Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE ECONOMIA UMA RELEITURA DA TEORIA DAS FINANÇAS FUNCIONAIS GUSTAVO ANTÔNIO GALVÃO DOS SANTOS ORIENTADOR: FÁBIO N. P. DE FREITAS Rio de Janeiro 2005

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

INSTITUTO DE ECONOMIA

UMA RELEITURA DA TEORIA DAS

FINANÇAS FUNCIONAIS

GUSTAVO ANTÔNIO GALVÃO DOS SANTOS

ORIENTADOR: FÁBIO N. P. DE FREITAS

Rio de Janeiro

2005

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UMA RELEITURA DA TEORIA DAS

FINANÇAS FUNCIONAIS

GUSTAVO ANTÔNIO GALVÃO DOS SANTOS

Tese apresentada ao Instituto de Economia da

Universidade Federal do Rio de Janeiro como

requisito parcial à obtenção do título de Doutor em

Economia.

ORIENTADOR: FÁBIO N. P. DE FREITAS

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Instituto de Economia

Rio de Janeiro

2005

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UMA RELEITURA DA TEORIA DAS

FINANÇAS FUNCIONAIS

GUSTAVO ANTÔNIOGALVÃO DOS SANTOS

TERMO DE APROVAÇÃO

Tese a ser defendida 31 de agosto 2005, como requisito parcial à obtenção do título de

Doutor em Economia, junto ao Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio

de Janeiro, pela Banca Examinadora formada pelos professores:

Prof. Fábio Freitas (Orientador)

Prof. Carlos Lessa

Prof. Franklin Serrano

Prof. Carlos Pinkusfeld Bastos

Prof. Antônio Henrique Pinheiro Silveira

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Não sou imparcial. Sou parcial a tudo que prometa nos tirar

desta triste rotina de oligarquias eternizadas e privilégios

intocáveis, ou miséria eternizada e submissão intocável, e a

esta outra triste rotina de governos de esquerda abatidos no

nascedouro - quando não se autodestroem. E, claro, ao

Internacional e ao Botafogo, mesmo quando não merecem. No

Brasil, ser objetivo é quase uma forma de cumplicidade.

Veríssimo

>

“Se a norma fundamental do discurso teórico é a adequação descritiva ou representativa – ou verdade – a norma fundamental do discurso prático é a consecução, realização ou satisfação dos desejos, necessidades e propósitos humanos. Se há razões reais (causas) para a crença ou ação, não devemos nos equivocar sobre elas, pois se fracassamos na verdade podemos igualmente fracassar na satisfação” (Bhaskar, 1978: 206; tradução livre baseada em Duayer e Medeiros, 2003).

A propósito: na inauguração do governo Lula, num assomo de

otimismo e bairrismo, elogiei todos os gaúchos do Ministério —

Tarso, Olivio Dutra, Dilma Rouseff, Miguel Rosseto — e escrevi

que, se desse errado, seria culpa dos paulistas. Estou

pensando seriamente em comprar um turbante e me

estabelecer como vidente.

Veríssimo

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Resumo

Esta tese objetiva adaptar a teoria das finanças funcionais para a realidade dos países que sofrem de restrição externa ao crescimento. No primeiro capítulo, será exposto a teoria das finanças funcionais tal como proposta por Lerner. Nas finanças funcionais, a meta de pleno emprego com estabilidade de preços pode ser alcançada com apenas um instrumento: políticas (fiscais e monetárias) para manipulação da demanda doméstica. No segundo capítulo, serão desenvolvidas as teorias Lernerianas da inflação. Nesse capítulo, indicaremos as possíveis insuficiências dessas teorias por desconsiderar a relação entre desvalorização cambial e inflação e, conseqüentemente, a restrição externa. O terceiro capítulo buscará propor uma explicação alternativa sobre a evolução da taxa de câmbio e o papel dos juros no financiamento externo. Em particular, tentaremos mostrar que, em economias abertas, a autonomia da política monetária é muito maior do que normalmente se supõe. Essa teoria será útil para a reformulação das finanças funcionais no capítulo seguinte. No quarto capítulo, será proposta uma adaptação da teoria das finanças funcionais para a situação de restrição externa. A versão proposta das finanças funcionais possuirá seis instrumentos: (1) políticas de manipulação da demanda doméstica, (2) políticas industriais e de competitividade externa, (3) políticas de administração do movimento de capitais e de indução de financiamento externo, (4) política de infra-estrutura, (5) política anti-inflacionária e (6) política social.

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Glossário

CK = saldo na conta de capitais DCC = déficit em conta corrente BP = saldo do balanço de pagamentos R = variação de reservas cambiais

AmE = saldo das amortizações dívidas de externas pagas DCC = déficit em conta corrente IDE = investimentos externos diretos líquidos EElp = saldo empréstimos externos de longo prazo tomados pelo setor privado

EEG = empréstimos externos tomados pelo governo FFEcp = saldo das fontes de financiamento externo de curto prazo Rmín = compras mínimas de reservas cambiais pelo

governo para recompor as reservas planejadas. R– = compras de reservas cambais acima do mínimo

planejado Amcp = Saldo das amortizações pagas da dívida externa de curto prazo estoq. Elp = Elp – Amlp = crescimento do estoque de

dívida externa de longo prazo NFE = DCC + AmE + Rmín

NFE = Necessidade de Financiamento Externo NFED = NFE - IDE NFED = Necessidade de Financiamento Externo de Dívida NFEDcp = NFED – Eelp = – (fluxo estrutural de divisas) NFEDcp = Necessidade de Financiamento Externo de Dívida de curto prazo Pressão cambial = NFEDcp - FFEcp NFE estrutural = a NFE que se espera que obter, se forem adotadas políticas contracionistas aceitáveis para redução da NFE NFEDcp pós-desvalorização = NFEDcp que se espera obter, se o câmbio for desvalorizado dentro de patamares aceitáveis

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Introdução

A teoria das finanças funcionais propõe que o governo pode atingir a

meta de pleno emprego com baixas taxas de inflação através simplesmente de

políticas fiscais ou monetárias expansionistas e câmbio flutuante. Em países

que sofrem restrição externa esse resultado não é possível. Os objetivos

principais deste trabalho são: (1) mostrar porque a meta das finanças

funcionais não é alcançável, nessas circunstâncias, com os instrumentos de

política originalmente propostos e (2) identificar os instrumentos que tornariam

essa meta atingível sob condições de restrição externa.

A teoria econômica ortodoxa convencional acredita que o desemprego é,

na pior das hipóteses, um evento fugaz. Essa teoria sofreu uma grande crise

durante a grande depressão e manteve-se relativamente marginal por pelo

menos três décadas.

Nos anos 30, o alto e permanente desemprego não era apenas uma

evidência inquestionável, ele “caía no colo” dos economistas cobrando

soluções. No entanto, os conselhos dos economistas ortodoxos tradicionais

não surtiam efeitos.

Como sempre, esses só podiam dar a resposta usual: sugeriam que

mantendo a disciplina fiscal, o que era praticamente impossível devido à

redução da renda, em algum momento a atividade econômica iria se recuperar

voltando ao equilíbrio. Se a proposta surtisse o efeito esperado, todos ficariam

satisfeitos, caso contrário, a culpa seria dos governantes que não esperaram

tempo suficiente ou não tiveram a disciplina necessária em suas contas fiscais.

No entanto, dessa vez, o problema era muito grave para esperar que o

mundo se adaptasse às abstrações dos economistas ortodoxos. Os governos

da maioria os países foram obrigados a adotar soluções ad hoc contrárias a

seus conselhos. Freqüentemente essas soluções surtiram efeitos positivos, o

que tornava a prática política cada vez mais distante da teoria econômica.

Keynes escreveu em 1936 sua ‘Teoria Geral’, oferecendo uma

explicação inovadora e satisfatória para a existência de desemprego. Em

pouco tempo revolucionaria a disciplina e toda gestão de política econômica. O

autor sugeriu que a falta de trabalho poderia ser combatida com políticas fiscais

ou monetárias expansionistas.

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Inicialmente, apesar da grande atenção despertada, havia uma

importante dúvida. Como operar uma política de aumento dos gastos públicos,

se na depressão a arrecadação de impostos estava muito reduzida e não havia

superávit público?

Abba Lerner, no início dos anos 40, foi o primeiro a responder a essa

pergunta e assim preencher a principal lacuna que faltava para difundir a

revolução keynesiana. Abba Lerner buscou, antes de tudo, mostrar que não

existiria qualquer empecilho de ordem fiscal, contábil-fiscal ou de grau de

endividamento público que pudesse impedir a economia de alcançar o pleno

emprego. Ele chamou essa teoria de finanças funcionais.

Essa teoria ajudou a dar a segurança que faltava aos keynesianos em

relação às possibilidades da política fiscal. Esses economistas puderam assim

preparar o espírito de sua época para receber o arcabouço de gestão

macroeconômica que ajudou a construir a chamada de era de ouro do

capitalismo, nos 25 anos seguintes à segunda guerra mundial.

O sucesso econômico e social sustentou um forte otimismo nos países

industrializados. Esse otimismo transbordou as fronteiras e chegou ao terceiro

mundo, que naqueles anos, chegou a achar que o desenvolvimento era

possível. Essa crença ajudou a sustentar as políticas que fizeram com que o

Brasil tivesse a mais alta taxa de crescimento do mundo.

Hoje, a realidade brasileira é muito diferente. Vivemos uma profunda

crise social e sem qualquer perspectiva de melhoria. O setor privado não pode

resolver essa situação, pois só pode gerar empregos se houver demanda.

Como nos anos 30, só o governo pode dar a resposta necessária. Essa

proposição implica que a continuidade da crise decorre da mediocridade das

propostas de política econômica atuais. Essas propostas, antes de tudo,

obrigam o governo limitar os investimentos públicos e os gastos sociais ao

mínimo, para que sejam garantidas metas contábeis-fiscais arbitrárias.

A teoria das finanças funcionais faz falta nesses momentos. Ela poderia

ser uma esperança. As finanças funcionais são muito coerentes com a política

econômica que ajudou a sustentar o Estado do bem-estar social. Elas

prometem a viabilidade do pleno emprego com baixa inflação. Se pudessem

ser adaptadas à realidade dos países com crônica dificuldade de balanço de

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pagamentos, em particular aos países subdesenvolvidos, poderiam ser uma luz

na escuridão contemporânea.

Entretanto, o subdesenvolvimento não foi o objetivo de Abba Lerner ao

formular a teoria. As finanças funcionais pareciam, na época, se assentar como

uma luva à realidade dos países industrializados. No entanto, é uma teoria que

encontra dificuldades para explicar certos fenômenos, como as limitações à

política econômica nos países subdesenvolvidos e certos processos

inflacionários. Em geral, essas dificuldades estão relacionadas com a restrição

externa.

Dessa forma, esta tese objetiva adaptar a teoria das finanças funcionais

para a realidade dos países que sofrem de restrição externa ao crescimento.

No primeiro capítulo, vamos expor a teoria das finanças funcionais tal como

proposta por Lerner. Nas finanças funcionais, a meta de pleno emprego com

estabilidade de preços pode ser alcançada com apenas um instrumento:

políticas (fiscais e monetárias) para manipulação da demanda doméstica.

No segundo capítulo, serão desenvolvidas as teorias Lernerianas da

inflação. A inflação é fundamental para as finanças funcionais. Nessa teoria,

para manter a inflação controlada, bastaria manter o nível de atividade no nível,

chamado por Lerner, de baixo pleno emprego. Essa proposição possui

limitações. Nesse capítulo, indicaremos as possíveis insuficiências dessas

teorias por desconsiderar a relação entre desvalorização cambial e inflação e,

conseqüentemente, a restrição externa.

Por dar pequena atenção à restrição externa e por ter feito suas

propostas em um momento onde o controle de capitais era generalizado,

Lerner acabou não considerando as possíveis limitações que as taxas de juros

poderiam sofrer em decorrência dos movimentos de capitais.

No mundo atual, a liberdade de movimento de capitais tem sido a regra.

Nesse sentido, convém explicar as relações econômicas nessas

circunstâncias, ainda que elas possam não ser a política ideal. O terceiro

capítulo buscará propor uma explicação alternativa sobre a evolução da taxa

de câmbio e o papel dos juros para o financiamento externo sob essas

condições. Em particular, tentaremos mostrar que, em economias abertas, a

autonomia da política monetária é muito maior do que normalmente se supõe.

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Essa teoria será útil para a reformulação das finanças funcionais no capítulo

seguinte.

No quarto capítulo, será proposta uma adaptação da teoria das finanças

funcionais para a situação de restrição externa. Sob restrição externa e com

liberdade de movimentos de capitais os desafios enfrentados pelos governos

são maiores. Torna-se, assim, necessário a adoção de um maior número de

metas intermediárias e, portanto, um maior número de instrumentos.

Dessa forma, a versão proposta das finanças funcionais possuirá seis

instrumentos: (1) políticas de manipulação da demanda doméstica, (2) políticas

industriais e de competitividade externa, (3) políticas de administração do

movimento de capitais e de indução de financiamento externo, (4) política de

infra-estrutura, (5) política anti-inflacionária e (6) política social.

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Índice

INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 7

INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 7

1º CAPÍTULO: FINANÇAS FUNCIONAIS SEGUNDO LERNER ....................... 14

1.1. A MOTIVAÇÃO PRIMEIRA DAS FINANÇAS FUNCIONAIS: .......................................... 14

1.2. AS FINANÇAS SAUDÁVEIS .................................................................................... 15

1.3. LERNER E A TEORIA DAS FINANÇAS FUNCIONAIS ................................................... 16

1.3.1. Lições de Lerner para as finanças públicas e política econômica .............. 22

“Lição 1: Pleno emprego, estabilidade de preços e um padrão de vida decente

para todos são metas macroeconômicas fundamentais e é responsabilidade do

Estado promover sua obtenção”. ........................................................................ 22

“Lição 2: As políticas devem ser julgadas pela sua habilidade em alcançar os

objetivos para que elas foram projetadas e não qualquer noção sobre se elas são

“saudáveis” ou se estão em conformidade com os dogmas da economia

tradicional”. ........................................................................................................ 23

“Lição 3: ‘Dinheiro é uma Criatura do Estado’”. ............................................... 23

“Lição 4: Tributação não é uma operação de financiamento”. ........................... 27

“Lição 5: Emissão de dívida pública não é uma operação de financiamento”. .. 31

“Lição 6: O propósito primário da tributação é influenciar o comportamento do

público”. ............................................................................................................. 31

“Lição 7: O propósito primário da venda de títulos de dívida pelo governo é

regular a taxa de juros no overnight”. ................................................................ 32

“Lição 8: A venda de títulos seguem, ao invés de preceder, os gastos do

governo”. ............................................................................................................ 37

“Lição 9: O ato de ‘Imprimir dinheiro’ em si mesmo não tem absolutamente

nenhum impacto na economia”. ......................................................................... 38

“Lição 10: Sem uma política de pleno emprego, a sociedade não pode se

beneficiar do avanço de tecnologias poupadoras de trabalho, o que é eficiente se

torna ineficiente. Com uma política de pleno emprego, técnicas poupadoras de

trabalho tornam-se verdadeiramente benéficas para a sociedade”. .................... 38

“Lição 11: Sem uma política de pleno emprego, um país pode ser prejudicado

pelos resultados do seu saldo comercial. Com uma política de pleno emprego,

não há necessidade de preocupação por se estar importando muito relativamente

às exportações”. .................................................................................................. 39

“Lição 12: São contra-produtivas as tentativas de argumentar que o déficit e a

dívida pública não são tão grandes quanto parecem, ou que se nós os medirmos

de forma diferente ou se mantivermos uma conta de capital [no orçamento

público], [ver-se-ia que os montantes dessas variáveis] não são realmente tão

ruins”. ................................................................................................................. 40

“Lição 13: Quando há desemprego, postos de trabalho e moeda – e não recursos

e bens – são escassos”. ....................................................................................... 41

“Lição 14: Finanças Funcionais não é uma política, mas um arcabouço dentro do

qual todo um conjunto de políticas pode ser conduzido”. .................................. 41

“Lição 15: Para alcançar o [mais alto nível de] pleno emprego, gastos do

governo podem ter que incluir criação de trabalho direto”. ............................... 42

1.3.2. Limites aos estoques de riqueza em papéis de dívida pública? ................... 42

CAPÍTULO 2: LIMITAÇÕES .................................................................................... 51

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2.1. TEORIAS LERNERIANAS DE INFLAÇÃO .................................................................. 55

Conflito distributivo ................................................................................. 66

Aspectos políticos do (baixo) pleno emprego ............................................ 70

2.2. BALANÇO DE PAGAMENTOS E AS FINANÇAS FUNCIONAIS SEGUNDO LERNER ........ 75

2.2.1. Restrição externa .......................................................................................... 75

2.2.2. A visão otimista de Lerner ............................................................................ 77

2.2.3. Câmbio e Inflação ........................................................................................ 80

2.2.3.1. Inflação em economias abertas .............................................................. 81

2.2.3.2. Câmbio flutuante não elimina a restrição externa ................................. 89

2.2.3.3. Câmbio, pleno emprego e finanças funcionais ...................................... 92

CAPÍTULO 3: CÂMBIO, JUROS E FINANCIAMENTO EXTERNO ................. 94

3.1. TENDÊNCIAS DA TAXA DE CÂMBIO: A PRESSÃO CAMBIAL ..................................... 94

3.2. ELEVAÇÃO DOS JUROS NÃO ELIMINA A RESTRIÇÃO EXTERNA ............................. 113

3.2.1. A visão tradicional ..................................................................................... 114

3.2.1.1. Juros ..................................................................................................... 114

3.2.1.2. A opção pela paridade coberta............................................................. 117

3.2.1.3. Mobilidade imperfeita de capitais, substituição imperfeita de ativos,

prêmio de risco e expectativa cambiais ............................................................ 119

3.1.2.4. Expectativas cambiais e prêmio de risco endógenos e função da curva

BP? ................................................................................................................... 121

3.2.1.5. Curva BP e restrição externa ............................................................... 122

3.2.1.6. Questionamentos ................................................................................. 125

3.2.1.7. Explicações ortodoxas ......................................................................... 126

3.2.1.8. Juros altos para maximizar o crescimento? ......................................... 131

3.3. UMA NOVA VISÃO: OS JUROS SÃO ALTOS PORQUE SÃO ALTOS ............................ 133

3.3.1. Endogenidade do custo de oportunidade em moeda estrangeira .............. 133

3.3.1.1. Bresser-Nakano ................................................................................... 136

3.3.1.2. Cirne de Toledo ................................................................................... 141

3.3.2. Uma Crítica à paridade juros .................................................................... 145

3.3.2.1. introdução: Heterodoxia tradicional e paridade juros.......................... 145

3.3.2.2. Endogenidade do custo de proteção cambial ....................................... 147

3.3.2.3. Endogenidade do custo de proteção cambial e risco-país ................... 152

3.4. A variação dos juros pode ser mais importante do que o diferencial ........... 154

3.4.1. Diferencial de juros, fluxo ou estoque? .............................................. 155

3.4.2. Taxas de juros e o financiamento externo de curto prazo .................. 159

3.4.3. Pressão cambial e elevação dos juros ................................................. 160

3.4.3.1. Manipular os ganhos de capital: uma oportunidade para os

especuladores e para a política econômica ............................................... 164

3.5. Elevação dos juros não é solução definitiva contra a pressão cambial ....... 171

3.6. Investimento externo direto, empréstimos de longo prazo e política de

financiamento externo .......................................................................................... 181

3.6.1. A importância da solvência externa........................................................ 190

3.6.2. Política cambial e creditícia .................................................................... 205

3.6.2.1. Autonomia da política cambial ........................................................ 206

3.6.2.2. Política cambial e crédito de longo prazo ........................................ 208

3.6.2.2.1. Moeda forte .............................................................................. 208

3.6.2.2.2. Taxa de juros de longo prazo mínima ...................................... 208

3.6.2.2.3. Construção de uma moeda forte e de uma baixa taxa de juros de

longo prazo ............................................................................................... 211

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3.6.2.2.4. Política cambial, competitividade e crescimento ..................... 213

CAPÍTULO 4: FINANÇAS FUNCIONAIS SOB RESTRIÇÃO EXTERNA ...... 216

4.1. POR UMA PROPOSTA DE AMPLIAÇÃO DAS FINANÇAS FUNCIONAIS ....................... 217

4.2. A PROPOSTA ....................................................................................................... 225

4.3. POLÍTICA ANTI-INFLACIONÁRIA .......................................................................... 239

4.4. ADMINISTRAÇÃO DA PRESSÃO CAMBIAL ............................................................. 244

4.4.1. NFEDcp, pressão cambial, juros e inflação: uma retrospectiva ............... 247

4.4.2. Financiamento de curto prazo da NFEDcp: solução ágil mas temporária 253

4.4.2.1. Políticas mais adequadas para financiamento de curto prazo da NFEDcp

.......................................................................................................................... 254

4.4.2.2. Não existe diferencial mínimo para as taxas de juros no curto prazo . 259

4.4.2.3. Políticas ineficientes, mas potencialmente complementares em períodos

críticos .............................................................................................................. 263

4.4.3. Políticas de financiamento da NFEDcp com emissão de dívida pública

externa .................................................................................................................. 266

4.4.4. Políticas de redução da NFEDcp ............................................................... 267

4.5. POLÍTICAS PARA DESLOCAMENTO DA RESTRIÇÃO EXTERNA................................ 270

4.5.1. Políticas industriais e comerciais ............................................................ 272

4.5.2. Política cambial e creditícia .................................................................... 277

4.5.2.1. Autonomia da política cambial ........................................................ 278

4.5.2.2. Política cambial e crédito de longo prazo ........................................ 280

4.5.2.2.1. Moeda forte .............................................................................. 280

4.5.2.2.2. Taxa de juros de longo prazo mínima ...................................... 281

4.5.2.2.3. Construção de uma moeda forte e de uma baixa taxa de juros de

longo prazo ............................................................................................... 284

4.5.2.2.4. Política cambial, competitividade e crescimento ..................... 285

4.6. POLÍTICA DE INFRA-ESTRUTURA ......................................................................... 288

4.7. POLÍTICAS DE DEMANDA E EMPREGO .................................................................. 291

4.8. POLÍTICA SOCIAL ................................................................................................ 294

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................... 296

BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................ 301

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1º Capítulo: Finanças Funcionais segundo Lerner

Keynes: “Sugerir à City de Londres uma ação social para o bem público é como discutir a Origem das Espécies com um bispo, sessenta anos atrás. A primeira reação não é intelectual, mas moral. É uma ortodoxia que está em questão e, quanto mais persuasivo os argumentos, mais grave será a ofensa.”

1.1. A motivação primeira das finanças funcionais:

“‘Fogo’, diz o velho provérbio, ‘é um bom servo, mas um mal mestre’. Isto é verdade não somente para o fogo, mas para todo instrumento que tenha sido projetado para ajudar o homem a alcançar seus fins. Quando o uso de algum instrumento se torna habitual, as pessoas tendem a esquecer os propósitos para que eles foram estabelecidos, os meios usurpam o status de fins, e nós freqüentemente temos o próprio fim sacrificado [em benefício] ao meio originalmente projeto para servi-lo. (...) A elevação do meio a um fim pode constituir a base da tragédia do fanatismo ou idolatria. (...) Na economia nacional nos temos visto isto na elevação do mecanismo de orçamento de um instrumento que tinha um papel a cumprir na saúde econômica em um princípio de equilibrar o orçamento em cujos pés a melhor saúde da economia pode ser oferecida como um sacrifício [em sinal] de devoção” (Lerner, 1951: 342).

A revolução keynesiana indicava novas esperanças para a solução dos

graves problemas econômicos e sociais no final dos anos 30. Mas naquele

momento ainda era uma teoria pouco difundida e muito controversa. De um

lado, Keynes sugeria políticas fiscais mais ativas, que, por acaso, se pareciam

com as empreendidas pelos países mais bem-sucedidos em reduzir o

desemprego, em especial, com as políticas encampadas por Roosevelt no

programa do New Deal.

Entretanto, tais políticas sofriam uma forte oposição nos EUA e em

outros lugares. Na própria academia não era fácil defender, por exemplo,

políticas de déficit público exercidas por longos períodos.

A política e a academia, naquela época, eram dominadas pela doutrina

que Lerner chamou de Finanças Saudáveis. As finanças saudáveis diziam que

os governos deveriam buscar decisivamente o equilíbrio orçamentário e

restringir a expansão do endividamento público. Essas doutrinas certamente

batiam de frente com as novas esperanças keynesianas. Para os keynesianos,

era necessário saber quando, como e em que montante seria possível expandir

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os gastos públicos para induzir a economia a sair da recessão e eliminar o

desemprego.

Provavelmente o principal objetivo de Lerner ao construir sua teoria das

Finanças Funcionais tenha sido mostrar quais seriam as reais limitações ao

gasto e endividamento públicos. Esse objetivo está relacionado à escolha do

nome dessa teoria. As Finanças Funcionais são, antes de tudo, uma crítica às

Finanças Saudáveis. Mas não apenas uma crítica à teoria econômica ortodoxa

em que se baseia as Finanças Saudáveis. Lerner visava criticar também a

incoerência dos keynesianos e população em geral quando acreditam ao

mesmo tempo nas Finanças Saudáveis e na possibilidade de desemprego

estável.

As finanças saudáveis só seriam uma política funcional, se fossem

válidas as premissas ortodoxas, em particular a tendência automática e rápida

para o pleno emprego. Se existe desemprego crônico, as finanças saudáveis

se tornam irracionais. Entretanto, os keynesianos, e mesmo Keynes, a

princípio, não percebiam claramente essa incoerência. Lerner completou a

revolução keynesiana ao tornar as teorias das finanças públicas coerentes e,

portanto, funcionais com a premissa de desemprego estável. As finanças

funcionais são apenas o keynesianismo levado às últimas conseqüências.

1.2. As Finanças Saudáveis

“A irresponsabilidade praticada hoje, em qualquer nível de governo, resultará amanhã em mais impostos, em menos investimentos, ou em mais inflação, que é entre os impostos, o mais perverso, pois incide sobre os mais pobres. O governo não fabrica dinheiro. Esta afirmação pode parecer óbvia para alguns. Mas não para aqueles que administram contas públicas gastando mais do que arrecadam. Deixando dívidas para seus sucessores e assumindo compromissos que sabem, de antemão, não poderão honrar. É esse tipo de postura, danosa para o País, que vai ser coibida pela Lei de Responsabilidade fiscal” (Martus Tavares, 2000)

1.

“A analogia pode ser usada como inspiração, não como argumento” (Lerner, 1951: 270).

“Como outras ‘verdades auto-evidentes’, o axioma é aceitável somente enquanto alguém não pensa em questioná-lo.” (Lerner, 1951: 344)

1 Discurso do economista e do Ministro do Planejamento, Martus Tavares, no ato de sanção da Lei de Responsabilidade Fiscal, em 04 de maio de 2000.

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A doutrina econômica ortodoxa, onde se fundamenta toda a defesa dos

chamados orçamentos “equilibrados”, se baseia na premissa de que a

economia está sempre em pleno emprego ou que ela tende automaticamente e

com a rapidez adequada para o pleno emprego.

Dessa forma, para que seja possível o aumento dos gastos públicos é

necessário que haja redução dos gastos privados de tal forma que os fatores

de produção que seriam utilizados na produção de bens e serviços para o setor

privado pudessem ser usados para produzir bens e serviços para o setor

público. A queda dos gastos privados ocorreria, mesmo que os gastos públicos

não viessem acompanhados por aumento dos impostos. Caso o “financiamento”

desse gasto não seja feito por meio de aumento dos impostos, a redução dos

gastos privados ocorrerá por meio do aumento da taxa de juros ou do “imposto

inflacionário”. Nessa perspectiva, o governo não pode aumentar o nível de

renda de longo prazo, reduzir a taxa de juros real e diminuir a relação dívida

pública/ base monetária. O governo, então, a não ser pela sua capacidade de

elevar a carga tributária, seria como qualquer outro agente econômico.

Se a economia está sempre no pleno emprego, a expansão de

quaisquer gastos implica na redução de outros ou no aumento no volume

trabalhado no presente e, provavelmente, uma proporcional redução no futuro.

Nessa situação, os gastos públicos sempre implicam em dilemas (trade-offs) e

os déficits possuem sempre um custo social.

Lerner chamou o arcabouço argumentativo que defende a necessidade

de orçamentos públicos com saldos nulos ou tendendo a zero de finanças

saudáveis, em referência aos próprios expoentes da mesma, que propõem que

seja “saudável” a manutenção de saldo nulos entre as contas de gasto e de

receitas fiscais dos governos.

1.3. Lerner e a teoria das finanças funcionais

Page 17: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

17

As Finanças Funcionais proposta originalmente por Abba Lerner é

“meramente a consciente adoção pelo governo da responsabilidade de

prevenção da inflação e [ do desemprego]” (Lerner, 1951: 136)

Para se compreender os instrumentos propostos pelo autor é

necessário, antes de tudo, reconhecer as conseqüências da liberdade e do

monopólio estatal de emissão de moeda.

Não há referências de economia com possibilidade de livre acesso à

emissão de moeda na civilização ocidental. Se qualquer um pudesse produzir

moeda homogênea a partir apenas do próprio trabalho, não haveria

desemprego2. Entretanto, o mesmo pode não acontecer se a oferta de moeda

é monopolizada, pelo governo, bancos ou mineradoras de ouro.

Não há, no mundo real, garantias de que todos que queiram trabalhar

conseguirão empregos. O emprego total depende no nível de gasto total. Mas

nada garante que o nível de gasto total será exatamente o necessário para

empregar todos os demandantes de postos de trabalho. O setor privado não

pode ser responsabilizado por não realizar um volume de gasto o suficiente

acabar com o desemprego. Dessa forma, nas sociedades modernas, “o

desemprego surge como conseqüência quando o governo gasta muito pouco”

(Wray: 210)

“Porque o público necessita do dinheiro do governo (...), ele vai querer fornecer coisas para o governo a fim de obter ‘aquilo necessário para pagar impostos’ [aneppi]. Assim como as pessoas lutariam para obter peles de castor se estas fossem o [aneppi] exigido, os cidadãos nas economias modernas esforçam-se para obter moeda a fim de pagar os tributos. Isso significa que o governo pode, se assim escolher, estabelecer os termos em que a moeda pode ser obtida (isto é, o esforço necessário para obtê-la). Não teria sentido para o governo impor um tributo e depois recusar-se a oferecer a moeda necessária, pois isso poderia significar a prisão dos cidadãos por evasão fiscal! No mínimo, o governo terá de assegurar a oferta de um montante de moeda igual às obrigações tributárias a longo prazo. Na verdade, provavelmente, poderia, sem perigo, fornecer mais moeda que o estritamente necessário para os tributos. Muitos cidadãos ficariam felizes de acumular pequenas reservas de moeda extra num dado ano, para o caso de ser mais difícil obter moeda nos anos seguintes, e também para o caso de

2 É preciso sublinhar que essa idéia nada tem em comum com a proposta ultra-liberal de propor que cada cidadão possa emitir sua própria moeda plenamente fiduciária. De acordo com a teoria cartalista, esse tipo de sistema não poderia funcionar, porque não haveria um motivo para a demanda primária de moeda dos diversos agentes, pois eles não cobram impostos. E se o governo aceitasse a moeda de qualquer um como pagamento de impostos, haveria fortes incentivos à super-emissão. E ainda que fossem criados mecanismos acessórios para tornar essa proposta viável, ela ainda seria concentradora de renda e poder, pois apenas bancos e grandes capitalistas poderiam emitir com liberdade moeda fiduciária confiável. Certamente os desempregados não poderiam. A moeda não seria homogênea, sua capacidade de manter poder de compra dependeria do seu emissor.

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perder algum dinheiro na troca. O caso ‘normal’, então, é o governo ‘incorrer em déficit’, isto é, fornecer mais moeda do que ele recolhe em tributos” (idem: 23).

O déficit público é fundamental para atender as demandas das pessoas,

bancos e empresas por moedas para transacionarem ou entesourarem3. Em

uma visão de finanças funcionais, o déficit público não é necessário

simplesmente para prover a demanda por moeda. Ele é necessário para prover

a “demanda” por renda dos desempregados.

Um desempregado sem patrimônio também “demanda moeda”. Mas a

menos que a falta de emprego, bens e capacidade de pagamento não seja

qualquer empecilho à obtenção de crédito, esse moeda só pode ser obtida

com renda monetária.

Os desempregados como um todo não podem por si próprios solucionar

seus problemas, pois o que podem oferecer – trabalho – já está com a

demanda completamente atendida. Para eles não resolve virar “camelô” ou

fazer artesanato em casa, a demanda por esses serviços ou bens é uma fração

relativamente estável da demanda agregada. Mas a demanda agregada não

pode ser aumentada sensivelmente pelos próprios desempregados.

Existe um nível de gasto na economia que gera pleno emprego. Mas,

como mostram as teorias keynesianas em suas várias vertentes, nada garante

que tal nível de gasto agregado possa ser alcançado automática ou

“naturalmente”. Volumes de gasto agregados inferiores ou superiores ao

requerido pela situação de pleno emprego podem muito bem ser estáveis ou

mesmo ser instáveis com tendência contrária à sugerida pela macroeconomia

ortodoxa.

Lerner (1951: 124-5) faz questão de ressaltar que mesmo se o setor

privado estivesse totalmente consciente da necessidade de manipulação do

gasto agregado, não seria possível manter a economia em pleno emprego sem

a ação pública. O interesse individual de gastar ou não gastar raramente vai

3 É preciso lembrar que o déficit público não é a única forma que o governo tem para oferecer moeda estatal para o setor privado. Ele também pode fazer isso comprando ativos do setor privado, sejam eles de emissão pública ou privada. Entretanto, se o governo mantiver o superávit fiscal indefinidamente, acabará comprando todos os ativos do setor privado. Nesse caso, a economia acabaria se tornando toda estatal (para espanto dos liberais defensores do superávit fiscal).

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19

coincidir com o interesse social de manter o pleno emprego e a inflação

controlada. Nessa situação, o governo não pode se eximir de sua

responsabilidade com essas duas importantes demandas coletivas. “A primeira

responsabilidade do governo (visto que ninguém mais pode assumir essa

responsabilidade) é manter a taxa total de dispêndio no país em bens e

serviços nem maior nem menor que a taxa que, a preços correntes, compraria

todos os bens que é possível produzir” (Lerner, 1941; apud. Wray, 1998)4.

As Finanças Funcionais partem do princípio de que o ajuste pelo

governo do nível de gastos da economia torna possível a manutenção do nível

de pleno emprego com taxas controladas de inflação. Dessa forma, a variável

chave5 da teoria das Finanças Funcionais é o gasto agregado. Controlando o

nível de gasto agregado, pode-se evitar simultaneamente ambos malefícios

macroeconômicos, inflação e desemprego.

Segundo Lerner (1951: 126), o governo possui 3 pares de instrumentos

para ajuste do nível de gasto agregado:

1) Comprar e vender bens

2) Pagar transferências e tributar dinheiro dos cidadãos

3) Emprestar e tomar emprestado dinheiro

Esses seis instrumentos são exaustivos. “Eles incluem tudo que o

governo pode fazer para influenciar ou compensar [faltas ou excessos em

relação ao] nível de gasto total” (idem: 127-8).

Todos esses instrumentos podem ser usados de forma independente.

Não há, a priori, qualquer necessidade de complementaridade entre esses

instrumentos. Todavia, as Finanças “Saudáveis” insistem em só pensar esses

instrumentos de forma combinada, a partir da “idéia de que o propósito de usar

um dos instrumentos seja tornar possível o uso de um outro instrumento,

usualmente [quando] esse último tende a neutralizar o efeito do primeiro [sobre

o gasto agregado]” (grifo nosso; idem: 130).

Por exemplo, as finanças “saudáveis” supõem que a tributação prévia ou

tomar dinheiro emprestado sejam necessários para a viabilização do gasto

público. Mas a proposição inversa – a tributação só deve ser feita, se

4 É interessante observar a forte oposição que existe entre essa noção de responsabilidade e a que está da Lei de Responsabilidade Fiscal e que é bem resumida no discurso de Martus Tavares citado na epígrafe da Introdução deste trabalho. 5 Ou meta intermediária na terminologia de Tinbergen (1967).

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20

acompanhada de gasto – também pode ser sugerida pelos seus defensores.

“Alguns escritores de finanças públicas vão tão longe a ponto de dizer que o

único propósito legítimo da tributação é obter dinheiro para o gasto do governo

e que a taxação por qualquer outro propósito é somente um tipo de perversão

ou uso impróprio dos instrumentos tributários, estigmatizados [nesse caso]

como ‘não fiscais’” (grifo nosso; idem: 130). Os defensores das finanças

saudáveis também podem vincular à tomada de empréstimos pelo governo

com gastos. “A noção de que a tomada de empréstimos pelo governo seja

inflacionária, o que é muito comum, deriva da combinação de emissão de

dívida com gastos governamentais” (idem: 132). De acordo com Lerner (idem:

128-9), essa necessidade de pensar de forma combinada as finanças públicas

gera confusão e distorção.

As Finanças Funcionais propõem a utilização de alguma combinação

dos seis instrumentos fiscais para alcançar o nível de gasto agregado que

permita a economia manter os objetivo de pleno emprego sem afetar o objetivo

de controle da inflação. Essa é a essência da proposta de Lerner.

Convém destacar que, para Lerner, o grau de emprego que é possível

atingir com essa política pode ser tanto o que o autor chama de nível de baixo

pleno emprego, quanto o nível de alto pleno emprego.

Lerner (1951) propõe esses dois conceitos para explicar a relação entre

nível de gasto, emprego e inflação. O nível de alto pleno emprego é definido

pelo ponto onde só existe o chamado desemprego friccional. O autor sugere

que nesse ponto o número de vagas de emprego abertas é igual ao número de

desempregados.

O nível de baixo pleno emprego é o que interessa às finanças

funcionais. Esse nível é determinado no ponto onde o crescimento da demanda

por trabalhadores acabará causando inflação de salários e preços. Na verdade,

para Lerner (1951) é possível que a economia ultrapasse o nível de baixo pleno

emprego sem que isso implique numa espiral inflacionária. Porém, esse seria o

máximo de emprego que se poderia atingir apenas com instrumentos atuam

sobre os gastos domésticos. Esses conceitos serão mais profundamente

discutidos no capítulo 2.

Em oposição às Finanças Funcionais, tem-se em geral o fetichismo do

orçamento “equilibrado”, proposto como objetivo primordial das Finanças

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“Saudáveis”. Apesar do fetichismo do discurso não acadêmico das finanças

públicas convencionais, na verdade, o orçamento “equilibrado” só poderia

mesmo ser tratado nas teorias acadêmicas como instrumento e não como fim.

Dessa forma, o orçamento “equilibrado” se opõe como meio aos três pares de

instrumentos fiscais citados por Lerner. A diferença conceitual fundamental

entre as duas abordagens está na teoria da inflação. Lerner não considera que

o orçamento equilibrado seja uma medida necessária e nem mesmo eficaz

contra a inflação.

Assim, podemos dizer que a teoria da inflação é também fundamental

para a compreensão do conceito de Finanças Funcionais e afastar qualquer

temor de que essas sejam inflacionárias. Não é demais lembrar que as

Finanças Funcionais têm no combate à inflação um dos seus dois objetivos

prioritários. Abandoná-la em prol do orçamento equilibrado pelo temor da

inflação seria como “sacrificar o objetivo em benefício de um alegado meio de

alcançar o próprio [objetivo]” (Lerner, 1951: 131).

Como vimos, as Finanças Funcionais propõem apenas a liberdade para

a utilização dos seis instrumentos fiscais disponíveis com os objetivos de

alcançar o pleno emprego e a estabilidade do custo de vida. Vimos também

que a proposta de Abba Lerner contrasta com a visão tradicional de finanças

públicas que tem como meta o orçamento “equilibrado”, como política

necessária de combate à inflação. Porém, a teoria que propõe a independência

dos seis instrumentos fiscais mostra que o déficit não é nem necessário e nem

suficiente para combater a inflação. Resumindo:

“Finanças Funcionais rejeitam completamente doutrinas tradicionais de “finanças saudáveis” e o princípio de tentar equilibrar o orçamento durante um ano solar ou qualquer outro período arbitrário. Em seu lugar, prescreve: primeiro o ajustamento do dispêndio total (por todos na economia, incluindo o governo) a fim de eliminar tanto o desemprego quanto a inflação, usando o dispêndio governamental quando o dispêndio total é muito baixo e a tributação quando o dispêndio total é muito alto; segundo, o ajustamento da quantidade de dinheiro e de títulos governamentais em poder do público, pela tomada de empréstimos ou pagamento de dívida, a fim de alcançar a taxa de juros que resulta no nível mais desejável de investimento; e, terceiro, a impressão, armazenamento ou destruição de moeda à medida que for necessário para implementar as duas primeiras partes do programa” (Wray, 1998: 41)

Esses princípios são suficientes para a compreensão básica das

Finanças Funcionais. Mas podemos ir além e conhecer mais nuances e

possibilidades dessa teoria.

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1.3.1. Lições de Lerner para as finanças públicas e política econômica

Nesta seção, pretendemos desenvolver um pouco mais profundamente

o pensamento de Abba Lerner. Para isso, vamos nos basear no trabalho de

Forstater (1999), que propõe 15 lições de Lerner para as finanças públicas e a

política econômica em geral.

“Lição 1: Pleno emprego, estabilidade de preços e um padrão de

vida decente para todos são metas macroeconômicas fundamentais

e é responsabilidade do Estado promover sua obtenção”.

Essa proposição pode parecer óbvia para alguns, mas certamente não é

para muitos, em particular para os defensores do laissez-faire. Para quem

aceita a premissa dos “mercados perfeitos”, ou para quem considera que a

intervenção pública tende sempre a ser desastrosa6, o Estado não deve

assumir de forma ativa essa responsabilidade, usando plenamente os poderes

de que dispõe.

Essa divergência é especialmente grave no que tange à meta de pleno

emprego. Os economistas ortodoxos não-keynesianos chegam ao ponto de

questionarem até a existência de desemprego prolongado, e, às vezes, até

mesmo a possibilidade de qualquer desemprego involuntário. O Estado não

pode assumir a responsabilidade sobre algum problema que não existe ou que

é apenas efêmero e auto-solucionável.

Lerner (1941) diz que essa posição significaria eximir a coletividade de

assumir o “volante da economia”. O pleno emprego, em particular, deveria ser

um objetivo a ser considerado com mais seriedade. Para o autor, “os ganhos

econômicos derivados do pleno emprego são enormes” (Lerner, 1951: 31-2).

“Isso inclui evitar perdas permanentes na produção de bens e serviços, mas

também custos sociais advindos de maior criminalidade, doenças, [etc]”

(Forstater, 1999: 1).

O pleno emprego aumenta a eficiência econômica ao permitir que os

trabalhadores tenham confiança em procurar outros empregos em que se

sintam mais realizados e onde possam utilizar melhor seus conhecimentos.

6 Ou que seja pior inclusive que as falhas de mercado.

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“Isso frequentemente significa mover de empregos com menor produtividade

para empregos com maior produtividade” (Lerner, 1951: 32).

No entanto, os ganhos sociais são muito mais importantes do que os

ganhos econômicos (Lerner, 1951: 33). Esses ganhos incluem a redução da

discriminação na contração de trabalhadores, maior estabilidade social e

política e maior confiança na democracia (Lerner, 1951: 31-7).

“Lição 2: As políticas devem ser julgadas pela sua habilidade em

alcançar os objetivos para que elas foram projetadas e não

qualquer noção sobre se elas são “saudáveis” ou se estão em

conformidade com os dogmas da economia tradicional”.

Esse é explicitamente o princípio metodológico das Finanças Funcionais.

