SANEAMENTO EM ITUIUTABA - encontro2016.sp.anpuh.org · dessa política foi o período de recente...

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* Mestranda em História (Cnpq). Programa de pós-graduação em História PPGHI/INHIS - Universidade Federal de Uberlândia UFU. [email protected]. SANEAMENTO EM ITUIUTABA - MG NO FINAL DO SÉCULO XX: OS REFLEXOS DA INSTALAÇÃO DA AUTARQUIA MUNICIPAL SAE Maria Angélica da Costa Silva* Introdução: No Brasil as diretrizes para o saneamento básico são definidas pela Lei Nº 11445/2007, que rege a concepção de saneamento tomada tanto pelo Governo Federal como pelos órgãos responsáveis pelas políticas voltadas à saúde e o saneamento, dentro do âmbito do Plano Nacional de Saneamento Básico, o PLANSAB. Segundo a Lei, o saneamento corresponde ao conjunto de serviços, infra-estruturas e instalações operacionais de [...] abastecimento de água potável, [...] esgotamento sanitário, [...] limpeza urbana e [...] drenagem e manejo das águas pluviais urbanas” (BRASIL, Lei Nº 11445/2007). Além disso, visa-se a universalização dos serviços à população. O processo de construção das políticas públicas de saneamento no Brasil data da Primeira República, quando as constantes epidemias atraíram a atenção das autoridades para as condições insalubres nas quais vivam as populações urbanas e rurais. De acordo com Hochman (2013: 29-33) o crescimento urbano e as epidemias, decorrentes do mesmo, fizeram com que se criassem elos de interdependência entre as diferentes classes e indivíduos. Constatados esses elos pelas elites, passou-se a criar medidas de manutenção da salubridade e da saúde pública. Essas medidas foram importantes para a criação não só de políticas públicas para o saneamento, como também ajudou a construir uma identidade nacional e a expandir o alcance do Estado. O processo de implantação das políticas públicas de saneamento no Brasil enfrentou diversos problemas e esteve sempre atrelado a interesses políticos e econômicos, o que fez com que o andamento do mesmo não se apresentasse de modo linear e homogêneo. Isso ocorreu, na maioria das vezes, em virtude das tensões ocorridas entre o Estado e se papel coercitivo na implantação de medidas e o confronto das mesmas com a sociedade, sobretudo com os interesses das elites sociais (HOCHMAN, 2013: 38).

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* Mestranda em História (Cnpq). Programa de pós-graduação em História – PPGHI/INHIS - Universidade

Federal de Uberlândia – UFU. [email protected].

SANEAMENTO EM ITUIUTABA - MG NO FINAL DO SÉCULO XX: OS REFLEXOS

DA INSTALAÇÃO DA AUTARQUIA MUNICIPAL SAE

Maria Angélica da Costa Silva*

Introdução:

No Brasil as diretrizes para o saneamento básico são definidas pela Lei Nº 11445/2007,

que rege a concepção de saneamento tomada tanto pelo Governo Federal como pelos órgãos

responsáveis pelas políticas voltadas à saúde e o saneamento, dentro do âmbito do Plano

Nacional de Saneamento Básico, o PLANSAB. Segundo a Lei, o saneamento corresponde ao

“conjunto de serviços, infra-estruturas e instalações operacionais de [...] abastecimento de

água potável, [...] esgotamento sanitário, [...] limpeza urbana e [...] drenagem e manejo das

águas pluviais urbanas” (BRASIL, Lei Nº 11445/2007). Além disso, visa-se a universalização

dos serviços à população.

O processo de construção das políticas públicas de saneamento no Brasil data da

Primeira República, quando as constantes epidemias atraíram a atenção das autoridades para

as condições insalubres nas quais vivam as populações urbanas e rurais. De acordo com

Hochman (2013: 29-33) o crescimento urbano e as epidemias, decorrentes do mesmo, fizeram

com que se criassem elos de interdependência entre as diferentes classes e indivíduos.

Constatados esses elos pelas elites, passou-se a criar medidas de manutenção da salubridade e

da saúde pública. Essas medidas foram importantes para a criação não só de políticas públicas

para o saneamento, como também ajudou a construir uma identidade nacional e a expandir o

alcance do Estado.

