonstrar que está havendo no mundo ocidental, atores do mercado
global, um suposto erro de classificação da expressão fenomênica relacionada aos
propósitos das empresas no contexto do chamado globalismo.
É verdade que muitas empresas estão na direção certa para promover a
cidadania que requer o novo contexto ideológico das nações civilizadas, mas deve-
se dizer que parte dos empreendedores não percebeu qual o real sentido da
existência das pessoas jurídicas no contexto da necessária harmonização negocial
com os fins das pessoas físicas.
41
Em momento apropriado neste trabalho, será apresentado um exemplo deste mesmo fenômeno arbitrário que ocorreu em Curitiba – Paraná – Brasil, no ano de 2010.
28
Pior do que isto, é verificar que mais despreparado, ainda, está o legislador
quando deixa de fazer uma precisa intervenção no ordenamento jurídico criando leis
e regulamentos que possam sanear as distorções reclamadas pelos povos e nações
carentes de atenção e efetividade em seus direitos sociais.
1.4. CONTRATOS EMPRESARIAIS COMO FERRAMENTAS DE VIABILIZAÇÃO
ECONÔMICA: CARACTERÍSTICAS MERCADOLÓGICAS E ANTAGONISMO
SOCIAL
“A Toyota é apontada como a melhor entre seus pares e concorrentes em
todo o mundo pela alta qualidade, alta produtividade, velocidade de p rodução e
flexibilidade .”42 (grifamos) Este é um dos oito itens que o autor relaciona ao
sucesso da Toyota, dentre o montante do lucro anual (bilhões de dólares); a
valorização de suas ações; o grande porte da fabricante de veículos; a ampliação de
vendas em mercados externos; as características luxuosas que pode oferecer aos
seus consumidores; e, principalmente, que este fabricante inventou “o mais rápido
processo de desenvolvimento de produtos no mundo, aliado a sistema de ´produção
enxuta´”.
Trata-se de um exemplo de sucesso empresarial amplamente divulgado pela
mídia especializada, ou pela literatura técnica, de quais são os atributos que vieram
para revolucionar os conceitos de gestão das empresas no mundo atual (a partir dos
anos 1980).
Sem adentrar no mérito dos 14 princípios de gestão que os japoneses
adotaram para levarem sua fábrica ao topo conceitual do melhor gerenciamento de
produção, relaciona-se algumas palavras-chave que mostram os segredos capitais
deste empreendimento, quais sejam: i) just in time;43 ii) controle de qualidade total;
iii) sistema de produção enxuta; iv) Kanban;44 v) o sistema Ohno;45 vi) produção com
inventário minimizado – PIM (nomenclatura adotada pela Hewllet-Packard); vii)
42
LIKER, Jeffrey K. O Modelo Toyota: 14 princípios de gestão do maior fabricante do mundo. Porto Alegre: Bookman, 2005, p. 27. 43
Just In Time: Sistema de administração de produção pelo qual não se pode comprar, transportar, e produzir se não estiver caracterizada a hora exata para tal. 44
Kanban: Sistema de administração da produção que controla, por meio de sinalização específica, os fluxos internos de produção. 45
Sr. Taiichi Ohno (29.02.1912 - 28.05.1990): idealizador mor do Sistema Toyota de Produção.
29
material de acordo com o necessário – MAN (nomenclatura adotada pela Harley
Davidson); viii) sistema de produção com inventário minimizado – SPIM;46 ix)
gerenciamento baseado no tempo - TBM (Time Based Management); x) Construção
Enxuta.
É de notar-se que os atributos de gestão mencionadas no primeiro parágrafo
deste item (alta qualidade, alta produtividade, velocidade de produção, e
flexibilidade), estão, praticamente, no contexto da cultura gerencial de todas as
organizações capitalistas contemporâneas. E aqui começa, então, a reflexão que o
item requer relativamente aos mecanismos de contratação neste contexto de
produção e comercialização de bens e serviços dos tempos atuais.
Uma primeira percepção que se deve ter é o fato de o fenômeno da
contratação assumir características próprias conforme se realiza a cultura da
demanda e da oferta de cada época. Evidentemente que no modelo de produção em
massa (do Fordismo de 1913, p.ex.)47 colocada em prática por Henry Ford, a partir
dos ensinamentos de administração da produção de Frederick Taylor, os métodos
de negociação e viabilização dos contratos eram outros muito diferentes dos
modelos atuais para consecução dos negócios em geral.
Este aspecto é importante porque o fator cultural48 é uma das importantes
componentes que determinam se haverá ou não contratação para a realização de
determinado interesse. Quando se adquire um veículo, do fornecedor acima
comentado, p.ex., o consumidor está comprando o que ele já fez internalizar no
produto da venda, para o qual está pagando. Agrega-se nesta esteira de produção
tudo o que é de melhor de seus respectivos fornecedores, através de seus préstimos
(imediatos e) mediatos, tais como: qualidade e flexibilidade de produção. Assim não
é diferente para todos os integrantes da cadeia de produção, a qual depende dos
fornecimentos que pode fazer aos (poderosos) clientes a fim de manter-se em
funcionamento e sobreviver no mercado.
Perceba-se que raramente o poder se concentra enormemente nas mãos de
algumas ou outras empresas. O que prevalece no mundo é a distribuição do
conceito global de sobrevivência, formalizada através dos contratos, que perfazem a
46
Do autor J. T. Black, publicado pela Ed. Bookman sob o título O Projeto da Fábrica com Futuro. 47
GOUNET, 1992, p. 18. 48
Além das econômicas, financeiras, societárias, etc.
30
relação de compra e venda integrada ao fenômeno de uns poucos e necessários
objetivos estabelecidos pelos setores mais importantes da economia.
Pelo viés do setor econômico pode-se conhecer os parâmetros balizadores
que regem a essência dos negócios empresariais, e os empreendedores de plantão
não hesitam em adaptar-se às regras “prontas e acabadas” para aderir ao sistema
que tem por finalidade última atender aos propósitos vaidosos do (manipulado)
consumidor.
Uma vez que a complexidade das relações comerciais abarcou uma gama
intransponível de especializações necessárias à consecução dos objetivos
empresariais, elegeu-se o contrato, naturalmente, como instrumento de formalização
das tratativas técnicas que se fazem operar e interagir os elementos de determinada
negociação.
Não mais há espaço para o amadorismo gerencial no mundo dos negócios
globais. Basta verificar que as empresas de ponta estão a exigir alguns requisitos de
fornecimento que em outras épocas sequer eram imaginados, pois a avidez para a
acumulação de riquezas tinha bem menor espaço estrutural do que nestas épocas.
O fenômeno capitalista circunscreveu a realidade empresarial num outro modelo de
gestão, cuja viabilidade econômica se faz pelo encurralamento e da aplicação das
necessárias técnicas para obtenção da alta qualidade e produtividade, com o menor
tempo possível de produção, e com preços mínimos de custeio de seus insumos.
Benjamin CORIAT49 apresenta em sua obra o modelo japonês de trabalho e
organização50, especialmente como se processam as (sub) contratações e as
chamadas rendas relacionais.
É fato que se está diante de um sistema de contratações que viabilizam, sim,
a economia de um modo geral, entretanto, verificar-se-á que alguns aspectos
conseqüenciais recaem como malefício ao próprio regime capitalista, e, por
conseguinte, aos consumidores – ou às pessoas (humanas) em geral -, e,
mediatamente, à sociedade como um todo.
No que tange as empresas de médio porte para baixo, o sistema capitalista
de produção somente consegue obter (ou adquirir) a alta qualidade, a alta
49
CORIAT, Benajmin. Pensar pelo Avesso. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ/Revan, 1994. 50
O modelo japonês de trabalho e organização não mais é uma exclusividade do mundo oriental, pois no
sistema capitalista de produção esta técnica de administração foi adotada em vários segmentos de fabricação
de produtos e serviços.
31
produtividade, a alta velocidade de produção, e a grande flexibilidade negocial de
seus fornecedores, lançando mão da também alta complexidade político-jurídica
para consecução de seus fins.
Atualmente, é através da relação de subcontratações que se consegue
estabelecer uma organização fabril consolidada. Exemplificativamente, existe uma
ordem infalível neste liame, cujos resultados podem ser resumidos pela perspectiva
de uma relação comercial de longo prazo, cuja duração é pautada no ciclo da vida
do produto que rege tais interesses; esta relação é institucionalizada e
hierarquizada; favorece a (ampla) inovação, e possui uma tendência de partilhar os
benefícios, mas não sem distribuir igualmente os riscos a todos os seus
integrantes.51
E, logicamente, as empresas principais deste regime de produção “admitem”
variados fornecedores para integrarem sua lista de fornecimento através de
contratações formais, muito bem elaboradas. Aqui reside a essência dos
procedimentos a serem observados: primeiramente estabelece-se um contrato de
base para, em seguida, conforme se chega aos momentos de colocar em prática
determinado projeto, desdobrar-se o contrato principal em outros (sub) contratos
complementares para consecução dos fins gerais originalmente concebidos.
É neste contexto que se exige observar, por exemplo, os critérios do just in
time, do kanban, etc., para alimentação do sistema estabelecido para a produção
enxuta, e o cumprimento destas regras acabam por manter e “melhorar” os
resultados buscados e impostos pelos imperativos do mercado global através dos
correspondentes contratos empresariais.
Muito se diz e diversas críticas há sobre o sistema capitalista por ser a
economia globalizada nos moldes como opera em função do lucro e da acumulação
de recursos. Entretanto, não se deve esquecer que numa das outras pontas da
estrela figura soberanamente o consumidor que interage e retroalimenta o processo
fecundador que dá vida ao conjunto dos elementos negociais (materiais e formais)
que integram esta estrutura de exploração da atividade econômica.
De verdade, este modo de vivenciar o homem em função da nova ordem de
empreendimento não poderia ser nocivo ao meio ambiente social se o método de
sua utilização tivesse maior racionalidade por parte do poder político. Se o legislador
51
CORIAT, 1994, p. 118.
32
efetivamente prospectasse no seu atuar buscar os objetivos sociais, por exemplo, da
Declaração Universal de Direitos Humanos,52 certamente o ordenamento jurídico
poderia otimamente servir-se das respostas que eficazmente reprimiria os excessos
funcionais desta estrutura, bem como o conseqüente abuso de direitos.
No contexto de ausência de regras, de regulamentação objetiva dos fins a
que se propõe a principiologia solucionar, esta funcionando como manto acobertador
da omissão legiferativa, gera-se, por decorrência, o embrião do antagonismo social.
Tal antagonismo é criado, deliberadamente, pelo próprio sistema, mas não de forma
despropositada. A malícia impressa aos papéis de conscritos e cônscios atores do
cenário econômico integra o teatro e faz parte da peça que se quer apresentar ao
público. Ou seja, representar de verdade como o é efetivamente aparente os seus
baluartes.
Em se observando o que axiologicamente quer os princípios da ordem
econômica estabelecer, perceber-se-á que é exatamente o fato de o capitalismo
pode existir e estar vivo, pois ele é bom para todos. Entretanto, este regime deve ser
utilizado com tamanha responsabilidade a tal ponto de não permitir que haja
indignidade no sistema, que resulte em processos sociais de marginalização,
desempregos estruturais, doentes-vítimas de endemias e epidemias diversas,
vaguejantes (globais) vitimados pela sorte nefasta que despreza o ser humano, etc.
Falando em vagueantes, não se tem como deixar de lado a apreciação
sociológica de Zygmunt BAUMAN53 ao referir-se às características de consumidor
numa sociedade de consumo.
Mas, antes de abordar este tema, vale à pena relatar algumas realidades
provocadas pela predominância financeira do infausto capitalismo, uma vez que nem
todas as pessoas foram eleitas para serem efetivamente (os desejados)
consumidores.
Domingos Leite LIMA FILHO faz referência ao Informe sobre el Desarollo
Mundial 2000/2001, emitido pelo Banco Mundial, com a seguinte chamada: lucha
contra la pobreza. Pelo teor do documento, reconhece-se “o acirramento da
52
“A justiça [...] parece ser uma aspiração de toda a humanidade. Neste sentido, e para não recuar muito no tempo, também a Declaração Universal de Direitos Humanos, de 1948, reafirma este impulso universalista, quando, no seu preâmbulo, diz: ´A liberdade, a justiça e a paz no mundo têm por base o reconhecimento da dignidade intrínseca e dos direitos iguais e inalienáveis de todos os membros da família humana´” (ESTEVÃO, Carlos V. Justiça, direitos humanos e educação na era da globalização. In: MOREIRA, Antônio Flávio; PACHECO, José Augusto. Globalização e Educação. Porto: Porto Ed., 2006, p. 31). 53
BAUMAN. Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999, p. 87.
33
exclusão social em nível global e propõe estratégias para o “alívio da pobreza” em
um mundo “caracterizado pela desigualdade”.54 E transcreve:
Nosso mundo se caracteriza por uma grande pobreza em meio à abundância. De um total de 6 bilhões de habitantes, 2,8 bilhões – quase a metade – vivem com menos de 2 dólares diários, e 1,2 bilhões – uma quinta parte – com menos de 1 dólar por dia. Nos países ricos, as crianças que não chegam a completar cinco anos de vida são menos de um em cada 100, enquanto que nos países mais pobres uma quinta parte das crianças não alcança essa idade. Além disso, enquanto que nos países ricos menos de 5% de todas as crianças sofre de desnutrição, mas nações mais pobres esta proporção é de 50% (Banco Mundial, 2000).
Não é por acaso, então, que Zygmunt BAUMAN faz uma espécie de ironia ao
classificar os consumidores do sistema capitalista nas classes de “turistas” e de
“vagabundos”, ao afirmar que não mais se precisa viajar fisicamente para estar em
movimento, pois o que movia o mundo (o consumidor), agora é movido55 pelo
mundo (o capitalismo), desde que se tenha poder aquisitivo para tanto.
Em que pese o art. 3.º, III, da CF/88, constituir como objetivo fundamental da
República a erradicação da pobreza e a marginalização, bem como a redução das
desigualdades sociais e regionais; e, ainda: o art. 6.º preconizar que a educação, a
saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção
à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, são direitos sociais, a
realidade social brasileira não deixa de integrar a pobreza denunciada pelo
mencionado relatório do Banco Mundial de 2000.
Mas há um detalhe substantivo nesta análise que não pode ser
desconsiderado para qualquer efeito: a pobreza e a marginalização (e as
desigualdades sociais e regionais), como causas de toda sorte de infortúnios aos
menos favorecidos, não são patologias do livre mercado; pelo contrário, indicam que
o sistema está indo “muito bem, obrigado!”
Trata-se de um paradoxo estrutural projetado para o sistema, pois todas as
vertentes de inseguranças, instabilidades, ameaças, assédios, inovações,
estagnações pontuais, reservas contingenciais, vulnerabilidades, ignorâncias, etc.,
54
LIMA FILHO, Domingos Leite. Dimensões e Limites da Globalização. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 2004, p. 22. 55
V. A civilização da mundialização: “o condicionamento subjetivo dos habitantes do planeta pela ´persuasão´ da mídia...” (CHESNAIS, François. A mundialização do capital. São Paulo: Xamã, 1996, p. 40).
34
são oportunidades sociais que possuem grande poder potencial (e assim acontece)
para retroalimentar o sistema em suas vicissitudes financeiras.56
O fato é que há possibilidade de “ganhar-se” dinheiro com qualquer ideologia
que corrobore o enunciado do princípio afortunoso que viabilize livremente um
negócio qualquer. Melhor ainda se o ofertador estiver estruturado para criar a
necessidade no demandador, geralmente leigo e desconhecedor das estruturas que
direcionam seus destinos para os confins do alheamento.
Por outro lado, deve-se dizer que as economias de mercado locais, regionais,
ou internacionais, não são de todo sozinhas responsáveis pelo indesejado matiz da
desfortuna estrutural. Outros dois elementos integram a triangulação desta lógica
cultural: o Estado e a sociedade.
Ao Estado cabe a regulação no sentido de ponderar quais são as dosagens
perfeitamente aplicáveis aos meios internos para não desequilibrar a balanço do
anseio social. Esta medida deve ser justa, adequada aos amplos preceitos
ordenados na lei maior, quando estabelece os princípios e os fundamentos que
devem nortear o Estado Democrático de Direito.
À sociedade cabe o relevante papel na execução da tarefa em bem
fiscalizar o desdobramento e a aplicação dos preceitos constitucionais,
principalmente pleitear pela regulamentação em específico que traduza
objetivamente como e quando se coloca a termo as ações executivas que fazem
concretizar todos os direitos e obrigações que integram o escopo do projeto escrito
pelo poder constituinte.
1.5. LIVRE INICIATIVA E AUTONOMIA PRIVADA NA PRÁXIS MERCANTIL
56
P.ex.: ainda que o art. 196, CF/88, estabeleça que “a saúde é direito de todos e dever do Estado...”, o legislador constituinte abriu a possibilidade de esta atividade econômica ser explorada livremente pela iniciativa privada (art. 199). Não se defende aqui que a assistência à saúde deveria ser monopólio do Estado (como o fez com o petróleo e o gás natural (art. 177) – afinal, estes hidrocarbonetos fluidos são mais importantes que a saúde de toda a população brasileira!?), mas o que chama a atenção é o fato de a crise institucional e a ineficiência operacional do sistema de assistência à saúde ser uma variável inequacionável, uma vez que esta mazela interessa ao respectivo ramo da economia que faz boas receitas com este caótico quadro social em determinados pontos e lugares específicos.
35
Neste ponto, entra em relevo a questão do caráter instrumental da livre
iniciativa relacionada às empresas, com a concomitante análise do que se quer dizer
com a expressão da autonomia privada na prática mercantil.57
Conforme mencionado anteriormente, o princípio da livre iniciativa está
previsto em dois momentos na Constituição, a saber: a) como um dos fundamentos
da República Federativa do Brasil, no art. 1.º, inciso IV;58 e, b) como um dos
fundamentos da ordem econômica, no caput do art. 170.59
No que tange à autonomia privada, leciona-se que através dela, perfeita no
quesito da vontade e da declaração, dá ao ser humano, livre, o arbítrio de proceder-
se a qualquer ato negocial, o qual estará configurado numa tratativa contratual.
Como tal, sua vinculação é decorrência de um comportamento que quer expressar
no sentido de fazer parte de um liame que obriga e credita valores diversos em
função de interesses próprios e coletivos.
É fato que a livre iniciativa seja decorrência da liberdade; esta é mais ampla, e
abarca o fenômeno de livre empreendimento que se quer realizar, uma vez que este
atributo, convertido para a realização de atos negociais, já vem adscrito e garantido
pela Lei maior, no caso brasileiro. Em não se verificando esta condição, o limite legal
deste ato estará extrapolado, violado em sua essência, e contrário ao ditame
constitucional do Estado Democrático de Direito.
Verticalizando-se o entendimento nestas percepções jurídicas e conjugando-
as com os critérios práticos do comércio diário para fechamento de negócios,
percebe-se que o caminho da retórica, ainda que seja boa, sofre a incidência de
uma obliqüidade conceitual quando confrontada a razão de ser do conceito com o
que de fato acontece no meio econômico.
Não se fará aqui uma generalização irresponsável do que se percebe,
empiricamente, de alguns pontos e circunstâncias que fazem ressoar distorções
57
Necessário distinguir-se, aqui, o conceito de prática mercantil do de atividade empresarial: mercantil neste
contexto quer dizer a prática comercial em si, aquele ato negocial próprio que traduz a consecução de uma
troca ou a circulação de bens ou serviços mediante a busca de lucros. Por sua vez, empresarial refere-se à
empresa, juridicamente organizada, para empreender ou tomar iniciativas de produção de bens e/ou serviços,
ainda que sua finalidade seja o comércio propriamente dito. 58
“Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;” 59
“Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: [...].”
36
reais quando do exercício da liberdade contratual. Eventualmente, é exercida, na
arena da grande feira, interesseiramente em confronto vetorial com os princípios que
condicionam a prerrogativa da livre iniciativa com o dever de construir-se uma
“sociedade justa, livre e solidária”.
E neste contexto a crítica recai sobre a programada falta de definição legal
sobre as delimitações que poderiam incidir sobre o vazio dos conceitos, ou sobre as
cláusulas gerais, ou sobre os princípios de normas abstratas, ou sobre as condições
e circunstâncias inimagináveis, etc., que ocorrem à margem das percepções do
legislador.
Claramente visto, e sabido é: o poder político, constituído ou não, jamais terá
meios, recursos, e ferramental adequado para especializar-se na prática da
ourivesaria legislável. Esta percepção não se destina ao plano objetivo das
instituições formais, pois o seu controle esta na metafísica das relações sociais. Ao
que vende e ao que compra, ao que aluga e quem é inquilino, ou, a quem contrata e
distrata, ou, a quem trabalha no processo de transformação prática na economia, é
dado perceber o tangenciamento do amplo conceito influindo na espécie do negócio
que se fecha por um ato personalíssimo que somente é perceptível num dado
momento da vida.
Esta fluidez no trato econômico é uma característica inerente ao ato negocial,
ainda que o mesmo reclame os atributos da objetividade (legal). É como se fosse
uma sombra, o aspecto que caracteriza o desenho monetário da lua crescente, entre
a parte iluminada e o reverso de um astro que não se pode precisar por uma linha
analítica de raciocínio. No natural mundo da dicotomia sócio-jurídica, nada é tão
certo o quanto se calcula em matemáticas aplicadas.
Pois bem, eis aqui o campo fértil da lavoura negocial (no crepúsculo
institucional do mercado), o qual é livre, solidário, e justo, para quem o vê e
manipula segundo os propósitos da Constituição (na medida do mínimo possível); é
de se esperar que isto não é feito sem oportunizar interesses máximos aos lucros ou
rendimentos reais e em potenciais.
Para ilustrar o que se debate neste ponto, precisa-se esboçar, pelo menos,
quais são as linhas que dão forma ao fenômeno relatado. Como exemplo, indica-se
o mercado de capitais, operacionalizado em bolsa de valores,60 pela qual se pode
60
GALVES, 2004, p. 284.
37
observar, e apalpar, como se dá a dinâmica vivaz do comércio de ações, e de outros
instrumentos financeiros, em favor do desenvolvimento econômico do país.
Em mercados financeiros negociam-se ações, debêntures, títulos do governo,
letras de câmbio, letras imobiliárias, etc., em uma sede cujo local deve ser
apropriado à realização de operações com estes títulos e valores mobiliários.
O que se quer extrair deste contexto negocial é o modo como funciona as
operações que dão sustentação e continuidade aos investimentos e poupanças
feitas pelos detentores de capital ou de títulos que creditam as diversas carteiras
deste universo financeiro.
Em que pese este mercado estar proclamando, altissonamente, os verbetes
compostos da responsabilidade social, da governança corporativa, da
sustentabilidade, etc., percebe-se que nesta vertente do discurso existe um tom de
retórica que serve apenas para sustentar, sim, os próprios negócios que interessam
exclusivamente ao mercado.
Ninguém faz investimento para perder ou depreciar ativos, mas, sim, o faz, na
expectativa de recuperar o que aplicou e, de preferência, para resgatar também
algum rendimento extra que vem somado ao principal. Afora a prática especulativa,
via de regra, as empresas operam com investimentos desta natureza com o intuito
de obter vantagens econômicas e financeiras sem o custoso e laborioso processo de
criação e formação de riquezas através do trabalho produtivo.
Da mesma forma, os critérios de decisão para optar-se por tal e qual
operação financeira fechar-se em bolsa de valores, ou, em qualquer outra instituição
financeira, ou, ainda, entre empresas e/ou particulares, seja em qual situação for, na
qual esteja formatado um ato negocial, configura-se aí o escopo de um interesse
pelos fins próprios e egoísticos que não os objetivos da assistência social, ou da
filantropia, ou da ajuda comunitária, ou da voluntariedade de dispêndio gratuito para
promoção e inclusão do outro, etc.
O que se está a dizer é que a dinâmica econômica e financeira não tem por
objetivo a construção partilhada do crescimento conjunto entre pessoas que
convivem em sociedade. O processo cooperativo para com a sociedade, em sentido
restrito, não permeia as metas e objetivos empresariais, pois a dita liberdade de
contratação visa tão somente a perpetuidade da pessoa jurídica, robustamente forte,
para continuar com seus fins societários (lucrativos) para acumular riquezas, mas
não para “distribuí-las” conforme gostaria de ver o Estado-providencial.
38
Para ilustrar, veja-se a ideologia dos princípios (elaborados pelas Nações
Unidas) que norteiam os critérios para dar sustentabilidade aos investimentos
empresariais, concebidos para uma rede internacional de investidores institucionais
que, atualmente, fazem a gestão/movimentação da bagatela (aproximada) de US$
25 trilhões em ativos, verbis:
“Os seis princípios para o investimento responsável são: 1. Incluir as questões ambientais, sociais e a governança corporativa (ESG)
nas análises de investimento e nos processos de tomada de decisão. 2. Ser sócios atuantes e incorporar os temas de ESG nas políticas e nas
práticas de detenção de ativos. (grifo nosso) 3. Buscar a transparência adequada nas empresas nas quais investimos
quanto às questões de ESG. 4. Promover a aceitação e a implementação dos Princípios no conjunto de
investidores institucionais. 5. Trabalhar juntos para reforçar nossa eficiência na implementação dos
Princípios. 6. Divulgar nossas atividades e progressos em relação à implementação dos
Princípios.”61
Perceba-se o seguinte: este guia de sustentabilidade publicado pela Bolsa de
Valores do Estado de São Paulo é um autêntico documento que relata, na prática,
como funciona, extrinsicamente, o mercado de capitais, e, principalmente, quais são
os critérios corporativos que regem o processo decisório cotidiano das empresas em
geral. Ainda que este contexto, que ora se analisa, refira-se a empresas de capital
aberto, não deixa de ser verdade que a lógica mundial prevalecente dentro dos
vários conselhos administrativos (em sentido amplo) é aquela que melhor dá
resultado financeiro para a empresa, e não aquela meramente sonhada (e legislada)
por quem está fora (?) deste nicho.
Leia-se os princípios acima e verificar-se-á, textualmente, que a finalidade dos
mesmos é ínsita ao mercado de capitais e à qualidade de gestão das empresas,
ainda que o guia do mercado utilize jargões do tipo “reponsabilidade social”, etc. É
evidente, e assim é a rotina da atividade econômica, que os fatores que promovem a
dignidade humana, ou que realize a justiça social, efetivamente, estão relegados à
iniciativa do Estado, o qual é o agente responsável para dar cabo a todos os 61
BM&FBOVESPA. Guia de sustentabilidade. Disponível em: <http://www.bmfbovespa.com.br/empresas/download/guia-de-sustentabilidade.pdf > Acesso em: 15 abr.2011.
39
programas voltados aos fins sociais (que não aqueles societários) reclamados na
Constituição.
Pelo fato de não existir uma legislação em específico que faça tolher o
desembaraço mercantil em torno também de iniciativas que contemplem o escopo
social, o que se verifica é jogo de retórica, discursos evasivos, que servem apenas
para mascarar um efeito que de verdade ninguém quer assumir, mas que cabe ao
Estado dar o provimento necessário para que a justiça social seja efetivamente feita,
pelo menos, no caso concreto.
Outro exemplo prático e interessante (que mais adiante será utilizado para
ilustrar a hipótese de violação positiva de contrato como espécie de inadimplemento
contratual) que demonstra total afronta aos fundamentos da República e da ordem
econômica interna (relativamente ao valor social do trabalho e da livre iniciativa), é o
caso de trespasse da empresa Café Damasco, amplamente divulgado pela mídia
nacional.62
O que se verifica e se deduz do referido episódio midiático, com a transação
comercial ocorrida entre as empresas Sara Lee (americana) e Café Damasco
(fundada em Curitiba - Paraná, desde 02 de janeiro de 1960), nada mais é do que o
pleno exercício da autonomia privada, cuja iniciativa das partes conjugou-se no
sentido de dar cabo, contratualmente, aos fins empresariais que melhor traduziu os
interesses econômicos e financeiros dos vendedores e dos compradores.
Veiculou-se na ocasião que a empresa Café Damasco tinha em torno de 150
(cento e cinqüenta) postos de trabalho em atividade. Naturalmente, os empregados
não foram consultados sobre as diretrizes negociais que se estavam encaminhando,
muito menos tinham conhecimento dos assuntos estratégicos da empresa no
sentido de que a mesma estava a venda para uma outra de origem americana, e
que estas, consumando o (livre) negócio, (autonomamente) fechariam as portas do
empreendimento e todos estariam, no dia seguinte, desempregados, sem qualquer
prévio aviso.
62
AE – Agência Estado. “Americana Sara Lee Compra paranaense Café Damasco”. V. íntegra da reportagem no capítulo 4. As informações são do Jornal O Estado de S. Paulo, São Paulo, 30 nov., 2010. Caderno Economia & Negócios. Disponível em: <http://economia.estadao.com.br/noticias/Neg%C3%B3cios+Geral,americana-sara-lee-compra-paranaense-cafe-damasco,not_45486.htm> Acesso em: 15 abr.2011.
40
Vê-se que a livre iniciativa é um direito fundamental para o exercício da
atividade econômica. Ao homem livre é dado o poder legal de superar-se na física
dos próprios conceitos, e ao manejar os instrumentos contratuais, coloca a
autonomia privada a favor de sua transpessoalidade física ou jurídica, o que deveria
fazer refugir aos limites sociais traçados pela Constituição. Mas, a isto não se
prende os atores da vida real das empresas pelo fato que o legislador não consegue
dar substância às normas que possuem conteúdo meramente abstrato.
A natureza das normas sociais gerais não é potente o bastante para
reformular padrões de condutas que destoam dos fins precípuos das normas
constitucionais, pois carecem de força normativa para regular as especificidades das
ações humanas, sejam qual for seu modo de organização.
Ainda que a Constituição Federal de 1988 estabeleça expressamente que no
âmbito da atividade empresarial o fim econômico não pode preterir a dignidade
humana como centro do sistema, ainda assim o prevalecente são os critérios que
medem a eficiência administrativa e financeira; daquele resultado apurado pela
contabilidade e esperado pelos investidores e acionistas, ávidos pelo rendimento e
lucros que lhes serão atribuídos como troféus ao “final” da corrida pela
sobrevivência.
É por isso que a interpretação e normatização de variadas disposições de
ordem pública, de bons costumes, de observação dos valores morais e éticos, são
freqüentemente levados ao Estado-juiz para dizer o Direito. Felizmente, o Poder
Judiciário, nestes casos, é o poder eleito para (sobre)normatizar e amenizar os
impactos negativos que se geram ao não observar-se os ditames da justiça social e
da valorização do trabalho humano.
1.6. A COMPLEXIDADE NA RELAÇÃO CONTRATUAL EMPRESARIAL:
AUTONOMIA PRIVADA, BOA-FÉ E OS DEVERES DE CONSIDERAÇÃO
1.6.1. Da Autonomia Privada
Com o advento das codificações no século XIX verificou-se que a concepção
individualista do direito também adentrou ao ordenamento jurídico através do
instituto da autonomia da vontade, segundo o qual “todo homem é livre e, na medida
41
de sua liberdade, dispõe autonomamente dos seus interesses, tendo assegurada a
faculdade de governar sua vontade para estabelecer acordos e obrigações que,
nessa dimensão devem ser adimplidos, em respeito à palavra dada”.63
A autonomia da vontade se fixou, basicamente, em função de duas teorias,
quais sejam: a teoria da vontade (interna, psíquica), e a teoria da declaração
(vontade exteriormente declarada). O negócio jurídico era tido como manifestação
onipotente, causa eficiente, que criava e determinava os efeitos jurídicos pretendidos
pelos sujeitos. Pela concepção individualista, o contrato fazia lei entre as partes, o
qual deveria ser obrigatoriamente cumprido, e cabia ao Estado (liberal) assegurar
estes direitos.
Realmente, o principal efeito do contrato é vincular as partes para consecução
do negócio jurídico que foi pactuado; pode-se dizer que tal vinculação equivale à
força de lei. Pela regra tradicional, o contrato não pode ser modificado ou extinto
pela vontade unilateral (a não ser que seja cumprido), mas a principiologia clássica,
que engessava o formato contratual, no Estado Liberal, passou a ser flexibilizada por
exceções que derivam de estipulação própria em função de eventual consenso, ou
que sejam concebidas e/ou adotadas por força de lei; todavia, permanece
inderrogável o princípio vinculante do mesmo64.
Entenda-se aqui que a característica do consenso para concluir-se
determinado contrato é praticamente falaciosa nos tempos atuais. Esta
nomenclatura imprime na fase das tratativas a supressão de eventuais negociações
que deveriam ou podiam ser feitas. Entre empresas, e particulares (e,
principalmente, no super mercado dos consumidores) a dinâmica dos procedimentos
negociais ganharam novos contornos formais, cujo principal efeito é compelir um dos
contratantes à adesão pura e simples de um instrumento contratual que já está
previamente pronto para celebração.
Normalmente, não há tempo nem condições de se discutir e/ou negociar as
cláusulas dos contratos que são impostos ao contraente. Neste contexto, o
destinatário da minuta é parte necessitada da contratação do produto e/ou do
serviço que se busca obter, e uma vez que a relativização da autonomia se faz
incidir em função do modo como se opera no mercado, fica a parte prejudicada
63
COUTINHO, Aldacy Rachid & DALLEGRAVE NETO, José Affonso. Transformações do Direito do Trabalho. Curitiba: Juruá, 2006, p. 30. 64
THEODORO NETO, Humberto. Efeitos Externos do Contrato. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 30.
42
relegada a buscar no Judiciário eventual reparação de danos ou prejuízos sofridos
em função de tais condutas comerciais.
1.6.2. Da Boa-fé
O art. 422/CCB estabelece que “os contratantes são obrigados a guardar,
assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade
e boa-fé”. Deste mandamento, destaca-se o atributo da boa-fé relacionado no
gênero, uma vez se tratar de categoria jurídica que subdivide-se em subjetiva e
objetiva.
A boa-fé subjetiva está para os aspectos internos, da psique, do agente
contratante, ou seja, trata-se de suas crenças, conhecimentos (ou falta destes) que
fazem, ou não, as convicções do mesmo. Em outros termos, a boa-fé subjetiva pode
ser traduzida como a falta de conhecimento de situação qualquer que pode afetar os
interesses do contratante. Nas palavras de César Fiuza65, por exemplo, “quem
compra e quem não é dono, sem saber, age de boa-fé, no sentido subjetivo”.
Por outro lado, segundo este mesmo autor, a boa-fé objetiva “baseia-se em
fatos de ordem objetiva”, ou seja, “baseia-se na conduta das partes, que devem agir
com correção e honestidade, correspondendo à confiança reciprocamente
depositada”. Esta confiança deve estar pautada em elementos objetivos que
caracterizam a conduta da parte adversa.
Importante destacar que a raiz do princípio da boa-fé objetiva é a dignidade
da pessoa humana, “da qual decorre a necessidade elementar de respeito à pessoa
e à sua dignidade. A dignidade da pessoa humana [...] constitui valor máximo no
ordenamento jurídico brasileiro, uma vez que a Constituição Federal de 1988 a erigiu
como fundamento do Estado, nos termos do art. 1º, III, e, portanto, de toda a ordem
jurídica”.66
Depreende-se, portanto, que a concepção de dignidade humana implica na
obrigatoriedade de pautar-se em conduta honesta para tratar de qualquer negócio
jurídico, seja para com o outro contratante, ou para quem pode ser mediatamente
afetado pelo comércio em operação. Referida conduta requer agir com honestidade
e transparência, pois é por meio deste comportamento, potencialmente previsível,
65
FIUZA, César. Contratos. Belo Horizonte: Del Rey, 2009, p. 104. 66
FRITZ, Karina Nunes. Boa-fé objetiva na fase pré-contratual. Curitiba: Juruá, 2008, p. 105.
43
que se dá ou concebe os indícios e os caracteres de confiança, cujo atributo se faz
indispensável para conclusão de qualquer contrato no âmbito do comércio jurídico.
No capítulo 3 deste trabalho o tema da boa-fé objetiva será melhor estudado,
relacionando-se este instituto como fenômeno da atividade empresarial.
1.6.3. Dos Deveres de Consideração
O mandamento da boa-fé objetiva, previsto no art. 422 do CC/2002, exige
adequação de comportamento pautado em padrões de lealdade e retidão, cujo
dever de conduta impõe-se às partes como um todo. Ainda que neste trabalho haja
referência apenas ao critério de probidade (o qual se trata de um conceito ético-
jurídico), é incontroverso que o dever de conduta se circunscreve numa gama de
comportamentos que sequer foram relacionados pelo legislador, assim como o
preceito da boa-fé não se aplica exclusivamente na conclusão e na execução do
contrato, mas também na fase da pós-contratualidade.
Tais deveres de conduta (ou, deveres de consideração) não incidem apenas
na conclusão e durante a execução do contrato, mas a obrigação de observá-los
nasce desde as tratativas iniciais para formação de um consenso, cuja finalidade se
contextualiza como sendo a fase de preparação de um negócio, o qual culminará
com a respectiva conclusão do contrato. Uma vez concluído, a boa-fé objetiva
também deverá estar adstrita aos deveres do período contratual, bem como
continuará seus efeitos quando do encerramento do mesmo, que incidirão no padrão
de comportamento, probo, para com a contraparte, cuja implicação será o interregno
operacional dos deveres de proteção, informação, lealdade, e sigilo67.
Imagine-se que efeitos danosos e diversos podem advir às partes se uma
delas resolve violar, por exemplo, o dever de sigilo sobre negócio encerrado entre os
contratantes. Ou ainda, se uma delas resolve romper com tratativas que até então
chegaram ao ponto de gerar mútua confiança sobre dado negócio, e que
posteriormente a esta arbitrariedade resolve divulgar informações que até então
eram (porque deviam ser) confidenciais.
Não obstante a boa perspicácia que normalmente perfaz o arcabouço cultural
de partes que negociam expressivos contratos, há de ser que em havendo o
67
FRITZ, 2008, p. 75.
44
infortúnio de confrontar-se com o desvio social premeditado dos mesmos para
prejudicar alguém, resta verificar e/ou levantar as evidências objetivas e “subsumi-
las” aos ditames das regras para que se pleiteie eventual indenização por danos
sofridos.
Importante salientar que tais deveres não estão instituídos positivamente para
que se tipifique direta e prontamente determinado ato negocial no aspecto
quantitativo e qualitativo, seja ele correto ou não. Trata-se de cláusula aberta, cuja
expertise do interessado poderá oferecer parâmetros de verificação e mensuração
no espaço, no tempo, e no valor pretendido, em função de determinado desvio de
conduta conforme o requeiram as circunstâncias do caso concreto.
Neste sentido, faz-se necessário abordar algumas espécies que perfazem a
plataforma dos deveres de consideração em comento, os quais incidem em todas as
fases contratuais. São eles: o dever de proteção, o dever de informação, o dever de
lealdade, e o dever de sigilo.
Relativamente ao dever de proteção:68 basicamente, importa em adotar um
comportamento passivo no sentido de não causar dano a então contraparte, mas,
adicionalmente, pode implicar em observar outras condutas que inicialmente não
estavam previstas. Por exemplo, pode surgir o dever de guarda e/ou restituição de
bens que foram recebidos durante o período contratual. Ainda que este dever seja
um desdobramento do dever de proteção, pode o mesmo, no caso concreto, ganhar
autonomia suficiente para caracterizar determinada violação ao dever de proteção.
Relativamente ao dever de informação:69 da mesma forma que este dever
integra os aspectos da culpa in contrahendo, encontra-se ele como parâmetro de
conduta quando exige que uma das partes se manifeste ou não em favor da outra,
quando as circunstâncias do negócio encerrado assim o exigirem. Neste quesito
corrobora-se o elenco de variáveis implícitas ao fenômeno que fazem enriquecer o
conteúdo ético-jurídico desta regra com os seguintes preceitos: a) dever de informar:
não significa necessariamente que quem informou acabou por explicar algo; quem
informar deve também explicar; b) dever de esclarecimento: implica, eventualmente,
em também aconselhar a outra parte; c) dever de clareza: quem informa, explica, e
aconselha, deve fazê-lo segundo o meio mais eficaz de comunicação; para tanto,
68
FRITZ, 2008, p. 219. 69
Id., p. 226.
45
necessário se faz observar as condições pessoais das partes, o equilíbrio formal que
se coloca entre os mesmos, etc.
Relativamente ao dever de lealdade:70 o conceito de lealdade no
ordenamento jurídico está para a compreensão do que seja a ampla boa-fé nas
relações contratuais. Uma boa aplicação, exemplificativa, para este dever parece ser
quando uma das partes começa uma nova negociação, com uma parte terceira,
quando envolve o mesmo objeto ou o escopo de um contrato que foi anteriormente
encerrado. Especialmente nos casos em que não há um “pacto de exclusividade”, o
dever de lealdade rege os imperativos comerciais-comportamentais dos agentes do
novo negócio que potencialmente se apresenta. Neste caso, surgirá o dever de
comunicar a outra parte de que estão ocorrendo negociações paralelas, e tudo o que
deve ou não afetar o interesse do ex-contratante deve ser apresentado ao
interessado de forma transparente.
Relativamente ao dever de sigilo:71 este dever proíbe as partes de se
utilizarem de informações obtidas durante as negociações e/ou no período contratual
para fins de repassar a terceiros, sem o consentimento da outra parte. Este dever
está relacionado ao de lealdade, consistente para prevenir danos com a divulgação
indevida de dados e informações cujo domínio ou “propriedade” se restringiu aos
então interessados.
Algumas circunstâncias extras podem correlacionar o dever de sigilo o qual
pode ser desdobrado em função de situações anômalas. Por exemplo: se o contrato
foi rescindido antes do término regularmente previsto; os motivos pelos quais se
antecipou seu encerramento podem ser objeto para observação desta conduta. É
usual que as partes celebrem cláusula no sentido de pactuar estes deveres, todavia,
em inexistindo esta providência o mandamento da boa-fé objetiva, previsto no art.
422 do CC/2002, abarca a obrigação de as partes não divulgar informações, nem de
adotar comportamentos contraditórios, que possam prejudicar a parte interessada
até que estes dados percam seu potencial lesivo perante a sociedade e/ou mercado.
Como se pode observar, a complexidade na relação contratual empresarial
(especialmente) abarca um grande número de fatores sociais, éticos, e jurídicos,
elementos positivos do que prevê a legislação, mas, a fonte inesgotável de
vulnerabilidades que podem surgir durante a realização de negócios deve ser
70
FRITZ, 2008, p. 232. 71
Id., p. 236.
46
aplacada lançando-se mão do instituto da boa-fé para que seja possível dar cabo
das expectativas sociais e econômicas que devem ser perquiridas pelas partes.
Neste sentido é que se consubstancia o que seja complexidade, e, no caso
em estudo, a relação contratual empresarial sob a perspectiva da complexidade.
Complexidade é o estado, ou condição e qualidade, do que é complexo.
