Sandorfi
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andorfi é um dos maiores expoentes da pintura figurativa de hoje,
explorando o realismo fotográfico e o hiper-realismo com uma técnica
invejável. Seu discurso é por vezes tão rebuscado quanto seu pincel, mas o
que ele busca é uma arte sem subterfúgios, com apelo direto ao
subconsciente.
Burburinho - A que você atribui a volta
ao figurativo na arte contemporânea? O
abstracionismo deixou de ser tão
interessante?
Istvan - Esse retorno ao figurativo é um
retorno às origens, um retorno aos
fundamentos da pintura. Para sobreviver,
toda atividade necessita pontualmente se
renovar bebendo em suas fontes. É uma
reação de sobrevivência numa época em
que a arte está estrangulada por uma
cultura de especulação. A abstração é um
desvio da arte figurativa, com o próprio
termo "abstração" vindo de "abstrair". O
objetivo é apagar o componente essencial
da pintura, que é a representação,
deixando a figura de lado para
alegadamente poder veicular o espírito do artista. Só que esse espírito não
pode ser representado adequadamente se o artista não tem a figura para lhe
sugerir algo. Mas é mais fácil ser um bom pintor abstrato que um mau pintor
figurativo. O figurativismo exige rigor, uma certa humildade e uma grande
concentração, características desagradáveis para o pintor tomado pela
pretensão. Os pintores verdadeiramente figurativos são raros, e isso se deve
sem dúvida a esse interesse ter sido transportado para a fotografia, elevada a
arte. Vai haver um desvio para a fotografia abstrata? A abstração não é uma
coisa nova e não é uma invenção contemporânea. Uma paleta é uma pintura
abstrata, até um rolo de papel higiênico pode ser pintura abstrata. A única
novidade da nossa época é fazer a abstração passar por arte.
Burburinho - Até que ponto o seu trabalho teve influência do surrealismo?
Istvan - As influências mais fortes são as influências inconscientes. Demoram
mais a ser digeridas. É por isso que pinto em isolamento, me afastando de
qualquer referência cultural. O surrealismo é um movimento essencialmente
poético. Pretende implicitamente conhecer o real para se propor a ultrapassá-
lo, o que é uma mentira elegante. Se eu incluo nos meus quadros alguns
elementos de ilusão, é por causa do realismo e não por adesão ao
surrealismo. A idéia é incitar uma reação crítica em vez da percepção visual,
que alimente uma confusão entre o objeto e a realidade efetiva. As pessoas
levam ao pé da letra o que a visão apreende, sem considerar os mecanismos
subjetivos da percepção. Tento então sugerir, com a ingenuidade dos meus
meios, que o materialismo não responde somente a uma utopia mas é
também passível de ilusão.
Burburinho - Que artistas você admira e quais você considera como
influências?
Istvan - Respeito todos os artistas sinceros e desprezo as pretensões de
todos que associam seu talento às cobotinagens culturais efêmeras. Um
artista autêntico tem o corpo de um artesão e a mente de um filósofo. Ele
nunca se considera um artista, e vê sua "arte" como uma reação íntima a
acontecimentos que nada têm de artísticos. Não existe arte sem execução,
por isso é a obra que admiramos, não o artista. Você pode medir a fragilidade
de um artista pelos desvios no seu trabalho. Aquele que se protege das
tentações de apropriações estéticas ou intelectuais prova pela sua constância
que não é influenciável. Você quer que as suas convicções pessoais sejam
induzidas pelos outros?
Burburinho - De onde saem as idéias para os seus quadros?
Istvan - Do mundo como eu o vejo. O tema implícito nos quadros é sempre o
mesmo: um sentimento constante e idêntico que tento transmitir a quem
quiser e for receptivo. Só os "pretextos", que são os modelos ou os
elementos, mudam com cada tela.
Burburinho - Você pinta a partir de modelos vivos ou de fotografia?
Istvan - Faço dezenas de fotos de cada modelo ou das naturezas mortas,
sempre com a mesma iluminação, perto da mesma janela, o que me permite
fazer combinações diversas na composição dos quadros. Tenho então
milhares de diapositivos que projeto numa tela translúcida a alguns metros do
quadro e observo como se fosse um modelo vivo. Posso também pintar de dia
ou de noite sem depender da iluminação, em solidão total e sem incomodar
ninguém.
Burburinho - Por que os panos? Eles têm algum significado especial ou você
simplesmente gosta de pintar panos?
Istvan - Por que os panos? Talvez porque algumas das minhas modelos são
pudicas. E também porque pintar panos exige um exercício técnico que me
permite experimentar indefinidamente, porque para progredir eu me
convenço que não sei pintar. Os panos são uma vestimenta atemporal que
substrai a modelo de qualquer contexto preciso e me permite escapar da
anedota da representação. Mas a escolha de modelo, objetos ou acessórios
não tem significado simbólico consciente. É na atmosfera geral do quadro que
reside o significado implícito.
Burburinho - Ser húngaro tem alguma influência na sua arte ou você se
sente francês?
Istvan - Ser húngaro não é um fator de influência: não podemos ser
influenciados pela própria origem, porque não estávamos lá. Mas minha
infância na Hungria foi impregnada pela opressão comunista e pela
insurreição de 1956. Esses acontecimentos tiveram um impacto relevante em
mim. Nunca tive confiança na autoridade dos "adultos" e sua pretensão de
querer administrar o destino dos seus semelhantes. Sempre me senti
húngaro, talvez ainda mais por não morar na Hungria. Se não volto para lá, é
por receio de me decepcionar.
Burburinho - Você acha que a arte pode mudar o mundo ou que é somente
uma forma de tornar nossas vidas mais agradáveis?
Istvan - A arte não está destinada a provocar mudanças, mas a perpetuar a
consciência humana. O mundo muda sozinho, na continuidade da sua
evolução fatal e na sua lógica absurda. Sempre há quem queira mudar o
mundo, prolongando a ilusão. Acredito na fraternidade mas não na sociedade,
e nem mesmo na civilização, que sob o manto de um progresso técnico
escraviza a utopia com uma servidão generalizada. Quanto mais progride a
sociedade, mais regride a consciência individual. A arte só é uma distração
para os que não se fazem receptivos à sua necessidade. Os animais, por
exemplo, ignoram a arte, pois suas preocupações são essencialmente
práticas e pragmáticas, limitadas às exigências da sobrevivência. O valor da
arte reside na sua aprente inutilidade, por não ser um fator de sobrevivência
mas um reflexo da vida, em seu poderio original. A arte tem sua origem na
meditação e busca seus recursos na instrospecção. Uma criança, por
exemplo, faz seus primeiros rabiscos quando começa a refletir, a querer dar
corpo ao seu pensamento, e as primeiras figurações pré-históricas marcam o
nascimento da consciência da condição humana. A figuração é indissociável
da reflexão, que ela acompanha e sustenta. A arte é portanto um meio
destinado a permitir a conquista do subconsciente, onde residem escondidas
todas as verdades das quais somos o resultado. E enquanto o homem se
preocupar com seu subconsciente estará preservando uma dignidade que o
impede de ser um autômato servil ou um animal.