“A idéia central é que a política fiscal do governo, seu dispêndio e tributação, sua tomada e amortização de empréstimos, sua emissão de nova moeda e sua retirada de moeda [do mercado] serão todos tratados tendo exclusivamente em vista os resultados destas ações na economia, e não em alguma doutrina tradicional estabelecida sobre o que é ou não saudável. Esse critério de julgamento somente pelos efeitos tem sido aplicado em muitos outros campos da atividade humana, onde ele é conhecido como o método da ciência em oposição à escolástica. O critério de julgamento das medidas fiscais pelo modo em que operam ou funcionam na economia nós podemos chamar de Finanças Funcionais (...). Isso significa que déficit, emissão de dívida, impressão de dinheiro etc, não são por si por próprios nem bons nem maus, eles são simplesmente os meios para alcançar os fins do pleno emprego e da estabilidade de preços” (Lerner, 1943: 354; apud Forstater, 1999: 2).

A teoria das Finanças Funcionais mostra que não há inerentemente

nada de bom ou ruim no volume de déficit, dívida pública, tributação, gastos.

Se o volume dessas variáveis “conflitam com os princípios das ‘finanças

saudáveis’ ou com o ‘equilíbrio’ do orçamento ou com a limitação ao

crescimento da dívida pública, tanto pior para esses princípios” (Lerner, 1951:

11; apud Forstater, 1999: 3).

“Lição 3: ‘Dinheiro é uma Criatura do Estado’”.

“De acordo com Knapp, os metalistas [e hoje os economistas ortodoxos] tentam ‘deduzir’ o sistema monetário ‘sem a idéia de um Estado’. Isso acredita ele, é um ‘absurdo’, porque ‘a moeda de um Estado’ é aquela que é ‘aceita nos guichês de pagamento dos tributos públicos’ (Knapp, 1924). É pois impossível separar a teoria monetária da teoria do Estado” (Wray, 1998: 43).

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“Knapp aceita como ‘moeda’ – exatamente como penso – qualquer coisa que o Estado se compromete a aceitar em seus guichês de pagamento [de tributos], seja ou não declarada de curso legal entre os cidadãos” (Keynes: 1930: 6-7).

Em uma economia normal funcionando bem, o dinheiro é uma criatura do Estado. Sua aceitação geral, que é seu atributo fundamental, decorre da sua aceitação pelo Estado. (tradução livre; Lerner, 1947; 313, citado por Forstater, 1999).

Defendemos que o déficit público não seja a causa da inflação, ou seja,

que o governo pode gastar mais do que arrecada sem ultrapassar suas “metas”

de inflação.

Aceita essa proposição, a pergunta que imediatamente vem à cabeça é:

“então, por que o governo cobra impostos das pessoas?”.

A resposta mais direta possível é: o governo cobra impostos das

pessoas para definir o que é moeda e criar a razão primária para que as

pessoas a demandem.

“O Estado moderno impõe e obtém pela força uma contribuição tributária

de seus cidadãos, e, importante, escolhe ‘aquilo que é necessário para pagar

[impostos (aneppi)]” (Wray, 1998: 22). O que ele definiu como aneppi será por

nomeação e de fato a moeda.

Se não houvesse impostos para pagar ou se os impostos fossem

cobrados em mercadorias ou em outras “moedas” que não as emitidas pelo

Banco Central, em algum tempo as pessoas iriam perceber que aqueles

pedaços de papel assinados e garantidos por aqueles austeros e confiáveis

presidentes de Banco Central não tinham nenhum valor, mesmo se o valor das

receitas do governo (cobradas em outras “moedas”) fossem muitas vezes

superiores a suas despesas. Nessa situação, uma tentativa mais generalizada

de especulação com algum ativo transformaria o valor da moeda em pó como

um passe de mágica.

O mesmo não poderia acontecer com uma moeda que fosse aceita

como pagamento de impostos. Se por acaso, as pessoas acreditarem

realmente que o governo não pode gastar mais do que arrecada e acharem

que os pedaços de papel denominados de dinheiro não têm valor intrínseco,

poderão tentar especular com outro ativo antes que “todos percebam que os

pedaços de papel não têm valor”.

Nesse caso, a tentativa de especular com mercadorias levará muito mais

a aumento da produção e dos impostos e menos em aumento da inflação. Se a

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especulação se concentrar em poucas mercadorias haveria aumento maiores

nos preços delas, na verdade, seria uma mudança de preço relativo. Mas o

impacto na inflação ficaria restrito ao peso de tais mercadorias no índice de

preços. Se a especulação se concentrar em muitas mercadorias o impacto

recairia quase exclusivamente sobre a produção, pelo menos enquanto a

economia não estiver em pleno emprego. Se a especulação recair sobre um

ativo financeiro qualquer, como ações, não haveria maiores impactos sobre a

inflação. Apenas se a especulação recair sobre moeda estrangeira, poderia

haver problemas sobre a taxa de inflação, mas essa relação será explicada no

segundo capítulo.

A moeda tem valor intrínseco, não como as mercadorias, mas como os

direitos de propriedade. Em última instância, se ninguém confiar nela, pelo

menos salva da prisão por sonegação aqueles que tiveram rendas monetárias

e ainda não depositaram suas obrigações fiscais.

O que o governo define como “aquilo necessário para pagar impostos” –

aneppi – terá valor. Os aneppis serão demandados pelas pessoas que

precisam pagar impostos e por aquelas que sabem que podem trocá-los por

bens e serviços oferecidos pelas pessoas que pagam impostos e pelas outras

pessoas que também sabem que os contribuintes demandam dinheiro etc.

Da mesma forma, se o governo escolhe outra coisa para ser aneppi,

essa coisa passará a ter valor, ainda que não possua qualquer valor de uso.

Enquanto isso, a antiga moeda aos poucos perderá completamente o valor; ou,

se for uma mercadoria com valor de uso, terá seu valor definido pelo custo de

produção mais a margem de lucro de seus produtores.

Provavelmente, a primeira apresentação completa dessa teoria foi

descrita pela abordagem cartalista desenvolvida por Knapp.

“Na abordagem cartalista, o dinheiro é uma criatura do Estado; ao menos no caso do dinheiro moderno, sendo difícil de ocorrer exemplos de dinheiro sem Estado. O Estado define dinheiro como aquilo que aceita nos guichês públicos de pagamento (principalmente em pagamento de tributos). Isto tem importantes implicações políticas. Uma vez que o Estado impõe um tributo aos seus cidadãos, pagável numa moeda sobre a qual tem um monopólio de emissão, ele pode influenciar o valor daquela moeda estabelecendo as condições sob as quais a população pode obtê-la. O governo não tem ‘necessidade’ do dinheiro do público para gastar; ao contrário, o público necessita do dinheiro do governo para pagar tributos. Isso significa que o governo pode ‘comprar’ qualquer coisa que esteja à venda em termos de seu dinheiro, apenas pelo fornecimento desse dinheiro”. (Wray, 1998: 38).

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Abba Lerner seguia a abordagem cartalista, como pode ser constatado

em seus escritos.

“O Estado moderno pode, em geral, tornar moeda qualquer coisa que escolha aceitável como moeda (...). É verdade que uma simples declaração de que isto ou aquilo é moeda não funcionará, mesmo se apoiada pela evidência constitucional mais convincente da soberania absoluta do Estado. Mas, se o Estado está pretendendo aceitar a moeda proposta em pagamento de tributos ou de outras obrigações para consigo, a mágica está feita. Qualquer um que tenha obrigações para com o Estado desejará aceitar os pedaços de papel com que pode pagar obrigações, e todas as outras pessoas desejarão aceitar estes pedaços de papel porque sabem que os contribuintes, etc, por sua vez, os aceitarão” (Lerner, 1947: 313; tradução livre).

Keynes também era um assumido seguidor da teoria cartalista de

Knapp. De acordo com Keynes (1930: 3, citado por Wray, 1998: 49), a “moeda

de conta” é o “principal conceito” de uma teoria monetária; o dinheiro de conta

“surge junto com as dívidas que são contratos de pagamento diferido, e as

listas de preços, que são ofertas de contratos para compra e venda”. Por sua

vez, “o próprio dinheiro, principalmente aquele com o qual é mantido um

estoque de poder de compra geral, deriva sua natureza das suas relações com

a moeda-de-conta, desde que dívidas e preços tenham sido primeiro expressos

em termos desta última” (idem). Mais adiante, esclarece a distinção entre

dinheiro e moeda-de-conta: “moeda-de-conta é a descrição ou denominação e

o dinheiro é aquilo que corresponde à descrição” (idem: 3-4).

Como Knapp, Keynes defende que o Estado determina tanto o que

serve como moeda-de-conta, quanto estabelece “a coisa” que será aceita como

dinheiro.

“O Estado, portanto, atua, em primeiro lugar, como a autoridade legal que obriga o pagamento da coisa que corresponde ao nome ou descrição nos contratos. Mas atua uma segunda vez quando, além disso, invoca o direito de determinar e declarar que coisa corresponde ao nome, e mudar sua declaração de tempos em tempos – quando, por assim dizer, ele invoca o direito de reeditar o dicionário. Este direito é invocado por todos os Estados modernos e vem sendo invocado há quatro mil anos pelo menos” (Keynes, 1930: 4; citado por Wray: 49).

O Estado “invocou o direito não apenas de impor o dicionário, mas

também de escrever o dicionário” (Keynes, 1930: 5; citado por Wray: 49-50).

“Em resumo, com a evolução do Estado moderno, o dinheiro de conta (‘a

descrição’) é escolhido pelo Estado, que é livre para escolher o que qualificará

como moeda (‘a coisa’ que corresponde à descrição). Isso vai além das leis de

curso legal – que estabelecem o que pode legalmente liquidar contratos – para

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incluir o que o Estado aceita em pagamento nos seus ‘guichês’ de pagamento”

(Wray: 52).

O Estado moderno escreve a descrição do que é dinheiro quando

denomina a obrigação tributária numa moeda-de-conta. E define “a coisa” que

corresponde à descrição quando decide que será aceita nos guichês de

pagamento públicos (aneppi). Mas ele exerce outro papel fundamental, pois é o

fornecedor exclusivo “da coisa”.

Assim, não apenas o governo pode gastar mais do que arrecada, mas

deve gastar mais do que arrecada e (em termos lógicos) gastar antes de

arrecadar.

“Lição 4: Tributação não é uma operação de financiamento”.

O propósito dos tributos não é realmente financiar o dispêndio, mas

remover renda excessiva do setor privado. Os impostos não servem para

financiar o Estado no sentido de recolher moeda que possa ser utilizada em

pagamentos, já que ele emite a moeda que usa em pagamentos. A importância

primária dos impostos é: (1) definir qual a unidade ou moeda de conta (real,

dólar etc.), (2) definir o que é o dinheiro que corresponde à unidade de conta

(aqueles pedaços de papel com determinadas características), (3) criar a razão

primária para a demanda por moeda nacional e (4) sustentar a razão para a

demanda por moeda pela criação de uma “dívida” flexível, não contabilizada e

crescente do setor privado (sob autoridade do Estado) com o Estado. É essa

“dívida” que garantirá, em última instância, que qualquer uma expansão na

oferta de títulos públicos decorrente de uma expansão nos gastos públicos terá

demanda e que todo crescimento econômico puxado pelo déficit público

(gastos) é sustentável desde que exista desemprego7, não importando qual

seja o tamanho da dívida governamental.

Na economia moderna, os gastos públicos não precisam ser financiados.

Eles próprios se financiam, pois são, a priori, diretamente e imediatamente uma

emissão monetária. Como vimos, os gastos públicos, ao contrário do que diz a

visão tradicional, vem historicamente e logicamente antes dos impostos, pois

as pessoas precisam de moeda para poder pagar seus impostos.

7 E desde que não comprometa a capacidade de sustentação da taxa de câmbio. Essa condição será explicada quando estivamos tratando explicitamente de uma economia aberta.

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Ao contrário do que ressalta o pensamento tradicional, o déficit público

não é só possível, mas também necessário. “Permanentes déficits

governamentais consolidados são a norma teórica e prática numa economia

moderna. Embora seja certamente possível realizar um superávit a curto prazo

(...), isto tem efeitos sobre a renda e os balanços que desatam poderosas

forças deflacionárias. Dadas as preferências usuais dos setor privado em

relação à poupança líquida8, crescimento econômico requer persistentes

déficits governamentais” (Wray, 1998: 94).

“[A] função mais importante [do déficit público] é ser o meio através do qual o poder de compra não gasto em consumo, nem reciclado enquanto renda pela criação privada de capital líquido9, é reinjetado enquanto poder de compra pelo governo, que toma emprestado e gasta. O poder de compra que não é reinjetado desta maneira se torna não-compra, não-venda, não-produção, e desemprego” (Vickrey, 1993: 1).

O aumento dos gastos públicos e, conseqüentemente, do déficit público

tem como função essencial a expansão dos gastos totais da economia quando

o nível de atividade não está suficientemente alto. Essa função é bem

desenvolvida pela teoria das Finanças Funcionais de Abba Lerner, que será

exposta mais à frente.

Mas o déficit público tem também uma importante função que talvez seja

menos conhecida. Os déficits acompanhados de emissão de moeda e mesmo

de títulos de dívida são fontes fundamentais de provimento de liquidez e

solvência para o sistema privado.

O crescimento econômico sustentável exige expansão das fontes de

liquidez. Na falta dessa, o crescimento econômico acabaria resultando em crise

financeira.

Em primeiro lugar é preciso reconhecer a inviabilidade completa de

políticas de superávit público permanente, ao menos em países que não

operam com significativos superávits externos permanentes.

“Se o governo fosse tentar realizar um superávit, o público descobriria que suas receitas de ‘moeda líquida’ seriam menores do que suas obrigações tributárias, requerendo que as famílias recorressem a seus estoques de moeda fiduciária (acumuladas a partir do dispêndio deficitário governamental e de compras públicas de ativos do passado) para pagar tributos. Eventualmente, como é natural, os estoques se esgotariam. Finalmente, o público apresentaria para pagamento títulos governamentais a vencer a fim de obter moeda fiduciária com que pagar

8 Poupança total menos investimento. Ou seja, superávit em conta corrente mais déficit público.

9 Ou seja, investimento privado.

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tributos, mas, de novo, isto está limitado à parcela do estoque de dívida pendente que está por vencer (ela própria uma função de déficits governamentais prévios e da estrutura temporal de vencimento da dívida). Neste ponto, a única fonte de dinheiro de curso forçado para pagar tributos é um novo dispêndio governamental (déficit) ou compras governamentais de ativos” (Wray, 1998: 100).

É, portanto, óbvio que políticas de superávit permanente são impossíveis

se não acompanhadas de superávits externos equivalentes. Mas podemos ir

além. Não apenas o superávit permanente é inviável, o chamado déficit público

é de fato necessário.

As empresas, bancos e famílias não podem aumentar indefinidamente

seus dispêndios via redução dos seus níveis de solvência ou liquidez

financeira. Se a liquidez atinge níveis críticos, o agente auto-restringe seus

gastos e investimentos ou é compelido a fazê-lo pelos credores. Se parte

significativa dos agentes se vê nessa situação, a economia entrará certamente

em recessão. A menos que existam outra fontes de expansão da demanda

agregada.

Existem diversas formas de medir a liquidez. A solvência a curto prazo

ou liquidez pode ser medida pelo saldo de tesouraria ou capital líquido10 sobre

o passivo.

Em uma economia fechada ou com déficit em conta corrente nulo, se o

governo mantém um déficit público também nulo, o crescimento econômico

tenderá a levar a uma piora nos índices médios de liquidez, porque ativos de

curto prazo são fontes de liquidez para empresas bancos e famílias, e o setor

privado não pode criar ativos de curto prazo sem criar também passivos11.

Se os agentes estiverem eufóricos com algum boom econômico, as

perspectivas para o futuro podem estar superavaliadas. Nesse caso, a piora

nesses índices de solvência poderia não ocasionar maiores impactos

imediatos. Porém, a tendência seria a crise financeira.

Na verdade, é bem provável que, na maior parte das situações, os

agentes resistam a piorar em demasia seus índices de solvência. Nesse caso,

o desejo de poupar deverá ser em média superior ao desejo de investir. De

10 Ativos de curto prazo menos passivo de curto prazo. 11 Praticamente a única exceção seria a valorização de ações em bolsa, mas devido ao risco desse tipo de investimento, eles não são considerados completamente como fontes de liquidez confiáveis para os momentos onde a liquidez se mostra fundamental, isto é, nos momentos de crise econômica.

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fato, essa parece ser a situação mais comum, pois boa parte dos agentes tem

naturalmente o desejo de melhorar seus índices de solvência e, não deve ser

um equívoco supor que em média o resto dos agentes não deseja reduzi-los, a

não ser que a capacidade de alavancagem financeira dos bancos, das famílias

e das empresas esteja sub-aproveitada.

Assim sendo, é muito provável que o setor privado deseje em média

poupar mais do que deseje investir. Se o déficit público e externo forem nulos,

essa atitude em algum momento levará necessariamente a reduções dos

gastos privados período a período, conduzindo a economia a uma recessão.

Dessa forma, o déficit governamental é fundamental para manter os índices de

liquidez e solvência da economia, e consequentemente a sustentabilidade dos

gastos privados.

“Se o governo deixar de preencher o hiato e de atender à demanda por ativos através da emissão de um volume adequado de títulos, a tentativa dos indivíduos de adquirir ativos através do não-gasto [poupança] causará uma redução nas vendas, investimento temporário em estoques excedentes, cancelamento de encomendas, desemprego e redução do produto nacional e da renda. Isto pode ser parcialmente compensado pela elevação de valor dos ativos, levando a um certo volume de aumento nos gastos vindos dos ganhos de capital, mas a “poupança” incorporada nestes ganhos de capital não envolve a criação de capital novo ou o emprego de indivíduos na construção civil. A redução das taxas de juros poderia a princípio elevar tipos de investimento intensivos em tecnologia poupadora de trabalho, mas após o estímulo inicial o efeito sobre o emprego tende a ser negativo. É pouco provável que haja investimento ampliador de capacidade, mesmo com reduzidas taxas de juros, caso o mercado para o produto não exista. Existe um sério perigo de que a elevação dos preços dos ativos possa criar uma bolha de valores insustentável, que corre o risco de estourar desastrosamente, como aconteceu em 1929 após os superávits públicos dos anos anteriores. Cedo ou tarde uma redução na produção e na renda nacional vai acontecer, até que a redução na renda reduza a demanda por ativos a um nível compatível com a oferta. Reduzir o “déficit” pode reduzir a dívida do governo, mas reduz também a oferta de ativos que as pessoas querem adquirir para prover a sua necessidade de segurança. Reduzir o “déficit” não melhora a herança real deixada para o futuro; ao contrário, deteriora esta herança, deixando um legado de trabalhadores inexperientes, infra-estrutura ineficiente, e investimentos em capacidade reduzidos por causa da reduzida demanda pelos produtos, para não falar do impacto do desemprego quanto à saúde, à delinqüência e aos lares desfeitos. O “déficit” não é nem calculado numa base empresarial. Não faz distinção entre os itens de custeio e os da conta de capital. Se a GM, a AT&T e as famílias tivessem sido compelidas a “equilibrar seu orçamento” calculado da forma como o orçamento federal é calculado, teríamos agora muito menos automóveis, telefones, e casas” (Vickrey, 1993: 1).”

Podemos assim concluir que os déficits públicos pela emissão de moeda

ou mesmo de títulos de dívida são fontes fundamentais de liquidez para o setor

privado.

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Ao contrário do que comumente se pensa, a política monetária não

cumpre esse papel. Nas suas formas mais tradicionais essa política apenas

troca ativos líquidos por outros, ou seja, não muda significativamente as

condições de solvência e liquidez do setor privado. Para melhorar realmente a

liquidez, é necessário aumentar a relação entre ativos líquidos e passivo dos

agentes em geral. Isso significa que é preciso aumentar as rendas de uns sem

reduzir a liquidez de outros. Apenas o déficit público, o superávit externo e uma

aquisição líquida de ativos privados pelos bancos podem fazer isso. Nesse

último caso, entretanto, se os bancos assim procederem, sem correspondente

aumento do déficit público ou saldo em conta corrente, estariam piorando seus

indicadores de solvência, pois tanto o indicador ativo/patrimônio líquido, quanto

o indicador ativo/títulos públicos teriam se deteriorado.

“Lição 5: Emissão de dívida pública não é uma operação de

financiamento”.

“O governo só deveria tomar empréstimo em moeda se fosse desejável que o público devesse ter menos moeda e mais títulos governamentais” (Lerner, 1943: 40, citado por Wray, 1998: 95).

Para as finanças funcionais, a emissão de títulos públicos tem a função

de oferecer um ativo líquido remunerado como alternativa de aplicação de

parte da riqueza do setor privado e definir sua taxa de rendimento. Essa

política permite que o governo possa influir sobre as condições de

financiamento e aplicação de capital, portanto, sobre as condições de

rentabilidade do setor privado e suas disposições de gasto em consumo e

investimento. A política monetária influencia o setor privado na medida em que

manipula a taxa de juros. Na lição 7, será explicado como a política monetária

determina a taxa de juros.

“Lição 6: O propósito primário da tributação é influenciar o

comportamento do público”.

“Um interessante corolário é que a tributação nunca deve ser estabelecida apenas porque o governo precisa fazer pagamentos monetários (...) Tributação deveria, pois, ser imposta somente quando é desejável que os contribuintes

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tenham menos moeda para gastar” (Lerner, 1943: 40, citado por Wray, 1998: 95)

Como vimos, a tributação tem a função de fundar e manter a demanda

por moeda. Mas ela pode influenciar o comportamento dos cidadãos de outras

formas. Uma das mais importantes e que é essencial para as Finanças

Funcionais é alterar o nível de gastos privados, via redução da acumulação de

riqueza líquida disponível dos contribuintes.

A possibilidade de redução do poder de compra do setor privado permite

ao governo reduzir a demanda agregada total sem ser obrigado a reduzir

gastos públicos em volumes superiores aos desejáveis.

A tributação também pode ser um instrumento imprescindível em

políticas de distribuição de renda e como formas de induzir determinados tipos

de comportamento pelo setor privado.

“Lição 7: O propósito primário da venda de títulos de dívida pelo

governo é regular a taxa de juros no overnight”.

A primeira coisa que precisa ser compreendida sobre a política

monetária é a importância e a função do dinheiro estatal. O dinheiro estatal é o

objeto das reservas bancárias. Ele é constituído por papel-moeda e depósitos

dos bancos no Banco Central. O outro tipo de dinheiro são os depósitos à vista,

que é o dinheiro criado pelos bancos.

Para o público não faz muita diferença entre o dinheiro estatal e os

depósitos à vista, porém, para os bancos, há uma grande diferença.

Normalmente as despesas dos bancos, suas aquisições de títulos de dívida

privados e ativos em geral são supridas por emissão de cheques contra si

próprios ou registro de novos depósitos na conta de terceiros. Assim, toda vez

que fazem pagamentos ao público, os bancos emitem moeda.

Para o público, os depósitos emitidos pelos bancos são moeda como

outra qualquer. Mas para os outros bancos e para o governo não são. Há

situações em que os bancos não podem fazer pagamentos simplesmente

emitindo e precisam de moeda estatal. Essas situações são quando: (1) o

público saca dinheiro do banco, (2) o banco ou o público fazem algum

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pagamento ao governo e (3) quando o público deposita o cheque do banco em

outro banco.

Em todas as três situações o banco é obrigado a entregar moeda

estatal, se ele não o faz, estará sujeito a punições do banco central ou perda

de confiança do público, que poderá levar a uma fuga de depósitos e à possível

falência do banco.

Dessa forma, os bancos procuram sempre por iniciativa própria manter

um volume mínimo de reservas de moeda estatal em seus ativos para evitar

essas situações. Esse volume mínimo é geralmente uma proporção fixa em

relação aos depósitos do banco. Ademais, os bancos são comumente

obrigados a manter um certo volume mínimo de depósitos no banco central em

proporção fixa ao depósitos detidos por seus clientes. Assim forma-se o

chamado sistema de reservas fracionárias, onde as reservas detidas pelos

bancos são uma fração dos depósitos. A relação entre depósitos e reservas é

chamada também de alavancagem. Como os novos empréstimos concedidos

aumentam os depósitos, eles também aumentam a demanda por reservas para

que seja mantida a mesma alavancagem.

A teoria do multiplicador monetário supõe que o banco central fixa o

volume de reservas e os bancos vão emprestando até que seus depósitos

atinjam o nível máximo permitido pelo sistema de reservas fracionárias.

Entretanto, não é isso o que acontece no mundo real. Os bancos sabem

por experiência diária que, mesmo estando operando no limite da sua

alavancagem, podem oferecer, sem grandes problemas, empréstimos a bons

clientes às taxas fixadas pela sua política de crédito.

Nesse caso, ao fazer isso, os bancos ultrapassariam o nível de

alavancagem desejado. A solução é tomar pelo interbancário reservas

emprestadas dos outros bancos. Essas reservas são uma fração do

empréstimo concedido e geralmente pagam taxas de juros inferiores aos

empréstimos feitos pelos bancos. Portanto, isso, a princípio, não causaria

maiores problemas de liquidez ou rentabilidade12.

Os bancos que tivessem reservas ociosas estariam ansiosos para

emprestá-las a taxas superiores à remuneração dos depósitos no banco

12 Desde que o banco não estivesse com exagerado descasamento de prazos entre seus ativos e passivos.

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central. Assim, diariamente, os bancos que concederam relativamente menos

crédito, emprestam reservas para os que concederam relativamente mais

crédito.

Há, porém, um problema. Nada garante que a demanda por reservas

será diariamente igual à oferta de reservas. Por um lado, as reservas recebem

pouca ou nenhuma remuneração, o que faz com que os bancos desejem

mantê-las ao mínimo. Por outro, os bancos tem que preservar esse mínimo,

por exigência do banco central ou para se manterem confiáveis para o público

e outros bancos. O sistema opera então sempre “no fio da navalha” e

raramente a demanda por reservas se iguala à oferta.

Por não emitirem a moeda estatal, os bancos dependem do banco

central para manter seus requerimentos de reserva. Sem intervenção do banco

central, se a demanda por reservas for superior à oferta, o sistema entraria em

colapso. Os bancos com falta de reservas estariam buscando

desesperadamente quem poderia oferecê-las e estariam aceitando taxas de

juros cada vez maiores para quem pudesse emprestar seu dinheiro estatal.

Mas não haveria ofertantes suficientes. O resultado disso poderia ser a

insolvência do banco ou mesmo uma séria crise bancária.

O banco central certamente não deseja uma crise bancária. Mas esse

tipo de crise é evitado normalmente e trivialmente pelas políticas corriqueiras

da “autoridade monetária”.

O principal instrumento de ação do banco central sobre o nível de

atividade, sobre a inflação, sobre o risco de crise bancária e outras variáveis

econômicas é a taxa de juros de curto prazo. O banco central pode emitir

moeda e vender títulos próprios ou do Tesouro em qualquer volume que quiser.

Assim a autoridade monetária tem interesse e poder para fixar a taxa de juros.

Faz então todo sentido que defina uma meta de taxa de juros que

precisa ser cumprida diariamente. Se faltam reservas no sistema, os bancos

tentam tomar emprestado no interbancário e acabam puxando as taxas de

juros para cima. Em resposta, o banco central passa a comprar títulos públicos

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até que a demanda por reservas seja atendida e, portanto, acabe a pressão por

aumento da taxa de juros 13

.

Mas pode haver também sobra de reservas. Nesse caso, não há risco

de crise ou de elevação da taxa de juros. Na verdade, ocorrerá o contrário.

Como as reservas têm uma remuneração nula ou muito baixa, os bancos

oferecerão suas reservas excedentes para empréstimo. Como não existiria

demanda para todas as reservas ociosas, a taxa de juros cairia imediatamente

para virtualmente zero.

Porém, como vimos, o governo possui uma meta de taxa de juros de

curto prazo. Se a taxa cai abaixo da meta, o governo buscará vender títulos até

que o excesso de reservas seja drenado e acabe a pressão para redução da

taxa de juros.

Dessa forma, a razão de existência dos títulos públicos é a viabilizar a

manipulação e a fixação da taxa de juros e, assim, não apenas gerenciar o

nível de gasto privado, mas também ter controle sobre o risco de booms e

crises liquidez.

Os governos costumam fixar apenas as taxas de juros de curto prazo,

mas podem também fazer o mesmo para as taxas de longo prazo. Entretanto,

fixar taxas de longo prazo é considerado uma política “muito intervencionista”

no mundo atual. Mas a prática, na verdade, não é muito diferente disso.

As secretarias do Tesouro dos países definiriam implicitamente uma

faixa de variação para o diferencial entre as taxas de curto e de longo prazo. E

só vendem títulos a longo prazo quando conseguem vender dentro da faixa de

variação. Se necessário pedem ajuda do banco central para tentar reduzir os

juros futuros. Se mesmo assim os juros de longo prazo se mantiverem

elevados, o Tesouro deixa de vender títulos a longo prazo e, portanto, com a

oferta reduzida, os juros futuros, ou de longo prazo, tendem a ser reduzir; pois

eles são uma tentativa de adivinhar os juros de curto prazo no futuro com o

acréscimo de um normalmente pequeno componente de risco. Para agilizar

esse processo, alguns tesouros nacionais vendem títulos de longo prazo com

instrumentos de recompra, impondo assim um teto para os juros de longo

prazo.

13 O Banco Central pode também oferecer reservas de outras formas, como via redesconto, ou reduzindo as exigências de depósito compulsório.

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Concluímos assim que o governo é o único que pode oferecer ao

mercado a moeda que esse precisa crescentemente com o aumento do nível

de atividade.

“É fácil ver que somente o governo pode ser um ofertante ‘líquido’ de moeda. (...) Cada criação privada de moeda efetuada por alguém é contrabalançada pela criação de obrigação privada igual. Por exemplo, toda vez que um banco cria um depósito à vista (moeda), isto é lançado na conta do depositante como um ativo, mas é uma exigibilidade do banco. O depósito, por sua

vez, é criado pelo banco na medida em que compra um ativo – tipicamente o IOU14

de um

tomador. Moeda bancária é uma moeda ‘interna’; embora seja um ativo do detentor (ou depositante), é contrabalançada pela exigibilidade do banco e nunca pode ser um ativo líquido para o setor privado [como um todo]. Pagamentos que usam moeda bancária fazem-na mudar de bolsos mas a deixam intacta exceto (1) se um empréstimo bancário é pago, ou (2) se um cheque bancário é apresentado ao caixa, ou (3) se são feitos pagamentos ao governo. Em todos esses três casos, a moeda bancária é destruída; os últimos dois casos requerem uma moeda de fora, governamental. Quando as famílias usam depósitos bancários para pagar tributos, o resultado é uma drenagem na compensação, de tal forma que os bancos não podem satisfazer os requerimentos de reservas. As taxas de juros de overnight (nos Estado Unidos, a taxa dos fundos do FED) se elevam enquanto os bancos tentam desesperadamente satisfazer os requerimentos legais; dado o excesso de demanda por reservas e uma elasticidade de demanda muito próxima de zero (visto que os requerimentos devem ser satisfeitos), poderia seguir-se uma interrupção do mercado (com demanda mas sem oferta). O banco central nesse ponto teria de intervir para proporcionar as reservas de moeda fiduciária requeridas. O procedimento mais provável seria engajar-se em compras de títulos governamentais no mercado aberto” (Wray, 1998: 98-9).

Por último, entendida a importância da gestão fina das reservas

bancárias, convém notar que, ao contrário do que tentam sugerir os defensores

da “independência” do Banco Central, esse invariavelmente agirá

coordenadamente com o Tesouro.

Os defensores da “independência” do Banco Central, em geral,

acreditam que a emissão monetária e principalmente o déficit público por

emissão monetária sejam necessariamente inflacionários.

Eles estão supostamente preocupados em impedir que o governo se

financie, como dizem, “inflacionariamente” com emissão. Por isso, propõem

que o Tesouro seja impedido de emitir e o governo seja impedido de pressionar

o Banco Central a comprar esses títulos diretamente do Tesouro, pois se

houvesse déficit público essa medida seria supostamente inflacionária.

Entretanto, parece que os monetaristas não compreendem as relações

fundamentais entre o dinheiro estatal, o dinheiro bancário e as políticas

14 I owe you. Devo-lhe.

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monetárias e fiscais. A independência administrativa do Banco Central não

pode impedi-lo de acomodar a política fiscal do Tesouro.

Diferentemente do que parece sugerir a visão tradicional, é óbvio que o

Tesouro modifica a base monetária e portanto as reservas bancárias, além de

modificar a demanda por essas reservas. É preciso ressaltar ainda que o

Tesouro modifica as reservas bancárias, mesmo operando com déficit zero,

porque as despesas fiscais raramente se igualam todos os dias às receitas

fiscais. Apenas como exemplo, como afirma Wray (1998), as despesas do

governo americano são bem distribuídas durante o ano, enquanto as receitas

estão fortemente concentradas no dia 15 de abril.

Dessa forma, se o Banco Central não agir complementarmente e

acomodar as operações do Tesouro, não seria possível definir meta para a

taxa de juros e essa variaria diariamente e de forma muito acentuada, tornando

altíssimo o risco de aguda crise bancária. Ou seja, é impossível a um Banco

Central “independente” se abster de acomodar as operações do Tesouro.

“Em qualquer caso, como o governo é o único ofertante de moeda fiduciária, não pode receber em tributos uma moeda que não forneceu aos mercados privados. A fonte original de toda moeda fiduciária deve ser o governo (consolidado), e a coordenação entre o Tesouro e o Banco Central é exigida para manter as reservas. Se não fosse pelo efeito do dispêndio governamental sobre as reservas bancárias, não haveria necessidade de vincular o dispêndio a transferências provenientes de contas tributárias; a [possível] coincidência no tempo de ‘receitas’ tributárias e dispêndio governamental (ou operações de mercado aberto do banco central) não é uma indicação de uma operação de ‘financiamento’, mas é, isto sim, uma exigência para manter a estabilidade no mercado de reservas” (Wray, 1998: 98).

“Lição 8: A venda de títulos seguem, ao invés de preceder, os

gastos do governo”.

Todo gasto público é realizado com dinheiro. Para quem vende um

serviço ao Estado não faz diferença, se esse dinheiro foi recolhido por impostos

ou emissão de dívida ou se foi simplesmente emitido. O pensamento ortodoxo

tradicional diria que essa operação causaria inflação. No próximo capítulo

desenvolveremos porque Lerner considera que essa pressuposição é

equivocada.

Se o governo precisa gastar, simplesmente emite dinheiro. Essa

emissão implica em aumento da reserva de caixa dos bancos e muito

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provavelmente implicará em pressão no sentido da redução da taxa de juros.

Dessa forma, se o governo desejar manter a taxa de juros fixa, terá que vender

títulos para o setor privado. Portanto, a emissão de dívida tende a seguir a

expansão dos gastos públicos e nunca o contrário.

“Lição 9: O ato de ‘Imprimir dinheiro’ em si mesmo não tem

absolutamente nenhum impacto na economia”.

Nas Finanças Funcionais a emissão líquida de moeda é apenas uma

conseqüência residual dos instrumentos fiscais. Mas sua possibilidade é

fundamental para a ampla autonomia desses instrumentos. Nesse sentido, a

emissão de moeda é simplesmente uma conseqüência dos instrumentos

utilizados para se atingir as metas sociais da ação pública, e não uma atitude

deliberada dos governantes.

Para Lerner, há seis instrumentos fiscais que tem impacto sobre a

economia: tributação e transferências, compra ou venda de bens, tomar ou

emprestar dinheiro. “Imprimir dinheiro” não pode ser um ato independente

desses, ele “é completamente subsidiário aos seis instrumentos fiscais”

(Lerner: 1951: 132). “A criação de dinheiro não tem efeitos sobre a economia

enquanto permanecer na casa da moeda. É somente quando o dinheiro entra

em circulação na economia [por via dos instrumentos fiscais] surgem seus

efeitos. Dinheiro recém criado e mantido trancado é como se nunca tivesse

sido criado” (idem). “A impressão de dinheiro não é um instrumento de política.

É apenas um servo das políticas” (Lerner, 1944: 312-4; apud Forstater, 1999:

4). “Todas as decisões de qualquer importância são feitas quando é decidido

aplicar os instrumentos fiscais (...). Se quaisquer dos instrumentos envolvem o

pagamento de dinheiro (...),os efeitos são justamente os mesmos se o dinheiro

pago estava previamente guardado no Tesouro ou se ele teve que ser

impresso” (Lerner, 1951: 133; apud. Forstater, 1999: 5).

“Lição 10: Sem uma política de pleno emprego, a sociedade não

pode se beneficiar do avanço de tecnologias poupadoras de

trabalho, o que é eficiente se torna ineficiente. Com uma política de

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pleno emprego, técnicas poupadoras de trabalho tornam-se

verdadeiramente benéficas para a sociedade”.

Em uma situação de pleno emprego contínuo, sempre que forem criadas

formas mais eficientes de produção, que economizem de alguma forma mão-

de-obra, a sociedade como um todo ganha. Mas quando o governo permite a

manutenção do desemprego, isso não acontece. “Lerner sugere a possibilidade

de que, ao invés de produzir a mesma quantidade de produção com menor

número de trabalhadores, a sociedade poderia produzir mais com o mesmo

número de trabalhadores” (Forstater, 1999: 5).

Lerner (1951: 144) propõe que a simples mudança para técnicas menos

intensivas em trabalho – e que, portanto, podem gerar o mesmo tanto de

produção com menor número de trabalhadores – não tende a gerar um

crescimento da demanda necessária para vender todo o potencial adicional de

produção. Nesse caso, haveria maior desemprego, que significa desperdício de

recursos e maior miséria, ao invés de maior eficiência (Lerner, 1951: 144).

“Lição 11: Sem uma política de pleno emprego, um país pode ser

prejudicado pelos resultados do seu saldo comercial. Com uma

política de pleno emprego, não há necessidade de preocupação por

se estar importando muito relativamente às exportações”.

Consideramos que essa proposição é plenamente válida para os

Estados Unidos e talvez mesmo para países que são importantes credores

internacionais ou que são capazes de gerar com facilidade, em situação de

pleno emprego, saldos comerciais positivos com relativamente reduzidas

desvalorizações cambiais. Porém, é preciso ter cuidado com essa afirmação,

pois pode ser incoerente com a idéia de restrição externa. Um dos principais

objetivos dessa tese é mostrar que essa conclusão não é geral. No capítulo 2,

serão apontadas as possíveis limitações da visão de Lerner nesse aspecto. No

capítulo 4, buscar-se-á adaptar a teoria das finanças funcionais para que possa

ser aplicável a situações de restrição externa relevante.

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“Lição 12: São contra-produtivas as tentativas de argumentar que o

déficit e a dívida pública não são tão grandes quanto parecem, ou

que se nós os medirmos de forma diferente ou se mantivermos uma

conta de capital [no orçamento público], [ver-se-ia que os montantes

dessas variáveis] não são realmente tão ruins”.

Para Lerner as tentativas de contemporizar com as Finanças

“Saudáveis” ou as teorias em que se baseiam dificultariam a difusão e a

compreensão das idéias das Finanças Funcionais. Essa contemporização

poderia se dar de duas maneiras.

A primeira seria mostrando que a contabilidade usada normalmente para

calcular o chamado déficit público está equivocada. De fato, Lerner tinha

consciência do equívoco da contabilidade pública tradicional, mas ele

ressaltava que mudanças nas regras da contabilidade não são nada além de

mudanças de nomes. Em si elas não mudariam significativamente a visão das

pessoas sobre a verdadeira natureza das finanças públicas. Para Lerner (1951:

15), os que tentarem aplacar preocupações sobre o déficit ou a dívida

governamental, na verdade estariam prejudicando sua própria posição como

“proponentes da prosperidade”. “Um tipo de timidez fazem eles se esquivarem

de dizer qualquer coisa que possa chocar os respeitáveis defensores da

doutrina tradicional (...), [o que] freqüentemente prejudica sua causa”. (idem).

Segundo Forstater (1999: 5), ainda piores para Lerner (1951: 16), seriam

aqueles que concordam com os princípios das Finanças Funcionais, mas não a

defendem porque acham que não pode ser compreendida pelo público, ou

aqueles que a consideram uma teoria razoável, mas desconfiam que deve

existir alguma coisa errada que eles não podem perceber e esperam, assim,

que um economista realmente “prestigiado” defenda tal teoria para se sentirem

seguros. Para Lerner, essa situação se parece com a parábola em que

ninguém diz que o ‘Rei está nu’. “A diferença entre nossa situação presente e

aquela da história é que não é o rei que está nu, mas o povo, que

periodicamente está sem roupas, sem comida, inseguro e descontente” (idem;

ênfase no original).

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“Lição 13: Quando há desemprego, postos de trabalho e moeda15 –

e não recursos e bens – são escassos”.

Em uma situação de desemprego, “o que é escasso é o dinheiro. A falta

de dinheiro para gastar em bens é o que mantém desempregados os recursos

para produzir mais bens. Além disso, o trabalho, ao invés de ser um fardo, é

desejado mais do que qualquer coisa, porque a alternativa não é usufruto do

lazer, mas o sofrimento do desemprego e da privação. Certamente, se as

pessoas pudessem obter renda sem ter que trabalhar não haveria grande

objeção (embora alto-respeito em se sentirem membros úteis da sociedade (...)

[não deva ser] subestimado). Mas é somente encontrando trabalho que eles

podem obter a renda que eles necessitam” (Lerner, 1951: 147-8).

“Lição 14: Finanças Funcionais não é uma política, mas um

arcabouço dentro do qual todo um conjunto de políticas pode ser

conduzido”.

As Finanças Funcionais não defendem uma política específica. Não

defende grandes déficits, nem pequenos, nem nulos. “As Finanças Funcionais

são mais uma abordagem geral dentro da qual uma série de políticas podem

ser conduzidas” (Forstater, 1999: 6). As políticas reais que seriam adotadas a

partir dessa abordagem depende das circunstâncias existentes. “As Finanças

Funcionais são uma perspectiva em que o que importa são os efeitos das

políticas, as políticas em si mesmas são meramente meios” (Fostater, 1999: 6).

“O que as Finanças Funcionais advogam antes de tudo e principalmente que as políticas devem se basear na compreensão do sistema monetário e financeiro em que nós vivemos, e não alguma visão idealizada de algum outro sistema, ou algum sistema que pode ter existido em algum outro tempo. Por exemplo, se as políticas fiscais e monetárias são formuladas como se nós estivéssemos no padrão-ouro, nós não somente sacrificaríamos imensos benefícios em potencial, nós poderíamos sujeitar nós mesmos a um grave perigo. Você não pode, e não deve, conduzir um sistema de moeda fiduciária pela lógica de um sistema de padrão metálico” (Fostater, 1999: 6).

15 Escassez de moeda significa em geral escassez de renda monetária.

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42

“Lição 15: Para alcançar o [mais alto nível de] pleno emprego,

gastos do governo podem ter que incluir criação de trabalho direto”.

Como veremos no próximo capítulo, Lerner (1951) cria dois conceitos de

pleno emprego, baixo e alto. O baixo é definido pelo nível de emprego máximo

que não gera aceleração da inflação. O alto é o nível em que só existe

desemprego friccional, ou onde o número de vagas de trabalho abertas é igual

ao número de desempregados por período.

Em ambos os casos, há ainda desempregados. Muito provavelmente, o

oferecimento pelo governo de trabalho aos desempregados é a forma mais

viável e socialmente mais interessante de fazer a economia ultrapassar o nível

de baixo desemprego sem aumentar a inflação e reduzindo a necessidade de

relocalização de trabalhadores na situação de alto desemprego. Se o governo

oferece emprego aos desempregados, ele poderá resolver o problema da falta

de trabalho e renda sem ter que puxar a demanda da economia a ponto de

faltar trabalhadores para um número significativo de segmentos produtivos, o

que causaria aceleração da inflação.