Segundo Aurélio Buarque de Holanda FERREIRA, uma das acepções para o termo
´complexo´, como adjetivo, é o “que abrange ou encerra muitos elementos ou
partes”.72
O desafio da complexidade que abarca as relações contratuais consiste no
fato de as relações negociais empresariais estarem permeadas de todos os
potenciais previstos e não previstos pelo ordenamento jurídico. Previstos são
aqueles institutos positivados para observância e aplicação imediata. Não previstos
são aqueles que se relacionam diretamente com as condições e os fatos que não
podem ser subsumidos ou tipificados segundo os ditames da legislação que se
conhece objetivamente, pois os seus fundamentos de amparo à iniciativa ou o
exercício da autonomia que se prega estão alicerçados em terrenos geralmente
desconhecidos do observador.
Nestes casos, quem estiver desavisado de como se opera as regras do jogo
do mercado (pela perspectiva econômica), ou se não conhece exatamente quem é
seu contratante, ou, se não controla adequadamente as variáveis que influenciam
sobre a performance de produtos e serviços que oferece ou adquire (no contexto
jurídico e comercial), certamente estará fadado a sucumbir diante de demandas
diversas que poderão ensejar diversas obrigações no que tange à responsabilidade,
reparação de danos, e indenizações das mais variadas ordens extrajudiciais ou
judiciais.
72
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Ed. Nova Fronteira: Rio de Janeiro, S. d., p. 440.
47
CAPÍTULO 2 – LIBERDADE CONTRATUAL: A AUTONOMIA PRIV ADA E A
ATIVIDADE EMPRESARIAL
2.1. PRINCIPIOLOGIA CLÁSSICA
Humberto THEODORO NETO73 relaciona três princípios clássicos, forjados
no século XIX, que giram em torno da autonomia da vontade: i) princípio da
liberdade contratual (lato sensu): dá ao indivíduo a garantia de escolher sem
desrespeito à lei quando, com quem e o que contratar, segundo sua conveniência; ii)
princípio da força obrigatória do contrato: enunciado pelo brocardo pacta sunt
servanda, ou seja, o contrato faz lei entre as partes; e, iii) princípio da relatividade
dos efeitos do contrato: o contrato somente vincula as partes, não beneficiando nem
prejudicando terceiros.
Inicia a contextualização da formação histórica da teoria atual dos contratos a
mencionar como era a concepção do contrato no direito romano. No período
clássico, o acordo de vontades não gerava obrigações entre as partes, pois o que
estabelecia vínculo eram procedimentos formais (chamados ritos ou solenidades)
que deveriam ser observados para a sua formalização, ou com a simples entrega de
determinada coisa, faziam que o ato negocial fosse consumado entre os
interessados. A outorga da exigibilidade jurídica “acontecia com o nexum, também
com o contrato verbal da sponsio e mais tarde com o da stipulatio, sendo este o
mais usado durante a época clássica.”74
Segundo o autor, ainda mesmo no período clássico do direito romano, em
virtude do crescimento do Estado, e com a ampliação do comércio e suas novas
exigências para viabilizar o tráfico jurídico, a configuração destes procedimentos
formais ganhou novos contornos para produzir eficácia quanto à obrigatoriedade
contratual. As formas admitidas passaram a ser as seguintes: “1) da entrega de uma
coisa (re); 2) do pronunciamento de certas palavras (verbis); 3) de certos registros
por escrito (litteris); ou 4) do simples consentimento (consensus).”75
73
THEODORO NETO, Humberto. Efeitos Externos do Contrato. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 74. 74
Id., p. 18. 75
Id.
48
Importante destacar sobre estas alterações ocorridas em Roma que a
aceitação e transformações destes procedimentos para a consecução de novas
modalidades de celebração de contratos traduziam a importância dada não só ao
fenômeno jurídico, mas a adaptação necessária e oportuna aos aspectos de
transformação que ocorriam na economia, na política, e na sociedade.
É a função tangencial do contrato (a exigibilidade) que viabiliza a ação dos
homens na consecução de negócios e atribui à ordem jurídica as novidades que são
deduzidas como novos modelos de interação entre os indivíduos livres que perfazem
a vida econômica. O contrato é o instrumento que coloca objetivamente quais sãos
os direitos e obrigações que se contrai entre partes interessadas para alcançar os
fins sociais e econômicos, desde os primórdios das civilizações até aos dias atuais.
Interessante perceber os fundamentos históricos da teoria contratual
moderna. Evidentemente, sem a pretensão de declinar em termos gerais quais
foram os pontos da trajetória da formação do contrato atual, coloca-se em pauta
apenas alguns pontos que fazem perceber o transcurso de um era cultural que se
inicia na civilização romana.
A decadência e a queda dos romanos podem ser explicadas, basicamente, a
partir de duas causas fundamentais: i) a crise econômica; e ii) a crise social. A crise
econômica sobreveio a partir do século III, em função da “paralisação das guerras
de conquistas, principal fonte de abastecimento dos escravos, e às restrições feitas
pelo cristianismo à escravização”.
A economia romana girava em torno da exploração da mão-de-obra escrava,
e, com tais restrições, o sistema entrou em colapso. A crise social alcançou sua
plenitude no final do século IV. A riqueza estava concentrada com uma elite, cada
vez mais reduzida, que ignoravam os problemas das classes mais pobres.
Ostentavam uma vida de festas e desperdícios em detrimento “de miseráveis entre a
plebe, os comerciantes e os camponeses.” Neste contexto, “o Estado romano
deparou-se com tensões e rebeliões, tanto das massas internas como dos povos
submetidos das províncias”.76
E arremata o autor sobre a queda de Roma:
“Pensando na situação de injustiça, miséria e privações da grande maioria da população do Império Romano, torna-se compreensível o fato de meio milhão
76
COTRIM, Gilberto. História e Consciência do Mundo. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 102.
49
de bárbaros conseguir desestabilizar um império que possuía mais de 80 milhões de pessoas. Em 476, o último imperador do Império Romano do Ocidente, Rômulo Augusto, foi deposto por Odoacro, rei dos hérulos. Era a queda de Roma. O império Romano do Oriente ainda conseguiu sobreviver, embora com transformações, até 1453, ano em que os turcos conquistaram Constantinopla.”77
Conseqüentemente ao episódio histórico relatado, a organização jurídica de
Roma foi substituída pela prática dos costumes e/ou da habitualidade. Enfim, com o
advento do movimento renascentista dos séculos XII e XIII em todos os planos da
sociedade, surgiu também a tendência consensual de que, com a crescente prática
de comércio, com o crescimento da cidades, e da necessidade de se organizar a
sociedade em novo contexto de importância, o Direito é retomado como ferramenta
útil e apropriada para assegurar a ordem e segurança necessárias ao novo
desenvolvimento social.
É por isso que “liga-se ao renascimento a criação da família de direito
romano-germânica, à qual se filiam os sistemas jurídicos hoje vigentes na maior
parte da Europa e em toda a América Latina”.78
Conforme destaca o autor, a ordem civil e o Direito deixaram de ser
confundidos; os juristas e os filósofos repudiaram a arbitrariedade que até então
imprimiam características especiais sobre a forma de ministrar a justiça, a qual era
manipulada com os aspectos da anarquia com apelo ao sobrenatural.
Surge então efetivamente a ciência jurídica desconectada da ordem da igreja
e da vinculação de governos despóticos. Entretanto, o que deve ser destacado neste
ponto do trabalho é o fato de a teoria contratual atual estar influenciada desde as
diversas correntes de pensamento que fizeram a história do momento político e
social entre os séculos XII a XIV. A confluência que deu origem ao conceito moderno
de contrato abarcou a corrente dos canonistas e a escola do direito natural, cujos
pressupostos que marcaram a ciência e a cultura da época vieram a traçar os
fundamentos atuais do direito privado.79
O Direito canônico foi formado na baixa idade média, entre 1140 e 1317,
ocasião em que concluiu-se o Corpus Iuris Canonici. Foi concebida como uma
ciência jurídica, a qual dotou-se de organização e cientificidade para conjugar os
77
COTRIM, 1994, p. 104. 78
THEODORO NETO, 2007, p. 20. 79
Id.
50
conhecimentos das idéias profanas de Roma com a eclesiástica, cuja principal
finalidade era tornar a igreja universalmente jurisdicizada.
Sem entrar no mérito da trajetória histórica da ordem jurídica da igreja em
contraponto com os critérios de organização e aplicação do direito canônico, quer-se
registrar a grande contribuição do jus canonicum dada ao Direito civil (jus civile).
A conexão que viabilizou esta mútua influência foi em função do trabalho dos
glosadores, a serviço dos clérigos, os quais trabalhavam para aperfeiçoar o Direito
profano, utilizado, também, como fonte de Direito para que juízes eclesiásticos
aplicassem as necessárias resoluções às causas seculares da igreja.
Os sinais de influência desta jurisdição estão consubstanciados pela
aplicação dos princípios da teologia moral, os quais ingressaram na esfera dos
deveres jurídicos pela adoção dos critérios canônicos, axiológicos objetivos e
subjetivos, da boa-fé, da consciência, da honestidade, e da misericórdia.
E, principalmente, lê-se a transformação do pacto de vontades, o qual foi
aperfeiçoado também com os critérios do Direito canônico. Assim, o Direito temporal
favoreceu-se com a dispensa das formalidades tradicionalmente posta pelo Direito
popular e pelo Direito civil, pois as tratativas passam a formar-se a partir do
consenso, que tem por base a invocação da fé jurada e da confiança estabelecida
entre as partes.80
No que concerne à contribuição do Direito natural, a maior virtude que se
atribui a esta escola é o fenômeno da codificação, a qual foi utilizada como veículo
do jusnaturalismo e do iluminismo para ditar o Direito que convinha à sociedade
moderna.81
A performance deste Direito advém de uma nova sistemática de trabalho que
desenvolve os juristas na organização e compilação das variadas noções até então
obtidas e concebidas nas diversas acepções da legislação, da doutrina, e da
jurisprudência. Divide-se em categorias científicas o Direito romano, o Direito
canônico, o Direito popular, etc., para reclassificá-los em Direito público e Direito
privado; distinguir o que seria direitos reais dos direitos pessoais; estabelecer quais
seriam as noções de usufruto, servidão, dolo, prescrição, mandato, contrato de
80
THEODORO NETO, 2007, p. 24. 81
Id., p. 25-26.
51
trabalho, etc.82 É assim que acaba por eclodir nas universidades européias dos
séculos XVII e XVIII a escola do Direito natural.
Perceba-se que da passagem do século XVIII para o XIX nascia o Estado
contemporâneo, o qual foi concebido a partir da revolução francesa de 14 de julho
de 1789.83
Importante destacar deste episódio revolucionário que veio marcar e
influenciar a história de todos os povos capitalistas é o fato de se terem conseguido
abolir o regime feudal; proclamou-se a igualdade de todas as pessoas perante a lei,
e iniciou-se a era das grandes codificações, cuja obra inaugural deste novo conceito
legislativo foi o Code Napoléon, de 1804.
Segundo Humberto THEODORO NETO,
“foi o Code Napoléon contemporâneo à revolução industrial e representou fruto político direto da revolução francesa , portanto, vitória histórica da burguesia, classe à qual o advento do capitalismo facultou funções de direção e domínio de toda a sociedade e a cujos interesses a doutrina da liberdade de contratar mais interessava como pressuposto fundamental da circulação de mercadorias e funcionamento do sistema capitalista.”84
Este diálogo é feito em contraposição ao argumento da doutrina de Henry
Summer MAINE, do século XIX, que, segundo o mencionado autor, “aponta a
substituição de uma sociedade baseada em relações de classes (regida pelos
direitos e prerrogativas derivados da classe social em que se insere o sujeito).” Ou
seja, o status da pessoa não mais é fator impeditivo para o exercício da livre
iniciativa, seja para proceder à produção ou à comercialização de bens e serviços,
traduzida pela livre troca e circulação de mercadorias e riquezas de seus agentes
econômicos.
Eis aqui, então, o fundamento de um novo instituto do Direito que passa a
fazer parte do livre tráfico comercial: se a palavra foi dada, ela deve ser cumprida.
Este princípio carrega valores éticos e econômicos, pois, num sistema de livre
mercado, a consecução dos contratos deve ensejar a administração de variáveis
previsíveis com efeitos que podem ser calculados em função da operação
econômica que se quer realizar.
82
THEODORO NETO, 2007, p. 25-26. 83
COTRIM, 1994, p. 283. 84
THEODORO NETO, 2007, p. 27.
52
Percebe-se então que é desde os primórdios do Estado Moderno,85 com as
subseqüentes revoluções do século XVIII e início do século XIX (especialmente pós-
revolução industrial), que a ideologia novecentista da liberdade de contratar
assentou-se em ideais já anteriormente amadurecidos “nas correntes de
pensamento do jusnaturalismo e do iluminismo”.
Neste contexto se diz, então, que o indivíduo deixa de estar aprisionado a um
grupo de sua classe, ou de determinada corporação que lhe classificava e limitava a
competência para qualquer fim, para, agora, assumir efetivamente a sua
potencialidade e a sua personalidade, pelas quais passou a exercer os privilégios da
liberdade, da igualdade, e da fraternidade, com o fim específico de dirigir seu próprio
destino no mundo dos fatos e das relações jurídicas. Este é o mote de uma nova
sociedade que surge forte em seus ideais para a efetiva realização humana.
Relembre-se que nesta trajetória o sistema contratual assentou-se com vistas
para o indivíduo, limitando-se, objetiva e subjetivamente, à esfera patrimonial e
pessoal dos contratantes. Esta é a inspiração que deu origem aos “três princípios
clássicos da teoria liberal do contrato fundados na autonomia da vontade: a) o da
liberdade contratual; b) o da obrigatoriedade do contrato; e, c) o da relatividade dos
efeitos contratuais.”86
Apreciativamente, já se passou pela revisão doutrinária dos princípios da
liberdade contratual e da obrigatoriedade do contrato. Para finalizar este item,
verificar-se-á no que consiste a relatividade do efeito do contrato. A idéia central
deste princípio é o de estabelecer vínculo obrigacional somente entre as partes que
se comprometeram ao contrato, cuja força que cria a vinculação é similar à que
atribui força de lei. Uma vez que o contrato adquiria o caráter da força obrigatória
que permeava o dever da partes, automaticamente o vínculo estabelecido estaria
configurado para gerar efeitos jurídicos entre as partes adstritas ao fenômeno
jurídico colocado em prática.
Uma (ou duas) característica que se atribui a este princípio é o aspecto da
limitação que se impõe ao efeito do contrato, cuja classificação recai sobre o viés da
85
“Não foi à toa que, durante o período medieval, houve uma decadência do comércio. A própria estrutura do sistema feudal dificultava a circulação e a troca de mercadorias. Cada região tinha suas normas, suas moedas, seus tributos, seus sistemas de pesos e medidas. Além disso, havia muito s problemas de comunicação. As estradas eram ruins. Existiam muitas línguas e dialetos. Com o reaquecimento do comércio, os entraves econômicos foram sendo eliminados. No plano político, esse processo foi acompanhado pelo surgimento do Estado moderno” (COTRIM, 1994, p. 183). 86
THEODORO NETO, 2007, p. 33.
53
ordem subjetiva e objetiva, concomitantemente. Segundo o mencionado autor, a
limitação subjetiva diz respeito exclusivamente às partes contratantes, sobre os
quais incidirá a força obrigacional e o efeito vinculante do contrato. A limitação
objetiva diz respeito aos contornos e aos limites intrínsecos relacionados ao objeto
pactuado, ou seja, a obrigação e vínculo do contrato se delimitam na exata medida
do objeto pactuado entre as partes. O que estiver fora deste contexto, não obriga
nem vincula os titulares do contrato.
2.2. NOVOS PRINCÍPIOS DO DIREITO CONTRATUAL
Desde o advento do liberalismo, o contrato apresentou-se substancialmente
dinâmico no meio social. Sua aparente estaticidade reflete nada mais que uma
leitura restrita do momento que situa a análise, pois a lógica do sistema é auto-
configurar-se em função da constante evolução e adaptações às novas realidades
que até então conhecemos. É por isso que o Direito contratual, hoje, está
circunscrito em um novo panorama, jamais visto pelas concepções clássicas de
relacionamentos econômicos e sociais.
Para melhor ilustrar o fenômeno acima descrito, basta verificar os fatos
históricos que relatam os acontecimentos no mundo. Diante do aumento dos
incontáveis negócios jurídicos que se consumam cotidianamente, bem como a
transformação da sociedade agrária para uma sociedade eminentemente industrial,
capitalista, e consumerista87, percebe-se que o poder público também mudou sua
postura diante dos novos fatos econômicos e sociais que, geometricamente,
emergiram entre os diversos povos e nações.
Logicamente, tais transformações não poderiam estar insensíveis ao contexto
das iniciativas do poder público, pois o Estado somente se justifica pela sua efetiva
atuação preceptiva ao garantismo da viabilidade social. É claro, então, que resta ao
Estado, em direção restrita, a ingerência inevitável no poder privado afim de que o
mesmo possa ter sob controle os critérios objetivos para a harmonização da vida em
comum, seja entre pessoas físicas ou jurídicas.
87
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: O novo regime das relações contratuais. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 222.
54
Uma vez que a autonomia privada está relativizada, o contrato deixou de ser
um átrio à livre criação negocial dos indivíduos. Hoje, o instrumento de viabilização
de negócios jurídicos contempla uma parcela inafastável e inerente à natureza
jurídica da função social.
Cláudia Lima MARQUES88 faz uma complexa análise dos aspectos objetivos
atuais da nova teoria contratual. Ao comentar sobre os interesses sociais do
consumidor (art. 5.º, XXXII, CF/88), não deixou de tangenciar o mandamento
constitucional relacionado à ordem econômica (art. 170, V, CF/88), e contempla,
incisivamente, a enunciação havida ao legislador derivado (art. 48 dos ADCT) para a
consecução de um diploma que efetivamente satisfizesse a vontade do legislador
impressa na Constituição Federal de 1988.
Foi neste contexto que o princípio da função social do contrato ganhou maior
relevo na doutrina e na legislação. Remete-se à leitura do art. 421 do Código Civil, o
qual diz: “a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função
social do contrato”.
A autonomia da vontade deixa de ser a única fonte de obrigações pactuada
entre partes contratantes. A mesma tinha por função, apenas, a auto-
regulamentação de interesses próprios, porém, foi delimitada pela lei. Assim, o
Direito, agora, é quem oferece o instrumento adequado para que ocorra a auto-
regulamentação de interesses particulares, pois a vontade é apenas “pressuposto e
fonte geradora das relações jurídicas já reguladas em abstrato e em geral, pelas
normas jurídicas.” Assevera a autora que a autonomia privada passou a ser objeto
de reconhecimento da ordem jurídica, de forma ativa, e, por conseqüência, é esta
quem coloca limites ao exercício da autonomia da vontade.
Esta nova concepção do Direito dos contratos implica numa leitura jamais
feita no mundo dos negócios jurídicos. Legislação, doutrina e jurisprudência movem-
se para aperfeiçoar os limites da justa distribuição de direitos e obrigações entre
partes contratuais. Nesta perspectiva, os contratos foram inseridos em um processo
de reestruturação de eqüidade,89 o que trouxe equivalência prestacional que
assegura aos interessados, intrínsecos e extrínsecos, ao contrato, uma proteção
objetiva da confiança e da boa-fé.90
88
MARQUES, 2002, p. 216. 89
Sobre o novo princípio da justiça contratual... (POPP, 2008, p. 95). 90
MARQUES, 2002, p. 177-178.
55
Desta assertiva, ensina a autora que o Direito acaba por ficar relativizado em
seu propósito positivista, e, portanto, com potencial dedutivo, enquanto ciência, para
reconhecer a influência do social, consubstanciada nas vertentes dos costumes, da
harmonia, e da tradição.
Quando o ordenamento jurídico passou a ser manejado sob este enfoque,
verifica-se que a lógica dedutiva, para interpretação e aplicação da lei, foi preterida
em face de o caso concreto. Nesta linha de resolução de problemas emerge o
pensamento tópico para justificar os meios de proteção à ordem social, uma vez que
a sistematicidade do silogismo não mais tem o condão de aperfeiçoar o verdadeiro
significado de um contrato no contexto do mundo globalizado. As evidências
demonstram as transformações qualitativas da legislação vigente, as quais migraram
de contextos mais abstratos para o mais concretos, e dos mais conceituais para os
mais funcionais.91
Com a superveniência desta dogmática desencadeou-se novas possibilidades
para aplicação de princípios contratuais inovadores com suas conseqüentes
resoluções de conflitos. Sob a égide de um novo preceito social, foram re-
potencializados os juízes e os doutrinadores, pois, agora, têm-se maior flexibilidade
para atuação quando partem do pressuposto que o caso concreto é, em parte, o
objeto do Direito, e não o contrário.
Para que estas premissas fossem colocadas em prática, o ordenamento
jurídico não poderia prescindir dos princípios que contemplam a matéria em estudo.
Nesta disciplina, os seguintes princípios norteiam, então, a aplicabilidade do sistema
no Direito contratual, a saber: i) transparência; ii) boa-fé; iii) eqüidade; e, iv)
confiança.92
O princípio da transparência requer uma aproximação sincera na relação
contratual entre cliente e fornecedor, ou seja, isenção de reserva mental. Segundo
Cláudia Lima MARQUES, este princípio deve significar a precisão das informações
sobre o produto ou o serviço objeto do contrato, e a clareza de seus termos deve ser
notória para sua celebração. Em as partes agindo assim, estarão demonstrando
lealdade e mútuo respeito à relação contratual que estabeleceram.93
91
MARQUES, 2002, p. 179. 92
AZEVEDO, Álvaro Villaça. Teoria Geral dos Contratos Típicos e Atípicos. São Paulo: Atlas, 2002, p. 22. 93
MARQUES, 2002, p. 595.
56
Exemplificativamente, os aspectos de oferta do fornecedor, publicidade e/ou
propaganda, sejam estes por qual meio for, as especificações que menciona, ou, as
condições pelas quais oferece produtos e/ou serviços, devem ter por premissa a
veracidade das informações, uma vez que as mesmas sujeitam, quem as veicula, a
responder por elas na categoria pré-concebida de oferta-contratual. Neste viés, a
transparência deve ser evidente, pois este aspecto caracteriza a pré-disposição de
cláusulas potenciais ao contrato principal.
Outro fator importante, senão o mais relevante da principiologia contratual, é a
boa-fé objetiva. A doutrina menciona o entendimento deste caracter desde os
primórdios do Direito natural, o qual foi tratado como princípio geral da boa-fé. Hoje,
trata-se de uma espécie de “mandamento [...] obrigatório a todas as relações
contratuais na sociedade moderna”.94
Com o advento da nova teoria contratual, o princípio da boa-fé objetiva
ganhou novo relevo com um conjunto de funções até então inerte no ordenamento
jurídico, quais sejam: i) passou a funcionar como balizamento para geração de
novos deveres, anexos, durante o vínculo contratual; ii) passou a limitar o exercício
do direito subjetivo, antes lícito, agora abusivo conforme o caso; e, iii) consolidou-se
como mecanismo de materialização dos pactos, bem como aprimorou a técnica de
interpretação dos contratos.95
Quando da operacionalização de um determinado contrato, poderá surgir,
para os contratantes, deveres outros que não estavam previstos na configuração
inicial do objeto do negócio, pois, via de regra, o próprio ordenamento jurídico
poderá lhes impor condições adicionais para o aperfeiçoamento do contrato. Neste
caso, haverá o suplemento do dever de bem informar, cuidar e cooperar com os
aspectos complementares do contrato celebrado.
Relativamente aos limites impostos ao exercício do direito subjetivo, o que se
pretende com a instituição destes cercamentos é manter o justo equilíbrio entre as
partes, impedindo eventuais abusos, protegendo o devedor de condutas que
possam lhe trazer maior risco pessoal e/ou profissional do que aquele inicialmente
previsto como razoável.
No que diz respeito à terceira função, aplicando-se o princípio da boa-fé na
leitura e interpretação dos contratos, verifica-se que a relação contratual estará
94
MARQUES, 2002, p. 180. 95
Id.
57
pautada por preceitos de lealdade e respeito para com o outro contratante, e isto
possibilita a previsibilidade contínua do comportamento da outra parte, o que é
fundamental para o seu aperfeiçoamento.
Pode-se perceber que a eqüidade e a boa-fé se complementam para trazer
justeza à relação contratual. Diz-se eqüitativo quando há o equilíbrio de direitos e
deveres entre as partes, de forma que há, assim, a preterição do abuso de direito
consubstanciado na subjetividade ideal do ato. Em assim ocorrendo, não haverá a
obtenção de vantagens unilateral ou exagerada96 para quem vende ou compra
determinado produto e/ou serviço. Os jeitos ou os modos egoísticos são afastados
da relação contratual, uma vez serem incompatíveis com nova realidade econômico-
social.
É considerando o ditame da justiça social, observando-se o contexto
mercadológico, que a principiologia contratual aprimorou-se também no quesito
confiança. Não fosse este princípio, reconhecido na nova teoria contratual, haveria
grande dificuldade para movimentar-se ou transferir-se riquezas no mundo. Se
assim fosse, seria muito difícil dar legitimidade aos diversos interesses econômicos.
Salutar, portanto, é o ordenamento jurídico impor-se como regramento legal de
condutas e funcionar como “imperativo de seus efeitos”.97
Entretanto, referida confiança, que muito se ventila nas variadas fontes do
Direito, requer uma perspectiva de aplicação prática ao quesito social. Se o “atributo”
da confiança em si fosse mera característica para denotar ou não a viabilidade
negocial dos contratos, certamente o fim individualista também estaria identificado
com a simploriedade do ideal liberal.
É exatamente para não cair no regaço do conformismo, ainda que no
transcurso de vigência da Constituição de 1988, a chamada Constituição cidadã,
que propõe, por exemplo, a jurista Teresa NEGREIROS,98 o debate sobre a adoção
de novos paradigmas principiológicos para fins de estudo e aplicação na teoria do
contrato.
A autora remete à leitura em sua obra acerca dos novos princípios que vieram
somar-se aos da antiga concepção liberal, quais sejam: boa-fé, equilíbrio econômico
96
MARQUES, 2002, p. 741. 97
Id., p. 979. 98
NEGREIROS, Teresa. Teoria do Contrato: novos paradigmas. Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 2006.
58
e função social.99 Estes princípios ganharam nova perspectiva funcional uma vez
que o Direito Civil passou a ser lido sob a ótica do Direito Constitucional,
necessariamente.100
Por ora quer chamar-se a atenção para o fato de que nem mesmo a
funcionalização atual do Direito Civil, através do Direito Constitucional, é capaz de
ponderar e resolver as equações possíveis que emergem da combinação dos novos
princípios que passaram a integrar o ordenamento jurídico, estejam eles combinados
ou não entre si. Dizer-se, simplesmente, que os princípios da antiga concepção
liberal, isoladamente, estão ultrapassados, não corrobora a idéia de que, agora, com
o advento dos novos princípios que permeiam o sistema, a finalidade última do
ordenamento jurídico esteja atingida. Veja-se que os objetivos de se “construir uma
sociedade livre, justa e solidária” (art. 3.º, I, CF/88), sob o fundamento de que é “a
dignidade da pessoa humana” (art. 1.º, III, CF/88) o núcleo do sistema que deve
nortear e definir os rumos da ação política, executiva, e judicial, de cidadania, não
vislumbra lograr êxito em si mesmos pelo fato de ser patente a lacuna ou ausência
de parâmetros (ou regras) que realmente poderiam materializar o contexto destes
propósitos.
Interessante perceber na doutrina a tentativa de fazer-se desdobramentos
outros que melhor possam transparecer a finalidade constitucional em processos
concretos no exercício da jurisdição. Remete-se à idéia da autora Teresa
NEGREIROS quando esta propõe fragmentar a teoria contratual para formular novos
critérios de classificação do contrato (enquanto mote norteador do Direito
contratual).101
A autora relaciona algumas novas opções que podem ser tratadas como
novos paradigmas no direito dos contratos. Para tanto, assevera acerca das
necessidades humanas reclamando-se por um cotejo que faz a classificação dos
bens pautada na essencialidade dos mesmos para determinar os modos e os efeitos
da tutela que se poderia dar a um mínimo existencial sobre o direito dos contratos.
99
NEGREIROS, 2006, p. 105. 100
Nos itens seguintes deste trabalho será abordado o conteúdo destes princípios, os quais perfazem atualmente as limitações que se impõe à autonomia privada, principalmente à que está relacionada à liberdade contratual. 101
NEGREIROS, 2006, p. 277.
59
Basicamente, esta idéia estabelece como parâmetro identificar-se a utilidade
dos bens para fazer-se deles uma correta classificação econômica; feito isto,
verifica-se a gradação da essencialidade do objeto para definir este atributo como
paradigma bastante na qualificação do que é ou não é relevante numa determinada
relação contratual.
Realmente, pode haver um sem-número de opções principiológicas que
podem ser desdobradas a partir do Direito Constitucional. Estes desdobramentos,
por conseguinte, também podem ter potencial para iluminar o Direito Civil (e o
contratual, mais especificamente) de como poderia ser levado a cabo o projeto feito
pelo legislador constituinte. Basta lançar mão das ciências humanas, sociais, exatas,
etc., para verificar-se o quanto é lacunoso o Direito na trajetória de sua história
jurídica, ainda mais em se tratando de sociedades altamente complexas,
contemporâneas de ideologias diversas e conterrâneas do antagonismo econômico
e social que dirige o ocidente.
Ainda que se escreva que o aperfeiçoamento do sistema jurídico deva vir pela
prática social, em substituição da sonhada e esperada iniciativa do (“impotente”)
legislador ordinário, é de reconhecer-se que a expertise potencial da jurisdição
dificilmente será formatada no plano substancial, pois, teoricamente, não há como
traduzir e enfeixar os métodos e procedimentos que definem qual é a liação social
ideal que poderia ser objetivamente distribuída, imperativamente, a cada um dos
destinatários do cenário econômico (trans)nacional.
Entretanto, mister se faz um esclarecimento primordial: o Direito se colocou
sob um novo jaez para verter sua ideologia funcional, a qual está orientada para
uma nova ordem constitucional que se fundamenta nos direitos humanos. Esta
“nova linha de idéias, chamada pós-modernismo jurídico”, tem por finalidade geral
privilegiar a dignidade da pessoa humana, a qual se conduz para despatrimonializar
o Direito privado.102
2.3. LIMITE OPERACIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA: A DIGNIDADE DA
PESSOA HUMANA
102
POPP, 2008, p. 85.
60
A doutrina jurídica pátria e estrangeira apresenta uma infindável gama de
opções literárias para estudo, compreensão e cognição da categoria denominada
“dignidade da pessoa humana”. Neste tópico do trabalho, o desafio que se coloca é
a redução desta classificação com o intuito de melhor dissecar uma das
possibilidades de se ter esta categoria de análise em confronto com um dos
aspectos práticos da vida empresarial, ou seja, em que pode efetivamente pesar a
dignidade da pessoal humana quando em cotejo com o abuso do Direito relacionado
à liberdade de contratar e à liberdade contratual.103
Quer-se, pelo menos, vislumbrar em que aspecto o ordenamento jurídico
pode ser melhor aproveitado para efetivar, sob mais um viés, qual é o efeito prático
de se ter o princípio da dignidade da pessoa humana como parâmetro limitador
objetivo ao exercício da autonomia privada no âmbito da atividade empresarial. O
caminho que se coloca nesta empreitada não traduz concepção absoluta de manejo
destes instrumentos, mas quer-se apenas chamar a atenção para mais um modo de
refletir como estes institutos constitucionais poderiam ser também sopesados com a
finalidade última de dar cabo aos propósitos sociais declinados pelo legislador.
Para que se atinja este objetivo, necessário se faz recordar alguns conceitos
importantes, a começar pelos contornos atuais da autonomia privada em face das
situações jurídicas subjetivas existenciais.104 Requer-se abertura de dialética ao
tema proposto, pois os conceitos jurídicos não podem ser tomados como categorias
rígidas de análises. A combinação e a conjugação de tais elementos dão ampla
possibilidade de afetação da ciência jurídica em face da dinâmica realidade
econômica que se verifica no dia a dia, e poder-se-á experimentar este raciocínio na
oportunidade em que o aludido princípio constitucional da dignidade da pessoa
humana for desdobrado em cascata para examinar-se os direitos da personalidade,
na perspectiva que aqui interessa ver.
Estas anotações têm finalidade provocativa, não, porém, de forma
desarrazoada. Via de regra, muito se diz sobre as formalidades da dignidade da
pessoal humana, e, o que se quer, neste prisma, é separar categorias de análise do
objeto deste trabalho para ensaiar um desdobramento possível de realização prática
deste grande princípio apregoado no cotidiano da vida econômica. 103
PINHEIRO, Rosalice Fidalgo. O abuso do direito e as relações contratuais. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 179. 104
MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Autonomia privada e dignidade humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 63.
61
No contexto da messe jurídico-econômica, alguns elementos desta lide são
incansavelmente repisados e reordenados por si só, como por exemplo: a liberdade
jurídica, a autonomia da vontade (que não se confunde autonomia privada), a
autonomia negocial, etc. Entretanto, a conceituação singular do que poderia dar
ensejo a uma maior sensibilidade a uma novel concepção do social geralmente fica
obnubilada pela fumaça de um suposto bom Direito quando colocado em jogo
apenas os fins de interesses individuais ou organizacionais.
Isto ocorre porque não é possível definir, objetivamente, qual é a essência de
um sem-número de conceitos jurídicos que estão relacionados aos princípios
constitucionais. Todavia, releia-se a seguir algumas conotações geralmente aceitas
pelos juristas de renome no certame acadêmico.
Quanto à liberdade jurídica, a máxima que se tem é o fato de em não
havendo determinada proibição, ter-se-á, por sua correspondente, a implicada
permissão de os particulares agirem livremente em função do que lhes é lícito. É o
que está previsto na Constituição Federal de 1988, em seu art. 5.º, inciso II:
“ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de
lei”. Eis aqui o princípio da legalidade, pelo qual se deduz a cláusula geral de
liberdade no Direito brasileiro.105
No que concerne ao dogma da vontade, relaciona-se a este fenômeno de que
a vontade individual é o ápice de sua essência. Vale dizer, ela traduz a liberdade de
o indivíduo em determinar-se, escolhendo praticar ou não um ato jurídico,
independentemente da interferência externa de outras pessoas ou mesmo do
próprio Estado. Retrata a esfera subjetiva de seus termos, pois inerente apenas aos
aspectos psicológicos do sujeito.
Este foi o matiz necessário à consecução da política econômica liberal, pois
era a vontade do indivíduo a causa original para vincular-se numa determinada
relação jurídica. Evidentemente que neste liame muitas outras considerações
técnicas acabaram por relativizar o conceito de proteção à autonomia da vontade,
uma vez que outros elementos de formação da relação jurídica por vezes viciavam o
ato em função dos aspectos de reserva mental, qualidade de declaração,
impossibilidade de proteção da vontade real do agente, etc. Especialmente nos dias
105
MEIRELES, 2009, p. 65.
62
de hoje, a liberdade de contratar foi, também, relativizada com a finalidade social do
negócio jurídico, sem mencionar, ainda, os ditames da boa-fé objetiva.
Aliás, estes são os elementos configuradores que transformaram o conceito
da autonomia da vontade. Verificou-se que houve uma evolução do princípio no
sentido de a sua característica atual estar rotulada pelo princípio da autonomia
privada. Destaca Rose Melo Vencelau MEIRELES as lições de Francisco AMARAL
para dizer que aquele, o princípio da autonomia da vontade, “dá relevo à vontade
subjetiva, psicológica, enquanto que a tese da autonomia privada destaca a vontade
objetiva, que resulta da declaração ou manifestação da vontade, fonte de efeitos
jurídicos.”106
Enfatiza que o ordenamento jurídico atribui à autonomia privada o
instrumental para regular e operar os diversos interesses próprios, mas chama
atenção para o fato de que o poder de constituir, modificar, ou extinguir efeitos
jurídicos, na esfera de interesse do declarante, possui uma característica própria de
negócio jurídico que nem sempre traduz a “expressão única da autonomia privada”.
Neste sentido, relaciona a lição de Pietro PERLINGIERI para conceituar o
fenômeno da autonomia negocial. Para este autor, esta locução está definida pelo
“poder reconhecido ou atribuído pelo ordenamento ao sujeito de direito, privado ou
público, de regular com a própria manifestação de vontade interesses privados ou
públicos, porém, não, necessariamente próprios.”107
Enfim, o que se quer dizer com estas conceituações é que o Direito privado,
no sistema brasileiro, reconhece amplamente todo e qualquer negócio jurídico, com
seus efeitos correlatos, inclusive responsabilidades, sem se fazer distinção se o
mesmo possui ou não conotação negocial, pois a autonomia específica desta
vertente está abarcada pelo instituto de maior valor sob a ótica do Direito civil
constitucional,108 seja em qual perspectiva for. Lê-se, pela legislação e pela doutrina,
o grande erro que se cometeria se limitada fosse a eficácia dos direitos civis e do
Direito privado, pelas quais se observa a tendência de se poder assumir,
efetivamente, “o papel do Estado Social”.109
O que é importante destacar, e que não pode passar despercebido, é que o
instituto da autonomia privada não está inserto com exclusividade no ordenamento 106
MEIRELES, 2009, p. 68. 107
Id., 71. 108
POPP, 2008, p. 88. 109
Id., p. 53.
63
jurídico. Esta noção dicotômica do Direito público situa-se num lugar bem definido no
plano constitucional, o qual somente deve ser compreendido e aceito se vier a
perfazer como parte de um sistema que reclama soluções outras que sejam diversas
do fim exclusivamente econômico ou financeiro.
É por isso que se reclama fazer um necessário cotejo dos conceitos que
provocam este subtítulo, pois nas conseqüências factuais da vida prática quase
sempre os agentes econômicos passam despercebidos de quais são as variáveis
econômicas que estão ou não adstritas com os fins do programa social
constitucional.110
Assim, para que isto seja possível, propõe-se um método de reflexão para,
simplesmente, desdobrar-se, na essência do instituto, o que seja o princípio da
dignidade da pessoa humana no contexto do tráfico jurídico (especialmente no
âmbito da atividade empresarial). Uma maneira de vivenciar e apalpar o confronto
da tese deste princípio constitucional com os chamejantes vetores que integram as
iniciativas da atividade privada é medir em que medida os negócios jurídicos
produzem efeitos que venham a concernir, por exemplo, com os propósitos de
eleição e manutenção dos elementos que compõe a vida cidadã.
Mas, entenda-se: manutenção da vida, por exemplo, no sentido de satisfação
daquelas vertentes preconizadas pelo art. 6.º da CF/88.111 A diretriz que pode dar
ensejo para esta análise é o liame dos direitos da personalidade,112 sobre os quais
haverá um maior detalhamento para ilustrar a proposta colocada em tela.
Sílvio de Salvo VENOSA é enfático ao escrever: “os direitos da personalidade
são os que resguardam a dignidade humana”. E ainda: “geralmente, os direitos da
personalidade decompõem-se em direito à vida, à própria imagem, ao nome e à
privacidade”113 (grifo nosso).
O que se quer explorar nesta reflexão é a vertente de proteção à vida.
Inicialmente, demonstra-se que o princípio da dignidade da pessoa humana só tem
sentido de ser em se tratando de pessoa cujo ser é o destinatário do programa
110
“É dentro deste quadro que o legislador deve resolver a ineliminável tensão, sempre existente, entre a exigência de liberdade pessoal e a exigência de controlo social” (RIBEIRO, Joaquim de Sousa. O problema do contrato. Coimbra: Almedina, 1999, p. 236). 111 Art. 6.º, da CF/88: “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.” 112 V. artigos 11 a 21 do Novo Código Civil. 113
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: parte geral. São Paulo: Atlas, 2006, p. 173 e 174.
64
constitucional. A cidadania que “desejou” o legislador, para ser realizada, é possível
obtê-la, todavia com a consecução inevitável dos meios que perpassam pela
trajetória crucial demarcada pela satisfação das necessidades humanas
relacionadas como direitos sociais no art. 6.º da CF/88.
Para não desviar-se do foco deste trabalho, toma-se deste mandamento
apenas a vertente econômica que lhe perfaz o arcabouço que entrelaça as
finalidades empresariais.
Já se fez referência a este fato, mas vale lembrar, mais uma vez, a lição
escrita por Francisco AMARAL: “O princípio da dignidade da pessoa humana é um
valor jurídico constitucionalmente positivado que se constitui no marco jurídico, no
núcleo fundamental do sistema brasileiro dos direitos da personalidade como
referência constitucional unificadora de todos os direitos fundamentais.”114 (grifo
nosso)
Está claro que o objetivo é tomar o fator “vida do ser humano” para
estabelecer, com ele, um link necessário entre a principiologia constitucional com a
matéria do Direito Civil, preferencialmente a que está relacionada aos direitos da
personalidade. E ainda, demonstrar que a não observância dos princípios da ordem
econômica afetam as diretrizes estabelecidas para os fins sociais do art. 6.º, o que
fatalmente implica em prejuízos reais para a vida das pessoas. Em se verificando
este aspecto de determinado ato negocial, estará caracterizado o atentado contra o
princípio da dignidade da pessoal humana.
Vale repassar pelo terreno dos conceitos necessários e bastantes que dão
legitimidade às idéias fundamentais de um sistema (ainda mais pela conjugação de
idéias que se quer apresentar). Francisco AMARAL abre o estudo dos direitos da
personalidade dizendo que estes “são direitos subjetivos que têm por objeto os bens
e valores essenciais da pessoa, no seu aspecto físico, moral, e intelectual.”115
Dentre as várias vertentes deste Direito, a vida não é atributo puro e simples
que deve ser preservado apenas pelo aspecto da boa fisiologia ou da evitação da
patologia propriamente dita. A vida requer providências outras que fazem somar
uma série muito diversificada de demandas para que a mesma seja viabilizada em
termos ideais, como preconizado pelo legislador. Garantir a vida biológica, enquanto
114
AMARAL, Francisco. Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 249. 115
Id., p. 245.
65
ser vivo, é um aspecto mínimo que a própria natureza, em muitos casos, dá conta
para consecução de seu projeto divinal.
Agora, eleger um padrão de vida social que traduza a cidadania reclamada no
inciso II, do art. 1.º, da CF/88, necessário se faz apontar um ou vários caminhos que
permitam viabilizar o equacionamento de variáveis que propiciem usufruir dos
direitos e garantias fundamentais preconizados pela Constituição.
Aliás, referido autor leciona, logicamente, que o direito à vida é inerente à
pessoa, o qual nasce com ela, e é intransmissível e inseparável de seu titular. Uma
vez que sua eficácia se opõe contra todos, classifica-o como absoluto neste quesito,
entretanto faz lembrar que este mesmo direito de personalidade sofre uma variação
que o reduz à relatividade de seu efeito: trata-se do direito subjetivo público “de
exigir do Estado uma determinada prestação, como ocorre, exemplificativamente,
com o direito à saúde, ao trabalho, à educação e à cultura, à segurança e ao
ambiente.”116 (grifo nosso)
Perceba-se que não se tem como dissociar os elementos do artigo 6.º da
CF/88 com o ditame do inciso III, do art. 1.º. E é exatamente pelo fato de este ser o
núcleo de todo o ordenamento jurídico que não há como ignorá-lo no ambiente da
ordem econômica e financeira, uma vez que este princípio maior também integra os
objetivos prescritos no art. 170 da Constituição Federal.