O processo de implantação das políticas públicas de saneamento no Brasil enfrentou

diversos problemas e esteve sempre atrelado a interesses políticos e econômicos, o que fez

com que o andamento do mesmo não se apresentasse de modo linear e homogêneo. Isso

ocorreu, na maioria das vezes, em virtude das tensões ocorridas entre o Estado e se papel

coercitivo na implantação de medidas e o confronto das mesmas com a sociedade, sobretudo

com os interesses das elites sociais (HOCHMAN, 2013: 38).

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Além dos problemas relacionados às disputas de interesses na Capital da República, o

Pacto Federativo da Constituição de 1891 impedia que a União atuasse diretamente nas

questões relacionadas à saúde nos estados, sendo estes os encarregados de resolver seus

problemas sanitários. No entanto essa premissa, ao impossibilitar a intervenção direta do

Estado, abria precedentes à negligência de governadores e líderes locais, seja pela falta de

recursos, seja pela corrupção. Dessa forma, as populações sertanejas viviam em condições

sanitárias precárias, vítimas de endemias como a Malária, a Ancilostomíase e o Mal de

Chagas. A solução encontrada pelo poder público Federal foi oferecer ajuda para o combate

às endemias, em troca da liberdade de ação dentro do território dos estados (HOCHMAN,

2013: 60-73).

Durante a Primeira República o enfoque das políticas públicas foi o combate das

endemias tanto na Capital da República como nos sertões1. O Governo Federal buscou sua

capilarização através da anuência dos estados ao solicitarem ajuda para o combate às

endemias e outros problemas de saúde enfrentados pela população sertaneja, através do

Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP), criado em 1919 e da Liga Pró-Saneamento

(HOCHMAN, 1993: 9-10).

O período Vargas foi responsável pela centralização das ações do Estado, sobretudo no

intuito de eliminar o controle das oligarquias regionais. Nesse período foi criado o DNS –

Departamento Nacional de Saúde Pública, em 1937 – em substituição ao DNSP, e

posteriormente, em 1942, o SESP – Serviço especial de Saúde Pública, em decorrência das

alianças entre EUA e Brasil, na Segunda Guerra Mundial (BASTOS: 1991; REZENDE:

2008).

Já nos anos 1950, com a crescente urbanização, sobretudo no interior do país, muitas

cidades interioranas haviam conseguido, até aquele momento, implantar um sistema de

saneamento mesmo que sem qualquer tipo de tratamento ou sofisticação. No entanto, havia

1 “Os Sertões, para a campanha pelo saneamento, eram mais uma categoria social e política do que geográfica.

Sua localização espacial dependeria da existência do binômio abandono e doença. [...] Na instigante percepção

de Afrânio Peixoto, os “sertões do Brasil” começam no fim da Avenica Central (Rio Branco)” (HOCHMAN,

2013, p. 69-70).

3

aquelas regiões de fronteira econômica, cujas populações sobreviviam em condições

insalubres, sujeitas a epidemias e doenças decorrentes das condições de higiene arriscadas,

sobretudo nas regiões norte e nordeste do país. Nelas o SESP implantaria as bases da criação

de uma política pública de saneamento em âmbito federal, a ser implantado na década de

1970, o PLANASA – Plano Nacional de Saneamento – este que, por sua vez, deixou

resquícios nas políticas de saneamento ainda vigentes no país (BASTOS, 1991; SALLES,

1996).

O SESP permaneceu com a função de levar saneamento às áreas remotas do país até a

virada da década de 1960. Quando findado o convênio com os EUA, no caso com a Fundação

Rockefeller, foi proposto que o serviço se transformasse em Fundação (Fundação Serviço

especial de Saúde pública – FSESP) no intuito de dar continuidade aos projetos

desenvolvimentistas do presidente Juscelino Kubitscheck. A fundação ficou vinculada ao

Ministério da Saúde e passou a ter jurisdição em todo o território nacional (MELLO; VIANA,

2011: 1142-1143).

Em 1971 foi criado o PLANASA, Plano Nacional de Saneamento. O contexto de criação

dessa política foi o período de recente urbanização pelo qual o país foi submetido, nas ultimas

duas décadas, o que aumentou a demanda por serviços de saneamento nas diversas cidades.