1.3.2. Limites aos estoques de riqueza em papéis de dívida pública?

“Uma dívida nacional, se não for excessiva, seria para nós um

verdadeiro tesouro” (Alexander Hamilton, século XVIII16).

“Nenhuma nação pode deixar de ter dívida [porque] uma dívida nacional é um título nacional” (Thomas Phaine, 1776

17)

As teorias tradicionais costumam acreditar que exista um determinado

limite arbitrário para a dívida pública, quando medida em relação ao PIB.

Assim, propõe-se a doutrina do orçamento “equilibrado”. “De acordo com as

finanças “saudáveis” a tributação é a forma normal e apropriada para o governo

para obter o dinheiro que ele precisa, tomar emprestado é só para emergências

e imprimir dinheiro é impensável” (Lerner, 1951: 270).

16 Considerado um dos próceres mais talentosos da nascente nação norte-americana: um dos seus Pais Fundadores. (...) tornou-se o primeiro Secretário do Tesouro dos Estados Unidos.

17 Um dos pais fundadores dos EUA.

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43

Segundo Lerner (idem) essa forma de pensar se baseia na analogia com

o indivíduo. Como se a coleta de impostos pelo governo fosse tomada como

correspondente os rendimentos obtidos pelas pessoas. Esse é um argumento

apenas analógico, e como tal, não pode ser considerado como cientificamente

aceitável, segundo Lerner (idem). Principalmente nesse caso, pois o

funcionamento da dívida pública em moeda nacional é completamente

diferente das obrigações dos indivíduos, pois, como vimos, a emissão de dívida

pública não tem a função de financiar o Estado.

Essa analogia tem valia como inspiração apenas para o caso da dívida

externa dos países. “A analogia apropriada com a dívida pessoal é a dívida

internacional” (Lerner, 1951: 273). Paradoxalmente, os defensores das finanças

saudáveis geralmente não estão preocupados com a dívida externa. Alguns, ao

contrário, acham até que o acúmulo de dívida externa seja positivo para o

crescimento dos países, pois significaria a “atração” de que eles chamam de

“poupança externa”.

Na teoria das Finanças Funcionais, a tributação só deve ser adotada se

ela tiver alguma utilidade ou função racional justificável. Obter dinheiro não

pode ser função da tributação, pois o governo pode fazer isso de forma mais

fácil e menos penosa para as pessoas simplesmente emitindo dinheiro, o que,

como vimos, não poderia nunca ser inflacionário em si. A função principal de

mudanças no nível de tributação é influenciar o comportamento do público

via alterações em seus estoques de riqueza líquida e renda disponível.

Da mesma forma, a emissão de dívida só deve ser adotada se ela tiver

alguma utilidade ou função. A função da emissão de dívida pública é de

gerenciar a taxa de juros da economia. E a função da manipulação da taxa de

juros é de gerenciar o nível de investimento e consumo privado, nas finanças

funcionais.

Para Lerner, toda vez que essa função for requerida, deve-se emitir

dívida, não importando qual seja o estoque de obrigações acumulado. Assim, o

tamanho da dívida não afeta as propostas das Finanças Funcionais e a

possibilidade de atingir o pleno emprego ou a estabilidade de preços. Dito isso,

logo vem à cabeça dos conhecedores das finanças “saudáveis”: “mas

certamente deve haver um limite ao tamanho da dívida pública!”.

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44

Lerner (1951: 274) recomenda que “antes de (...) tratar desse protesto é

necessário distinguir entre os dois significados da palavra limite”. As finanças

“saudáveis” sugerem que exista um teto para a dívida pública, normalmente

medido em relação ao PIB. Esse é um limite arbitrário, pois não há teoria que

possa justificar tal nível de precisão. Por coerência, sugerem ainda que, uma

vez atingido tal nível, o governo não deveria mais tomar emprestado, o que só

pode ser feito zerando o déficit público ou permitindo que a expansão da base

monetária faça o governo perder o controle sobre a redução das taxas de juros.

A conseqüência dessa omissão é o abandono das Finanças Funcionais.

Mais especificamente, dependendo da solução adotada, as conseqüências

poderiam ser tanto a depressão econômica em caso de adoção inflexível de

uma política de déficit nulo, ou a inflação em caso da emissão resultar em juros

zero e super-investimento e super-consumo privados.

Lerner propõe uma melhor compreensão das finanças funcionais ao

invés de adotar o dogma de que exista um limite arbitrário à dívida pública.

“Impor um limite arbitrário à dívida nacional é definir a regra [ou meta] de que

em algum ponto é mais importante prevenir o crescimento da dívida nacional

do que do que manter o pleno emprego ou a evitar a inflação” (idem: 274).

“Se prosperidade e estabilidade são mais importantes do que equilibrar o déficit quando a dívida é pequena, elas também são mais importantes quando essa dívida é grande. O objeção a uma grande e crescente dívida nacional é fundamentalmente baseada na crença de ela causaria algum vagamente definido dano econômico. Sacrificar as finanças funcionais em prol de prevenir o crescimento da dívida pública é, portanto, abraçar os definidos danos econômicos da depressão ou da inflação em prol de evitar uma possível causa de [um vagamente definido] dano econômico no futuro” (idem: 275).

Para o autor há, de fato, um limite ao endividamento do governo. Mas é

um limite automático e que não mereceria uma maior preocupação da política

econômica, no caso de adoção das finanças funcionais. “Se nós seguirmos os

princípios das Finanças Funcionais sem considerarmos o que pode acontecer

com a dívida nacional, a dívida nacional não aumentaria indefinidamente, mas

se manteria abaixo de um limite não definido por nós, mas pelas condições de

nossa economia” (idem 274).

Esse limite automático ao crescimento da dívida pública decorre da

dívida pública ser uma riqueza nas mãos de quem a possui. Se a dívida for

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realmente muito grande18, é possível que os detentores de títulos de dívida se

sintam tão ricos que seu consumo sozinho seja capaz de levar a economia

para o pleno emprego. Isso pode acontecer apenas com o consumo de parte

da renda de juros ou, via a utilização do próprio estoque de títulos, caso

prefiram em algum momento consumir a acumular, a partir de certo ponto19.

Nessa situação, seguindo os princípios das finanças funcionais o

governo, para impedir que seja ultrapassado o nível de pleno emprego, é

obrigado a eliminar o déficit público. A dívida governamental, portanto, pararia

de crescer e talvez até cairia.

Lerner ressalta ainda que, da mesma forma que existe um limite

automático para dívida pública, há um limite automático para a base monetária.

O governo pode manter como contrapartida de seus déficits apenas emissão

monetária e não o endividamento. Nesse caso, o volume de dinheiro em poder

do público cresceria continuamente, mas não indefinidamente. Haveria duas

razões para que o crescimento da base monetária encontre um limite.

O primeiro é que o aumento contínuo do estoque de dinheiro em poder

do público, sem ser acompanhado por qualquer emissão de dívida, faria a

liquidez crescer significativamente e as taxas de juros se aproximariam de zero,

induzindo assim o investimento e o consumo privado. O segundo é que, da

mesma forma que o crescimento do estoque de títulos de dívida, o crescimento

do estoque de dinheiro é um crescimento da riqueza nas mãos das pessoas.

Mais ricas, as pessoas consumiriam e investiriam mais. Assim, em algum ponto

a liquidez e riqueza ficariam tão grandes que o pleno emprego poderia ser

obtido apenas com gastos privados. Seguindo os preceitos das finanças

funcionais, o governo seria obrigado a eliminar o seu déficit e a base monetária

pararia de crescer.

O medo maior das finanças “saudáveis” é que o governo se financie com

emissão. Esse exemplo ilustra bem que esse medo não tem fundamento. Em

uma economia fechada ao menos, é possível fazer a economia atingir o pleno

emprego com estabilidade de preços a partir de grandes e contínuos déficits

18 Provavelmente muitas vezes superior ao PIB. 19 Esse resultado depende do governo aceitar comprar os títulos que estiverem sendo colocados a venda. Se não fizer isso, nessa situação, a taxa de juros aumentaria explodiria.

Page 46: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

46

acompanhados apenas de emissão monetária sem qualquer emissão de

dívida.

Porém, sem a emissão de dívida, o governo perde o poder de controlar a

taxa de juros e, portanto, de conduzir melhor o nível de gasto privado. O normal

é que o déficit público seja acompanhado parcialmente por emissão monetária

e parcialmente por endividamento, de acordo com as deseja composição

desses pelo setor privado a cada nível de taxa de juros. Isso não impede que

exista um limite automático para a expansão combinada dessas variáveis.

Seria um limite diferente e provavelmente em uma posição intermediária entre

ambos os exemplos citados acima: a expansão só com endividamento e a

expansão só com emissão de moeda.

Vimos que o tamanho da dívida é uma conseqüência da prosperidade e

do pleno emprego e que adotadas as finanças funcionais, a dívida não pode

causar inflação ou desemprego. Todavia, sob uma perspectiva estática, dívidas

públicas muito grandes podem ser julgadas negativamente a partir de

determinados valores a priori.

Em uma situação de pleno emprego permanente, após a dívida pública

atingir um patamar realmente muito grande20, quanto maior for a dívida pública,

menor deverão ser os gastos e o déficit público em proporção do PIB. Essa

conclusão se parece com as conclusões das finanças “saudáveis” que afirmam

que uma dívida maior hoje significaria a necessidade de geração de superávits

no futuro.

Entretanto, para Lerner (1951: 280), essa semelhança é apenas

superficial. Em primeiro lugar, a conclusão só é válida, se adotada uma política

de pleno emprego permanente com estabilidade de preços, ou seja, finanças

funcionais. Em segundo lugar, a explicação é outra. Nas finanças “saudáveis” a

emissão de dívida hoje significa geração de superávit no futuro porque “a

dívida tem que ser paga(!)”, dizem, em analogia ao endividamento privado. O

que Lerner está propondo é diverso. Dada a política de manter sempre o gasto

total da economia em um nível nem maior nem menor do que o necessário

para o pleno emprego, gastos privados muito elevados podem implicar a

20 Como já ressaltamos, esse patamar deveria corresponder a várias vezes o PIB. Entretanto, esse patamar grande provavelmente não é atingível, se as taxas de juros forem normais. Porque, com exceção dos juros, os gastos públicos aumentam a renda e o investimento aumentando a arrecadação.

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necessidade reduzi-los, e na maioria dos casos a melhor maneira de fazer isso

é eliminando o déficit público.

Assim, dívidas muito grandes causariam duas supostas “desvantagens”.

Em primeiro lugar, podem implicar na manutenção gastos públicos em um nível

menor do que o governo poderia desejar. Em segundo lugar, podem implicar

alternativa ou complementarmente na necessidade de induzir o setor privado a

manter gastos menores do que ele desejaria.

Porém, como Lerner (1951: 281-2) faz questão de ressaltar, esses

efeitos “negativos” do endividamento público são causados pela prosperidade

econômica e só podem ser prevenidos evitando a própria prosperidade. “Não é

útil culpar a dívida nacional por esses efeitos danosos”. Porque o crescimento

da dívida pública é conseqüência direta e inescapável do fato do setor privado

desejar gastar menos do que a renda que a sociedade democrática considera

que a economia deve atingir.

Como se pode depreender da discussão do primeiro capítulo, na

ausência de uma resposta contra-cíclica do governo, quando o setor privado

deseja gastar menos do que sua renda, a economia tende a cair

indefinidamente até que a renda fique tão baixa que o desejo de gastar deixe

de ser menor do que a renda. Os governos de nações preocupadas com o

bem-estar de seu povo não permitem que isso aconteça, mesmo porque

precisam manter condições mínimas de funcionamento da máquina pública,

que poderiam ser inviabilizadas em uma situação onde o governo

acompanhasse a redução da arrecadação com redução de gastos. Mais

especificamente, a adoção das finanças funcionais implica que a dívida pública

é uma conseqüência totalmente inevitável da propensão do setor privado

desejar gastar menos do que sua renda no nível de pleno emprego. A dívida

pública é um subproduto do progresso e do aumento da riqueza da sociedade.

Se o setor privado deseja acumular riqueza financeira líquida, os dois efeitos

“negativos” de uma dívida pública muito grande só podem ser evitados com

uma profunda e contínua depressão econômica e conseqüente caos social.

Tais efeitos “negativos” são conseqüência da riqueza e prosperidade

“excessiva”. Comparados com uma depressão econômica, tornam-se

insignificantes.

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Como vimos logo acima, é possível que o pleno emprego e a

prosperidade sejam alcançados sem crescimento da dívida pública. Nesse

caso, o governo emitiria prioritariamente dinheiro para cobrir a necessidade do

setor privado gastar menos do que ganha, isto é, acumular21. A dívida pública

não iria aumentar, mas sim a base monetária. Aumentaria menos, pois a taxa

de juros estaria muito próxima de zero e, portanto, o pleno emprego seria

atingido com maiores gastos privados e menor déficit público.

Alguém poderia pensar que, nessa situação, seria alcançado a

prosperidade sem os efeitos “negativos” que acompanham uma dívida pública

muito grande. Lerner (1951: 282-3) afirma que não é bem esse o caso. No

lugar de dívida pública, haveria uma maior acumulação de dívida privada

incorrida pelas empresas e famílias. Essa dívida privada, como a dívida

pública, constitui riqueza para as pessoas que a possuem. Essa acumulação

de dívida privada tem o mesmo motivo da acumulação de dívida pública. Ela é

causada pelo desejo das pessoas acumularem riqueza, ou seja, pelo desejo de

pouparem. Nas finanças funcionais, não importa se adota-se mais gastos

públicos ou mais gastos privados, o nível de renda atingido é aproximadamente

o mesmo e igual ao nível de pleno emprego. Assim o acúmulo total de dívida é

aproximadamente o mesmo, podendo ser majoritariamente pública ou privada.

“Essa dívida privada, da mesma forma que a dívida pública, constitui riqueza para as pessoas que a possuem. Essas pessoas sentem-se ainda mais ricas [nesse caso] do que no caso da dívida pública, porque a taxa de juros e os lucros são maiores. Haverá a mesma necessidade do governo em reduzir seu próprio gasto ou aumentar os impostos com o objetivo de prevenir a inflação [por ultrapassagem do nível de pleno emprego], e haverá os mesmo males em uma escala um tanto maior. Os males são resultados não da dívida nacional, mas da acumulação de riqueza privada que ocorre quando nós obtemos prosperidade em uma sociedade capitalista, tanto se toma a forma de dívida pública quanto se toma a forma de dívida privada. O único jeito de prevenir esses males é pela manutenção de um estado de depressão em que as pessoas são pobres demais para acumular riqueza” (Lerner: 1951: 283)22.

Os efeitos negativos do crescimento do endividamento público ou

privado só existem em situação de pleno emprego permanente, seja ele obtido

“automaticamente” ou via finanças funcionais. Esses efeitos decorrem da

propensão a poupar ativos financeiros. Se uma economia é mantida em pleno

21 Existe ainda uma outra possibilidade. Seria a instituição de impostos tão altos e tão progressivos que induzam o setor privado a não acumular ativos financeiros. 22 Esses argumentos são uma crítica muito contundente aos temores sobre a ‘carga da dívida’, e as teorias “modernas”, que os fundamentam, como a equivalência ricardiana.

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emprego pela expansão dos gastos públicos ou gastos privados e uma parte

da sociedade desejar poupar ativos financeiros, haverá acumulação de dívida

pública ou privada. Se esse desejo for mantido por muito tempo, haverá uma

grande acumulação de dívida. Dessa forma, mantida a hipótese de que pleno

emprego constante, se, em algum momento, os agentes que acumularam

esses ativos financeiros não desejarem mais acumular e passarem a gastar

mais do que ganham, outros agentes terão que reduzir seus gastos para que a

demanda por trabalho não supere a oferta. Se o país adota finanças funcionais,

o governo será obrigado a gerar superávit fiscal. O que seria supostamente o

efeito negativo da acumulação prévia de endividamento que tanto temem

Robert Barro e outros assustados com a ‘carga da dívida’ para as futuras

gerações.

Na verdade, os tais efeitos “negativos” do grande endividamento público

ou privado decorrente prosperidade23 só são, de fato, negativos sob certos

pontos de vista. Chamar esses efeitos de negativos é um julgamento de valor.

Sob um ponto de vista tipicamente capitalista ou tipicamente de liberalismo

econômico, esses efeitos são conseqüência do direito que têm as famílias ou

empresas, que no passado gastaram menos do que ganharam e acumularam

títulos de dívida públicos e privados, de gastarem mais do que sua renda,

utilizando para isso a riqueza ou a renda obtida da riqueza que economizaram

ou que herdaram de seus pais. Assumido isso como direito legítimo e justo,

não existiriam efeitos negativos de uma dívida (pública ou privada) muito

grande decorrente da prosperidade24.

É preciso lembrar que esses efeitos “negativos” só ocorrem em uma

situação de pleno emprego permanente. Sob desemprego, o efeito seria, na

verdade, positivo, pois aumentaria a demanda por mão-de-obra. Dessa forma,

23 E do inerente e compreensível desejo de poupar na forma de ativos financeiros. 24 Esse não é o caso da dívida pública brasileira recente. Essa cresceu enormemente sem gerar sensível crescimento econômico. A partir de 1994, a dívida pública cresceu na sua maior parte não devido a grandes investimentos públicos ou gastos com fins sociais, mas cresceu principalmente para pagar juros inéditos a banqueiros e rentistas. Como esses agentes tendem a acumular a maior parte da renda que obtém, não houve crescimento do consumo e nem do investimento que acompanharia o crescimento do consumo. Os juros elevadíssimos além de prejudicar o investimento privado, a competitividade internacional e inibir o consumo, fizeram a dívida pública crescer exponencialmente sem gerar renda, pois foram transferências feitas a agentes que simplesmente a acumularam. A política econômica brasileira conseguiu fazer a quase inédita proeza de aumentar a dívida sem aumentar significativamente a renda da economia. Isso só é possível com juros absurdamente altos.

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os efeitos “negativos” da ‘carga da dívida’ só existiriam em uma situação de

grande prosperidade e pleno emprego, e seriam decorrentes apenas do desejo

de gastar acima da própria renda dos agentes ou dos filhos dos agentes que

pouparam durante o processo de alcance da prosperidade25.

Lerner (1951: 285-6) destaca ainda que é inapropriado culpar o

endividamento público pela má distribuição de renda. Em primeiro lugar, como

ressalta o autor, essa atribuição de culpa deve ser igualmente dirigida ao

endividamento privado, pois ambos são resultados da prosperidade. Em

segundo lugar, mesmo se aplicado ao endividamento em geral, é incorreto

atribuir a ele a má distribuição de renda.

O tamanho do endividamento é decorrente da propensão consumir e da

prosperidade da sociedade. O fato desses títulos serem acumulados

principalmente pelos mais ricos decorre apenas do fato de eles serem mais

ricos e não o contrário. Os ricos acumularam mais riqueza porque no passado

puderam se apropriar e poupar mais renda. Então não se pode culpar o

tamanho das dívidas pela má distribuição de renda. A culpa dela são fatores

estruturais que permitem a certos extratos da sociedade acumular mais renda,

como progressividade de impostos, poder de monopólio, instituições do

mercado de trabalho, desemprego, taxa de juros, entre outros. Claro que

depois de acumulada a riqueza, os juros que os ricos recebem por seu

patrimônio é obviamente maior do que o dos pobres. Mas, nesse caso, a culpa

é do valor e da existência de uma taxa de juros positiva, do nível de

progressividade dos impostos e da acumulação do passado. Assim, o tamanho

da riqueza acumulada não pode ser culpada pela má distribuição de renda, ela

é apenas conseqüência. Mesmo porque dadas as condições estruturais de

distribuição da renda – que não tem relação com o tamanho da dívida – o

tamanho da dívida só poderia ser evitado com a recusa em alcançar a

prosperidade, ou seja, escolhendo o pior para todos.

25 Esses “efeitos negativos” podem também ser facilmente prevenidos ou remediados, se o governo imputa um imposto sobre capital ou impostos suficientemente progressivos sobre rendas de juros ou de capital. Nesse caso, a acumulação privada de ativos financeiros pode ser reduzida.

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Capítulo 2: Limitações

“A função social da doutrina das finanças saudáveis é a tornar o nível de emprego dependente do estado de confiança [dos empresários] (Kalecki, 1942: 350)”.

“Uma das mais importantes funções do facismo, como tipificado pelo sistema nazista, era a de remover as objeções capitalistas ao pleno emprego. A reprovação à política de despesa governamental é superada, sob o fascimo, pelo fato de a máquina estatal estar sob controle direto de uma associação do grande negócio com os bem-sucedidos fascistas. É removida a necessidade do mito das finanças saudáveis, que servia para impedir o governo de sobrepor-se, por meio dos gastos, à crise de confiança. Numa democracia ninguém sabe como será o próximo governo. No fascismo não há próximo governo.” (Kalecki, 1942: 352)

Durante a segunda guerra mundial, a política econômica foi guiada de

forma a produzir ao máximo para suprir as necessidades das forças

combatentes. Esse esforço foi especialmente difícil, se lembrarmos que boa

parte da força de trabalho estava de fato servindo direta ou indiretamente os

exércitos envolvidos.

Naqueles anos difíceis, as velhas normas de “prudência financeira” das

contas públicas certamente estavam longe de ter qualquer prioridade.

Entretanto, não era difícil perceber que essa suposta “imprudência” não estava

causando nenhum dos males outrora lhe atribuídos.

Coincidentemente ou não, a revolução keynesiana ensaiava os

primeiros passos. As dúvidas e desconfianças, porém, ainda eram muitas. Uma

das quais dizia respeito à capacidade financeira do Estado. A política fiscal era

o principal remédio sugerido por Keynes para combater o desemprego. No

entanto, a autonomia para utilização desse tipo de política era questionada pela

teoria prevalecente das finanças “saudáveis”, que insistia que o orçamento

público devia ser equilibrado ao menos no longo prazo.

Abba Lerner foi um dos primeiros autores a perceber de forma clara que

tal teoria era equivocada e que não existiam restrições contábeis-fiscais ao

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tamanho do déficit ou da dívida pública26. Ao mostrar isso, permitiu que o

arcabouço keynesiano fosse completado.

Terminada a guerra, a revolução keynesiana invadiu a academia e

forneceu base teórica para parte significativa das políticas que ajudaram a

construir a chamada era de ouro do capitalismo e o estado do bem-estar social.

Podemos dizer que as políticas econômicas do mundo desenvolvido e a

construção do Estado do bem-estar social foram coerentes com as propostas

das finanças funcionais. Aliás, o próprio primeiro mundo, tal como conhecemos

hoje, não existiria sem a adoção de políticas fiscais desvinculadas de metas

contábeis-fiscais.

Lerner mostrou com clareza que não haveria limitações intrínsecas ao

tamanho da dívida ou do déficit público, enquanto houvesse desemprego.

Quaisquer temores com relação à “carga da dívida” ou supostas características

explosivas da mesma eram infundadas. A grande lição foi que a dívida pública

não se comporta como a dívida privada.

Dessa forma, graças às finanças funcionais e teorias similares, rompeu-

se uma grande barreira teórico-ideológica à prosperidade. E essa foi, de fato,

alcançada. Mas a oposição às políticas de pleno emprego não foi extinta.

Graças às finanças funcionais, o grande debate entre keynesianos e liberais

econômicos, que se opõem a políticas de pleno emprego, se deslocou da pura

questão contábil-fiscal para a teoria da inflação.

De fato, a inflação passou a ser a questão central dos debates sobre

política econômica. Já nos anos 70, a dificuldade de lidar com a inflação foi

certamente uma das principais causas da derrota teórico-ideológica dos

keynesianos.

Provavelmente, Lerner percebeu, antes de qualquer um, a importância

da questão da inflação para as finanças funcionais e todo o arcabouço

keynesiano. Em seu grande clássico, Economia do Emprego de 1951, Lerner

incorpora às finanças funcionais uma sólida e interessante teoria sobre a

inflação. Lerner (1951) usou o termo ‘baixo pleno emprego’ para relacionar o

26 É preciso esclarecer que os conceitos “prudência fiscal”, “austeridade fiscal” em si são vazios de sentido, devido à possibilidade de emissão de dinheiro. Prudência ou austeridade fiscal é sinônimo de prudência ou austeridade contábil. Em uma visão mais científica, os liberais poderiam usar o termo prudência anti-inflacionária para retirar a excessiva conotação contábil.

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dilema entre desemprego e inflação. Levar e manter a economia nesse ponto

de ‘baixo pleno emprego’ passou a ser a meta das finanças funcionais.

Entretanto, o ponto de baixo pleno emprego ainda comportava uma

acentuada proporção de desempregados. A ultrapassagem desse ponto,

mesmo antes de se alcançar o pleno emprego implicaria em inflação crescente.

Foi uma das primeiras vezes em que a Macroeconomia teorizava sobre a

possibilidade de desemprego com inflação. Outros autores só iriam propor

teorias similares entre 10 e 20 anos depois.

A incorporação desse conceito tornou a teoria das finanças funcionais

muito mais sólida. No entanto, surgiram com o tempo diversos eventos que

indicavam insuficiências na teoria das finanças funcionais. Em primeiro lugar,

(1) podemos citar a impossibilidade das políticas de incentivo à demanda

doméstica viabilizarem o pleno emprego em determinados países, em

particular os subdesenvolvidos. Esses problemas estão associados à restrição

externa.

Já a partir do final dos anos 60 e início dos anos 70, começa-se a

perceber dificuldades em solucionar os problemas inflacionários com as

políticas sugeridas pelas finanças funcionais. Percebeu-se na prática o que

Lerner já havia previsto, ainda que talvez com menor intensidade. Mais

especificamente, nos países centrais, que (2) altas inflações poderiam conviver

com desemprego acentuado. Nos países periféricos, essa proposição sempre

foi trivial, em decorrência da dificuldade em manter um câmbio estável.

A política econômica keynesiana sofreu outro tipo de questionamento

partir dos anos 60. O grande diferencial de taxas de crescimento entre os

países centrais (3) causava insatisfações nos países menos dinâmicos, em

particular naqueles acostumados a posições de liderança: Inglaterra e EUA. As

políticas de estímulo à demanda doméstica se mostravam insuficientes para

combater essa situação no regime de Bretton Woods. Sugeriu-se como arma

competitiva o câmbio flutuante.

Todavia, as finanças funcionais não poderiam ser culpadas por esse tipo

de problema. Lerner deixou claro que suas propostas poderiam sofrer

limitações caso o câmbio fosse fixo. No entanto, após a adoção do câmbio

flutuante, percebeu-se que, em geral, essa não seria uma solução para as

deficiências de crescimento dos países.

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54

Porém, deve-se ressaltar que (4) o câmbio não é apenas uma restrição à

política econômica, ele pode ser também um instrumento adicional que permite

em certas situações uma maior liberdade. Ao contrário do que proporia Lerner,

pretendemos defender que a ultrapassagem do baixo pleno emprego não

necessariamente gera inflação, porque o câmbio restringe o repasse dos

custos trabalhistas sobre os preços, pois determina um teto para boa parte dos

preços, podendo obrigar grande proporção do setor privado a reduzir, ao

menos temporariamente, suas margens de lucro para absorver aumentos dos

custos trabalhistas.

Sugerimos que parte das limitações encontradas nas teorias das

finanças funcionais decorrem da desconsideração, por parte de Lerner, da

importante relação entre câmbio e inflação. Essa posição resulta na dificuldade

em perceber: (i) as limitações do câmbio flutuante em deslocar a restrição

externa e (ii) a necessidade utilizar o câmbio como instrumento de combate à

inflação.

Dessa forma, a questão cambial é um problema para a teoria lerneriana

da inflação. De fato, essa teoria tem dificuldade geral em considerar o potencial

de acomodação dos salários e das margens de lucro a mudanças nos custos

ou aumentos de preços. Isso não acontece apenas pela dificuldade de

considerar os aspectos cambiais na determinação das margens de lucro.

Lerner (1951) também desconsidera (5) que as margens de lucro são

dependentes da taxa de juros real e, portanto, dependendo do comportamento

do banco central, podem acomodar aumentos de custos. As margens de lucro

das empresas não são independentes da taxa de juros real, portanto, reduções

nos juros reais podem fazer com que os capitalistas absorvam parte

significativa do aumento dos custos salariais.

Ademais, o baixo pleno emprego (6) não é um ponto tão rígido como

defende o autor, porque o baixo pleno emprego não é um ponto estável ou

independente das instituições e das circunstâncias políticas, ele depende

decisivamente de fatores como poder de barganha e expectativas dos

trabalhadores, o que muda historicamente. No período de ouro do capitalismo,

havia grande resistência à perda de salário real, como supõe Lerner. Porém, a

história recente mostrou que os trabalhadores, em determinadas condições,

podem aceitar perdas salariais significativas. Por outro lado, políticas que

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alteram as condições de reivindicação e indexação salariais, como as políticas

de renda, também podem alterar o ponto de baixo pleno emprego.

Na próxima seção, desenvolveremos as teorias Lernerianas da inflação.

Nas seções seguintes, vamos desenvolver as limitações dessas teorias, dando

uma ênfase maior para a questão da restrição externa.

2.1. Teorias Lernerianas de inflação

Abba Lerner, após concluir sua proposta de finanças funcionais, dedicou

boa parte de sua carreira às teorias de inflação. Lerner possuía uma grande

preocupação em tornar o pleno emprego uma realidade. Porém, achava que

esse resultado não seria alcançável, se no caminho para o pleno emprego

fosse provocada uma espiral inflacionária.

No trabalho seminal de 1993, onde propôs a teoria das finanças

funcionais, Functional Finance and the Federal Debt, Lerner não aprofunda a

discussão sobre a inflação. Essa é tratada simplesmente como uma questão de

demanda, como é usual. Assim, as finanças funcionais proporiam que “o gasto

total pode ser mantido no nível requerido, onde ele seria suficiente para

comprar os bens que podem ser produzidos por todos que querem trabalhar,

e ainda não fosse suficiente para causar inflação por demandar (aos preços

correntes) mais do que pode ser produzido [grifos nossos; tradução livre]

(Lerner, 1943: 468).

Nesse primeiro trabalho sobre as finanças funcionais, Lerner (1943)

ainda via a inflação como um resultado do excesso de demanda. Por essa

teoria, o aumento de preços seria decorrente de ultrapassagem do nível de

pleno emprego. Portanto, não espera-se a convivência de inflação e

desemprego. Porém, essa teoria encontra alguns problemas, como Lerner

percebeu prematuramente.

Com aproximadamente 20 anos de antecedência, Lerner foi um dos

primeiros a dar importância à possibilidade de convivência de alta inflação com

desemprego elevado. Essa possibilidade tornou os estudos sobre inflação tão

importantes para o autor, pois essa poderia significar a inviabilidade do pleno

emprego.

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56

A existência de uma “region between depression and inflation where we

have both depression and inflation” (Lerner, 1951, apud Scitovsky: 1984)

induziu Lerner (1951) a propor os termos baixo e alto pleno emprego. O termo

baixo pleno emprego delimitaria as situações onde a expansão do nível de

atividade pressionaria e onde não pressionaria a taxa de inflação. Esse termo

tem semelhanças com a curva de Phillips e com o conceito de taxa natural de

desemprego de Friedman (Scitovsky, idem), porém foi criado 7 anos antes do

primeiro e quase duas décadas antes do segundo. Mas há uma diferença muito

importante entre Lerner (1951) e esses autores. Para o primeiro, a inflação

causada pela ultrapassagem do nível de baixo pleno emprego não pode ser

considerada simplesmente como uma inflação de demanda.

Em seu livro de 1972, Flation, o autor propõe a existência de três tipos

de inflação: (1) inflação de compradores, (2) inflação de vendedores e (3)

inflação de expectativas. Vamos desenvolver mais à frente sobre esses três

tipos de inflação utilizando também outros autores.

Em seu livro de 1951, Economics of Employment, Lerner escreveu 4

capítulos dedicados à inflação e seus problemas. Depois desse livro, ele

escreveu muito mais artigos e um livro sobre inflação; mas, segundo Scitovsky

(1984: 1562), a maioria de suas idéias sobre o assunto já estavam contidas no

Economics of Employment.

Nesse livro, já está claro que a manutenção do desemprego poderia não

ser uma condição suficiente para a redução da inflação, pois o tipo de inflação

mais provável seria uma inflação de vendedores. Vamos, nesta seção, analisar

a teoria de inflação que Lerner desenvolve em seu importante trabalho de 1951

e como ele a torna fundamental para as finanças funcionais.

Na grande maioria dos casos, os dois principais objetivos da política

econômica são o controle da inflação e a maximização do emprego. A teoria

macroeconômica também dá grande importância e relaciona essas duas

variáveis.

O conceito de pleno emprego é chave para esse relacionamento. Esse

conceito é geralmente usado para exprimir a idéia de escassez de mão-de-

obra. Como a mão-de-obra é o insumo fundamental de todas economias, sua

escassez poderia em teoria significar a elevação de custos gerais da economia

em momentos de expansão da demanda por trabalho.

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Mantidas relativamente rígidas em termos reais as margens de lucro, o

aumento generalizado dos custos de trabalho implicaria em aumentos nos

preços. Aumentos esses que acabariam em grande parte sendo indexados aos

salários, devido à pressão por manutenção do poder de compra pelos

sindicatos, gerando uma inflação realimentável.

Diversas correntes econômicas relacionam inflação com aumentos de

salários. Entretanto, há mais divergência entre Lerner e essas visões do que

parece à primeira vista.

A inflação é frequentemente associada ao conceito de ‘taxa de

desemprego não aceleradora da inflação’, conhecida pela sigla NAIRU (non

accelerating inflation rate of unemployment).

Segundo Wray (1998: 33), muitos economistas consideram que “pleno

emprego” significa um nível mínimo de desemprego que está associado a uma

taxa constante de inflação, que é a taxa de desemprego não aceleradora da

inflação ou NAIRU. “Outros (...) associam pleno emprego a uma “taxa natural”

de desemprego que se supõe ser determinada pelo salário real de equilíbrio

(na interseção da curva de demanda e oferta de trabalho) de forma que todo

desemprego é voluntário no sentido de que os desempregados não querem

trabalhar pelo salário de equilíbrio” (idem: 33).

Muito economistas também associam pleno emprego com “a situação na

qual somente persiste desemprego friccional (por exemplo, aqueles que estão

temporariamente entre empregos) e talvez desemprego estrutural (por

exemplo, devido ao descompasso entre as qualificações requeridas para

assumir dadas vagas de emprego e as qualificações do desempregado)” (idem:

33). Há ainda os que consideram que a situação de pleno emprego deve ser

“consistente com uma situação na qual o número de desempregados iguala o

número de postos de trabalho oferecidos” (idem: 34).

Além das divergências quanto à definição de pleno emprego, há ainda

divergências metodológicas ainda maiores sobre a definição de desempregado

(Pigeon e Wray, 1998; Wray 1998: 34, 172-3).

As estatísticas americanas definem como desempregado apenas aquele

que procurou emprego nas últimas 4 semanas anteriores à pesquisa. Sob esse

critério, muitos que gostariam de trabalhar, mas que não procuraram

ativamente emprego no último mês por um motivo qualquer, acabam sendo

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58

classificados como fora-da-força-de-trabalho. Além dos trabalhadores que

gostariam de trabalhar mas não puderam procurar ativamente emprego no

último mês, há aqueles que estão trabalhando menos horas do que gostariam,

aqueles que estão trabalhando em condições precárias e aceitando funções

que não requerem suas qualificações, educação e treinamento e aqueles que

estão “se virando fazendo bicos”. Esses casos poderiam ser chamados de

parcialmente desempregados, subempregados, ou simplesmente de

desemprego disfarçado.

Apenas como ilustração do grau de viés que os critérios oficiais de

desemprego podem causar, podemos citar um estudo de Pigeon e Wray (1998)

que mostra que “a taxa de desemprego oficial não dá uma boa indicação do

grau de estreitamento do mercado de trabalho, porque [devido às critérios

arbitrários e restritivos da definição de desempregado] são amplos os fluxos

entre categorias emprego, desemprego e fora-da-força-de-trabalho” (Wray,

1988: 173). Por esse estudo é possível perceber que “mesmo no pico do ciclo

de negócios as taxas de participação da força de trabalho daqueles que não

cursaram faculdade são significativamente mais baixas que as participações

dos que atingiram a faculdade27” 28 (idem).

Essa grande quantidade de definições nos sugere muitas coisas. Uma

delas é a grande relação existente entre o conceito de desemprego e as teorias

de inflação. Segundo Wray (1998) e Lerner (1951), a relação entre desemprego

e inflação é dependente da institucionalidade do mercado de trabalho.

Dependendo dessa institucionalidade, níveis mais altos de emprego podem ser

atingidos sem impacto inflacionário.

Para esses autores, em um mercado de trabalho sem determinadas

regulações específicas, no processo de crescimento econômico, a NAIRU é

27 No ano de baixíssimo desemprego de 1998, na população norte-americana com mais de 25 anos, “a proporção do emprego sobre a população (...) era de 79% para graduados em faculdade, 72% para os que tinham freqüentado alguma faculdade, 63% para graduados no segundo grau, e menos de 40% para o que não concluíram o segundo grau” (Wray, 1998: 232). São dados que mostram que devem realmente existir problemas nos indicadores oficiais de desemprego e de população economicamente ativa. 28 Para evitar esses tipos de vieses, Wray (1998) sugere que pleno emprego seja definido como “uma situação na qual todos os que desejam trabalhar a uma salário nominal fixado pelo governo serão providos com um trabalho de tempo integral”. Wray (1998) considera que esse conceito de pleno emprego implicaria em uma definição de desemprego mais adequada, pois revelaria desempregados ocultos que tenham desistido de procurar empregos, que estejam trabalhando como subempregados ou em condições de trabalho muito precárias. Essa definição é interessante também porque independe de aspectos mais subjetivos como desemprego friccional ou acelerativo da inflação.

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atingida antes do nível de pleno emprego. Isso significaria que é possível

conviver com níveis de inflação crescentes e aceleracionistas antes de atingir o

pleno emprego e que esse só poderia ser, de fato, atingido com estabilidade

econômica com políticas salariais e instituições específicas.

Como vimos, Lerner (1951) propõe 2 conceitos de pleno emprego: baixo

pleno emprego e alto pleno emprego. Para Lerner, pleno emprego é um

conceito de definição muito difícil, e por isso sugere uma definição

aparentemente vaga. “Pleno emprego significa apenas que aqueles que

querem trabalhar ao salário prevalecente são capazes de encontrar trabalho

sem excessiva dificuldade” (Lerner, 1951: 17, tradução livre).

A definição fica mais precisa quando ele afirma que na situação de alto

pleno emprego o desemprego existente é friccional. Uma situação onde

prevalece o desemprego friccional se diferencia de uma situação onde

prevalece o que chama-se simplesmente de desemprego ou que Lerner chama

de desemprego deflacionário.

Quando ocorre desemprego deflacionário, os empregadores não

encontram grande dificuldade em encontrar trabalhadores dispostos a trabalhar

aos salários vigentes, mas, analogamente, o mesmo não pode ser dito de

forma generalizada para os trabalhadores.

Em uma situação de predominância de desemprego friccional, espera-se

que a dificuldade em encontrar empregos seja aproximadamente tão grande

quanto a dificuldade em encontrar trabalhadores dispostos a trabalhar. Assim,

Lerner (1951: 21) chega a sugerir a definição de ‘alto pleno emprego’, que seria

a situação “em que há tantos empregos procurando por trabalhadores, quanto

trabalhadores procurando por empregos”.

O desemprego friccional seria de alguma forma decorrente do tempo

necessário para os empregadores encontrar trabalhadores capacitados em

localidades específicas e dos trabalhadores desempregados encontrarem

empregos que satisfaçam suas exigências de condições de trabalho e

remuneração em localidades específicas. Poderíamos dizer que o desemprego

friccional seria decorrente da natural dificuldade de saber onde estão os

empregos vagos em todas as atividades, onde estão os desempregados de

cada especialização, quando serão abertas novas vagas e quando os atuais

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empregados sairão de seus empregos. Os economistas usam o termo

‘informação imperfeita’ para caracterizar esse tipo de problema.

Para Lerner, na situação de alto pleno emprego, prevalece apenas

desemprego fricional e o nível de atividade não pode ser alterado por políticas

de estímulo à demanda sem afetar a taxa de inflação, ainda que políticas que

aumentem e melhorem a difusão de informações possam aumentar o nível de

alto pleno emprego.

O conceito de baixo pleno emprego é muito similar ao conceito de

NAIRU máxima. Segundo Lerner (1951: 23) baixo pleno emprego é a situação

onde “a inflação começa”.

Para o autor, acima do nível de baixo pleno emprego, haveria

“excessivo” poder de barganha dos trabalhadores. Se o nível de atividade

ultrapassar aquele definido pelo nível de baixo pleno emprego “a pressão por

maiores salários pelos trabalhadores seria maior do que a resistência aos

aumentos de salários pelos empregadores, e os salários tenderiam a subir

mais rapidamente do que o crescimento da produtividade do trabalho. Os

empregadores prefeririam evitar interrupções na produção, porque os negócios

estariam muito bem. Não seria tão fácil conseguir novos trabalhadores. Os

empregadores poderiam até fazer ofertas salariais superiores na tentativa de

expandir rapidamente e tirar vantagem dos bons negócios. E os salários

subiriam”. (Lerner, 1951: 194; tradução livre).

Para Lerner, esses aumentos decorrem de um poder

de barganha “excessivo” por parte dos trabalhadores, mas não de um poder de

barganha generalizado em todas as regiões e setores.

O nível de baixo pleno emprego é inferior ao nível de alto pleno

emprego, onde, de fato, o número de vagas de trabalho oferecidas se aproxima

do número de trabalhadores procurando emprego. No nível de baixo pleno

emprego, há ainda muito mais desempregados do que ofertas de emprego.

Porém, os salários já seriam crescentes, assim como a inflação.

De acordo com Lerner (1951), esse resultado esperado seria

conseqüência da rigidez para baixo dos salários, da pouca mobilidade dos

trabalhadores e da baixa difusão de informações nos mercados de trabalho.

Quando o nível de atividade atingisse determinado patamar, a escassez

de trabalhadores em determinadas especializações em determinadas regiões

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aumentaria muito o poder de barganha de certas categorias, apesar do

desemprego em outras regiões e categorias, devido à pouca mobilidade dos

desempregados de outras regiões ou especialidades. Dessa forma, a rigidez

dos salários à queda faria com que houvesse aumento dos salários médios,

apesar da existência de desemprego significativo em muitas regiões e setores.

Wray (1998) tem uma visão parecida com a de Lerner (1951), com a

diferença talvez de que o último, até por ter vivido em outra época, parece estar

pensando mais em operários de chão de fábrica, enquanto o primeiro parece

estar preocupado também com os funcionários de formação superior. Segundo

Wray (1998:173), “(...) as expansões econômicas promovem ‘contração no

topo’ [mais qualificados] e fazem pouco para aumentar as oportunidades para

os que estão embaixo, a menos que a demanda seja tão grande que induza

inflação salarial para os altamente qualificados de forma a levar os

empregadores a ‘contratar os de baixo’ [menos qualificados]. É por causa disso

que as expansões econômicas provavelmente causam inflação antes que o

pleno emprego seja alcançado”.

Em seus trabalhos, Lerner supõe que as margens de lucro são

relativamente rígidas em termos reais e que os trabalhadores em geral não

admitem perdas reais de salários, a menos em situações de prolongado

desemprego.

Dadas essas premissas, segundo Lerner (1951), uma vez ultrapassado

o nível de baixo pleno emprego, a economia sofrerá uma aceleração da

inflação. Lerner (1951) não utiliza diretamente o termo ‘conflito distributivo’,

mas pela descrição que ele faz do processo de reajuste dos preços e a

posterior tentativa dos trabalhadores em manter o poder de compra

conquistado, podemos interpretar que ele tem essa idéia por detrás.