Indubitavelmente, apenas para esclarecer, o tema sobre a dignidade da
pessoa humana remonta inúmeros conceitos, obras, classificações, etc., que pode
ser desdobrado num infindável certificado doutrinário. A classificação que chama
atenção neste trabalho é a que faz alusão aos fins e propósitos impressos na
Constituição da República Federativa do Brasil, que o coloca como fundamento da
república, e lhe é conferido status como princípio norteador de todo o ordenamento
jurídico, pois “o ser humano é um valor em si mesmo, e não um meio para os fins
dos outros.”117
Outros dispositivos emanam do art. 1.º, III, da CF/88, conforme levantamento
inventariado por Alexandre dos Santos CUNHA, a saber:
“É o caso da igualdade formal (art. 5.º, inciso I), do direito geral de ação (art. 5.º, inciso II), da liberdade religiosa (art. 5.º, inciso IV), da liberdade de expressão (art. 5.º, inciso IX), da intimidade, da vida privada, da honra e da
116
AMARAL, 2000, p. 248. 117
Id., p. 249.
66
imagem (art. 5.º, inciso X), da inviolabilidade do domicílio (art. 5.º, inciso XI), do sigilo de correspondência e comunicações (art. 5.º, inciso XII), do livre exercício profissional (art. 5.º, inciso XIII), do sigilo processual (art. 5.º, inciso LX), dos direitos sociais do art. 6.º, dos princípios gerais da atividade econômica do art. 170, da usucapião constitucional dos arts. 183 e 191, do direito à saúde (art. 196), à educação (art. 205), à cultura (art. 215), ao desporto (art. 217) e a um meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225), da proteção da família (arts. 226 a 230); e das tutelas da integridade física (art. 5.º, inciso III) e do dano moral e à imagem (art. 5.º, inciso V).”118 (grifo nosso)
Da mesma forma, outras legislações esparsas dão conta dos direitos da
personalidade que estão regulamentados pelo ordenamento civil, e não diretamente
com previsão legal na Constituição. De toda sorte, o que se estabelece neste
contexto é o fato de que o intrincamento apresentado pode dar ensejo a um método
de avaliação objetiva de como pode ser medida ou mensurada as conseqüências ou
os efeitos de determinados negócios jurídicos os quais são levados a termo pela
simples operação mercantil que lhe é própria da livre iniciativa dos agentes
econômicos e que estão sob o manto da autonomia privada.
2.4. EFEITOS EXTERNOS DO CONTRATO RELACIONADOS À JUSTIÇA SOCIAL
Nos itens anteriores identificou-se quais são os novos princípios que vieram a
integrar a ordem de regência do Direito contratual contemporâneo. Neste diapasão,
colocou-se a nota que dá a afinação instrumental do sistema, qual seja: a dignidade
da pessoa humana. Mas, todavia, apenas dizer que o Direito contratual, agora,
abarca princípios adicionais à ideologia liberal, e que referida dignidade é o centro
do ordenamento jurídico, não elucida, satisfatoriamente, a que veio inovar o novo
Direito civil-constitucional em função deste tema.
A priori, não é difícil relacionar a terminologia dos efeitos externos do contrato
com o princípio da relatividade de seus efeitos, quando analisado sob o aspecto de
vinculação entre partes interessadas. O conceito de “efeitos externos do contrato”
pode ser tomado no sentido amplo do instituto, que não somente o jurídico, mas
também o econômico, o social, o político, o religioso, etc. Quando se faz alusão, em
118
CUNHA, Alexandre dos Santos. In: MARTINS-COSTA, Judith. A reconstrução do direito privado. São Paulo:
Ed. Revista dos Tribunais, 2002, p. 255.
67
específico, ao princípio da relatividade, pode-se tomá-lo, por exemplo, pelo viés dos
interesses imediatos das partes, isoladamente; ou, em conjunto, acoplar os
interesses mediatos de pessoas outras que também sofrem a incidência da radiação
circunstancial do fenômeno em si.
Referida matéria requer cuidadosa reflexão de seus aspectos históricos de
formação para bem entender qual a finalidade e propósitos atualmente constituídos
para conceber a real dimensão dos efeitos relativos do contrato. Quando o contrato
atua nas mais variadas dispersões funcionais de seus termos, os terceiros também
não deixam de ser destinatários do novo comando legal, que consigna novas
exigências para colocar-se em prática adaptações diversas ao certame dos direitos
e obrigações pactuados entre partes relacionadas do contrato.
Cabe aqui fazer uma rápida revisão, também, sobre a oponibilidade de
contratos; mas, para tanto, firma-se o entendimento no fato de que o princípio da
relatividade imprime, necessariamente, a restrição dos efeitos para quem o celebrou,
não permitindo que a esfera subjetiva de terceiros seja atingida por conta de
estipulações alheias (perceba-se o paradoxo legal desta declaração: ela tanto pode
ser lida sob a ótica do regime da principiologia clássica dos contratos, quanto sob os
princípios da nova ordem constitucional).
Segundo Humberto THEODORO NETO,119 a oponibilidade ao contrato deve
ser tomada na acepção de um dado social, e não como expressão dos fins
egoísticos que subjazem ao individualismo concebido apenas para tangenciar a
finalidade da parte enquanto membro de uma sociedade.
Isto porque a oponibilidade das convenções está para fato social circunscrito
ao poder de terceiros, e não integra o direito ou o dever intrínseco que está
relacionado ao objeto da transação. Entretanto, deve-se mencionar que,
essencialmente, referida oposição consiste no dever precípuo de os terceiros
respeitarem as convenções ou os contratos em geral, os quais não podem ser
ignorados em sua existência material ou formal pelos que não debitam ou creditam
alguma participação concreta no conhecido episódio.
Genericamente, referido autor assim resume este conceito:
“A cogitação do princípio ou da idéia de oponibilidade das convenções aos terceiros decorre da sua apreciação não como um ato jurídico, mas, sim,
119
THEODORO NETO, Humberto. Efeitos Externos do Contrato. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 64.
68
como um fato jurídico. Apesar de o terceiro não possuir nenhum direito de crédito nem responsabilidade em razão de um contrato no qual não figura como parte, ele tem o dever de respeitá-lo e não pode agir como se ignorasse sua existência e seus efeitos jurídicos.”120
Percebe-se então que referida idéia tem relação direta com os aspectos
subjetivos de terceiros, quando alheios às avenças de partes diversas diretamente
relacionadas a um contrato. Este era o entendimento adotado para uma espécie de
indivíduo concebido a partir das idéias iluministas e formatadas pelo sistema liberal
do século XIX. Ao adentrar-se à realidade econômica e social do século passado, o
Estado logrou organizar-se sob o regime da democracia, o que viria a mudar o
enfoque relacionado uma vez que o sistema deixa de orbitar exclusivamente em
torno do indivíduo, para somar, ou agregar, uma nova componente social: o bem
comum.
Logicamente, este processo de transformação da ideologia liberal não veio
para dizimar os propósitos estabelecidos pela realidade política, econômica e social
adscrita na história desde a Revolução Francesa do século XVIII. O que se
inaugurou sob o novo regime foi a tomada oportuna de princípios outros que
também passaram a reger o liame contratual, indispensáveis para um novo modelo
de Estado que começou a se preocupar com os aspectos socais quando do trato da
“coisa econômica”.
Assim, inevitável foi o redirecionamento no trato da sistemática de trabalho ao
ter que contemplar e administrar os novos reflexos que o contrato deveria trazer aos
interessados e ao co-respectivo grupo de interesse (a coletividade
correspondentemente qualificada), especialmente no que diz respeito à conduta dos
contratantes – que deixam de ser meros indivíduos, para figurarem como pessoas
humanas efetivamente gregárias -, e dos terceiros – que passam a ser tratados
também como coletividade interessada na repercussão social que podem (e devem)
oferecer os contratos em geral.
Conforme explicações declinadas no início deste trabalho, a sociedade não
pode prescindir de nenhum aspecto do tráfico econômico legalmente constituído,
como fator de distribuição de riquezas, e de pressuposto para o desenvolvimento e o
bem-estar da ampla coletividade. É através do contrato, como instrumento formal
120
THEODORO NETO, 2007, p. 64.
69
dos feitos industriais, comerciais, e de serviços, que a comunidade pode se
organizar no sentido de também prospectar os fins estabelecidos pela República.
A atividade econômica, somada à segurança jurídica imparcial, viabiliza, sim,
o empreendedorismo, pelo qual se percute a dinâmica do progresso social sobre
sólida plataforma de crescimento. Por outro lado, esta ascensão, intimidada, pode
ser verificada em função de um modelo teórico e prático de contratos que ainda não
concebeu qual a real dimensão dos efeitos que devem alcançar segundo os ditames
prescritos pelos novos paradigmas de Estado social.
Reclama-se, neste ponto, vislumbrar o conhecimento teórico das várias
nuances que pode comportar determinado contrato, relativamente à eficácia. A
cognoscibilidade de seus prismas científicos abarca a necessidade de conhecê-los
em suas vertentes intrínsecas (no plano dos efeitos internos) e extrínsecas (no plano
existencial). Esta diferenciação remete à idéia de se ter o contrato como um sólido
geométrico pelo qual se verifica objetivamente qual modo de implicação se quer
medir de seus efeitos, sejam eles no que diz respeito à abrangência da
obrigatoriedade em si, ou da potencial oposição que se pode exercer sobre o pacto.
É por isso que quando se estabelece a ligação da pessoa física, ou jurídica,
com a inteligência empresarial, os quais, juntos, perfazem o escopo, real e fictício,
de determinado objeto em sua natural consecução de atividade, verifica-se que fica
fácil determinar em que vértice deve incidir, ou não, o comando legal que orienta os
fins egoísticos e sociais das convenções em geral.
Seja pelo modo usual, ou dos costumes, ou pelo regramento civil-
constitucional, etc., o estiramento dos efeitos do contrato deve contemplar os dados
sociais para efeitos de equacionar as variáveis da justiça preconizada no caput do
art. 170, da CF/88. Para tanto estabeleceu-se, também, a função social como
elemento rotulador da nova realidade republicana, ou seja, a funcionalização do
contrato ganhou novos contornos para concriar novos sintomas de cidadania.
Este ideal humano não deve ser tratado como patologia do sistema jurídico,
nem como espectro que assombra o meio empresarial, mas deve ser visto como um
novo recurso garantidor da propriedade que está destinada para melhorar,
essencialmente, os novos padrões de convívio social.
Para os fins que pretende o legislador, prescindiu-se da voluntariedade do
agente ao almejar-se a realização da justiça social. Quando a propriedade é
colocada em movimento econômico, cogita-se sobre a qualidade de sua
70
circunscrição operacional em relação à sociedade destinatária do bem comum que
deve alcançar os fins contratuais. Em havendo o esvaziamento ou a falta de
contenção das variáveis que atendam realmente todas as derivações da ordem
econômica, previstas no citado artigo, certamente a finalidade de realizar justiça
mais uma vez estará preterida ao limbo dos conceitos liberais.
Para criticar-se construtivamente determinado instituto, necessário se faz
conhecê-lo de forma verticalizada. Ao se afirmar que determinado contrato não
contempla o querido fenômeno da justiça social, instiga-se a pensar,
imperativamente, que referido tópico jurídico revisado pelo contexto desta análise
está exaurido no potencial cognoscente do fenômeno em si, pelo menos em termos
teóricos de quem concebeu o sistema.
Recorde-se o preceito do caput do art. 170 da CF/88: “A ordem econômica,
fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa tem por fim
assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social,
observados os seguintes princípios: [...].” (grifo nosso)
Dentre as várias categorias de análise que se apresentam neste artigo para
compor os mandamentos principais que regem a atividade econômica no Brasil,
elege-se, neste momento, o conceito de justiça social em função de sua inegável
relevância para compor a melhor interpretação do texto constitucional.
Luis Fernando BARZOTTO121 apresenta à sociedade uma contribuição
acadêmica para bem conceituar a categoria que se expressa por “justiça social”.
Sem entrar no mérito da gênese do conceito, vale explorar, diretamente, em que
redunda saber como está regulada pela justiça social a relação entre o indivíduo e a
comunidade. Ver-se-á mais adiante que o grande problema deste programa
constitucional é identificar em que elos se soldam as correntes que fazem interagir o
indivíduo em prol da comunidade. Trata-se de um vetor com direção e sentido
definido pelo legislador, mas que, dependendo da ocasião, não se deixam comandar
pelo instituto uma vez que sua contemplação empírica tende a refugir da percepção
dos agentes que integram a faina comercial.
Segundo o autor, o conceito de justiça está tripartido, pois, tradicionalmente,
as possíveis e atuais relações da vida social ficaram caracterizadas pela i) justiça
121
BARZOTTO, Luis Fernando. Justiça Social – Gênese, estrutura e aplicação de um conceito. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_48/artigos/ART_LUIS.htm#II>. Acesso em: 05 abr.2011.
71
comutativa; ii) justiça distributiva; e, iii) justiça social, às quais passa-se a seguinte
transcrição:
“A justiça comutativa trata da relação entre dosi indivíduos. Ela trata, portanto, na terminologia da tradição, de relações da parte com a parte no interior do todo social”. A justiça distributiva tem como objeto as relações da comunidade com os seus membros. Ela distribui aquilo que pertence à comunidade (bens ou encargos) entre indivíduos que a compõem. A justiça social, por sua vez, trata das relações do indivíduo com a comunidade.”122
Não basta dizer que a via das relações sociais, justamente colocada, é aquela
que se verifica pela dispensação contributiva ideal que deve partir do indivíduo com
destino para a comunidade. Necessário se faz conhecer em quais elementos
consiste o lado prático desta solução filosófica, pois o que se almeja realmente é o
acontecimento de fato que consubstancia a perfeita harmonia da interação social.
O desencadeamento da convivência harmoniosa entre interesses diversos
que se insere na sociedade, passa pela definição e tomada de consciência de qual é
a identidade ou a natureza do bem comum, cujo núcleo é o objeto da justiça social.
Isto quer dizer que, pela perspectiva da justiça social, o bem comum é o alvo
principal, o qual é buscado diretamente para benefício simultâneo de todos os
integrantes da comunidade. Somente pelo viés indireto é que se visa o bem de
determinado particular, em específico. Nestes termos, o que é considerado,
essencialmente, como núcleo do sistema é a pessoa humana, como membro desta
comunidade, que nada tem de diferente dos outros, pois todos são formalmente
iguais, sem distinções entre pessoas.
Entretanto necessário se faz observar em que consiste a atividade da justiça
social. Note-se o termo “atividade”, que deve conotar realização efetiva de algo em
prol do bem comum. Este caracter se traduz pelo “reconhecimento” que se tem do
outro enquanto sujeito de direitos com finalidades em si mesmo. Trata-se de
reconhecer que o próximo é efetivamente um ser provido de dignidade tal qual
requer o correspondente respeito em cumprimento ao preceito de Direito.
Em assim se concebendo o imperativo do reconhecimento, verificar-se-á que
este fenômeno, próprio da justiça social, descarta a manipulação e a obtenção de
privilégios desqualificados, os quais, naturalmente, promovem a desigualdade de 122
BARZOTTO, Id.
72
direitos. Quando se estabelece a desigualdade formal, a conseqüência imediata do
disparate é a reação automática do sujeito-vítima do descaso no sentido de sentir-se
desobrigado para com seus deveres institucionais do Estado, uma vez que também
não foi considerado pela dupla via da obrigação comum.
Este raciocínio remete ao contexto elementar da alteridade na justiça social, o
qual é perfeito em sua delimitação: a pessoa humana. Desta concepção, descarta-
se a singularidade do indivíduo para eleger-se a pessoa enquanto membro
integrante de determinada comunidade, e enquanto tal o diferencial consistirá no
fato que este titular será considerado como o efetivo destinatário dos direitos e
obrigações prescritas pelo ordenamento positivo. Neste sentido, sujeito é aquele
para quem é devido alguma coisa, efetivamente credor de todos os bens
necessários para sua percepção existencial plena em todas as dimensões que lhe
circunscreve o modo de vida racional, concatenado com os atributos da
individualidade e da sociedade.
Referido dever descende da ordem jurídica e se locomove no itinerário
ideológico-cultural assumido pelo Estado através das diversas relações sociais
existentes, sejam elas políticas, econômicas, sociológicas, religiosas, etc. (a vertente
que interessa para o presente trabalho é o âmbito das relações sócio-econômicas).
Para que haja assertividade de resultados deduzidos pela filosofia para
contemplar o requerido comportamento humano na esfera jurídica, depreende-se
que o dever dos indivíduos de praticar a justiça em suas relações sociais com a
comunidade depende necessariamente de reciprocidade. Em se negligenciando o
reconhecimento do outro, restará prejudicada a reciprocidade para viabilizar o bem
comum, pois, como explicado anteriormente, o destinatário negligenciado em sua
esfera individual, com as virtudes da justiça social, também não estará
comprometido com o dever recíproco de seus demandantes.
Estas análises relacionais do indivíduo para com a comunidade (neste
sentido), do objeto da justiça social (o bem comum), de como se caracteriza a
atividade em si do fenômeno justiça social (o reconhecimento), e sua alteridade na
determinação do outro (a pessoa humana), combinado com a implicação necessária
da reciprocidade, para atender a exigência legal de atentar-se para a justiça social,
só tem um fim: a dignidade da pessoa humana é quem faz a adequação prática da
cidadania no espaço social, especialmente no locus interativo das transações
econômicas.
73
Vê-se, portanto, que os efeitos externos do contrato reclamados pela
necessária funcionalização do contrato coaduna-se materialmente com todos os
conceitos que subjazem à performance ideal de justiça social preconizada e exigida
no caput do art. 170 da CF/88.
Em função da força normativa da Constituição, o vetor contextual do agente
econômico (o contrato) aponta para um módulo definido (a comunidade), cuja
direção (o contexto capitalista/financeiro) e sentido específico (de obter-se lucro),
devem estar vinculados em sua concretização. A sociedade está identificada como
destinatária necessária do bem comum que deve fluir do pólo singular para o plural,
e neste ponto o contrato é o instrumento delimitador objetivamente posto para
revelar-se como arauto das boas e más práticas que se sucedem quotidianamente.
2.5. RESPONSABILIDADE CONTRATUAL E A RELAÇÃO OBRIGACIONAL
COMPLEXA123
Preliminarmente, cabe entender a terminologia no sentido comum do que seja
responsabilidade. No sentido coloquial de nossa língua, esta palavra remete à idéia
de guardar e/ou cuidar de alguma coisa ou alguém. Nestes termos, diz-se, então, de
quem assim faz, ser ele o cuidadoso ou o zeloso de sua tarefa. Decorre desta
acepção uma conseqüência imediata relacionada ao Direito, qual seja: a ligação da
responsabilidade à noção de prestação de contas, de restituição, e de reparação por
determinado ato ou fato relacionado a alguma coisa ou alguém. Note-se a
implicância da primeira com a segunda acepção do termo: quem faltar com seu
dever de cuidado ou de zelo (responsabilidade na primeira acepção) deverá reparar
o dano (responsabilidade na segunda acepção).
Assim é a ordem jurídica nos termos inicialmente colocados. Tais assertivas
consubstanciam a realidade social no que concerne ao dever geral de cuidado. Não
se deve cometer ato ilícito, sob pena de coagir-se, quem assim o fez, a repará-lo na
medida do dano provocado. Tecnicamente, a concepção jurídica do sistema
123
Chama-se à atenção neste ponto para observar que neste subitem do trabalho discorrer-se-á sobre a responsabilidade negocial (e algumas variações outras da responsabilidade civil) nos moldes da já consagrada doutrina; entretanto, a precedência desta reflexão se coloca como base necessária para o desenvolvimento dos ensinamentos acerca da relação obrigacional complexa, tema que se identifica com maior consistência à principiologia do Direito civil constitucional.
74
relacionada ao dever de cuidado consiste no fato que se algum ato ilícito for
cometido, ou se um dano for causado, o mesmo deve ser reparado, ou seja, haverá
responsabilização civil e obrigação de reparar um dano ou um prejuízo causado pela
inobservância do devido cuidado.
Importante salientar que ato ilícito abrange tanto o ilícito civil como o ilícito
penal. Evidentemente que só se pode falar da existência de responsabilidade civil se
verificado, precedentemente, um dano gerado em função de um ato ilícito. Por maior
que seja determinado dano, somente se poderá argüir de responsabilidade civil se
houve a precedência de um ato ilícito categoricamente identificado.124
Para tanto, faz-se a leitura a partir de um ato ilícito objetivamente identificado,
afere-se o dano, o qual deverá pairar no plano da existência material e/ou moral, e
então, argúi-se, por conseqüência, da respectiva responsabilidade civil, nesta
ordem. Ressalve-se o fato de que em tal construção não se verifica a mesma
solução para a responsabilidade civil objetiva, pois, neste ponto, fundamenta-se o
tratamento da lógica legal à subjetividade deste instituto no Direito civil.
Uma vez chegando-se ao convencimento da existência da responsabilidade
civil, há que se cogitar da culpa125 do agente que cometeu o ato ilícito, e que,
portanto, gerou um dano à determinada vítima.
A culpa deve ser entendida no sentido amplo, cujo matiz a especializa no
sentido estrito até a caracterização do dolo. Vale dizer, a ação humana (esta
compreendida no sentido amplo, pois ação em sentido estrito é espécie contra-par
da omissão, ambas pertencentes ao mesmo plano categorial) é predisposta pela
vontade do agente, e como tal a doutrina classifica a culpa em vários níveis de
gravidade, por exemplo: gravíssima, grave, moderada, leve ou levíssima.
Naturalmente sempre haverá a possibilidade de relativizar o aspecto
quantitativo que quer mensurar o intérprete ou o aplicador da lei para classificar a
culpa, entretanto, por ora, não se pode perder de vista que a culpa, no sentido
estrito, traduz-se pelos caracteres, combinados ou não, da negligência, da
imprudência e da imperícia do agente causador do dano. No caso de dolo, o agente
quer o resultado da ação ou assume o risco de seu resultado (dolo eventual).
124
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: responsabilidade civil. São Paulo: Atlas, 2003, v. 4, p. 22. 125
Id., p. 23.
75
O dano126 pode ser classificado como gênero do dano material e do dano
moral. Naquele, cabe a reparação pela emergência de prejuízos materiais e pela
eventual cessação de lucro que possa advir com o fato em si. Neste, a tentativa de
reparação consiste numa pretensão de se compensar o sofrimento psicológico da
vítima destinatária do dano. Evidentemente que em ambas situações a indenização
pecuniária jamais terá capacidade real de tornar efetivamente indene a situação de
quem experimentou tais prejuízos e/ou abalos psicológicos, pois as seqüelas são
inevitáveis e perdurarão para sempre.
Procura-se, assim, com o instituto da reparação obrigatória através de
indenizações, alcançar justiça em face de um fato que poderia ter sido evitado.
Eliseu FIGUEIRA chama atenção para o fato de que a valorização destes
princípios devem levar em conta o atual contexto econômico-social.127 Segundo o
autor, na atual sociedade empresarial, onde os riscos atingem enormes proporções,
não há como não individualizar eventuais culpados por danos causados, uma vez
que o princípio da culpa está diretamente ligado ao processo de desenvolvimento
econômico.128
Neste sentido, verifica-se que a atividade empresarial entrelaça-se com
operações complexas e, portanto, o problema da responsabilidade deve recair sobre
um sujeito-organizacional e não, especificamente, sobre um determinado autor, pois
o critério de valorização de interesses está pautado no conceito relacional entre a
atividade e o respectivo sujeito que a explora.129
Da conjugação analítica dos princípios da ilicitude e da culpa, em função das
atividades empresariais, emerge o princípio do risco, o qual está “a cargo do titular
dos meios de produção, já que ele deve suportar o dano como risco da empresa”.130
O risco131 é o fundamento que justifica a responsabilidade civil objetiva. A
objetividade da responsabilidade consiste na verificação de seus pressupostos,
quais sejam: o dano, o autor do fato, e o nexo de causalidade entre o autor e o dano
ocorrido. Exclui-se da análise da responsabilidade civil objetiva a variável culpa, pois
126
VENOSA, 2003, p. 28. 127
FIGUEIRA, Eliseu. Renovação do Sistema de Direito Privado. Lisboa: Editorial Caminha, 1989, p. 204. 128
Id., p. 204. 129
Id., p. 205. 130
Id., p. 206. 131
LEOCADIO, Carlos Afonso Leite; CERQUEIRA NETO, Edgard Pedreira de; BRANCO, Luizella Giardino Barbosa. Responsabilidade Civil na Gestão da Qualidade. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 100.
76
a lógica deste instituto decorre do risco que assume o agente quando da
consecução de determinada ação.
Esta objetividade pode ser descartada somente em casos muito excepcionais,
e desde que sejam circunstâncias originárias de advento de força maior. Se assim
não for, persistirá o liame da causalidade nos termos relacionados.
Esta teoria surgiu em função dos anseios sociais pela transparência na
aplicação ou realização de justiça a partir da Revolução Industrial (ou seja, não é
herança do Direito romano). Inicialmente, foi adotada para proteger os trabalhadores
dos acidentes de trabalho, e, posteriormente, estabeleceu-se o instituto do risco para
transmissão e distribuição de eletricidade, e para os transportes ferroviário e
marítimo.
Com a evolução doutrinária acerca desta teoria, a mesma sofreu algumas
variações para efeitos de sua aplicação, com concomitante definição de novas
categorias classificatórias. Por exemplo: a teoria do risco administrativo132 – que
fundamenta a responsabilidade objetiva da administração pública; a teoria do risco
criado133 – que fundamenta a responsabilidade objetiva de qualquer empresa pela
atividade econômica que exerce, uma vez ser inevitável o risco que cria para a
sociedade quando da consecução de seus objetivos sociais; e, a teoria do risco
proveito134 – pela qual se verifica o proveito econômico das empresas pelos riscos
que criam, e, portanto, devem assumi-lo.
Deve-se observar que o risco administrativo é distribuído à sociedade por
intermédio da arrecadação de impostos que a todos se impõe, enquanto que o risco
criado e o risco proveito são absorvidos pelos produtos quando da formação do
preço de venda, pois são fatores potenciais para eventuais indenizações.
No que diz respeito ao risco inerente de qualquer produto, serviço, ou
atividade, a responsabilidade civil objetiva é aplicada em função de qualquer
incidente ocorrido com os mesmos, pois os danos que causarem não estarão
atrelados aos respectivos pressupostos de culpa para sua argüição de
responsabilidade.
A inauguração da teoria do risco na legislação brasileira se deu com o
Decreto n.º 2.681, de 07 de dezembro de 1912, pelo qual se regulamentou a
132
LEOCADIO; CERQUEIRA NETO; BRANCO, 2005, p. 101. 133
Ibid., p. 101. 134
Id.
77
responsabilidade civil das estradas de ferro. Subseqüentemente, o segundo passo
dado foi com o advento da chamada Lei de Acidentes do Trabalho, Decreto n.º
24.687, de 10 de julho de 1934. Contemporaneamente, verifica-se maior avanço
legislado acerca da adoção da teoria do risco, bem como da responsabilidade
objetiva, através da Constituição Federal de 1988, em seu art. 37, § 6º, pelo qual
relaciona a responsabilidade civil do Poder Público. O Código Civil Brasileiro, em
seu art. 931, expressa claramente a imposição de tal responsabilidade para
empresários e empresas que coloquem produtos em circulação que venham a
causar danos aos seus adquirentes.
Relacionado ao Código de Defesa do Consumidor, há uma polêmica pelo fato
de o mesmo ter adotado a responsabilidade civil objetiva sem estar fundamentado
na teoria do risco, mas esta questão também não contempla o escopo deste
trabalho.
Na seara do Direito dos contratos, conhece-se o brocardo herdado do Direito
romano que diz: pacta sunt servanda. Por este princípio, diz o adágio, os contratos
têm que ser cumpridos. Tal princípio impõe a seguinte pontualidade: que a
obrigação seja cumprida ponto por ponto.
O Direito nos impõe a obrigatoriedade de não transgredirmos as leis, bem
como nos impõe o dever geral de cuidado. Claro está que estas premissas têm por
finalidade responsabilizar o agente pelos danos causados, independentemente da
existência de uma relação jurídica entre o autor e a vítima do dano.
Se um dos contratantes não cumpre sua parte, violando alguma cláusula
previamente pactuada, indubitavelmente o mesmo estará transgredindo aquele
princípio e causando danos à outra parte que esperava o adimplemento. Neste caso,
gera-se um desequilíbrio entre prestação e contraprestação,135 afetando-se
diretamente o caráter sinalagmático do contrato. Se o contrato não foi cumprido,
haverá a responsabilidade contratual, que se pauta na existência de uma relação
jurídica prévia entre as partes. Há transgressão de um dever jurídico específico
estabelecido pelo contrato, cujo inadimplemento impõe a necessária reparação dos
danos causados.
135
MARTINS, Fernando Rodrigues. Princípio da Justiça Contratual. São Paulo: Editora Saraiva, 2009, p. 367.
78
Porém, se não há tal relação jurídica, a responsabilidade será chamada de
extracontratual, ou aquiliana,136 ou seja, aquela que é atributo de um dano,
imputável ao agente, não oriundo de um contrato137 (todavia verifica-se também a
característica do dever jurídico preexistente neste tipo de relação).
Observe-se o seguinte: se o agente causa dano a alguém (com o qual não
tem qualquer relação jurídica ou contrato preexistente) nascerá, neste caso, a
responsabilidade extracontratual, pois violou seu dever geral de cuidado ou o de
proibição legal. Verificar-se-á que sempre haverá este tipo de responsabilidade se
determinado dever jurídico não estiver previsto em contrato, todavia estará o mesmo
impresso na lei, em sentido amplo.
Partindo-se da premissa que o contrato deve ser cumprido, pode-se inferir
que todo contrato possui uma essência jurídica que requer do devedor o
cumprimento de sua obrigação, uma vez ter o mesmo pactuado com seu credor uma
relação desta natureza.
Nas palavras de Roberto Wagner MARQUESI, temos que “o princípio da força
obrigatória não está expresso em nosso sistema positivo, mas isso nem é
necessário, pois a doutrina o considera um princípio geral do Direito, de caráter
universal e transcendente, presente em todas as culturas e equiparável ao honeste
vivere”.138
Deste preceito contratual, cria-se ao credor uma expectativa de segurança
jurídica; e, se houver inadimplemento por parte do devedor, deste vínculo surgirá
responsabilidade contratual à parte inadimplente relativa ao negócio pactuado (na
culpa contratual, examina-se o inadimplemento como seu fundamento e os termos e
os limites da obrigação139).
Para efeitos desta reflexão, deve-se considerar que o contrato válido é fruto
de vontades conjugadas para consecução de um negócio jurídico, o qual viabilizará
a percepção de um resultado previamente vislumbrado pelas partes e formalizado
mediante uma proposta.
Assim, o devedor vincula-se ao credor para realizar determinada prestação, a
qual é passível de mensuração econômica. Se assim não ocorrer, poderá o credor
136
AMARAL, 2000, p. 547. 137
LEOCADIO; CERQUEIRA NETO; BRANCO, 2005, p. 54. 138
MARQUESI, Roberto Wagner. Os Princípios do Contrato na Nova Ordem Civil. Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=5996>. Acesso em: 16 jul. 2010. 139
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: responsabilidade civil. São Paulo: Atlas, 2006. v. 4, p. 18.
79
exercer direito de expropriação do patrimônio do devedor a fim de reparar eventual
prejuízo advindo do descumprimento do contrato. Importante esclarecer que este
liame obrigacional une devedor e credor numa relação de coordenação, e não de
subordinação.
Entretanto, os contratos devem conter um ideal de justiça equilibrada entre as
partes, e mais, devem estar conforme sua finalidade social. Aliás, Rosalice Fidalgo
PINHEIRO, ao abordar a questão da ilicitude na concepção autônoma do abuso de
direito, de acordo com o art. 187 do Código Civil, menciona que o ato abusivo pode
ocorrer na esfera da boa-fé, dos bons costumes, e no fim social e econômico do
Direito.140
Traçando um paralelo desta questão maior, para ensaiar a compreensão de
ilicitude por falta de prestação em um contrato, tem-se que tal assertiva está por
configurar uma violência contra a segurança jurídica dos contratos, o que implica na
falta de cumprimento de sua função social, bem como desrespeita a supremacia da
ordem pública. Eis, então, o que caracteriza de forma determinante referida
ilicitude.141
Então, rememorando-se os pressupostos da responsabilidade civil, tem-se
que, para argüir-se da subjetividade da mesma, deve-se comprovar o dano, apontar
o seu autor, demonstrar o nexo de causalidade entre o autor e o dano ocorrido, bem
como evidenciar se o agente agiu com imprudência, imperícia ou negligência.
Demonstrados estes pressupostos estará caracterizada a responsabilidade civil
subjetiva. O que diferencia a responsabilidade civil objetiva é o fato de o pressuposto
da culpa estar descartado para caracterização da mesma, não se rescindindo,
todavia, dos demais.
Repetindo, o requisito fundamental da responsabilidade civil subjetiva é que
somente se pode falar em ilicitude se o agente causador do dano agiu com culpa,
caso contrário não se poderá falar em tal responsabilidade. Assim sendo, a regra
geral é que somente haverá responsabilidade civil subjetiva se o dano causado foi
motivado por um comportamento culposo do sujeito que assim procedeu. Note-se,
entretanto, que nem sempre a vítima do dano precisa provar a culpa de seu ofensor,
140
PINHEIRO, Rosalice Fidalgo. O Abuso do direito e as relações contratuais. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p.120. 141
Ao adentrar-se no estudo da relação obrigacional complexa este tema ficará melhor explicado.
80
ou seja, nesta hipótese poderá o juiz inverter o ônus da prova ou atribuir culpa pelo
instituto da presunção.142
Diferentemente do que ocorre pela regra geral, é possível atribuir-se culpa a
determinado ofensor sem prévia comprovação da mesma, a qual se denomina
responsabilidade civil objetiva. Nesta hipótese, a responsabilidade objetiva não
depende de culpa para se argüir do evento danoso, todavia a mesma não pode ser
prescindida do “liame de causalidade”.143
Dano é o prejuízo patrimonial ou moral suportado por alguém que foi vítima
de um ofensor que agiu ilicitamente. Nesta hipótese, haverá a obrigatoriedade da
reparação do dano cujo meio será a indenização pecuniária, pois se está diante de
um dano injusto. Este pode, também, ser traduzido pela expressão de lesão a
determinado interesse.
Conforme acima mencionado, o dano é gênero dos danos patrimoniais
emergentes, bem como do dano moral. O dano patrimonial refere-se aos prejuízos
sofridos nos bens materiais e pelo advento de eventual lucro cessante em função do
ato ilícito. O dano moral é aquele que se caracteriza pelo sofrimento da vítima, cujo
desconforto afeta-lhe o comportamento e seu bem-estar psicológico.144 Há, ainda,
uma corrente doutrinária que classifica uma terceira categoria de dano denominada
de perda de chance.145 Esta estaria paralelamente classificada com danos
emergentes e com lucros cessantes. A perda de chance se caracteriza com a
oportunidade real e potencial que teria a vítima se não fosse lesionada em sua
esfera patrimonial ou moral, do que decorre a impossibilidade de realizar
determinado projeto uma vez estar afetada com o infortúnio causado pelo seu
ofensor.
Atual e doutrinariamente, classifica-se também o que é chamado de dano
reflexo ou dano em ricochete.146 Nesta circunstância, assim é classificado
determinado dano suportado por alguém colocado de forma indireta em relação à
primeira vítima, o qual também é reparável por ter atingido pessoa que sofre a
comprovada repercussão do dano principal.
142
LEOCADIO; CERQUEIRA NETO; BRANCO, 2005, p. 69. 143
VENOSA, 2003, p. 16. 144
Op. cit., p. 28. 145
VENOSA, 2003, Id. 146
Ibid., p. 31.
81
Todos os critérios de averiguação e mensuração do dano e de suas
respectivas indenizações, ou seja, da verificação de seus pressupostos, objetivação
e conseqüências inevitáveis na operação do Direito civil, são submetidos ao
processamento judicial da questão, para que lá, no Poder Judiciário, se diga o
Direito e o suposto valor de cada um, na medida de sua razoável subsunção. Neste
sentido, os parâmetros de aplicação da lei são objetivos e qualquer indenização está
limitada ao patrimônio do ofensor. Eis, então, porque pode o juiz autorizar a “reduzir,
eqüitativamente, a indenização, se houver excessiva desproporção entre a
gravidade da culpa e o dano” (art. 944 do Código Civil). E ainda: pode o juiz,
também, dar solução diversa à obrigação de indenizar se for aferido culpa
concorrente ou culpa exclusiva da vítima.
Sobre o nexo causal, tem-se pelo mesmo significado as categorias jurídicas
de relação de causalidade e de nexo etiológico, cujo conceito advém das leis
naturais, pois “é o liame que une a conduta do agente ao dano”.147 Para saber-se
quem causou determinado dano, precisa-se analisar qual é a relação causal entre o
agente e o ato praticado.
Ainda que haja um dano, a conduta do agente e o respectivo resultado podem
estar desvinculados para efeitos civis, se o que motivou o ato foi culpa exclusiva da
vítima, ou se o mesmo foi fruto de caso fortuito ou de força maior. Nestes casos não
haverá qualquer responsabilidade, em função da força exonerativa destas
excludentes.
Evidentemente, o nexo causal requer elementos comprobatórios
convincentes, e se faz necessária a identificação do fato que causou o dano. Ambas
questões nem sempre são fáceis de serem resolvidas, todavia ao juiz compete
analisar o liame dos fatos ainda que deva deduzir o nexo causal pelo instituto da
presunção.
Ponto-e-vírgula. O que até aqui se disse acerca da responsabilidade
contratual teve por finalidade rememorar alguns conceitos que consagraram a
doutrina relativamente aos direitos e deveres funcionais de partes contratantes
levando-se em consideração, apenas, a perspectiva das obrigações
tradicionalmente vista pelo Direito Civil.
147
VENOSA, 2003, p. 39.
82
Daqui por diante os aspectos da relação obrigacional simples passam a ser
mera plataforma de estudo para alcançar-se efetivamente o significado e o alcance
da mencionada relação obrigacional complexa, cuja análise, propositalmente, se liga
e entrelaça os princípios da responsabilidade contratual para potencializar maior
abrangência de sua influência nas tratativas e contratos da rotina empresarial.
Percebe-se claramente que a junção dos conceitos da responsabilidade
contratual, nos moldes tradicionalmente estudados, com a sistematização ou
complexidade do novo modelo de encarar-se as obrigações civis, depreende-se, por
conseqüência, que a envergadura do fenômeno relacional entre partes interessadas
de um contrato alcança não menos que uma novo paradigma positivo para operar e
gerir os negócios atuais.
Entabula-se neste certame o foco adicional em novos parâmetros para medir
os efeitos sociais do contrato. O contrato ganhou uma acepção jurídica diferente
quando colocado nele o atributo da boa-fé e da função social como corolários da
atual atividade econômica apregoada segundo os ditames da Constituição. O
simples vínculo entre débito e crédito, polarizados pelos centros de interesse de
cada relação comercial, deixou de traduzir a melhor prática para dizer-se qual é a
verdadeira correspondência que tem os direitos e deveres em face da tendência
globalizante do Direito das obrigações.
Neste sentido, Fernando NORONHA148 chama a atenção para o fato de haver
duas possibilidades pelas quais se pode ver a relação obrigacional. Pela primeira, é
a que se classifica como relação obrigacional simples; e, pela segunda, o que se
classifica pela perspectiva da complexidade da relação obrigacional, também
denominada de sistêmica.
Pela ótica da relação obrigacional simples, o que denota sua característica
essencial é o fato de haver ou não um vínculo entre devedor e credor; ou seja, nesta
espécie de vínculo, simploriamente considerado, é o fato de o credor poder exigir do
devedor a correspondente prestação acordada; e o devedor, por sua vez, possui o
dever de assim realizá-la.
Agora, em se considerando a relação obrigacional pela perspectiva de sua
complexidade com o ambiente de sua inserção factual, perceber-se-á que sua
adstringência funcional terá uma conotação prática adicional, pois este contrato
148
NORONHA, Fernando. Direito das Obrigações. v. 1, São Paulo: Saraiva, 2003, p. 72.
83
deverá oferecer um outro número de soluções que até então não estavam
abarcados por suas finalidades extrínsecas ao negócio concebido.
Vale dizer, a relação obrigacional tomada pela ótica da complexidade que a
circunda em seu meio operativo faz traduzir a idéia central de que neste sistema o
núcleo é a necessária cooperação que deve existir entre os interesses do credor e
os do devedor. Entretanto, adverte o mencionado autor: em que pese o direito de o
credor exigir prestação, este lhe deve “respeito pelos recíprocos interesses do
devedor, ou devedores”, e deve-se ter em conta, ainda, “a função social
desempenhada, que é a razão última de sua tutela.”149
Interessante observar que este pensamento remete o leitor para a idéia de
que a situação obrigacional do indivíduo, ou da parte, ou do centro de interesse que
perfaz o pólo ativo ou passivo do contrato, se traduz, também, numa espécie de
(micro) sistema (assim como o é qualquer ramo do Direito civil, penal, etc.), o qual
deve ser considerado em todas as nuances materiais que podem fazer retinir o
desenvolvimento econômico e social reclamado pelo legislador.
Em que pese o foco deste estudo estar voltado para a classificação dos
direitos subjetivos concatenados com os deveres jurídicos que integram a relação
obrigacional, há mister em observar o que anotou o autor sobre a abrangência
possível desta ciência, verbis:
“a relação obrigacional sistêmica abrange direitos subjetivos e correspondentes deveres jurídicos, a par de direitos potestativos, sujeições e ônus jurídicos, e até de simples expectativas jurídicas (como a do credor sob condição suspensiva: cf. arts. 125150 e 130151)”.152
O que se quer destacar, amiúde, é o fato de a relação obrigacional ser o
gênero de uma classificação jurídica que num passado não muito distante sequer
era concebido. Uma vez que a tendência desta classificação é enfatizar o lado
passivo da relação obrigacional, desdobrou-se esta situação em três modalidades
de deveres jurídicos, quais sejam: i) os principais, como deveres primários; ii) os
acessórios, como deveres secundários; e, iii) os anexos, como deveres fiduciários.
149
NORONHA, 2003, p. 72. 150 Art. 125/NCC: “Subordinando-se a eficácia do negócio jurídico à condição suspensiva, enquanto esta se não verificar, não se terá adquirido o direito, a que ele visa.” 151
Art. 130/NCC: “Ao titular do direito eventual, nos casos de condição suspensiva ou resolutiva, é permitido praticar os atos destinados a conservá-lo.” 152
NORONHA, 2003, p. 76.