Segundo Lucena (2006) o BNH havia feito um estudo que constatava um déficit de

abastecimento de água e esgotos no país, de, respectivamente, 50% e 70%. Para receber

auxílio por parte do PLANASA as autarquias municipais deveriam conceder o direito de

prestação dos serviços às Companhias Estaduais, criadas no plano de saneamento, ou

anteriormente, sob a política da Fundação SESP. Essa era a contrapartida para que se

conseguisse financiamento do BNH para as obras (SALLES, 2009: 43-44).

Entre as características principais da política do PLANASA estão a centralização dos

serviços em torno do Governo Federal, através do monopólio das CEBs – Companhias

estaduais de saneamento – e a predominância da extensão das redes urbanas de água, frente

aos serviços de esgoto instalados no período de 1968 a 1984. Segundo Costa (1990) nesse

período, enquanto o recurso destinado à instalação das redes de água foi de 61,2%, os

4

recursos destinados às obras de esgotamento sanitário foram de 25,3% e os de drenagem de

13,6%. Além disso, ele afirma que a distribuição dos serviços entre o meio rural e urbano e

entre as regiões brasileiras foi desigual, sendo as mais prejudicadas as regiões Norte e

Nordeste, frente a uma ampla cobertura da região Sudeste.

Mesmo com problemas como a cobertura desigual, não se deixa de balizar os resultados

dessa política para as populações contempladas. Entre eles estão o aumento significativo da

cobertura dos serviços e, no caso dos resultados diretos na saúde da população, a redução da

morte por diarréia em crianças de até cinco anos de idade. Uma das doenças mais

preocupantes nas áreas urbanas e que mostrou significativo decréscimo nas cidades com altos

índices de cobertura de saneamento, como o Rio de Janeiro, em 1976 (COSTA, 1990: 55).

É notória a relação entre a mudança no meio ambiente e a saúde da população,

sobretudo a população infantil. Nesse quesito o fornecimento de água se mostrou

imprescindível para a redução de doenças virais e parasitárias em todo o país, após a expansão

dos serviços de abastecimento de água. Costa (1990) aponta que mesmo outros fatores

relacionados à saúde e a prevenção, como o atendimento médico, por exemplo, não reduz o

mérito e a relação direta entre a qualidade da água e do ambiente com a saúde da população

urbana. É o reflexo da implantação da autarquia municipal e a expansão dos serviços da

mesma que será tratada a seguir, cotejando a relação da expansão da rede de água na área

urbana e a redução dos registros de morte por doenças gástricas das crianças da cidade de

Ituiutaba-MG.

O abastecimento de água no projeto de modernização urbana de Ituiutaba

Ituiutaba passou por um período de crescimento econômico entre os anos 1950 e 1970,

em virtude da produção de arroz, tanto no município como na região. Esse período

economicamente favorável fez com que se buscassem melhorias na estrutura urbana da

cidade, atendendo a uma demanda logística, no intuito aparelhar aquele acanhado centro

urbano, que concentrava atividades comerciais, serviços diversos e até mesmo atividades

ligadas à produção do arroz, como os armazéns e máquinas beneficiadoras do cereal.

5

Nesse momento convergiram esforços por parte do poder público e da classe

economicamente privilegiadas da cidade, de modo a empreender as mudanças necessárias.

Havia um projeto modernizador por parte da elite local, composta por proprietários rurais,

comerciantes, pequenos empresários, intelectuais e donos de pequenas fábricas. Estes estavam

envolvidos direta ou indiretamente com a política, ocupando cargos no legislativo ou no

administrativo, mantendo jornais, deliberando nas pequenas reuniões e conversas acerca da

política, da economia, etc. O projeto modernizador consistia em aparelhar o núcleo urbano de

modo a proporcionar meios para a inserção de capital na cidade. Dessa forma, era necessário

pavimentar ruas, construir edifícios comerciais, hotéis, iluminar a cidade, ajardinar praças,

sanear e limpar as ruas e melhorar o sistema de abastecimento de água. Para tanto, houve a

mobilização de recursos públicos e privados. Os primeiros foram observados através de

investimentos diretos na construção de edifícios e instalação de pequenas fábricas, além de

abertura de crédito pela prefeitura2 para a pavimentação de algumas ruas. O segundo foi

obtido mediante auxílios Federais e Estaduais, sobretudo no que tange à instalação do sistema

de abastecimento de água na cidade, que se serviu do apoio da FSESP3 para ser efetivado.