“Os aumentos dos salários aumentariam os custos e os preços dos produtos se elevariam. A possibilidade de aumentos nos preços dos produtos é a mais importante questão em consideração na persuasão dos empregadores para pagar maiores salários. O aumento nos preços destrói os benefícios do aumento dos salários esperados pelos trabalhadores. Eles não podem comprar agora mais bens com seus maiores salários nominais do que eles podiam comprar antes com seus menores salários nominais. Isso leva à demanda por outro aumento de salários que desse aos trabalhadores o esperado aumento em seus salários reais, que foi furtado pelo aumento dos preços, e a próxima rodada de aumentos de salários leva a um outro aumento dos preços; e dessa forma têm-se a espiral inflacionária” (Lerner, 1951: 194; tradução livre). “Quanto mais rapidamente os salários são elevados, mais rapidamente preços vão crescer. Em curto prazo, os aumentos dos preços e salários ficarão cumulativos e auto-acelerativos” (idem: 196).

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Uma implicação importante das teorias de Lerner é a praticamente nula

possibilidade de inflação estritamente de excesso de demanda. Lerner (1972)

chama a conhecida inflação de demanda de inflação de compradores

(Scitovsky, 1984: 1562). Ocorreria quando “os compradores estiverem tentando

comprar mais do que 100% do que a força de trabalho disponível pode

produzir” (Scitovsky, idem). Esse tipo de inflação só pode ser prevenida ou

remediada pela a redução do gasto total.

A definição escolhida por Lerner para a inflação de demanda não deixa

dúvidas de que, para ele, esse tipo de inflação é impossível nas condições

conhecidas em tempos de paz. Para comprar mais do que 100% do que a força

de trabalho é capaz de produzir, é necessário que seja ultrapassado o nível de

alto pleno emprego. Porém, Lerner (1951: 195-204) considera que o arcabouço

institucional vigente nos mercados de trabalho impede que o nível de alto pleno

emprego seja atingido, pois, antes de ser alcançado esse nível de emprego, a

inflação seria muito alta e acelerativa e ocorreria uma “desorganização da

produção” (idem: 199) e um “redução nos incentivos à produção” devido à

compra especulativa de mercadorias e, podemos acrescentar, ativos

estrangeiros.

Podemos concluir, por suas definições, que, para Lerner, a inflação que

decorrente da ultrapassagem do nível de baixo pleno emprego seja uma

inflação de vendedores (i.e., de custo) e não de compradores (i.e., de

demanda).

Lerner, dessa forma, estaria sugerindo que a inflação de demanda seja

uma situação, na melhor das hipóteses rara. O autor foca sua atenção na

questão da oferta de mão-de-obra, mas poderíamos generalizar sua conclusão

para outras possíveis fontes de escassez de insumos.

Uma inflação de demanda decorre da escassez de insumos. Esses

insumos podem ser mão-de-obra, matérias-primas ou capacidade instalada. A

primeira coisa que precisa ficar clara quanto às possíveis inflações de

demanda é que elas poderiam até precipitar, mas por si só não podem ser as

causas da manutenção de processos contínuos ou aceleracionistas de inflação.

É necessário algum mecanismo de indexação para que isso ocorra.

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63

Assim, por si só, mesmo se possível, a chamada inflação de demanda

seria limitada. O aumento do preço de certos insumos mais escassos apenas

causaria uma mudança nos preços relativos em favor desses insumos até o

ponto em que a oferta se ajuste à demanda. Após esse ajuste, deveria haver

uma redução na demanda ou aumento da oferta desse insumo e uma

acomodação da inflação.

Caso contrário, se esse aumento de preços se torna generalizado, não

podemos chamar o processo simplesmente de inflação de demanda; porque,

se os preços de outros insumos ou produtos que não utilizam tal insumo

aumentam, não é devido a um excesso de demanda em seus mercados, mas a

outras causas, como conflito distributivo.

Uma inflação contínua causada e mantida apenas pelo aumento dos

preços de insumos escassos levaria a um aumento contínuo da participação do

setor ofertante de insumos escassos na renda nacional ou internacional.

De qualquer forma, essa não é a natureza mais usual do que se

costuma chamar de processos inflacionários. Eles costumam ter forte inércia. É

mais razoável afirmar que os processos inflacionários que ocorrem

normalmente não são acompanhados de contínuos e proporcionais processos

de elevação da participação de um determinado segmento na renda agregada.

Nos processos usuais de inflação todos os setores sociais tentam manter sua

participação na renda. Fazem isso negociando ou impondo aumentos nos seus

preços ou rendimentos. Podemos assim dizer que a manutenção de taxas

contínuas de inflação não pode ser causada apenas por alguma coisa que

poderíamos chamar de inflação de demanda. É necessário um mecanismo

complementar que leve à generalização dos aumentos e à inércia. Esse

mecanismo pode ser o conflito distributivo ou expectativas de inflação que

levam os agentes a reajustar nominalmente seus rendimentos para manter sua

participação na renda.

Para reforçar o argumento, é preciso sublinhar que a maioria dos

insumos importantes não é de fato escassa, e é por isso que são importantes.

Quando um insumo é escasso, rapidamente se encontram substitutos ou

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formas mais econômicas de utilização29. O insumo que, a priori, poderia ser de

fato escasso é a mão-de-obra.

No capitalismo, inflação persistente por escassez de capacidade

instalada é ainda muito menos provável, se for possível. Fazendo uma análise

setorial podemos afirmar que é muito difícil imaginar algum setor do comércio

ou dos serviços que poderia aumentar seus preços por falta de capacidade

instalada dos bens de capital. Além disso, esses setores, assim como a maioria

dos setores industriais da indústria tradicional, da indústria de montagem e da

indústria de plásticos, indústria gráfica, construção civil e mineração, entre

outros30, tem quase todo seu maquinário produzido em série ou pode ser

entregue em prazos muito curtos. Muitas vezes, é mais rápido colocar uma

nova máquina em operação do que treinar um novo funcionário.

Poucas indústrias possuem prazos de maturação muito longos para os

investimentos em capacidade instalada. Porém, essas costumam operar com

grande capacidade ociosa, e geralmente suportam anos de crescimento

acelerado para serem ocupadas. Além disso, esse tipo de indústria possui, na

maior parte das vezes, programas contínuos e de longo prazo de ampliação da

capacidade instalada baseados em previsões de longo prazo e com grande

margem de segurança em relação às expectativas de crescimento da

demanda31.

Se ainda assim, a maior parte dessas indústrias forem surpreendidas por

um crescimento de demanda muito superior às previsões mais a margem de

segurança, pode-se reduzir a quantidade exportada ou aumentar as

importações, tornando praticamente impossível inflação por escassez de

capacidade instalada.

29 De fato, a única matéria-prima importante que poderia ter aspectos de insumo escasso seria o petróleo, devido à incerteza e ao grande prazo de maturação dos investimentos em prospecção. Ou seja, elevações do preço do petróleo até hoje não foram decorrentes da escassez de petróleo, mas de faltas temporárias de capacidade instalada, nos países menos propensos a participar ativamente dos cortes de produção nos momentos em que se realizam de políticas de contenção de oferta pela OPEP. 30 A indústria tradicional abarca todo ramo têxtil e calçados, móveis, alimentos, entre outros. A indústria de montagem abarca, por exemplo, os setores duráveis de consumo e indústria de bens de capital seriados. 31 Quanto maior a taxa de juros, menores os prazos de financiamento e piores as outras condições de financiamento, menor é a disposição dos empresários em garantir grandes margens de segurança na sua capacidade instalada, mas, ainda assim, as empresas mantêm significativas capacidades ociosas. Se não adotarem essa estratégia, poderão perder crescente e definitivamente parcela de mercado para os concorrentes.

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Os únicos setores cuja maturação é de longo prazo e há pouca

possibilidade de importações para suprir falta de oferta interna são os setores

de infra-estrutura. Esse é um dos motivos que fazem da oferta de infra-

estrutura uma responsabilidade do governo, ainda que formalmente suprida

pelo setor privado. Só o governo pode garantir que a economia não sofra

pressões inflacionárias por falta de capacidade em infra-estrutura. De fato, os

governos, em geral, fazem questão de manter margens de capacidade ociosa

muito grandes no setor de infra-estrutura, além de possuírem um programa de

investimento permanente baseado em planejamento de longo prazo32

.

De fato, é difícil citar casos onde tenha ocorrido altas inflações por excesso de

demanda. Como mera ilustração exibimos a tabela abaixo que mostra os países que

mais cresceram entre 1974 e 94. Poderíamos chamá-los de “milagres econômicos” do

período.

Países que obtiveram taxas de crescimento acima de 7% durante pelo menos 5 anos no período entre 74 e 94 (com exceção da África)

Taxa de inflação no último ano antes do ciclo de crescimento acelerado

Taxa de inflação no último ano do ciclo de crescimento acelerado

Coréia (1983-88) 9,5% 8%

Tailândia (1987-94) 1,8% 5,3%

Paraguai (1977-81) 4,6% 14%

China (1982- 88) 2,5% 20,7%

China (1991-2005)* 16,3% 2,3% anualizado no primeiro semestre de 2005 33

Países que tiveram taxas de crescimento médio acima de 9% por 5 anos no período entre 74 e 94 (com exceção da África)

Taxa de inflação no último ano antes do ciclo de crescimento acelerado

Taxa de inflação no último ano do ciclo de crescimento acelerado

Síria (1974-78) 18,5% 4,8%

Coréia (1974-79) 24,3% 18,3%

Fonte: Secretaria de assuntos internacionais do Ministério do Planejamento, Dezembro de 1996. Dados obtidos no Banco mundial. * Os dados sobre a China vão até 2005

A despeito de esse ser o período de mais altas inflações no mundo desde o

pós-guerra e do período se iniciar no primeiro choque do petróleo e pertencer a ele o

segundo choque do petróleo e a crise da dívida do terceiro mundo, os dados não

mostram relação entre altas taxas de crescimento da demanda e altas inflações. Os

dados mostram que a maioria (5 em 7) desses países com altas taxas de crescimento

da demanda obtiveram taxas de inflação cadentes ou mantidas baixas.

32 Buscaremos mostrar no último capítulo que o governo não pode alegar falta de dinheiro para honrar essa responsabilidade de garantir que a economia não sofra pressões inflacionárias por falta de capacidade da infra-estrutura, pois os gastos básicos em infra-estrutura econômica, assim como os gastos em política industrial, em geral, aumentam a capacidade de controlar a inflação e, portanto, tendem a aumentar a própria capacidade de gasto público. 33 http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u98390.shtml

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As exceções são a China entre 1982 e 1988 e o Paraguai entre 1977 e 1981. A

priori, são exceções com particularidades que não ferem a regra geral. É preciso saber

se o aumento da taxa de inflação nesses dois países foi causado por desvalorizações

cambiais ou por excesso de demanda. O caso chinês é difícil de avaliar, pois nesse

período passa de uma economia quase completamente socialista para uma economia

com bolsões localizados de capitalismo. O Paraguai, no final de seu período de alto

crescimento em 1981, entra como todo o resto da América Latina na crise da dívida.

Em toda América Latina, a crise da dívida foi acompanhada de altas taxas de inflação

associadas a desvalorização34

cambial e não a excesso de demanda. Outro bom

exemplo é o Brasil no período do milagre, a inflação no último ano do milagre (1973) é

menor do que a do ano anterior ao milagre (1967). Os EUA durante a segunda

Guerra35

o Japão e a Europa Ocidental no pós-guerra também são bons exemplos.

Algum economista ortodoxo poderia alegar que esses dados não evidenciam

que a inflação de demanda é uma situação rara. Ele diria que, nesses casos, a oferta

cresceu na mesma velocidade que a demanda. Mas é exatamente isso que queremos

dizer: se a oferta foi capaz de crescer na velocidade requerida até nessas situações

limites, ela pode crescer no ritmo necessário com mais facilidade, se a taxa de

crescimento da demanda não for tão elevada.

Conflito distributivo

A princípio, segundo os argumentos teóricos citados mais acima, não

seria razoável imaginar que os processos inflacionários usuais sejam

decorrência simplesmente de excesso de demanda.

Seria mais razoável supor que os processos inflacionários observados

sejam decorrentes de aumentos ou tentativas de reajuste de rendimentos

nominais com o objetivo de aumentar ou garantir a manutenção da participação

de alguma parte da sociedade na renda, que conduziriam à luta de outros

34 Neste trabalho, quando nos referirmos a desvalorização ou desvalorização cambial estamos querendo dizer: desvalorização da moeda doméstica. 35 Apesar de boa parte da mão-de-obra estar no exército ou trabalhando para o serviço de guerra e haver dificuldade de importar da maior parte do mundo. Nesse caso, pode ser alegado que houve controle de preços pelo governo e por isso não houve inflação significativa. De qualquer forma, não houve significativo “excesso de demanda”. Apesar do alto crescimento da demanda e das restrições ao aumento de preços, a oferta cresceu a taxas muito elevadas.

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67

grupos por manter sua participação e, por conseqüência, uma aceleração ou

inércia do processo inflacionário.

Lerner dá maior destaque ao que ele chama de inflação de vendedores

ou inflação administrada36. Segundo Scitovsky (1984: 1562), a primeira menção

à esse tipo de inflação na teoria econômica foi no Tratado da Moeda de Keynes

(1930), mas Lerner teria sido o primeiro a notar a característica crucial desse

tipo de inflação: o excesso de reivindicação por apropriação de parcela da

renda, ao invés de excesso de demanda por produtos. Segundo Lerner

(Scitovsky, 1984: 1562-3), esse tipo de inflação ocorreria quando “os donos de

fatores de produção reclamam, como suas respectivas partes na renda,

pagamentos que somados representam mais do que 100% do valor do

produto”.

Scitovsky (1984: 1563) ressalta que a inflação de vendedores é

compatível com uma ampla gama de níveis de desemprego e de capacidade

ociosa. Segundo Lerner (1972, apud Scitovsky, 1984: 1563) esse tipo de

inflação só é possível na presença de imperfeições de mercado e poder de

monopólio. O excesso de reivindicação por apropriação de parcelas da renda

surgem das decisões conscientes dos “administradores” responsáveis pela

definição de preços e salários. Tais “administradores” teriam poder para decidir

os preços ou salários unilateralmente ou por negociação com outros

“administradores”.

Para Lerner (1972, apud Scitovsky, 1984: 1564) há ainda a inflação

expectacional, que ocorre quando uma inflação decorrente de outras causas

persiste a ponto de levar os agentes a esperar ou temer sua continuidade.

Nessa situação, os preços e salários seriam reajustados por seus

“administradores” com o objetivo de impedir a perda de participação no

produto.

Esse tipo de inflação se distinguiria dos outros tipos de inflação

administrada por não ser “agressiva”. Na forma mais agressiva, as pretensões

sobre as parcelas da renda dos diversos grupos sociais superam a renda total

36 “Administered inflation”. Uma tradução alternativa poderia ser inflação administrativa. O conceito “administrada” não visa conotar um gerenciamento da inflação, mas um gerenciamento dos preços por parte dos administradores de preços e salários das empresas e sindicatos.

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68

gerada, enquanto a inflação expectacional é defensiva, pois os grupos sociais

se sentiriam satisfeitos com a parcela da renda que se apropriam.

Esses dois últimos tipos de inflação, que são os realmente destacados

por Lerner, poderiam ser reunidos pelo conceito de inflação por conflito

distributivo. O primeiro caso seria, como sugere Lerner, decorrente de uma

posição ofensiva de um grupo social que deseja ou precisa aumentar sua

parcela na renda, o que leva outros grupos a adotar uma posição defensiva, o

que pode gerar espiral inflacionária crescente. No segundo caso, os diversos

grupos sociais assumem uma posição defensiva frente à inflação esperada e

buscam reajustar seus preços para que não percam sua participação na renda.

Assim, podemos dizer que o chamado conflito distributivo seria para

Lerner a causa da inércia inflacionária e dos comportamentos mais comumente

observados de crescimento da inflação.

Segundo Serrano (2002: 3), aumentos, precipitados por razões diversas, nos

chamados preços de oferta37

podem gerar “(...) inflação de custos por conta de

uma incompatibilidade distributiva entre os seus diversos componentes

(salários, lucros etc.) e não por escassez física de produtos”.

O conflito distributivo é um processo de luta pela manutenção ou

ampliação da participação na renda dos grupos sociais com poder para

negociar ou impor condições mínimas de participação na renda. Isso faz com

que o conflito distributivo possa resultar em inflação aceleracionista ou em

alguma inércia inflacionária.

O processo depende principalmente da tentativa dos trabalhadores em

impedir que aumentos dos preços reduzam seu poder de compra. Os

sindicatos reivindicariam a manutenção do poder de compra dos salários.

Em uma economia fechada, o valor dos produtos vendidos pode ser

dividido simplificadamente em renda do capital (lato sensu) e do trabalho. Os

principais componentes das rendas de capital são os lucros e os juros.

Muitas empresas e mesmo alguns setores conseguem impor margens

de lucro que embutem significativo poder de monopólio. Entretanto, as

margens de praticamente nenhuma empresa é independente das taxas de

juros. Essas taxas são fundamentais para o cálculo do custo de oportunidade

37 “Os preços de oferta são determinados pelas variáveis distributivas e pela tecnologia” (Serrano, 2002: 3). Os preços de oferta são os custos de produção mais uma margem de lucro.

Page 69: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

69

dos investimentos. Dessa forma, são fundamentais para o cálculo da margem

de lucro máxima que inibe a entrada de concorrentes, imitadores e produtos

substitutos; assim como, da disposição da empresa em sacrificar margem de

lucro no presente para desenvolver mercados, tecnologias, posições de

mercado ou ganhos de escala estáticos ou dinâmicos.

Enquanto a taxa de lucro esperada dos investimentos for superior à

remuneração38 do excedente de caixa ou do custo final de financiamento,

haverá desejo de investir e, portanto, pressão sobre a margem de lucro

possível das firmas já instaladas, mesmo em setores com poder de monopólio,

no sentido dado por Kalecki (1954).

Dessa forma, a participação dos lucros/juros na renda depende

significativamente do nível de taxa de juros. Assim, dados os salários nominais,

a política de juros afeta o nível de preços e, portanto, a taxa de inflação, mas

de maneira inversa à atribuída pelo pensamento ortodoxo. Em situação de

desemprego, dada a taxa de câmbio, reduzir a taxa de juros, reduz a taxa de

inflação. Aumentar a taxa de juros tem o efeito inverso.

Assim, em uma economia fechada, dada a taxa de juros, a margem de

lucro tenderia a permanecer estável. Exclusivamente nesse caso, a taxa de

inflação seria determinada pela taxa de inflação dos salários. A taxa de inflação

dos salários depende de vários fatores, como o reajuste de preços passados,

medo de inflação futura e pode de barganha de diversas categorias de

trabalhadores. Nessa situação, como defende Lerner (1951), se uma categoria

deseja ganhos reais e as outras não admitem perdas, haverá aceleração do

processo inflacionário.

Entretanto, mesmo em uma economia fechada, as margens de lucro não

são rígidas. Como vimos, o Banco Central, via política monetária, pode afetar

as margens de lucro. Dessa forma, ao reduzir as taxas de juros, pode permitir

que o desejo de ganhos reais de determinado conjunto de trabalhadores não

signifique necessariamente inflação. O Banco Central pode manter ou reduzir

os juros nominais estáveis, permitindo que o aumento dos salários leve à

redução dos juros reais, reduzindo o impacto do aumento dos salários sobre a

inflação, via redução das margens de lucro.

38 Ponderada pelo risco.

Page 70: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

70

Mas se o Banco Central impede a queda dos juros reais, a luta por

manutenção da participação na renda significará inflação inercial ou mesmo,

em circunstâncias especiais, em aceleração da inflação.

Podemos dizer que uma das falhas na teoria da inflação de Lerner é

desconsiderar a possibilidade de redução das margens de lucro em

decorrência da queda dos juros reais. Para o autor, essas margens são

estáveis e não considera a dependência das mesmas em relação à taxa de

juros.

Lerner sugere que um dos momentos em que poderia ocorrer uma

tentativa de aumento da participação na renda é quando o nível de atividade

atinge o que ele chama de nível de baixo de pleno emprego ou outros autores

chamam de NAIRU39. Nessa situação, algumas categorias em algumas regiões

teriam seu poder de barganha elevado e obteriam aumentos salariais, que uma

vez repassados aos custos poderiam iniciar um processo inflacionário. As

primeiras categorias terão aumentos salariais que significam ganhos reais de

poder de compra. Porém, à medida que os outros sindicados exigirem

aumentos equivalentes, o aumento dos custos na economia será generalizado.

As empresas repassarão esse aumento generalizado de custos nos seus

preços e os ganhos dos trabalhadores serão em grande parte anulados.

Mas em uma economia aberta o aumento do poder de barganha dos

trabalhadores não é a única forma de ativação do conflito distributivo. Existem

outras formas, como o aumento dos juros, mas a mais importante delas é o

câmbio.

Aspectos políticos do (baixo) pleno emprego

"Sugerir à City de Londres [ou à Av. Paulista] uma ação social para o bem público [e.g., subsídio ao consumo popular] é como discutir a Origem das Espécies com um bispo, sessenta anos atrás. A primeira reação não é intelectual, mas moral. É uma

39 Lerner e Colander (1980 e 1982) propõem um plano para eliminar a inflação de conflito distributivo (administrativa) sem a necessidade de eliminar o conflito distributivo em si. É um plano muito interessante que vê o aumento geral de preços como uma externalidade negativa dos aumentos individuais. Ele propõe que o governo impute uma penalidade sobre os agentes que aumentarem seus preços. Para os agentes que reduzirem seus preços o governo concede títulos que podem ser vendidos para os agentes que aumentaram seus preços usarem como pagamentos de suas penalidades ao governo. A intenção é que as mudanças de preços relativos não causem impacto no índice geral de preços.

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71

ortodoxia que está em questão e, quanto mais persuasivo os argumentos, mais grave será a ofensa." Jonh Maynard Keynes

“Entre os opositores da (...) [da idéia de que o pleno emprego pode ser alcançado pelo gasto público] estão proeminentes economistas proximamente conectados com os bancos e a grande indústria. Isso sugere que há uma motivação política de fundo na oposição às propostas de pleno emprego, ainda que os argumentos utilizados sejam econômicos. Isso não quer dizer que aquelas pessoas que defendem tais argumentos não acreditam em sua ciência econômica, ainda que ela seja tão pobre. Mas ignorância obstinada é usualmente uma manifestação de motivações políticas ocultos. Há, entretanto, indicações ainda mais diretas que uma questão política de primeira grandeza esteja em jogo aí.” (Kalecki, 1942: 349)

Em seu livro de 1951 (Economics of Employment), Lerner sugere que o

ponto de baixo pleno emprego corresponderia a um volume de desemprego de

aproximadamente 6 milhões de trabalhadores. Pelos cálculos de Scitovsky

(1984: 1562), esse montante corresponderia à época a uma taxa de 10% de

desemprego.

Confiando na precisão de Lerner e Scitovsky, a princípio, poderíamos

dizer que Lerner (1951) tenha cometido um grande erro na sua estimação do

nível de baixo pleno emprego.

Esse erro pode ser conseqüência da desconsideração por parte do autor

de importantes aspectos do principal atributo do conceito de baixo pleno

emprego: o “excessivo” poder de barganha dos trabalhadores.

Podemos dizer que a posição de Lerner seja, de certa forma, ingênua ao

desconsiderar os aspectos políticos sobre essa questão. Nesse sentido,

Kalecki em seu grande clássico de 1942, ‘Aspectos políticos do pleno

emprego’, criando uma grande luz sobre esse problema.

Para Lerner, o “excessivo” poder de barganha dos trabalhadores seria

causado pela escassez de mão-de-obra de determinadas categorias em

determinadas regiões. Kalecki (1942) mostra que essa explicação não mostra

toda a história.

Kalecki sugere que o poder de barganha dos trabalhadores não depende

apenas de circunstâncias estritamente econômicas, como excedentes de mão-

de-obra por localidade. Ele mostra que há questões políticas fundamentais

determinando as condições de exercício desse poder de barganha.

Page 72: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

72

O grande economista polonês observou a dinâmica política dos anos 30

e constatou que os países facistas alcançavam com políticas fiscais

expansionistas níveis muito altos de emprego sem que os grandes capitalistas

se sentissem ameaçados pelo crescimento do poder de barganha dos

trabalhadores. Por outro lado, nos países democráticos, as tímidas tentativas

de expansão fiscal eram duramente combatidas pelos grandes empresários.

Segundo Kalecki (1942), esses temiam que se o governo descobrisse

com gear pleno emprego quando desejasse, o poder de barganha dos

trabalhadores se tornaria maior do que o aceitável. O surpreendente é que as

políticas fiscais expansionistas geram aumento nos lucros. Mas para Kalecki,

os grandes capitalistas prefeririam menos lucro, se mais lucro viesse

acompanhado de menor dependência do governo em relação a eles. Se o

governo tem uma política fiscal flexível e capaz de manter o pleno emprego

independentemente do nível de investimento privado, suas promessas de gerar

emprego ficam dependentes da disposição a investir dos empresários, e,

assim, terá sempre que agradar os grandes empresários e evitar quaisquer

medidas que possam deixar assustados ou contrariá-los.

Além do temor quanto à possibilidade do nível de atividade se tornar

independente de seu estado de confiança, segundo Kalecki (1942: 351), a

reprovação dos líderes do mundo dos negócios a uma política de gasto público

torna-se ainda mais aguda quando os objetivos desse gastos forem o

investimento público ou o subsídio ao consumo popular. No primeiro caso, o

motivo é o temor do investimento público concorrer com o investimento privado.

No segundo caso, cuja oposição é ainda maior, o temor dos capitalistas se

deve a uma questão moral. “Os fundamentos da ética capitalista requerem que

você ganhará o pão com o suor do seu rosto – a menos que tenha meios

privados [para conseguir seu pão sem suor]” (Kalecki, 1942: 351). Mas talvez a

maior restrição dos capitalistas a uma política de pleno emprego seja o medo

de que a demissão de empregados deixe “de exercer sua função de medida

disciplinar. A posição social do patrão ficaria minada. (...) As greves por

aumento salarial e melhorias nas condições de trabalho criariam tensão

política. (...) Os líderes empresariais apreciam mais a disciplina nas fábricas e a

estabilidade política do que os lucros” (Kalecki, 1992: 351).

Page 73: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

73

Kalecki (1942) conclui que a estrutura política dos países capitalistas

democráticos precisaria passar por uma “reforma crucial” para se tornar

adequada à manutenção de políticas de pleno emprego. No entanto, Kalecki

admite que não haveria, após a Segunda Guerra, maiores restrições políticas à

usar política fiscal para manter a economia livre da depressão e de recessões

mais sérias.

Nesse ponto, podemos perceber algumas conclusões comuns entre

Kalecki (1942) e Lerner (1951). O nível de emprego estimado por Lerner (1951)

para o nível de baixo pleno emprego é similar a um nível que seja apenas o

suficiente para manter a economia livre de recessões mais sérias.

Estranhamente, é nesse ponto de concordância que ambos se

equivocam com relação ao período do pós-guerra. Nesse período, a economia

dos países desenvolvidos em geral se manteve muito próxima a uma pleno

emprego de fato, apesar das baixas taxas de inflação.

“Esta performance foi resultado de um nível bastante moderado de

conflito distributivo nos países capitalistas centrais no pós-guerra praticamente

até o fim dos anos 60, contrariando o que Kalecki (1942) havia previsto”

(Serrano, 2004:185).

Serrano (2004: 185) atribui esse resultado, para o caso americano, à

“forte, rápida e eficaz repressão aos sindicatos e organizações de esquerda a

partir de 1947”. Porém, em troca “os sindicatos obtinham alto nível de emprego

e salários reais crescentes” (Serrano, 2004: 185).

Em outros países industrializados em que a esquerda e o movimento

operário eram mais fortes, apesar do pleno emprego, a inflação foi em parte

controlada pelo câmbio fixo, mas houveram também instrumentos de

manutenção da disciplina pelos trabalhadores. Um desses instrumentos foi o

próprio câmbio fixo. Os aumentos salariais nos setores que dependiam de

mercado externo ou concorriam com importação eram necessariamente

limitados e dependiam do crescimento da produtividade. A resistência dos

empresários desses setores a reajustar salários é mais alto, pois possuem

maior dificuldade de repassar os preços. Além disso,se os salários subissem

demais, o país pode sofrer perda de competitividade, restrição externa e

desemprego. Mas um importante fator para a manutenção do baixo conflito

distributivo pode ter sido o espírito de consenso do período. Por parte dos

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74

trabalhadores o desejo de reconstrução e o grande progresso material pode ter

contribuído para aumentar a disposição para o consenso. No caso dos

capitalistas, além desses fatores, o perigo do comunismo pode ter ajudado.

Ademais, “em alguns países específicos onde talvez a esquerda fosse ‘forte

demais’, o compromisso com a moderação das reivindicações se devia

também ao justificado temor de que uma radicalização levasse a golpes

militares doméstico patrocinados pelos EUA, em nome da luta do mundo livre

contra a ameaça comunista” (Serrano, 2004: 186).

Entretanto, não podemos esquecer que as baixas e estáveis taxa de

juros o estável preço do petróleo, a elevada taxa de progresso técnico

contribuíram para esses resultados.

“Quando Kalecki retoma a discussão dos aspectos políticos do pleno emprego em um artigo de 1971 (Kalecki & Kowalik, 1971), o sucesso deste arranjo do pós-guerra o faz coerentemente argumentar que, de fato, houve uma ‘reforma crucial’ nos países capitalistas. Esta performance econômica e social dos países capitalistas regulados pelo Estado no contexto geopolítico da Guerra Fria, segundo Kalecki, afastou simultaneamente a possibilidade de colapso econômico, de guerras entre os principais países capitalistas e também da revolução socialista nos países avançados, onde a prosperidade dos trabalhadores era crescente. Segundo o autor, os países capitalistas haviam ‘aprendido o truque’ de evitar as crises e a desordem do capitalismo desregulado através da intervenção estatal. Ao final deste artigo de Kalecki, no entanto, chama a atenção para o fato de que a relativa estabilidade do capitalismo reformado dependia de uma alto grau de ‘conformismo social’ e que isto talvez estivesse começando a mudar a partir dos movimentos sociais contestatórios que surgiram no final dos anos 60 – ainda que na visão do autor estes não parecessem chegar a ameaçar a existência das relações de propriedade capitalista” (Serrano, 2004: 190).

A importância dos aspectos políticos para a determinação do ponto de

baixo pleno emprego se tornam mais evidentes quando percebemos a

velocidade em que as economias desenvolvidas passaram entre o final dos

anos 60 para o início dos anos 70 de uma situação de baixa contestação

social, baixo conflito distributivo, inflação reduzida e desemprego muito

pequeno, para uma situação em que todas essas variáveis se tornam críticas.

“Nos últimos anos da década de 60 ocorreu uma súbita redução do grau de ‘conformismo social’ nos países industrializados com a chegada no mercado de trabalho de uma nova geração de trabalhadores que havia crescido em um ambiente de excepcional segurança política e econômica. O grau de militância sindical aumentou drasticamente, simultaneamente aos movimentos estudantis e de grupos em luta por direitos civis. No caso dos EUA, o grande ímpeto a esta radicalização política e a contestação da ordem social vigente foi dado pelos conflitos raciais e pela oposição à guerra do Vietnã. A principal conseqüência econômica direta deste novo ambiente de contestação foi um grande acirramento do conflito distributivo em todos os países centrais.” (Serrano, 2004: 190-1).

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75

Poderíamos dizer que nos anos 70 nos EUA o nível de baixo

pleno emprego passou a corresponder a um nível de desemprego mais

elevado. Já a partir dos anos 80 e principalmente nos anos 90, graças à forte

repressão aos sindicatos o nível de baixo pleno emprego se deu com um nível

de desemprego menor.

Dessa forma, concluímos que o nível de baixo pleno emprego é

fortemente dependente de condições políticas, institucionais e se altera

historicamente. Além disso, o nível de baixo pleno emprego está distante de

ser a única variável importante a determinar a taxa de inflação. Outra variável

que tem uma relação muito importante com o nível de preços é o câmbio. Na

próxima seção desenvolveremos melhor essa relação.

2.2. Balanço de pagamentos e as Finanças funcionais segundo Lerner

2.2.1. Restrição externa

“Na prática a principal restrição objetiva a políticas macroeconômicas que levem a uma expansão ordenada da demanda final se encontra, de forma especialmente drástica no caso de países em desenvolvimento, na restrição de balança de pagamentos, pois as divisas são, em última instância, o "insumo" que é realmente escasso no processo de desenvolvimento.” (Serrano e Medeiros, 2004: 10)

A restrição externa é um conceito fundamental para se compreender a

natureza da política econômica em uma economia aberta. Como os países não

são auto-suficientes e precisam, em geral, pagar importações e obrigações

com moeda internacional que não emitem, é perfeitamente possível que não

disponham de divisas no volume necessário.

Se houver risco de “escassez de divisas”, haverá limitações à política

econômica, pois a necessidade de gerar divisas condicionará as outras metas

do governo.

A característica mais relevante do comércio entre países é que esse só

pode ser realizado com moeda aceita como meio de pagamento internacional.

Na grande maioria dos casos, os Estados não são capazes de emitir a moeda

aceita como meio de pagamento internacional. Dessa forma, os Estados

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76

precisam adquiri-la interna ou externamente de quem aceita trocá-la por sua

moeda nacional40. Quem aceita essa operação são basicamente exportadores

residentes no país, que são obrigados a pagar impostos, despesas e dívidas

em moeda nacional e, portanto, precisam vender sua moeda internacional em

troca de moeda nacional. Em geral, esses exportadores são a fonte primária de

moeda internacional não apenas para o Estado, mas também para outros

residentes que necessitam importar ou pagar compromissos com o exterior.

Os Estados Nacionais ao fazerem uso de sua política econômica podem,

a princípio, expandir a economia e assim empregar crescentemente os

trabalhadores ociosos até alcançar uma situação de pleno emprego ou quase.

Para isso bastaria-lhe apenas a autoridade “natural” sobre a utilização da

política de juros, de gastos e de tributação.

Porém, a economia não pode funcionar adequadamente sem um

contínuo abastecimento de insumos importados, sendo que boa parte dessas

importações não pode ser substituída por produção interna ou pode ser

substituída apenas sob condições de custo ou qualidade muito desfavoráveis.

A princípio, o país poderia se endividar no exterior para cobrir um

volume de obrigações externas e importações superior a suas receitas em

moeda estrangeira. No entanto, há limites ao endividamento externo, nesse

ponto, o governo será obrigado a reduzir sua demanda liquida de divisas e,

portanto, sua capacidade de crescimento. Nesse ponto, seria evidente a

restrição externa à expansão do nível de emprego.

Para Lerner o nível de baixo pleno emprego é uma restrição ao

crescimento econômico. Se for possível atingi-lo sem problemas de

financiamento do balanço de pagamentos, não seria razoável dizer que a

‘restrição externa’ seja um limite relevante, pois a verdadeira restrição seria,

seguindo Lerner, as limitações localizadas na oferta de mão-de-obra, que

poderiam causar “excessivo” poder de barganha para os trabalhadores. Assim,

nesta tese, vamos utilizar o conceito de restrição externa para as situações em

que a limitação à expansão do nível de emprego no curto prazo decorre de

problemas no balanço de pagamentos. Faremos isso para diferenciar das

outras possíveis causas de restrição ao crescimento do emprego.

40 Ou tomar empréstimo no exterior. Mas o pagamento de empréstimos supõe capacidade de trocar moeda nacional por moeda internacional no futuro.

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77

2.2.2. A visão otimista de Lerner

A restrição externa é uma questão fundamental. Porém, até agora nem a

restrição externa e nem questões típicas de economia aberta receberam maior

tratamento em nossa discussão sobre o trabalho de Lerner. De fato, Lerner não

mostra grande preocupação com essa questão quando escreve sobre finanças

funcionais. No entanto, poderíamos dizer que Lerner está ciente dos problemas

em potencial da restrição externa.

Como vimos no capítulo anterior, Lerner diz que a analogia do

endividamento individual não faz sentido para entender a dívida pública, mas

tem relação com a dívida externa. O endividamento público não tem a função

de financiar o governo, pois o dinheiro arrecadado não é necessário para

viabilizar seus gastos. Mas, como a dívida individual, a dívida externa é sim

uma forma de financiamento externo do país. A possibilidade de restrição

externa se evidencia nesse ponto.

Lerner reconhece o efeito direto que as políticas deliberadas de

obtenção de superávit comercial têm sobre a redução nas importações e,

portanto, no emprego industrial e agrícola nos seus parceiros comerciais.

Assim, reconhece que o déficit comercial imposto pelas políticas protecionistas

ou recessivas dos parceiros comerciais pode causar desemprego. Lerner

(1951), no entanto, pensa que os efeitos recessivos desse déficit comercial

podem ser plenamente eliminados pelas finanças funcionais.

Nesse caso, as finanças funcionais terão como conseqüência imediata

um aumento ainda maior do déficit comercial decorrente da maior necessidade

de gastos públicos e privados feitos por residentes. Supor, por princípio, uma

sustentabilidade desse resultado seria negar os princípios da restrição externa.

Seria negar a analogia que Lerner ressalta entre a dívida externa e a dívida

privada. Afirmar a conveniência dessa analogia significa que os princípios de

solvência e prudência financeira requeridos dos devedores privados são

aplicáveis, com as devidas adaptações, ao devedor externo. Lerner, portanto,

como veremos, tem ciência de que são importantes as preocupações com o

endividamento EXTERNO excessivo.

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78

A princípio, Lerner (1951: 332-4) não parece ver como um grande

problema o financiamento do déficit comercial. Para ele, os países que estão

em recessão acabam tendo pouca demanda por importações e saldo comercial

positivo. O aumento das exportações é uma forma de reduzir o desemprego

causado pela queda nas vendas internas. Dessa forma, os governos e os

exportadores de países com alto desemprego ofereceriam crédito farto aos

importadores.

Mas o crédito externo tem limites. Lerner (idem: 334) sustenta que os

exportadores dos países que acumulam saldos comerciais podem reduzir seu

interesse em manter o crescimento do volume de financiamento

indefinidamente. Além disso, os concorrentes nacionais dos bens importados

podem alegar concorrência desleal dos exportadores de outros países pelo o

uso abusivo de condições de financiamento facilitadas. Porém, a questão mais

importante é o risco de insolvência externa e crise cambial do país. Esse é um

problema temido tanto por credores quanto pelos governos dos países

devedores, pois pode fazer com que a demanda por importações e serviço da

dívida externa sejam menores do que a oferta de crédito externo.

Assim, “se os países deprimidos não financiam nossas importações

líquidas, haverá escassez de divisas” (idem: 334). A possibilidade e escassez

de divisas é o princípio básico da restrição externa.

Lerner (idem: 334) acha que essa escassez de divisas pode ser

eliminada pela desvalorização cambial e, assim, seriam mantidas as metas das

finanças funcionais. A falta de divisas levará à desvalorização da moeda do

país e consequentemente ao crescimento da competitividade de suas

exportações e uma perda na competitividade dos importados. Por

conseqüência, o saldo comercial aumentaria.

Lerner é otimista em relação à possibilidade desse processo levar à

eliminação do déficit em conta corrente e no balanço de pagamentos. “O

movimento da taxa de câmbio, portanto, continuará até que o déficit comercial

desapareça. Nossas importações cairão e nossas exportações aumentarão até

que elas se igualem. (...) [Assim, adotando as Finanças Funcionais] não há

necessidade da nossa economia como um todo sofrer qualquer depressão que

pode estar ocorrendo no exterior” (idem: 334-5).

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79

Essa conclusão de Lerner é muito polêmica. Ela implica que não haveria

de fato uma decisiva restrição externa, ou pelo menos, não haveria restrição

que impedisse uma economia de atingir o pleno emprego.

Mas se, por um lado, essa proposição é polêmica, por outro, ela é

fundamental para viabilizar a generalidade da teoria das finanças funcionais; ou

seja, sua a validade inclusive para os países pequenos ou subdesenvolvidos.

Lerner (1951: 335-9) reconhece que sem ela a teoria das finanças funcionais

não poderia se limitar apenas às políticas fiscais e monetárias para se manter

capaz de atingir suas duas metas essenciais. Para o autor (1951: 335), “as

alternativas à depreciação [da moeda] são a deflação, as restrições às

importações e a depressão”. A alternativa do endividamento externo

continuamente crescente é considerada não sustentável.

Como a maioria dos keynesianos, Lerner (1951: 336-8) considera

“impossível” um ajuste de competitividade externa por via da deflação sem uma

conseqüente depressão. A depressão pode realmente ser eficaz para manter o

endividamento externo e o câmbio estáveis.

A possível tendência do déficit comercial levar à depressão, no entanto,

abortaria a conclusão fundamental da teoria das finanças funcionais: a

conclusão de que o pleno emprego pode ser alcançado apenas com políticas

fiscais e monetárias.

A possível necessidade de restrições às importações implicaria na

utilização de outras políticas, que não tipicamente fiscais ou monetárias, para o

alcance do pleno emprego e, de certa forma, mostraria que as finanças

funcionais é uma teoria incompleta, pelo menos para a aplicação em

determinados países.

É, portanto, fundamental para a defesa do formato original da teoria que

Lerner (334-6) afirme que as restrições às importações são desnecessárias.

Para o autor a desvalorização cambial sempre resolveria as deficiências do

balanço de pagamentos.

Além de desnecessária, a restrição às importações também seria

desaconselhável, pois seria “danosa à cooperação internacional (...) [e ao]

melhor uso da divisão internacional do trabalho” (idem: 338).

A principal questão dessa tese será mostrar que, na maior parte dos

casos, a conclusão do Lerner não é válida. Mais especificamente, nos países

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80

que sofrem as conseqüências da restrição externa, a teoria das finanças

funcionais, tal como formulada originalmente, não é satisfatória. Isso decorre

da impossibilidade, na maioria das situações, (i) de alcance do pleno emprego

a curto ou médio prazo e (ii) do alcance do pleno emprego apenas com a

utilização de políticas fiscais e monetárias.

Essas impossibilidades se devem principalmente à grande dificuldade

em alterar significativamente o saldo em conta corrente e saldo de capitais sem

recorrer à recessão, a políticas comerciais e industriais ativas ou sem grandes

desvalorizações cambiais, principalmente em países menores ou menos

desenvolvidos. As desvalorizações cambiais maiores, em geral, levam a

inflações superiores às consideradas aceitáveis pelos governos e ou a

indexação de salários que impedem que o câmbio real se desvalorize o

suficiente para fazer a desejada reversão do saldo em conta corrente. Isso

significa que os objetivos das finanças funcionais podem não ser ambos

satisfeitos com a utilização apenas de políticas de demanda.

Assim, pretendemos adaptar, no capítulo 4, a teoria das finanças

funcionais para as situações onde não é possível atingir o pleno emprego com

rapidez e com a utilização de políticas de gerenciamento da demanda.

Mas antes vamos tentar explicar porque as desvalorizações podem não

ser capazes de permitir que a economia atinja o pleno emprego. A explicação

passa pela relação entre câmbio e inflação.

2.2.3. Câmbio e Inflação

“A inflação de custos; isto é, causada por aumentos autônomos nos preços de oferta [custos de produção + margens de lucro]; pode ocorrer mesmo em situações onde não haja excesso de demanda agregada” (Serrano, 2002: 3).

Como vimos acima, segundo Lerner e Wray, o processo inflacionário por

via do conflito distributivo poderia ser iniciado pela ultrapassagem do nível de

baixo pleno emprego ou de NAIRU. Todavia, não é preciso atingir tal nível de

emprego para se ativar o conflito distributivo. Aumentos exógenos nos custos

ou nas margens de lucro podem ter efeito parecido, mesmos em situações

recessivas ou de alto desemprego.