84
Referida classificação adotada por Fernando de NORONHA não é uniforme
no trato da matéria pela doutrina, mas uma ou outra variação do que pode dar
ensejo ao estudo desta disciplina não desautoriza a reflexão proposta neste
trabalho, pois o cerne da questão se assenta em fatores extrínsecos à metodologia
de compreensão ou de apreensão deste conhecimento ofertada por juristas
diversos.
O fato é que no capítulo seguinte tratar-se-á das implicações que a nova
legislação trouxe aos contratos quando requerido que na persecução negocial sejam
atendidos os requisitos dos artigos 421 e 422 do Novo Código Civil. Por ora, vale
revisar o conteúdo teórico-conceitual que define estas modalidades de deveres.
Os deveres principais são aqueles diretamente definidos e realizados em
função do credor. Referidas prestações dizem respeito à essência do vínculo que se
estabelece entre interesses complementares, sem as quais não se poderia verificar
o núcleo que estabelece o liame jurídico entre as partes relacionadas de um
contrato, por exemplo.153
Os deveres acessórios (ou secundários de prestação) não deixam de estar
ligados diretamente para fins de realizar determinada prestação do vínculo
obrigacional, entretanto seus caracteres não identificam-se com a obrigação em si
(todavia sejam, da mesma forma, exigíveis por parte do credor). Dentre os vários
exemplos relacionados pelo autor, destaca-se o dever acessório que é típico de
todas as obrigações: o credor deve dar quitação relativa ao adimplemento realizado
pelo devedor.154
Finalmente, classifica o autor os deveres fiduciários, também chamados de
deveres anexos, laterais, correlatos, colaterais, ou, ainda, de deveres de conduta.
Estes deveres possuem uma conotação especial para os fins do Direito
contemporâneo, pois são com estes imperativos legais que podem ser digitados
quais são os resultados reais que podem ser aferidos das relações obrigacionais, se
comparadas com a finalidade da nova ordem econômica.
Perceba-se que estes deveres contêm caracteres específicos que os
individualizam na persecução de sua mensuração prática, pois as variáveis
153
Exemplos de deveres principais, relacionados no art. 481/NCC: “Pelo contrato de compra e venda, um dos contratantes se obriga a transferir o domínio de certa coisa, e o outro, a pagar-lhe certo preço em dinheiro” (NORONHA, 2003, p. 79). 154
Exemplo de dever acessório relacionado no art. 319/NCC: “O devedor que paga tem direito a quitação regular, e pode reter o pagamento, enquanto não lhe seja dada” (Id., p. 80).
85
requeridas para este equacionamento social é a conduta de comportamento pautada
pela lealdade, correção, e lisura no trato da perspectiva obrigacional complexa. Os
deveres fiduciários implicam adoção de atitudes condizentes com os procedimentos
socialmente esperados pelo senso comum. Estes atributos caricaturam a soma do
princípio da boa-fé contratual, o qual deve estar redundantemente estribilhado em
todas as fases do contrato – antes, durante, e após a fase negocial.
O que se quer colocar em evidência é o fato de que a responsabilidade
contratual ganhou novos contornos para dimensionar o ato ilícito quando da violação
de determinado contrato. Explica-se esta dedução lógica pelo fato que não só o
incumprimento de dever principal ou secundário dá ensejo à responsabilização por
atos ilícitos da vida civil.155 Da mesma forma, coloca-se, assertivamente, que a
quebra dos amplos deveres fiduciários, inclusive em relação à sociedade civil que
integra o sistema de afetação deste vínculo, também dá ensejo à reparação de
danos causados a qualquer legítimo interessado em cuidados, informações,
assistência e/ou lealdade que deveriam ser observados na prática da exação
negocial.
155
AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Extinção dos contratos por incumprimento do devedor. Rio de Janeiro: AIDE Ed., 2004, p. 266.
86
CAPÍTULO 3 – BOA-FÉ OBJETIVA E ATIVIDADE EMPRESARIA L
3.1. ASPECTOS HISTÓRICOS DA BOA-FÉ OBJETIVA
Ao teor da doutrina atual, reconhece-se que o tema da boa-fé é complexo e já
possui um sem-número de expressivas obras que tratam deste assunto. Entretanto,
à guisa de rememorar a trajetória deste instituto, apresenta-se um delineamento
histórico da formação do princípio boa-fé sem, contudo, se pretender exaurir nas
explicações dos aspectos que perfizeram a evolução deste instituto.
A boa-fé é termo que pode dar ensejo a diversos significados. Assim o foi
desde a fundação de Roma, antes de Cristo, a qual foi utilizada em diversos
institutos do Direito vigente naquela época. Cita-se como exemplo de aplicação da
fides, nos primórdios da fundação de Roma, o instituto da clientela, pelo qual o
patrício, cidadão romano, recebia, para as gentes de seu domínio, o cliente; este
era, por conseguinte, tributário de lealdade e obediência ao seu patrício.
A confiança, neste contexto histórico, ganhou conotação de promessa de
proteção, e, posteriormente, espraia-se culturalmente para desdobrar-se em
diversos outros sentidos para valorizar a palavra dada. É o que ensina Karina Nunes
FRITZ ao apresentar os três significados da boa-fé primitiva, quais sejam: “fides
sacra,156 documentada na Lei das XII Tábuas e no culto da deusa Fides; a fides
facto, ligada às idéias de garantia, empenhamento, promessa, confiança e
associadas a institutos como a clientela; e a fides ética, derivada da idéia de garantia
e que adquirem o sentido de dever, ainda que não jurídico”.157 Destaque da doutrina
mencionada pela autora refere-se ao fato de que a fides sempre esteve adstrita à
idéia de comportamento, “inicialmente mágico, depois religioso, moral, e finalmente
jurídico.158
Com a expansão romana, o sentido e alcance deste instituto passa sofrer
adaptações de ordem funcional, especialmente com o advento do comércio que se
estabeleceu com os estrangeiros. Coma a expansão territorial e comercial dos
156
Na mitologia romana, Fides era uma deusa que personificava “a palavra dada”, o compromisso, pela qual a sociedade tinha sua base de sustentação, inclusive da ordem política. 157
FRITZ, Karine Nunes. Boa-fé Objetiva na Fase Pré-Contratual: a responsabilidade pré-contratual por ruptura das negociações. Curitiba: Juruá, 2008, p. 83. 158
Id., p. 84.
87
romanos, a fides ganhou uma nova conotação para processar os contratos
internacionais que eram celebrados verbalmente. Os contratos consensuais de
então, fossem de compra e venda, locações, sociedade, etc., eram feitos sem o
qualificativo do formalismo, mas, sim, com base no respeito à palavra dada, em
confiança do contratante. A confiança era base de formação do vínculo pela qual se
podia reclamar o cumprimento do contrato; a exigência da contraprestação daquilo
que foi acordado tinha por pressuposto a confiança, chamada de fides bona, e não a
lei. Destaca a autora que somente com a criação dos bonae fidei iudicia159 “é que os
contratos internacionais passaram a ser protegidos juridicamente no direito
romano”.160
Fato interessante ocorreu com a instituição dos bonae fidei iudicia na medida
em que este sistema ampliou as possibilidades de proteção jurídica de diversos
interesses os quais tinham por fundamento apenas a confiança, ou, a boa-fé. Ao
pretor romano era dado o poder de julgar o caso concreto em função de texto
contratual, mas também em função do que era acordado entre partes contratantes.
Uma vez que os contratos de sociedades, compra e venda, e locações, não faziam
parte do Direito civil, estas obrigações passaram a ser juridicizadas.
Importante destacar destes fatos do direito romano que a criação dos bonae
fidei iudicia sobre a base da fides bona revestia, então, a boa-fé, de uma “natureza
de norma jurídica objetiva de comportamento honesto e correto, sem que isso,
contudo, significasse qualquer remissão a valores éticos extrajurídicos”.161
No Direito romano, ainda, fides bona tinha significado diverso de bona fides.
Aquele traduzia norma de comportamento; este veio posteriormente qualificar o que
seria a boa-fé subjetiva, o qual passou a incidir sobre os direitos reais, denotando a
psique do interessado em estado de ignorância.
Leciona a autora que este fenômeno se deu em função da diluição do instituto
para caracterizar outras situações jurídicas que não estavam previstas. Fala-se da
diluição horizontal, pela qual, quando da criação da usucapião, os jurisprudentes se
referiam a um dos requisitos necessários para obter a propriedade como sendo a
159
“Os bonae fidei iudicia foram institutos criados pelo pretor romano para adaptar o direito vigente à nova realidade emergente da expansão territorial romana” (FRITZ, 2008, p. 84). 160
Id. 161
Id., p. 85.
88
bona fides. A diluição vertical da fides bona caracterizou-se quando este instituto foi
também tomado como um princípio de Direito.162
Então, no contexto em comento, surgiu a bona fides, como sendo a “situação
de consciência subjetiva de uma pessoa, de crença na existência de uma
determinada situação jurídica”, o qual veio criar dubiedade terminológica e
conceitual, uma vez que o conceito de fides era tomado como “comportamento ético
objetivo”.163
Outro aspecto de diluição que sofreu o instituto da fides bona é o da
relativização dos efeitos jurídicos que traziam as normas jurídicas. Referem-se a
normas rígidas as quais deveriam aplicar o juiz quando do julgamento do caso
concreto. Ocorre que nem sempre é possível aplicar simplesmente a lei, sem que
determinados efeitos sejam relativizados em seus efeitos. É o que ocorreu com a
conotação que se deu ao criar o princípio da equidade para suportar-se tratamento
adequado, ou isonômico, de partes formalmente iguais e reciprocamente
interessadas, a fim de valorizar, objetivamente, as relações jurídicas.
A trajetória do Direito romano tinha caminho certo para sua propagação e
adoção: a Europa. Neste continente, o princípio da equidade começa a sofrer
transformações significativas para o sentido atual de sua aplicação. No contexto
histórico da época, o pensamento cristão influenciou o instituto a ponto de
transformá-lo num critério de “fundamentação ético-jurídico de um resultado e, ao
mesmo tempo, como uma linha condutora da criação judicial do direito”.164
O Direito canônico, com base no princípio da misericórdia, adotou, então, a
equidade canônica, para opor-se ao rigor da norma jurídica. Aqui começa a
funcionar a aplicação do Direito com base na proporcionalidade, sugerida pela
função corretiva da equidade em contraposição ao rigor da lei. Da aglutinação do
preceito da equidade à boa-fé, eclodiu-se a expressão do que seria chamado
“justiça”.
A análise crítica que se faz ao conceito de boa-fé remonta ao que sofreu o
instituto em sua evolução histórica como um todo, remarcando o que se fez com a
Compilação de Justiniano no século VII, a qual a tratou com diversas acepções
162
FRITZ, 2008, p. 86. 163 Id. 164 Id., p. 87.
89
jurídicas para definir o que seria “boa-fé possessória” e “boa-fé obrigacional”, e
ainda, para expressar que a equidade seria tratada como princípio geral.165
A boa-fé sofreu vários desdobramentos ainda quando apenas circunscrito ao
Direito romano. Posteriormente, foi adaptada ao pensamento cristão com os moldes
do Direito canônico, que, desta derivação, surge, então, a nova conotação colocada
pela doutrina cristã, qual seja: “a de ausência de pecado”.166
É fato que grande foi a contribuição do cristianismo para unificar o conceito de
boa-fé, outrora fragmentado pelo Direito romano nas vertentes da boa-fé
possessória e obrigacional, as quais, modernamente, foram chamadas,
respectivamente, de subjetiva e objetiva. A figura da boa-fé, influenciada pelo
cristianismo, passou a significar meramente “ausência de pecado”, pela qual queria
denotar a condição psicológica e a subjetividade do estado anímico do contratante.
É de se entender porque na idade medieval o instituto da boa-fé subjetiva
ficou privilegiado em relação à boa-fé objetiva. O aspecto religioso traduziu a má-fé
em pecado, o que ocorria se o contratante não cumprisse a sua palavra dada, tanto
na seara dos direitos reais quanto na dos direitos das obrigações. O que se avaliava
era o perfil consciencial (interior) do sujeito da relação jurídica, e não a sua conduta
(exterior) para estigmatizar-se com o atributo do pecado.
Enfim, chegou a época da grande codificação de Napoleão. A boa-fé estava
fragmentada em seus conceitos, e mesclada com idéias alienígenas ao Direito civil,
ou seja, “estava acentuadamente marcada pelo subjetivismo adquirido sob a
influência do direito canônico e fundida ao conceito de equidade, expressando a
idéia de justiça”.167 Entretanto, o Código Civil francês recepcionou o instituto da boa-
fé nas duas acepções clássicas oriundas do direito romano, quais sejam: a boa-fé
subjetiva e a boa-fé objetiva.
Outrossim, para mencionar-se o paradeiro do instituto da boa-fé impresso no
Código Civil Brasileiro de 2002, menciona-se que sua origem foi constatada no
Direito romano, e “aperfeiçoada” pelo Direito canônico, conforme acima explicado.
De sua recepção pela codificação francesa, e da escolástica alemã dos
165 FRITZ, 2008, p. 87. 166 Id. 167
Id., p. 88.
90
pandectistas,168 e com base na legislação luso-brasileira, concebeu-se o que hoje,
diferentemente do passado, se tem por conceito e princípio da boa-fé objetiva, cuja
diferenciação conceitual, em cotejo com a boa-fé subjetiva, ver-se-á no item a
seguir.
3.2. DISTINÇÃO ENTRE BOA-FÉ SUBJETIVA E OBJETIVA
Em se tratando dos conceitos de boa-fé, verifica-se que sua classificação se
divide em duas espécies essenciais, quais sejam: boa-fé subjetiva e boa-fé objetiva.
Como visto anteriormente, a boa-fé subjetiva distingue-se, basicamente, da boa-fé
objetiva, por focalizar o prisma de análise sobre o estado de consciência da pessoa
naquilo que lhe exterioriza através de um declarado comportamento.
O art. 1.201 do Novo Código Civil define a boa-fé subjetiva ao tratar “da
posse”, nos seguintes termos: “é de boa-fé a posse, se o possuidor ignora o vício, ou
o obstáculo que impede a aquisição da coisa”. Na atividade consciencial do agente,
seu animus perpassa exclusivamente pelo aspecto subjetivo de sua ação, pelo qual
denota total desconhecimento de vícios que podem impedir a aquisição da posse.
Neste caso, os vícios que menciona podem ser a violência, a clandestinidade, ou, a
precariedade; e em relação ao obstáculo, relaciona a doutrina, ainda, os fatores da
permissão e da tolerância para consecução da posse.169
Constata-se, portanto, que a boa-fé, quando analisada sob o enfoque da
subjetividade, pode revelar qual é a situação ou o fator psicológico do agente que
está em atividade, pelo qual se caracteriza as intenções mediante o comportamento
externado.
Judith MARTINS-COSTA ao explicar no que denota a idéia de boa-fé
subjetiva, faz menção para analisar-se dois momentos desta categoria:
primeiramente, refere-se à ignorância e/ou de crença excusável do agente
relacionada a determinada situação aparentemente regular. Cita como exemplos o
casamento putativo; aquisição de propriedade alheia mediante usucapião; ou, o
168
Trata-se da Escola dos Pandectas, pela qual juristas germânicos do século XIX liam e interpretavam o Digesto de Justiniano para criar normas, doutrinas e conceitos aplicáveis ao ordenamento jurídico da época, principalmente ao Direito civil. 169
FIGUEIRA JUNIOR, Joel Dias. In: FIUZA, Ricardo. Novo Código Civil comentado. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 983.
91
mandato aparente; herdeiro aparente; etc. Secundariamente, a boa-fé subjetiva
denota a fortificação do vínculo que se estabelece entre os contratantes, no sentido
de realmente fazer-se cumprir o contrato sob a ótica desta especialidade do Direito
que o convence, psicologicamente, para adstringir-se ao objeto do que foi pactuado
entre as partes.170
Pelo vértice da objetividade, o raciocínio analítico refoge do aspecto intrínseco
do sentimento do agente para interagir com os atributos do domínio positivo das
obrigações em geral. Ditas obrigações, dizendo respeito aos contratos, perpassam,
sim, pelos critérios que qualificam o comportamento do contratante, mas não apenas
isto. Além do qualificado comportamento do agente, o Direito positivo impõe-lhe uma
série de deveres pelos quais se lhe constitui verdadeiras normas de conduta.171
A boa-fé objetiva além de refletir uma regra de conduta, traz em seu bojo a
eticidade como fator de orientação aos negócios jurídicos, o qual dá ensejo, por
exemplo, ao fator confiança do álter, quando colocada em “depósito” nas tratativas,
na conclusão, na execução e finalização de determinado contrato.
Teresa NEGREIROS, ao mencionar a doutrina de Regis Fichtner PEREIRA,
apresenta a distinção que faz quando compara a boa-fé subjetiva com a boa-fé
objetiva. Dependendo do âmbito de atuação destas, pelas quais estão circunscritas
aos respectivos negócios jurídicos, uma tratará das relações de apropriação, e outra
das relações necessárias de cooperação entre partes contratantes.172
Quanto à natureza dos institutos, assevera esta autora o seguinte:
“Ontologicamente, a boa-fé objetiva distancia-se da noção subjetiva, pois consiste num dever de conduta contratual ativo, e não de um estado psicológico experimentado pela pessoa do contratante; obriga a um certo comportamento, ao invés de outro; obriga à colaboração, não se satisfazendo com a mera abstenção, tão pouco se limitando à função de justificar o gozo de benefícios que, em princípio, não se destinariam àquela pessoa.”173
Percebe-se, a partir dos ensinamentos expostos, que na relação contratual o
que deve prevalecer é a consideração recíproca no sentido de que ambas partes
170
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2000, p. 411-412. 171
NEGREIROS, Teresa. Teoria do Contrato: novos paradigmas. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 120. 172
Id., p. 122. 173
Id.,
92
devem preservar o vínculo com cooperação mútua, eis o que o princípio da boa-fé
impõe como padrão de conduta.
É em função desta consideração, pelos interesses do outro contratante, que
se justifica a formalidade e o efeito prático do contrato no plano jurídico. A primeira
percepção que se pode ter numa determinada avença, segundo os ditames da boa-
fé, são o equilíbrio e a segurança permeados no pacto negocial, pelos quais se evita
a alegação e o estado de ignorância, preservando-se a equidade da prestação e
contraprestação no sentido de não se lesar nenhuma das partes contratantes.
O intérprete e/ou o aplicador da lei, bem como os agentes de relações
jurídicas contratuais, percebem que estes institutos criam efetivo potencial de
controle e evitação de cláusulas abusivas, e limitam, por si só, os interesses
egoísticos, individuais, afastando-se então o que poderia ser um “regular” abuso do
direito.
A doutrina não deixa de registrar eventuais variações de entendimento que se
pode encontrar do Direito comparado ao tratar do alcance e significado do princípio
da boa-fé objetiva.
Teresa NEGREIROS expressamente apresenta a redação do § 242 do
Código Civil Alemão – o BGB – com o seguinte enunciado: “O devedor está adstrito
a realizar a prestação tal como o exija a boa fé, com consideração pelos costumes
do tráfego”.174 Menciona a autora que, a teor do que prescreve o § 242 do
BGB, por exemplo, é possível detectar-se o sentido ambivalente do princípio da boa-
fé.
Neste sentido, Judith MARTINS-COSTA apresenta este mesmo dispositivo do
BGB dizendo que a interpretação do mencionado § 242 quer conotar que o
contratante deve adotar um “modelo de conduta social” pelo qual seja possível aferir
objetivamente os aspectos de honestidade, lealdade e probidade no caso concreto,
tudo isto em função de “o status pessoal e cultural dos envolvidos”.175
Enfim, cabe mencionar que a boa-fé objetiva, no contexto do Direito contratual
contemporâneo, consente em poder se esperar comportamentos previsíveis,
concebidos segundo critérios emanados da doutrina e da jurisprudência. Trata-se de
uma cláusula geral que dá ao intérprete a possibilidade de refazer uma leitura do
174
NEGREIROS, 2006, p. 124. 175
MARTINS-COSTA, 2000, p. 411.
93
instrumento contratual pela ótica dos valores e finalidades176 que devem perfazer o
vínculo em função de uma conduta de comportamento pautada na lealdade e na
honestidade, cujos atributos devem ser aferidos em todas as fases do contrato.
3.3. AS FUNÇÕES DO PRINCÍPIO DA BOA-FÉ E SUA APLICAÇÃO AOS
CONTRATOS EMPRESARIAIS
Boa-fé e justiça contratual177 são figuras jurídicas indissociáveis, e nada mais
coerente é conhecer quais são as funções que ministram as orientações dos
diversos institutos do Direito. Tradicionalmente, são atribuídas as seguintes funções
à boa-fé objetiva, quais sejam: i) função de “cânone hermenêutico-integrativo do
contrato”; ii) função de “norma de criação de deveres jurídicos”; e, iii) função de
“norma de limitação ao exercício de direitos subjetivos.”178 A seguir, tratar-se-á de
cada uma destas mencionadas funções.
3.3.1. A Função Hermenêutico-integrativa
Ao se tratar desta função do princípio da boa-fé, a doutrina se refere a ela
como sendo um cânone para os fins de hermenêutica e integração do contrato com
a lei, e vice-versa. Partindo-se da análise da terminologia desta função, ver-se-á que
a própria designação de “a boa-fé como cânone hermenêutico-integrativo”179 sugere
uma hierarquia lógica que advém deduzida da própria semântica dos termos que a
compõe.
Antes de analisar-se o fenômeno funcional que integra os elementos da boa-
fé neste particular, rememore-se o significado da terminologia que qualifica esta
vertente da boa-fé. Comece-se pelo fato de ser este cânone uma regra geral, com
status de princípio, pelo qual pode-se deduzir diferentes regras para aplicação
176
GODOY, Claudio Luiz Bueno de. Função Social dos Contratos: novos princípios contratuais. São Paulo: Editora Saraiva, 2004, p. 108. 177
PINHEIRO, Rosalice Fidalgo. Percurso teórico da boa-fé e sua recepção jurisprudencial no direito brasileiro. Curitiba, 2004, 378 p. Tese. Programa de Pós-Graduação em Direito, Setor de Ciências Jurídicas, Universidade Federal do Paraná, p. 204. 178
MARTINS-COSTA, 2000, p. 427. 179
Id., p. 428.
94
particular ou específica. Não se trata aqui de um princípio geral do Direito, mas de
uma especialidade que integra uma categoria de análise do objeto em estudo.
Pela característica técnica da hermenêutica é possível concentrar ainda mais
o foco de atenção para o objetivo que se quer atingir nesta análise, pois, ao
exercitar-se nos propósitos deste contributo, o observador fará a leitura e a
interpretação da lei para determinar qual é a efetiva consistência jurídica, em
abstrato, de determinado fenômeno jurídico que lhe interessa perceber.
E, finalmente, chega-se o momento da requerida e necessária integração do
negócio com o sistema jurídico, juridicizado em função da transformação do contrato
num elemento que passa a fazer parte do todo jurídico para fazer surtir os
necessários efeitos legais segundo as normas que foram pontualmente
estabelecidas para o caso concreto.
Importante destacar que a interpretação integradora do contrato possui
virtudes, no sentido motivacional, que não estão desamparadas de previsão legal,
quando requer do intérprete preencher eventuais lacunas do Direito, bem como
quando precisa flexibilizar ou relativizar a vontade das partes em função de seus
propósitos pontuais. Neste sentido, há, ainda, o mecanismo e o modo pelo qual é
possível qualificar o comportamento das partes, sobrepondo-lhes as conseqüências
inerentes de seus fins materiais para o cumprimento de suas avenças, seja em qual
espécie for de contrato.
Aliás, falando-se em espécies de contrato, vai aqui uma remessa doutrinária
adicional para elucidar mais uma tarefa funcional da boa-fé objetiva. Nem todas as
espécies de contratos estão previstas em lei, e é exatamente nesta vertente que a
função hermenêutico-integrativa ganha expressiva relevância, pois é a prerrogativa
da salvaguarda destes institutos que dão ensejo à manutenção das possibilidades
operacionais para dar cabo dos variados fins econômicos que se materializam
através dos contratos que não integram o Direito especial.
Neste contexto, o juiz terá papel fundamental para determinar a integração da
relação jurídica. De um lado, se o contrato não é especificado pela lei, por outro, as
circunstâncias materiais e formais do instrumento deverão conformar-se ao Direito
pela via da integração que fará acontecer, em sendo possível. Neste plexo, duas
coisas são levadas em consideração: primeira, que o contrato deve fazer parte do
sistema jurídico “do local” de sua celebração, e como tal deve produzir os efeitos
para o qual foi concebido; segunda, seu cometimento significativo deve estar
95
pautado pelos fins sociais que lhe é requerido como participação necessária à
construção de seu liame aceitável perante o ordenamento jurídico e à sociedade.180
Em se tomando parte para analisar a relação jurídica, é previsível que nem
todas as situações econômicas, sociais, e jurídicas, estão previstas nas cláusulas
que perfazem o vínculo acordado entre as partes. Neste sentido, a função
hermenêutico-integrativa dará suporte necessário para estabelecer-se a regulação
solicitada para o caso, cuja determinação deverá implicar-se pelos valores que
integram o sistema jurídico, os quais se externam como mandamento à observância
da responsabilidade, da função social, do equilíbrio, e da boa-fé propriamente dita.
Assevera a autora:
“Por esta deve ser compreendido, neste específico campo funcional, o mandamento imposto ao juiz de não permitir que o contrato, como regulação objetiva, dotada de um específico sentido, atinja finalidade oposta ou contrária àquela que, razoavelmente, à vista de seu escopo econômico-social, seria lícito esperar”.
Perceba-se, nestas circunstâncias, qual o papel desempenhado pelo juiz
neste momento: “substitui” o legislador para estabelecer os preceitos obrigacionais
do contrato, cuja ordenação se açambarca pelo simples e apropriado manejo da
técnica de hermenêutica relacionada aos caracteres específicos do negócio jurídico
disposto ao julgador. Cita-se como exemplo deste fenômeno o que já se estudou
neste trabalho acerca dos deveres secundários de prestação, como no caso de dar-
se quitação do débito quando de seu efetivo adimplemento.181
Outra importante lição doutrinária acerca desta função está relacionada com a
qualidade e/ou quantidade dos preceitos que deve utilizar o juiz quando do exercício
desta prerrogativa para significar os direitos e as obrigações dos contratantes.
Afirma a autora que esta função não deve apelar apenas para os aspectos da ética
reclamados na relação contratual. Mais do que isto, o juiz pode, por exemplo,
construir um dispositivo tendo por base a teoria da aparência do direito.
Ou ainda, a boa-fé objetiva, “utilizada como cânone hermenêutico-integrativo,
desempenha exponencial papel no campo metodológico, pois permite a
180
MARTINS-COSTA, 2000, p. 430. 181
Id., p. 432.
96
sistematização das decisões judiciais”.182 Conseqüentemente, esta função pode
alcançar, ainda, o controle de cláusulas contratuais abusivas, dentre outras.
Cita-se a substituição da noção de outros princípios que delimitam os
caracteres valorativos do feito quando extrapolam a equidade no contexto
econômico e social: veja-se a invocação do Direito para reprimir o enriquecimento
sem causa, ou o abuso do direito; a observância prática do princípio da
solidariedade social; os mandamentos de honestidade e correção para com a outra
parte; “todos eles demasiadamente equívocos e genéricos”.183
Assevera Rosalice Fidalgo PINHEIRO que “decorre da função interpretativa
da boa-fé a busca pela justiça contratual, e por conseguinte, a possibilidade de
invalidar ou tão-somente neutralizar cláusulas contratuais.”184 Fazendo-se assim, o
juiz, ou, o dispositivo no sentido de estabelecer o mútuo respeito e a recíproca
confiança entre as partes, justificará a relação contratual no que pode fazer percutir
a sua finalidade geral, de forma direta e indireta, no meio em que se insere a
demanda julgada.
3.3.2. A Função Criativa de Deveres Jurídicos
Para relacionar a boa-fé com a criação de deveres jurídicos185 mister se faz,
primeiramente, conceber o contexto de como se estabelece uma relação contratual.
Estas relações possuem características que as especializa por categorias de
deveres, as quais somente são perceptíveis quando ocorre a inflexão de vontades
para celebrar determinado acordo e, concomitantemente, declinarem em que tipos
de deveres estarão assentados os vetores que podem consubstanciar o núcleo das
obrigações avençadas.
Constitui-se assim o tipo de contrato a que se busca, e deste instrumento faz-
se a derivação classificatória que permeia o negócio jurídico para desdobrar os
conceitos que rotulam o que seja “deveres principais, ou os deveres primários de
182
MARTINS-COSTA, 2000, p. 436. 183
Id. 184
PINHEIRO, Rosalice Fidalgo. Percurso teórico da boa-fé e sua recepção jurisprudencial no direito brasileiro. Curitiba, 2004, 378 p. Tese. Programa de Pós-Graduação em Direito, Setor de Ciências Jurídicas, Universidade Federal do Paraná, p. 216. 185
“à boa-fé também se confere um papel criador, o que faz de sua função integrativa mera continuação da sua função interpretativa” (PINHEIRO, 2004, p. 215).
97
prestação, os deveres secundários e os deveres laterais, anexos ou
instrumentais”.186
Os deveres principais revelam a essência do contrato, a constituição do
núcleo da obrigação que vincula as partes, e, simultaneamente, faz parecer o tipo de
contrato que se conclui entre contratantes. Como exemplo de deveres principais,
cita-se o contrato de compra e venda, pelo qual o bem vendido deve ser entregue ao
comprador, e este deve pagar o preço ajustado.187
Segundo Judith MARTINS-COSTA, os deveres secundários desdobram-se
em duas vertentes de análise, quais sejam: i) “os deveres secundários meramente
acessórios da obrigação principal, que destinam a preparar o cumprimento ou
assegurar a prestação principal”; e, ii) “os deveres secundários com prestações
autônomas”, que podem até mesmo substituir as obrigações principais.188
Nesta primeira hipótese de deveres secundários, num contrato de compra e
venda, pode ser a atribuição de preservar a coisa livre de qualquer deterioração, ou
de qualquer outra incumbência que esteja relacionada ao objeto do contrato. Na
segunda hipótese, exemplifica casos do dever de indenizar se houver incumprimento
da prestação por culpa do contratante. Diga-se que estes deveres secundários, que
se adstringem com status de prestações autônomas, podem ser “autônomos ou
coexistentes com o dever principal”, nos casos de mora ou quando se verifica que o
cumprimento da prestação foi defeituoso.189
Relaciona a autora o destaque que se dá para os propalados deveres laterais,
os quais são também denominados de deveres instrumentais, ou deveres
acessórios de conduta, deveres de conduta, deveres de proteção ou deveres de
tutela, expressões estas que foram adotadas a partir das noções doutrinárias do
Direito europeu, especialmente do germânico.
Vale destacar que tais deveres derivam de eventuais cláusulas contratuais, ou
por força de legislação, ou pelo simples fato de incidir a boa-fé objetiva como fonte
destes parâmetros contratuais. Se os reflexos fenomênicos destes deveres não
forem possíveis de obter-se com consenso através do contrato, ainda que omisso o
instrumento, a lei tirará de seu conteúdo o sumo desta garantia independentemente
186
MARTINS-COSTA, 2000, p. 438. 187
Id. 188
Id. 189
Id.
98
da vontade das partes, o que pode caracterizar autonomia dos mesmos em relação
à prestação que estava inicialmente prevista com principal.
Leciona a autora em referência que estes desdobramentos classificatórios,
geralmente, são chamados de “deveres de cooperação e proteção dos recíprocos
interesses”, os quais afetam todos os participantes do vínculo contratual. Não se
excepciona tais deveres aos contratantes em função da natureza de seu respectivo
qualificativo debitório ou creditório, pois estas incumbências de satisfatividades são
naturalmente impostas e imparciais para ambos pólos da relação obrigacional.
A título de ilustração das variedades dos mencionados deveres de
cooperação e proteção, a autora relaciona os seguintes exemplos:190
i) deveres de cuidado, previdência, e segurança: p.ex., o dever do
depositário que, além de tomar os cuidados inerentes à condição de
possuidor da coisa, deve também ter o cuidado necessário no sentido
de acondicionar o bem para que não ocorra perecimento ou
deterioração do objeto;
ii) deveres de aviso e esclarecimento: p.ex., ainda durante a fase que
antecede a conclusão do contrato, o dever de avisar o futuro
contratante de todas as conseqüências que podem advir com as
negociações e, por conseguinte, com a declaração do negócio que
encerra as tratativas;
iii) deveres de informação: p.ex., os deveres previstos no Código de
Defesa do Consumidor, “arts. 12, 14, 18, 20, 30, e 31, dentre outros”
(os deveres de informações devem ser observados tanto em função do
que expressamente prevê a legislação, quanto pelo que dispõe
genericamente o princípio da boa-fé objetiva);
iv) deveres de prestar contas: p.ex., os deveres exigidos como praxe
necessária e extensiva para o exercício da prerrogativa funcional de
gestores e mandatários em geral;
v) deveres de colaboração e prestação: p.ex., o dever de facilitar o
adimplemento da obrigação por parte do devedor, não lhe criando
embaraços para a satisfação da prestação avençada;
190
MARTINS-COSTA, 2000, p. 439.
99
vi) deveres de proteção e cuidado com a pessoa e o patrimônio da
contraparte: p.ex., o dever do proprietário de um estabelecimento
comercial de entregá-lo ao locatário em condições de utilizá-lo de
forma segura, prevenindo-se riscos com acidentes (uma vez que o
prédio deve ser projetado e construído de acordo com normas
regulamentadoras); e,
vii) deveres de omissão e segredo: p.ex., o dever de guardar segredo
industrial e/ou comercial em função do conhecimento que obteve
durante o acompanhamento de tratativas e negociações concluídas.
Assevera Judith MARTINS-COSTA que, sob o prisma dos deveres principais,
a relação obrigacional deve ser tomada pela finalidade como um todo, o que implica
partir do pressuposto que os deveres relacionados à parte correspondem também à
observância obrigatória pela contraparte. Esta relação não se verifica, contudo, no
caso dos deveres secundários, os quais assumem condição e inerência em função
da natureza do ato que lhe é peculiar ao papel designado para cada contratante.
“Dito de outro modo, os deveres instrumentais caracterizam-se por uma função auxiliar da realização positiva do fim contratual e de proteção da pessoa e aos bens da outra parte contra os riscos de danos concomitantes, servindo, ao menos as suas manifestações mais típicas, o interesse na conservação dos bens patrimoniais ou pessoais que podem ser afetados em conexão com o contrato”.191
Verifica-se, portanto, que os deveres elencados estão na direção de
preestabelecer o que é esperado da conduta e do comportamento da outra parte,
cujo fundamento é a atuação da boa-fé como elemento que aponta necessariamente
para a finalidade do contrato. Eis que o vínculo se projeta na confiança mútua
depositada um no outro para a consecução de seu objeto, e como tal, faz implicar
(todos) os comportamentos que podem ou não afetar as circunstâncias que deram
motivo ao liame contratual.
Outro aspecto que deve ser levado em consideração é o fato de os deveres
oriundos de uma relação contratual estarem consubstanciados não somente em
função das cláusulas que foram pactuadas entre as partes, mas, afirmativamente,
também aos preceitos legais estabelecidos no meio social e econômico que deu
191
MARTINS-COSTA, 2000, p. 440.
100
ensejo ao negócio jurídico. Estes preceitos devem ser erigidos como valores
norteadores do critério que faz respeitar a força vinculativa da relação contratual.
Cita-se, acima, os deveres de informação preconizados pelo Código de
Defesa do Consumidor, entretanto, a abrangência desta valoração alcança,
necessariamente, a exegese e aplicação de todo o ordenamento jurídico para
“apreciação” do caso concreto, a começar pela Constituição Federal.
É por isso que se concebe a idéia de a relação obrigacional ser tomada pelo
viés de sua complexidade, pois não se tem como concebê-la de forma isolada e
parcial em comparação com o que prescreve a atual ciência do Direito, eis que seu
fundamento perpassa sistematicamente pela percepção de seu todo existencial, e
como tal, não afasta seu característico terminológico e funcional de ser um autêntico
processo obrigacional-constitucional.
Quer-se dizer, por exemplo, que um grupo de contratos para consecução de
um determinado fim deve ser tomado em sua integralidade, como se os
subcontratos perfizessem um único pólo de atuação, pois não pode a contraparte
sofrer uma restrição de direitos, utilizando-se de má-fé, para não responder-se com
solidariedade aos efeitos que deveria produzir, pois, inicialmente, foi previsto e
fechado o negócio em função desta expectativa. Da mesma forma, os princípios
gerais do Direito que norteiam a atividade contratual não concebem a idéia de
fragmentar os institutos materiais e processuais para favorecer ou não os interesses
parciais de determinado contratante.192
Declina a autora os ensinamentos de Mota Pinto ao mencionar que o conceito
de “economia contratual” – “tal qual utilizada atualmente na doutrina italiana” –
identifica-se com a causa-finalidade do contrato, pela qual deve se almodar a função
econômica e social, “concreta e objetiva do negócio”, atendendo-se e fazendo-se
cumprir todos os deveres principais, secundários, acessórios, laterais, etc., uma vez
que a relação obrigacional não pode ser dividida para justificar eventual não-
192
Judith MARTINS-COSTA (2000, p., 443) apresenta um julgado do juiz Claudemir Missagia relativamente ao caso de compradores de um imóvel que firmaram, simultaneamente, três contratos, porém, com a mesma finalidade, qual seja: a de aquisição de uma moradia, com terreno próprio. Celebrou-se os contratos de aquisição do terreno, da construção da casa, e da intermediação financeira para o custeio das obras. Ocorre que a casa, já entregue, apresentou problemas insanáveis em sua construção, e as defesas, isoladas, tentaram afastar o reconhecimento da solidariedade, mas sucumbiram em suas teses, pois reconheceu-se que as expectativas (do objeto como um todo) deveriam ser atendidas em função do bloco negocial que se estabeleceu pelo grupo de contratos celebrados (In RJTJRGS 123/384).
101
conformidade do débito ou do crédito contratual, seja em qual base for a ideologia
apresentada.
Neste sentido, não importa, então, quantas sejam as relações obrigacionais
necessárias para estabelecer o necessário e equânime peso entre o débito e o
crédito da relação, pois o que deve ser sopesado é o equilíbrio dos ônus distribuídos
para cada parte.
Interessante observação deste entendimento é verificar que o dispêndio que
se coloca na prática ou no exercício dos “deveres de cooperação e proteção dos
recíprocos interesses” pode traduzir maior ou menor monta financeira ou intelectual
para a sua materialização.
É o caso, natural, de um contratante nunca ser igual a outro na sua
concepção existencial. Ainda que os contratos sejam tipificados por lei, ou possam
ser similares na sua concepção jurídica, ou, ainda, que as circunstâncias
econômicas e/ou sociais de seus agentes tenham aspectos de identidade muito
parecidos, o fato é que sempre haverá a percepção de maior ou menor grau na
aplicação dos deveres ora relacionados. Esta atividade carece de uma tarifação
relativa que lhe será ou não adequada (proteifórmica) diante das diversas
modalidades contratuais que se apresentam no cotidiano empresarial.
Mais do que interessante observar, é verificar que a violação de qualquer dos
deveres relacionados ao comportamento esperado da contraparte, seja no aspecto
da correção ou da lealdade, que venham qualificar eventual desrespeito aos amplos
deveres secundários da operação, registre-se que se está diante de uma verdadeira
hipótese de incumprimento de contrato (seja em qual modalidade for), a qual é
concebida pela via oblíqua do adimplemento da obrigação principal.
Novamente, Judith MARTINS-COSTA, ao explicitar a doutrina de MOTTA
PINTO, destaca que não se tem como apreender as inúmeras possibilidades de
vínculos que irradiam determinado contrato, pois tomado este em sua “unidade e
funcionalidade” jamais pode ser conformada em padrões previamente concebidos
para classificá-lo em sua tipologia e abrangência social, econômica, jurídica, etc.
Não se trata de um modelo matemático que pode dar ensejo a equações
resolutórias de suas variáveis através de fórmulas genialmente concebidas pelo
intérprete e/ou aplicador da lei, mas são através dos “quadros materiais, complexos,
102
superadores da falsa simplicidade”, que o julgador deve pautar sua análise para o
bem situar do Direito, na espécie, para conseguir realizar seus fins em sociedade.193
3.3.3. A Função Limitativa ao Exercício de Direitos Subjetivos
No que diz respeito à perspectiva subjetivista do exercício de direitos, vale
lembrar o que tradicionalmente apresentava a doutrina acerca do tema (diz-se
“tradicionalmente” no sentido de que até então a boa-fé objetiva não tinha ainda os
contornos atuais para oferecer as recentes soluções do exercício de direitos). Os
elementos que limitavam a inadmissibilidade do exercício de direitos subjetivos eram
“as figuras do abuso do direito e da exceptio doli”.194 Segundo a autora em
referência, esta é de origem do Direito romano, e aquela é fruto de construções da
jurisprudência francesa.
Referida perspectiva subjetivista tinha por base o entendimento consagrado
de que o contexto deste elemento intrínseco ao exercício do direito se
consubstanciava ou estava demarcada pela “relação entre o dogma da vontade e a
construção do direito subjetivo como a sua mais importante projeção”.195 Esta
condição foi relativizada de certa forma com a tomada da boa-fé objetiva para fazer-
se conformar novas concepções de parametrização ao exercício do direito na
medida em que este princípio venha informar quais sãos as tendências socialmente
aceitas e acobertadas pelos novos rumos do ordenamento jurídico.
A sensibilidade e alcance dos institutos jurídicos no plano existencial
delineiam sua performance técnica quando aplicados no caso concreto. O que se
busca é o efeito positivo e eficaz das relações jurídicas, as quais devem se pautar
em elementos técnicos de sua categorização para bem dimensionar a real influência
que podem oferecer os baluartes do Direito. É neste sentido que o operador (e o
destinatário) do Direito faz por movimentar a boa-fé objetiva como sucedânea da
perspectiva subjetivista, uma vez que a meta é a obtenção da percuciência técnica
para deslindar controvérsias.
Ainda que se queira, não é dado a ninguém conhecer, na essência, os
recônditos da psique humana. Por mais que se concebam maneiras e
193
MARTINS-COSTA, 2000, p. 454. 194
Id., p. 455. 195
Id., p. 456.
103
procedimentos formais para deduzir o entendimento da verdadeira crença das
pessoas, é incontroverso que a alma do indivíduo jamais se dará por transparente
no trato da coisa de interesse egoístico.
É por isso que a lógica da teoria e da aplicação dos arquétipos do abuso do
direito, ou da exceção de dolo, ou do juízo de eqüidade, ou da virtude de cláusulas
gerais, sempre padece de uma definição cabal de sua finalidade última, pois as
margens que acantonam a substância de sua localização ideográfica não são
perfeitas em si, pois o elemento subjetivo da sentimentalidade própria não permite
maiores prospecções de seus termos quando em cotejo com o mundo da
materialidade.