O abastecimento de água se tornou um problema para a cidade na medida em que a

população aumentou, em virtude das atividades econômicas exercidas no município. Tanto a

população urbana como a rural cresceram em decorrência da rizicultura, que atraiu milhares

de migrantes da região Nordeste e do norte de Minas Gerais para o município. Nem todos se

colocaram em atividades no campo, de modo que algumas famílias permaneceram na cidade

em busca de trabalho, contribuindo para o aumento do contingente urbano (SILVA: 1997;

OLIVEIRA: 2003).

O sistema de abastecimento existente na cidade, até aquele momento – 1950/60 – datava

de 1910, quando foi construída uma represa na vertente do Ribeirão São Lourenço, há alguns

quilômetros da área urbana, no local denominado “Goiabal”. Da represa a água era conduzida,

pelo sistema gravitacional, até um reservatório, situado na “Rua Vinte e Quatro”, onde hoje é

a Praça Getúlio Vargas (SILVA: 2014). Esse reservatório era utilizado para abastecer a

2 Ituiutaba, Câmara Municipal. Atas de reuniões ordinárias e extraordinárias de 1948 a 1971. 3 Fundação Serviço Especial de Saúde Pública.

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cidade, sobretudo a parte baixa. As demais áreas se serviam de poços, cisternas e de minas

d’água, principalmente as famílias carentes que viviam em áreas menos urbanizadas.

Observando essa crescente demanda pela água na cidade, a prefeitura se encarregou de

buscar ajuda junto aos órgãos federais e estaduais para implantar um sistema de

abastecimento que fosse capaz de atender à crescente demanda. Nesse momento, em 1960,

começaram as negociações junto ao SESP e ao governo do estado. Os técnicos da instituição

visitaram a cidade no intuito de realizar o levantamento inicial para orçar o valor da obra e as

condições estruturais que a cidade oferecia para tal pleito. As obras efetuadas pela instituição

eram pagam com recursos do município e do SESP, ficando cada um responsável por 50% do

custo total, além de o poder público local se encarregar também de obras infra-estruturais,

como pavimentação e terraplanagem de ruas, construção de emissários de esgoto e galerias

pluviais nos córregos que passam pela da cidade. (SILVA, 2014: 48-9).

A obra orçada em Cr$ 46. 690.000,00 se iniciou em 1963. O projeto consistia em uma

estação de captação com uma casa de bombas, localizada no leito do Ribeirão São Lourenço.

De lá a água seria transportada por uma rede adutora, composta por uma adutora de recalque

de 300 mm de diâmetro e 4 km de comprimento até a estação de tratamento e distribuição.

Esta teria a capacidade de tratar até 75 litros por segundo e teria um reservatório de

abastecimento de 1000 m³. Esse sistema comportaria uma população de até 25 mil pessoas, e

aproveitaria a rede de distribuição pré-existente na cidade (SILVA, 2014: 49). A mesma

construída em 1910 e expandida em alguns locais até aquele momento.

Em 1967 foi criada a autarquia SAE – Superintendência de Água e Esgotos4 que, de

acordo com as exigências da FSESP, deveria ser uma autarquia de economia mista,

respondendo tanto à prefeitura municipal como ao FSESP5, até que pudesse se auto-sustentar

economicamente, tendo condições de expandir os serviços. Em 1969, através de um

empréstimo do BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento – a estação elevatória foi

construída, ligando a estação de captação à de tratamento. As obras finalizaram-se em 1970,

4 ITUIUTABA. LEI Nº 1208 de 27 de dezembro de 1967. 5 ITUIUTABA, LEI Nº 1102 de 27 de fevereiro de 1967.

7

quando a autarquia já havia recebido a autorização da prefeitura para cobrar as tarifas pelo

serviço6. A FSESP acompanhou a instituição até sua extinção, quando a SAE passou a receber

apoio administrativo da FUNASA (Fundação Nacional de Saúde). Em 1999, sua

administração definitivamente foi entregue à prefeitura municipal (SILVA, 2014: 50-2).