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81

Dadas as taxas de juros reais, os empresários em geral colocam

margens relativamente fixas sobre os custos como forma de proteção das

taxas de lucro e de coordenação do aumento de preços. Assim, aumentos

generalizados nos custos das matérias-primas, de moradia ou nas tarifas

públicas, por exemplo, podem levar a aumentos dos preços e

consequentemente aumentos das reivindicações salariais. Sindicatos fortes em

geral são capazes de garantir seu poder de compra. Uma vez atendidas essas

reivindicações, os preços subiriam e novas demandas por aumentos de

salários seriam levantadas.

Para Lerner, esse processo pode acontecer mesmo sob desemprego.

Segundo Lerner (1951: 200) “a proposição de que aumentos [generalizados] de

salários mantêm inalterados o salário real e a participação dos salários na

renda nacional é igualmente verdadeira para todos os níveis de emprego. Isto é

verdade tanto para uma situação de depressão, quanto para uma situação de

pleno emprego e por exatamente as mesmas razões”.

Essa constatação de Lerner decorre da perspectiva que o autor tem com

relação às margens de lucro. Para ele, as margens de lucro são rígidas em

termos reais. No item anterior, vimos que as margens de lucro são

dependentes da taxa de juros real, portanto, não são rígidas com relação ao

aumento de custos, quando o Banco Central permite que aumentos dos preços

impliquem em queda da taxa de juros reais. Essa atitude pode fazer com que

as margens de lucro absorvam boa parte do aumento de salários, diminuindo a

pressão inflacionária.

Há ainda outro fator importante que impede que as margens de lucro

sejam rígidas. Esse fator é a taxa de câmbio. Na seção seguinte, tentaremos

desenvolver essa relação.

2.2.3.1. Inflação em economias abertas

A doutrina dominante diz que as altas inflações são conseqüência de

elevados déficit públicos, entretanto, contrariando as conclusões dessa

doutrina, é muito comum observar taxas de inflação mais elevadas em países

com déficits públicos reduzidos e o contrário, taxas de inflação baixas, em

países com déficits públicos altos.

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82

A partir de Lerner (1951; 1972) e Serrano (2002), defendemos que os

processos contínuos, inerciais de inflação são mantidos por conflito distributivo

que toma a forma de inflação de custos. Esses processos são precipitados

pela tentativa de algum segmento da sociedade em aumentar sua participação

na renda ou algum tipo mais específico de aumento de custos, e são mantidos

pela tentativa de outros segmentos em manter sua participação a partir da

indexação de seus rendimentos à inflação passada ou esperada.

Vimos também que Lerner (1951) e Wray (1998) sugerem que esses

processos podem ser precipitados por aumento do poder de barganha dos

trabalhadores decorrentes de escassez generalizada ou localizada de mão-de-

obra. Esses autores, de certa forma, são parecidos com a tradição da teoria

econômica mais convencional ao relacionar inflação com o aumento de salários

decorrentes da redução do desemprego, como os diversos modelos da curva

de Philips e o conceito de taxa natural de desemprego.

Pretendemos mostrar, nesta seção, que, em economias abertas41,

inflações altas e contínuas não podem ser causadas simplesmente por

aumentos salariais ou escassez de trabalhadores. Certamente os aumentos

salariais podem gerar aumento dos preços, mas em uma economia aberta,

uma inflação alta só pode ser causada por uma espiral de câmbio-preços-

salários, e não uma simples espiral de preços-salários com sugere Lerner

(1951). Sob um câmbio fixo a inflação será necessariamente baixa42. E mais,

mantida a situação de câmbio fixo, ou com variação sob controle, a

ultrapassagem eventual do nível de baixo pleno emprego poderia em certas

situações deixar de ter potencial para precipitar uma inflação aceleracionista

mesmo se utilizadas as hipóteses de Lerner (1951) sobre o mercado de

trabalho43.

Falta ainda definir inflação baixa e alta. Poderíamos escolher um valor

arbitrário específico e afirmar que ele delimitaria imprecisamente esses

conceitos. Mas preferimos defini-los seguindo a metodologia funcionalista

proposta por Lerner. Seria interessante definir inflação baixa como aquela

41 Salvo talvez aquela que puxa a atividade econômica mundial. 42 Desde que a inflação internacional seja também baixa. 43 Como ilustração podemos citar algumas economias européias (alemã em particular) nos anos 60 e o Japão em seus períodos de mais alto crescimento. Esses países, por longos períodos, ultrapassaram significativamente os níveis de emprego em que normalmente se define como NAIRU.

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83

considerada aceitável e alta, a inflação que fosse não aceitável. No último

caso, sacrificar-se-ia, se necessário, outros objetivos governamentais para

reduzi-la.

Os governos podem definir e muitas vezes definem realmente suas

metas de inflação de forma arbitrária e rígida. Porém, a inflação não pode ser

um mal em si. Ela precisa causar outros males para que seja considerada

prejudicial. Lerner (1951: 96-7) dá alguns exemplos de problemas criados pela

inflação. Ele considera, entre outros problemas, que a inflação pode causar

uma redução do incentivo à produção em favor da especulação com a compra

de mercadorias. Hoje os economistas ortodoxos costumam destacar o que eles

chamam de “imposto inflacionário”. Esses problemas em geral seriam

significativos apenas com taxas de inflação muito superiores às metas

normalmente definidas pelos Bancos Centrais. Por isso, deve haver outra

justificativa para metas tão baixas.

Provavelmente ela deve estar relacionada com algum medo de que

acima de níveis mínimos, os salários e ou preços se tornem cada vez mais

rigidamente indexados. Assim, a partir desse patamar em que a inflação fica

mais rigidamente indexada, qualquer choque de custos ou modificação na

participação de algum segmento na renda nacional levará a indexação geral

que impediria a acomodação do choque e a alteração da distribuição de renda.

Nesse ponto, se um segmento da sociedade conseguir aumento em seus

rendimentos, haveria um choque de custos que seria incorporado como

aumento do nível de inflação, se essa parcela insistir em aumentar sua parte

na renda. Assim, supostamente, haveria um nível de inflação em que os preços

e salários se tornariam mais rigidamente indexados. E esse poderia ser o nível

que divide o conceito de inflação aceitável ou baixa do conceito de inflação

indesejável ou alta.

Concordamos com a visão tradicional que, mesmo sob câmbio fixo, as

inflações baixas podem ser resultado simplesmente de aumentos autônomos

de salários, aumentos de margens de lucro ou outros tipos de aumentos gerais

de custos. Porém, vamos propor aqui que, mantido o câmbio fixo ou com

pequena variação, a inflação alta é impossível ou efêmera. Em uma economia

aberta, esse nível de inflação só seria possível ou sustentável em decorrência

de desvalorizações cumulativas e indexadas aos salários e preços. Para

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84

defender essas proposições usaremos a teoria da inflação de custos por

conflito distributivo.

De forma geral, as teorias que relacionam inflação com problemas

cambiais não são novas. Há diversos autores que relacionam a hiperinflação

alemã e de outros países europeus pós primeira e segunda guerras a

problemas de balanço de pagamentos44.

Mais influentes foram as teorias da inflação estruturalistas-cepalinas. “Os

estruturalistas defendiam a idéia de que o crescimento gerava déficits externos

que causavam pressões de demanda no mercado de divisas e, em

conseqüência, provocavam uma desvalorização cambial elevando os custos

que eram repassados aos preços” (Sicsú, 2002: 119). Segundo Sicsú (2002:

119), os estruturalistas acreditavam que “um déficit externo, que em um regime

de taxas cambiais semifixas [nos anos 40 a 60], causaria pressão no mercado

de câmbio que era dissolvida com uma desvalorização, o que provocava um

aumento generalizado de preços”. Mas, nos anos 50 e 60, não só os cepalinos

ressaltavam a importância do câmbio para a taxa de inflação. “Segundo

[Ignácio] Rangel, a inflação tinha [também] como causa a instabilidade cambial”

(Bielschowsky, 2000: 234-5; apud Sicsú, 2002: 121).

Nos anos 80, essa abordagem focada no câmbio voltou a ter

importância, a partir da ampliação do interesse com relação à inflação

inercialista. Realmente, pode-se sugerir que “os fatos apontam na direção de

que os surtos inflacionários dos anos 80 são conseqüência direta da

deterioração das contas externas dos países latino-americanos e do virtual

estancamento dos fluxos voluntários de capitais para os mesmos. Da mesma

forma, as estabilizações que se consolidaram nos anos 90 refletiram um

movimento simétrico, qual seja, a melhoria das contas externas desses países

e principalmente seu retorno ao mercado internacional de capitais” (Bastos,

2001: 202) 45.

44 “Keynes (...) [associa] a natureza hiperinflacionária, em alguns países europeus [nos anos 20], às flutuações cambiais” (FERRARI, 1999: 231). Sobre a importância que Keynes dava à estabilização do câmbio no combate à inflação, ver Batista Júnior (1999) e Bastos (2001).

45 Em um contexto diferente podemos ver a mesma opinião: “os países latino-americanos que conseguiram evitar a inflação, ou gradualmente eliminar seus processos inflacionários, foram aqueles que conseguiram superar, de uma forma ou de outra, o impasse da restrição crônica de balanço de pagamentos” (Kaldor, 1978: 133; apud. Bastos, 2001: 213).

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Segundo Bastos (2001: 202), a mais importante “interpretação

alternativa [para “altas inflações”] segue a teoria da inflação de custos, e

aponta esses surtos inflacionários como resultado de grave desequilíbrio

externo, ocasionando persistente desvalorização do câmbio nominal com

impacto sobre os custos”.

Bastos (2001: 230) expõe ainda uma versão heterodoxa muito popular

no final dos anos 90 e neste início de século da posição ortodoxa, que defende

a importância do dilema entre juros e inflação. Pare ele, “uma taxa de juros

nominal reduzida implicaria na fuga de capital, que por sua vez teria como

conseqüência a aceleração da desvalorização cambial e finalmente da própria

inflação”. Mais à frente, vamos relativizar essa posição, mas, por hora, nos

interessa mostrar o quão difundida são as visões que relacionam inflação ao

câmbio.

Em economias abertas, a taxa de inflação está intimamente ligada à taxa

de câmbio, pois a taxa de câmbio determina a tendência da taxa de inflação (1)

do setor de importáveis46, (2) nos setores não-importáveis, mas que são

exportáveis e possuem pouca concorrência e alta facilidade de colocação de

parcela significativa da produção no mercado externo, (3) dos setores de não-

importáveis e não exportáveis que possuem alta concorrência e alta proporção

de insumos importáveis ou ainda alta proporção de endividamento ou de capital

externo. Esses setores, cujas taxas de inflação são determinadas basicamente

pela taxa de câmbio, são a maior parte da economia, e, portanto, determinam a

maior parte da inflação.

46 Chama-se aqui de importáveis o que a literatura econômica chama normalmente de tradeable. Considera-se mais apropriado esse conceito, em primeiro lugar, porque ele diz respeito ao fato dos bens ou serviços serem importáveis ou não, e não ao fato de serem tradeable (“comercializáveis externamente”). Segundo porque, por questões de barreiras comerciais e hábitos de consumo, existem, entre os produtos que normalmente seriam amplamente chamados de comercializáveis, alguns que são importáveis e não-exportáveis ou que são exportáveis e não-importáveis. Prefere-se aqui usar o termo importável, porque o que nos interessa aqui é a capacidade do câmbio alterar o teto de preços viável que os produtores nacionais podem atingir sem perder mercado para as importações. Essa diferenciação de conceitos pode ser especialmente útil para compreender uma das causas da relativa insensibilidade da inflação em alguns países desenvolvidos à desvalorização que suas moedas sofrem, particularmente, Japão, Europa e Inglaterra e com ressalvas os EUA. Nesses países, existiria um grande conjunto de setores que são exportáveis, mas fracamente importáveis. São setores que possuem pouca concorrência externa, ou porque as empresas do país são as mais competitivas, ou são monopolistas, ou tem alta fidelidade de seus clientes.

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Como se isso não bastasse, a taxa de inflação dos outros setores de

não-importáveis não consegue se distanciar a grande velocidade da taxa de

desvalorização da moeda a médio e longo prazo, quando a maioria desses

setores possui capacidade instalada e oferta de mão-de-obra suficiente para

suprir a demanda. Essa proposição se deve às propriedades estruturais da

distribuição de renda.

Os setores de não-importáveis ou são (4) fortemente concorrenciais, ou

(5) são oligopólios e sua margem de lucro possui um componente estrutural

determinado a médio e longo prazo pelas barreiras à entrada47, ou (6) seus

preços são controlados pelo governo. Isso significa que as empresas desses

setores não poderiam elevar significativamente suas margens por conta

própria, mesmo se estivesse ocorrendo um forte crescimento da demanda.

Entretanto, essas margens poderiam ser reajustadas se houvesse um

crescimento dos juros reais.

Os preços nesses setores poderiam ainda ser elevados se ocorresse um

aumento de custos. O principal componente de custos são os salários. Assim,

dada uma certa estabilidade da taxa de juros e de câmbio, uma inflação

elevada só seria possível se os salários se elevassem acentuadamente por

longos períodos acima da taxa de crescimento da produtividade.

No entanto, essa situação não é possível. O aumento no preço dos

importáveis não pode se descolar significativamente da taxa de desvalorização.

Uma elevação muitíssimo acelerada dos salários, por longos períodos, acima

da taxa de aumento da produtividade, quando as taxas de câmbio e juros estão

estabilizadas, implica que o lucro dos setores de importáveis ficaria muito

reduzida e o país perderia competitividade externa. Essa situação é

insustentável, primeiro porque a perda de mercado externo e interno obrigaria a

indústria nacional a fazer demissões em massa, o que impediria que os

salários se elevassem na proporção pressuposta, e segundo porque o déficit

em conta corrente aumentaria tanto que o governo seria obrigado a

desvalorizar ou a promover uma séria recessão.

47 Não queremos dizer que recessões, pressão sindical ou elevações de custos não afetem a margem de lucro, mas apenas que esse efeito ou é pouco significativo, se não implicar em mudanças sensíveis da taxa de lucro a longo prazo. Isso não implica que a distribuição de renda não possa ser alterada.

Page 87: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

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Na verdade, os empresários dos setores de importáveis, dos setores de

exportáveis e seus fornecedores, que correspondem no conjunto à boa parte

da demanda por mão-de-obra, tendem a conceder aumentos salariais em um

ritmo próximo ao crescimento da produtividade em economias com câmbio fixo.

Dessa forma, podemos concluir que a inflação elevada é possível, se e

somente se a taxa de câmbio se desvalorizar acentuadamente e de forma

cumulativa. Em outras palavras, a desvalorização acentuada e permanente é

condição necessária e suficiente para altas inflações em economias abertas.

Se a taxa câmbio estiver estabilizada, os salários médios não poderão

crescer tanto a ponto de causar uma inflação anual acima de um dígito. Porque

os salários são uma parte dos custos das empresas e precisarão crescer muito

mais do que 10% nas empresas que pode repassar aumentos tão grandes de

custos. Entretanto, apenas uma fração das empresas podem repassar esse

tipo de aumento de custos, pois quase todo setor industrial e agrícola compete

com importações ou dependem de exportações cujos preços dependem da

taxa de câmbio que estamos supondo estável. Portanto, a maior parte do setor

industrial e agrícola não poderia repassar os aumentos salariais tão grandes

para seus preços em um período tão curto.

Sendo assim, se os salários levarem a inflação para patamares acima de

casa de um dígito, os preços do setor de não-importáveis estariam aumentando

muito acima de 10% e os salários aumentando ainda mais, pois eles são

apenas uma parte dos custos. Não seria nenhum exagero imaginar que os

salários precisariam aumentar mais de 30% em um ano para que os preços

dos não-importáveis se elevem a ponto de causar sozinhos uma inflação geral

de 10%; porque os outros custos dos não-importáveis, como insumos

industriais, minerais e agrícolas que venham do setor de importáveis,

depreciação, amortizações, aluguéis, infra-estrutura como telecomunicação e

transporte, energia e custos de capital não teriam aumentado

significativamente48. E, como já afirmamos, mesmo que os salários tenham tido

aumentos tão significativos a ponto de causar uma elevação da inflação geral

de mais de 10% em um determinado ano, essa situação não pode ser

48 Não-importáveis como aluguéis e custos de infra-estrutura, como energia elétrica, telecomunicação e transporte, possuem custo salarial reduzido.

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recorrente, porque significaria que a participação dos salários e dos lucros do

setor de não-importáveis na renda estaria crescendo a taxas insustentáveis.

Com uma taxa de câmbio estável, essa situação implicaria que a margem de

lucro do setor de importáveis se tornaria negativa em pouco tempo, e, portanto,

faria as exportações despencarem e as importações explodirem.

Aliás, os empresários do setor de não-importáveis, nem mesmo

concederiam aumentos de salários em tais patamares. Se os trabalhadores

insistirem em cobrar tais aumentos, a demanda por mão-de-obra do setor de

importáveis provavelmente sofreria uma sensível redução, impedindo

viabilidade de aumentos tão grandes de salários. Essa conclusão decorreria da

redução da rentabilidade. E mesmo se os empresários fossem obrigados a

conceder esses aumentos de salários e o governo garante a demanda por

mão-de-obra com políticas expansionistas, a perda de competitividade tornaria

o déficit comercial muito elevado que cresceria em uma progressão geométrica

a partir do crescimento dos salários e a economia acabaria sofrendo uma crise

de balanço de pagamentos. Dessa forma, não seria sustentável aumentar

salários a taxas muito elevadas e manter a taxa de câmbio estabilizada. O

mesmo poderia ser dito em relação à taxa de juros, pois se essa cresce sem

parar e os salários reais não perdem muito valor, a perda de competitividade

externa seria equivalente.

Pelos motivos acima colocados. Numa economia aberta que não emite a

moeda que funciona como meio de pagamentos internacional e que mantêm a

taxa de câmbio estabilizada, não é possível que a inflação se sustente em

patamares considerados elevados, como por exemplo, acima da casa de um

dígito por ano.

Concluindo, essa afirmação se sustenta em dois motivos: o primeiro é

que os bens importáveis representam parte significativa dos gastos dos

consumidores e dos custos das empresas, e o segundo é que uma inflação

independente nos não-importáveis é sempre contida. Esse segundo resultado é

devido principalmente à pressão da concorrência sobre as margens ou a

pressão do desemprego no setor de importáveis sobre o crescimento dos

salários. A elevação nos lucros via aumento de preços de alguns setores é

sempre limitada, não podendo ser autocumulativa, assim como, o aumento dos

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89

salários acima dos preços médios, que é necessariamente limitado por período,

se a taxa de câmbio estiver estabilizada.

2.2.3.2. Câmbio flutuante não elimina a restrição externa

“Inflação aleija, desemprego esfola, câmbio mata” Mario Henrique Simonsen

Vimos, que Lerner (1951) reconhece as questões envolvidas na restrição

externa. Para ele, um déficit comercial prolongado pode ser financiado por

algum tempo, mas não para sempre. Nesse caso, o déficit comercial em algum

momento tem que ser eliminado. Segundo o autor, as opções para isso seriam

a depreciação da moeda, a deflação, a recessão e as restrições à importação.

Dessas, somente a primeira seria uma escolha factível e desejável. A deflação

não seria viável sem recessão. A recessão seria condenável pelo efeito sobre o

emprego. E as restrições à importação seriam condenáveis pelo efeito negativo

sobre o comércio e a cooperação internacional.

Restaria, assim, a depreciação cambial como política viável para evitar o

déficit comercial e seus outros potenciais remédios. Lerner (1951) nem

considera a hipótese de que a depreciação possa não ser suficiente para

eliminar o déficit comercial e nem a necessidade de utilização de outros

remédios mais amargos.

De fato, Lerner (1951) está negando que a restrição externa possa ser

capaz de impedir que economia atinja o pleno emprego. De certa forma, está

negando a própria relevância da restrição externa, pois a verdadeira restrição

ao crescimento continuaria sendo, como no resto de sua teoria, o pleno

emprego.

Este trabalho objetiva mostrar que essas proposições de Lerner (1951)

não podem ser generalizadas. Elas podem realmente valer em países e

situações específicas, mas de modo algum são gerais. Uma desvalorização

real que possa induzir saldos comerciais não negativos em situação de pleno

emprego pode não ser possível ou implicar em inflação superior à considerada

aceitável pelo governo.

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Vimos que, em economias abertas, a inflação alta é conseqüência de

uma espiral de câmbio-preços-salários na forma de conflito distributivo. Esse

tipo de inflação decorre da incapacidade ou indisposição do governo impedir a

reindexação da taxa de câmbio.

A moeda pode se desvalorizar de forma consentida pelo governo ou a

despeito desse. O segundo caso ocorreria quando o governo se mostrasse

incapaz de impedi-la.

O governo pode não ser capaz de impedir a desvalorização da moeda,

se a demanda do setor privado por divisas for muito maior do que a oferta e os

instrumentos disponíveis para reduzir ou financiar essa demanda líquida (1)

estiverem esgotados, (2) implicarem em males piores do que a desvalorização

ou (3) seus efeitos ocorrerem em um prazo superior ao necessário.

Entretanto, mesmo quando o governo é, a princípio, incapaz de conter

uma desvalorização, ela pode não resultar em inflação persistente ou

significativa. Isso acontece quando, após a desvalorização, o governo impede

novas desvalorizações subseqüentes. Ao fazer isso, a desvalorização causaria

um pequeno aumento da inflação, que aos poucos se retrocederia devido à

posterior estabilidade cambial.

Esse resultado seria possível se a desvalorização capacitou o governo a

impedir a novas elevações do dólar. A desvalorização tende a melhorar o saldo

da balança comercial e trazer capital por mecanismos que detalharemos no

próximo capítulo. Dessa forma, a demanda líquida por dólares se reduz e o

governo terá mais facilidade em controlar o câmbio.

Entretanto, nem sempre a desvalorização cambial torna o governo capaz

de impedir novas desvalorizações. Nesse caso, será obrigado a permitir que o

dólar continue subindo até que o saldo comercial e a entrada de capitais

decorrente da desvalorização sejam tão altos que o demanda líquida por

divisas se anule. Essa seria exatamente a recomendação de Lerner (1951).

Todavia, Lerner (1951) não deu a devida importância à inflação causada

pela desvalorização cambial. Vimos que a taxa de câmbio nominal é a principal

referência nominal para os preços internos. Se os preços se elevarem, os

trabalhadores sentirão perda do poder de compra e reivindicarão aumentos.

Dessa forma, os ganhos de competitividade resultantes da desvalorização

seriam erodidos. Se a indexação dos salários aos preços e dos preços ao

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91

câmbio forem muito altas e rápidas, o efeito sobre a balança comercial pode

ser pouco significativo, e a desvalorização, por maior que seja, não será uma

política eficaz para anular a restrição externa. Nessa situação, o governo será

obrigado a restringir a demanda agregada para impedir que a inflação assuma

uma trajetória crescente.

Assim, a desvalorização só tornará o governo capaz de controlar o

câmbio quando (1) resultar em um efeito forte e rápido sobre o saldo comercial,

ou seja, quando as elasticidades-câmbio das importações e exportações forem

altas. Além disso, é necessário (2) que a indexação dos salários à inflação não

seja muito alta e de preferência que (3) o nível de preços do país e o índice de

inflação que é referência para as negociações salariais não sejam muito

indexado ao câmbio.

Mesmo quando as desvalorizações forem capazes de eliminar o déficit

em conta corrente, pode haver restrição externa quando tem uma meta de

inflação tão ambiciosa que qualquer desvalorização pode comprometê-la.

Nesse caso, restrição externa ocorreria por indisposição do governo em fazer

maiores desvalorizações.

Kalecki não tem o mesmo otimismo de Lerner em relação as

possibilidade da desvalorização superar a restrição externa.

“Que acontece no país onde se dá uma recuperação econômica “natural” ou “artificial’ [induzida pelo governo via, por exemplo, aumento do déficit público] sem que haja uma entrada de capital estrangeiro? Se, em face da saída de ouro ou de divisas, o Banco Central reage de acordo com a receita clássica, elevando a taxa de juros ou adotando outras restrições de crédito, isso pode realmente (...) levar ao equilíbrio no balanço de pagamentos, ao frear a recuperação econômica e, conseqüentemente, ao reduzir a demanda por mercadorias estrangeiras não produzíveis no país. [Essa solução expressa a restrição externa e não seria satisfatória para Lerner, que considera a desvalorização cambial a forma adequada de ajustar o balanço de pagamentos.] Mas o que acontece se o Banco Central não reage desse modo? Se possui grandes reservas de ouro ou de divisas, o país pode, é claro, esperar bastante tempo por uma configuração mais próspera do comércio internacional ou do movimento internacional de capitais. Mas a situação pode tornar-se complicada pelo fato de que, se a saída de ouro dura muito tempo, ela levará à instabilidade financeira e provocará – se não houver medidas contra isso – um entesouramento de ouro ou de divisas estrangeiras. Surge aqui a pergunta: se a desvalorização monetária, sendo freqüentemente resultado dessa situação, não provoca o equilíbrio no balanço de pagamentos? A desvalorização tem, em geral, antes de tudo, esse efeito imediato: voltam os capitais que emigraram anteriormente, receosos ante a possibilidade de seus lucros serem eliminados. Mas esse é, evidentemente, um efeito de uma só vez. Estamos aqui interessados em outra coisa: a desvalorização pode efetivamente conduzir a uma forte corrente de exportação, que equilibraria a acrescida necessidade de importar mercadorias estrangeiras, resultante da recuperação econômica. Suponhamos que, em decorrência da desvalorização, os preços de exportação de um dado país, computados em ouro, diminuíram de 20%. Isso significa que, pela mesma exportação de antes, pode-se agora obter 0,8 da importação anterior.

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92

Logo, para receber o anterior volume de importação, é preciso exportar 1 / 0,8 = 1,25 vezes mais do que antes. Se, entretanto, com a desvalorização, a exportação cresce menos do que 25%, isso não permite comprar nem mesmo a quantidade de produtos importados antes. Se a exportação aumenta um pouco mais do que 25%, isso permite importar um pouco mais, mas à disposição do país fica uma quantidade de bens menor do que antes da desvalorização e, portanto, será possível aumentar de apenas um pouco a produção (devido ao pequeno acréscimo na importação de matérias-primas), enquanto sai do país uma quantidade consideravelmente maior (cerca de 25% a mais) do que antes da desvalorização. Essa recomposição do mercado dá-se de tal modo que a elevação de preços em moeda nacional, provocada pelo encarecimento das matérias-primas estrangeiras, influencia no sentido de reduzir o consumo interno. A desvalorização pode, portanto, resolver a dificuldade no comércio exterior – a qual surge em decorrência da expansão econômica – somente se a demanda externa pelas mercadorias do país é bastante elástica; se, por exemplo, uma desvalorização de 20% tem como resposta um aumento de exportação bem maior do que 25%. Devido à forte pressão do protecionismo, a demanda externa é muito rígida. No mundo da livre concorrência, as mercadorias do país com a moeda desvalorizada se espalhariam por todos os mercados que antes não eram acessíveis devido aos altos custos de transporte e a outros custos (corretagem, propaganda, etc). No sistema do protecionismo, entretanto, a desvalorização não atua assim; uma pequena desvalorização é, em geral, insuficiente para ‘transpor’ a existente barreira alfandegária, e uma desvalorização maior provoca uma retaliação alfandegária dos países interessados” [grifo nosso] (Kalecki, 1936: 70-1).

De fato, é perfeitamente possível que a desvalorização não seja capaz

de reduzir significativamente a demanda líquida por dólares e, portanto, manter

a inflação baixa no nível de pleno emprego. Essa proposição é tão mais válida

quanto maiores forem a elasticidade-renda das importações e, como já citado

acima, menores forem elasticidade-câmbio do saldo comercial e maiores a

indexação dos preços ao câmbio e dos salários ao preços.

Conclui-se, assim, que o câmbio livre pode não ser capaz de gerar o

pleno emprego com estabilidade de preços. Nesse caso, as finanças

funcionais, tal como originalmente formuladas, não podem ser consideradas

um instrumento geral suficiente para atingir esse objetivo. Sugere-se então

adaptar a teoria das finanças funcionais para situações com restrição externa

relevante.

2.2.3.3. Câmbio, pleno emprego e finanças funcionais

A teoria da inflação exposta acima tem uma implicação importante sobre

a relação entre pleno emprego e inflação e, portanto, sobre as conclusões das

finanças funcionais.

Como vimos, Lerner (1951) associa inflação indesejada ou

aceleracionista com ultrapassagem do nível de pleno emprego, seja o nível que

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93

o autor chama de alto ou de baixo pleno emprego. Essa teoria da inflação é

fundamental para a definição da forma final das finanças funcionais.

Por essa teoria, a inflação aceleracionista não deveria, de forma geral,

ser esperada antes de se atingir o nível de baixo pleno emprego. Mas deveria

ser esperada acima desse nível.

A teoria da inflação para economias abertas que foi exposta aqui

questiona a generalidade dessas duas proposições. Acreditamos que tenha

ficado claro, na seção acima, que dificuldades em controlar a taxa de

câmbio podem levar a economia manter altos níveis de inflação mesmo

em situações de grande desemprego.

Outra implicação da teoria da inflação em economias abertas, é a

possibilidade de se ultrapassar o nível de baixo pleno emprego. A taxa de

câmbio fixa ou estável permitiria que se ultrapassasse o nível de baixo pleno

emprego e até que fosse alcançado o nível de alto pleno emprego sem que a

inflação se tornasse alta. Nessa situação, os salários poderiam subir mais do

que os preços, porém não devem subir significativamente mais, porque os

empresários do setor de importáveis não poderiam conceder aumentos muito

elevados.

É possível que, se a economia ultrapassar o nível de baixo pleno

emprego, a participação do setor de não-importáveis na renda cresça. Esse

processo seria sustentável se for alta a taxa de crescimento das exportações e

da produtividade média dos setores mais competitivos ou menos dependentes

do custo de mão-de-obra. Essas tentativas de atingir ou ultrapassar o nível de

baixo pleno emprego tenderão a implicar também em melhorias na distribuição

de renda no curto prazo.

Essas conclusões conduzem à necessidade de reformulação da teoria

das finanças funcionais. Numa economia aberta, as políticas de gerenciamento

da demanda podem não ser suficientes para impedir nem a inflação nem o

desemprego, se o governo tem dificuldade de controlar a taxa de câmbio. Mas,

se a taxa de câmbio é estável, essas políticas podem também não ser

necessárias para controlar a inflação em caso de ultrapassagem do nível de

baixo pleno emprego. Essas proposições implicam na necessidade de

reformulação das finanças funcionais, ainda que se mantenha o objetivo de

pleno emprego com estabilidade de preços.

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94

Capítulo 3: Câmbio, juros e financiamento externo

Valor: No início do Real, a equipe econômica tinha em mente a livre flutuação do câmbio? ”Olhando para esse período com olhar de historiador, acho que os economistas brasileiros não entendiam nada de economia aberta. Não só não entendiam, como continuam não entendendo! E não são só os economistas brasileiros que não entendem. Ninguém (ou quase ninguém) entende!” (Chico Lopes, 2005)

49

Os economistas estranhamente costumam pensar a economia como se

ela fosse fechada ao comércio externo e aos fluxos internacionais de capitais,

ou considerar apenas parcialmente as conseqüências dessas hipóteses. Se por

um lado essa atitude simplifica alguns problemas, por outro, esquece que

certas questões só podem ser compreendidas a partir de seu papel em uma

economia aberta.

Isso é especialmente válido para a política econômica. A política

econômica tem a função de gerenciar certas variáveis que são total ou

parcialmente dependentes de temas típicos de uma economia aberta.

3.1. Tendências da taxa de câmbio: a pressão cambial

“Nenhuma dessas ‘escolas’ tem uma explicação definitiva sobre as flutuações cambiais. Nem os mais sofisticados modelos matemáticos são capazes de dar conta daqueles fenômenos. Às vezes parecem melhorar nosso entendimento e responder empiricamente muito bem àquelas flutuações para, logo depois, esgotado o período da experimentação, elas se comportarem de forma diferente. O máximo que algumas sabem é que o dólar se comporta como um ativo financeiro, cujo preço se ajusta instantaneamente às expectativas futuras. Uma coisa é certa: o conceito platônico - a taxa de câmbio real de equilíbrio - aquela que produz o equilíbrio em conta-corrente no nível do pleno emprego da economia no longo prazo, não é a gestada endogenamente a cada instante. Em qualquer regime de câmbio a taxa de câmbio real é produzida dentro do sistema econômico como resposta a uma miríade de fatores (produtividade, taxa de juros, expectativas, taxa de crescimento, inflação etc.) e pode flutuar forte e longamente em torno daquele ‘conceito’, com graves conseqüências para o nível de atividade e endividamento da economia”

50 (Delfim, 2004).

A teoria ortodoxa convencional, através da teoria da paridade juros

descoberta, sugere que a expectativa de desvalorização cambial é igual às

diferenças entre as taxas nominais de juros mais um prêmio de risco país em

caso de países que possuem risco de inadimplência da dívida externa. Quando

não há esse risco, isso implicaria que observar o diferencial de juros nominais

49 Ex-diretor de política monetária e ex-presidente do banco central. Valor 29 de julho de 2005 50 Valor 15/02/2004.

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95

de curto prazo seria uma forma de se conhecer quais seriam as expectativas

de desvalorização no curto prazo. Não porque o diferencial de juros seja a

causa da desvalorização, mas ele pode ser um indicador, haja visto que a

teoria propõe a existência de uma paridade entre essas variáveis.

Entretanto, na nossa perspectiva a taxa de juros só poderia ser igual à

expectativa de desvalorização por coincidência. A visão tradicional diz ainda

que o câmbio se ajusta para equilibrar o saldo em conta corrente. Nesse caso,

a expectativa de desvalorização seria causada pelo déficit em conta corrente.

Nesta seção mostraremos que o déficit em conta corrente não é variável que

determina a tendência à desvalorização cambial. Em uma seção adiante,

mostraremos o que determina o diferencial de taxa de juros.

O câmbio é uma variável de difícil explicação e previsão. Moedas

estrangeiras são ativos alvos de especulação, sujeitos aos humores dos

mercados financeiros. Mas seu valor é também um importante instrumento de

política econômica, sujeito às idiossincrasias da política. Os governos muito

raramente permitem que o câmbio flutue livremente ao sabor das necessidades

dos negócios e dos humores dos especuladores.

Segundo Reinhart (2000: 65), “countries that say they allow their

exchange rate to float mostly do not; there seems to be an epidemic case of

‘fear of floating’”. Reinhart considera que o medo da flutuação do câmbio é

generalizado e leva aos governo a utilizar os mais diversos instrumentos para

controlar a oscilação, como manipulação das taxas de juros, compra e venda

de reservas, controle de capitais, etc.

“The root causes of the marked reluctance by emerging markets to float their exchange rates are multiple. When circumstances are favorable (i.e., there are capital inflows, positive terms-of-trade, shocks, etc.), many emerging-market countries are reluctant to allow the nominal (and real) exchange rate to appreciate. This probably stems from fears fo the “Dutch disease” type problems (loss of competitiveness and serious setback to export diversification). When circumstances are adverse, the case againts allowing large depreciations becomes possibly even more compelling. The fear of a collapse in the exchange rate comes from pervasive liability dollarization, as in most emerging markets the debt of both the government and the private sector are largely denominated in hard foreign currency. For this and others reasons, devaluations in developing countries have a history of being associated with recessions, not export-led booms. Furthemore, the authorities may resist large devaluations because of their infalionary consequences and the credibility problems these may feed” (Reinhart, 2000: 69).

O câmbio é a variável econômica chave para problemas de economia

aberta. O comportamento da taxa de câmbio é decisivo para a taxa de inflação

e de juros e, portanto, para a política econômica e o próprio crescimento. Essa

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conjugação de importância política e objeto especulativo tornam o câmbio tão

difícil de explicar e prever. Porém, devido a sua grande importância, é

necessário compreender minimamente as causas de sua evolução.

Para isso, deve-se conhecer as tendências dos chamados mercados

cambiais; ou seja, as tendências de um câmbio se deixado livre pelo governo.

A taxa de câmbio é determinada pela política cambial e pela oferta e demanda

do setor privado.

Embora seja uma variável fortemente gerenciada pela política

econômica, em muitos momentos, o câmbio é deixado flutuar de maneira

vigiada. Flutuando ou não, ele afeta a política econômica. Os governos

raramente possuem uma disponibilidade ilimitada de divisas. Por isso, se os

mercados demandam muita divisa, o governo precisa reduzir essa demanda.

Ele faz isso com o uso de diversas políticas econômicas. Assim, os mercados

cambiais – sendo a taxa fixa ou flutuante – têm o poder de afetar toda a

economia.

Os mercados cambiais afetam a economia de duas formas, alterando de

valor da taxa de câmbio e condicionando a política econômica. Os mercados

cambiais só podem afetar negativamente a economia ou a política econômica,

se faltarem divisas. Se sobrarem divisas, o câmbio só geraria efeitos negativos

por má gestão da política econômica. Essa proposição decorre do simples fato

de que o governo imprime dinheiro. Portanto, para o governo, nunca faltará

moeda nacional. Se os mercados cambiais estiverem com excesso de

demanda por moeda nacional, o câmbio tenderá a se valorizar ou os juros a

cair. Como o governo tem o poder perfeitamente elástico de emitir dinheiro e

títulos para atender à demanda, pode facilmente impedir esses resultados.

A restrição externa à política econômica decorre do excesso de

demanda líquida por moeda estrangeira nos mercados cambiais ou os

condicionantes que ele impõe sobre a política econômica. Vamos chamar esse

excesso de demanda líquida por divisas de pressão cambial.

Assim, ‘pressão cambial’ ocorreria quando os mercados cambiais

condicionam as políticas econômicas, ou em outras palavras, quando houvesse

restrição externa à política econômica.

A pressão cambial se faz sentir de maneira diferente de acordo com o

regime cambial. Nos chamados regimes de câmbio flutuante, a pressão

Page 97: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

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cambial tem efeito principalmente na política cambial por via das

desvalorizações. Nos regimes de câmbio fixo ou com bandas estreitas a

pressão cambial é sentida principalmente na política de juros. Nos regimes de

câmbio múltiplo é sentida principalmente na taxa de câmbio dos mercados

livres. Mas em qualquer dos regimes, o efeito do mercado cambial sobre a

política econômica é muito amplo. Ele afeta quase invariavelmente as políticas

fiscal e monetária.

A pressão cambial é a expressão da restrição externa à política

econômica. Apesar da importância, não é fácil modelar suas causas e prever

momentos em que ocorre.

Nos mercados cambiais, são realizadas transações de comércio exterior,

de pagamentos de rendas e de aplicação de capital. As transações de

aplicação de capital podem ser divididas em dois tipos. O primeiro corresponde

às operações com horizonte de aplicação mais extenso e focadas em

expectativas de lucratividade a longo prazo. O segundo tipo são as operações

com horizonte de aplicação mais breve e focadas em expectativas de

rentabilidade a curto prazo.

Em ambos os tipos de aplicação, mas principalmente no segundo, as

expectativas de desvalorização cambial são parte fundamental na avaliação de

risco e retorno. Essas expectativas tornam difícil teorizar e modelar a pressão

cambial. Isso decorre da grande importância que os movimentos de capitais de

curto prazo e a especulação cambial podem ter sobre o balanço de

pagamentos total em momentos de crise.

Não é possível criar com validade empírica relações funcionais precisas

e estáveis no tempo – ou seja, definir parâmetros – entre a especulação

cambial e outras variáveis macroeconômicas, como nível de atividade, juros,

câmbio nominal ou real, inflação ou balança comercial. Isso não acontece com

outros componentes do balanço de pagamentos. Por exemplo, é válido propor

relações funcionais relativamente estáveis para explicar a relação entre a

balança comercial, o nível de atividade e o câmbio real, o mesmo pode ser dito

em relação ao nível de investimentos externos diretos.

A especulação cambial não pode ser relacionada de maneira estável as

variáveis macroeconômicas que citamos, porque ela é fortemente dependente

do que se espera ser a opinião média do mercado sobre o nível “normal” do

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câmbio. O fluxo de aquisição de divisas para especular com câmbio pode ser,

em um determinado momento, muito maior do que o fluxo comercial. Nesse

caso, a própria evolução da taxa câmbio é determinada pela especulação e,

portanto, pelas expectativas. Keynes (1936) foi talvez o primeiro economista a

destacar essa questão, que é chamada de “profecia auto-realizável”. Esse fator

faz com que os mercados cambiais sejam fortemente auto-referenciados. A

relação entre as variáveis marcroeconômicas fundamentais e o câmbio fica

assim mediada pela expectativa que os especuladores têm em relação ao que

seja opinião média sobre a desvalorização cambial. Essas expectativas podem

ser tão instáveis e imprevisíveis que torna muito difícil definir parâmetros

precisos para explicar a evolução do câmbio.

Essa conclusão pessimista, todavia, não impede que seja possível

teorizar de forma menos precisa sobre as causas da evolução da pressão

cambial. Consideramos que não vale à pena tentar buscar um parâmetro

estável entre evolução conjuntural dos capitais de curto prazo e do câmbio e

qualquer variável macroeconômica, mas achamos que seja possível definir

uma teoria que relacione essas variáveis com a tendência geral da taxa de

câmbio. Essa tendência geral pode ser expressa basicamente como

desvalorização, valorização, estabilidade e indefinição.

Não precisamos ter uma teoria que defina uma elasticidade precisa entre

câmbio e outra variável. Essas tendências gerais são suficientes para mostrar

os aspectos fundamentais de como a restrição externa condiciona as diversas

políticas econômicas, o que é nosso objetivo.

Podemos agora propor um modelo teórico que tente explicar as causas

da evolução da taxa de câmbio. Para isso vamos dividir o balanço de

pagamentos em duas partes. Uma parte pouco dependente das expectativas

de curto prazo sobre a desvalorização e a variação da taxa de juros e outra

parte mais dependente dessas expectativas.

Mas antes, vamos fazer uma ressalva. No dia a dia, a grande maioria

dos componentes do balanço de pagamentos, como as exportações,

importações e os investimentos externos diretos dependem das expectativas

cambiais de curto prazo, pois a possibilidade de antecipação ou postergação

da entrada de divisas pode gerar lucros. Porém, as operações comerciais e de

investimentos possuem limites e oportunidades que impedem que essas

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antecipações ou postergações sejam prolongadas. Assim, no médio ou longo

prazo, o efeito das expectativas cambiais de curto prazo sobre a balança

comercial, os pagamentos de juros, lucros e dividendos e os investimentos

diretos é muito pequeno. Podemos, dessa forma, concluir que, quando medido

em períodos maiores, o fluxo de comércio, investimento e pagamentos de

dívidas e rendas de propriedade tem pouca relação com as expectativas

cambiais e expectativas de juros de curto prazo.

O mesmo acontece com os empréstimos de longo prazo tomados pelo

setor privado. O fluxo desse tipo de empréstimo, quando medido em períodos

mais extensos, não é tão dependente das expectativas de desvalorização de

curto prazo. Ele é dependente principalmente do diferencial de taxa de juros de

longo prazo entre o país e o exterior, da taxa de câmbio real e do volume de

investimento do país51. Quando o câmbio é fixo e seguro, essa proposição é

trivial. Quando o câmbio é flutuante ou fixo com alto risco de desvalorização, os

tomadores privados de empréstimos externos em geral precisam de receitas

relativamente indexadas ao câmbio para os protegerem no longo prazo contra

o risco cambial.

Dada essas considerações, vamos propor um modelo de contabilização

do balanço de pagamentos que tem duas funções. Em primeiro lugar, visa

isolar as variáveis que causam, na ausência de reação contrária do governo,

pressão cambial pró-desvalorização nos mercados de divisas. Em segundo,

visa isolar as variáveis menos dependentes das expectativas cambiais e de

variação de juros e que, portanto, tem poder para determinar a tendência das

variáveis mais dependentes.