Está-se a dizer sobre eventual limitação que queria se colocar ao exercitar-se
determinado direito; o meio, o procedimento, a técnica, ou o enlace sob o prisma de
concordância com o sistema de leis, podia ser ou não aplicada com as excogitações
jurídicas que até então prevaleceram no tempo do Código Civil anterior.
Judith MARTINS-COSTA faz advertência para mencionar que se a adoção de
tais técnicas de limitação ao exercício de direitos tenha por finalidade fazer reenviar
este processo aos padrões éticos de sua consecução, a boa-fé objetiva, tomada
pela ascensão finalística da nova ordem que se lhe apresenta à ciência do Direito, é
a resposta que pode dar ensejo a maior amplitude de poderes ao juiz, o qual, então,
não ficará restringido pelas circunstâncias que ficam delimitadas por indicadores de
menor alcance e caracterizações pontuais.196
Não é por menos que o dogma da autonomia da vontade restou superado em
seu entabulamento perspicacial para configurar o alcance e a medida dos efeitos
que produzia nos contratos. Aliás, antes de se falar em Direito dos contratos, há que
se considerar que a abrangência das relações obrigacionais abarca um plexo maior
da ciência jurídica para informar a sua diretriz de atuação no meio que se insere.
No âmbito que se qualifica os atributos da boa-fé, ou seja, no das relações
obrigacionais, traduzidas pela materialização dos contratos celebrados, cuja
finalidade última é a trafegabilidade legal-econômica das riquezas, depreende-se
que referida informação não mais se limita pelos fins de interesses puramente
individuais, mas a abrangência de seus componentes deve alcançar também os
196
MARTINS-COSTA, 2000, p. 456.
104
esperados reflexos no meio social, cuja expressão legal e doutrinária transcreve-se
pela categoria da função social.197
Assim, verifica-se que o princípio da boa-fé apresenta em seu âmago
conteúdo cogente em suas premissas fundamentais pelas quais se sustentam
normas gerais. Estas impõem os deveres de agir com lealdade e correção no trato
solutivo dos ônus contratuais.
A propósito, é no setor da resolução dos contratos que a boa-fé alcança os
mais variados aspectos de matização de solubilidade jurídica para desenlaçar os
mais diversos efeitos que podem implicar aos contratos empresariais, quando estes
deixam de reverberar as boas conseqüências que lhes eram determinadas para
acontecer.
Pode-se colocar em cena, aqui, a teoria do adimplemento substancial198 do
contrato, por exemplo; ou, a exceção de contrato não cumprido,199 traduzida pela
máxima jurídica exceptio non adimpleti contractus, “pela qual a parte que devia
primeiro cumprir, não o cumprindo, não pode demandar o cumprimento daquela que
deveria cumprir em segundo lugar.200 Por isso diz-se comutativo o contrato que
guarda justa equivalência entre as prestações de cada parte.
Neste caso, em se verificando o desequilíbrio voluntariamente provocado (ou,
ainda que não voluntário) para prejudicar o balanceamento do objetivo negocial,
irrompe-se à contraparte a faculdade de argüir pela exceção de sua prestação, pois
o caráter sinalagmático do feito restou prejudicado e a pretensão do cumprimento
torna-se inócua diante da injustiça contratual praticada.
Uma vez que a ninguém é dado o direito de fazer valer determinado direito
em contradição com seu anterior ou posterior comportamento, entra em relevo a
teoria dos atos próprios. Em função desta teoria, a consideração e a análise que se
faz das atitudes personalizadas perpassam pelo filtro da interpretação objetiva da
conduta a qual deve estar pautada conforme os ditames da legislação em geral, e
ainda, pelos bons costumes e pela boa-fé. O efeito imediato da aplicação desta
regra é impedir que quem tenha incorrido em violações de deveres relacionados aos
197
´Ensina Miguel Reale que dita ´função social´ é “mero corolário dos imperativos constitucionais relativos à função social da propriedade e à justiça que deve presidir à ordem econômica”´ (Apud MARTINS-COSTA, 2000, p. 457). 198
SILVA, Vivien Lys Porto Ferreira da. Extinção dos Contratos: limites e aplicabilidade. São Paulo: Editora Saraiva, 2010, p. 146. 199
GAGLIARDI, Rafael Villar. Exceção de contrato não cumprido. São Paulo: Editora Saraiva, 2010, p. 133. 200
Op. cit., p. 460.
105
contratos, ou à legislação de sua regência, beneficie-se de seu próprio desvio de
conduta, caracterizado pela própria indignidade.
No que diz respeito, então, à “teoria dos atos próprios”, Judith MARTINS-
COSTA relaciona a doutrina de duas importantes vertentes que desdobram o
conjunto destas idéias sistematizadoras, quais sejam: a do tu quoque e a do venire
contra factum proprium. Nas palavras de MENEZES CORDEIRO, registra a autora
que “a materialização da regra do tu quoque decorre do fato de que fere as
sensibilidades primárias, ética e jurídica, que uma pessoa possa desrespeitar um
comando e, depois, vir a exigir a outrem o seu acatamento”.201
Ainda que a exigência desta postura jurídica não venha expressamente
positivada na legislação, destaca a doutrina que a regra do tu quoque é uma das
várias espécies de normas que especifica a boa-fé objetiva. Como tal, nada impede
que sua aplicação e observação devam ser abrangentes para que ocorra
efetivamente a integração do contrato relacionado ao princípio em comento. Desta
forma, fica o instituto adaptado aos diversos sistemas jurídicos.
Transcreve a autora esta regra pela ótica do direito alemão nos seguintes
termos: “perante violações de normas, as possibilidades de sanção são limitadas
para aquele que perpetrou, ele próprio, violações de normas, tendo como importante
variante a doutrina da Verwirkung, de elaboração jurisprudencial.”202 E arremata-se o
conceito demonstrando o seguinte decisório declinado por MENEZES CORDEIRO:
“Quem viole o contrato e ponha em perigo o escopo contratual não pode derivar de violações contratuais posteriores e do pôr em perigo o escopo do contrato, causados pelo parceiro contratual, o direito à indenização por não cumprimento ou à rescisão do contrato, como se não tivesse, ele próprio, cometido violações e como se, perante a outra parte, sempre se tivesse portado leal ao contrato.”203
Depreende-se, portanto, que àquele que procede de maneira incorreta, ou, ao
que deixa de cumprir com o seu liso dever na realização precípua do escopo do
contrato, a este não é dado o direito de apropriar-se de qualquer vantagem dos fatos
potenciais e/ou supervenientes ao contrato, tomando-se por base as situações
201
MARTINS-COSTA, 2000, p. 461. 202
Id. 203
Decisão RG 10 jan. 1908 (Entscheidungen des Reichsgerichts in Zivilsachen - RGZ 67 – 1908 – 313-321. In MENEZES CORDEIRO, António Manuel. Da boa-fé no direito civil. Coimbra: Almedina, 2007, p. 839-840): transcrita e traduzida por este autor.
106
precedentes que o fizera fraudar as condições avençadas para a persecução do
negócio.
Limita-se, determinantemente, a possibilidade de o defraudador aproveitar-se
duma condição espoliativa para justificar o exercício de um direito futuro, emergente
do contrato, pois, nestas condições, o fato em si está carente dos necessários
pressupostos que norteariam a aplicação da boa-fé no gerenciamento do negócio
que se estava a perquirir.
Conforme mencionado nas linhas acima, MENEZES CORDEIRO assevera
que este instituto se aplica aos diversos sistemas jurídicos. Judith MARTINS-COSTA
lembra que assim ocorre também no sistema da common law, na medida em que as
regras do tu quoque se assegura pelo instituto da estoppel. O campo de aplicação
desta norma é o processo, primordialmente. A função declarada
“é a de flexibilizar o formalismo processual vedando à parte, que, por suas declarações, atitudes, atos, enfim, conduziu a outra parte a modificar a sua posição em seu próprio detrimento, respondendo à idéia da inadmissibilidade, de, no processo, alegar e provar fatos contraditórios com a aparência que a mesma parte que produz tais alegações e provas havia criado”.204
Verifica-se no Direito brasileiro larga aplicação jurisprudencial no sentido de
não admitir-se mencionada contradição. A regra sancionatória da inadmissibilidade
de voltar-se contra os próprios atos para beneficiar-se de condição “passiva” do álter
contratual encontra eco na adoção principiológica do fenômeno, e o intérprete e/ou
aplicador da lei possui em seu poder e manejo, por exemplo, as teorias da confiança
e da aparência, ou o princípio que proíbe o venire contra factum proprium, o qual
será a seguir examinado.
A aplicação do princípio do venire contra factum proprium está ligado
diretamente ao princípio da boa-fé objetiva. Coloca-se neste ponto, também, a
observação e aplicação do princípio da confiança, no âmbito jurídico dos contratos,
pela sua forma positiva, e não pelo viés do que poderia ser classificado como má-fé
na operatividade do contrato.
Os ensinamentos do venire estão ligados ao contexto das posições jurídicas
que assumem as partes da avença. O exercício delas não pode ser contraditório em
relação a outros comportamentos que modulam a projeção de seu exercente. Pela
204
MARTINS-COSTA, 2000, p. 463.
107
postulação do princípio faz-se recorte de dois comportamentos lícitos em si mesmos,
de momentos distintos, porém, para verificar se um é contraditório em relação ao
outro. Em se confirmando a caracterização da conduta ou do comportamento
contraditório em relação a outro, estampada estará a condição de que um fato
anterior ao segundo não se faz coadunar com os característicos do segundo ato.
Sendo assim, mencionada operatividade estará prejudicada, seja em relação
aos limites do escopo contratual, ou aos critérios que deveriam fazer a reverberação
necessária aos efeitos da boa-fé objetiva.
Agora, um detalhe importante faz relembrar a autora Judith MARTINS
COSTA: as contradições humanas são ínsitas a sua própria natureza. O homem é a
essência da própria incerteza de suas variações conceptuais. Querer tolher o ser
humano desta maneira de ser ensejaria a pretensão de colocá-lo sob um castigo
que extrapola os fins jurídicos do instituto.205
Veja-se que a finalidade última deste certame doutrinário faz alusão ao fato
de que se busca, simplesmente, a tutela jurídica de uma condição tal que o
comportamento de uma das partes do contrato não venha minar a relação de
confiança que deve haver entre os interessados do tráfego negocial. Em não
havendo um mínimo de confiança entre estes atores, não há como viabilizar-se a
evolução do contrato em sua finalidade de fazer sobreviver e sustentar o quérulo dos
bons negócios empresariais.
Cada avaliação que se faz observar a regra do venire tem por pano de fundo
o que demonstra a finalidade do contrato em si, seja em relação aos termos de seu
acordo, ou em relação secundária com os requisitos de conduta que exige o modelo
adotado. Estas circunstâncias revelam, naturalmente, no que incide o seu
fundamento para reclamar-se, objetivamente, o dever de lealdade que deverá ser
despendido ou exercitado em favor da contraparte do contrato.
Conclui-se, portanto, que o assentamento jurídico que se busca com a
percepção dos conceitos relacionados aos ditames legais da boa-fé é o de tutelar a
confiança que se estabelece entre partes contratuais. A qualidade deste atributo
deve ser materializada na consecução de um sinalagma saudável, forte e contínua
no tempo, ainda que extraída pela via do Poder Judiciário. Neste caso, estará a
jurisprudência incrementando justiça contratual para fazer banir a torpeza, a
205
MARTINS-COSTA, 2000, p. 470.
108
inadmissível contraditoriedade de comportamento, ou, a ilicitude no trato da
ideogenia social-comercial.
3.4. DELIMITAÇÃO POSITIVA DO PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA
3.4.1. O Princípio da Confiança
Para desdobrar-se os elementos de análise do princípio da confiança, mister
se faz refletir um pouco sobre as teorias da relação jurídica, da vontade e da
declaração.
Nas lições de Francisco AMARAL, p.ex., encontra-se o conceito e aspectos
gerais relacionados à relação jurídica de Direito privado. Precede a relação jurídica a
relação social, e para que a relação seja transfigurada da simples tratativa social
para a juridicização do fenômeno em si, basta que tal fato esteja eleito,
positivamente e em abstrato, no conteúdo da norma. Da hipótese prevista em lei
subsume-se o fato social para caracterizá-lo, então, na modalidade de relação
jurídica, pois adstringe-se, neste caso, o vínculo do Direito relacionado a pessoas ou
grupos que fazem circunscrever determinados liames de interação os quais se
movimentam em torno de interesses jurídicos próprios.206
No que diz respeito às teorias da vontade e da declaração apresenta-se aqui,
apenas, a reiterada notícia da falta de consenso no que concerne aos efeitos
jurídicos que cada segmento pode explicar. É por isso que a teoria da confiança foi
concebida, senão para “resolver os conflitos existentes entre a teoria da vontade e
da declaração”.207
Pela concepção da teoria da vontade, o que se leva em consideração para
mensurar a regularidade das conseqüências jurídicas é o fato de a declaração do
agente estar em absoluta conformidade com a vontade interna do agente. Pela
volição que se determina, a vontade do agente tem absoluta correspondência com o
conteúdo da declaração, sob pena de vício das conseqüências jurídicas. Eis o que
difere o enfoque desta assertiva quando tomados os parâmetros da leitura
206
AMARAL, Francisco. Direito Civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 155. 207
POPP, Carlyle. Responsabilidade Civil Pré-Negocial: o rompimento das tratativas. Curitiba: Juruá, 2008, p. 115.
109
fenomênica sob a ótica da teoria da declaração: o privilégio recai tão somente sobre
o conteúdo da declaração, e “despreza-se”, neste contexto, qual foi a real intenção
ou a vontade do declarante.208
Assevera o autor, entretanto, que “ambas as teorias defendem a
importância da coincidência entre a vontade interna e a declarada, mas de maneira
diversa”. Cada intérprete e/ou aplicador da lei dá a conotação possível para
convalidar a declaração, todavia o que se tem por parâmetro, por exemplo, na teoria
da declaração, é o fato de que a força criadora do negócio jurídico se subjaz pelo
conteúdo da volição que a originou, e não se realmente existe aí uma coincidência
com o real desejo ou intenção daquele que externou a sua ação.
Sem adentrar nos aspectos históricos da criação da teoria da confiança, o que
se quer relatar é o fato de que esta teoria foi concebida como um mecanismo, ou
meio técnico, para aperfeiçoar os efeitos que se pretende obter com este conceito.
Sobre esta ótica: o que se coloca em relevo é o aspecto da segurança jurídica que
se pode alcançar com determinada declaração, se o destinatário da mesma
desconhece eventual vício de sua emanação.209
Quer-se dizer, assim, que esta teoria pode dar maior ensejo à previsibilidade
dos efeitos que pode produzir os negócios jurídicos, se estes estiverem promanados
em bases (supostamente) concretas para aferição de seus contornos formais. Neste
sentido, o destaque recai nitidamente sobre o comportamento das partes
relacionadas ao tráfego jurídico em geral: o que se visa com este fatiamento é a
proteção do destinatário da declaração.
O declaratário da relação jurídica possui maior possibilidade de ver e fazer
servir a proteção oferecida aos fundamentos de sua circunstância social, pois, neste
caso, parte do pressuposto que a conduta do declarante está pautada em critérios
amplamente escorreitos, ainda que de ordem subjetiva.
Destila-se, porém, uma chamada ao cuidado com a adoção desta doutrina,
pois tomada em mão única pode-se retinir seus efeitos aos limites da pseudo-
legalidade. O instituto requer atenção para o que Carlyle POPP classifica e descreve
208
POPP, 2008, Id. 209
V. “A responsabilidade pela confiança como realidade independente da violação dos deveres laterais de conduta decorrentes da boa fé” (FRADA, Manuel António de Castro. Teoria da confiança e responsabilidade civil. Coimbra: Almedina, 2007, p. 452).
110
como sendo “o comportamento do declarante e os limites de sua
autodeterminação”.210
Refere-se, ainda, à omissão da legislação pátria, e faz contraponto com o que
preceitua o art. 236º do Código Civil Português quanto à “interpretação e integração
dos negócios jurídicos”, qual seja:
“1. A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele. 2. Sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida”.
Realmente, percebe-se que o sentido destas regras traduz-se no sentido de
que o declarante se vincula com o que quis dizer ao declaratário, considerando-se
que a questão perpassa pelo entendimento do que ele próprio entende com o
significado de sua expressão. Em havendo divergência com o que assimilou o
declaratário, evidenciado está o fator de ausência da esperada confiança, uma vez
não haver a esperada sincronia conceptual para aperfeiçoar os efeitos jurídicos
desta relação. Face à prescrição da lei, caberá ao declarante demonstrar o
“conteúdo de seu querer”, pois é dele o ônus de evitar a dúvida na declaração.211
Neste contexto jurídico, depreende-se que a regularidade da tratativa está em
função cabal do que concebe o declaratário da relação. Independentemente de o
declarante merecer crédito por confiança ou não, o que sopesa é a qualidade do fato
de o destinatário da declaração, na posição de homem médio, p.ex., ter concebido
uma ou outra condição de crença que convirja com o estado da declaração feita.
É de se considerar, portanto, que haverá responsabilidade baseada no
princípio da confiança se o destinatário da declaração alçou condição suficiente para
desenvolver uma determinada crença em estrita relação com os termos da
emanação volitiva do declarante. Ou seja, “a responsabilidade pela confiança
pressupõe que o declaratário tenha legitimamente confiado de maneira a gerar nele
uma expectativa normativa de certa conduta futura de parte do declarante”, todavia
não sem se conhecer e respeitar o teor das considerações anteriormente feitas, bem
como peculiaridades outras do caso concreto.212
210
POPP, 2008, p. 117. 211
Id., p. 118. 212
Id.
111
Referido marco regulatório qualifica o declaratário necessário da posição
jurídica que lhe adscreve como sendo o homem normal, mediano em sua concepção
existencial. Este requisito, entretanto, não é único para estabelecer os critérios sobre
os quais se deve avaliar a envergadura da confiança mutuamente debitada pelas
partes contratantes.
Incide, adicionalmente, nesta avaliação, os elementos da objetividade e da
subjetividade da relação jurídica, são eles: i) o elemento objetivo, o qual traduz a
qualidade do comportamento do declarante sobre cuja intensidade se mede o grau
de potencialidade para gerar confiança na outra parte; e, ii) o elemento subjetivo, o
qual requer conhecer autenticamente se o contratante confiou, de forma efetiva, no
comportamento da outra parte.213
Relaciona o autor várias situações do cotidiano das pessoas as quais
possuem potencial para “gerar o elemento objetivo e, conseqüentemente, influir no
âmbito subjetivo.”
Estas circunstâncias são as seguintes: i) “a natureza profissional do sujeito
que intervém na negociação”: dentre as tratativas realizadas entre um leigo e um
profissional, é de se esperar que o leigo, em reconhecendo a interveniência de seu
interlocutor pautada por critérios objetivos de profissionalidade, desenvolverá maior
confiança do que aquela que poderia ser respectivamente mensurada entre dois
profissionais; ii) “as características pessoais do sujeito que inicia as negociações”:
aqui entra em relevo o que cada pessoa pode traduzir em termos de reconhecimento
do outro, pois, é fato, maior facilitação social ocorre em se tratando de “aliar-se” com
quem já possui conhecidos caracteres da própria feição ou da labuta que se quer
travar. É o que se verifica com pessoas que são tidas como “corretas e honestas”,
advindas do próprio ambiente familiar, ou do trabalho, ou do meio acadêmico, etc.;
iii) “a existência de anterior relação entre as partes”: neste caso a periodicidade de
negociações anteriores fornecerá o aspecto da nova configuração de confiança que
se estabelecerá entre as partes, pois a referência recai sobre o modelo de
considerações feitas acerca do comportamento da contraparte, circunstâncias estas
que ocorreram em momentos pretéritos da relação contratual os quais foram
concluídos e “terminados” em função do critério temporal; iv) “o tipo de contrato”:
neste quesito, relaciona a doutrina “a sua natureza, a sua importância econômica
213
POPP, 2008, p. 119.
112
e/ou social, a sua freqüência e a forma como habitualmente é concluído”. A partir
desta subjacência depreende-se que neste ponto imprime-se maior ou menor
relevância ao dispêndio do contrato, seja no aspecto financeiro, econômico,
tecnológico, social, etc. Aqui se vislumbra também uma (ou mais) espécie de
conformação destas vias pelas quais trafega o interesse empresarial; v) “a existência
de uma proposta efetiva que motive o início de negociações sérias”: a maior
característica desta situação é a determinabilidade qualitativa da proposta, pois “não
se trata de mero convite genérico para contratar”. Diz-se maior pela amplitude formal
que se imprime à proposta efetiva: nela estão presentes todos os elementos do
contrato; nenhuma informação desconhecida integrará o futuro contrato.
Apresentação de proposta com esta natureza dá maior ensejo ao desenvolvimento
da confiança, eis que o elemento “convicção” forma-se direta e fortemente pautado
em todos os propósitos externados pelo ofertante; vi) “a concreta configuração de
contato havido entre os sujeitos”: nesta vertente, duas situações podem ocorrer: ou
o contato ficará caracterizado como mera expectativa negocial, sem, contudo, ter
gerado confiança na outra parte; ou, configurado estará o contato com
comportamentos que revelam, efetivamente, o desenvolvimento e formação de
intenção para realizar determinado negócio, ocasião, então, que há ensejo à
presunção de confiança criada na outra parte. Neste caso, a interpretação da
conduta da outra parte revela a disposição negocial, e denota o firme propósito na
conclusão do contrato. Confia-se, portanto, que haverá uma futura celebração do
contrato; em não se confirmando esta condição, exsurge a responsabilidade pré-
negocial em potencial.214
Conforme assevera o autor, a confiança revela um fator de grande interesse
social. Sua valorização “no tráfico jurídico” repercute diretamente na qualidade das
relações que se estabelece entre os supostos pares da relação jurídica. A lealdade e
o bom comportamento fazem transparecer uma conduta digna em relação ao outro,
o que faz desbordar até mesmo o interesse fraternal em relação ao contratante, e
não o meramente econômico.
Este fenômeno está circunscrito em função de utilidades outras da confiança
que não só o garantismo de relações jurídicas propriamente ditas individualistas.
Todos os outros elementos do tráfego social demandam por segurança jurídica, e
214
POPP, 2008, p. 119-120.
113
este caráter assecuratório que deve permear o fluxo vetorial das instituições de
direitos e obrigações tem por base os fundamentos da confiança, os quais podem
estabelecer os rumos da tutela que se almeja obter no itinerário da atividade
empresarial.
Sem os atributos da lealdade e da cooperação não consegue a sociedade
alcançar os meios de convivência pacífica, sem a qual não pode obter os meios de
sobrevivência minimamente estabelecidos para consecução digna do ser humano
enquanto parte integrante de uma nação. Esta estaria fadada ao infortúnio da
miséria institucionalizada se não tivesse capacidade suficiente para gerir seus
próprios negócios com finalidade transcendental. Poder confiar no outro é abrir
caminho para o entendimento mútuo, forte numa comunicação saudável,
consensual, e salutar para a consecução da paz jurídica.215
Perceba-se, por exemplo, que estes fundamentos dão sustentabilidade para o
instituto de proteção a terceiros de boa-fé.
“Logo, por causa da proteção a terceiros de boa-fé, reflexo da confiança, é que, por exemplo, a revogação do mandato, notificada somente ao mandatário, não se pode opor aos terceiros, que, ignorando-a, de boa-fé com ele trataram, conforme estabelece o art. 1.318 do Código Civil. De igual sorte é a regra que determina o regular registro da penhora imobiliária (CPC, art. 659, § 4º) na circunscrição própria e/ou prévio conhecimento do adquirente, sob pena de não atingir terceiros de boa-fé”.216
O princípio da confiança surpreende quando demonstra relevância fática ao
qualificar a vontade em seu aspecto de adequabilidade funcional. Mas não somente
isto: depreende-se também desta citação, e por aprendizado da doutrina em
comento, que este princípio está apto a demonstrar em que pesa a eficácia do
negócio jurídico; mais, ainda, está sendo direcionado “como forma de incremento da
justiça substancial da relação jurídica”.217
A relação jurídica de hoje não mais se conforma com a principiologia de
outrora. O melhor significado da vontade consubstanciado no manejo histórico dos
fins egocêntricos dos contratos ruiu ante a novidade da boa-fé positivada. Deste leito
nasceram outros enfoques aliados à socialidade, dentre eles a preterição da
215
POPP, 2008, p. 120. 216
Id. 217
Id., p. 122.
114
patrimonialidade pura para colocar o “ser humano como protagonista efetivo das
relações negociais”.218
Destas considerações cabe ressaltar a finalidade da melhor doutrina para
dizer que a ampla relação negocial está tutelada pelo Direito, e, como menciona o
autor, “Os tribunais não se tem furtado ao reconhecimento dos efeitos jurídicos da
tutela da confiança”.219
Assim, conforme se vão desenvolvendo as expectativas na outra parte, em
grau proporcional, ou exponencialmente, desenvolve-se a confiança para
estabelecer uma determinada crença no que pode ser efetivado de negócio quando
da conclusão do contrato. O contrato em potencial é aquele fruto de uma fé que faz
vislumbrar a conclusão do mesmo em todos os termos de sua configuração
previamente concebida, e sua frustração ataca diretamente a confiança depositada
na contraparte, gerando-se prejuízos mediante a experimentação de danos
emergentes e lucros cessantes.
Em se verificando estas condições objetivas no trato da relação jurídica, eis
que aberta estará a oportunidade de o declaratário fazer firmar o Direito em prol de
sua legítima expectativa, principalmente para fazer reparar as desventuras sofridas
ao nível psicológico e no da respectiva patrimonialidade envolvida na esfera real e
potencial de sua atuação.
3.4.2. Os Limites do Contrato e a Natureza Obrigacional dos Deveres Laterais
Em se tratando das razões pelas quais se celebram contratos, sabido é que
sempre será difícil determinar qual é o justo substrato de materialidade das
obrigações que deve ser “pago” e proporcionalmente distribuído entre as partes.
Presume-se ser mais fácil raciocinar pelo critério qualitativo que envolve o fenômeno
da contratação quando em cotejo com a prescrição legal, no que diz respeito aos
limites que devem ser observados quando do exercício da liberdade de contratar.
Veja-se detalhada e reflexivamente o que prescreve o art. 421 do Novo
Código Civil: “A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da
função social do contrato”. Perceba-se que a função social do contrato é quem
218
POPP, 2008, p. 122. 219
Id., p. 124.
115
subjuga a liberdade de contratar; e mais, depreende-se desta exegese que
mencionada função é multidimensional, pois circunscreve possibilidades poliédricas
nas várias acepções que podem assumir como características, combinando uma à
outra, quando da aplicação deste princípio no caso concreto.
Antes de adentrar no estudo dos mencionados limites do contrato, vale
relembrar o que prevê o art. 5.º, incisos XXII e XXIII, da Constituição Federal de
1988:
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] XXII - é garantido o direito de propriedade; XXIII - a propriedade atenderá a sua função social;”
É de se notar que o fundamento constitucional do mandamento da função
social previsto no Código Civil tem por base a garantia que se dá à propriedade, na
medida em que sua utilidade atenda também a sua função social. É inegável,
portanto, que o mecanismo contratual é o meio pelo qual se possa ver ou realizar a
função social da propriedade, ou seja, na exata medida dos interesses das partes,
que se perfazem através das tratativas negociais, ou da sua conclusão, bem como
de sua sobrevida vigencial, coaduna-se a isto, também, o que deve ser as
vantagens destinadas à coletividade como um todo, à parte e concomitante à
consecução puramente econômica.
Interessante fenômeno social ocorreu por voltas ao advento sancionatório
para fazer vigorar o Novo Código Civil, quando se referiu aos qualificativos de
validade jurídica para celebrar contratos com subordinação ao preceito da função
social impresso no art. 421. Explica-se: parece que com maior preocupação
indagava-se sobre a exata dimensão deste comando legal, pois não se sabia
exatamente se os princípios tradicionais do contrato estariam sendo substituídos ou
não em face dos novos princípios contratuais.
Conforme já explicado neste trabalho, a principiologia clássica não foi
derrogada, e sua observância se faz imprescindível para o contexto atual, até
porque o brocardo relativo ao pacta sunt servanda ainda continua em mais alto
relevo para justificar as relações contratuais. Cogitou-se pela temeridade dos efeitos
que poderiam incidir sobre o novo desiderato, mas, com o transcurso do tempo,
116
verificou-se que a projeção das relações jurídicas para o plano da
metaindividualidade em nada comprometeu substancialmente os métodos e
procedimentos práticos do labor econômico.
Pelo mandamento do art. 421 impõe-se aos contratantes projetar os efeitos
do contrato para alcançar algum benefício em prol da coletividade. Naquele
momento inicial de vigência deste comando legal, deu-se ensejo à sensação que a
nova relação contratual, sistematizada numa conta adicional e debitória de encargos
sociais, genericamente colocada, afetaria as garantias relacionais dos fins
avençados; mas, os doutos de plantão logo enxergaram a que veio o art. 422.
Este artigo confirmou a idéia de que os princípios clássicos, sim, continuam
em vigor. E, além destes, no que se pede para projetar a abrangência motivacional
dos contratantes, sobrescreveu-se também o fato que dita regra não poderia fazer
refugir às obrigatoriedades do vínculo em si, uma vez que o contexto de probidade e
boa-fé, requeridas para celebração de contratos, abarca, inclusive, a primazia dos
conceitos mais antigos aplicáveis aos contratos.
O deslinde deste trabalho promete ser supedâneo para (tentar) impactar na
provocação de nova leitura que pode ser feita à vista de comparações institucionais
já estabelecidas e que aqui se relacionam. Por exemplo: reflita-se sobre a
imponência do art. 187 do Novo Código Civil, verbis: “[...] comete ato ilícito o titular
de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu
fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.
Este artigo quer dizer expressamente que aos contratantes não é dado
abusar de seus direitos; não lhes é permitido utilizar do contrato para prejudicar o
álter do negócio e/ou a terceiros imediatos220 ou mediatos221. Em se verificando os
aspectos ou a manifestação da prejudicialidade no iter contratual, caracterizada
estará mencionada excessividade, a qual delimita-se funcionalmente para apontar
qual é a justa finalidade do certame.
Neste caso, tipificado fica o ato ilícito, por violação dos objetivos estatais
pautados na necessária regularidade do processo econômico, o qual deve ter vistas
220
Terceiros imediatos podem ser empregados e seus respectivos familiares, p.ex., em relação ao empregador que firmou contrato com “estranhos” cujo objeto esteja à revelia ou não-conforme aos interesses do vínculo empregatício. 221
Terceiros mediatos podem ser os integrantes da sociedade que não sejam afetados diretamente em função dos efeitos nocivos que pode provocar determinado contrato (todavia o são prejudicados enquanto coletividade).
117
para o favorecimento social responsável, com observância dos princípios da boa-fé
e da ética consubstanciada nos bons costumes.
A lógica deste raciocínio é óbvia, tanto é que o legislador assim percebeu: o
interesse particular pode ser almejado e buscado por qualquer de direito, pois o
fundamento da livre iniciativa (art. 1.º, IV, CF/1988) confere a todos a possibilidade e
a liberdade de amplamente contratar, desde que este ato não colida com o interesse
público.
Outro aspecto interessante da concepção limitativa à liberdade de contratar
diz respeito à abrangência usurária de gestão relacionada ao apego pelo poder
econômico, ou, à tendência para eliminar concorrências e/ou dominar mercados, e,
enfim, para se obter lucros de forma exagerada.222
Indubitável o fato de o Direito privado estar também regulado no art. 173, §
4.º, da vigente Constituição. Pelo teor desta legislação verifica-se que nenhum
negócio jurídico pode extrapolar os limites do poder negocial, eis que a livre
iniciativa, erigida como valor da República, tem o condão de primar pela função
social que lhe foi atribuída. Neste sentido, referido poder também é fonte de direito,
assim como é a lei (em sentido amplo), a jurisprudência, etc., e, neste viés, deve
funcionar este aparato para inibir qualquer prática abusiva dos contratos em geral.
Assim, o livre exercício de atividade empresarial, da liberdade para celebrar
contratos - com vistas à obtenção de vantagens econômicas, do empreendimento
para prospectar negócios e acumular riquezas, etc., não o são proibidos, aliás, são
incentivados, desde que se busque também o bem comum nestas ações.
Em não se verificando estas condições sociais, incumbe ao juiz delimitar a
margem de afetação à coletividade, e, como tal, deve exigir que os acordos de
vontades retornem em si mesmos para fazer valer também a eleição dos interesses
coletivos. De outra forma, se o caminho fosse o do detrimento escancarado do
alheio restaria ao Estado o distintivo da conivência inaceitável para com o
premeditado tolhimento do justo desenvolvimento do país.
A boa-fé é a base que faz irradiar a incidência do princípio da socialidade
sobre o fenômeno da contratação, e como tal implica observar que neste episódio
faz surgir, portanto, obrigações diversas que vinculam as partes ao espectro da
222
V. art. 173, § 4.º, da CF/1988: “A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros”.
118
coletividade. Estes deveres inerentes ao negócio não mais podem ser preteridos, à
revelia dos preceitos constitucionais.
Neste sentido, assevera Carlyle POPP que ao celebrar-se determinado
negócio jurídico, ainda que na fase das tratativas, surgem para as partes diversos
deveres, os quais qualificam o fenômeno com a complexidade da atual relação
jurídica. Esta deve ser vista como um processo que abarca todas as vertentes
individuais e sociais de seus efeitos, subsumidos pelas prescrições do ordenamento
jurídico.
Neste contexto nascem os chamados deveres laterais223 de conduta. “Ditos
deveres de conduta se constituem em frutos da boa-fé objetiva, mas podem originar,
também, de cláusula contratual – seja na fase pré-contratual ou na contratual – ou
mesmo de um dispositivo legal”.224 Estes “frutos” são concebidos com a finalidade
específica de preservar a boa-fé, cuja implicação decorrente é a promoção da
solidariedade e, também, indiretamente, da dignidade da pessoa humana.
Antes de relacionar e explicar alguns deveres laterais de conduta, vale
mencionar o atual enfoque do autor para dizer que, modernamente, admite-se, ainda
que excepcionalmente, resolver determinado contrato quando ocorre “o
descumprimento dos deveres laterais”, especialmente quando verificar-se que o
instituto da confiança que até então sustentava a relação jurídica restou prejudicada
em função da inobservância do dito dever.
Não menos importante é a constatação de outro gene que melhor estereotipa
e aperfeiçoa, juridicamente, a instituição dos deveres laterais, qual seja: os deveres
laterais de conduta são indisponíveis. Brilhante é esta assertiva doutrinária para
dizer que a má-fé é inaceitável, e como tal não encontra tutela no ordenamento
jurídico pátrio por uma razão muito simples: “se admitida fosse a cindibilidade do
direito da parte, seria o mesmo que se permitir a possibilidade de os negociadores
agirem sem boa-fé.”225
223
“Estes deveres de conduta são também denominados deveres laterais; deveres acessórios de conduta; deveres de proteção e deveres de tutela (V. POPP, 2008, p., 195). 224
Importante observação do autor recai sobre o propósito deste trabalho quando tratará da violação positiva do contrato como hipótese de inadimplemento contratual. Assim escreve: “Esta dissimilitude, no que tange ao momento da incidência dos deveres laterais, é que permite uma importante distinção entre culpa in
contrahendo, violação positiva do contrato e culpa post pactum finitum, especificamente com relação aos efeitos oriundos do violar destes deveres anexos” (Id.). 225
POPP, 2008, p., 196.
119
Logicamente, admite-se que determinado dever lateral de conduta até possa
sofrer alguma relativização de sua pontuação e de sua tarifação, mas este peso não
pode quebrar a essência do instituto, cujas conseqüências implicariam na
experimentação diversa de fatores anti-sociais aos parâmetros de correção e
lealdade em relação ao Direito.226 É por isso que a observação e avaliação dos
deveres laterais devem ser vistos e sopesados de forma ampla, em conjunto, para
bem dimensionar e distribuir em qual constelação jurídico-social se fixará o caso
concreto.
Falando-se em pontuar e tarifar idealmente os termos esperados de
comportamento, discorre-se, a seguir, sobre a mensuração e a qualidade dos
deveres de conselho, de informação e de recomendação; de guarda e de restituição;
de segredo; de clareza; de lealdade; de proteção e conservação; todos na esteira
doutrinária de Carlyle POPP.227
O dever de conselho, de informação, e de recomendação, tem uma finalidade
precípua no aspecto da preservação da boa-fé, qual seja: estes deveres,
concatenados numa só categoria, viabilizam ou proporcionam meios para se
estabelecer a igualdade na relação contratual. Trata-se de deveres pré-contratuais
destinados a qualificar o vínculo contratual entre as partes, seja em qual modalidade
for.
O que está em relevo neste contexto é o fato de que o consentimento deve
projetar a efetividade de sua realização transfigurada na igualdade substancial dos
contratantes. Separam-se neste ponto as características do dever de informar, como
sendo aquelas relacionadas às condições com as quais se determinam as avenças
relacionadas ao contrato e ao objeto em si.228 E ainda, “o dever de conselho, por sua
vez, reside no âmbito da oportunidade do negócio, enquanto que o de
recomendação labora, normalmente, com alternatividades de conduta.229
Verifica-se, pois, que o dever de informar não se restringe à simples
interlocução feita entre contratantes, pois o que se quer determinar neste contexto é
226
POPP, 2008, p. 196-197. 227
Id., p. 197 e ss. 228
Sobre o dever de informar previamente o conteúdo do contrato, bem como de oportunizar o seu conhecimento, cita-se o exemplo do art. 46 do Código de Defesa do Consumidor, verbis: “Os contratos que regulam as relações de consumo não obrigarão os consumidores, se não lhes for dada a oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo, ou se os respectivos instrumentos forem redigidos de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance.” 229
POPP, 2008, p. 199.
120
que esta comunicação produza efetivamente o resultado da equidade perfeita entre
as partes no sentido de que cada uma possa assimilar exatamente em que pesa a
decisão de aderir ou não às condições do futuro contrato.
Neste sentido, pode haver ou não a conclusão; bem como pode estar ele
concluído de forma satisfatória à conformidade legal, ou, inadequado,
aparentemente ou não, às condições reclamadas pelos deveres em comento. O fato
é que a não-conformidade desta relação informacional pode implicar a respectiva
responsabilidade contratual, segundo a natureza de sua violação. Perceba-se que
nesta assertiva abarca-se tanto o dever de informação, genericamente posto, como
o (sub)dever de clareza230 que envolve-se nas circunstâncias fáticas destinadas à
elucidação das expectativas negociais do parceiro comercial.
No que diz respeito ao dever de guarda e de restituição aclara-se a repisada
regra que em se tratando de posse de coisa alheia, ou do conhecimento de
informações, documentos, projetos, livros, etc., da outra parte contratante, ou de
terceiros, incide, nestes casos, dois tipos de tutela: uma relacionada à reparação dos
danos causados pelo mau procedimento de guarda e conservação dos bens de que
se tem posse; a outra, no sentido de exercitar-se a busca e retomada da posse
daquilo que pertence ao proprietário do feito material.
Declina-se também negociações preliminares para localizar esta teoria no
âmbito das relações contratuais, quando uma parte recebe da outra documentos ou
bens para a consecução das tratativas que precedem a sua conclusão.
Evidentemente, mencionada posse deve ser responsável o suficiente para preservar
a materialidade das coisas e a formalidade das informações na medida em que
devem ser adequadas ao contexto final do negócio.
Tão logo o objetivo negocial seja alcançado, surge a obrigação de devolver-se
ao dono o que lhe pertence,231 bem como deve-se manter em sigilo aquilo que não
foi convencionado para propagar, seja pelo critério do uso, do costume, ou da boa-
fé. Naturalmente, esta devolução denota a obrigatoriedade adicional de restituir a
coisa no bom estado de conservação que se encontrava o bem.232
A integridade do bem tomado da outra parte deve ser mantida, protegida, ou
conservada, sob o mesmo tratamento adequado que daria o seu dono desde o
230
POPP, 2008, p. 209. 231
Id., p. 206. 232
Id., p. 212.
121
momento em que traspassou a posse para o outro contratante. A responsabilidade
que advém desta circunstância independe de ser ou não o contrato concluído, pois o
que se coloca a lume neste momento é a fase adicional que precede a execução e a
pós-contratualidade.
De todo modo, o que parece ser mais abrangente e com maior potencial para
problematizar a observação ou caracterizar o descumprimento dos deveres laterais
é a falta de lealdade,233 posto que este atributo refere-se diretamente a todos os
fatores que fazem culminar na qualidade formal e informal do negócio jurídico que se
quer fazer.
Objetivos negociais se pautam numa série de deveres e procedimentos
preparatórios e acessórios para consignarem a espécie dos elementos que fazem
esquadrinhar e expor os dados do plano concebido na esfera subjetiva dos agentes.
Relacionado a isto está o fato de que dignidade do outro deve ser respeitada, sob
pena de estar-se atacando a pessoa na sua essencialidade com a atitude
indesejada da deslealdade.
Implicação haverá na medida em que transcorrem negociações e há ruptura
das tratativas de forma injustificada. Neste caso, o primeiro aspecto que será
evidenciado é o fato de que a confiança não mais subsistirá ao feito da
imprevisibilidade de tal comportamento, e, conseqüentemente, verificar-se-á que a
falta de motivos para a perpetuidade da relação estará caracterizada em função da
ilegitimidade do ato.
A expectativa pela formação e realização de um contrato firme, válido,
portanto, e eficaz em relação aos propósitos econômicos ajustados, tem endereço
certo: esta construção se faz pelo simples fato que um considerável grau de
confiança foi edificado em torno de um objeto de mútuo interesse. Nesta
circunstância amola-se o dever de prendar à outra com o que se traduz por
probidade, seriedade, constância regular de propósitos para se obter as vantagens e
os proveitos materiais anteriormente idealizados no plano abstrato.
Se, porventura, advém algum fator superveniente que possa colocar em risco
a finalidade contratada, obrigatório se faz a manifestação das incertezas que
passam a permear o sistema deste negócio, pois não se podem aprumar ações de
233
POPP, 2008, p. 209.
122
investimentos que estejam voltadas para o arcabouço de dúvidas factuais que
dariam ensejo a desarranjos no esperado adimplemento.
Em termos gerais: informar, cooperar, e proteger é preciso, sob pena de se
estar diante de uma hipótese de violação de deveres laterais, o que, fatalmente,
pode desaguar na possibilidade de resolução contratual. Este tema será melhor
estudado no capítulo 4.