A consolidação da SAE nos anos 1970: questões de ordem técnica e social

Na edição do jornal “Cidade de Ituiutaba” em 13 de julho de 1972, a primeira página

continha uma reportagem com o seguinte teor:

TEMOS ÁGUA FILTRADA E TRATADA

Resolvido antigo e angustiante problema

Desde o dia 7 p.p. está correndo água limpa nas torneiras de Ituiutaba. Água filtrada

e tratada. Pura e cristalina, portanto. A população está exultante, pois o magno

problema, que desafiou várias administrações municipais, encontra solução.

Sob orientação técnica do dr. José Maria Gontjo, engenheiro da FSESP, foram

postos em funcionamento, na manhã do último dia 7, dois filtros clarificadores de

contato, instalados ao lado da estação de tratamento. Os filtros já tinham sido

testados, com absoluto Sucesso, e só faltava ligá-los à rede distribuidora para que o

precioso líquido pudesse ser distribuído à população da Arrozcap.

(...) Com a possível recuperação da estação de tratamento pelo DNOS, Ituiutaba

contará com dois sistemas e a certeza de que o problema não voltará a preocupar,

pelo menos nos próximos 20 ou 30 anos (Jornal Cidade de Ituiutaba, 13/07/1972).

Observe que, se as obras foram concluídas em 1970 e a SAE definitivamente instalada,

como poderia haver problemas de abastecimento nos meados do ano seguinte? Ao que

parece, a água estava sendo distribuída à população sem o devido tratamento, do mesmo

modo como era feito há algumas décadas. Segundo a reportagem, a estação de tratamento

deveria ser recuperada, ficando a cidade com dois sistemas de tratamento. Portanto, os filtros

instalados na estação de distribuição atuariam reduzindo a turbidez da água, e retirando

partículas poluentes, sem, no entanto, efetuar o processo de cloração e desinfecção da mesma.

No entanto, por ser uma água cuja potabilidade já foi verificada, através dos estudos

6 ITUIUTABA, LEI Nº 1285 de 31 de julho de 1969.

8

preliminares para a instalação do sistema de abastecimento7, possivelmente considerou-se que

esta não estaria comprometida para o consumo humano.

Em outra edição do jornal, uma crônica sobre o abastecimento de água assinada por

João Petráglia, aponta os motivos pelos quais os filtros foram instalados, já que a estação de

tratamento apresentava problemas, entretanto a reportagem citada anteriormente não

evidenciava quais. Petráglia afirma que:

Mas persistindo o problema [abastecimento insuficiente], resolveu-se a construção

de uma barragem no S. Lourenço, e de uma estação de tratamento no alto da cidade,

mas esta estação apresentou graves defeitos e, ao que parece, será construída outra.

O serviço de água, sob a Superintendência de Água e Esgotos – SAE – não poderia

paralisar-se à espera da construção desta estação, e, então, providenciou-se a

instalação de filtros que têm dado ótimo resultado. A população está sendo servida

com água potável, transparente e pura há alguns meses. De modo que está em parte

solucionado este problema, esperando ansiosa a população, que, em futuro próximo,

funcione a estação de tratamento, quando haverá água suficiente para abastecer toda

a cidade, inclusive os bairros (Jornal Cidade de Ituiutaba, 16/09/1972).

Ao afirmar que “haverá água suficiente para abastecer toda a cidade”, é possível cogitar

que o serviço de abastecimento ainda não abrangia toda a população urbana, sobretudo as

áreas mais afastadas do perímetro central,8 o que possivelmente ocorreu em virtude do

aproveitamento do sistema anterior, e da extensão das redes de água e esgotos ainda se

encontrarem em andamento. Essa questão foi resolvida com o avanço da década, conforme a

autarquia se consolidou na cidade, ofertando os serviços a uma parcela maior da população.