O balanço de pagamentos pode ser dividido nos seguintes

componentes:

BP = CK – DCC

Onde:

CK = saldo na conta de capitais

DCC = déficit em conta corrente

BP = saldo do balanço de pagamentos = R = variação de reservas

cambiais

51 O câmbio desvalorizado reduz o risco de desvalorização cambial e aumenta a rentabilidade das indústrias de importáveis. No próximo capítulo, essa questão será discutida com maior detalhamento.

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O saldo na conta de capitais pode ser divido nos seguintes

componentes:

CK= IDE + EElp + EEG + FFEcp – AmE

Onde:

AmE = saldo das amortizações dívidas de externas pagas

DCC = déficit em conta corrente

IDE = investimentos externos diretos líquidos

EElp = saldo empréstimos externos de longo prazo tomados pelo setor

privado

EEG = empréstimos externos tomados pelo governo

FFEcp = saldo das fontes de financiamento externo de curto prazo

A variação de reservas pode ser dividida em:

R = Rmín – R–

Rmín = compras mínimas de reservas cambiais pelo governo para

recompor as reservas planejadas.

R– = compras de reservas acima do mínimo planejado

Buscaremos isolar as variáveis que possuem forte autoreferenciação e,

portanto, comportamento instável, de difícil previsão e não transformável em

funções relacionadas com as principais variáveis macroeconômicas. Assim,

poderemos explicar o prever o comportamento das outras variáveis. Como

tentaremos mostra posteriormente, essa atitude possibilitará explicar e prever a

tendência da própria taxa de câmbio.

A princípio, as variáveis menos dependentes das expectativas de curto

prazo são: o saldo em conta corrente (DCC) o saldo líquido dos capitais de

longo prazo (IDE, EELP, AmE).

Outra questão importante que precisamos considerar nessa divisão

entre fluxos mais dependentes e menos dependentes das expectativas de curto

prazo é o objetivo dos movimentos de capitais para operações com ativos

securitizados de longo prazo. Por exemplo, as ações são a princípio um

financiamento de longo prazo. Porém, a aquisição de ações, quando visa lucrar

com a redução dos juros ou variação geral da bolsa de valores, é uma

operação com horizonte de curto prazo e fortemente dependente de

expectativas macroeconômicas. O mesmo não pode ser dito da aquisição de

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ações para tomada de controle de uma empresa. Dessa forma, as operações

de câmbio com ações e títulos securitizados poderão ser classificados de um

lado ou de outro, dependendo do horizonte de investimento.

O principal objetivo desse modelo de contabilização do balanço de

pagamentos é isolar as variáveis que afetam a pressão cambial. Para isso

vamos separar os empréstimos tomados pelo governo dos empréstimos

tomados pelo setor privado. Os primeiros não passam pelos mercados

cambiais, portanto, não afetam demanda líquida de dólares nesses mercados.

Diríamos que eles não têm impacto direto na pressão por desvalorização

cambial.

A segunda modificação que precisa ser feita para que essa equação se

ajuste ao conceito de pressão cambial decorre do papel que o governo pode ter

sobre essa pressão. A necessidade de recomposição de reservas pelo governo

pode gerar pressão nos mercados de câmbio que poderia implicar em

restrições a outras políticas econômicas. Por outro lado a venda de reservas

tem como principal função a contenção da pressão cambial.

Consideradas essas questões podemos propor uma forma de separar as

contas do balanço de pagamentos que visa tratar ao mesmo tempo a pressão

cambial, suas formas de financiamento e se ela é causada por variáveis

dependentes ou independentes das expectativas de curto prazo.

Primeiramente, propomos um conceito para medir a dependência do

país de capital externo por período. Chamaremos esse conceito de

necessidade de financiamento externa:

NFE = DCC + AmE + Rmín

Os investimentos externos diretos são uma forma de financiamento que

possui uma dinâmica completamente diversa dos empréstimos. Eles, por

exemplo, não seriam atraídos por elevações das taxas de juros. Se houver

interesse em avaliar a quantidade de financiamento que pode ser atraído por

aumentos de juros, o conceito de necessidade de financiamento externo por

dívida pode ser interessante:

NFED = NFE - IDE

Os empréstimos externos de longo prazo podem ser atraídos por

aumentos na taxa de juros. Entretanto, eles têm uma dinâmica muito diferente

dos financiamentos de curto prazo. São mais estáveis e menos dependentes

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das expectativas de curto prazo. A parte do balanço de pagamentos que é

relativamente independente das expectativas de horizonte muito curto sobre

desvalorização cambial ou mudanças nas taxas de juros vamos chamar de

necessidade de financiamento externo por dívidas de curto prazo – NFEDcp:

NFEDcp = NFED – EElp

Alternativamente vamos chamar essa variável, quando negativa, de fluxo

estrutural de divisas:

Fluxo estrutural = – NFEDcp

É necessário destacar que qualquer operação só pode fazer parte da

NFEDcp, se envolver pagamentos em moeda estrangeira. Pagamentos em

moeda nacional, mesmo para estrangeiros não seriam acrescidos à NFEDcp.

Dessa forma, podemos dizer que os EUA tem uma NFEDcp negativa apesar do

déficit em balanço de pagamentos registrado na contabilidade tradicional.

O resto do balanço de pagamentos será dividido em duas partes. Na

primeira, constarão as operações que dependem mais fortemente das

expectativas de câmbio e ou juros que chamaremos de fontes de financiamento

de curto prazo – FFEcp. Na outra, teremos os empréstimos externos tomados

pelo governo e as vendas líquidas de reservas cambiais, se o valor dessas

vendas líquidas for positiva.

Assim o balanço de pagamentos seria dividido nos seguintes

componentes:

EEG – R– = NFEDcp – FFEcp

Fazem parte das FFEcp os saldos de empréstimos externos de curto

prazo e as compras ou vendas de títulos de dívida securitizada (inclusive de

longo prazo), moedas e ações com horizonte de investimento de curto prazo

que envolvem operações com câmbio, ou seja, operações que envolvem

investidores estrangeiros ou nacionais que estão trocando ativos denominados

em moeda estrangeira por ativos denominados em moeda nacional.

Essas operações de curto prazo que envolvem operações com câmbio

significam em geral uma aposta cambial de alguém, mesmo que o investidor

estrangeiro faça proteção (hedge) cambial, quem está oferecendo tal proteção

estará fazendo uma aposta cambial. Essas operações só não envolveriam

nenhuma aposta cambial, se houvesse uma operação onde ambas as partes

fossem arbitradores no mercado de câmbio. Isso só seria possível, se o

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investidor estrangeiro pagasse integralmente o custo de proteção cambial e

fizesse uma aplicação que prometesse uma rentabilidade superior a esse

custo. Como veremos mais à frente, esse custo de proteção cambial é igual ao

diferencial de juros entre as moedas envolvidas na operação, portanto, a

rentabilidade deveria ser superior à taxa de juros básica do país. Entre os

ativos de curto prazo, apenas operações em bolsa ou em títulos mais

arriscados de dívida privada poderiam oferecer uma rentabilidade superior a

essa. Ou seja, investimentos de curto prazo que envolve operações cambiais

são, em geral, arriscados ou com rentabilidade reduzida pelo custo de proteção

cambial. Mas, nesse caso, geralmente não compensa pagar esse custo,

porque o risco sistêmico de inadimplência dos títulos privados e de queda na

bolsa de valores possuem ambos forte correlação com as crises cambiais e os

períodos de estabilidade cambial. Dessa forma, quando a rentabilidade

esperada for alta e o risco baixo em reais, o risco em dólares e, portanto, o

risco total também serão.

Nesse sentido, é esperado que essas operações sem proteção cambial

sejam menos importantes do que as operações que incorram em aposta

cambial. As aplicações de estrangeiros ou de endividamento em moeda

estrangeira em títulos privados ou ações tende a crescer exatamente quando o

país está crescendo, o que em geral coincide com os momentos em que não

está ocorrendo pressão cambial. A lucratividade e a segurança desses

investimentos em ativos financeiros privados costumam ser mais altas quando

a pressão cambial é menor, o que está associado com um menor risco de

aumento dos juros e maior taxa de crescimento. Nessa situação, haveria

pequeno risco cambial e, portanto, uma disposição muito pequena em absorver

todo o custo da proteção cambial, e a maioria dessas operações com títulos

privados seria feita sem proteção cambial. Assim, seriam apostas cambiais, da

mesma forma que são quase sempre as operações envolvendo em títulos

públicos com financiamento externo. Quando o risco cambial é maior, o risco

de aumento dos juros também, assim como o risco de redução da taxa de

crescimento. Por conseqüência a demanda líquida de estrangeiros por títulos

privados nacionais tende a ser pequena ou mesmo negativa, pois eles

provavelmente teriam opções de investimento superiores em outros países.

Isso ajuda a reforçar ainda mais a parcela da FFEcp que implica em algum tipo

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de aposta cambial. O detalhamento dessas questões não nos interessam nesta

seção, elas serão aprofundadas quando discutirmos sobre taxa de juros. O que

interessa aqui é afirmar que a maioria das operações da FFEcp envolvem

algum tipo de aposta cambial.

A pressão cambial é:

Pressão cambial = NFEDcp + FFEcp.

Ela pode ser “financiada” pelos EEG e posterior venda de reservas.

Financiamento da pressão cambial EEG – R–

A pressão cambial é fundamental para a determinação da tendência

cambial e, assim, da restrição externa. Portanto, conhecer suas causas é muito

importante.

A FFEcp é composta de variáveis autoreferenciadas. É muito difícil

construir relações funcionais para explicar sua evolução. Felizmente a

NFEDcp e a FFEcp não são variáveis independentes.

Essa seção tem como principal objetivo propor que a NFEDcp determina

a tendência geral a médio e longo prazo da FFEcp e, portanto, a tendência da

própria pressão cambial. O saldo líquido acumulado da FFEcp tende a zero.

Como a pressão cambial é a variável em que se expressa no curto prazo a

restrição externa sobre a política econômica, a NFEDcp determina também os

condicionantes da política econômica.

As FFEcp são influenciadas principalmente pelas expectativas com

relação à pressão cambial. Portanto, mantendo nossa linha de argumentação,

a NFEDcp deve ter uma forte influência sobre essas expectativas. O processo

de formação de expectativas é um tema importante em boa parte da teoria

macroeconômica e em particular para a compreensão da formação do câmbio.

Proporemos, nessa seção, um processo que mostra como a NFEDcp

influencia as expectativas sobre a pressão cambial. Para melhor ilustrar como

esse processo funciona, vamos expor o que consideramos ser um exemplo

estilizado de evolução do câmbio em um regime de câmbio flutuante

administrado.

Suponhamos que a princípio o câmbio esteja se comportando de forma

errática por algum tempo e que não existam evidências para corroborar

nenhuma opinião confiável. Mas se o câmbio iniciar um processo de

desvalorização contínua, os especuladores podem achar que não existem

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motivos para que esse processo não se mantenha e passam a comprar moeda

estrangeira. Essa reação reforça a tendência inicial.

Mas o câmbio se comporta de forma muito volátil. Além disso, nunca se

sabe ao certo quando a tendência se reverterá, ou seja, se as oscilações

freqüentes são apenas espasmos que não se contrapõem à tendência geral ou

se são sinais de reversão dessa tendência. Os especuladores são conscientes

dessa incerteza, e sabem que precisam ser muito ágeis. Quando já

acumularam lucro que compensou o risco da operação, ficam apenas

esperando o melhor momento para realizá-lo. Esse momento pode ser uma

reversão ou uma estabilidade da trajetória da taxa de câmbio. Quando passam

a vender, podem gerar uma reversão mais forte na evolução da taxa e assim

outros podem achar que a tendência alcançou um teto conjuntural ou teto

psicológico. Mas se não for formada uma tendência de queda, a taxa

provavelmente flutuará entre um piso psicológico e o teto estabelecido

anteriormente. Esse tipo oscilação terá um fim quando a taxa atravessar um

dos dois limites conjunturais.

Se isso acontecer com a ultrapassagem do teto, formará novamente um

novo “consenso” de que há uma tendência de alta e essa tendência se auto-

realizará, pelo menos, até que seja restabelecido um novo teto conjuntural.

Mas se a tendência geral for de elevação da taxa esses tetos serão pouco a

pouco ultrapassados, em um processo que se assemelha a uma subida de

escadas52.

Mais à frente proporemos que essa tendência geral seria causada pela

NFEDcp. Mas o que nos interessa agora é a lógica desse processo de

evolução da taxa de câmbio. Os especuladores tentam encontrar esses

consensos conjunturais – tetos, pisos e tendências – de forma mais sistemática

com o instrumento da chamada análise grafista ou técnica53.

52 Não é nosso objetivo propor um modelo muito preciso sobre os movimentos especulativos, mesmo porque essa seria uma tarefa difícil e talvez infrutífera. Porém, podemos dizer que o arcabouço que propomos aqui para esses movimentos é perfeitamente coerente em parte com o proposto por Soros (1988) e em parte com o que se chama de análise grafista. 53 Esse método tem raízes muito antigas e existem registros de técnicas desse tipo, pelo menos, desde o século XVIII, quando os japoneses inventaram os gráficos de velas para tentar prever o mercado de arroz. Hoje existe um número muito grande de técnicas desse tipo, que são muito usadas, apesar da total desconsideração das mesmas por parte da teoria econômica.

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É de conhecimento geral que o processo de evolução da taxa de câmbio

é fortemente influenciado pelos especuladores. Porém, defendemos aqui que

as variáveis mais estruturais do balanço de pagamentos – NFEDcp – acabam

definindo a tendência de longo prazo dessa taxa. É preciso, assim, mostrar

como a especulação se processa sem negar essa proposição. A ilustração

exposta acima teve esse objetivo. Mas pretendemos mostrar isso de forma

mais precisa e genérica com um modelo não-matemático.

Como vimos, existem basicamente quatro tipos de tendências gerais

para a taxa de câmbio nos regimes de flutuação administrada:

1) valorização

2) desvalorização

3) estabilidade

4) indefinição

Nos regimes de câmbio fixo existem tendências análogas:

1) acumulação de reservas

2) perda de reservas

3) estabilidade de reservas

4) indefinição

Esses dois tipos de tendências poderiam ser resumidos como:

1) pressão cambial negativa

2) pressão cambial (positiva)

3) ausência de pressão cambial

4) indefinição em relação à pressão cambial

Os agentes tentam inferir essas tendências a partir de 4

hipóteses:

a) a pressão cambial seguirá a tendência da evolução recente.

b) a pressão cambial atingiu o teto ou o piso conjuntural

c) a tendência mantida não é sustentável

d) não há evidências coerentes suficientes para formação de opinião

confiáveis.

Nas expectativas de curto prazo o que mais importa é a opinião da

maioria. Dessa forma, a tendência do câmbio recente mostra como tem sido a

opinião da maioria em relação às expectativas de rentabilidade cambial. Essa é

uma importante justificativa para a hipótese ‘a’, isto é, que o câmbio seguirá a

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tendência da evolução recente. Outra justificativa é que a tendência da

evolução recente pode estar também expressando a tendência das variáveis

estruturais (NFEDcp) e as forças pró-cíclicas dessas variáveis. Entre essas

forças pró-cíclicas estão a inflação que é induzida pela desvalorização cambial

e reforça as expectativas de desvalorização futura, via efeito que ela tem sobre

o câmbio real. Esse processo é auto-reforçado, à medida que os agentes tem

consciência de que a maioria também pode estar levando essa hipótese em

consideração.

A hipótese ‘b’ – o câmbio atingiu o teto ou piso conjuntural – pode surgir

em algum momento de inflexão da tendência decorrente da volatilidade da taxa

de câmbio. Essa hipótese decorre da consciência que os especuladores

possuem em relação à natureza errática dos mercados cambiais e da

necessidade de agilidade para realização de lucros, além de possíveis dúvidas

em relação à sustentabilidade das tendências.

A hipótese ‘c’ – a tendência não é sustentável – indica, no caso de

câmbio flutuante, a consciência em relação às metas do governo para a taxa

de câmbio e as conseqüências das mudanças no câmbio real. Ela mostra que

os especuladores sabem que o governo tem instrumentos para impedir que o

câmbio se desvalorize além do desejável.

A hipótese ‘d’ – não há evidências coerentes suficientes para a formação

de opiniões confiáveis – na verdade não é uma hipótese, mas a ausência de

confiança suficiente nas hipóteses anteriores.

A ilustração que exibimos acima tenta mostrar como essas hipóteses se

transformam na opinião da maioria de forma mais ou menos cíclica. Na

verdade, são dois processos cíclicos diferentes, um de maior duração e outro

de menor duração. O processo cíclico de maior duração está relacionado com

as metas do governo e a sustentabilidade de determinada taxa de câmbio real.

O processo cíclico de menor duração está relacionado com a tentativa dos

especuladores formarem hipóteses para tentarem reconhecer a opinião média

que definiria a tendência de curto prazo e testarem continuamente se a

tendência pode ser mantida.

Descobrir essas opiniões médias pode ser muito útil em operações de

horizonte curto, mas acreditamos que a tendência geral da taxa para prazos

mais longos é determinada na maior parte dos casos pela NFEDcp. Porém, as

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tendências cambiais não podem se manter indefinidamente, sob pena de levar

a economia ao colapso.

Essa possibilidade, porém, é remota. Em primeiro lugar, existem forças

contra-cíclicas que resistem às tendências gerais da taxa de câmbio. Essas

forças estão relacionadas com a desvalorização ou valorização da taxa de

câmbio real. Por exemplo, a desvalorização do câmbio real aumenta a

competitividade, reduz o poder de compra em moeda estrangeira melhorando o

saldo comercial e atrai investimentos diretos para atividades de exportação e

setores de bens importáveis em geral. A valorização tem o efeito inverso.

No entanto, existem também forças pró-cíclicas. A primeira é o efeito da

evolução passada da taxa de câmbio sobre as expectativas de desvalorização.

Mas a força mais importante é a inflação. A inflação impede que o câmbio real

mude na proporção adequada e que tenha assim seu efeito contra-cíclico.

Portanto, a inflação conjugada com as expectativas baseadas na evolução

passada tornam-se conjuntamente uma força pró-cíclica importante.

Qual dessas forças é mais poderosa? Isso depende de muitos fatores,

principalmente das variáveis mais autônomas do balanço de pagamentos,

como o pagamento de juros e amortizações. Porém, o que mais importa com

relação às limitações dessas tendências são as metas dos governos.

Os governos têm um poder muito grande sobre a taxa de câmbio

diretamente e indiretamente pela influência sobre a maioria das outras

variáveis que afetam essa taxa. A primeira coisa que precisa ficar claro sobre

isso é que o governo pode impedir qualquer valorização que quiser e pode

fazer qualquer desvalorização que quiser. Isso se deve ao poder de emissão. O

Estado pode comprar todas as divisas que estiverem sendo oferecidas e a

qualquer preço.

O poder para impedir as desvalorizações não é tão grande e de conduzir

valorizações é ainda menor, pois não tem poder de emitir moeda estrangeira.

Mas não faltam instrumentos. O governo acumula e vende reservas, toma

empréstimos no exterior, gerencia a taxa de juros, modifica os impostos sobre

operações que envolvem câmbio, faz política industrial e comercial, ajusta a

política fiscal, manipula o nível de atividade e as expectativas etc.

A utilização desse arsenal, na grande maioria dos casos, torna o

governo apto a definir limites às tendências que o câmbio teria se fosse

Page 109: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

109

deixado livre. Podemos concluir, assim, que em geral as tendências cambiais

possuem limites dados pelas metas dos governos e pela possibilidade de

alteração do câmbio real.

Os especuladores sabem disso. Quando se inicia um processo contínuo

de valorização, desvalorização ou de perda de reservas, o usual é que se

forme uma opinião majoritária de que essa tendência vai prevalecer. Mas esse

processo é errático. Os especuladores sabem que os lucros obtidos podem ser

rapidamente perdidos e buscam realiza-los sempre que houver dúvidas. E

assim, geram inversão da tendência anterior.

Dessa forma, a especulação cambial tende levar o câmbio a um

comportamento volátil. Esse comportamento segue o seguinte processo:

(1) Forma-se uma tendência e os especuladores adotam a hipótese ‘a’

(a pressão cambial seguirá a tendência da evolução recente).

(2) A tendência dá sinais de esgotamento, criam-se dúvidas quanto sua

continuidade e busca-se realizar lucros. Nesse ponto, adota-se a hipótese ‘b’.

Forma-se uma nova tendência e recomeça o processo.

(3) Eventualmente, se uma tendência é mantida por muito tempo, pode-

se começar a colocar em dúvida sua sustentabilidade, mesmo que a tendência

não dê sinais de estancamento. Essa é a hipótese ‘c’.

Sob dúvida os especuladores retraem suas apostas. Se o resto do

balanço de pagamentos (NFEDcp) tem um saldo líquido nulo, as tendências de

valorização e de desvalorização não são sustentáveis. Porque elas formam

hipóteses e dúvidas que alteram as proporções de oferta e demanda e acabam

e contradizendo a própria tendência.

Nesse caso, o saldo líquido da especulação cambial e a própria taxa de

câmbio, quando em regime flutuante, evoluem de maneira cíclica e errática.

Inclusive quando há grandes fugas de capitais e eventos desse tipo, sempre há

o movimento contrário a posteriori. Mesmo porque o governo tem objetivos

políticos que o obriga a ter metas de taxa de câmbio, ainda que essas sejam

implícitas e conjunturais.

A possibilidade de períodos de estabilidade em que o saldo líquido da

especulação cambial e a própria pressão cambial se mantenham próximos de

zero não impede que o ciclo seja a norma, principalmente quando a NFEDcp é

próxima de zero. É importante ressaltar que esses períodos de estabilidade, na

Page 110: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

110

maioria dos casos, têm que ser garantidos por políticas ativas de

gerenciamento dos fluxos cambiais. Caso contrário, eles tendem a ser curtos,

porque quaisquer mudanças nas expectativas e na atratividade de outras

aplicações mudam as posições dos especuladores e, portanto, a pressão

cambial. Mesmo quando o saldo líquido de especulação cambial é

acompanhado por saldo líquido nulo na NFEDcp – isto é, nas variáveis menos

especulativas do balanço de pagamentos – pode surgir pressão cambial. Essa

situação seria conseqüência da “natureza” dos mercados cambiais, pois a

usual emergência de novas informações e as mudanças de atratividade dos

diversos ativos, gera uma necessidade de alteração das carteiras e uma

mudanças nas posições cambiais de forma inicialmente pró-ciclica.

Essas mudanças de composição tendem a gerar movimentos

autocumulativos. Uma vez desbalanceada a relação entre oferta e demanda de

divisas, as expectativas tendem a alavancar essa situação, criando uma

tendência mais forte em determinada direção.

Mas esse movimento não é contínuo. Quando esse processo avança

demais cria-se expectativas de que a tendência pode ter sido exagerada e

dúvidas quanto sua continuidade. Essas dúvidas fazem os especuladores

retraírem, o que altera a relação entre compradores e vendedores de divisas e,

portanto, inversões temporárias ou definitivas na pressão cambial. Isso não

significa que a pressão cambial tenha uma tendência a gravitar em torno de um

equilíbrio, mas uma tendência inerente à volatilidade, o que é muito diferente.

Assim, a estabilidade tende a ser apenas temporária. O que não significa que

essa volatilidade seja suficientemente alta para afetar a política econômica.

Nos maiores países desenvolvidos, nos países com grandes reservas cambiais

e nos países com controles de capitais geralmente não afeta muito a política

econômica.

Podemos assim concluir que o saldo líquido da especulação cambial

tende a oscilar entre montantes positivos, negativos e nulos, mesmo quando a

NFEDcp é aproximadamente zero. Se não houvesse uma espécie de ciclo

como esse descrito, haveria uma acumulação ou desacumulação indefinida de

ativos de curto prazo em moeda estrangeira. No último caso, seria certamente

uma situação insustentável, pois levaria o país à bancarrota. No primeiro caso,

também seria, porque a especulação cambial é um investimento de horizonte

Page 111: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

111

curto e risco alto. Acumular continuamente ativos em moeda estrangeira

significa que alguém está se endividando crescentemente em uma moeda e

aplicando em ativo de curto prazo em outra. Seria uma operação muito

arriscada para ser adotada durante um período longo.

O movimento normalmente oscilatório do saldo líquido de especulação

cambial tem implicações muito importantes. Ele explica porque a NFEDcp,

quando significativamente diferente de zero, determina a tendência da pressão

cambial. Quando a NFEDcp é aproximadamente nula, a oscilação do saldo

líquido da especulação cambial determina sozinha o movimento errático da

taxa de câmbio nos regimes flutuantes. Quando a NFEDcp é significativamente

diferente de zero, ela terá peso na pressão cambial. Esse peso será majoritário

e, portanto, determinante quando o saldo líquido da especulação cambial for

reduzido. Por si só, essa situação é capaz de conduzir a tendência cambial,

primeiro porque os períodos de saldo líquido de especulação cambial nulo não

serão acompanhados de ausência de pressão cambial, pois essa será

determinada pela NFEDcp. E segundo porque nos períodos de saldo líquido de

especulação cambial diferente de zero, esses terão seu efeito sobre a pressão

cambial reforçados quando esse tem o mesmo sentido da NFEDcp e reduzidos

quando tem um sentido contrário. Em todas essas circunstâncias, reforça-se a

tendência ditada pela NFEDcp.

De fato, se levarmos em consideração que o saldo líquido acumulado de

especulação cambial por longos períodos tende a ser muito pequeno, seria

realmente esperado que a NFEDcp decidisse a tendência geral da taxa de

câmbio. Como já foi discutido, os investidores não podem acumular

indefinidamente ativos de curto prazo em uma moeda adquirindo dívidas em

outra moeda.

Além disso, existe outro fenômeno que reforça o argumento. O saldo

líquido de especulação cambial acumulado geralmente se move na mesma

direção da NFEDcp. O saldo líquido da especulação cambial não é

independente da pressão cambial. Os especuladores, como é óbvio, tentam

adivinhar a tendência e jogar a favor dela, reforçando-a e mesmo antecipando-

a quando possível. Quando a NFEDcp é significativamente diferente de zero, a

especulação cambial não pode sustentar por muito tempo um saldo líquido

contrário à NFEDcp.

Page 112: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

112

Isso acontece porque a especulação cambial tem como comportamento

usual a aposta na tendência, seguida de teste de sustentabilidade dessa

tendência. Qualquer sinal de dúvida em relação à tendência, os especuladores

se retraem e realizam lucros. Se, depois desse teste, a tendência se mantiver;

voltam a apostar, se a tendência se inverter, apostam na inversão. E

dependendo dos sinais emitidos pela economia e pelo próprio movimento da

taxa de câmbio, voltam em breve a testar a tendência.

Dessa forma, o saldo líquido de especulação cambial tem um movimento

volátil em que são alternados momentos de saldo líquido diferente de zero com

momentos de saldo líquido próximo a zero. Dependendo da tendência mais

geral da taxa de câmbio ou da acumulação de reservas, essa alternância pode

significar saldos positivos sendo trocados com saldos próximos a zero, saldos

negativos sendo trocados com saldos próximos a zero ou saldos positivos

sendo trocados por saldos negativos passando por saldos próximos a zero.

Esse tipo de comportamento dos especuladores fará com que eles

sigam a tendência ditada pela NFEDcp. Se a NFEDcp mantiver

sustentadamente diferente de zero e sem alteração de sinal; nos momentos em

que os especuladores estiverem testando a tendência e retraírem suas

apostas, tornando pequeno o valor do saldo líquido de especulação cambial; a

NFEDcp passará a definir sozinha a tendência da pressão cambial. Uma vez

esclarecida a tendência, os especuladores voltariam a apostar nela, reforçando

o movimento.

Dessa forma, concluímos que a NFEDcp, quando significativamente

diferente de zero e de sinal estável, determinará a médio e longo prazo a

tendência da pressão cambial e, portanto, governará o comportamento da taxa

de câmbio em regimes de câmbio flutuante. Em regimes de câmbio fixo,

governará a acumulação de reservas.

O gráfico abaixo busca ilustrar essas proposições. Suponhamos um

modelo keynesiano simples. Se a elasticidade dos investimentos diretos às

perspectivas de crescimento forem reduzidas, a NFEDcp é negativa para níveis

de renda mais baixos e torna-se positiva para níveis de renda superiores. Essa

conclusão decorreria do efeito negativo que o nível de atividade tem sobre o

saldo comercial no curto prazo.

j

Hipótese de Baixa elasticidade do capital de

longo prazo às perspectivas de crescimento

Page 113: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

113

Resta agora saber se é possível sustentar por longo tempo uma

NFEDcp significativamente diferente de zero e de sinal estável. Em certas

circunstâncias uma NFEDcp negativa pode ser sustentável por longos

períodos. Mas a sustentabilidade de uma NFEDcp positiva implicaria pressão

cambial prolongada, o que significaria desvalorização constante do câmbio ou

fim das reservas cambiais. Esse processo conduziria invariavelmente à

desvalorização cambial e inflação agudas. Pode até levar a uma hiperinflação.

De fato, uma NFEDcp positiva não é sustentável a longo prazo. Essa

insustentabilidade se expressa como restrição externa. Mas isso será objeto da

próxima seção.

3.2. Elevação dos juros não elimina a restrição externa

Nas seções anteriores, vimos que o otimismo de Lerner (1951) com

relação às possibilidades do câmbio flutuante eliminar a restrição externa pode

ter sido exagerado. No entanto, existe um instrumento que, a princípio, poderia

permitir a manutenção de crescimento econômico sem pressão por

desvalorização cambial e inflação. Esse instrumento é a taxa de juros.

É praticamente um consenso na teoria econômica que mais juros

implicam em maior entrada de capitais na grande maioria das situações.

Page 114: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

114

Portanto, mais juros permitiria que o país crescesse mais, utilizando,

provavelmente, uma política fiscal expansionista.

Entretanto, supondo uma taxa de crescimento das exportações dada,

mais juros pagos à dívida externa e mais crescimento implicam em maior

endividamento externo. É de se esperar que haja limites ao endividamento

externo, portanto, a restrição externa poderia novamente ser relevante.

Nesta seção vamos mostrar como algumas visões tradicionais sobre

essa questão veriam as limitações da taxas de juros em extinguir a restrição

externa. Posteriormente, exporemos o que entendemos como problemas

dessas visões e suas possíveis soluções.

3.2.1. A visão tradicional

Geralmente, as visões tradicionais sobre a relação entre juros e balanço

de pagamentos concluem que, tudo mais constante, mais juros implica em

maior fluxo de entrada de capitais. Essas conclusões se baseiam em algum

nível nas teorias da paridade de juros.

3.2.1.1. Juros

Como vimos, numa economia fechada, é fácil para o governo manter a

taxa de juros estável em baixos patamares. Numa economia aberta, não é tão

simples manter os juros estáveis e baixos, se houver liberdade de movimentos

de capitais. Isso decorre principalmente da possibilidade dos capitais saírem de

aplicações transacionadas em moeda nacional para aplicações em moeda

estrangeira. Essa fuga implicará em pressão sobre os mercados de câmbio e,

portanto, pressão para desvalorização da moeda.

Nessa situação, o governo muito provavelmente se verá obrigado a

adotar políticas específicas com o objetivo de controlar o nível de

desvalorização do câmbio, pois tem como meta manter o câmbio ou a inflação

dentro de determinados patamares.

Umas das políticas mais utilizadas para impedir a desvalorização é a

manipulação da taxa de juros. A princípio, essa manipulação tem que

considerar a diferença entre os juros internos e externos, pois, se uma parte

dos aplicadores externos considerarem que aplicar em títulos estrangeiros for

Page 115: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

115

mais rentável e tão seguro ou mais seguro e tão rentável quanto aplicar em

títulos nacionais, o governo terá dificuldade de garantir suas metas de câmbio e

inflação.

Para tentar explicar essas relações, foram criadas as teorias da paridade

de juros. Existem três versões dessa teoria: a paridade coberta, descoberta e a

paridade dos juros reais.

A teoria da paridade juros coberta é a mais aceita contemporaneamente.

Ela pode ser resumida pela seguinte fórmula, já na forma logaritímica:

j internacional + êf

j nacional

Onde:

êf = (ef1 - e0) / e0

onde:

j internacional = taxa de juros internacional

j nacional = taxa de juros em euro

ef1 = taxa de câmbio no mercado futuro no tempo t1

e0 = taxa de câmbio corrente

êf = custo de proteção contra desvalorizações na moeda nacional

Essa igualdade seria decorrente de operações de arbitragem. Se o

custo de proteção cambial mais os juros internacionais forem inferiores ao juros

nacionais, tomar-se-ia emprestado no exterior e aplicar-se-ia no país. O

arbitrador receberia os juros nacionais e pagaria os juros internacionais mais o

custo de proteção cambial, mas não teria qualquer risco cambial. A teoria

supõe que o volume de capital que deseja lucrar sem riscos seja praticamente

infinito e essa oportunidade de lucro seria efêmera. Se os juros internacionais

forem superiores aos juros nacionais mais o custo de proteção contra

desvalorizações da moeda internacional (que é o inverso de proteção contra

desvalorizações da moeda nacional), faz-se a operação inversa. O único ponto

onde não haveria oportunidade de operações de arbitragem seria aquele dado

pela fórmula da paridade juros coberta.

Nos modelos macroeconômicos tradicionais, essa teoria costuma

ser usada para explicar porque aumentos das taxas de juros atraem capital

para um país. Para isso supõe-se que o custo de proteção cambial seja

Page 116: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

116

exógeno. Dessa forma, aumentos na taxa de juros atrairiam uma quantidade

infinita de capital, financiando o balanço de pagamentos do país.

Além de operações de arbitragem, os movimentos internacionais

de capitais de curto prazo podem ser constituídos também pelos chamados

especuladores. Os especuladores compram títulos em moeda estrangeira sem

proteção cambial, visando lucrar com a expectativa de desvalorização cambial

ou com a diferença entre as taxas de juros dos países. A teoria da paridade

juros descoberta diria que a operação desses agentes resultaria em uma

situação de equilíbrio na seguinte fórmula:

j internacional + ëf

j nacional

Onde:

ëf = (e1 - e0) / e0

onde:

j internacional = taxa de juros internacional

j nacional = taxa de juros nacional

e1 = taxa de câmbio esperada no tempo t1

e0 = taxa de câmbio corrente

ëf = expectativa de desvalorização cambial

Segundo Lavoie (2000: 7), “the UIP relation [teoria da paridade

descoberta] asserts that nominal interest rates (in a riskless enviroment) are

determined by world interest rates plus the expected change in exchange rates.

Thus the interest rate differentials for one-month assets are determined by

expectations about future exchange rates. In the neoclassical framework, the

answer is straightforward: inflation rate differentials, as determined by money

supply growth differentials net of output growth, should provide the correct

expectations, if PPP holds. Thus, uncovered interest parity implies the

equalization of real interest rates between countries – the real interest parity

theorem (RIP). Ainda segundo esse autor, “the purchasing power parity

theorem is often associated with the classical Quantity theory of money, or the

contemporary monetarist theory. In that framework, while differential rates of

inflation explain the evolution of exchange rates, the differential rates of inflation

Page 117: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

117

are themselves explained by differential rates of money supply growth (having

taken into account growth in the normal real output)” (Lavoie, 2000: 7).

Apesar de enfatizarmos as diferenças fundamentais entre as teorias da

paridade coberta e descoberta, na teoria neoclássica elas costumam estar

associadas.

“The uncovered interest parity relation must also be made consistent with covered interest parit. Covered interest parity asserts that the interest rate differentials must be equal to the forward exchange premium (or discount) with respect to the spot exchange rate, a relationship which indeed yiels a perfect match in empirical observation. Putting together the CIP (paridade coberta) and UIP relation implies that the forward exchange rate and the expected future spot exchange rate must be equal. Thus the forward exchange rate, within this standard neoclassical theoretical framework, should reflect the expectations of the financial markets with respect to future spot exchange rates.

The trouble with the neoclassical model, however, is that there is hardly any correlation between the forward exchange rate and its corresponding realized future spot exchange rate. It must thus be concluded either that the expectations of the agents operating in the financial markets are consistently wrong, or that the forward exchange rate hás nothing to do with expectations of the future values fo the spot exchange rate, in contrast to what is asserted in the neoclassical model” (Lavoie, 2000: 8).

A teoria da paridade juros descoberta, porém, contêm premissas

especialmente restritivas, como a hipótese de “mercados eficientes”, e não tem

resultados empíricos muito favoráveis (Froot e Richard, 1990; Gandolfo, 1995:

34-5).

3.2.1.2. A opção pela paridade coberta

Em ambas teorias da paridade juros, pode-se dizer que as condições do

balanço de pagamentos determinariam o diferencial de taxa de juros, porque as

expectativas de desvalorização ou o custo de proteção cambial refletiriam

diretamente ou indiretamente as condições de oferta e demanda esperadas de

dólares.

As versões mais tradicionais da teoria ortodoxa, não consideram o

prêmio de risco. Utilizando as hipóteses da paridade de poder de compra e

mercados eficientes, supõem que a taxa de câmbio deve se ajustar para

manter equilibrado o saldo em conta corrente. Assim os diferenciais de juros

seriam apenas transitórios, pois o saldo em conta corrente equilibrado indicaria

que o câmbio real está no seu ponto de equilíbrio e não haveria forças para

ajustá-lo. Nesse ponto, não haveria tendência à valorização ou desvalorização

Page 118: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

118

do câmbio e, assim, não haveria motivo para qualquer diferencial de juros.

Portanto, a arbitragem internacional eliminaria qualquer diferencial de juros.

Todavia, sabe-se que certos países e o Brasil especificamente mantêm

taxas de juros permanentemente mais elevadas do que a taxa americana, no

mínimo, há mais de 12 anos para o caso brasileiro. Esse fato é um problema

principalmente para a teoria da paridade de juros descoberta, pois ela supõe

que o diferencial decorre de um “expectativa implícita de desvalorização”, que,

de fato, não poderia corresponder aos elevados diferenciais de juros por

períodos tão longos no montante “esperado”.

Apenas para continuar com a ilustração do caso brasileiro, a

capitalização do diferencial de taxas de juros de 1994 até este ano é muito

superior à desvalorização acumulada. O valor capitalizado da taxa Selic, no

período, é igual a 1332,6%, enquanto a valorização acumulada do dólar atinge

apenas 231%. Isso significa uma variação líquida em dólar de 577%, ou 17,3%

ao ano.

Supondo a teoria da paridade juros descoberta, essa constatação

empírica implicaria que os agentes econômicos erram continuamente e

cumulativamente e sempre da mesma maneira ou que tivessem “expectativas

irracionais”. Além disso, há países que já obtiveram o “equilíbrio” do saldo em

conta corrente e os juros permaneceram muito altos. O Brasil já está fazendo

três anos de saldo positivo em conta corrente e as taxas de juros básicas e

futuras permanecem em patamares elevados. O superávit acumulado desde

agosto de 2002 é de 22,5 bilhões de dólares, sendo 56% registrado nos últimos

12 meses, 1,86% do PIB.

Esses fatos não são exclusivos do Brasil, o diferencial de taxas de juros

é persistente, em muitos países, e não necessariamente é equivalente à

desvalorização acumulada. A teoria da paridade descoberta encontra franca

contradição a essas evidências.

Já a teoria da paridade coberta, quando não relaciona diretamente o

custo de proteção cambial com as expectativas de desvalorização, acaba

sendo uma teoria menos incoerente com os dados. De fato, há estudos

estatísticos que mostram que a fórmula da paridade juros coberta tem uma boa

adequação empírica (Froot e Richard, 1990).

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119

3.2.1.3. Mobilidade imperfeita de capitais, substituição imperfeita de

ativos, prêmio de risco e expectativa cambiais

As versões ortodoxas mais tradicionais da teoria de paridade juros

consideram mobilidade perfeita de capitais e a substituição perfeita de ativos.

Entretanto, a premissa de substituição perfeita de ativos, especialmente, não é

adequada para descrever fenômenos macroeconômicos reais.

A teoria da paridade descoberta está representando operações

financeiras arriscadas. Sua fórmula está supondo que o risco dos ativos

nacionais e estrangeiros seja igual para todos os agentes – substituição

perfeita – ou que esses sejam neutros ao risco (Gandolfo, 1995: 32-3). Essas

são situações muito pouco prováveis. É mais razoável supor que especulador

exija algum prêmio de risco. “Quando títulos em moedas doméstica e

estrangeira são substitutos imperfeitos, a condição (...) [da paridade juros] não

se mantém em geral. Ao contrário, o equilíbrio no mercado de câmbio

internacional requer que a taxa de juros doméstica seja igual ao rendimento

esperado em moeda doméstica sobre os títulos estrangeiros mais o prêmio de

risco, , que reflete diferentes riscos entre os títulos doméstico e estrangeiro”

(Krugman e Obsfeld, 20??, 513):

j internacional + ëf +

j nacional

As hipóteses de substituição imperfeita de ativos ou de mobilidade

imperfeita de capitais implicam que, se um governo adotar uma taxa de juros

superior ao mínimo, atrairia capital externo, mas o volume de capital atraído

não seria “infinito”.

É importante notar que essas hipóteses não significam apenas custos

sobre o movimento de capitais. O efeito mais importante que elas estariam

tentando representar é a existência de limites ao volume de capital

internacional disponível para cada país por nível de remuneração oferecida.

Os modelos macroeconômicos tradicionais consideram ainda que, pelo

menos até um determinado ponto, essa solução será sempre válida. Ou seja,

Page 120: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

120

toda vez que o governo aumentar a taxa de juros, atrairá um fluxo maior,

porém, finito de capital externo. É importante notar a que estamos falando de

fluxo e não de estoque. Isso significa que, se não houver mudanças na

economia, essa taxa de juros manterá um fluxo positivo de capitais. Modelos

derivados do IS-LM-BP com mobilidade imperfeita de capitais possuem essas

conclusões.

Esses modelos ativos constroem uma função contínua e

monotonicamente crescente entre a taxa de juros e a entrada de capitais, e

portanto, entre juros e renda para balanços de pagamentos equilibrados. O

gráfico abaixo busca ilustrar essa função.

Esses modelos se baseiam na teoria da paridade juros. Portanto, a

função monotonicamente crescente significa que – tudo mais constante –

sempre que se aumenta a demanda interna e, consequentemente, a

necessidade de financiamento externo, aumenta-se as expectativas cambiais

ou o prêmio de risco.

y

j BP = 0

Page 121: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

121

3.1.2.4. Expectativas cambiais e prêmio de risco endógenos e

função da curva BP?

A curva BP positivamente inclinada foi muito difundida a partir dos

modelos Mundell-Fleming com liberdade imperfeita de capitais ou substituição

imperfeita de ativos, informalmente conhecidos como IS-LM-BP. No entanto, a

construção de uma relação funcional monotonicamente positiva e estável

incorre em problemas teóricos e empíricos. É difícil sustentar que possa existir

alguma relação funcional; ou seja, traduzível em uma função matemática; entre

juros, entrada de capitais e renda.

Imaginando um modelo macroeconômico que supõe uma curva BP

implícita ou explícita podemos fazer a seguintes perguntas: o que determina a

localização da curva, sua inclinação? Quanto os juros precisam ser elevados

para que o país possa aumentar sua renda? Poderíamos, a priori, dizer que as

respostas de todas essas perguntas dependem de quais sejam as expectativas

de desvalorização cambial e a percepção de risco.