123
CAPÍTULO 4 – AUTONOMIA PRIVADA E BOA-FÉ: REFLEXOS N A ATIVIDADE
EMPRESARIAL
4.1. RESPONSABILIDADE PRÉ-CONTRATUAL E O ROMPIMENTO DAS
TRATATIVAS
O art. 422/CCB estabelece que “os contratantes são obrigados a guardar,
assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade
e boa-fé”. Deste mandamento, destaca-se o atributo da boa-fé relacionado no
gênero, uma vez se tratar de categoria jurídica que subdivide-se em subjetiva e
objetiva.
A boa-fé subjetiva está para os aspectos internos, da psique, do agente
contratante, ou seja, trata-se de suas crenças, conhecimentos (ou falta destes) que
fazem, ou não, as convicções do mesmo. Em outros termos, a boa-fé subjetiva pode
ser traduzida como a falta de conhecimento de situação qualquer que pode afetar os
interesses do contratante. Nas palavras de César Fiuza,234 “quem compra e quem
não é dono, sem saber, age de boa-fé, no sentido subjetivo”.
Por outro lado, segundo este mesmo autor, a boa-fé objetiva “baseia-se em
fatos de ordem objetiva”, ou seja, “baseia-se na conduta das partes, que devem agir
com correção e honestidade, correspondendo à confiança reciprocamente
depositada”. Esta confiança deve estar pautada em elementos objetivos que
caracterizam a conduta da parte adversa.
Importante destacar que a raiz do princípio da boa-fé objetiva é a dignidade
humana, “da qual decorre a necessidade elementar de respeito à pessoa e à sua
dignidade. A dignidade da pessoa humana [...] constitui valor máximo no
ordenamento jurídico brasileiro, uma vez que a Constituição Federal de 1988 a erigiu
a fundamento do Estado, nos termos do art. 1º, III, e, portanto, de toda a ordem
jurídica”.235
Depreende-se, portanto, que a concepção de dignidade humana implica na
obrigatoriedade de pautar-se em conduta honesta para tratar de qualquer negócio
jurídico, seja para com o outro contratante, ou para quem pode ser mediatamente
234
FIUZA, César. Contratos. Belo Horizonte: Del Rey, 2009, p. 104. 235
FRITZ, 2008, p. 105.
124
afetado pelo comércio em operação. Referida conduta requer agir com honestidade
e transparência, pois é por meio deste comportamento, potencialmente previsível,
que se dá ou concebe os indícios e os caracteres de confiança, cujo atributo se faz
indispensável para conclusão de qualquer contrato no âmbito do comércio jurídico.
Fazendo-se levantamento doutrinário acerca das características que denotam
a fase pré-contratual, pode-se perceber que há um sem-número de explicações para
identificar quais são as fases que precedem a conclusão de determinado contrato.
Ocorre que este levantamento parece sugerir mais utilidade para fins acadêmicos do
que para efeitos da prática de mercado propriamente dita, mas isto é só aparência.
Karina Nunes Fritz aborda a questão da culpa in contrahendo sob o viés do
Direito comparado demonstrando variados aspectos jurídicos no trato de
negociações que acabam por se estabelecer como relações obrigacionais.
Para exemplificar, a autora destaca alguns momentos em contatos negociais
que podem ser considerados, conforme o caso, para efeitos de responsabilidade
pré-contratual, quais sejam: i) negociações preliminares; ii) preparação do contrato;
e, iii) contatos semelhantes aos negociais.
As negociações preliminares seriam caracterizadas pela existência de uma
discussão entre as partes, em torno de determinado objeto, com vistas à celebração
de um contrato. A preparação do contrato consistiria num contato efetivo com
finalidade negocial, cujo momento se difere das negociações preliminares por já se
ter em vista os necessários parâmetros do objeto de negociação, ainda que de
forma genérica. E, os contatos semelhantes aos negociais sugerem
encaminhamento para a conclusão de determinado contrato, todavia há grandes
divergências na doutrina do que sejam estas semelhanças entre contatos negociais
e contrato efetivamente concluído.236
Entretanto, o que se observa na prática de mercado é a adoção de
procedimentos ligeiramente diferentes do que se escreve em eventuais doutrinas
cujo mote está desconectado do pragmatismo operacional.
A fase pré-contratual pode ser construída objetivamente de formas diferentes,
conforme queiram proceder interessados de determinado negócio. Como exemplo,
pode-se citar um contrato de trespasse; pode-se supor que neste tipo de
negociação, as partes se manifestem demonstrando interesse em negociar o
236
FRITZ, 2008, p. 65.
125
trespasse de determinada empresa: para formalizar tais intenções, a primeira
questão a ser resolvida é a necessária confidencialidade que deverá haver entre os
contratantes, a fim de que as negociações possam seguir hígidas em seu “livre”
curso. Uma vez celebrado o termo de confidencialidade, as partes elaboram e/ou
celebram o memorando de entendimentos, o qual guiará as negociações com vistas
à conclusão do contrato.
E ainda, esta conclusão de contrato pode se dar de forma parcial no sentido
qualitativo, pois, primeiramente, pode-se consumar o ato de trespasse da empresa,
para, num segundo momento, comparecerem as partes junto ao INPI para se
fazerem as necessárias transferências de propriedades intelectuais anteriormente
registradas.
Percebe-se que, para além das infindáveis discussões acadêmicas acerca do
que gera ou não responsabilidade pré-contratual, nos momentos das negociações
que precedem eventual conclusão de contrato, os sujeitos (de mercado), num modo
geral, fazem suas adaptações necessárias no sentido de formalizar juridicamente
um negócio usual, todavia pelo caminho que traduz maior eficácia de resultado pelo
viés econômico. Grande parte dos riscos são previamente analisados e o respectivo
planejamento financeiro, que faz adstringência aos objetivos de qualquer
negociação, normalmente são bem dimensionados sob o ponto de vista da
perspicácia econômica.
Segundo Almeida COSTA, “através da responsabilidade pré-contratual, o que
directamente se tutela é a confiança recíproca de cada uma das partes em que a
outra conduza as negociações num plano de probidade, lealdade e seriedade de
propósitos”.237
Partindo-se desta premissa, surge o dever de indenizar quando uma das
partes das negociações em andamento rompe com as tratativas de forma
injustificada. Diante de tais circunstâncias, o dano sofrido pela contraparte, em
função do rompimento arbitrário, deve ser reparado.
Naturalmente, para que esta reparação seja levada a cabo, alguns requisitos
são essenciais para que fique caracterizada tal responsabilidade, quais sejam: i) a
existência de negociações; ii) a certeza ou confiança legítima na conclusão do
contrato; e, iii) a violação da boa-fé objetiva por meio do rompimento injustificado 237
COSTA, Mário Júlio de Almeida. Responsabilidade civil pela ruptura das negociações preparatórias de um
contrato. Coimbra: Coimbra, 1984, p. 54.
126
das negociações. Segundo Karina Nunes Fritz, “a esses requisitos peculiares da
responsabilidade pré-contratual acrescentem-se ainda os demais elementos gerais
da responsabilidade civil aquiliana, ou seja, culpa, dano e nexo causal”.238
A existência de negociações se caracteriza pelas conversações ou
formalidades ajustadas sobre o objeto do contrato que ainda será formado. Nesta
etapa inclui-se as tratativas iniciais com seu concomitante momento de decisões
acerca do que se pretende contratar. Neste sentido, as negociações podem ser
verbais ou escritas, conforme queiram ou definam as partes.
O fato de as tratativas nesta fase estarem escritas facilita a comprovação da
existência da confiança que se formou entre as partes. A certeza ou a confiança
legítima na conclusão do contrato pode ser verificada explicitamente quando se
adotam as necessárias formalidades desde o início das negociações. Por outro lado,
há que se considerar também que esta confiança pode ser suscitada ainda que as
negociações tenham se dado apenas verbalmente.
A eficácia de eventuais negociações verbais deverá ser aferida conforme o
caso concreto, pois não havendo instrumentos destinados a registrar estas
tratativas, a pretensão sobre eventual responsabilidade nesta fase pode resultar
frustrada. É por isso que comumente são utilizados “minutas” e/ou “cartas de
intenções” (denominados genericamente de punctações)239 para documentar
eventuais negociações, pois podem resultar efeitos com maior eficácia do que por
provas testemunhais, por exemplo.
Entretanto, deve-se considerar que a ruptura injustificada das negociações
não implica necessariamente em responsabilidade pré-contratual. A violação da boa-
fé objetiva que resulta em ruptura injustificada de negociações é aquela
caracterizada como sendo ilegítima, arbitrária, intempestiva, sem justa causa, como
um comportamento desleal.240 Neste contexto, pretender obter indenizações em face
de um comportamento que diverge da expectativa gerada pela confiança que
permeou as negociações havidas entre as partes parecem justificadas quando os
tratamentos formais estão condizentes com a importância e apreço que se
relacionam ao objeto em oferta.
238
COSTA, 1984, p. 282. 239
Id., p. 287. 240
Id., p. 298.
127
Vale dizer, colocar uma robusta empresa (ainda que no sentido meramente
jurídico) à venda e partir para negociações sem as necessárias punctações que se
praticam neste meio, certamente este despropósito terá por conseqüência a
extravagância econômica de um “bem social” cujo prejuízo será imediatamente
notório aos protagonistas deste cenário.
Em se tratando de negociações relacionadas à atividade empresarial, deduz-
se existir significativa preocupação e cuidado no trato preliminar que antecede a
conclusão de qualquer contrato, mas esta premeditada eficácia nem sempre é
possível ponderá-la como fator determinante para a tratativa comercial.
4.2. DO INADIMPLEMENTO NO DIREITO BRASILEIRO: ESPÉCIES E EFEITOS
DO DESCUMPRIMENTO DA OBRIGAÇÃO
Antes de avançar nos estudos acerca do inadimplemento, necessário revisar,
em linhas gerais, a classificação (romanista) das obrigações, adotada por ambos os
Códigos civis brasileiros. Segundo Sílvio de Salvo VENOSA, as obrigações estão
distribuídas em três modalidades, são elas: i) obrigações de dar, pelas quais obriga-
se o devedor a dar coisa certa ou incerta ao seu credor; ii) obrigações de fazer; e, iii)
obrigações de não fazer.241
Várias são as classificações elencadas pela doutrina para categorizar os
diversos tipos de obrigações, bem como os variados modos de se cumprir as
prestações, mas o que se quer colocar em destaque neste trabalho é o
inadimplemento, como gênero, e seu desdobramento nas modalidades do
inadimplemento absoluto, da mora, e de uma terceira hipótese denominada violação
positiva de contrato.
Quando se fala em inadimplemento contratual, a primeira percepção que se
pode ter é o fato de o ordenamento jurídico pátrio estar aparelhado para dar
respostas aos fenômenos da frustração prestacional inerente a determinado
contrato. Veja-se que a finalidade precípua de um acordo celebrado é que os termos
241
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. 6.ª ed., v. 2.
São Paulo: Atlas, 2006, p. 56.
128
avençados produzam os efeitos esperados, ou seja, que o objetivo seja atingido em
todas as suas dimensões.
Naturalmente os fatos da vida empresarial não permitem esta linearidade
teórica no plano dos negócios, pois toda sorte de imprevistos e infortúnios alcançam
os melhores projetos e intenções consubstanciados na atividade em si.
O atual Código Civil regula algumas espécies de inadimplemento e oferece
soluções conseqüenciais para restabelecer o equilíbrio entre partes que sofrem
abalo ou desequilíbrio na estrutura da obrigação, a qual deveria estar orientada pela
simetria do crédito e do débito. Esta finalidade é ideológico-legal, pois o que não se
quer, e determinado está pelo legislador, é que eventual pessoa, figurante de uma
das partes do contrato, venha a ser prejudicado pela ingerência do outro durante a
gestão do contrato. Refuta-se violador de cláusula contratual que reduz a
contraparte à condição de pólo subserviente, destinando-o a perecer com efeitos
nocivos em sua liberdade e dignidade em função de uma vinculação patrimonial
doentia.
Estuda-se o efeito (a natureza da violação e sua respectiva responsabilidade)
que pode ter quando determinada prestação não é cumprida. Em relação ao objeto,
verifica-se o resultado pela viabilidade da prestação: não mais sendo possível, estar-
se-á diante do inadimplemento absoluto; se possível, e realizada com atraso, ver-se-
á os termos qualificativos da mora; e, se a prestação foi tempestiva ou intempestiva,
todavia defeituosa, incidirá, neste caso, a tipificação do incumprimento pela violação
positiva do contrato.
O inadimplemento absoluto tem por característica o perecimento do objeto,
pois a prestação não mais pode ser realizada para satisfazer a obrigação como
inicialmente prevista. Relacionam-se duas modalidades de causas que dão ensejo
ao inadimplemento absoluto: a primeira diz respeito à impossibilidade de realizar a
prestação, em função de “fatos ou atos relativos ao objeto da prestação”; a segunda,
“aos fatos respeitantes à relação entre os interesses do credor e a realização da
prestação”.242
Ensina a doutrina e classifica-se o inadimplemento da obrigação como que
absoluto se a prestação (ou, a obrigação) “não foi cumprida em tempo, lugar e forma
convencionados e não mais poderá sê-lo”. Entretanto, o que deve ser levado em
242
SILVA, Jorge Cesa Ferreira da. A boa-fé e a violação positiva do contrato. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 131.
129
consideração para caracterizar a possibilidade ou não para o cumprimento posterior
da obrigação é a utilidade da prestação, ainda que intempestiva. “Não é pelo prisma
da possibilidade do cumprimento da obrigação que se distingue mora de
inadimplemento, mas sob o aspecto da utilidade para o credor”.243
A utilidade mais significativa para o credor pode ser o dinheiro correspondente
ao valor da prestação. Isto é, se a prestação não foi cumprida, e se for possível
traduzir a equivalência do objeto pela entrega de numerário que compense a falta da
prestação, diz-se que o inadimplemento é relativo, e neste caso há oportunidade de
o devedor elidir os efeitos da mora, pagando adequadamente pelo que avençou com
a contraparte.
Entretanto, alerta o doutrinador que nem sempre a purgação da mora
traduzirá uma solução razoável para o inadimplemento, pois em determinadas
situações simplesmente será impossível realizar intempestivamente a prestação.
Cabe ao juiz investigar, cuidadosamente, a natureza da impossibilidade ou do fato
que impediu o cumprimento da obrigação. Em se verificando, por exemplo, que o
devedor maquinou neste sentido, diferente repercussão pode haver em face dos
casos em que nada concorreu o devedor para não se atingir os fins do contrato.
Conforme mencionado, o inadimplemento relativo é a própria mora,
caracterizada pelo incumprimento momentâneo da obrigação, ou seja, o
cumprimento ocorre, todavia com atraso culposo por parte do devedor. Perceba-se,
entretanto, que o elemento definidor deste fato é a culpa do agente, sem a qual não
se pode falar em mora. Esta tipicidade não prescinde do fator culpa, e o atraso
tecnicamente imotivado no cumprimento da obrigação não caracteriza o
inadimplemento relativo.244
Note-se, entretanto, que a caracterização da mora não se circunscreve
apenas em relação ao tempo de sua prestação. O art. 394 do Código Civil
estabelece que também será considerado em mora aquele que não cumprir a
prestação no lugar e na forma convencionada (se a lei não dispuser diferentemente).
Mencionou-se que a mora se evidencia quando a prestação não é realizada a
seu tempo, todavia ainda há possibilidade para sua realização em função da sua
utilidade. Neste caso, ainda que a prestação intempestiva seja útil não deixará o
devedor de responder pelos prejuízos a que deu causa em função de seu atraso. Eis
243
VENOSA, 2006, p. 303-304. 244
Id., p. 305.
130
o teor do art. 395 do Código Civil, caput: “Responde o devedor pelos prejuízos a que
sua mora der causa, mais juros, atualização dos valores monetários segundo índices
oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado.”
Porém, pode o credor enjeitar a prestação se esta se tornou inútil para seu
aproveitamento. Neste caso, poderá exigir indenização para reparar perdas e danos
sofridos em função da mora do devedor. Leia-se o que prescreve o parágrafo único
deste mesmo artigo: “Se a prestação, devido à mora, se tornar inútil ao credor, este
poderá enjeitá-la, e exigir a satisfação das perdas e danos”.
Frisa-se que o exercício do enjeitamento não é aleatório e funcional à vontade
do credor (arbitrária). O que norteia este critério é a utilidade da prestação, a qual
estará sob crivo da ponderação do juiz.245 E mais, não se cogita a ocorrência de
mora se a obrigação reclamada não contempla os requisitos legais para a sua
existência, no que diz respeito à liquidez e à certeza, no seu termo. Em se faltando
qualquer elemento que aperfeiçoe a obrigação, pode-se saneá-lo através de
interpelação extrajudicial ou judicial.
Para que sejam auferidos os efeitos que podem produzir a mora do devedor,
necessário se faz que os requisitos objetivo e subjetivo da obrigação estejam
contemplados no título. A exigibilidade (requisito objetivo) e a culpa (requisito
subjetivo) devem estar presentes de forma inequívoca. Neste caso, o devedor
deverá estar constituído em mora, seja pelo viés do objeto do contrato, ou da pessoa
que toma a iniciativa para caracterizar o fenômeno.
Os efeitos da mora se traduzem em indenizações para reparar os prejuízos
que sofreu o credor. Entretanto, deve-se observar que com o descumprimento total
da obrigação a contrapartida será o custeio, pelo devedor, das perdas e danos que
fez incidir sobre o patrimônio do credor, no entanto esta indenização não pode
traduzir enriquecimento sem causa para o destinatário da prestação.
Pode haver, sim, um valor adicional à indenização quando verificado,
objetivamente, que o credor deixou de lucrar em outras circunstâncias comerciais
em função do inadimplemento do devedor. É o que prevê o art. 402 do Código
Civil.246
245
VENOSA, 2006, p. 306. 246
“Art. 402. Salvo as exceções expressamente previstas em lei, as perdas e danos devidas ao credor abrangem, além do que ele efetivamente perdeu, o que razoavelmente deixou de lucrar.”
131
No que tange à mora do credor, leciona a doutrina a interpretação legal no
sentido de que esta “não está ligada à culpa. O credor que não pode, não consegue
ou não quer receber está em mora”.247 O efeito imediato desta constatação está
previsto no art. 400 do Código Civil, verbis:
“A mora do credor subtrai o devedor isento de dolo à responsabilidade pela conservação da coisa, obriga o credor a ressarcir as despesas empregadas em conservá-la, e sujeita-o a recebê-la pela estimação mais favorável ao devedor, se o seu valor oscilar entre o dia estabelecido para o pagamento e o da sua efetivação”.
Enfim, relativamente à mora, importante dizer qual é o remédio para reparar
ou eliminar os efeitos deste tipo de inadimplemento. No Direito pátrio, o verbo
comumente utilizado para traduzir esta cura é o designado “purgar”. Purgação da
mora “é o ato pelo qual a parte que nela incorreu retira-lhe os efeitos. Aplica-se tanto
no caso do devedor, como no caso do credor”.248
Vale destacar que pela purgação da mora o devedor oferece e cumpre a
prestação, e adicionalmente faz o custeio dos prejuízos que sofreu o credor até o dia
da oferta ou da efetiva prestação. Lembra a doutrina, porém, que este prazo para
purgação é limitado, seja em função do prazo que se estabeleceu quando da
constituição em contrato, através de cláusula resolutória, seja em função do limite de
data que se impõe quando do ajuizamento de ação.
Além dos critérios convencionais, requisitos legais podem qualificar ou
quantificar o procedimento aceitável para possibilitar a realização da prestação. Cita-
se como exemplo o art. 3.º, § 1.º, do Decreto-lei n.º 911/69, pelo qual o devedor
somente pode purgar a mora se pagou pelo menos 40% (quarenta por cento) do
valor do financiamento.
Uma vez que a obrigação tornou-se objeto de lide judicial, seu deslinde se
dará na forma do direito material, todavia sem não se observar e aplicar as regras do
Direito processual inerente ao caso concreto.
Voltando-se no aspecto do descumprimento da obrigação, tem-se que ocorre
a mora quando o inadimplemento da obrigação é parcial, a qual socorre ao interesse
do credor se o mesmo verificar que ainda há utilidade na prestação intempestiva.
247
VENOSA, 2006, p. 309. 248
Id., p. 312.
132
Em não se verificando esta condição, estar-se-á, então, diante do inadimplemento
absoluto, o que caracteriza a frustração da obrigação.
Obrigação frustrada implica subsunção automática do Direito positivo. Não se
trata de uma opção da parte, mas, sim, de um fato juridicamente protegido sobre o
qual somente deixará de surtir efeitos mediante as situações previstas em lei, ou,
ainda, quando da remissão da dívida, ou em casos em que as partes venham a
convencionar pela exclusão e/ou limitação de responsabilidade. Para melhor
compreensão do tema ou das estritas possibilidades em que pode haver exclusão
da responsabilidade contratual, estudar-se-á o assunto num tópico em separado a
seguir analisado.
4.3. CAUSAS DE EXCLUSÃO DA RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
4.3.1. Fato do Contratante
Não é diferente a sistemática de exclusão de responsabilidade no âmbito
contratual relacionado aos negócios entre pessoas jurídicas. Da mesma forma como
disposto aos particulares, as condições legais que ensejam reparação de dano em
função de ato ilícito não podem ser de outra maneira verificável à aferição de
eventual nexo causal entre duas empresas que celebraram, p.ex., contrato de
compra e venda de produtos ou de serviços.
O liame de causalidade poderá estar tanto para relações entre particulares
(pessoas físicas) quanto para empresas (pessoas jurídicas), enquanto partes de
uma relação jurídica que se estabelece em função de suas atividades negociais.
Poderá ocorrer, também, a conjugação destes tipos relacionais sob o mesmo
enfoque. Basta uma simples leitura do art. 927 do Código Civil para se perceber que
ali não há distinção entre tais pessoas, e o indicativo de seus potenciais atores numa
determinada demanda judicial, em função de ato ilícito, refere-se, ontologicamente,
ao sentido lato sensu.
Tal pressuposto de subsunção do ato ilícito à lei, cometido na esfera das
pessoas físicas e/ou jurídicas, não dispensa critério técnico para erigir o nexo de
causalidade. Para se argüir, então, da reparação de determinado dano, verificado a
uma das partes da relação contratual, da mesma forma, deverá ser identificado o
133
respectivo liame de causalidade entre o ato da empresa e o prejuízo experimentado
pela outra parte.
Assim, toda pessoa que comete ato ilícito na execução de um contrato poderá
ser responsabilizada pela respectiva ação ou omissão que gerou dano a contraparte.
Neste momento vem à tona, exemplificativamente, a imprescindibilidade da
celebração de contrato entre pessoas jurídicas para consumarem negócios de
fornecimento de produtos e/ou serviços.
Imagine-se uma cadeia de fornecimento de produtos e serviços entre pessoas
jurídicas que tenha por finalidade a venda de veículo a consumidor. Antes que este
automóvel seja tecnicamente entregue a determinado usuário, seu processo de
fabricação demandou uma logística de recursos, materiais ou não, inimagináveis ao
destinatário final daquele bem. O fato é que precedeu a este contrato final da
concessionária, com o comprador do veículo, uma série de contratos outros que
tiveram por objetivo negocial a consecução de serviços e obtenção de produtos-
componentes que transcorreram em função de terceirizações de atividades
providenciadas pela fábrica final.
É comum verificar-se que entre integrantes de cadeias produtivas surge um
sem-número de problemas contratuais. No mais das vezes, acabam por resolver-se
entre si, pois utilizam uma espécie de conta-gráfica para compensar contingências
que não chegam à vista do consumidor. Dizendo mais, estas variáveis inseridas e
correlacionadas na cadeia produtiva não dizem respeito ao domínio público de
informação, e sequer podem gerar riscos imediatos ou mediatos para os
destinatários destes produtos intermediários, pois são meros fatores contextuais da
ordem técnico-fabril.
É no contexto destes contratos que também se aplica o critério do liame
causal para determinar a existência de ato ilícito. E, da mesma forma, se a empresa
que forneceu um produto qualquer, ou que prestou um serviço, estando o produto
viciado, ou o serviço inadequado, somente há que se falar em ilicitude no
cumprimento do contrato, se não houve culpa exclusiva ou concorrente de quem a
contratou. Se, porventura, a empresa compradora do produto, ou a empresa
tomadora do serviço, fez um pedido não-conforme à especificação correta que
pretendia, não pode a empresa fornecedora ser responsabilizada se com o que se
comprometeu a fazer estava nos exatos termos da especificação da contratante.
134
Particularidades irregulares na execução do contrato, denominadas ilícitos
contratuais, traduzem-se pelo que seria inadimplemento ou cumprimento defeituoso.
Neste ponto, vale registrar, mais uma vez, os conceitos de inadimplemento e mora:
aquele é o descumprimento da obrigação, voluntário ou involuntário, por uma das
partes do contrato; enquanto que este é o cumprimento intempestivo ou defeituoso
da obrigação, a qual se resume por ação tardia e/ou viciada na consecução do que
foi concertado ao objetivo do pacto.
Depreende-se, por conseguinte, que a decorrência do pressuposto da culpa
exclusiva de quem sofreu o dano é a elisão do dever de indenizar, porque aquela
impede a concretização do nexo causal. É claro que não será possível elidir tal
responsabilidade se estiverem presentes os pressupostos da existência do dano, da
culpa do agente, e a relação de causalidade entre o comportamento do agente e o
dano experimentado pela vítima ou pelo outro contratante.249
Se o agente causador do dano não concorreu, em termos absolutos, para a
consecução do resultado, o mesmo estará apto a manejar eximente de sua
responsabilidade, visto que quem deu ensejo ao fato foi a própria parte passiva da
relação contratual.
Não é o caso, aqui, da mencionada culpa concorrente prevista no art. 945 do
Código Civil. Segundo Sílvio de Salvo VENOSA, “quando há culpa concorrente da
vítima e do agente causador do dano, a responsabilidade e, conseqüentemente, a
indenização são repartidas, [...] podendo as frações de responsabilidade ser
desiguais, de acordo com a intensidade da culpa”.250
Neste sentido, pode o julgador distribuir referido encargo na proporção direta
do efeito quantitativo que a cada parte tocou quando da consumação da
eventualidade que lhes causou prejuízos recíprocos. A função deste tipo de
reparação está diretamente relacionada ao efeito da compensação que é
contabilizada para cada parte quando da liquidação do quantum reparatório.
Remetendo-se às conseqüências da responsabilidade contratual, verifica-se
que, genericamente, os efeitos resultantes desta cominação estão previstos no art.
389 do Código Civil.251 Quando uma obrigação não é cumprida, responde o devedor
249
RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: parte geral das obrigações. São Paulo: Saraiva, 2002, v. 2, p. 9. 250
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: responsabilidade civil. São Paulo: Atlas, 2003. v. 4, p. 40. 251
RODRIGUES, 2002, p. 8.
135
por perdas e danos, sem prejuízo de encargos moratórios diversos e honorários
advocatícios.
Neste contexto, o fator indenização se apresenta com uma polêmica no que
diz respeito ao seu aspecto qualitativo. É certo que o quantum indenizatório será
determinado pelo juiz, entretanto sua natureza, no âmbito dos contratos, passa por
uma discussão do que seria efetivamente o valor a pagar, pois há quem entenda
que tal indenização nada mais seria do que o valor equivalente da prestação que
não foi cumprida.
Diferentemente desta corrente doutrinária, Silvio RODRIGUES posiciona-se
pelo entendimento de que não se pode confundir o que seja perdas e danos e
prestação contratual. A categoria jurídica das perdas e danos está para o
contratante inadimplente enquanto tal e este instituto não se confunde com o fator
de mensuração da prestação inadimplida. São realidades diversas, pois uma não é o
equivalente da outra.
As perdas e danos nada mais são do que a reparação do prejuízo que deflui
de eventual inexecução contratual. Interessante observar, ainda, que, neste viés, a
responsabilidade contratual identifica-se com a responsabilidade delitual.252
Desta análise, resta uma reflexão relativa ao ônus da prova. Uma vez que o
credor demonstre que a prestação não foi corretamente cumprida, ou que foi
inadimplida, o onus probandi transfere-se integralmente para o devedor. Este terá
que demonstrar que não agiu com culpa (ação, em sentido amplo, é gênero da
espécie omissão), ou que lhe sobreveio a força maior ou o caso fortuito, ou deverá
apresentar, ainda, outra excludente que lhe retire a responsabilidade, afim de não
incorrer na obrigatoriedade da indenização por eventual prejuízo causado ao seu
credor.253
Práticas utilizadas entre empresas, para consecução de seus objetivos
negociais, fazem com que estas utilizem mecanismos que lhes possibilitam fazer
composição para repararem eventuais prejuízos causados uma a outra.
Considerando esta perspectiva dentro de uma cadeia produtiva, cujos atores estão
serialmente vinculados a um mesmo fim negocial, é normal que se estabeleçam
procedimentos comerciais de compensação que redundem em mútua reparação
quando ambos contratantes agem de boa-fé.
252
RODRIGUES, 2002, p. 10. 253
Id.
136
Neste caso, se a concepção de um contrato de fornecimento de produto ou
serviço é realmente bilateral, dificilmente este tipo de responsabilidade será
discutida no Poder Judiciário, pois, entre pessoas jurídicas, há uma pré-disposição
natural de se estabelecerem o imediato re-equilíbrio das relações contratuais
quando as mesmas passam por uma inesperada contingência na administração do
contrato.
Via de regra, referido contingenciamento está atrelado à natureza técnica ou
financeira do contrato, mas, independentemente de sua motivação, quando não há
uma composição direcionada nos termos aqui colocados, é normal verificar-se que
os distratos ocorrem porque desde a origem do negócio jurídico pactuado houve
fatores reais de desequilíbrio na conclusão e execução do contrato. Em assim
ocorrendo, restará apenas a via judicial para a resolução do conflito e obtenção da
justa reparação do prejuízo experimentado, caso as partes não cheguem a um
acordo consensual.
4.3.2. Fato de Terceiro
Sílvio de Salvo VENOSA considera que é mais fácil entender tal conceito
quando analisado na perspectiva de uma relação negocial, pois será terceiro quem
não participou diretamente do negócio jurídico.
Para fins de ilustração, cita os exemplos: i) coação praticada por terceiro,
prevista no art. 154 do Código Civil; e, ii) fraude contra credores. Da mesma forma,
na responsabilidade contratual, terceiro é quem, não sendo parte do contrato, em
função de sua conduta, ocasiona um dano, e que, por não ser um dos interessados
direto desta relação, faz com que um dos agentes seja caracterizado como
indigitado responsável pela vítima que sofreu tal agressão.254
Em se tratando de terceiro, não se está a considerar, como tal, os pais, em
relação aos filhos; os empregadores, em relação aos seus empregados; e nem os
prepostos, relacionados aos preponentes. Nestes casos, a inculpação de quem tem
o dever de vigilância é flagrante e atribuída por lei, pois não estão isentos de
responder por qualquer dos atos de seus respectivos constituídos.
254
VENOSA, 2003, p. 47.
137
Segundo Sílvio de Salvo VENOSA, a questão conceitual do que seja terceiro
é muito controvertida no meio judicial. Registra que não existe legislação que o
defina de forma pacífica, e, por conseqüência, o tormento na jurisprudência é notório
e inevitável. Diante disto, os magistrados acabam por procederem aos julgamentos
por eqüidade, solucionando o caso concreto conforme a conveniência geral.255
Importante observar que a propensão dos julgados é de não admitir que o
alegado fato de terceiro seja caracterizado como excludente de responsabilidade
civil. Este assunto está regulamentado, de forma indireta, pelos artigos 929 e 930 do
Código Civil. Este último dispositivo estabelece o direito de ação regressiva por parte
do agente causador do dano contra aquele terceiro que motivou ou que deu causa
ao gravame.
O potencialmente responsável, em tese, não terá como eximir-se da
obrigação de reparar o dano a quem causou prejuízos, entretanto terá a
possibilidade de buscar o ressarcimento do custeio feito contra quem criou a
situação de perigo. Conforme observa o autor em comento, “esses artigos não se
referem expressamente à culpa exclusiva de terceiro, mas, indiretamente, admitem a
possibilidade de reconhecimento de culpa e responsabilidade do terceiro”.256
Subentende-se da citada legislação que nada impede a vítima de ingressar
diretamente contra o terceiro que causou o dano, pois se o mesmo não pagar
diretamente para a vítima, certamente deverá pagar pelo que causou ao próprio
agente que consumou e custeou os prejuízos. Resta uma dificuldade, muito comum
neste tipo de caso, que é a identificação do terceiro para chamá-lo à
responsabilidade. Comumente, nem sempre é fácil fazê-la.
Importa verificar, no caso concreto, se o evento danoso foi uma função do
dano exclusiva do terceiro. Se assim não o foi, certamente haverá a concorrência
entre o terceiro e o agente que consumou o ato.
Deve-se ter por premissa que o nexo de causalidade somente estará extinto
se o indigitado responsável nada teve a ver para causar o dano, ou seja, se foi um
fato exclusivo de terceiro que ensejou o evento danoso. Sendo assim, caberá ao
agente causador do dano comprovar que em nada concorreu para a geração do
prejuízo e, se assim o fizer, estará isento da responsabilidade de indenizar o
destinatário do prejuízo.
255
VENOSA, 2003, p. 48. 256
Id.
138
Este entendimento remete ao raciocínio analógico de o fato de terceiro ter
equivalência à excludente da força maior ou à do caso fortuito, conforme o caso,
ainda que a jurisprudência tenda apenas a admitir que referida exclusão esteja
somente vinculada ao fator da culpa.
Ainda que se sustente tal analogia, no mais das vezes, quem acaba por arcar
com o custeio da indenização é o respectivo agente que consumou o ato, restando-
lhe, neste caso, a possibilidade de ação regressiva. Dito foi, nem sempre é possível
identificar este terceiro.
Esta concepção ganha maior relevo se o terceiro não foi identificado e o
indigitado responsável concorreu de certa forma para a consumação do evento.
Então, não haverá dúvidas da impossibilidade de elidir o custeio à vítima, pelo
indigitado réu, a despeito do que prevê, ainda, o art. 942 do Código Civil.257
A questão do fato de terceiro, em cadeia produtiva, passa também pela
análise da exclusividade ou não da culpa. Significa dizer, sempre que houver
concorrência da mesma, haverá a mitigação do atributo responsabilidade civil
conjunta dos produtores, fabricantes, ou prestadores de serviços, em relação a
quem sofreu o dano.258
Neste caso, o nexo causal entre o dano e o conjunto de seus agentes,
solidariamente responsáveis, é classificado como concausalidade culposa de
terceiro que não constitui nem pode eleger qualquer condição suficiente para reduzir
ou excluir a responsabilidade do fornecedor perante quem experimentou o dano e o
respectivo prejuízo. Em se tratando, então, deste tipo de culpa, extensiva a vários
integrantes da cadeia produtiva, resta a questão da mensuração aplicável a cada
integrante desta corrente, para fins de determinação do valor da indenização. Neste
quesito, prevalecerá a concepção real do caso concreto para o estreito
dimensionamento do que a cada um cabe pagar.
257
É sabido que os entendimentos doutrinários não são convergentes, mormente no que diz respeito à jurisprudência. Veja-se abaixo uma decisão cuja sentença exclui a responsabilidade por culpa exclusiva de terceiro, a saber: (STJ-136833) PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. MERA FORMALIDADE PROCESSUAL DESOBEDECIDA. FALTA DE PREJUÍZO. NULIDADE INEXISTENTE. RESPONSABILIDADE OBJETIVA AFASTADA POR OCORRÊNCIA DE CULPA DE TERCEIRO. Por regra geral do Código de Processo Civil, não se dá valor à nulidade, se dela não resultou prejuízo para as partes, pois aceito, sem restrições, o velho princípio: "pas de nulitté sans grief". Por isso, para que se declare a nulidade, é necessário que a parte demonstre o prejuízo que ela lhe causa. A culpa exclusiva de terceiro afasta a responsabilidade objetiva do fornecedor de serviços. (grifo nosso). Recurso não conhecido. (Recurso Especial nº 184912/MA (1998/0058543-5), 4ª Turma do STJ, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha. j. 25.06.2002, DJ 11.11.2002, p. 220). JURIS PLENUM, Caxias do Sul: Plenum, v. 1, n. 80, jan. 2005. 2 CD-ROM. 258
PEREIRA, Agostinho Oli Koppe. Responsabilidade Civil por Danos ao Consumidor Causados por Defeitos dos Produtos: a teoria da ação social e o direito do consumidor. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 273.
139
Já se mencionou que fato de terceiro pode sugerir conceituação quase que
imediata para sua definição e aplicação ao caso concreto. Mas, diferentemente
disto, esta categoria jurídica é controvertida no meio doutrinário e na jurisprudência,
se analisada com mais vagar.
Esta temática pode ser convertida em gênero de vários outros estudos deste
mesmo encarte, entretanto, o que interessa, para efeitos deste trabalho, passa pela
análise de algumas variáveis fatoradas ao interesse prático-comercial no âmbito da
atividade empresarial.
Para mencionar pretendidas espécies, registra-se a responsabilidade do
empregador pelos atos dos empregados, e a responsabilidade pelo fato de coisa (ou
coisas) que acontecem durante o processo produtivo que eventualmente não estão
sob controle imediato do empregador. Nesta hipótese, podemos remeter a análise
para a queda de qualquer objeto ou o arremesso de coisas.
O inciso III do art. 932, do Código Civil, estabelece que a responsabilidade
pela reparação dos danos praticados por empregados, serviçais e prepostos,
quando em serviço, ou em razão do trabalho que lhes competir, é do empregador ou
do respectivo comitente. Desta assertiva legal frisa-se a idéia excludente do instituto
da representação, pois, empregado, serviçal ou preposto é aquele quem executa
trabalho, com vínculo de subordinação hierárquica, recebendo ordens de seus
constituintes do labor. Luiz Roldão de Freitas GOMES esclarece que este tipo de
subordinação é classificada como do tipo voluntária, diferentemente da do filho em
relação ao pai, ou a da tutela do curatelado face ao respectivo tutor ou curador, as
quais classifica como subordinação legal.259
É neste contexto que se verifica a real importância dos sistemas de controles
gerenciais que empresas implementam para consecução de suas atividades. Ainda
que se opere uma gama significativa de recursos tecnológicos para produção de
bens, ou para a prestação de serviços, o que se leva em conta é que sempre haverá
um subordinado do empregador operacionalizando o processo de fabricação de
produtos ou o de prestação de serviços. Se, porventura, algo se furtou ao controle
da qualidade da fornecedora, não haverá motivação à atribuição de
responsabilidade ao empregado, por eventual dano causado ao seu adquirente, uma
259
GOMES, Luiz Roldão de Freitas. Elementos de Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 117.
140
vez ter sido a pessoa jurídica quem vendeu o produto viciado ou quem prestou o
inadequado serviço.
Da mesma forma, pode-se considerar quando determinada coisa se projeta
no espaço como aerodispersoide (sólido, líquido, ou gasoso), em função da ação
humana ou por outra causa de propulsão, e, se assim for o caracter do ato, tem-se o
chamado arremesso, do qual podem resultar graves danos de ordem física ou
material (dependendo de como e onde se causou um atrito ou impacto físico).
Deduz-se, portanto, que a natureza jurídica destas situações de dano passa
obrigatoriamente pelo critério de sua objetividade para qualificar-se qual é a
responsabilidade que se pode reclamar destes eventos.
4.3.3. Caso Fortuito e Força Maior
Os institutos do caso fortuito e da força maior são temas relacionados à
responsabilidade contratual e extracontratual. Sílvio de Salvo VENOSA adverte que
ambos não têm expressões sinônimas, todavia funcionam como se assim fossem no
campo da responsabilidade civil.
A finalidade prática de ambos os institutos é afastar o nexo causal. O
parágrafo único do art. 393, do Código Civil, adotou o caráter objetivista destes
fenômenos para efeitos de responsabilização, pois não mais importa o aspecto da
subjetividade para impor-se, ou não, a obrigação de indenizar quando está em pauta
se o ensejo de um acidente, por exemplo, esteve em função de um ato de Deus, ou
de um ato do homem, ou de um fato do príncipe.260
Para este autor, o caso fortuito, que é considerado um ato de Deus
(concepção esta originária do Direito Anglo-saxão), tem por decorrência as forças da
natureza, e, como tal, circunscreve os eventos dos terremotos, das inundações, dos
incêndios não-provocados, etc. Nesta esteira de pensamento, a força maior decorre
de situações provocadas pelo próprio homem, tais como: as guerras e/ou
revoluções, as greves, as determinações de autoridades, etc.
Diz o citado art. 393 do Código: “O devedor não responde pelos prejuízos
resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por
260
VENOSA, 2003, p. 42.
141
eles responsabilizado. Parágrafo único: O caso fortuito ou de força maior verifica-se
no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.”
Podemos perceber que restou afastada a teoria subjetivista, a qual procura
identificar referidos institutos, ou fenômenos, nas condições que lhes são próprias ao
agente, bem como a culpa.
Segundo Sílvio de Salvo VENOSA, “o conceito de ordem objetiva gira sempre
em torno da imprevisibilidade ou inevitabilidade, aliado à ausência de culpa”.261
Neste caso, o destaque não vai para a imprevisibilidade, mas, sim, para a
inevitabilidade. Em se tratando destes fenômenos, nem todos os fatos são
imprevisíveis, mas todos são inevitáveis.
Por ser assim é que, comprovado o caso fortuito ou a força maior,
desaparecerá o nexo causal, e a responsabilidade, conseqüentemente, não
subsistirá. Esta potencialidade tornar-se estéril para efeitos de concretização da
responsabilidade.
Este autor, citando Agostinho ALVIM, faz menção a uma nova tendência da
doutrina a qual está fazendo uma distinção consistente na exterioridade ou na
interioridade do evento que é caracterizado como fortuito.262
No enfoque da interioridade, assim seria caracterizado o que eventualmente
poderia acontecer para causar certo impedimento na pessoa do devedor, ou na
pessoa jurídica. De forma oposta, estariam os acontecimentos externos nos
caracteres da força maior. Se esta distinção fosse aplicada, bastaria o caso fortuito
para exonerar o devedor de responsabilidade se o fundamento da mesma estivesse
na culpa. Com maior razão, logicamente, a força maior o poderia absolver. Neste
sentido, se o risco fosse o fundamento da responsabilidade, o caso fortuito seria
impotente para gerar a exoneração do agente, e seria necessária a presença da
força maior para que assim produzisse efeitos de exclusão.
Silvio RODRIGUES adverte para a excessiva severidade dos tribunais para
admitirem o caso fortuito como eximente de responsabilidade civil. Tal critério de
julgamento pode estar apenas transferindo o problema do lado da vítima para quem
causou o dano. Se este agente agiu sem culpa, certamente poderá ser penalizado
261
VENOSA, 2003, p. 42. 262
Id.
142
por algo além do que poderia suportar, e este fenômeno pode gerar efeitos outros de
ordem social.263
Nesta circunstância, mais ou menos precisa, de como eqüitativamente deve
ser distribuída a obrigação de indenizar, cabe ao juiz delimitar os extensos aspectos
do caso fortuito ou da força maior. É por isso que tal flexibilidade deve ser
prudentemente utilizada para corrigir distorções que se apresentam ao Judiciário. Se
o julgador for menos objetivista na determinação destes motivos, para fins de
reparação, certamente estará propenso a sentenciar com maior conformidade aos
interesses da sociedade.