Entre as décadas de 1960 e 1980 ocorreu um significativo aumento dos serviços de água

e esgotos no município, sobretudo entre 1970 e 1980, período que compreende a instalação da

autarquia. Na década de 1960 aproximadamente 7% dos domicílios estavam ligados à rede de

água, e 13% a uma rede de esgotos. A diferença entre as décadas de 1970 e 1980 foi de um

aumento, aproximado, de 43% das redes de água e de esgotos (Figura 1).

Figura 1: abastecimento de água e esgotos em Ituiutba 1960-1980:

PESQUISA POR AMOSTRA DE DOMICÍLIOS - REDES DE ÁGUA E ESGOTOS

7 Relatório de estudos preliminares apresentado à prefeitura de Ituiutaba, para implantação do sistema de

abastecimento e tratamento de água. Data aproximada: 1955/56. 8 ITUITABA. Zoneamento urbano. Lei nº 312 de 18 de março de 1955.

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Período 1960 1970 1980

Total de domicílios 9868 12717 16605

Com rede geral de água 766 1737 10312

Com poço ou cisterna - 6565 5877

Com outra fonte de abastecimento - - 413

Com rede de esgotos 1373 1123 8560

Com fossa séptica - 926 341

Com fossa rudimentar - 2217 5796

Com outro escoadouro - 608 82 Fonte: IBGE. PNAD, 1960, 1970 e 1980. Elaboração própria.

Em quase dez anos de atuação da autarquia esse número se mostra positivo,

observando-se o aumento da cobertura à população, principalmente no que tange ao

abastecimento de água. No entanto, observando-se os demais aspectos, sobretudo a relação da

cobertura de esgotos, percebe-se que o uso de fossas rudimentares aumentou 17% entre 1970

e 1980. Isso pode indicar que os serviços de água tiveram uma expansão mais rápida, devido à

urgência da demanda e também pela dificuldade em se construírem redes de esgotos em áreas

mais afastadas da cidade, recorrendo-se ao uso de fossas rudimentares e outros escoadouros

improvisados. Além disso, pode-se afirmar que o aumento da cobertura de água e esgotos na

cidade acompanhou a extensão dos serviços a nível nacional, onde o período compreendido

entre as décadas de 1970 e 1990 representou um dos momentos de maior crescimento no

setor9.

Por outro lado, Costa (1990) discutindo o impacto das políticas públicas no ambiente

urbano e na saúde das populações nas décadas de 1970 e 1980, observa que o PLANASA –

Plano Nacional de Saneamento – foi uma política mal distribuída no território nacional, de

modo que privilegiou a expansão do abastecimento de água, as populações urbanas e as

regiões Sudeste, frente à maior demanda de outras regiões. Além disso, ao verificar o impacto

da oferta de água potável à população urbana no estado do Rio de Janeiro, observou que um

dos resultados positivos foi a redução do índice de mortalidade infantil por diarreia. No Rio

de Janeiro, em 1980, a diarreia foi um das causas de morte que mais atingiu crianças de zero a

9 IBGE, Censos Demográficos de 1970, 1980 e 1991.

10

12 meses, chegando-se a proporção de 01morte para cada 100 nascidos naquele ano (COSTA,

1990: 55).

Em Ituitaba o índice de mortalidade por diarreia e gastroenterite em crianças de zero a

12 meses, entre os anos 1968 e 1980, apresentou aumento entre os anos 1970 e 1973, seguido

de redução nos anos seguintes (Figura 2).

Figura 2: Mortalidade infantil por desidratação e gastroenterite - crianças até 12 meses

Fonte: Livros de Registro do Cemitério Municipal “São José”. Elaboração própria.

Esse período de aumento mostra indícios acerca dos dados referentes ao abastecimento

de água na cidade, sobretudo entre os anos 1970 e 1974, período em que ocorreu a instalação

e adaptação da SAE. O decréscimo apresentado no final da década de 1970 pode estar

relacionado à expansão dos serviços de saneamento na cidade.