A posição e a inclinação da curva BP depende fortemente das

expectativas cambiais e da percepção de risco. A teoria da paridade juros

conclui que, quanto maior a expectativa de desvalorização e maior a percepção

de risco, maior tem que ser a taxa de juros necessária para atrair o mesmo

volume de capital. Essa teoria traz um sério problema para os modelo IS-LM-

BP. As expectativas cambiais possuem uma forte endogenidade com relação

ao crescimento, aos juros, ao movimento de capitais e às próprias expectativas

cambiais e o prêmio de risco. Dessa forma, qualquer mudança nos juros, na

renda, ou no intercepto, ou seja, no volume de capital autônomo que entra no

país, altera a própria curva.

As expectativas de desvalorização e a percepção de risco são

fortemente auto-referenciadas. Isso significa que pode existir o efeito chamado

de profecia auto-realizável. A auto-referenciação dessas expectativas resultam

em um problema mais sério: qualquer mudança na curva altera a própria curva.

Resumindo, não é possível definir uma relação funcional estável entre essas

variáveis.

Page 122: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

122

3.2.1.5. Curva BP e restrição externa

Apesar dos problemas acima citados, a curva BP foi muito utilizada para

explicar importantes fenômenos. Ela pode ser usada para explicar a restrição

externa. O modelo Mundell-Fleming com perfeita mobilidade de capitais não

pode explicar a restrição externa. O balanço de pagamentos pode sempre ser

financiado com aumentos temporários na taxa de juros.

A princípio, nesse tipo de modelo, mesmo com liberdade imperfeita de

capitais, não haveria restrição externa, pois o governo pode sempre induzir o

crescimento econômico, por exemplo, com políticas fiscais e financiar o

balanço de pagamentos com aumento da taxa de juros. Nessa situação, o

governo, sempre que desejar aumentar o nível de atividade, precisará

aumentar a taxa de juros, pois a quantidade de capitais que entram no país por

nível de diferencial de taxa de juros é limitado.

Porém, mesmo uma curva BP positivamente inclinada e com derivada

não infinita pode ser usada para explicar a restrição externa. Para isso, basta

supor um teto para a taxa de juros. Como o crescimento da demanda por

importações implica na necessidade de aumento da taxa de juros, se houver

limite à taxa de juros, haverá limite ao crescimento da renda.

A solvência externa de um país busca prever sua capacidade honrar a

dívida externa. Um dos mais importantes indicadores de solvência externa é a

relação entre dívida externa e exportações. Supõe-se que, se esse indicador

ultrapassar certos patamares o país teria alto risco de insolvência e os credores

externos deixariam de financiá-lo e estaria muito sujeito a uma séria crise

externa. Esse indicador aumentaria indefinidamente enquanto a taxa de juros

for superior à taxa de crescimento das exportações.

Nessas condições, para garantir a estabilidade da relação dívida

externa/exportações, a taxa de crescimento das exportações seria um teto para

a taxa de juros do passivo externo líquido. Portanto, esse critério de solvência

determinaria a restrição externa.

Se o governo precisa atrair mais empréstimos externos, tem que

incentivar o setor privado a fazê-lo. Precisa aumentar a taxa de juros interna,

induzindo a emissão de dívida no exterior.

Page 123: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

123

A hipótese de mobilidade imperfeita decorre principalmente da

suposição de limites ao montante de capital disponível para o país para cada

nível de juros oferecidos.

Dessa forma, quando o governo aumentar a taxa de juros interna para

atrair capitais, aumentará também a taxa de juros externa. Assim, quando o

governo elevar o diferencial, serão atraídos fluxos adicionais de empréstimos,

permitindo que o nível de atividade cresça. Porém, haverá um momento em

que a taxa de juros externa será tão alta quanto a taxa de crescimento das

exportações. Se esse ponto for ultrapassado a relação entre dívida externa e

exportações tenderá a ser explosiva e o país poderá caminhar para a

insolvência. Esse ponto poderia determinar a restrição externa nesse

arcabouço. O gráfico que segue objetiva ilustrar essas relações.

Page 124: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

124

Essa conclusão é válida para os tradicionais modelos IS-LM-BP com

liberdade imperfeita de capitais. Mas não é completamente incoerente com

análises que são críticas à existência de uma relação funcional estável entre

juros e entrada de capitais. Desde que suponham que, ceteris paribus, quanto

maior o diferencial, maior a entrada de capitais. Essa conclusão decorreria da

aceitação da perspectiva contida na teoria da paridade juros coberta.

O gráfico abaixo busca ilustrar porque a conclusão anterior, de que o

nível de renda máximo é obtido no ponto onde a taxa de juros se iguala à taxa

de crescimento das exportações, pode ser mantida, mesmo se retirada a

suposição de existência de uma relação funcional estável entre renda, balanço

de pagamentos e juros. Supõe-se que, dependendo das expectativas, os

possíveis pontos de balanço de pagamentos nulo se situam no espaço entre as

curvas BP = 0 mín e BP = 0 máx. A premissa de validade da teoria da paridade

juros coberta sugere que mais juros tendem a atrair mais capital externo. Ela se

expressa no gráfico pela relação positiva entre renda e juros nas duas curvas

que limitam o espaço onde é esperado encontrar uma BP = 0.

y

j

BP = 0

insolvente

solvente

y máx = ponto de

restrição externa

Pleno emprego

j = Exp%

Page 125: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

125

3.2.1.6. Questionamentos

As teorias acima citadas são, a princípio, coerentes. No entanto, como

sugerimos, não é tão óbvio a compatibilização – em um modelo

macroeconômico – da teoria da paridade juros com a suposição de mobilidade

imperfeita de capitais ou a substituição imperfeita de ativos, i.e, com uma curva

de balanço de pagamentos positivamente inclinada.

Supondo a teoria da paridade juros coberta, essa compatibilização pode

implicar que os custos de proteção cambial e ou o prêmio de risco crescem

com o crescimento da demanda agregada. A partir delas pode-se levantar

algumas dúvidas: O que determina o custo de proteção cambial? As

expectativas de desvalorização? O risco de desvalorização? Como se calcula

tais variáveis? Porque elas cresceriam monotonicamente com o crescimento da

renda mesmo enquanto o país ainda está solvente? O que determina o risco-

país? O risco de inadimplência? Como se calcula esse risco? Porque ele

cresceria monotonicamente com o crescimento da renda mesmo enquanto o

país ainda está solvente? Como se explica a grande volatilidade dessas

y

j insolvente

solvente Espaço onde pode haver necessidade de aumento dos juros para financiar o BP

Faixa onde pode ocorrer restrição externa

Pleno emprego

j = Exp%

BP = 0 máx BP = 0 mín

Y max possível

Page 126: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

126

variáveis? Como se explica as grandes diferenças internacionais no valor

dessas variáveis?

Aparentemente as diversas teorias de paridade juros não explicam, por

exemplo, porque as taxas de juros brasileiras são tão elevadas. Assim, como

não explicam a alta liberdade dos governos em definir suas taxas de juros. As

taxas de juros brasileiras são tão maiores que as taxas de outros países

subdesenvolvidos, que esse fato não pode ser explicado pela teoria da

paridade juros, nem mesmo incluindo a idéia de “risco país”.

3.2.1.7. Explicações ortodoxas

Segundo Arida, Bacha e Lara-Resende (2004: 2), há três explicações

tradicionais de perspectiva de ortodoxa para as elevadas taxas de juros

brasileiras e eles propõem uma quarta. Todas essas explicações se

fundamentam na doutrina das finanças “saudáveis”.

A explicação mais tradicional se baseia na idéia de que, no Brasil,

“despite an expressive primary surplus, the burden of public debt is very high

and puts pressure on the interest rate. The public sector high financing

requirements, generated mainly by its very high debt financing needs, competes

for the scarce available savings, causing the interest rate that clears the goods

market to be very high” (Arida, Bacha e Lara-Resende, 2004: 3).

Essa explicação se baseia no secular e altamente questionável axioma

ortodoxo ainda não demonstrado de que todas as economias estão sempre em

pleno emprego na ausência de intervenção do governo. Como resultado, têm-

se as velhas idéias da doutrina das finanças “saudáveis” de que a poupança

privada “financia” o déficit público e que o nível de poupança pode ser uma

restrição à capacidade do governo definir a taxa de juros. Mostramos no

primeiro capítulo, porque tais idéias não seriam válidas para descrever os

fenômenos econômicos.

A segunda explicação propõe que “there was an unusual series of

adverse shocks, external and internal, in the last couple of years: the blowing

up of the Nasdaq buble, the blackout and rationing of domestic energy supply,

September 11, the collapse of Argentina, and, finally, in 2002 the fear of an

electoral victory of the Workes’ Party and the so-called ‘Lula risk’. The result of

such shocks was that the economic tripod, although adequate, did not yet have

Page 127: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

127

the time to produce its results for economic recovery and lower interest rates.

An inflation targeting monetary policy should attempt to smooth interest rate

volatily in its trajectory towards long run equilibrium. Thus in the absence of

additional adverse shocks, it would be only a question of time for the Brazilian

real interest rate to converge to the levels of other stable economies.

Essa explicação certamente não é sustentável, pois as crises externas

acima citadas a princípio deveriam afetar a todos os emergentes,

principalmente a América latina, e, no entanto, apenas as taxas brasileiras se

mantiveram extraordinariamente altas o tempo todo por mais de doze anos.

Além disso, as crises internas citadas passaram há muito tempo, não

justificando a manutenção de taxas tão altas e, paradoxalmente, no período em

que ocorreram, as taxas de juros eram mais baixas do que no período de

inédito boom de crédito para os países emergentes que estamos vivendo há

quase três anos.

A terceria se baseia na hipótese de dominância fiscal em uma economia

aberta.

“A standard proposition in open economy macroeconomics is that a central bank engineered increase in the real interest rate makes domestic government debt more attractive and leads to a real appreciation. If, however, the increase in the real interest rate also increases the probability of default on the debt, the effect may be instead to make domestic government debt less attractive, and to lead to a real depreciation. That outcome is more likely the higher the initial level of debt, the higher the proportion of foreign-currency denominated debt, and the higher the price of risk.

Under that outcome, inflation targeting can clearly have perverse effects: An increase in the real interest in response to higher inflation leads to a real depreciation. The real depreciation leads in turn to a further increase in inflation. In this case, fiscal policy, not monetary policy, is the right instrument to decrease inflation” (Blanchard, 2004: 2).

A hipótese de dominância fiscal sugere que existam dois

equilíbrios possíveis para as taxas de juros, um “bom equilíbrio” e um

“equilíbrio perverso”. A possibilidade desse equilíbrio perverso é a novidade

dessa teoria e ele ocorreria se a dívida pública fosse muito elevada e de perfil

inadequado.

Arida, Bacha e Lara-Resende (2004: 2) consideram que “the double

equilibrium is a theoretically possibility. Its empirical relevance however, has not

yet been established. Moreover, interest rate smoothing considerations may

render it unattractive in practice. A Central Bank concerned with the credibility

Page 128: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

128

and the coherence of policies through time would hardly dare to make the

abrupt interest rate cut required to reach the good equilibrium”.

Essa crítica não parece ser cientificamente aceitável, pois não se baseia

em uma inadequação teórica ou empírica, mas na simples oposição a uma

prática política, que sintomaticamente é exposta como fim, quando sabemos

que só pode ser justificada cientificamente como um meio54.

De fato, teoria da dominância fiscal parece ser a melhor das três

explicações tradicionais e melhor do que a teoria que os autores propõem, que

vamos expor a seguir. Mais à frente iremos expor com maior detalhes a versão

que consideramos mais adequada da teoria da dominância fiscal, chamada de

efeito Bresser-Nakano.

Arida, Bacha e Lara-Resende (2004) defendem que as taxas de juros

brasileiras são extraordinariamente altas devido ao que eles chamam de

incerteza “juridicional”55. Esse conceito criado pelos autores busca abarcar uma

enorme quantidade de tipos de incertezas contratuais, jurídicas, políticas,

54 Esses autores propõem uma teoria alternativa à dominância fiscal, que exporemos a seguir. Porém, convém ressaltar o quão precário são seus argumentos para rejeitar a teoria da dominância fiscal. Sugerem que uma teoria possa ser “unattractive in practice”. Sob princípios científicos pode-se dizer que uma teoria seja uma explicação adequada ou não para um determinado evento empírico. Propor que uma teoria deva ser descartada, portanto, não-válida em termos científicos por questionar uma determinada prática política significa explicitar que justificar socialmente tal prática política seja mais importante do que encontrar a verdadeira explicação para o fenômeno empírico (no debate científico, descartar uma teoria significa dizer que considera-se que ela não seja uma explicação adequada. Caso contrário, estar-se-ia explicitando que a escolha de teorias não se baseia em critérios científicos, mas possivelmente nos interesses pessoais ou preconceitos ideológicos do pesquisador.). Ou seja, significa dizer claramente que os pesquisadores estão mais preocupados com a manutenção de certas práticas políticas do que com a ciência em si. O próprio uso do adjetivo unattractive para uma teoria é um sinal indicativo com relação a essa possibilidade. É ainda sintomático que a prática política defendida por esses autores seja manter a credibilidade do Banco Central (governo) frente aos investidores. Essa é a mesma prática que Kalecki (1942) acusa como sendo um dos principais alicerces das teorias das finanças “saudáveis”, qual seja, manter o governo dependente das expectativas, opiniões e temores dos investidores. É interessante ainda notar que os autores não criticam as outras duas explicações tradicionais, apesar de serem teórica e empiricamente muito inferiores à teoria da dominância fiscal. Paradoxalmente criticam apenas a dominância fiscal. Coincidentemente ou não, diferentemente da explicação da dominância fiscal, essas duas explicações tradicionais, assim como a quarta explicação que proporão sugerem que a política monetária brasileira de taxas de juros extraordinariamente altas não está equivocada. Coincidentemente ou não, esses autores foram participantes da formulação do arcabouço de políticas que criou e mantém até hoje a política de juros extraordinariamente altos. Nunca é demais lembrar que essa política, como qualquer outra, beneficia mais a uns do que a outros. Nesse caso particular, convém lembrar o setor financeiro e rentistas é o grande beneficiado por esse tipo de política e que esses autores têm ou tiveram fortes ligações com o setor financeiro. O levantamento dessa suspeição não pode ser um argumento válido para questionar dentro da macroeconomia essas teorias, porém, pode ajudar a entender dentro de uma perspectiva sociológica e política porque e como os questionamentos à atual política do Banco Central têm sido pouco debatidos em certos ambientes acadêmicos. 55 Neologismo.

Page 129: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

129

sociais e mesmo econômicas, seriam em grande parte decorrente de um “viés

ideológico” na sociedade brasileira que não respeitaria os credores.

Supostamente essas incertezas contratuais, jurídicas, políticas, sociais e

econômicas seriam maiores no Brasil do que em qualquer outro país, haja visto

que nossas taxas de juros são incrivelmente maiores do que de qualquer outro

país. É difícil imaginar que a incerteza “juridicional” possa ser maior no Brasil

do que qualquer um desses países: Síria, Líbano, Paraguai, Bolívia, Vietnã,

Laos, Camboja, Peru, Indonésia, Equador, Haiti, Ubequistão, Casaquistão,

Rússia, Ucrânia, Irã, Paquistão, China, Índia, Venezuela, Argentina, Colômbia e

países africanos em geral.

As relações causais que os autores buscam desenvolver entre essa

“incerteza juridicional” e as taxas de juros de curto prazo são em geral bastante

nebulosas ou questionáveis, mas na maior parte das vezes se baseiam ou na

idéia de que a incerteza “juridicional” aumenta o prêmio de risco-país ou reduz

a propensão a poupar ou a aplicar em ativos financeiros.

Como vimos, em uma visão de finanças funcionais ou de moeda

endógena em geral, a propensão a poupar ou a aplicar em ativos financeiros

não pode impedir o governo de definir a taxa de juros que quiser.

Quanto ao prêmio de risco-país a questão é mais complexa. Esse

prêmio certamente afeta o volume de capital disponível para aplicar no país e

seu custo de oportunidade. Mas como veremos mais à frente, o prêmio de

risco-país não necessariamente e muito dificilmente afeta as taxas de juros

internas, porque (1) essas podem estar desvinculadas de taxas externas em

decorrência de controles de capitais ou (2) da independência do país em

relação a financiamento externo tomado pelo setor privado ou (3) ainda porque

o prêmio de risco-país é fortemente dependente das taxas de juros internas

que são decididas de forma bastante autônoma pelo Banco Central. Veremos

com maiores detalhes esses argumentos nas próximas seções.

Arida, Bacha e Lara-Resende (2004) parecem encontrar dificuldades

teóricas em relacionar a incerteza “juridicional” às elevadas taxas de juros

brasileiras e dificuldades empíricas em demonstrar porque o Brasil teria uma

incerteza “juridicional” maior do que os países subdesenvolvidos em geral.

Desviando-se desses problemas, os autores, gastam boa parte do

tempo (i) descrevendo detalhadamente todos os tipos de limitações existentes

Page 130: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

130

no Brasil ao que eles veriam como condições ideais de liberdade de mercado e

previsibilidade contratual e financeira, i.e, de tipos de incerteza “juridicional”; ou

(ii) tentando mostrar a importância da incerteza “juridicional” para a inexistência

de mercado de crédito privado de longo prazo no Brasil.

Entretanto, parecem superestimar significativamente a importância

dessa incerteza “juridicional” na determinação do crédito de longo prazo. Se a

incerteza “juridicional” fosse realmente tão importante, as taxas de juros de

longo prazo no Brasil seriam superiores às taxas de juros de curto prazo, o que

raramente acontece, desde que o governo resolveu adotar essas taxas de juros

elevadíssimas. Existem títulos públicos de prazos relativamente altos, tanto

prefixados quanto indexados à inflação que quase sempre tem taxas de

remuneração menores do que os títulos pós-fixados diariamente. Resultado

esse que é completamente contraditório com a experiência internacional, a

teoria tradicional e a suposição de que exista uma incerteza “juridicional” que

seja absolutamente determinante na determinação das taxas de juros.

De fato, não há mercado para crédito privado de longo prazo no Brasil.

Mas a explicação precisa ser diversa da oferecida por Arida, Bacha e Lara-

Resende (2004), pois, se a incerteza “juridicional” fosse realmente

determinante, as taxas de juros de longo prazo seriam superiores às taxas de

juros de curto prazo, os empresários nacionais não conseguiriam obter taxas

de juros tão baixas nos mercados de crédito externo (a lei brasileira é co-

soberana nesses contratos), o Brasil não seria o país que mais recebeu

investimento direto externo em relação ao tamanho de sua economia entre as

grandes nações e as taxas de juros brasileiras não seriam as maiores do

mundo.

Arida, Bacha e Lara-Resende (2004) falham em parte por desconsiderar

que que o mercado de crédito de longo prazo, como em qualquer mercado, só

pode operar se além de oferta há demanda. Eles não fazem quaisquer

considerações sobre a demanda por crédito de longo prazo.

Em grande medida não existe crédito de longo prazo no país decorre de

que não há demanda e não pela falta de oferta. A taxa de juros reais de 50% é

comum prevalecer no Brasil ultimamente para empréstimos de curto prazo ao

setor privado. Um empréstimo com o prazo de 30 anos a taxas de juros

equivalentes implica que o pagamento de juros será 19.175.006% maior ou

Page 131: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

131

191,175 mil vezes maior em termos reais do que o valor de empréstimo

tomado. Não custa lembrar que nenhum empreendimento no planeta poderia

render tais taxas. Na verdade, mesmo taxas de juros muito mais baixas seriam

dificilmente assumidas por empresários para empréstimos de longo prazo. Na

verdade, em média, as taxas de juros reais dos empréstimos de longo prazo

não podem superar significativamente as taxas de crescimento da economia,

pois se espera-se que a partição dos lucros na renda fique estável, taxas de

juros maiores para empréstimos de longo prazo do que a taxas de crescimento

da economia significam no longo prazo uma inadimplência generalizada desses

financiamentos.

Não há financiamento de longo prazo em reais principalmente porque

ninguém é capaz de pagá-los devido à taxas de juros possível para esses

empréstimos. Ou seja, a taxa de juros básica alta é o principal motivo para a

inexistência de mercado de empréstimos de longo prazo no país. Quando o

país tinha inflação muito elevada, esse era o principal motivo da não existência

de empréstimos de longo prazo, tanto credores quanto devedores se

arriscariam muito, pois as taxas de juros reais e nominais desses empréstimos

para prazos mais longos teriam uma grande incerteza, no período de alta

inflação. Quanto aos outros países subdensenvolvidos a principal razão de

inexistência de empréstimos privados de longo prazo é a alta volatilidade das

taxas de juros, de câmbio e da inflação.

3.2.1.8. Juros altos para maximizar o crescimento?

A explicação mencionada acima para a restrição externa sofre ainda de

alguns outros problemas menos abstratos. As conclusões implícitas nos

modelos do tipo IS-LM-BP diriam que o nível máximo de emprego alcançável

em determinado período seria definido no ponto onde a taxa de juros se

equivaleria à taxa de crescimento das exportações.

Partindo dessa proposição, poderíamos concluir que, em uma política de

maximização do emprego, a taxa de juros seria equivalente à taxa de

crescimento das exportações.

Esse resultado seria incoerente com as experiências históricas mais

bem sucedidas de desenvolvimento, ou seja, de crescimento mais acelerado. É

Page 132: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

132

importante notar que essas experiências são tratadas como modelo. Em todas

elas ou talvez quase todas, as taxas de juros prevalecentes foram muito

baixas, frequentemente mais baixas do que a taxa de inflação, e certamente

mais baixas do que a taxa de crescimento das exportações. Podemos, ainda,

dizer que as taxas de desemprego foram em geral relativamente baixas

durante o processo de desenvolvimento, principalmente em seus estágios

finais.

Por último, podemos dizer que uma política de maximização do

crescimento não é compatível com a manutenção de taxas de juros elevadas.

A taxa de juros de longo prazo, principalmente, é um fator essencial para a

competitividade externa de um país. Se isso for verdade, tornar a taxa de juros

equivalente à taxa de crescimento das exportações significaria reduzir a própria

taxa de crescimento das exportações e, portanto, a taxa de crescimento.

Esses problemas decorreriam principalmente de uma inversão de

causalidade criada pela teoria da paridade coberta de juros. Essas teorias

propõem que a relação de causalidade é basicamente do “risco-Brasil”, da

expectativa de desvalorização e do custo de proteção cambial para os juros.

Defendemos que a causalidade no outro sentido – dos juros para o “risco-

Brasil” e para o custo de proteção cambial – também exista e que seja mais

importante.

Aparentemente a suposição de liberdade imperfeita de capitais evitaria

essas contradição com os fatos, pois permitiria explicar porque as políticas

monetárias dos países são autônomas. Entretanto, a suposição de mobilidade

imperfeita de capitais ou substituição imperfeita de ativos associada à teoria da

paridade juros não resolve o problema e cria outros. Ela sugere uma relação

funcional monótona positiva entre o nível de atividade e o custo de proteção

cambial ou o risco país que é difícil de explicar, pelo menos, nas situações em

que o país está solvente. As grandes diferenças de taxas de juros

internacionais continuariam sem explicação adequada.

Nas seções seguintes tentaremos expor uma teoria alternativa para a

determinação da taxa de juros. Essa teoria mostraria que: (1) empréstimos de

curto prazo não são uma forma sustentável de financiamento externo, (2) o

Page 133: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

133

governo não precisa manter taxas de juros elevadas para maximizar a taxa de

emprego que pode atingir por período. Essas conclusões serão fundamentais

para, no quarto capítulo, mostrar qual seria o modelo de desenvolvimento

compatível com as finanças funcionais. Ou seja, que permitiria o máximo de

emprego por período com o máximo de crescimento econômico.

3.3. Uma nova visão: Os juros são altos porque são altos

3.3.1. Endogenidade do custo de oportunidade em moeda estrangeira

“Chega de política monetária equivocada. Que volte o bom senso ao Banco Central, e o país aliviado o aplaudirá.” Joaquim Elói Cirne de Toledo

A taxa de juros brasileira tem sido mantida continuamente entre as mais

altas do mundo pelo menos desde o início do plano real. São muitos anos de

vigência dessa anormalidade teórica e empírica que tem causado sérios danos

à sociedade brasileira. Por um lado, essas taxas de juros elevadíssimas

promovem uma tremenda e catastrófica redistribuição de renda em favor dos

rentistas, bancos, e outros capitalistas, por outro lado fragiliza financeira e

competitivamente a indústria brasileira de capital nacional que teve nos últimos

anos seu crescimento fortemente restringido e sua competitividade externa

erodida frente a concorrentes internacionais que conseguem fazer empréstimos

a longo prazo, colocar ações no mercado a custo baixíssimo e financiar

agressivamente seus clientes externos e internos. De fato, é fácil constatar que

o plano real foi o período na história brasileira que mais intensamente se

desnacionalizou a indústria brasileira.

Outra grande tragédia das taxas de juros brasileiras vigentes pelo menos

desde o início do plano real foi a enorme elevação da dívida pública. Essa

passou de aproximadamente 70 bilhões de reais para mais de 700 bilhões de

reais no prazo de menos de 10 anos. Em uma visão de finanças funcionais

essa elevação não traz impactos negativos sobre a capacidade de manter

controlados os juros ou a inflação, mas tem um forte impacto na distribuição de

renda e na distribuição de poder dentro da sociedade.

Page 134: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

134

Entretanto, mais espantoso do que os efeitos deletérios dessas taxas tão

elevadas de juros é a aparente indiferença do governo e principalmente a

dificuldade da academia encontrar uma explicação plausível para essas taxas

de juros.

A explicação tradicional sobre a taxa de juros brasileira se baseia no

chamado “risco-Brasil”. O “risco Brasil” é o spread dos títulos públicos

brasileiros negociados em dólar em relação aos preços dos títulos públicos

americanos de maturidade equivalente. Essa explicação é falha, pois países

claramente tão ou mais arriscados que o Brasil como Colômbia, Peru,

Venezuela entre outros possuem “risco-país” significativamente menores. Mais

à frente, desenvolveremos melhor o motivo pelo qual as altas taxas de juros

brasileiras não são decorrentes do chamado “risco Brasil”. Ver as tabelas

abaixo como ilustração.

Taxa de inflação e taxa real de juros para países selecionados em Outubro de 2001

(em geral houve redução dos juros no mundo a partir de então, e o Brasil se manteve como excepcionalidade, como se

pode ver no quadro posterior, apesar de seguir todas as recomendações do FIM)

País IPC (setembro) Taxa de juros CP Taxa real de juros

Turquia 61,8 57 -2,97

Chile 3,9 2,78 -1,08

República Checa 4,7 5,24 0,52

Cingapura 0,5 1,19 0,69

México 6,1 7,02 0,87

Coréia do Sul 3,2 4,37 1,13

Tailândia 1,4 2,9 1,48

Índia (IPC ago) 5,2 7 1,71

Malásia 1,4 3,3 1,87

Israel 2,5 4,47 1,92

Venezuela 12,3 14,75 2,18

Hungria 8 10,76 2,56

Colômbia 8 11,54 3,28

Hong Kong -1,2 2,25 3,49

Taiwan -0,5 3 3,52

Rússia (IPC jul) 20,1 25 4,08

Peru 0,9 5,04 4,1

Indonésia 13 17,96 4,39

África do Sul 4,4 9,12 4,52

Egito (IPC jul) 2,2 8,69 6,35

Filipinas 6,1 13,81 7,27

Polônia 4,3 13,68 8,99

Brasil em outubro de 2001 7,3 19,05 10,95 (!)

Brasil em maio de 2003 8,5 (esperado para o ano) 26,5 16,59 (!!)

Fonte: The economist 27 de outubro de 2001, Citado por Bresser e Nakano (2002).

Page 135: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

135

Taxa de juros (em %)

País Dez/00 Abr/03 Variação (%)

Polônia 19 5,75 -13,25

México 17,17 7,77 -9,4

Filipinas 13,5 7 -6,5

Chile 8 2,75 -5,5

Hungria 11,75 6,5 -5,25

Estados Unidos 6,5 1,25 -5,25

Suíça 3,5 0,25 -3,25

Indonésia 14,42 11,18 -3,24

Taiwan 4,63 1,63 -3

Rep. Checa 5,25 2,5 -2,75

Canadá 5,7 3,25 -2,5

União Européia 4,75 2,5 -2,25

Reino Unido 6 3,75 -2,25

Índia 8 6,25 -1,75

Austrália 6,25 4,75 -1,541

Noruega 7 5,5 -1,5

Nova Zelândia 6,5 5,5 -1

Coréia 5,25 4,25 -1

China 5,85 5,31 -0,54

Suécia 4 3,5 -0,5

Japão 0,25 0 -0,25

Brasil 15,75 26,5 + 10,75 (!!!)

Fonte: Carta Capital

Ranking Mundial País Taxa de juros real

Julho de 2005

1º Brasil 14,1 (400% do 2º colocado!!)

2 º Hungria 5,1

3 º Turquia 4,7

4 º Israel 4,7

5 º México 3,9

6 º África do Sul 3,7

7 º Polônia 3,6

8 º Austrália 3,4

9 º Inglaterra 2,8

10 º China 2,5

Fonte: OESP 2º de julho de 2005

Comparação geral (julho de 2005)

Média dos desenvolvidos 0,7

Média mundial (40 países) 1,3 (elevada pelos dados do Brasil)

Média dos emergentes (exclui os desenvolvidos dos 40 países analisados)

2,1 (elevada pelos dados do Brasil)

1º Brasil 14,1 !!

Fonte: OESP 2º de julho de 2005 citando estudo de GRC Visão

Ranking Mundial País Taxa de juros nominais

Julho de 2005

1º Brasil 19,75

2 º Venezuela 17

3 º Turquia 14,3

Fonte: OESP 2º de julho de 2005

Page 136: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

136

3.3.1.1. Bresser-Nakano

“A teoria econômica prevê situações de taxas de juros elevadas como as praticadas no Brasil nos últimos 13 anos como uma aberração. Sem dúvida a questão é controvertida, já que envolve os interesses de empresários, trabalhadores e rentistas. Os empresários perdem porque são desestimulados a investir, os trabalhadores perdem porque se reduz o nível de emprego; ganham apenas os rentistas, que receberam, de janeiro a setembro de 2001, o equivalente a 12% do PIB na forma de juros. Na verdade, este já se tornou um jogo de soma menor do que zero, em que todos perdem, inclusive os próprios beneficiários dos juros, já que, além do custo em termos fiscais, taxas de juros dessa dimensão representam uma perda de PIB potencial incalculável, que nos permitem, todavia, supor que todos estariam melhor hoje se não houvessem prevalecido taxas de juros tão altas no país nos últimos 13 anos [grifos nossos]” (Bresser e Nakano, 2002: 165).

Os professores Bresser e Nakano (2002) propuseram a crítica que ficou

mais conhecida até o presente momento à explicação tradicional das taxas de

juros brasileiras. Boa parte dessa crítica se baseia em uma visão ortodoxa de

claro posicionamento de ‘finanças saudáveis’. Porém, outra parte da crítica é

ousada e interessante por negar a explicação usual da teoria da paridade juros,

o que foi uma grande novidade por incluir a questão da restrição externa já

corriqueira nos meios heterodoxos.

Os autores partem também da impossibilidade de explicação das taxas

de juros brasileiras pela teoria da paridade juros, mesmo quando incluído o

risco-país. Eles questionam se o spread de juros chamado risco-país mede o

“risco efetivo do país”. O cálculo diário e a criação desse conceito se deve ao

banco JP Morgan e é apenas a diferença entre a taxa de juros paga nos títulos

públicos brasileiros em dólar e os títulos públicos americanos de maturação

equivalente. Para os autores, o risco efetivo do país seria mais melhor

estimado pelas empresas de classificação de risco do que pelo spread

calculado pelo JP Morgan.

Nesse caso, é interessante notar que a classificação de risco do Brasil e

de nenhum país é uma boa explicação para as diferenças internacionais de

taxa de juros real. Apenas como exemplo podemos citar a seguinte tabela.

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137

País Risco Outubro 2001 (ordem descendente)

Taxa real de juros

Indonésia CCC+ 4,39

Turquia B - - 2,97

Rússia B 4,08

Venezuela B 2,18

Peru BB - 4,10

Brasil BB - 10,95 (!)

Colômbia BB 3,28

Índia BB 1,71

Fonte: Bresser e Nakano (2002: 163). Dados coletados na Standard & Poor´s e The Economist.

Como é evidente a partir desses dados, a classificação do risco

brasileiro não pode explicar porque as taxas de juros brasileiras são tão altas,

pois países com classificações de risco próximas, iguais, piores e muito piores

possuem taxas de juros reais significativamente menores do que as brasileiras.

Segundo Bresser e Nakano (2002: 163), “a taxa de juros de curto prazo

determinada pelo Banco Central (...) está muito acima daquela que o mercado

determinaria dada a classificação de risco”. Porém, o diagnóstico é ainda pior

do que aparenta, como veremos mais à frente, a classificação de risco

brasileira, seria melhor, se os juros não fossem tão altos.

Para Bresser e Nakano (2002) a explicação para essas discrepâncias

decorre primordialmente da omissão voluntária do governo brasileiro em fazer

outras políticas econômicas ativas além da política monetária.

“Em termos gerais, a taxa de juros é tão alta no Brasil porque as autoridades econômicas e mais amplamente o sistema financeiro no Brasil tem atribuído à taxa de juros funções múltiplas nos últimos anos. Através dela se busca:

1) Reduzir os investimentos e a demanda agregada quando aquecida, de forma a evitar a pressão salarial e aceleração a inflação

2) Limitar a desvalorização da taxa de câmbio para evitar a inflação de custos;

3) Atrair capital externo para fechar o balanço de pagamentos;

4) Induzir investidores externos a comprar títulos para financiar o déficit público;

5) Reduzir o déficit comercial através do controle da demanda interna

Dadas essas múltiplas funções, uma ou mais delas estará apontando no sentido de uma alta taxa de juros. (...) É evidente que um único instrumento não pode alcançar simultaneamente todos esses objetivos. Além do mais, estes objetivos são contraditórios. A elevação da taxa de juros pode permitir o alcance de um objetivo, mas caminhará na direção oposta aos outros, aprofundando os desequilíbrios macroeconômicos. Por exemplo, quando o Banco Central eleva a taxa de juros para atrair capital externo, pode ajudar a fechar o balanço de pagamentos e controlar a inflação, mas estará, simultaneamente, valorizando a taxa de câmbio, o que levará a déficit comercial e, num prazo maior, ao desequilíbrio do próprio balanço de pagamentos. Isso poderá levar a uma desvalorização mais brusca gerando impactos inflacionários e crises financeiras. Dada a multiplicidade de objetivos, a taxa real de juros ao longo dos últimos anos tem sido a mais alta do mundo.” (Bresser e Nakano, 2002: 162-3).

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138

Essa grande quantidade de funções criaria uma tendência à elevação

dos juros e de permanência em altos patamares. Bresser e Nakano ressaltam

ainda o fato do Banco Central repetir exaustivamente o contrário do que

realmente faz; isto é, insistir que a política monetária teria apenas uma função:

a meta de inflação. Os autores, porém, acreditam que não haja contradição

entre que o Banco Central diz ser sua meta uma meta única e o que eles dizem

ser metas múltiplas. Porque “todas elas [as metas], afinal, podem ser

justificadas pela taxa de inflação, dada a interdependência das variáveis

econômicas” (Bresser e Nakano, 2002: 162).

Os cinco objetivos que eles dizem ser buscados pelo Banco Central

teriam como finalidade última o controle da inflação, e isso causaria a

tendência ao aumento dos juros. Como é evidente na maior parte do tempo,

algum desses objetivos demandaria aumento da taxa de juros, mesmo porque

eles são contraditórios. Porém essa multiplicidade de objetivos levaria quase

sempre a um aumento dos juros ou manutenção dos mesmos em patamares

altos.

Os autores destacam ainda que o Banco Central erra por adotar de

forma muito rígida os indicadores de inflação. “Na definição de meta as

experiências mostram que os bancos centrais procuram estabelecer como

meta uma taxa de inflação de longo prazo e, ao invés da taxa efetiva de

inflação utiliza-se a ‘core inflation’, isto é, eliminam-se os elementos transitórios

da inflação efetiva. Com isso alcança-se maior estabilidade do produto, e

portanto, maior crescimento” (idem: 168).

Isso significa que países desenvolvidos visam mais a tendência da

inflação e menos metas rígidas de inflação para anos calendários arbitrários,

“procurando sempre agir de forma suave” (idem: 169). O que não deixa de ser

surpreendente. Pois o Brasil é mais sensível a choques externos do que as

grandes nações desenvolvidas e, pior, esses choques impactam mais

decisivamente a inércia inflacionária na economia brasileira, pois nessa os

preços das tarifas públicas são indexados fortemente à inflação passada e ao

câmbio56.

56 E ainda mais surpreendente é que o Brasil, como nação pobre e com alto nível de desemprego e sub-emprego, deveria ter uma política monetária menos conservadora.

Page 139: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

139

“É preciso ter claro que a meta relevante de inflação deve ser a de

médio e longo prazo, pois acelerações e desacelerações transitórias não

exigem mudança na taxa de juros” (idem: 169). Bresser e Nakano sugerem que

esses aumentos evitáveis dos juros acabam impactando negativamente nos

chamados fundamentos do país e, portanto, auto-justificando e chancelando de

forma perversa a manutenção de juros permanentemente elevados.

“Compreendemos, assim, porque duas economias com fundamentos macroeconômicos semelhantes podem praticar taxas de juros muito diferentes, ou então porque países com ratings de crédito semelhantes podem ter patamares diferentes de juros. Os países, como o Brasil, que atribuem à taxa de juros muitos papéis acabam no ponto de equilíbrio perverso dessa taxa [isto é, a política monetária se acomoda a juros mais altos]” (idem: 167)

Os autores talvez não tenham explorado ou explicitado completamente

essa questão. É fundamental para esse resultado que o Banco Central adote

uma meta de inflação suficientemente apertada e rígida para que qualquer sinal

de turbulência em alguma variável indique algum risco de descumprimento da

meta e faça acender a luz vermelha. Como o Banco Central

conservadoramente quer correr o mínimo de risco possível de estouro da meta,

qualquer sinal que justifique o aumento dos juros, o banco central usa como

justificativa para esse aumento.

Se o governo atua conservadoramente – graças a metas de inflação

difíceis de serem cumpridas – e dá mais importância às evidências de aumento

da inflação do que de redução da inflação e, além disso, utiliza muitos

indicadores de risco de inflação, que muito raramente estariam todos indicando

necessidade de redução da inflação, ele quase sempre se sentirá compelido a

aumentar os juros ou mantê-los elevados.

É preciso ter claro que essa conclusão não seria possível se fossem

válidas as teorias da paridade juros. Pois, se o governo aumenta

exageradamente a taxa de juros, pela teoria, o risco país e a expectativa de

desvalorização não seriam afetados. Ora, essa medida implicaria em uma

entrada infinita de capitais no país. Nessa situação, manter o câmbio fixo ou

valorizá-lo seria tarefa fácil, portanto, a inflação seria rapidamente controlada.

Assim, logo acabaria a razão para manter juros elevados.

Para Bresser e Nakano isso não acontece porque a manutenção de

juros elevados acaba resultando em aumento do spread de risco-país e do

“risco país efetivo”. Como sugerem os autores, para complicar ainda mais a

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140

situação, os juros elevados têm implicações na economia. E essas implicações

vão sempre no sentido de piorar alguns dos próprios indicadores que o Banco

Central usa para medir o cumprimento de seus múltiplos objetivos.

Assim, como o próprio Banco Central diz que acredita que os juros são

altos porque o déficit e dívida pública são altos, quando eles aumentam ou

mantêm excessivamente alta a taxa de juros, isso reforçará a justificativa para

que o risco-país seja alto e, portanto, para que os juros permaneçam altos.

Bresser e Nakano (2002) dão uma atenção especial para o efeito sobre

a dívida pública, mas não param aí. Os juros elevados aumentam a entrada de

capitais, principalmente em momentos de calmaria, valorizando o câmbio e

aumentando o endividamento externo. Esses devedores em dólar certamente

usarão sua força política para que o câmbio não se desvalorize e, quem sabe,

continue se valorizando. Esses fatores fazem aumentar o pagamento de juros e

lucros ao exterior, assim como reduzem o saldo da balança comercial. O déficit

em conta corrente faz aumentar a vulnerabilidade externa do país, que também

é meta visada pelo Banco Central, sendo justificado novamente o risco-país e a

manutenção de juros abusivos. Ademais, a vulnerabilidade externa deixa o país

sensível a crises cambiais, que são exatamente os momentos onde os juros

mais sobem.

Dessa forma, a manutenção de juros elevados faz aumentar déficit

público, em conta corrente e as dívidas públicas e externa, que são os

principais indicadores das empresas de classificação de risco. Mas a própria

taxa de juros do país é um indicador usado pelas empresas de classificação de

risco. “A taxa de juros interna contamina a taxa externa [risco-país + taxa FED].

(...) Se o governo brasileiro estabelece uma taxa de juros de curto prazo tão

alta, deve ser mesmo um país arriscado” (idem: 164). Assim, a “redução de

juros, por sua vez, diminuirá, de fato, a probabilidade de ‘default’, que,

virtuosamente, se refletirá na percepção de risco do financiador” (idem: 167).

Nesse ponto, Bresser e Nakano (2002) vão além da simples questão

fiscal e propõe uma relação mais direta entre juros e risco-país, ainda que essa

não seja plenamente correspondida com sua própria teoria, onde se está mais

preocupado com o “risco-país-efetivo”, dependente dos “fundamentos”,

principalmente fiscais, que seriam deteriorados pelas taxas de juros altas. A

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141

relação mais direta que sugerem em algumas partes desvincula o risco-país

diretamente dos fundamentos.

“Em síntese, o risco-país é muito subjetivo e acaba sendo identificado, na prática com o diferencial entre a taxa internacional e a taxa interna de juros, ao invés de refletir o risco efetivo-país. Em outras palavras, uma elevação da taxa interna de juros, qualquer que seja a razão, acabará sendo percebida como um aumento no risco-país e não o contrário. Dessa forma, ironicamente, países que praticam taxas de juros baixas acabam sendo percebidos como tendo risco-país baixo, ainda que seus fundamentos sejam piores que de um outro país com taxas de juros elevadas. Esse é o caso do Brasil, que acaba sendo percebido como tendo risco-país elevado. (...) E depois da persistente manutenção da taxa de juros em um nível muito elevado é natural que surja o medo de redução, e que esse nível se torne uma convenção. Ora, essa é uma convenção perversa, e precisa ser superada” (idem: 168).

Uma explicação mais precisa para essa relação direta será desenvolvida

por Toledo (2002).

3.3.1.2. Cirne de Toledo

Bresser e Nakano (2002) dão importância à necessidade de um saldo

em conta corrente positivo, assim, reconhecem a importância da restrição

externa, o que não é incomum entre autores heterodoxos. São inovadores e

felizes ao destacarem o equívoco da política monetária que diz só visar à meta

de inflação; mas na prática, criar diversos objetivos meio e atua sobre eles de

forma sempre conservadora. Acertam também quando mostram que os juros

elevados causam a deterioração das variáveis que justificam a própria escolha

de juros elevados.

Discordamos, porém, que o aumento do endividamento público possa

significar, de fato, maior risco para dívida pública ou que o país precise adotar

políticas para aumentar o que chamam de poupança. De qualquer forma,

temos que destacar a grande inovação que sugerem que é a inversão da

causalidade da teoria da paridade juros. Essa inversão se dá quando se

reconhece que o governo aumenta autonomamente a taxa de juros e isso

acaba aumentando o risco país.

Entretanto, achamos que a causalidade proposta não é a mais

adequada por colocar um peso indevido ao aumento da dívida pública e,

portanto, não explicaria o fenômeno real. Nesse caso, consideramos mais

interessante a proposta de Toledo (2002), que sugere uma relação direta entre

a taxa de juros e risco-país.