No que diz respeito ao inadimplemento das obrigações, Sílvio RODRIGUES
põe em foco o devedor relacionado aos eventos que o mesmo poderá estar sujeito
quando do necessário cumprimento de sua parcela contratual. Para tanto, registra
que o caso fortuito, ou de força maior, contém tantos elementos subjetivos quantos
objetivos. Reafirma que o subjetivo é representado pela ausência de culpa, e o
objetivo leva em consideração a inevitabilidade do evento.264
Quanto ao evento danoso, cabe registrar que a imprevisibilidade possui um
potencial em intensificar o elemento da irresistibilidade, e, aquela, não é requisito do
caso fortuito. Considerando este raciocínio numa situação qualquer, o autor enfatiza
que se determinado devedor sequer pode prever algo que venha lhe causar
impedimento para adimplir sua obrigação, quanto menos o será seu poder para
resistir aos efeitos daquele fato.
Quando o mencionado art. 393, parágrafo único, do Código Civil, se refere a
fato necessário, deve-se entendê-lo como evento inescapável ao devedor, ainda que
o mesmo tenha empregado todos os esforços para seu adimplemento.
Interessante observar que este autor, ao exemplificar caso fortuito, menciona,
nesta hipótese, uma situação cuja característica em muito pode chamar a atenção
das empresas do ramo industrial. Trata-se de defeito oculto em maquinismos de
fábrica.265 Neste ponto, cabe aqui uma reflexão do que seria esta categoria de
defeito no contexto em tela.
É absolutamente comum as indústrias terem em seus respectivos quadros
corporativos um departamento de manutenção de máquinas, o qual executa 263
RODRIGUES, 2002, p. 176. 264
Ibid., p. 238. 265
Id.
143
trabalhos de reparação dos equipamentos, antes ou depois de os defeitos
acontecerem. Em se tornando evidente o potencial do surgimento de um defeito
qualquer, a medida que antecede ao fato previsto é caracterizado como manutenção
preventiva, e, se houver algum procedimento posterior ao defeito da máquina, a
mesma será tida por corretiva.
Ainda que determinada empresa possua em funcionamento um rigoroso
programa de qualidade, e que neste contexto haja um departamento pró-ativo à
manutenção de seu parque fabril, ainda assim será impossível prever com exatidão
os termos qualitativos e quantitativos de um eventual defeito.
A importância desta reflexão consiste na análise de que o defeito em um
maquinismo pode gerar um produto defeituoso ou um serviço inadequado, pois tal
equipamento, em assim estando, não teria condições técnicas para fabricar algo que
deveria decorrer de um processo estabilizado quando em funcionamento.
O exemplo do autor pode colocar à lume uma infindável análise de causas
que podem ensejar o caso fortuito dentro de uma indústria. Deve-se perceber que
este gênero de negócio empresarial funciona em tempo integral, todos os dias. Suas
atividades estão consubstanciadas por máquinas e equipamentos em movimento, e
que estão colocadas a transformar insumos diversos em outros tipos de produtos
(bens duráveis ou não) ou serviços. Assim, é evidente que este parque estará sujeito
ao desgaste inevitável de seus componentes, e este fenômeno poderá
comprometer, sim, a qualidade do que está sendo produzido e vendido.
É por isso, então, que existem os citados mecanismos de controle preventivo,
e corretivo, quando algo não funciona de forma adequada. Sempre se soube que só
é possível obter a estabilização do processo fabril se houver um mínimo necessário
de planejamento técnico-comercial para anteceder-se às demandas de eventuais
imprevistos.
Conforme mencionado acima, o autor sugeriu a possibilidade de se argüir da
eximente do caso fortuito quando constatado defeito oculto em maquinismo de
fábrica. Fazendo-se uma confrontação desta teoria com os fatos da prática
relacionados ao dia-a-dia da atividade fabril, pode-se constatar que para tal deve-se
ter um critério objetivo de classificação dos fatos, pois não se pode alegar,
aleatoriamente, que algum defeito era oculto se o mesmo possui potencial de
previsibilidade. Significa dizer: é possível inferir que a tese do caso fortuito, neste
caso, terá chance de prosperar se verificado que o defeito do maquinismo realmente
144
caracterizou-se como oculto, apesar de toda uma estrutura técnica posta em
funcionamento para prever e descobrir tal circunstância.
É claro que, neste setor, todos os elementos normativos internos que trazem
à tona os aspectos objetivos da atividade fabril estão controlados por um sistema
próprio que é inerente ao tipo de empresa que o opera, pois nenhum deles
prescinde das devidas formalidades para garantir a eficiência e a eficácia pretendida
de seus produtos colocados no mercado em que atua. Acredita-se que somente é
possível fazer uma análise de plausibilidade de sucesso desta argüição se houver
um balanceamento racional do caso concreto com todas as circunstâncias
ambientais que informaram a potencialidade da indigitação inicial do dano.
4.3.4. Cláusula de Não-Indenizar
4.3.4.1. Cláusulas exoneratórias de responsabilidade
Carlos Alberto da Mota PINTO,266 fez uma reflexão sobre a liberdade de
contratar sob o enfoque da possibilidade de se estipular cláusulas que limitam ou
que excluam a responsabilidade civil por eventual inadimplemento ou cumprimento
defeituoso do contrato, por uma das partes. Interessante observar esta teoria no que
consiste a argumentação de que os contratantes poderiam, livremente, não agir para
consecução de qualquer contrato, ou seja, se as partes se abstivessem de celebrar
um determinado contrato, o mesmo jamais existiria no mundo jurídico. Razoável,
então, que as partes tenham condições legais de estipularem cláusulas contratuais
que lhes limitem ou excluam eventuais responsabilidades civis, desde que as
mesmas respeitem, obviamente, os ditames legais concernentes à parametrização
de ordem pública.
Paralelamente à abordagem da questão acima, pelo Direito comparado,
Fernando de NORONHA267 diz que são os princípios de ordem pública que regem a
responsabilidade civil, e que, portanto, os mesmos não podem ser derrogados pelos
particulares. Nesta esteira, aduz o autor que somente com o advento do caso
concreto, quando efetivamente surge tal responsabilidade, a reboque do fato
266
PINTO, Carlos Alberto da Mota. Teoria Geral do Direito Civil. Coimbra: Coimbra, 1994, p. 592. 267
NORONHA, Fernando de. Direito das Obrigações. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 527.
145
gerador, é que poderiam as partes fazer transação no sentido de atenuar ou eximir o
lesante da responsabilidade do dano que causou ao lesado. “Antes desse momento,
qualquer cláusula excludente ou limitativa de responsabilidade seria ilícita, por
contrariar o princípio de que a ninguém é lícito lesar direitos de outrem”.
É por isso que, neste contexto, discute-se sobre os aspectos da configuração
do ato ilícito, uma vez que devem ser verificados, de forma muito convincente ou
precisa, a efetividade de seus pressupostos que, conjuntamente, evidenciam-no
como tal.
Para se argüir de responsabilidade civil, primeiramente, há que se verificar a
concretização do nexo causal entre o fato reclamado e os prejuízos apurados pelo
destinatário do dano. Assim sendo, não há como pleitear eventual reparação de
dano se sequer chegou-se aos termos imputáveis da responsabilidade ao agente
que causou prejuízos à parte passiva da relação contratual.268
No que diz respeito à imputabilidade, Sílvio de Salvo VENOSA269 ensina que
esta é um pressuposto tanto da culpa quanto da responsabilidade. Explica o autor
que este quesito diz respeito à responsabilidade subjetiva, pois, para atribuição
desta, exige-se a conduta do agente relacionada ao respectivo ato lesivo.
Neste viés da responsabilidade é que são levados em conta os aspectos do
estado mental e da maturidade do agente. Se o agente for incapaz, ou louco de
qualquer gênero, ou que não tenha o devido discernimento das coisas, o mesmo
será inimputável, e, nos termos do art. 932 do Código Civil, respondem os pais pelos
filhos, se estes estiverem sob sua autoridade; o tutor e o curador, pelos pupilos e
curatelados, respectivamente; o empregador ou comitente, por seus empregados,
serviçais e prepostos, nas condições que menciona; etc. Todavia, conforme o art.
928, o incapaz deverá responder pelos prejuízos que causou, se possuir bens e o
seu responsável não tenha obrigação de fazê-lo, ou se este não dispuser de meios
suficientes para tal.
De qualquer forma, a finalidade desta análise consiste na averiguação da
possível relativização da responsabilidade civil objetiva. Para tanto, considere-se o
seguinte: ainda que a responsabilidade civil exista ao agente causador do dano, a
mesma poderá ser relativizada pelo instituto da exclusão quando da argüição da
268
LEOCADIO, Carlos Afonso Leite; CERQUEIRA NETO, Edgard Pedreira de; BRANCO, Luizella Giardino Barbosa. Responsabilidade Civil na Gestão da Qualidade. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 87. 269
VENOSA, 2003, p. 54.
146
respectiva imputabilidade. Esta hipótese passa para o plano real de sua aplicação
quando verificado algum dos elementos que se consubstanciam no ideal da ação
civil, quais sejam: i) a culpa de uma das partes do contrato; ii) o fato de terceiro; iii) o
caso fortuito e a força maior; e, iv) a cláusula de não-indenizar.270
Verifica-se esta possibilidade pela leitura do art. 927 do Código Civil, o qual
estabelece, indiretamente, que a obrigação de reparar o dano tem por pressuposto a
relação de causalidade entre o ato do agente e o prejuízo experimentado por quem
arcou com as conseqüências imediatas daquele fato. Neste sentido, Silvio
RODRIGUES é categórico ao afirmar que somente se pode impor a alguém a
obrigatoriedade de indenizar o prejuízo experimentado por outrem se houver
“relação de causalidade entre o ato culposo praticado pelo agente e o prejuízo
sofrido pela vítima”.271
E ainda, mencionam-se as excludentes do estado de necessidade, da
legítima defesa, e do exercício regular do direito. Nesta vertente, encontram-se tais
eximentes relacionadas no art. 188 do Código Civil. Nestes casos, a própria
legislação trata de extinguir, objetivamente, a relação causal para os efeitos de
desobrigar eventual indenização quando o fato ou o prejuízo está configurado em
função destas circunstâncias.
Assim, o fundamento da responsabilidade civil, previsto nos artigos 186 e
188272, do Código Civil, contemplam também as hipóteses acima mencionadas para
dizer que não necessariamente todos os danos devem ser reparados ou
indenizados, entretanto as condições para reconhecimento de tais eximentes devem
atender aos requisitos previstos em lei.
A legítima defesa justifica a conduta do agente. Em face de eventual dano
causado, e ainda que haja afetação da integridade física ou mental de uma pessoa,
o agente pode recorrer a esta cláusula para se amparar e afastar a obrigatoriedade
de responder pelo dano que causou. Isto é possível se o mesmo agiu para evitar
uma agressão injusta, atual ou iminente, contra si ou contra terceiros. Esta
justificativa é a mesma verificada no Direito Penal, e em se tratando de bens
270
VENOSA, 2003, p. 40. 271
RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: Parte Geral das Obrigações. São Paulo: Saraiva, 2002, v. 4, p. 163. 272
“Art. 188. Não constituem atos ilícitos: I – os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido; II – a deterioração ou destruição da coisa alheia, ou a lesão a pessoa, a fim de remover perigo iminente. Parágrafo único: Neste último caso, o ato será legítimo, somente quando as circunstâncias o tornarem absolutamente necessário, não excedendo os limites do indispensável para a remoção do perigo.”
147
imateriais, esta justificativa pode alcançar também a violação dos valores da honra e
da boa fama de determinada pessoa. Neste sentido, é possível a argüição desta
eximente desde que os meios empregados pelo agente foram moderados para
repelir o mal que lhe atacou ou ameaçou. Sendo assim, não haverá dever de
indenizar a quem sofreu o dano.273
Conforme art. 930 ressalva-se, neste caso, o erro contra terceiro ou contra
seus respectivos bens. Se caracterizada a aberratio ictus haverá o dever de
indenizar quem experimentou o dano. Ao agente causador do prejuízo restará o
direito de regresso contra o terceiro que motivou a ação, para reembolso da
indenização paga ao lesado. Em se tratando de legítima defesa putativa, ou quando
do exercício legal de um direito, o agente não poderá eximir-se do pagamento de
eventual indenização se causou danos nestas condições.
Deve-se observar que as categorias jurídicas “exercício legal de um direito” e
“exercício regular de um direito” não se confundem. Aquela pressupõe que o sujeito
exerça seu direito livremente, porém de forma razoável para que não cometa ato
ilícito, pois assim prescreve o art. 187 no que tange ao abuso. O exercício regular de
um direito, reconhecido, está para o agente que desenvolve alguma atividade cujo
ato é previsto em lei (lei, em sentido amplo), de forma que sua conduta não ensejará
obrigatoriedade ao dever de indenizar se agiu em conformidade com os estritos
critérios que regulamentou o ato no momento de geração do dano. Se o mesmo
observou “os limites impostos para o fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos
bons costumes relacionados ao direito em questão”,274 não haverá o dever de
indenizar quem sofreu um determinado prejuízo, pois não excedeu em sua
prerrogativa de função.
O art. 188, II, do Código Civil, menciona a eximente de o estado de
necessidade. Nesta vertente, há uma polêmica acerca de haver ou não a
obrigatoriedade de o agente indenizar o dano que causou se agiu neste estado. Esta
justificativa é destinada para os casos de quando a ação é para afastar mal
iminente, todavia tenha vitimizado alguém para prevenir um outro mal. Neste caso, o
ato seria ilícito se a legislação não previsse tal excludente, pois o agente ofende um
direito alheio para proteger um direito seu. O artigo 929 diz que o dono da coisa
ofendida tem direito à indenização se a culpa não foi sua (para motivar o ato); e, o
273
VENOSA, 2003, p. 45. 274
Ibid., p. 46.
148
art. 930 diz que se a culpa for de terceiro, deverá o agente indenizar o dono da coisa
ofendida, e o mesmo terá direito de regresso contra aquele que motivou a ação do
ofensor. De qualquer forma, restará para o agente que agiu em estado de
necessidade a obrigação de reparar o dano que causou, restando-lhe, apenas, a
regalia da absolvição na esfera criminal.275
Relativamente às excludentes de responsabilidade civil objetiva, as causas
destas exclusões são aquelas relacionadas e aplicáveis em situações bem definidas,
tais como “o dolo ou culpa grave e exclusiva da própria vítima ou de terceira pessoa,
e em situações muito específicas de greve, guerra, tumulto ou desastre naturais”.276
Evidentemente que tais hipóteses não constituem um numerus clausus que
especializam o instituto da responsabilidade civil, todavia estas circunstâncias
sugerem a identificação do contexto jurídico para sua contemplação.
Para melhor elucidação do tema, o autor ilustra uma série de exemplos para
compreender-se o fenômeno na área de atuação de uma empresa.
A primeira questão é a avaliação da natureza jurídica de um prejuízo material
criado pelo advento de um fato da natureza denominado queda de raio. Se cai um
raio sobre um automóvel e incendeia-o, percebe-se que se está diante de um caso
fortuito e, como tal, não subsistirá o liame de causalidade. Não haverá, portanto,
quem apontar como causador do prejuízo e, conseqüentemente, não se poderá
acusar o proprietário do veículo (vítima), nem o terceiro, e muito menos o fabricante
do veículo.
Entretanto, pode-se fazer outra avaliação deste fenômeno natural,
constatando-se que nem sempre ocorrerá exclusão de responsabilidade por queda
de raio. Demonstra o autor que se ocorrer queda de raio numa fábrica, originando
explosão, a qual venha afetar um terceiro qualquer, esta empresa não estará
exonerada do dever de reparar o dano, uma vez que a queda de raio é previsível e,
nas empresas, é perfeitamente possível neutralizar seus efeitos por intermédio de
um equipamento chamado pára-raios. Significa dizer que este fenômeno natural
também integra o risco que a empresa assumiu para desenvolver suas atividades, e
como tal estará caracterizada sua responsabilidade civil, pois o fundamento da
objetividade deste custeio é o próprio risco.
275
VENOSA, 2003, p. 47. 276
LEOCADIO; CERQUEIRA NETO; BRANCO, 2005, p. 108.
149
Quando determinado empresário estabelece uma empresa, para nela gerar
trabalho e riqueza, os riscos assumidos transcende toda e qualquer delimitação
física e abstrata do empreendimento. Uma série de incidentes potenciais, que não
estão sob seu controle, pode ocorrer, sem que se possa reagir para evitar danos. É
por isso que tal evento está sob a égide da responsabilidade civil objetiva, que tem
por fundamento o risco, e não a culpa. Neste exemplo, resta à empresa o dever de
reparar os danos sofridos pelos terceiros, vítimas da mencionada explosão.
A responsabilidade civil objetiva possui, também, outra característica muito
importante no âmbito das provas. Melhor dizendo, o que é relativizado neste
contexto é a original prova para comprovar fatos, e seu ônus pode ser transferido da
vítima para quem assumiu o risco da atividade, pois este é quem deveria ter previsto
os potenciais acontecimentos causadores de danos.
Em se procedendo à inversão, bastará ao destinatário do prejuízo demonstrar
o dano sofrido, seu autor, e o liame de causalidade entre um e outro, uma vez que o
dano é decorrência de quem criou o risco. Este critério não se aplica se houver “fato
doloso ou culpa grave e exclusiva da própria vítima ou de terceiros, ou tragédia
natural grave e verdadeiramente imprevisível e irresistível”.277 Neste caso, então, o
dano não terá decorrido do risco, o que fulmina o nexo de causalidade e exclui a
responsabilidade do agente causador do dano.
Uma vez verificada a possibilidade de se excluir responsabilidades, o agente
deverá desincumbir-se judicialmente da obrigação, assumindo o ônus probatório
para defesa de sua inculpação, ou da culpa de ninguém, ou da culpa do infortúnio,
sob pena de ser o devedor da reparação do dano, “se o caso estiver sob a égide da
responsabilidade civil objetiva”.278
4.3.4.2. Cláusulas limitativas de responsabilidade
Eis aqui mais uma típica cláusula de exclusão de responsabilidade civil a qual
está diretamente relacionada aos contratos. Sílvio de Salvo VENOSA ensina que,
por intermédio desta cláusula, uma das partes do contrato faz declaração expressa
para não responder por eventuais danos emergentes do contrato, ou por eventual
277
LEOCADIO; CERQUEIRA NETO; BRANCO, 2005, p. 109-110. 278
Id.
150
inadimplemento, total ou parcial, que possa advir durante o transcurso do negócio
avençado.
Esta estratégia altera, significativamente, a concepção ou o sistema de riscos
que estão previstos para contratos. Desta forma, quando do interesse dos
contratantes, institui-se, formalmente, esta eximente de responsabilidade para
reparar danos, o que, inevitavelmente, traz para a vítima a transferência parcial dos
riscos do contrato.279
Menciona o autor que alguns doutrinadores fazem a distinção entre a cláusula
de não-indenizar e a cláusula de irresponsabilidade. A cláusula de não-indenizar não
exonera o devedor da responsabilidade, todavia a faz para efeitos parciais de
indenização. Diferentemente desta, a cláusula de irresponsabilidade, precedendo ao
dever potencial de indenizar, gera para o devedor a exoneração da própria
responsabilidade. Lembre-se, entretanto, que nenhum contrato pode eximir uma
parte contratante de eventual responsabilidade se tal instituto contrariar norma de
ordem pública. Aliás, segundo o autor, “em princípio, somente a lei pode excluir a
responsabilidade em determinadas situações”.280
O denominado fenômeno de cláusula de não-indenizar suprime apenas a
indenização, mas não a responsabilidade. Considerando que a norma de ordem
pública é indisponível, não podem as partes estabelecer qualquer transação que
contemple meramente o interesse individual. Faz-se, entretanto, uma ressalva a este
preceito, registrando que existe possibilidade de admitir-se tal cláusula, desde que a
mesma seja pactuada apenas entre pessoas jurídicas.
Percebe-se que existem pontos controvertidos na conceituação e na
determinação da sistemática de aplicação deste tipo de cláusula. Não fosse a
legislação e a polêmica instalada em torno deste instituto, ter-se-ia como inferir que
tal prática poderia subsumir-se apenas as questões negociais entre particulares.
Mas, o fato é que a doutrina mencionada registra a existência de uma ampla
discussão da legalidade que acompanha os aspectos práticos para celebração de
contratos com a inserção desta cláusula. Tal discussão está a considerar que a
cláusula de não-indenizar (e quanto mais, a cláusula de irresponsabilidade) é
absolutamente ilegal, portanto nula de pleno direito. Este entendimento tem por
279
VENOSA, 2003, p. 50. 280
Id.
151
fundamento o tangenciamento dos atos negociais à imoralidade e à contrariedade
ao interesse social.
Não existe dúvida da objetividade colocada pelo art. 51, I, do Código de
Defesa do Consumidor, pelo qual proíbe, ou considera como nula, a cláusula
contratual desta natureza destinada ao consumidor. Entretanto, neste mesmo artigo,
permite a legislação que este instituto possa funcionar para pactos existentes entre
pessoas jurídicas, desde que para limitar responsabilidade de indenizar, entre
empresas, classificadas como consumidoras, e desde que haja efetivamente
situações justificáveis para não proceder à indenização. Neste sentido, então, não
se admitirá a instituição de qualquer cláusula que limite ou exonere o dever de
indenizar senão nestes casos previstos em lei.
Sílvio de Salvo VENOSA relata que, no Brasil, este tipo de cláusula foi
gradativamente sendo vista com certa antipatia, fruto das considerações doutrinárias
e das previsões legais relativas ao caso, pois o objetivo crescente é distribuir maior
proteção para a parte mais fraca da relação negocial. No estrangeiro,
“principalmente no direito norte-americano”, é muito comum verificar o uso deste tipo
de cláusula, pois tal instituto está à disposição irrestrita das partes para decidirem se
vão ou não expressá-la em contrato.281
A doutrina nacional concebe a idéia de que esta cláusula poderia ser admitida
para celebração de contratos, pois, se assim fosse feito, estar-se-ia privilegiando a
autonomia da vontade nos negócios jurídicos. De qualquer forma, existem os
preceitos determinantes para sua restrita aceitação.
Sendo assim, o pressuposto de sua validade deve estar para os contratos em
que houve efetivamente real negociação para sua celebração. Se se tratar de um
mero contrato de adesão não se tem como justificá-la do ponto de vista da eqüidade
econômica, dada a aparente diferença material e formal das partes durante as
“tratativas”.
Diante do exposto, fica a questão, então, se a cláusula de não-indenizar pode
ou não, ou se deve ou não, ser admitida. Sílvio de Salvo VENOSA sintetiza a
explanação doutrinária acerca do assunto registrando dois requisitos básicos para
sua validade, quais sejam: o consentimento deve ser bilateral para a formação do
contrato, e não pode haver colisão de qualquer cláusula com preceito legal cogente,
281
VENOSA, 2003, p. 51.
152
ou com a ordem pública e aos bons costumes. Estes pressupostos podem validar a
cláusula de não-indenizar desde que o contrato tenha sido celebrado entre pessoas
jurídicas. Se uma dos pólos é consumidor, ou que o contrato tenha por atraído-
contratante um mero aderente, então, não se admitirá a exoneração da
responsabilidade, nem do conseqüente dever de indenizar. Neste caso, cláusula de
não-indenizar será nula, por ser considerada ilegal.282
Além destas premissas, existem outras observações sobre esta cláusula que
interessa registrar pelo resultado prático e formal que podem ensejar. Se cláusula de
não-indenizar afetar diretamente a substância do contrato, depreende-se que o
objeto do negócio convencionado estará prejudicado pelo elemento que deveria ser
acessório à transação. De acordo com o art. 424 do Código Civil, esta cláusula será
tida como nula (abusiva) se, porventura, venha conotar caracter de exclusão da
obrigação essencial do contrato, sublimando sua própria condição de
acessoriedade.
Outro aspecto que deve ser considerado é a diferenciação material entre
cláusula de não-indenizar e cláusulas limitativas de responsabilidade civil. Nas
cláusulas limitativas não há exclusão do dever de indenizar, e quando as partes
convencionam esta limitação, em função da superveniência potencial de um ato
ilícito, ou de eventual inadimplemento, estabelecem, então, um limite à indenização,
cujo valor se dará até determinado montante previamente pactuado. A cláusula de
limitação da responsabilidade contratual tem vocação precípua a conduzir o devedor
ao custeio de perdas e danos, o que não se confunde com cláusula penal. O pacto
celebrado à aplicação de penalidade potencial por descumprimento do contrato não
tem caráter indenizatório, mas, sim, sancionatório.
Comenta Silvio de Salvo VENOSA que as restrições que devem ser
observadas à cláusula de não-indenizar são as mesmas aplicáveis à cláusula de
limitação da responsabilidade. O efeito das parametrizações colocadas em tela para
fazer subsistir o uso de tais recursos contratuais é aquele que se consubstancia no
efeito dinamizador da economia, pois, se assim não fosse, haveria uma facilitação
flagrante à preterição dos direitos do credor.283
282
VENOSA, 2003, p. 52. 283
Ibid., p. 53.
153
Fazendo uma reflexão complementar, esclarece o autor que a cláusula de
não-indenizar, pactuada contra a ordem pública, não é válida em caso de dolo,
assim como nas relações de consumo.
Variavelmente poderá ocorrer que as partes estabeleçam cláusula limitativa
de responsabilidade, cuja expressão do quantum indenizatório facilmente ensejará
que o objetivo era a simulação da mesma como cláusula de não-indenizar - em
função do baixo valor acertado entre ambos. Remete o autor ao exemplo de contrato
de transporte, em cuja atividade não admite cláusula de não-indenizar, e a fixação
irrisória de valor limitado para eventual indenização configura fraude contra credor.
Neste caso, cláusula que pretende a mera limitação da responsabilidade também
estará eivada de vício, ou da necessária nulidade, pois sua objetividade corrobora
uma finalidade diversa.
4.4. A VIOLAÇÃO POSITIVA DO CONTRATO
4.4.1. Delimitação Conceitual no Contexto do Direito Brasileiro284
Chegou o momento de iniciar-se a reflexão central acerca dos propósitos
finais deste trabalho. Em se tratando do Direito das obrigações, sabido é que esta
vertente jurídica possui por objeto o estudo ou a análise de como se extingue os
deveres contratuais. Este fenômeno chama-se adimplemento, cujo conceito traduz a
realização de determinada prestação oriunda de relação jurídica previamente
convencionada. O liame contratual tem por finalidade a criação, modificação ou
extinção de direitos circunscritos às obrigações positivas (dar ou fazer) e às
negativas (não fazer) as quais foram avençadas pelas partes.
Inicialmente, abordou-se o tema da principiologia clássica que orientava o
labor contratual de então. Ao teor dos institutos que direcionavam o modo de
adimplemento das obrigações tinha-se por satisfeito verificar se o objeto principal do
contrato estava ou não realizado. Uma vez que a obrigação principal estivesse
satisfeita, o contrato era considerado regularmente adimplido, segundo as regras
clássicas do Direito das obrigações.
284
SILVA, Jorge Cesa Ferreira da. A boa-fé e a violação positiva do contrato. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 265.
154
Ocorre que, atualmente, estes contornos sofreram variações significativas em
seu conteúdo. Conforme demonstrado, a principiologia contratual adicionou novos
parâmetros para reorientar a sistemática contratual. O enfoque saiu da concepção
individualista para privilegiar também os efeitos sociais que podem promover os
vínculos comerciais. As partes não mais podem tratar e contratar a revelia do
interesse ou do fim público relacionado aos negócios que perquirem. A nova
tendência do Direito Civil está voltada para interpretação e aplicação segundo os
ditames prescritos pela Constituição (federal) em vigência.
O negócio jurídico ganhou um novo formato no que concerne às obrigações.
Antes tinham como núcleo as prestações principais, as quais perfaziam o modelo de
contrato pelos orbitais que os próprios contratantes estipulavam e delimitavam para
compor determinado vínculo. Atualmente, o contrato não mais é concebido desta
forma, pois, quando de sua conclusão, o liame abarca obrigações outras que sequer
foram previstas ou discutidas pelas partes. Esta ampliação é conseqüência imposta
pelo ordenamento jurídico, independentemente de as partes concordarem ou não
com o débito adicional de obrigações laterais.
Dita imposição, na verdade, é o reconhecimento feito pela lei no sentido de
tornar positivo o fato de que a ética social nos negócios é parâmetro que, agora,
deve ser observado no Direito contratual, uma vez tratar-se de imperativo negocial
trazido ao tráfego comercial por iniciativa do legislador.
A primeira reação cognitiva que se pode ter do novo conceito de
adimplemento, é verificar, então, que o conceito de inadimplemento também foi
alterado com esta nova sistemática. Ora, se a qualidade do débito restou ampliada
com a anexação de deveres diversos aos objetos principais, logicamente, a falta da
prestação absoluta ou a prestação defeituosa dos deveres que não são os principais
podem caracterizar, conseqüentemente, uma espécie de inadimplemento.
Neste ponto, ocorre um deslocamento da aferição conceitual para identificar o
inadimplemento que sai do foco principal para iluminar os contornos laterais do
contrato. Aliás, estes contornos (deveres) laterais do contrato é a seara ou o campo
de atuação da boa-fé objetiva para identificar problemas de injustiças negociais e,
sobrelevantemente, sanear (a) violação positiva do contrato. É em função destes
caracteres de agregação à obrigação principal do contrato que se qualifica e
quantifica a categoria da violação positiva relacionada aos direitos subjetivos e
objetivos.
155
Perceba-se que se está a dizer sobre uma vasta e ampla abordagem no que
diz respeito à caracterização em potencial de violação positiva de contrato. Este
fenômeno pode ser identificado em função do que seja o inadimplemento absoluto
ou o inadimplemento relativo (mora), ou com o descumprimento das obrigações
laterais do contrato, quer estas categorias estejam ou não combinadas. Deduz-se
não existir uma ordem seqüencial e/ou conjugada que especializa ou qualifica
diferentemente estas três vertentes de inadimplemento.
Separar estas três categorias de análise de inadimplemento no Direito
brasileiro qualifica o intérprete e aplicador da lei para conceber novos rumos teóricos
e práticos nos julgados dos ilícitos relacionados ao Direito das obrigações. A
violação positiva do contrato apresenta-se como uma terceira via de inadimplemento
de contratos a qual encontra amplo respaldo legal quando tomada pelo ordenamento
jurídico em suas diversas modalidades de interpretação.
Demonstrar-se-á que esta modalidade de inadimplemento foi prescrita pelo
legislador, o qual descortinou a visão restrita da satisfação debitória par alcançar,
ainda mais, a finalidade social reclamada para o desenvolvimento sustentado da
ordem econômica.
Apesar de que já se revisou em que condições o inadimplemento pode ser
classificado como absoluto ou relativo, vale destacar, ainda, outra idéia sobre o
critério da utilidade da prestação ao credor. Nos casos em que afigura-se a
impossibilidade da prestação, deve-se ter o cuidado para bem mensurar a
determinação dos efeitos em função da prestação frustrada. A falta de acuidade, ou
a arbitrariedade, no trato da correta ponderação do que ainda é possível se fazer
para quitar a prestação vencida, pode dar ensejo ao abuso de direitos, pois o que se
questiona é até que ponto estaria correto afirmar que determinada prestação é ou
não mais é útil ao credor. Nestes casos, o juiz dirá o direito para resolver-se ou não
o contrato: o Direito está instrumentalizado para evitar excessos debitórios e/ou
creditórios.
Outra observação importante refere-se à purgação da mora: é natural que
contratos são celebrados para serem cumpridos, e não para serem forçosamente
resolvidos. A tendência é que se evite resolução do contrato mesmo em havendo
algum atraso prestacional, mormente se parte substancial do acordo já foi cumprido.
Em sendo possível e útil ao credor, o devedor deve cumprir sua parte, ainda que
156
intempestivamente. Neste caso, deve arcar com os ônus previstos em lei, para
compensar eventual deturpação provocada ao estreito da balança.
Veja-se, mais uma vez, que estas considerações acerca do inadimplemento
das obrigações são, de certa forma, o que modernamente foi concebido nesta
vertente do Direito. Contemporaneamente, o enfoque mudou de rumo ao configurar
e admitir uma terceira modalidade de inadimplemento a qual não está vinculada
diretamente com a satisfação da prestação principal. Trata-se do adimplemento dos
deveres anexos ao contrato, os quais devem ser obrigatoriamente observados, sob
pena de estar-se violando comando prescrito pelo princípio da boa-fé objetiva.
A seguir será tratado e revisado o conteúdo ou a natureza dos deveres
anexos. Pontualmente, em que pesa a conclusão, pelas vias doutrinárias e
jurisprudenciais, de ser possível afirmar que o não cumprimento destes deveres
pode dar ensejo à caracterização de uma terceira espécie de inadimplemento,
perfeitamente subsumível aos preceitos da legislação em vigência.
4.4.2. A Violação Positiva do Contrato como Hipótese de Inadimplemento Contratual
Revisem-se mais uma vez o teor das regras já referidas e prescritas no art.
422 do Código Civil. Não está dada aos contratantes opção de se observar ou não o
princípio da boa-fé objetiva. Trata-se de norma cogente, de guardamento obrigatório
quando das tratativas, na conclusão, na execução, e na fase final do contrato.
É cediço poder-se infirmar possível dificuldade no processo de assimilação e
desdobramento do que pode ser deduzido como elemento derivado do princípio da
boa-fé objetiva. O ponto principal desta análise está no fato de bem conhecer em
que efetivamente pode consubstanciar o significado e os desdobramentos deste
princípio. É a partir destes elementos que a teoria da terceira via de inadimplemento
passa a ganhar legitimidade acadêmica, doutrinária, e jurisprudencial.
Este raciocínio perscruta logicidade inafastável: em se categorizando
corretamente qual seja o corolário do princípio basilar, eis que facilmente se poderá
dizer, empiricamente, se o requisito foi ou não atendido pelo preceito da lei.
Antes de adentrar-se no iter lógico da explicitação conceitual que denota o
fenômeno da violação positiva do contrato, necessário considerar em que consistem
os elementos que integram referido princípio.
157
Carlyle POPP relaciona, em sede doutrinária, várias vertentes que podem e
devem conformar interesses contratuais laterais ao cumprimento da obrigação
principal e/ou secundária do contrato. Citou-se neste trabalho o que este autor
classifica como sendo os deveres de conselho, de informação e de recomendação;
de guarda e de restituição; de segredo; de clareza; de lealdade; de proteção e
conservação.285
Trata-se dos já estudados deveres laterais (ou anexos, ou instrumentais) os
quais possuem efetivo potencial de resolução de contrato se não forem observados.
Independentemente dos atributos e das circunstâncias naturais que perfazem os
característicos das obrigações principais e/ou secundárias, em a parte verificando
que seu devedor deixou de cumprir com qualquer dos deveres laterais aqui
relacionados, pode a parte inocente propor resolução do contrato, ou ainda, opor
exceção de contrato não cumprido.
Alegar que esta hipótese de inadimplemento não está prevista em lei, é o
mesmo que afirmar que o princípio da boa-fé objetiva não está relacionado no art.
422 do Código Civil. E ainda: é dizer que, além de este princípio não existir como
marco regulatório dos contratos, sequer precisa ele ser cumprido, pois esta não
seria a hermenêutica deste comando legal. Evidentemente esta hipótese seria um
desatino jurídico.
Ainda que descartada esta caricatura, pois grotescos são os seus traços,
pode-se infirmar o princípio da boa-fé objetiva declarando-se por qualquer meio que
os deveres laterais de prestação não são de observação e cumprimento obrigatório?
Ora, se o guardamento destes deveres perfaz observação perfeita do citado art. 422
do Código Civil, é razoável afirmar, por outro lado, que sua frustração constitui uma
modalidade de inadimplemento contratual. Em não se cumprindo com os deveres
laterais do contrato, restará violado o princípio da boa-fé objetiva, e
conseqüentemente haverá a possibilidade de se resolver o contrato.
À bem da verdade, este entendimento não é mera dedução doutrinária para
fazer prevalecer o conceito comentado. Leia-se a diretiva do Enunciado n.º 24 do
Conselho da Justiça Federal: "Em virtude do princípio da boa-fé, positivado no art.
285
POPP, 2008, p. 197 e ss.
158
422 do novo Código Civil, a violação dos deveres anexos constitui espécie de
inadimplemento, independentemente de culpa".286
Nesta esteira de entendimento, já formata a jurisprudência soluções
coerentes com esta tendência no sentido de valorizar o instituto para englobar esta
realidade que já está orbitando em torno de novos preceitos relacionados aos
contratos particulares e/ou empresarias. Analise-se os dois exemplos a seguir da
jurisprudência pátria.
Apelação Cível n.º 400.430.4/3-00, do ano de 2008, do Tribunal de Justiça do
Estado de São Paulo,287 cujo relator é o Desembargador Ariovaldo Santini Teodoro.
O magistrado julgou procedente a ação para resolver o contrato por entender que,
no caso, houve violação positiva do contrato relacionada à falta de informação.
Trata-se de contrato de compra e venda de estabelecimento comercial (trespasse).
As vendedoras do restaurante firmaram negócio omitindo informações de que o
estabelecimento não estava legalizado perante a municipalidade, e que o mesmo
possuía dívidas. Quando as adquirentes assumiram a posse do restaurante,
verificaram que não só a empresa estava endividada, como também verificaram que
sequer o estabelecimento estava autorizado a funcionar, uma vez que não possuía o
competente alvará. O Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo entendeu,
em grau de recurso, que as vendedoras violaram o dever anexo de informação, pois
deviam esclarecer as compradoras que o restaurante possuía dívidas pendentes,
bem como que o estabelecimento não possuía alvará para funcionamento. O órgão
julgador não se expressou para mencionar “violação positiva do contrato”, mas
reconheceu a violação do dever anexo de informação, e acatou os pedidos para
resolverem o contrato, e para que voltassem na condição do estado anterior ao
fechamento do negócio.
Outra causa julgada, no ano de 2009, não menos importante para ilustração
deste estudo, é o Recurso Inominado n.º 71000603332 do Tribunal de Justiça do
Estado do Rio Grande do Sul – Terceira Turma Recursal do Juizado Especial
Cível.288 A autora alegou que quando da contratação de aluguel de um stand para
participar de uma feira, os organizadores lhe informaram que seus concorrentes não
286
Jornadas de Direito Civil I, III, IV – Enunciados aprovados – Conselho da Justiça Federal. Disponível em: < http://columbo2.cjf.jus.br/portal/publicacao/download.wsp?tmp.arquivo=1296 > Acesso em: 08 jun.2011. 287
Sítio do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo: http://www.tj.sp.gov.br 288
Sítio do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul: http://www1.tjrs.jus.br
159
passariam de 20 stands alugados. Ocorre que quando da realização da feira, a
Autora verificou que havia mais de 80 stands em funcionamento, fato este que lhe
afetou significativamente os lucros. Enfim, a promessa contratual não foi cumprida,
motivo pelo qual sofreu prejuízos com a contratação, e requereu reparação destes
danos em função da falsa promessa. Neste caso, o Juiz Relator, Dr. Eugênio
Facchini Neto, aplicou, expressamente, a teoria da violação positiva do contrato.
Leia-se um trecho do voto do eminente relator:
“É crível, assim, a versão da autora de que não teria se interessado na locação, caso soubesse que haveria um número tão grande de stands locados. Ainda que não houvesse a afirmação inicial, enganosa, de que haveria um número reduzido de stands, impunha-se aos requeridos prestar a informação aos interessados quanto ao número de stands que se pretendia instalar. Trata-se do dever instrumental, anexo ou lateral, de informar ao outro contratante todas as circunstâncias que possam influir no processo de tomada de decisão de contratar ou de fixação das cláusulas do contrato. Não houve propriamente inadimplemento contratual dos requeridos, pois locaram os stands e efetivamente os dispuseram aos locatários. Trata-se, porém, do fenômeno denominado de violação positiva do contrato, instituto que não configura nem mora, nem adimplemento, mas adimplemento defeituoso por não cumprimento de deveres anexos, laterais, decorrentes do princípio da boa-fé, em sua função de proteção ou tutela”. (grifo nosso)
Verifica-se deste último julgado que a violação positiva do contrato foi
efetivamente concebida como sendo a condição de adimplir a prestação de forma
defeituosa, por não se cumprir dever anexo à obrigação principal. Declarou
expressamente o magistrado não se tratar de inadimplemento (absoluto), nem de
mora, eis que o não cumprimento do citado dever anexo (lateral) restou
caracterizado como adimplemento defeituoso o qual justifica a condenação dos
requeridos. Da mesma forma, no julgado do trespasse acima citado, não foram
observados os deveres laterais de informação, e a violação positiva do contrato foi
igualmente reconhecida tendo por base a tutela da boa-fé objetiva.
Ainda que os deveres anexos não estejam dispostos contratualmente, ditará
as regras de sua necessária observação o mencionado princípio da boa-fé, cuja
obrigatoriedade diz respeito à norma de ordem pública, não disponível aos
contratantes.
Vale ressaltar, mais uma vez, que nestes dois casos a obrigação principal foi
cumprida, sem qualquer atraso. As adquirentes do restaurante efetivamente
tomaram a posse do estabelecimento e lhes foram transferida a propriedade da
160
empresa. No caso do aluguel, o stand foi efetivamente disponibilizado para a Autora,
entretanto dentre um número de concorrentes maior do que o esperado em função
da declaração do locador.
À luz do preceito legal do adimplemento da obrigação principal, eis que não
se poderia pleitear por eventual incumprimento do contrato ou por eventual atraso de
sua prestação, pois ambas condições foram material e tempestivamente satisfeitas.
Depreende-se, portanto, que somente em função de uma terceira via de
inadimplemento é que foi possível as requerentes, destes exemplos, obterem êxito
em suas ações, pois o que esteve em pauta foi o não cumprimento dos ditames da
boa-fé objetiva consubstanciados pelo não cumprimento dos deveres anexos da
prestação.
Perceba-se, todavia, que esta proposição não se aplica somente para
obrigações positivas (de dar e/ou de fazer), mas também para o descumprimento de
obrigações negativas (de não fazer). Segundo Jorge Cesa Ferreira da SILVA, a
violação positiva do contrato pode ser tomada como hipótese de inadimplemento
contratual em função do descumprimento ou do mau cumprimento tanto nos casos
das obrigações positivas quanto nos das negativas. A violação de dever anexo pode
ser verificada, ainda, quando do descumprimento de dever de entrega em contrato
de fornecimento sucessivo (obrigações duradouras), e também nos casos de recusa
antecipada do devedor em cumprir determinada obrigação (quando esta não fique
caracterizada como inadimplemento absoluto ou em mora, mas, sim, quando traduz
“ataque à relação de confiança existente entre as partes”).289
Mencionado autor faz importante observação no que diz respeito à
conceituação de violação positiva do contrato no Direito brasileiro. Eventualmente
deixa-se de apreciar o resultado do inadimplemento em si para focar a conduta do
devedor em relação à prestação esperada. Neste caso, entrará em cena a avaliação
do elemento culpa, “entendida como descumprimento volitivo, por imprudência ou
negligência, de dever de conduta”.