A diarréia é uma das principais causas de morbimortalidade infantil, em crianças de até

cinco anos, em países pobres, sobretudo entre aquelas que vivem sob condições sanitárias

desfavoráveis. Entretanto, é um problema que atinge não somente crianças, mas pessoas de

idades e classes sociais indiscriminadamente. Assim, as melhorias nos setor – segundo

levantamento feito pela OMS (Org. Mundial de Saúde) em todos os países – “poderia prevenir

uma série de agravos, com destaque para a diarreia, impactando em aproximadamente, 9,1%

11

da Carga global de doença e 6,3% do total de mortes, principalmente entre as crianças até

cinco anos de idade” (OLIVEIRA, et. al. 2005, p.1028).

Estendendo a análise local para a faixa etária de 13 meses a cinco anos, na cidade de

Ituiutaba, é possível verificar que há convergência do aumento de mortes, entre os anos 1969

e 1974. Em seguida, ocorre a redução das mesmas, até o final da década (Figura 3).

Figura 3: Mortalidade infantil por desidratação e gastroenterite – Crianças de até 05 anos

Fonte: Livros de Registro do Cemitério Municipal “São José”. Elaboração própria.

Observa-se a convergência de aumento dos óbitos e das datas, ou seja, os anos 1970-

1973, assim como entre os menores de um ano. No entanto a quantidade de óbitos por ano é

significativamente menor do que entre as crianças de até 12 meses.

Esse período de 1971-1974 coincide com o momento de adaptação da autarquia

municipal, a SAE, sobretudo a respeito do que foi discutido anteriormente, onde os tanques da

estação de tratamento apresentaram falhas, sendo necessária a instalação de filtros na estação

de distribuição. Ou seja, além da falta de acesso à rede de água para a maior parte da

população, a que era distribuída ainda não estava devidamente tratada. Além disso, ao final da

década com os serviços de saneamento prestados a uma parcela maior da população, e com a

melhora da qualidade da água, verificou-se a redução dos índices de mortalidade infantil.

12

Outro fator que pode ter contribuído para a redução da mortalidade infantil é o aumento

de fossas nos domicílios, mostrando que não somente ocorreu a oferta de água, mas também a

melhora nas condições sanitárias dos domicílios. Enquanto o aumento de domicílios entre

1070 e 1980 foi de aproximadamente 23%, o aumento de fossas foi de 81% (entre fossas

sépticas e rudimentares) (Figura 1). Heller (1998) observou que não somente a oferta de água

influi na redução dos índices de diarreia e de morte entre crianças de até cinco anos de idade,

como também as condições sanitárias e socioeconômicas em geral, como o destino correto

dos dejetos, a drenagem urbana, as condições de higiene da família, e a existência de

geladeira no domicílio. Além disso, a quantidade de água ofertada à população, mesmo que

não tratada, influencia mais na redução de tais índices do que a oferta de água tratada, porem

em menor escala.

Dessa forma, a investigação sobre os resultados da instalação da autarquia SAE, e de

seu período de consolidação, mostrou que ocorreram melhoras nas condições de vida da

população, no sentido de redução dos índices de mortalidade infantil, no final da década de

1970. No entanto, no período de adaptação, que foi entre os anos 1973 e 1975, ocorreram

muitos casos de morte em crianças e que podem ser diretamente ligados ao episódio no qual a

estação de tratamento de água apresentou problemas, demandando a instalação de filtros na

rede geral de distribuição de água. Portanto, há de se cotejar a importância da oferta de água

tratada como reflexo na saúde da população da cidade.

Considerações finais

As políticas públicas de saneamento efetuadas ao longo das décadas de 1960 e 1970,

através da FSESP e do PLANASA interferiram positivamente na saúde e nas condições de

vida das populações urbanas brasileiras. A oferta de água potável, e de coleta de esgotos, se

mostrou imprescindível para a redução dos índices de morbimortalidade infantil, em crianças

de até cinco anos de idade. O estudo dos reflexos dessas políticas na cidade de Ituiutaba-MG

possibilitou observar que a cidade, ao ser contemplada por essas políticas, foi largamente

beneficiada, de modo que o serviço de água e esgotos atualmente é de evidente qualidade.

13

Além disso, ao verificar a quantidade de mortes por diarreia e gastroenterite foi possível

afirmar que estas estavam diretamente ligadas às condições de saneamento na cidade,

sobretudo no período de instalação da SAE, autarquia que presta os serviços de água e

esgotos, desde 1971.

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