Nestes termos, o conceito de violação positiva do contrato, no Direito
brasileiro, pode ser definido como “o inadimplemento decorrente do descumprimento
289
SILVA, 2007, p. 231 ss.
161
culposo de dever lateral, quando este dever não tenha uma vinculação direta com os
interesses do credor na prestação”.290
4.5. CASUÍSTICAS CURITIBANAS: SUBSUNTOS ENSAIADOS DE FATOS REAIS
À NORMA DA BOA-FÉ
4.5.1. O Café Migrado
Leia-se a notícia a seguir trazida à mídia nacional e internacional relacionada
a um contrato de compra e venda de estabelecimento industrial, cujo trespasse da
empresa Curitibana transferiu a propriedade e operações para um grupo americano:
AE – Agência Estado. “Americana Sara Lee Compra paranaense Café Damasco. SÃO PAULO - A americana Sara Lee anunciou a compra da paranaense Café Damasco por R$ 100 milhões, dando um passo para consolidar sua liderança no mercado brasileiro. A companhia ficou em primeiro lugar no ranking da Associação Brasileira da Indústria de Café (Abic) de 2009, seguida de perto pela 3 Corações, joint venture (associação) do grupo nordestino Santa Clara com a suíça Strauss-Elite. As duas companhias têm, cada uma, cerca de 20% do setor de café no País. O valor pago pela Café Damasco, que tem sede em Curitiba e é líder no mercado paranaense, equivale a um ano de faturamento, segundo comunicado divulgado pelo grupo americano. De acordo com a Sara Lee, o negócio deverá ser concluído ainda hoje e será enviado para aprovação dos órgãos de defesa da concorrência. Fontes da indústria de café dizem que a Damasco poderia ser considerada uma empresa de grande porte do mercado nacional - no ranking de 2009 da Abic, aparecia em sétimo lugar. Além da sede e da fábrica em Curitiba, a empresa tem uma planta industrial em Salvador, que a Sara Lee pretende usar para melhorar a distribuição de seus produtos no Nordeste. O grupo americano, que fatura US$ 11 bilhões em todo o mundo, chegou ao País em 1998, com a aquisição da Café do Ponto, então a segunda maior companhia do mercado brasileiro. Hoje, detém várias marcas importantes no setor de café, como Pilão, Caboclo, Moka e Seleto - todas de maior expressão no Rio e em São Paulo, maiores mercados consumidores do País.” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo , São Paulo, 30 nov., 2010. Caderno Economia&Negócios. Acesso em: 15 abr.2011. Disponível em: <http://economia.estadao.com.br/noticias/Neg%C3%B3cios+Geral,americana-sara-lee-compra-paranaense-cafe-damasco,not_45486.htm>
Na época em que esta notícia foi veiculada à população, várias outras
reportagens foram apresentadas ao público dando conta de qual foi a reação da
sociedade em face deste anunciado episódio de trespasse. O que chamou a 290
SILVA, 2007, p. 268.
162
atenção naqueles dias foi o fato que o mercado (o público em geral) foi tomado de
surpresa com esta transação milionária, quando o mencionado grupo americano
anunciou que estava adquirindo a propriedade desta tradicional empresa de Curitiba
do setor de industrialização do café.
Algumas observações são feitas para provocar reflexões que pretendem
incitar favorecimento pelos argumentos apresentados neste trabalho. O primeiro fato
observado foi a circunstância de a Companhia Sara Lee ter comprado a empresa
paranaense Café Damasco para, literalmente, encerrar suas atividades em Curitiba.
Fechou-se a fábrica local para, supostamente, transferir sua produção para outro
Estado; simplesmente, o objetivo da operação foi consolidar a marca e a liderança
do setor no mercado brasileiro...
Tão logo a operação foi concluída, os portões da fábrica Curitibana foram
fechados, e a sofreguidão midiática não deixou de registrar a reação dos
desavisados empregados que chegaram ao local para o labor diário - do dia
seguinte (ocasião em que se depararam com a novidade). Naquele momento, como
que num passe de mágica jurídica, eles estavam desempregados: a orientação de
como proceder para formalizar as rescisões viria em breve com informações que
seriam veiculadas, talvez, pelo então competente setor de Recursos Humanos.
Diferente não foi a surpresa de outros grupos de interesses negociais que
mantinham contratos com a empresa. Por exemplo: os fornecedores locais.
Não há dúvidas que contratos em geral foram resolvidos; mas, a questão que
se coloca é até que ponto pode-se vislumbrar e aferir violação positiva de contrato
numa operação como esta.
Para citar como exemplo, contemplou-se, em reportagens televisivas, que, no
dia posterior ao fechamento da operação, colaboradores em geral da empresa
estavam completamente desorientados com o episódio que lhes interrompeu
abruptamente um vínculo contratual. E ainda, inesperadamente soube-se através de
informações de fontes diversas que não mais havia interesse na execução de
contratos de fornecimento de insumos, serviços, mão-de-obra, etc.
A considerar ou avaliar esta situação sob a ótica do interesse contratual
negativo,291 é incontroverso que restou caracterizado violação positiva de contrato.
Segundo Paulo Mota PINTO, o interesse contratual negativo aponta para a
291
PINTO, Paulo Mota. Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo. Coimbra: Coimbra Ed., 2008.
163
manutenção da confiança que deve existir entre as partes. Sem adentrar no mérito
do debate doutrinário de qual seja a amplitude do conceito “confiança” que interessa
para cada parte contratual, este interesse reflete o anverso do interesse no
cumprimento do contrato.
Conforme já demonstrado, não há como afastar a idéia de que a confiança é
fator decorrente do princípio da boa-fé objetiva, e como tal, é o substrato do
interesse negativo do vínculo declaratório. Várias são as terminologias adotadas
pelo autor, mas neste trabalho quer-se reduzir e simplificar as categorizações para
dizer que em havendo o “dano da confiança”, violado estará o interesse contratual
negativo, o que, por sua vez, caracterizada estará a violação positiva do contrato.
No caso em tela, evidenciado ficou que a confiança dos colaboradores e dos
fornecedores desta fábrica restou abalada e infirmada pela empresa. Todas as
partes tomadas pelo fator surpresa para conhecer do encerramento de seus
respectivos contratos, os quais foram, então, afetados no planejamento da execução
e na administração do vínculo, permite-se inferir que, nestes casos, houve solução
irregular de continuidade tanto das prestações positivas quanto das negativas.
4.5.2. O Leito Aviltado
Também conhecido pela mídia, veio à baila informações da quantidade de
leitos hospitalares que foram fechados entre os anos de 2005 e 2009. Os dados são
do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, publicados pela Diretoria de
Pesquisas, Coordenação de População e Indicadores Sociais, Pesquisa de
Assistência Médico-Sanitária 1976/2009.292
No ano de 2005, havia disponível no Brasil 443.210 leitos hospitalares para
internação e/ou tratamento de saúde, sendo que 148.966 pertenciam à esfera
administrativa pública, e o restante, 294.244, pertenciam à iniciativa empresarial
privada. Entre o ano de 2005 e 2009 o poder público abriu 3.926 novos leitos,
enquanto que a esfera administrativa privada fechou 15.140 leitos hospitalares.
Deste levantamento estatístico, informa a mencionada tabela que o ano de 2009
encerrou com 431.996 leitos disponíveis para a população, o que corresponde uma 292
IBGE. Tabela de resultados. Tabela 3 – Leitos para internação em estabelecimentos de saúde, por esfera administrativa – Brasil – 1976/2009. Disponível em: < http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/condicaodevida/ams/2009/tabelas_pdf/tabela03.pdf > Acesso em: 08 jun.2011.
164
diminuição efetiva de 11.214 leitos hospitalares; ou, a diminuição relativa de 15.140
leitos provocada por fechamentos de iniciativa de empresas comerciais privadas.
Alguém poderá indagar: qual é o interesse da população na violação positiva
dos contratos que integraram o cenário que determinou o fechamento efetivo de
milhares de leitos hospitalares? O fato de determinado hospital (na qualidade de
empresa) não estar obtendo o lucro desejado, não pode o mesmo tomar a iniciativa
de encerrar seu respectivo empreendimento?
Neste ponto, quer-se chamar atenção para o grande contrato feito pela
sociedade através da Constituição Federal. A população outorgou às empresas a
possibilidade de a iniciativa privada explorar comercialmente a prestação de serviços
na área da saúde.293 Quem empreende negócio neste setor, o faz com projeções
financeiras e/ou econômicas próprias que justifiquem a abertura, o funcionamento, e
a exploração da atividade que a consolida como solução para uma das maiores
demandas deste país.
Por conta disto, à medida que as atividades transcorrem no tempo, através da
celebração de contratos, seja para comprar ou vender serviços, seja para atender as
necessidades da população, desenvolve-se na consciência coletiva expressivo grau
de confiança naquele estabelecimento de saúde que tem por missão buscar o bem-
estar social, segundo diretrizes do poder público.
Todos os elementos da confiança individual e coletiva se coadunam para
estabelecer certo grau de compromisso entre o prestador de serviço de saúde e os
seus interessados em geral. Para além de um critério comercial, existe, nestes
casos, um sentimento de estatismo que se faz presente aos usuários para suprir-se
do necessário atendimento médico destinado à coletividade, ainda que a empresa
(hospital) não seja pública.
Quando determinado hospital fecha suas portas, quebra-se a confiança da
população naquela solução institucional que deveria pertencer apenas ao Estado.
Mas, como não é assim, resta ao “cliente” apenas a frustração de não mais ter
aquele parâmetro social como soluto necessário para atendimento das querelas de
uma real patologia.
Se leito hospitalar privado não der lucro, sobre ele é proibido chorar. Permite-
se, entretanto, dele lamentar, pois não mais disponível estará para dele reclamar!
293
Constituição Federal, art. 199: “A assistência à saúde é livre à iniciativa privada”.
165
Pretendeu-se com estes dois exemplos ilustrar que, no primeiro caso, a
violação positiva do contrato poderia estar adstrita tão somente às partes
diretamente interessadas no contrato em vigência, o qual, inesperadamente, foi
encerrado. Infere-se, a partir dos preceitos civil-constitucionais, com base no
princípio da socialidade, corroborado pelo princípio da dignidade da pessoa humana,
que a violação positiva de contrato não abrange tão somente interessados imediatos
do contrato, mas também interessados mediatos.
Percebe-se que quando a parte positivamente lesada for elemento integrante
do contrato, ele mesmo poderá pleitear as correspondentes reparações dos
prejuízos sofridos. Em se tratando de interessado mediato – ou, a coletividade, não
há como olvidar-se que quem primeiramente deve se manifestar, para pleitear
reparação e acautelamento de danos reais e potenciais infringidos à população, é o
Ministério Público, por exemplo.
A iniciativa privada tem a liberdade de empreender conforme queira, desde
que observados os limites socialmente impostos pelo mandamento constitucional,
especialmente em observância ao princípio da irretroatividade da melhor condição
social. O Estado é devedor deste gerenciamento: basta ler, por exemplo, o parágrafo
1.º do art. 199 da Constituição Federal; no caso dos hospitais e afins, quem deve
dizer qual é a diretriz final da exploração econômica é o poder público e não a
iniciativa privada, apesar de sua liberdade.
Do contexto de assistência à saúde relacionada à exploração de atividade
econômica, pode-se dizer que empresas particulares podem determinar quais sejam
suas “diretrizes de exploração econômica final”; mas, o que relacionou o legislador é
que o Estado é o poder competente para dizer quais são as “diretrizes finais de
exploração econômica” neste setor.
Indubitavelmente, baralharam-se referidos conceitos para delimitar poder de
mando e âmbito de atuação das empresas que fecharam leitos, mas, por outro lado,
pode-se afirmar que neste setor também há potencialidades diversas para o estudo
e aplicação do instituto da violação positiva de contrato, legalmente posto para
reparar prejuízos destes disparates sociais.
4.6. RESPONSABILIDADE PÓS-CONTRATUAL: PERENIDADE DA
CONTRATAÇÃO EMPRESARIAL?
166
O antônimo da efemeridade comparece neste estudo para provocar algumas
reflexões por dedução aparentemente óbvia, mas, registre-se, desde já, o alerta:
vigiem-se as aparências! Ainda que responsáveis, os argumentos apresentados
pretendem e querem exatidão dos termos que poderiam configurar solução definitiva
para esta análise que se encaminha para o final, entretanto, verifica-se, no mais das
vezes, que a dinâmica social contratual é tão escapadiça quanto a distância
proporcional que separa um orbital de seu respectivo núcleo atômico.
Comenta-se assim em função do leque de possibilidades que pode enfocar o
substrato da responsabilidade pós-contratual; até porque, a exemplo da
responsabilidade pré-contratual, não se tem legislação positivada para delimitar
estes conceitos com maior precisão do que pode ensejar os princípios ou as
cláusulas gerais do Direito. Neste sentido, discorda-se da redução doutrinária
apresentada por Joaquim de Sousa RIBEIRO ao afirmar que “verdadeiros limites à
liberdade de fixação do conteúdo contratual só constituem [...] as regulações
heterónomas que impedem, em absoluto, a expressão negocial de certos interesses
por parte de seu titular”.294
Na esteira doutrinária de Rogério Ferraz DONNINI,295 coloca-se os
fundamentos da responsabilidade pós-contratual para justificar quais elementos de
análise podem ser tomados para melhor compreensão do que pode implicar em
obrigações empresariais após o encerramento de contratos já executados.
O primeiro ponto que deve ser levado em consideração para assunção desta
responsabilidade no plano objetivo do Direito civil é conhecer qual a suposta medida
ou abrangência com que são balizados os efeitos da boa-fé objetiva.
Mencionado autor adentra numa discussão doutrinária do que pode ser
definido, ou não, como princípio geral, cláusula geral, conceito jurídico
indeterminado, etc., mas estas questões não perfazem o mote deste ponto em
análise. A finalidade desta parte do trabalho é considerar em que pode ser útil a
aplicação imediata dos preceitos sociais reclamados pela Constituição Federal em
vigência, a partir dos efeitos que podem implicar responsabilidade civil na pós-
contratualidade.
294
RIBEIRO, Joaquim de Sousa. O problema do contrato. Coimbra: Almedina, 1999, p. 258. 295
DONNINI, Rogério Ferraz. Responsabilidade pós-contratual no novo código civil e no código de defesa do consumidor. 2ª. ed. São Paulo: Ed. Saraiva, 2007.
167
Segundo Rogério Ferraz DONNINI, a boa-fé objetiva pode ser imputada como
cláusula geral, e não como outra categoria de análise. Como norma aberta que é,
permite ao juiz valorar os fatos do caso concreto para dizer o direito em face da boa-
fé, dos bons costumes, da função social do contrato, etc.296 Ensina que alguns
fundamentos da responsabilidade pós-contratual são elencados a partir do Código
Civil, do Código de Defesa do Consumidor, mas, principalmente, da vertente máxima
sistematizada e preconizada pela Constituição.
O art. 422 do Código Civil proclama o dever de agir em observância aos
preceitos da probidade e da boa-fé quando da conclusão e da execução de
determinado contrato. Sem, contudo, querer co-denunciar a imprecisão
terminológica e teleológica deste mandamento, depreende-se que o ordenamento,
sistematizado para ser interpretado à luz dos princípios constitucionais, estabelece
que, na verdade, e conforme já demonstrado, a incidência ampla da
responsabilidade civil recai sobre as três fases do contrato, quais sejam: na pré-
contratual, na contratual, e na pós-contratual.
Da mesma forma, o art. 421 dá suporte para sustentar que a responsabilidade
pós-contratual pode ser deduzida nos casos em que há violação do dever de
conceber o contrato pelo viés adicional de sua função social. A função social do
contrato limita a autonomia privada, pela qual pauta a conduta numa direção ética
para privilegiar a justa comutatividade dos contratos.297 Sobre este tema, relata o
autor as lições de Miguel Reale lembrando que esta função “é um simples
consectário das determinações constitucionais atinentes à função social da
propriedade e o ideal de justiça que deve estar presente na ordem econômica”.298
Pode-se dizer que o elemento infraconstitucional amalgamador destes
comandos é o disposto no parágrafo único do art. 2.035 do Código Civil, verbis:
“Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais
como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da
propriedade e dos contratos.”
Sob a ótica constitucional, ou melhor, partindo-se do princípio fundamental da
dignidade da pessoa humana, ver-se-á que a boa-fé objetiva possui nítidos
caracteres de sobrelevação do instituto para dimensionar ou dar sentido e
296
DONNINI, 2007, p. 112. 297
Id., p. 104. 298
Id., p. 114.
168
sensibilidade para as vertentes da solidariedade, da igualdade, e da justiça social.
Em relação a qualquer contrato, ainda que as prestações obrigacionais estejam
todas cumpridas e satisfeitas, é notório e inafastável a concepção legal para declarar
e dizer que a nenhuma das partes é dada a possibilidade de violar qualquer direito
de informação, proteção, ou lealdade.
Observe-se aqui alusão indireta feita à capacidade de sobrelevação da
cláusula geral da boa-fé objetiva para caracterizar, também, violação positiva de
contrato, e, como tal, para dar ensejo à responsabilidade civil na pós-
contratualidade. Este é o nó que se quer desamarrar, em tese, e sob o viés desta
dissertação, no que diz respeito à liberdade das empresas para “encerrar” contratos.
Já está mais do que claro que se determinado contratante violar qualquer dos
deveres anexos, este pode responder pelos danos causados à outra parte durante a
fase pré-contratual e contratual. Destaca-se, entretanto, que esta abrangência de
operação do Direito abarca também as sinistroses provocadas até mesmo depois de
cumpridas todas as obrigações principais e secundárias do contrato.299
Pode-se perceber, ainda, que violação positiva de contrato possui vocação
para qualificar conseqüências além da esfera da contraparte do contrato. Se bem
analisada, verificar-se-á que este tipo de violação, em qualquer fase do contrato,
pode redundar em atos ilícitos provocados aos centros de interesse direto do
vínculo, mas é possível afirmar que a coletividade também pode ser destinatária de
eventual dano causado por infração de dever anexo.
Neste caso, pode-se dizer que violação positiva de contrato pode implicar
responsabilidade em relação direta ao interesse da parte, mas, por outro lado, esta
mesma violação possui potencial para deflagrar, efetivamente, efeitos sobre a
coletividade. Tais efeitos, oriundos de violação de dever anexo, afeta também a
sociedade, de forma direta ou indireta, em função de condutas rechaçadas aos fins
sociais estabelecidos pelo legislador.
Interessante observar a redução doutrinária que eventualmente é feita em
torno do instituto da boa-fé objetiva. Está claro que função social de contrato, ou, a
violação positiva de contrato, são decorrências necessárias de boas interpretações
que se fazem acerca do conteúdo teleológico da boa-fé. Entretanto, quase sempre 299
“No Brasil, a pós-eficácia das obrigações é expressamente admitida, dentre outros trabalhos, na obra pioneira de Clóvis do Couto e Silva e em diversos artigos doutrinários” (MOTA, Maurício Jorge. A pós-eficácia das obrigações. In: TEPEDINO, Gustavo. Problemas de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 206).
169
denota-se parecer que estas funções estariam atreladas apenas aos fatores que
circunscrevem as finalidades objetivas do negócio, e especialmente naquilo que diz
respeito às pessoas físicas sujeitos dos centros de interesse do respectivo vínculo
em questão. Neste sentido, diz-se que em agindo as partes honestamente,
observando-se os preceitos da ética, praticando-se as prestações a seu tempo e
modos adequados, etc., enfim, conforme previsto em lei, estariam elas dando ensejo
à boa-fé e à função social, pois a outra parte estaria sendo tratada com a receitada
dignidade.
Ora, se este raciocínio encerrasse os limites funcionais dos institutos que
enfeixam as amplas noções de responsabilidade civil em todas as três fases do
contrato, certamente seria possível afirmar que o instituto de “a justiça social” estaria
reduzido ao patamar de um mero subfator jurídico. Poderia dizer tratar-se uma
subface que teria por finalidade apenas privilegiar a concepção jurídica de uma
espécie de contrato que estaria centrada em sua própria razão de ser, mas não em
função dos atributos que qualificam e dizem respeito aos pressupostos da dignidade
da pessoa humana.
A Constituição não está solicitando consideração secundária para proclamar
que a justiça social dos contratos seja feita em função dos negócios jurídicos.
Interpreta-se por uma modalidade de pensamento pró-ativo para dizer que o
raciocínio é exatamente ao contrário: os negócios jurídicos devem ser feitos em
função dos ditames da justiça social.300 Para confirmar esta doutrina, basta reler os
preceitos constitucionais relacionados ao tema sob a ótica da querida viabilização da
cidadania real.
É por isso que existe forte tendência para afirmar que em havendo
encerramento irregular de determinado contrato, seja de qual modalidade for, haverá
também violação positiva de contrato, até mesmo na pós-contratualidade. Claro,
conforme defendido, esta violação pode dar ensejo a resolução de contrato se ainda
estiver em execução. Agora, e se o mesmo estiver encerrado? Conforme explicado,
a apreciação conclusiva do fenômeno não seria diferente, pois o que faz pautar a
regularidade da contratualidade (pré e pós, inclusive) é o amplo ditame da justiça
social.
300
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 2006, p. 725.
170
Mas, qual seria o conceito de encerramento regular de determinado contrato?
A perenidade de contratação empresarial deve estar atrelada com qual atributo de
regularidade? E falta de concatenação destes elementos podem ensejar
responsabilidade civil, se todas as prestações foram rigorosamente cumpridas entre
as partes diretamente interessadas?
Ensaiem-se algumas respostas. As hipóteses de extinção de contratos estão
previstas no art. 472 e seguintes do Código Civil. Destaque-se que o distrato ou a
resolução propriamente dita tem o condão de formar direito subjetivo, dependendo
das circunstâncias em que se processam os fatores de nulidade, anulabilidade,
rescindibilidade, revogabilidade, denúncia e resilição, arrependimento, redibição, ou
outros meios que colocam termo à eficácia do contrato.301
Contrato regularmente encerrado é aquele que, desde o fechamento da última
ou única prestação que coloca termo final na obrigação, coloca em relevo,
considera, e respeita todos os efeitos que podem produzir sobre o outro pólo do
contrato. Em havendo prejuízos de ordem financeira ou econômica, ética ou moral,
pessoal ou social, à parte apostrofada, seja em função de qualquer ingerência
pessoal ou social, evidenciada estará hipótese de violação positiva geral para
caracterizar descumprimento de dever constitucional relacionada à promoção da
dignidade da pessoal humana.302
Em se cedendo à insistência no sentido de privilegiar o enfoque da função
social ou da boa-fé objetiva estritamente aos fatores que dizem respeito ao liame
contratual, é negar a orientação de que a ordem econômica deve pautar-se pelos
ditames de justiça social. Ou ainda, que os fundamentos de valorização do trabalho
humano e da livre iniciativa não estão por assegurar efetivamente existência digna
para ninguém, pois o elemento egoístico do contrato não é compelido o suficiente
para fazer atender ao amplo preceito do art. 170 da Constituição Federal. Destarte,
preciso é ter coragem e determinação para vislumbrar maior abrangência dos efeitos
deste comando legal, o que pode ser viabilizada pelas cláusulas gerais trazidas
suplementarmente pelo Código Civil.
Pode-se inferir que contratação empresarial perenal deve ser aquela que não
restringe os efeitos reclamados pelos artigos 421, 422, 2.035 do Código Civil, por
301
AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Extinção dos contratos por incumprimento do devedor. Rio de Janeiro: AIDE Editora, 2004, p. 22. 302
Sobre as espécies e características de direitos formativos de resolução, v. AGUIAR JÚNIOR, 2004, p. 29.
171
exemplo. A começar por leituras e interpretações dos princípios Constitucionais que
regem a ordem econômica, aliadas à boa gamenhice dos institutos civis para
resolver discórdia social, depreende-se que uma parcela muito maior de conflitos
poderia ser evitada se rescisões contratuais fossem melhor planejadas. Este
planejamento deve contemplar interesse público, e se este for preterido no processo
rescisório, certamente levantará em seu bojo o valor de seu preço por violar
preceitos constitucionais. A sociedade deve reclamar a liquidação deste tipo de
débito.
Outro aspecto diz respeito à presença e atuação do Estado em face do
fenômeno de resolução de contratos, sejam elas amigáveis ou não entre partes
diretamente interessadas. A invocar o princípio da livre iniciativa e da liberdade de
contratar, facilmente poderia se deduzir que no contexto empresarial pouco poderia
o poder público interferir para dizer em que ponto o fiel da balança recai sobre o que
é ou não é justo sob o ponto de vista social.
Conforme demonstrado, esta fórmula não é tão complexa o quanto
ideologicamente se apregoa pelo mercado-capital. Falar em perpetuidade de
contratação empresarial é uma chamada interessante, entretanto tem-se que colocar
em foco e avaliar o que é realmente que se quer estabelecer como regra principista.
A característica de prospecção rotineira de mercados e realização de novos ou
inovadores negócios sempre tem a simpatia do empresariado, todavia necessário se
faz (re)definir quais sãos os baluartes que dão sustentação para as estruturas
conceptuais da conhecida administração da atividade econômica.
É de ver que carências setoriais do mercado existem; que falhas estruturais
do Estado são facilmente avistadas; e, que interesses inertemente movimentados
subjazem ordens tácitas para não colocar em evidência nem categorizar lacunas
existentes entre realidades do mundo comercial e o programa constitucional de
dignificação do homem pelo ideal de cidadania.
Não há dúvidas de que o mercado deve seguir seu rumo na história
econômica, nem que o Estado liberal seja peça fundamental para interferir e fazer
equilibrar os diferentes tipos de interesses e soluções demandadas por pessoas
físicas e jurídicas. Mas, a qualidade de contratação empresarial que não pode
acabar é aquela em que o Estado comparece para conferir e homologar existência
dos almejados acondiçoados sociais, os quais são legitimamente aproveitados por e
172
para pessoas, empresas, e/ou sociedade em geral, todos destinatários de um
comando constitucional imparcial.
Luciano Benetti TIMM trata do mercado como fato e necessidade social. No
que diz respeito ao Direito, mercado e função social, defende que mercado não é
mera construção jurídico-conceitual, mas, sim, fato social real e indispensável à
população. Deve ser protegido pelo Direito, e assim bem o fazendo estará por
promover uma das mais importantes funções sociais do Direito, demanda esta
requerida para as sociedades contemporâneas.303
Em não sendo possível sincronizar interesses e fins públicos304
(constitucionais) com interesse privado (civil-comercial), e em verificando-se que
alguém racionalmente queira desvirtuar a finalidade da lei maior, depreende-se que
existe, neste caso, controvérsia que não diz respeito à estrutura do Estado. Para
este tipo, cobre-se o melhor preço! Para conhecer este valor, basta dimensionar
corretamente qual é o montante pretendido para compensar eventual violação do
apanágio geralmente denominado “justiça social”.
A idéia final pode ser disposta da seguinte maneira: as reverberações
conseqüenciais do contrato empresarial devem ser reconhecidas além da ótica
comercial ou dos interesses exclusivos das partes que o celebraram. Seja qual for o
momento contratual, a revisão de seus efeitos deve ser feita pelo desiderato de
pacificação social. Assevera Lúcia Valle FIGUEIREDO, é dever da Administração
perseguir os fins públicos.305
Dita pacificação não pode abarcar função social do contrato, ou boa-fé
objetiva, ou dignidade da pessoa humana, somente dos protagonistas diretos do
negócio jurídico. Se esta condição fosse regra, não se precisaria considerar a
principiologia constitucional (que a todos se destina) para justificar os efeitos reflexos
que devem incidir sobre toda a sociedade.
A partir dos variados e extremos vértices relacionados aos sólidos conceitos
do que seja o princípio da dignidade da pessoa física e/ou jurídica, é possível
aperfeiçoar, qualificando e quantificando, o ideal de justiça social como fundamento
303
TIMM, Luciano Benetti. O Novo Direito Civil: ensaios sobre o mercado, a reprivatização do direito civil e a privatização do direito público. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008. 304
Interesse público “é aquele que a Constituição e a lei deram tratamento especial”. Fins públicos “são aqueles que o ordenamento assinalou como metas a serem perseguidas pelo Estado, de maneira especial, dentro do regime jurídico de direito público” (FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 35). 305
FIGUEIREDO, 2006, p. 35.
173
de responsabilidade na pós-contratualidade, inclusive quanto aos atos da
administração pública.306
CONCLUSÃO
O regime de mercado legalmente instituído no Brasil qualifica a nação para a
prevalente integração ocidental. Não apenas o qualifica como o potencializa para o
necessário desenvolvimento industrial, comercial, e de serviços dos mais variados
tipos. A dinâmica econômica nacional posta a serviço dos propósitos globais da
economia capitalista em muito contribui para o aperfeiçoamento e crescimento da
sociedade – ou de grupos em específico da coletividade.
É salutar mencionar que a livre iniciativa e a livre concorrência são fatores
essenciais para o estabelecimento e manutenção saudável de empresas privadas ou
306
FERREIRA, Antonio Carlos. Responsabilidade civil por atos da administração pública. São Paulo: Alfabeto Jurídico, 2002.
174
públicas. A ordem econômica e financeira se perfaz com a necessária concatenação
de autonomia privada e liberdade contratual.
Não há como negar duas realidades da contemporaneidade: a primeira, que a
projeção constitucional elegeu a dignidade da pessoa humana para nortear, de
forma incondicional, todas as ações da coletividade ou da sociedade. Neste projeto,
não se divide diretrizes sociais para fazer cumprir exigências legais para a
consecução do bem comum; a segunda, que o ordenamento jurídico como está
atualmente concebido acaba por eventualmente imprimir restrições à distribuição da
eqüidade.
A ninguém foi dado o direito ou a prerrogativa legal para desqualificar ou
mitigar efeitos da eficácia e do alcance de normas constitucionais. Em face de
mazelas sociais, aleatoriamente “legitimadas” por doutrinas estranhas ao senso de
justiça social, requer-se considerar que a práxis mercantil deve estar subjugada a
novos parâmetros de apreciação.
A complexidade das relações contratuais empresariais ganhou novas
perspectivas de localização no espaço do Direito, para nitidamente fazer reconhecer
que a autonomia privada, a boa-fé objetiva, e os amplos deveres de consideração
devem ser manejados sob a luz do preceito constitucional.
O Direito Civil não mais é lido e interpretado isoladamente. O Direito privado é
destinatário da norma constitucional; especificamente, no Brasil, da Constituição
Federal do ano de 1988. Com o advento, ainda, do Código de Defesa do
Consumidor, do Novo Código Civil, etc., a boa-fé objetiva veio para oferecer ao
intérprete e aplicador da lei novas e abrangentes possibilidades de figuração que
melhor caracterize qual é a natureza dos mencionados direitos e deveres individuais,
coletivos e sociais.
A atividade empresarial não está fora deste contexto. Sob as perspectivas da
necessária valorização do trabalho humano e da livre iniciativa, a justiça social
reclamada pelo legislador abarca também o fenômeno da contratação especializada
entre pessoas jurídicas e/ou físicas. Neste viés, pode-se dizer, conseqüentemente,
que a (ampla) natureza da responsabilidade civil (contratual) incorporou novos
matizes para dizer que os efeitos extrínsecos dos contratos passaram a ser
tutelados até mesmo por condições alheia ao objeto e ao interesse particular dos
contratantes.
175
O objeto do contrato está alargado; automaticamente ampliado em sua
consecução. Querendo, ou não, as partes contratantes relacionar direitos laterais do
fenômeno negocial, o Direito passou a regular as dimensões do interesse econômico
e social que até então não estavam contempladas no ordenamento jurídico. Quer-se
dizer que a civilidade patrimonialista sucumbiu à solidariedade, à nova era de
direitos e deveres sociais.
Uma vez que o comando que sustenta juridicamente a nova e boa peia
obrigacional é considerado como cláusula geral, aberta ao juiz para melhor adaptar
o caso ao processo de efetiva realização do direito, verifica-se que, correlatamente,
outro fator social ganhou destaque para desobnubilar as contratações em geral.
Trata-se do vetor confiança, o qual desloca-se em maior ou menor grau entre partes
dependendo dos pontos que marcam a envergadura de determinado negócio.
A delimitação positiva da boa-fé possui um elemento inafastável para sua
caracterização: é o princípio da confiança. A confiança é elemento existencial
supremo de qualquer tratativa e/ou contrato empresarial. Este atributo transcende
até mesmo a própria existência do homem, pois foi uma das primeiras virtudes
declinadas a favor de Adão, e persiste no tempo até aos dias de hoje. Em que pese
o homem ter tomado para si sua própria razão como norte de sua vivência, verá o
contratante que a justiça social somente se realizará com qualidades inatas aos
diversos institutos que o homem redescobrirá ao longo de sua trajetória de vida.
A carreira empresarial tende a fixar conceitos convincentes de gestão. Por
mais que se diga que a dinâmica dos negócios requer um sem-número de
maleabilidade operacional, o fato é que o sistema mercadológico tende a acomodar
variáveis que não estão diretamente somadas à matemática dos lucros. Ou, se
contabilizados à conta de custeios necessários, o que se procura fazer é minar
sistemas alheios que se contrapõem à almejada realidade do comércio pelo
comércio.
A entropia dos conceitos é prejudicial ao ordenamento jurídico. A
acomodação de princípios em torno da previsibilidade é ideológica, e as
perspectivas conservadoras que configuram o inadimplemento contratual estão
propositalmente tolhidas pelo regime liberal.
Para além do interesse contratual positivo, existe o negativo. E não se está a
falar simplesmente de causas que excluam ou limitem responsabilidade contratual. A
autonomia privada, conectada com a necessária e obrigatória observação e
176
cumprimento da cláusula geral da boa-fé objetiva, revela que o inadimplemento
absoluto e a mora não mais respondem sozinhos pelo descumprimento do contrato.
Eis que deveres laterais violados dão ensejo à resolução contratual, ligados
ou não à prestação principal e/ou secundária. Nesta assertiva, a responsabilidade
civil contempla novos episódios para determinar outras circunstâncias e formas de
levantar indenizações em face de prejuízos sofridos por quebra de confiança, seja
em qual momento for do contrato.
Atualmente, entende-se que contratação empresarial perene é aquela que se
harmoniza com todos os fundamentos que assegurem, na essência, e para além dos
pólos de interesse do negócio, a viabilidade de realização material dos reclamos de
justiça social.
177
BIBLIOGRAFIA AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Extinção dos contratos por incumprimento do devedor. Rio de Janeiro: AIDE Ed., 2004. AMARAL, Francisco. Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. ANTUNES, Ricardo. Os Sentidos do Trabalho. Boitempo Ed.: São Paulo, 1999. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução Julián Marias. Madri: Centro de Estudios Constitucionales, 1999. AZEVEDO, Álvaro Villaça. Teoria Geral dos Contratos Típicos e Atípicos. São Paulo: Atlas, 2002. BARZOTTO, Luis Fernando. Justiça Social – Gênese, estrutura e aplicação de um conceito. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_48/artigos/ART_LUIS.htm#II>. Acesso em: 05 abr.2011. BAUMAN. Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999. BM&FBOVESPA. Guia de sustentabilidade. Disponível em: <http://www.bmfbovespa.com.br/empresas/download/guia-de-sustentabilidade.pdf> Acesso em: 15 abr.2011. BRANCO, Gerson Luiz Carlos. Função Social dos Contratos. São Paulo: Editora Saraiva, 2009. CADORE, Luís Agostinho. Curso Prático de Português. Ed. Ática: São Paulo, 1995. CHESNAIS, François. A mundialização do capital. São Paulo: Xamã, 1996. CORIAT, Benajmin. Pensar pelo Avesso. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ/Revan, 1994. COSTA, Mário Júlio de Almeida. Responsabilidade civil pela ruptura das negociações preparatórias de um contrato. Coimbra: Coimbra, 1984. COTRIM, Gilberto. História e Consciência do Mundo. São Paulo: Saraiva, 1994. COUTINHO, Aldacy Rachid & DALLEGRAVE NETO, José Affonso. Transformações do Direito do Trabalho. Curitiba: Juruá, 2006. DONNINI, Rogério Ferraz. Responsabilidade pós-contratual no novo código civil e no código de defesa do consumidor. 2ª. ed. São Paulo: Ed. Saraiva, 2007.
178
FERREIRA, Antonio Carlos. Responsabilidade civil por atos da administração pública. São Paulo: Alfabeto Jurídico, 2002. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Ed. Nova Fronteira: Rio de Janeiro, S. d. FIGUEIRA, Eliseu. Renovação do Sistema de Direito Privado. Lisboa: Editorial Caminha, 1989. FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2006. FIUZA, César. Contratos. Belo Horizonte: Del Rey, 2009. FIUZA, Ricardo. Novo Código Civil comentado. São Paulo: Saraiva, 2006. FORGIONI. Paula Andrea. A Evolução do Direito Comercial Brasileiro: da mercancia ao mercado. São Paulo: Editora Saraiva, 2009. FRADA, Manuel António de Castro. Teoria da confiança e responsabilidade civil. Coimbra: Almedina, 2007. FRITZ, Karine Nunes. Boa-fé Objetiva na Fase Pré-Contratual: a responsabilidade pré-contratual por ruptura das negociações. Curitiba: Juruá, 2008, p. 83. GAGLIARDI, Rafael Villar. Exceção de contrato não cumprido. São Paulo: Editora Saraiva, 2010. GALVES, Carlos. Manual de Economia Política Atual. Ed. Forense Universitária: Rio de Janeiro, 2004. GODOY, Claudio Luiz Bueno de. Função Social dos Contratos: novos princípios contratuais. São Paulo: Editora Saraiva, 2004. GOMES, Luiz Roldão de Freitas. Elementos de Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. GOUNET, Thomas. Fordismo e Toyotismo na Civilização do Automóvel. Boitempo Ed.: São Paulo, 1992. IBGE. Tabela de resultados. Tabela 3 – Leitos para internação em estabelecimentos de saúde, por esfera administrativa – Brasil – 1976/2009. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/condicaodevida/ams/2009/tabelas_pdf/tabela03.pdf > Acesso em: 08 jun.2011. JORNADAS DE DIREITO CIVIL I, III, IV – Enunciados aprovados – Conselho da Justiça Federal. Disponível em: <http://columbo2.cjf.jus.br/portal/publicacao/download.wsp?tmp.arquivo=1296> Acesso em: 08 jun.2011.
179
JORNAL O Estado de S. Paulo, São Paulo, 30 nov., 2010. Caderno Economia & Negócios. Disponível em: <http://economia.estadao.com.br/noticias/Neg%C3%B3cios+Geral,americana-sara-lee-compra-paranaense-cafe-damasco,not_45486.htm> Acesso em: 15 abr.2011. JURIS PLENUM, Caxias do Sul: Plenum, v. 1, n. 80, jan. 2005. 2 CD-ROM. LEOCADIO, Carlos Afonso Leite; CERQUEIRA NETO, Edgard Pedreira de; BRANCO, Luizella Giardino Barbosa. Responsabilidade Civil na Gestão da Qualidade. Rio de Janeiro: Forense, 2005. LIKER, Jeffrey K. O Modelo Toyota: 14 princípios de gestão do maior fabricante do mundo. Porto Alegre: Bookman, 2005. LIMA FILHO, Domingos Leite. Dimensões e Limites da Globalização. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 2004. MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: O novo regime das relações contratuais. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. MARQUESI, Roberto Wagner. Os Princípios do Contrato na Nova Ordem Civil. Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=5996>. Acesso em: 16 jul. 2010. MARTINS, Fernando Rodrigues. Princípio da Justiça Contratual. São Paulo: Editora Saraiva, 2009. MARX, Karl. O Capital. Ed. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 2001. MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no Direito privado. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2000. _____. A reconstrução do direito privado. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2002. MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Autonomia privada e dignidade humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. MENEZES CORDEIRO, António Manuel. Da boa-fé no direito civil. Coimbra: Almedina, 2007. MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 2006. MOREIRA, Antônio Flávio; PACHECO, José Augusto. Globalização e Educação. Porto: Porto Ed., 2006. NEGREIROS, Teresa. Teoria do Contrato: novos paradigmas. Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 2006. NORONHA, Fernando. Direito das Obrigações. v. 1, São Paulo: Saraiva, 2003.
180
PEREIRA, Agostinho Oli Koppe. Responsabilidade Civil por Danos ao Consumidor Causados por Defeitos dos Produtos: a teoria da ação social e o direito do consumidor. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. PETTER, Lafayete Josué. Princípios Constitucionais da Ordem Econômica. 2.ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. PINHEIRO, Rosalice Fidalgo. O abuso do direito e as relações contratuais. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. _____. Percurso teórico da boa-fé e sua recepção jurisprudencial no direito brasileiro. Curitiba, 2004, 378 p. Tese. Programa de Pós-Graduação em Direito, Setor de Ciências Jurídicas, Universidade Federal do Paraná. PINTO, Carlos Alberto da Mota. Teoria Geral do Direito Civil. Coimbra: Coimbra, 1994. PINTO, Paulo Mota. Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo. Coimbra: Coimbra Ed., 2008. POPP, Carlyle. Responsabilidade Civil Pré-Negocial: o rompimento das tratativas. Curitiba: Juruá, 2008. RIBEIRO, Joaquim de Sousa. O problema do contrato. Coimbra: Almedina, 1999. RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: parte geral das obrigações. São Paulo: Saraiva, 2002. SILVA, Jorge Cesa Ferreira da. A boa-fé e a violação positiva do contrato. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. _____. A boa-fé e a violação positiva do contrato. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. SILVA, Vivien Lys Porto Ferreira da. Extinção dos Contratos: limites e aplicabilidade. São Paulo: Editora Saraiva, 2010. SÍTIO do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo: http://www.tj.sp.gov.br. SÍTIO do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul: http://www1.tjrs.jus.br. TEPEDINO, Gustavo. Problemas de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. THEODORO NETO, Humberto. Efeitos Externos do Contrato. Rio de Janeiro: Forense, 2007. TIMM, Luciano Benetti. O Novo Direito Civil: ensaios sobre o mercado, a reprivatização do direito civil e a privatização do direito público. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008.
181
VALE, Gláucia Maria Vasconcellos. Territórios Vitoriosos: o papel das redes organizacionais. Ed. Garamond: Rio de Janeiro, S. d. VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: parte geral. São Paulo: Atlas, 2006. _____. Direito Civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. 6.ª ed., v. 2. São Paulo: Atlas, 2006. _____. Direito Civil: responsabilidade civil. São Paulo: Atlas, 2003.
182
T E R M O D E D E P Ó S I T O
Deposite-se na Secretaria do Mestrado.
_______________________
Professor Orientador Curitiba, ____/_____/________
Recebido em: _______/________/________
______________________________________
Secretaria