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142

Toledo (2002) propõe uma explicação inovadora para a taxa de juros

brasileira e que pode ser resumida pela seguinte proposição: “os juros não são

altos porque o risco-Brasil é alto, mas ao contrário: o risco-Brasil é alto porque

os juros são altos – aliás, excessiva e equivocadamente altos”. (Toledo, 2002:

138).

Toledo (2002: 139) começa sua argumentação enfatizando que o

denominado “risco-país” não é uma taxa de risco, mas um spread. “Ele é

definido e calculado pela simples diferença entre duas taxas de juros: a do

país, e a dos títulos do governo americano (ambos na mesma moeda), usada

como padrão”.

Segundo Toledo (2002: 139), a taxa de juros de um país pode variar

sem nenhuma mudança em seu risco efetivo, pois elas decorrem da política

monetária ou da expectativa com relação à mesma.

“ As taxas de juros de curto prazo subiram e caíram fortemente nos EUA ao longo dos últimos anos, mas nem por isso nenhum analista tresloucado decretou que houvera aumento ou queda do ‘risco-EUA’. Ou o aumento das taxas de juros nos EUA, ao longo do primeiro semestre de 1999 e 2000, teria sido devido às incertezas da eleição presidencial e a um “efeito-Gore” [em analogia ao chamado ‘efeito-Lula’ nas eleições de 2002], indicando que ‘os mercados’ avaliavam como pouco confiável e não market friendly o candidato democrata, progressista? E a rápida e significativa queda dos juros após a (demorada e incerta) apuração dos votos, seria devido a um ‘efeito-Bush’, indicando a ‘grande credibilidade’ do republicano, como sempre conservador?

As mudanças nos juros de curto prazo foram atos de política monetária do FED; as mudanças nos juros de longo prazo, por sua vez, refletiram apenas as expectativas sobre o comportamento da própria política monetária. Assim, direta ou indiretamente, tanto os juros de curto como os de longo prazo foram determinados pelo caminho viável esperado da política monetária, como disse Keynes na ‘Teoria Geral...’”.

Supostamente, segundo a forma tradicionalmente usada do conceito, o

risco-Brasil seria uma medida que indicaria o quanto o mercado está

precificando o risco de inadimplência da dívida pública em moeda estrangeira e

o risco de volatilidade da taxa de juros desses títulos.

Toledo mostra que a precificação do risco de calote da dívida pública

não é capaz de explicar porque as taxas de juros brasileiras são tão altas. Para

isso ele escolhe um título público que possui apenas risco de inadimplência, ou

seja, um título público que não possui risco de alterações nos juros. Esse título

é a LFT (letra financeira do tesouro nacional), “cujo rendimento diário é igual ao

seu custo (médio) de oportunidade, ou de ‘carregamento’, que é a taxa Selic-

referencial”. (Toledo, 2002: 140).

Page 143: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

143

O spread de risco desses títulos, em 28 de fevereiro de 2001, com

vencimentos em 2003, 2004, 2005 e 2006 era respectivamente de 0,017%a.a.,

0,023% a.a., 0,026% a.a. e 0,027% a.a. – quando o risco-Brasil era de 7,5%

a.a.. Isso significa que, naquele período, o risco de inadimplência explicaria

apenas 0,36% do “risco-Brasil” para títulos de 5 anos. Situação que não se

modificou significativamente desde então.

Como o risco de inadimplência percebido pelo “mercado” é muito

pequeno e muito estável no tempo, o risco de volatilidade da taxa de juros

também não pode ser explicado por modificações no risco de inadimplência.

Dessa forma, a única explicação possível para a volatilidade da taxa de juros

seriam as modificações das taxas de juros de curto prazo, definidas pela

política monetária.

Toledo (2002: 142) conclui assim que “os juros futuros, no Brasil, assim

como nos EUA, têm basicamente refletido apenas a expectativa de política

monetária e não aspectos de risco”.

Com essa afirmação, o autor quer dizer também que a taxa de juros dos

títulos públicos brasileiros em dólar no mercado internacional é definida

basicamente pela política monetária do BC em reais.

Segundo a teoria econômica tradicional essa proposição seria

certamente um absurdo. Por que canal haveria essa ligação entre os juros

internos e os juros dos títulos públicos brasileiros negociados nos mercados

externos?

Toledo (2002: 142) tem uma explicação para esse canal. A explicação é

baseada em dois fatores. Primeiro, “como é evidente, os juros sobre os títulos

denominados em dólar, no Brasil (como as NTN-Ds), e os títulos

transacionados externamente (como os C-bonds, os Globals, etc.) tendem a

ser equiparados. Isso ocorre devido à arbitragem, possibilitada pela livre

movimentação de capitais. Segundo, a volatilidade da taxa de câmbio faz com

que o custo do ‘hedge’ (ou expectativa de desvalorização) seja relativamente

estável – ainda que elevado. Assim, quando sobem os juros futuros em reais,

sobem junto os juros em dólares, aumentando seu ‘spread’ (ou o risco-Brasil)”.

Essa explicação realmente contraria a forma em que estamos

acostumados a pensar a questão. Aceita a existências dessas duas operações

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144

de arbitragem – entre NTN-D e C-bond e entre títulos públicos em reais e NTN-

D casados com venda de dólar futuro – ainda persiste uma dúvida.

Sem qualquer alteração do real risco de inadimplência do país, o

aumento da taxa de juros em reais levaria, segundo Toledo (2002), por

arbitragem, a um aumento da taxa de juros dos títulos em dólar, e, portanto, a

um aumento do spread chamado de “risco-Brasil”. Ou seja, um aumento da

taxa de juros leva a um aumento da rentabilidade dos títulos brasileiros sem

aumento do risco real, já que o C-Bond caiu apenas pela ação da arbitragem.

Ora, a teoria econômica tradicional diria que, nessa situação, a demanda pelos

títulos brasileiros deveria aumentar, o que, dada a liberdade de movimento de

capitais, corresponderia a uma inundação de capitais externos na economia

brasileira. Entretanto, isso não acontece. Por que?

“Na impossibilidade prática de mensurar corretamente o verdadeiro risco de um país, que é uma entidade econômico-política de absoluta complexidade, e na ausência de padrões históricos e estáveis para as taxas de juros, os investidores externos agem como nós: ou seja, equivocadamente interpretam um aumento do ‘spread’ pago pelo Brasil como um aumento de risco. Como uma coisa compensaria a outra, não há razão para os juros altos atraírem mais capitais” [grifo nosso] (Toledo, 2002).

Concluí-se assim que, de acordo com Toledo (2002), o aumento dos

juros leva a um aumento do risco-Brasil, mesmo sem qualquer alteração do

risco real do país. Mas o aumento do risco-Brasil faz com que o aumento dos

juros não implique em maiores entradas de capitais, como a teoria tradicional e

o governo a princípio imaginariam.

Pelo contrário, segundo Toledo, as entradas de capitais tendem a

diminuir com o aumento dos juros. Esse efeito seria explicado em parte pela

maior taxa de desconto – que incorpora o risco-Brasil – aplicada sobre os

projetos para investimento externo diretos no Brasil e, portanto, uma redução

dos fluxos desse investimento. Além disso, como Bresser e Nakano (2002),

Toledo defende que a elevação dos juros aumenta não só o risco-Brasil, como

também o verdadeiro risco do país, graças ao aumento do passivo externo

líquido e da dívida pública. Embora nesse segundo ponto haja uma explícita

divergência entre as posições do Toledo e as defendidas nesta tese, no geral a

inversão da equação da paridade juros coberta é uma grande inovação que

consideramos muito apropriada para explicar as relações entre as taxas de

juros internacionais.

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145

3.3.2. Uma Crítica à paridade juros

3.3.2.1. introdução: Heterodoxia tradicional e paridade juros

A visão sobre a relação entre juros e balanço de pagamentos que inspira

a teoria da paridade juros é, em geral, aceita inclusive em meios heterodoxos.

Segundo Robinson (1952: 137) “When laisser faire ruled [i.e., havia livre

movimento de capitais], an important influence on the rate of interest in any one

country was the state of it’s balance of payments, and the objective of

monetary policy was control of the foreign exchanges. When the break-up

of the world capital market, and exchange control, have largely insulated

interest rates in each country”.

De acordo com Medeiros e Serrano (2001: 123), “as entradas de capital

de curto prazo estão associadas a um diferencial da taxa de juros (doméstica e

externa) grande o bastante para compensar as desvalorizações esperadas na

taxa de câmbio e o prêmio de risco do país receptor”.

Já Miranda (1998: 3) considera que, “o piso do juros nominal no Brasil é,

no mínimo, igual ao juros básico americano acrescido do prêmio de risco Brasil

e da depreciação mensal do real em relação ao dólar americano.

Conseqüentemente, sempre que aumente o juro americano ou haja

desvalorização mensal do real, o juros interno deve subir para manter a

rentabilidade dos títulos em dólares e, assim, garantir o financiamento externo

do déficit em transações correntes e o nível das reservas cambiais. Note que

este processo ocorre independentemente de qualquer necessidade de

administrar a demanda interna para conter eventuais pressões inflacionárias ou

minimizar o déficit do balanço comercial. A restrição é, antes de tudo, de

financiamento”. Miranda está se referindo ao período pré-99, mas suas

proposições seriam válidas também para o período posterior, entre outros

motivos, porque o governo precisa controlar a taxa máxima de desvalorização,

para manter a inflação em níveis aceitáveis.

O consenso sobre essa questão era muito grande no final dos anos 90 e

nos primeiros anos do segundo governo FHC. Alguns autores adicionavam, no

máximo alguns detalhamentos empíricos na fórmula tradicional.

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146

“(...) assumiu-se que os juros brasileiros tinham de ser altos o suficiente para, mantido o regime de câmbio, continuar financiando o déficit em transações correntes através da atração de capitais externos. Era preciso, portanto, colocar os juros internos num patamar que compensasse os juros externos mais as expectativas de desvalorização, o risco país e demais custos (diferença entre os impostos domésticos e os externos sobre aplicações financeiras, restrições à entrada e saída de capital, etc.)” (Barros de Castro e Studart, 1999: 17).

Bastos (2001: 236), mais sucintamente, não ressalta o risco país. Para

ele, o saldo positivo “na conta de capitais, (...) como se sabe, depende

diretamente do valor do diferencial de taxas de juros internas e externas, que é

uma variável de política econômica”. Ou ainda, “A taxa de juros nominal teria

que ser suficientemente grande para cobrir a expectativa de desvalorização

cambial” (Bastos, 2001: 230)57.

De fato, a elevação da taxa de juros é uma das medidas mais

importantes, mais eficazes, mais rápidas e de menor resistência política (pelo

menos na atual conjuntura internacional) para reduzir no curto prazo a

demanda líquida de dólares. Considera-se normalmente que a taxa de juros

tem a função de: (1) reduzir a liquidez dos especuladores em dólar, (2)

aumentar o custo de oportunidade dos mesmos58, (3) elevar a rentabilidade dos

emprestadores e tomadores de financiamentos externos, (4) reduzir a demanda

agregada e conseqüentemente as importações líquidas.

Se um país não necessita atrair financiamento externo e nem corre esse

risco, não será necessário usar a taxa de juros para reduzir a demanda líquida

por dólares. Todavia, a princípio, parece que esse instrumento precisa ser

largamente utilizado, se o país necessita atrair financiamento externo, como o

Brasil. Porém, os diferenciais de taxas de juros entre os países são tão grandes

e persistentes que é difícil explicá-los, principalmente para países de risco

aparentemente semelhantes.

Podemos concluir que a visão heterodoxa, normalmente, considera que

a taxa de juros elevada seria decorrente da necessidade de obter empréstimos

57 Ver ainda Serrano (1998).

58 Os itens 1 e 2 tem a importante função de conter a especulação cambial, que em países com liberdade de movimento de capitais, pode ter muita importância. A “acumulação de reservas [nos anos 90] forneceu ao ‘policy maker’ margem de manobra para execução de um plano de estabilização baseado na estabilização da taxa de câmbio. Entretanto, por maior que fosse esse estoque, e ainda mais se resultasse da liberalização das contas de capital, um ataque especulativo poderia dilapidá-lo em pouco tempo, como mostrou a crise cambial do final de 1998” (Bastos, 2001, 235).

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147

externos para pagar amortizações e déficit em conta corrente, quando o

governo se abstém de restringir o movimento de capitais.

Pelo nosso ponto de vista, essa perspectiva é muito superior à visão

ortodoxa tradicional. Entretanto, consideramos que, por herdar certos

equívocos da teoria da paridade juros, não explica adequadamente porque há

tão grandes diferenciais de taxas de juros entre países com necessidade de

financiamento externo similares – como no caso brasileiro comparado a outras

nações latino americanas.

3.3.2.2. Endogenidade do custo de proteção cambial

As conclusões da teoria de Toledo (2002) explicam certas

situações, mas não outras. A partir de 2003, aparentemente, essas conclusões

entram em contradição com os fatos. Essa teoria sugeriria que a elevação dos

juros implicaria em aumento do risco-país. Porém, ocorreu o contrário. Nesta

seção, tenta-se postular que a teoria de Toledo (2002) pode ter falhado ao

considerar o custo de proteção cambial independente da taxa juros. Será

proposto aqui que o custo de proteção cambial também é endógeno ao

diferencial de taxas de juros. Assim, o aumento do diferencial pode impactar

apenas parcialmente ou mesmo não impactar o risco-país.

Essa teoria pode explicar porque ocorreu uma queda significativa do

risco-país a partir do final de 2002 ao mesmo tempo em que subiram os juros e

nem assim houve uma entrada “infinita” de capital externo no país. A seguir

tentaremos mostrar porque o custo de proteção cambial é endógeno aos juros.

A teoria da paridade juros coberta propõe que:

j internacional + êf

j nacional

Essa teoria é sustentada por evidências empíricas (Froot e Richard,

1990).

O pensamento ortodoxo supõe que o custo de proteção cambial é

definido exogenamente de alguma maneira pelo mercado a partir da

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148

expectativa média de desvalorização cambial e da expectativa de volatilidade

cambial.

A teoria da paridade poder de compra considera que em um regime de

câmbio flutuante o câmbio real se ajustaria para equilibrar o balanço de

pagamentos. Nessa situação, o câmbio spot seria exógeno à determinação dos

juros em uma situação de equilíbrio. O mesmo aconteceria se for vigente o

regime de câmbio fixo.

Dessa forma, supondo essas premissas, a “taxa de juros internacional”

define a taxa de juros dos outros países de moeda forte. Vamos usar o Euro

como exemplo:

j dólar + êf

j euro

O processo se daria pela arbitragem internacional de taxas de juros.

Assim, arbitradores de taxas de juros pegam dinheiro emprestado na moeda

hegemônica e compram títulos na moeda doméstica, se o custo de proteção

cambial for menor do que o diferencial de taxas de juros. Caso contrário, fazem

a operação inversa.

Por essa teoria, a arbitragem internacional faria com que a taxa de juros

dos países se igualasse à taxa de juros da moeda utilizada como meio de

pagamentos internacionais mais o custo de proteção cambial.

Dessa forma, essa teoria implicaria que as taxas de juros convergiriam

para a taxa internacional, de forma endógena. Concluí-se, portanto, que os

bancos centrais não têm autonomia para fixar as taxas de juros.

Entretanto, “in the open economy, central banks still can set short-term

interest rates” (Lavoie, 2000)59. Segundo Lavoie (2000), “The increase in the

rate of interest is not the endogenous result of the capital outflow. Rather, it is

an economic and political decision of the central bankers. The central bank

does have a choice”.

Supondo que os bancos centrais possuem realmente autonomia para

fixar a taxa de juros, as teorias da paridade de juros estariam com problemas.

Porque, se o custo de proteção cambial é definido pela expectativa de

59 Lavoie M. (2000).

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149

desvalorização e de volatilidade cambial, como supõe a teoria, ele muito

raramente iria coincidir com os diferenciais de taxas de juros definidos, a partir

das metas de inflação ou de desemprego, pelas políticas monetárias dos

diversos países.

Entretanto, como afirmamos logo acima, as evidências empíricas

parecem corroborar a existência da equivalência entre o custo de proteção

cambial e o diferencial de taxas de juros, pelo menos, entre as moedas fortes,

que não pagam “risco-país” significativo.

j dólar + êf j euro

Dados os pressupostos, só podemos concluir daí que a teoria sobre a

definição do custo de proteção cambial está equivocada.

A teoria da paridade juros sofre de problemas empíricos e de um sério

problema de incompatibilidade teórica. O problema empírico é que o diferencial

de taxas de juros raramente tem correspondência tão estrita com as reais

expectativas de desvalorização cambial. Caso contrário, as moedas não

oscilariam tanto e a em velocidades tão grandes, pois os diferenciais de taxas

de juros entre os países centrais são muito pequenos e estáveis. Ademais, a

estabilidade do sinal dos diferenciais indicaria que, sendo válida a teoria de que

o custo de proteção cambial é determinado pela expectativa de desvalorização

cambial média, a moeda de países de juros altos deveria se desvalorizar

continuamente em relação a outras. E teriam, portanto, diferenças de inflação

equivalentes aos diferenciais de juros60.

Além disso, pode-se observar empiricamente que as taxas de juros são

decididas ativamente pelos Bancos Centrais de forma relativamente

independente e seguindo critérios de controle sobre a inflação ou o

desemprego. Ou seja, observa-se grande autonomia dos bancos centrais na

definição das taxas de juros.

Essa teoria pode ser incoerente com parte da teoria econômica ortodoxa

que defende a liberdade de ação da política monetária sobre a taxa de juros

como política necessária para o controle da inflação ou do desemprego.

60 Esse certamente não é o caso brasileiro. Antes de 94 o diferencial de juros era muito inferior ao diferencial de inflação, pós 94 o diferencial de juros se torna muito superior ao diferencial de inflação. Esse também não é o caso da maioria dos países.

Page 150: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

150

Entretanto, a arbitragem com juros e câmbio futuro existe e movimenta

boa parte dos negócios com câmbio no mundo, possuindo um efeito econômico

importante. Há razões para acreditar que essa arbitragem leva realmente à

equiparação entre as taxas de juros do país hegemônico mais o custo de

proteção cambial com a taxa de juros dos outros países desenvolvidos.

Todavia, a relação de causalidade seria inversa à relatada pela teoria

tradicional, ou seja:

j euro – j dólar

êf

A relação de causalidade indicada pela seta significa que os

diferenciais de taxas de juros determinam o custo de proteção cambial via ação

da arbitragem.

Essa conclusão trivial quando entendemos que (1) a política

monetária é autônoma e (2) a arbitragem iguala o custo de proteção cambial e

o diferencial de juros.

Essa arbitragem opera da seguinte maneira: se o custo de

proteção cambial para passivos em dólar e ativos em euro ‘êf’ 61 for menor do

que o diferencial de taxas de juros futuras, os bancos pegam dinheiro

emprestado em dólares, compram títulos em euros e compram dólar no futuro

para garantir a proteção contra o risco cambial. Se o custo de proteção cambial

‘êf’ for maior do que o diferencial de taxa de juros, fazem a arbitragem no

sentido contrário. O resultado dessas operações de arbitragem pode ser

expresso formalmente pelo conjunto de inequações abaixo62:

j euro – j dólar > êf > j euro – j dólar

Ou seja:

61 Exatamente o inverso do custo de proteção cambial para passivos em euro e ativos em dólar.

62 Para sermos mais precisos, deveríamos incluir o custo de transação e a margem de lucro mínima requerida para essas transações, entretanto, isso poluiria a fórmula para acrescentar um conteúdo pouco relevante.

Page 151: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

151

j euro – j dólar

<>

êf

j euro – j dólar

êf

O custo de proteção cambial gravita bem próximo a esse valor. Isso se

deve a uma característica dos mercados financeiros que vamos chamar de

‘princípio da arbitragem dominante’. A utilização desse princípio significa que

se está pressupondo que sempre a demanda por operações de arbitragem é

elástica e suficientemente maior do que a demanda por operações

especulativas e de proteção financeira (hedge) a ponto das primeiras definirem

os preços dos ativos. É importante ressaltar a utilização dessa premissa,

porque, ao contrário do que possa parecer, ela não é tão óbvia ou geral quanto

uma visão ortodoxa suporia. Há situações em que a arbitragem não é perfeita,

imediata, majoritária ou possível. Um exemplo são os momentos onde ocorre

alto risco de centralização cambial. Mas em condições normais, o mercado de

câmbio é talvez a situação em que a arbitragem funciona da forma mais

próxima a esse princípio.

No caso da arbitragem específica com câmbio futuro e juros, que nos

interessa aqui, esse princípio implica que a demanda líquida de câmbio em

uma determinada direção (apostando na desvalorização ou valorização) de

especuladores e demandantes de proteção são sempre menores do que a dos

arbitradores.

Nesses mercados, como em quaisquer outros, é óbvio que os

arbitradores nunca fazem negócios entre si, eles fazem negócios com

especuladores ou demandantes de proteção que acham ou temem que o

câmbio variará mais do que a diferença entre o câmbio presente e futuro, ou

custo de proteção cambial.

O ‘princípio da arbitragem dominante’ diz que a demanda por operações

de arbitragem será “infinita” toda vez que os especuladores ou demandantes

Page 152: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

152

de proteção cambial demandarem câmbio futuro a preços que superem o

diferencial entre as taxas de juros63.

Esse princípio parte da idéia de que as operações de arbitragem perfeita

não entram na gestão financeira do banco como operações que criam uma

necessidade de patrimônio liquido. Ao contrário, operações especulativas, por

serem passíveis de trazer prejuízo, criam uma necessidade de cobertura de

patrimônio líquido. Assim o volume máximo das mesmas é limitado pelo

volume de patrimônio líquido, se os bancos querem limitar o volume máximo de

perda em relação ao patrimônio líquido; e eles querem, pois esse é a principal

regra para manutenção da solvência.

Concluímos, portanto, que a autonomia dos países em definir pelo

menos no curto prazo sua taxa de juros, aliada ao princípio da arbitragem

dominante, que é comum às visões ortodoxas, faz com que o diferencial de

taxa de juros determinaria o custo de proteção cambial e não o contrário, como

normalmente se imagina.

As decisões de arbitragem são passivas. Elas dependem do excesso de

oferta ou demanda de câmbio futuro por especuladores e hedgers. Dessa

forma, não haveria movimentos de câmbio causadas por decisões cobertas de

arbitragem de juros, mas pelas decisões de especuladores ou demandantes de

proteção. Essa conclusão seria válida, mesmo se o governo elevar a taxa de

juros, pois, a arbitragem faz com que essa medida implique em aumento

imediato do custo de proteção cambial.

3.3.2.3. Endogenidade do custo de proteção cambial e risco-país

“O estrategista-chefe do BNP Paribas, Alexandre Lintz, explica que a proteção contra as oscilações do dólar está cara porque o cupom cambial – o juro em dólar no país – está muito baixo” (Valor, segunda e terça feira, 1 e 2 de novembro de 2004: A3).

Vimos que, entre países de moeda forte e que não possuem

significativa dívida externa em moeda estrangeira, os diferenciais de taxas de

63 Esse princípio só vale quando a arbitragem é perfeita e há liquidez para fazer e passivos indexados por qualquer dos 2 ativos envolvidos na relação de troca. Não vale, portanto, para mercados futuros de commodities, pois não há oferta elástica para aluguel de commodities (empréstimos indexados na variação da commodity), portanto, um dos sentidos das operações de arbitragem fica comprometido.

Page 153: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

153

juros determinam o custo de proteção cambial via arbitragem com câmbio

futuro.

Em países que possuem dívidas públicas significativas indexadas

em moeda estrangeira, a arbitragem acontece de forma diferente e gera

resultados também diferentes.

Se há uma grande demanda para aquisição de dólar futuro para

especular contra uma moeda, o valor do dólar futuro tende a ultrapassar

ligeiramente o diferencial de taxas de juros, o que cria oportunidade para

arbitradores ganharem com essa pequena ultrapassagem.

Esses arbitradores venderão dólar no futuro, pegarão dinheiro

emprestado em moeda nacional e aplicarão esse dinheiro em títulos públicos

americanos. Assim, impedirão que a grande demanda por dólares futuros faça

o valor do custo de proteção cambial ultrapassar significativamente o

diferencial de juros:

j euro – j dólar

êf

Em países que possuem um grande volume de títulos de dívida externa

em dólar, a princípio, os arbitradores poderiam obter maiores lucros, se, ao

invés de adquirir títulos públicos americanos, comprassem títulos públicos

nacionais indexados ao dólar que pagam maiores taxas de lucros.

Se o risco de inadimplência desses títulos for reduzido para o prazo da

operação, a maior parte dos arbitradores seguiriam esse caminho, quando, o

que alteraria o valor do custo de proteção cambial. Esse ficaria mais barato.

A operação de arbitragem inversa também seria alterada. Entre países

de moeda forte, se a demanda líquida por dólar no futuro for muito elevada, o

valor do dólar no futuro cai ligeiramente abaixo do diferencial de juros. Nesse

caso, os arbitradores comprarão dólar no futuro, pegarão emprestado em dólar

e aplicarão em títulos nacionais.

Em países que possuem volumes significativos de dívida pública

negociada em dólar e que paga spread sobre os títulos americanos, a

operação será diferente. Esse spread, chamado de risco-país determina o

custo de oportunidade em dólar e o custo de captação em dólar para

aplicações em títulos nacionais é maior do que para aplicação em títulos de

Page 154: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

154

países de moeda forte com baixo risco de inadimplência da dívida externa.

Dessa forma, essa operação ficará mais cara para os arbitradores.

Podemos assim concluir que, em países que pagam spread sobre sua

dívida externa em moeda estrangeira, a seguinte relação, a arbitragem com

câmbio futuro determinará o seguinte valor para o custo de proteção cambial:

j euro – j dólar – risco-país

êf

Onde:

risco-país = spread de risco-país

Esse resultado não modifica decisivamente as conclusões obtidas na

seção anterior de que as operações de arbitragem não podem ser induzidas

diretamente por aumentos dos juros.

3.4. A variação dos juros pode ser mais importante do que o diferencial

Tentamos mostrar que a NFEDcp positiva torna a pressão cambial

persistente e cria uma tendência à desvalorização da taxa de câmbio, se o

governo não intervir. Os defensores das teorias da paridade juros acreditam

que a manutenção de diferenciais internacionais de juros é um grande incentivo

para a movimentação de capitais e, portanto, é uma política adequada e segura

para financiar o balanço de pagamentos de um país. Entretanto, essa crença

parece estar equivocada.

Vamos propor que os diferenciais possuem, em geral, um papel muito

secundário sobre a movimentação de capitais no curto prazo e que a

autonomia da política monetária é muito maior do que suporia a teoria da

paridade juros coberta.

A tabela abaixo tenta ilustrar que os diferenciais não guardariam relação

com as diferenças de risco e de expectativa de desvalorização entre os

países64. Podemos perceber que esses diferenciais se alteram

significativamente em períodos relativamente curtos, 2 anos e 5 meses. Pela

64 É preciso notar que alguns países como China e Índia possuem controles de capitais e, portanto, os movimentos de capitais não podem restringir a política monetária.

Page 155: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

155

tabela é possível perceber que os diferenciais entre os países sem risco de

inadimplência da dívida externa65, isto é, sem risco-país, são bastante

díspares. É interessante notar ainda que, no espaço de 2 anos e 5 meses, os

EUA, que regem a “taxa de juros internacional”66 passam de 12o para 3o na

classificação, invertendo assim o sinal do diferencial para muitos países.

Classificação dez/2000

país

diferencial de juros

nominais de curto prazo dez/2000

Classificação

abril/2003 país

diferencial de juros de curto prazo abril/2003

Classificação dez/2000

1 Japão

-6,25

1 Japão -1,25 1

2 Suíça

-3

2 Suíça -1 2

3 Suécia

-2,5

3 Estados Unidos 0

12

4 Taiwan

-1,87

4 Taiwan 0,38 4

5

União Européia

-1,75

5 Rep. Checa 1,25

6

6 Rep.

Checa -1,25

6 União Européia 1,25 5

7 Coréia

-1,25

7 Chile 1,5 15

8 Canadá

-0,8

8 Canadá 2 8

9 China

-0,65

9 Suécia 2,25 3

10 Reino Unido -0,5

10 Reino Unido 2,5

10

11 Austrália

-0,25

11 Coréia 3 7

12

Estados Unidos

0

12 Austrália 3,5

11

13

Nova Zelândia

0

13 China 4,06

9

14 Noruega

0,5

14 Noruega 4,25 14

15 Chile

1,5

15 Nova Zelândia 4,25 13

16 Índia

1,5

16 Polônia 4,5 22

17 Hungria

5,25

17 Índia 5 16

18 Filipinas

7

18 Hungria 5,25 17

19 Indonésia

7,92

19 Filipinas 5,75 18

20 Brasil

9,25

20 México 6,52 21

21 México

10,67

21 Indonésia 9,93 19

22 Polônia

12,5

22 Brasil 25,25 20

Fonte: Carta Capital

3.4.1. Diferencial de juros, fluxo ou estoque?

Em outra seção, foi proposto que os diferenciais de juros não podem

atrair capital externo para aplicações sem risco cambial ou, ao menos, sem

risco de crédito do setor privado. Os investidores privados têm limitações com

65 Todos, com as possíveis exceções de Brasil, México, Filipinas e Indonésia. 66 A taxa de juro internacional é a taxa de juros em dólar para títulos sem risco de inadimplência.

Page 156: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

156

relação ao valor máximo de capital que podem aplicar em operações

arriscadas, portanto, aumentos das taxas de juros não atraem um volume

“infinito” de capital externo.

Essa conclusão é similar à encontrada nos modelos tipo IS-LM-BP que

supõem mobilidade imperfeita de capitais. Esses modelos consideram que os

diferenciais atraem um montante finito de capitais, mas a manutenção de

elevados diferenciais permanece sendo uma política adequada para

financiamento do balanço de pagamentos. Para esses modelos, os diferenciais

atraem um fluxo estável de capitais que poderia financiar um déficit estável nas

outras contas do balanço de pagamentos.

Porém, segundo Tisang (1975: 195) essa proposição encerra um grave

equívoco teórico, mesmo sob uma perspectiva ortodoxa, e ainda que a

manutenção de diferenciais realmente for um grande incentivo à entrada de

capitais. “[O modelo Mundell-Fleming] contained a serious weakness, (...) the

assumption that international capital flows can be treated as a function of the

level of the domestic interest rate compared with foreign interest rates. (…)

Portfolio allocation theory (...) would clearly indicate that it is the changes in the

interest differential between the domestic and foreign money markets that is

responsible for the volatile capital flow between nations, rather than the size of

the differential. In other words, capital flows are, to a large extent, adjustment of

capital stocks held in different financial centers in response to changes in the

yields at those centers. Such adjustments would come to an end after a period

of time if the yields of different centers stay constant, even though at different

levels” (Tsiang, 1975: 195) 67.

Tsiang levanta uma questão fundamental. Sob qualquer teoria de gestão

de carteiras de investimento, os diferenciais de juros implicam em ajuste de

estoques de carteiras e não em fluxos permanentes. Isso significa que mesmo,

se o aumento do diferencial amplia a entrada de capitais no país, mantido esse

diferencial, o fluxo de entrada será decrescente e tende a zero ou a um valor

muito pequeno.

Toda a carteira é gerida como um estoque de ativos. Se reduz o risco,

aumenta a liquidez ou a remuneração de algum ativo em particular, os

67 Esse ponto foi inicialmente levantado por Willet e Forte (1969) e Levin (1972).

Page 157: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

157

investidores tendem a aumentar sua proporção no total das carteiras. O

aumento da remuneração de um determinado ativo em particular não pode

aumentar indefinidamente a proporção da carteira investida naquele ativo,

devido ao aumento do risco da carteira. Os especuladores buscam limitar o

risco máximo em que seu capital está exposto.

Assim, o aumento do diferencial poderia até ampliar o peso dos títulos

de um país nas carteiras internacionais, mas não criar um fluxo permanente

que possa ser considerado significativo.

Essa conclusão é válida, mesmo se os investidores internacionais

decidirem se alavancar para comprar os títulos do país que ofereceu um

acréscimo na remuneração. Vimos que os investimentos em títulos em uma

moeda financiados por passivos indexados ou registrados em outras moedas é

sempre um investimento arriscado, por isso os agentes tem limites de

aplicação alavancada ou não-alavancada nesse tipo de operação. Essa

proposição decorre da necessidade de reservar uma parte do patrimônio

líquido para cobrir perdas potenciais decorrente de investimentos arriscados.

Como o patrimônio líquido é finito, o volume de investimento em um ativo

arriscado também é. Isso talvez pudesse não ser verdade apenas para o caso

de arbitragens perfeitas. Nessa circunstância, como não há risco e não há

outras exigências de patrimônio líquido, não há limites para a aplicação.

Entretanto, esse não é o caso.

Para Tsiang (idem: 198-199), em uma situação de steady state, o

diferencial positivo de juros poderia ou não atrair um fluxo positivo de capitais,

porém o valor líquido seria muito pouco significativo em comparação aos fluxos

decorrentes de ajustamentos de estoques em resposta a mudanças nos

diferenciais.

Tsiang (1975: 196-7) ressalta ainda que o aumento da taxa de juros

pode implicar em aumento de pagamento total de juros pelo país. Isso significa

que maiores diferenciais de juros possam implicar um balanço de pagamentos

pior e não melhor em uma situação de steady state.

Dessa forma, Tsiang (1975) sugeriria que para manter um elevado nível

de atração de capitais, o país precisaria estar sempre aumentando os

diferenciais. O autor, portanto, só pode mesmo concluir que a política

monetária não deve ser usada para o “equilibrar” um balanço de pagamentos.

Page 158: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

158

Ele sugere que essa seria mais uma função da política fiscal do que da política

monetária. O nível de atividade deveria ser ajustado em um ponto em que o

balanço de pagamentos se “equilibrasse”. Todavia, Tsiang (1975: 207) lembra

que a política fiscal não pode ser usada para ajustar problemas de balanço de

pagamentos decorrentes dos voláteis e transitórios ajustes de estoques das

carteiras internacionais. Nesse caso, a política monetária poderia cumprir seu

papel.

Tsiang (1975) propõe uma teoria muito bem fundamentada e uma crítica

realmente arrasadora aos modelos derivados da versão original Mundell-

Fleming. Sem sair do arcabouço ortodoxo, ele propõe a coerência entre as

teorias de gestão de portfolios e os modelos de macroeconomia aberta. Suas

conclusões de política são muito interessantes e não divergem

significativamente das nossas, apesar de propormos também outras causas

para justificar a maior relevância das variações da taxa em relação aos

diferenciais.

Tsiang (1975) acredita que os diferenciais importam sim, mas por pouco

tempo. Acreditamos que os diferenciais importam basicamente para os

empréstimos externos de longo prazo. Para as operações classificadas como

pertencentes às FFEcp, os diferenciais tem uma importância secundária, como

veremos a seguir. Mas antes de explicar a relação da taxa de juros com as

FFEcp, vale sublinhar que o argumento de Tsiang é válido para o ajustamento

de estoque de empréstimos de longo prazo, ou seja, um aumento do diferencial

inicialmente tende a elevar o estoque de dívida externa privada de longo prazo

do país, depois esse efeito é significativamente menor, como defende o autor.

Porém, o efeito do diferencial sobre os fluxos de empréstimos externos de

longo prazo não deve ser desprezado. Não como condição suficiente para

manter esses fluxos elevados, mas como condição necessária em certos casos

particulares. Os fluxos de empréstimos de longo prazo podem ser muito

significativos, e eles podem exigir que o diferencial de juros de longo prazo seja

positivo. Porém, o que eleva esses fluxos e pode fazê-los acompanhar as

necessidades de financiamento externo são (1) a manutenção de uma boa

perspectiva de crescimento econômico, (2) uma taxa real de câmbio

competitiva e (3) um bom nível de solvência externa. Dadas essas condições,

um pequeno diferencial pode ter um papel complementar. Mais adiante

Page 159: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

159

voltaremos a essa questão. Por hora, pretendemos mostrar porque a variação

das taxas de juros é o que interessa para as FFEcp.

3.4.2. Taxas de juros e o financiamento externo de curto prazo

As finanças “saudáveis” propõem que a dívida pública em moeda

nacional deva ser preferencialmente de longo prazo e prefixada, porque assim

seria reduzido o “risco fiscal” do governo, ou seja, o risco de ter um déficit

maior do que o esperado. A partir de uma visão de finanças funcionais, é óbvio

que essa motivação está equivocada. Como vimos, para as finanças

funcionais, déficit não é um mal nem um bem, é apenas o resultado numérico

de certo tipo de contabilidade. Se um governo adota as finanças funcionais, o

déficit público seria apenas resultado da pouca disposição a gastar do setor

privado ao nível de atividade escolhido pelo governo.

Dessa forma, ocorrer um déficit maior do que o esperado não pode ser,

de fato, um risco, mas apenas um resultado sem maior significado valorativo.

Sabemos também que os países mais ricos possuem, em termos gerais,

dívidas públicas de maiores prazos de vencimento e sempre prefixadas, ao

contrário de certos países subdesenvolvidos.

Isso significa que a dívida pública dos países mais prósperos possui

maior risco de juros para seus detentores. Levando em consideração o

conhecimento e a aceitação pelos governos dos países mais pobres em

relação à posição consensual das finanças públicas tradicionais, que

recomenda dívidas públicas com prazos mais longos possíveis e prefixadas, e

que isso implica em dívida com maior risco para seus possuidores, só podemos

concluir que esses países não conseguem aumentar o prazo médio de suas

obrigações.

Certamente para o setor privado, quanto maior a rentabilidade e menor o

risco mais interessante é o título. Por outro lado, para o governo não é um

verdadeiro risco as possibilidade de aumento do pagamento de juros. Mesmo

porque é o próprio governo quem decide as taxas de juros. Mas ainda para

quem não concorda com as finanças saudáveis, faz sentido suspeitar que seja

interessante para o governo que a dívida pública tenha maior prazo quanto

Page 160: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

160

possível e que seja prefixada, ou seja, que a dívida pública tenha maior risco

de juros para o setor privado quanto possível.

De fato, há diversas razões para corroborar essa suspeita.

Provavelmente, para quem compreende a importância da restrição externa,

talvez as razões mais importantes devem estar relacionadas com o papel dos

juros sobre a taxa de câmbio.

Qualquer que seja o papel, decorre principalmente das diferenças na

sensibilidade do valor da dívida às variações da taxa de juros. Para títulos

prefixados com critério de amortização idêntico, quanto maior o seu prazo,

maior é o efeito dos juros sobre seu valor de mercado. Esse resultado da

variação da taxa de juros pode ter um impacto muito grande sobre o

movimento especulativo de capitais. A especulação cambial em particular pode

ser eficazmente combatida com oscilações da taxa de juros.

3.4.3. Pressão cambial e elevação dos juros

É de concordância geral que quanto maior o diferencial da taxa de juros

maior é o custo de oportunidade da especulação cambial. Porém a importância

do diferencial como instrumento contra a especulação cambial ainda é muito

sobreestimado. “It’s clear (...) that an interest rate policy [contra a especulação]

needs to be drastic: a 1% change in the exchange rate within a month will be

sufficient to cover 12% interest rate differential” (Lavoie, 2000). Em

praticamente todos os países os diferenciais são uma pequena fração desses

12%68. Em países com câmbio flutuante, esse altíssimo diferencial, equivalente

a menos de 1% ao mês (anuais de 12%), tende a não compensar os grandes

riscos cambiais envolvidos.

Entretanto, é muito comum que países com câmbio flutuante possuam

diferenciais de taxas de juros anuais com relação aos juros americanos de

menos de 1%. Nesse caso, o diferencial em um mês é de menos do que 0,1%.

Certamente não compensa o risco cambial de uma operação descasada69.

68 Diferenciais de taxas de juros nesses níveis só existem no Brasil ou em países com inflação elevada. Mas nesses últimos o diferencial entre taxas de juros reais é baixo como seria normal. 69 Nem os diferenciais de juros brasileiros são capazes de impedir uma especulação forte, quando os agentes estão mais seguros de que o câmbio se desvalorizará. Para compensar a rentabilidade da expectativa de desvalorização cambial de 1% em um dia seria necessária um diferencial de juros anual

Page 161: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

161

Nesse sentido, é de se esperar que, pelo menos, em momentos onde há

grandes expectativas de desvalorização o efeito do diferencial seja pouco

relevante. “The central bank may then pursue a deliberate restrictive monetary

policy, pushing up overnight rates of interest, not so much to induce incoming

capital flows, but rather to increase the cost of outgoing capital transfers

(Coulbois, 1982: 200)”. (…) By hiking up rates of interest, the central bank wish

to increase the cost of send funds abroad, and it increase the cost of

speculation” (Lavoie: 2000).

Uma variação da taxa de juros pode causar grandes impactos nas

oportunidades de aplicação de capital pode reduzir a riqueza, a liquidez e

aumentar as perspectivas de rentabilidade com a aquisição de títulos

prefixados, ações em moeda nacional. Vamos avaliar esses efeitos uma a um.

O aumento da taxa de juros reduz o valor presente dos títulos de renda

fixa e, portanto, reduz riqueza líquida do setor privado. Essa redução da

riqueza é mais do que proporcional à redução do valor dos títulos, porque o

setor privado possui também um passivo elevado. Como o patrimônio líquido é

menor do que o ativo, qualquer redução nesse último reduz mais do que

proporcionalmente o primeiro. Essa redução da riqueza pode reduzir as

disponibilidades para especulação com a aquisição de dólares.

Mas a redução da riqueza tem seu efeito multiplicado via diminuição da

liquidez. As ações de empresas de primeira linha e os títulos de renda fixa – e,

com papel destacado entre eles, as obrigações públicas – subtraídos dos

passivos de curto prazo fazem parte do chamado saldo de tesouraria que é o

colchão de liquidez das empresas. O aumento da taxa de juros, além da

redução do valor desse saldo, diminui a liquidez também por rebaixar a

capacidade de assumir novos passivos. A capacidade de assumir novos

passivos depende do patrimônio líquido, que também foi diminuído. Assim,

uma redução do valor do saldo de tesouraria e da capacidade de assumir

novas dívidas, reduz a disposição do setor privado em se arriscar em

operações arriscadas de especulação cambial.

Porém, o mais importante efeito do aumento da taxa de juros sobre a

especulação cambial decorre da criação de futuras perspectivas de redução da

de aproximadamente 3595%. Claro que a taxa de juros nunca precisará chegar a esse nível, porque taxas não tão grandes já seriam capazes de afetar as expectativas cambiais.

Page 162: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

162

própria taxa. A possibilidade de redução da taxa de juros gera uma expectativa

de lucro extraordinário com a posse de títulos nacionais de renda fixa e ações.

Se o banco central reage a uma corrida cambial com o aumento da taxa de

juros, ele cria, em algum nível, expectativas de que a taxa de câmbio deixará

de se desvalorizar. Essas expectativas não costumam ser, a princípio,

majoritárias; mas, se o câmbio parar de desvalorizar de repente ou se o

governo voltar a aumentar a taxa, elas poderão se tornar significativas ou até

majoritárias. Assim, poderão surgir sérias dúvidas sobre a possibilidade de

retorno ou continuação do processo de desvalorização. Como as taxas de juros

foram elevadas para impedir que o dólar permaneça aumentando de valor,

quanto maior a possibilidade de estancamento desse processo, maiores são as

possibilidades de redução da taxa de juros.

A redução da taxa de juros de longo prazo implica em valorização

aproximadamente proporcional dos títulos de renda fixa de longo prazo e

ações. Nessa situação, os especuladores terão um motivo adicional para

comprar títulos de renda fixa e ações denominados em moeda nacional, o que

tende a aumentar o fluxo de capitais para o país. À medida em que esse fluxo

positivo afeta as cotações do dólar, aumenta as expectativas de valorização da

moeda nacional ou de novas reduções nos juros e, portanto, atrai mais capital.

Assim, a expectativa de redução da taxa de juros atrai capital para

o país para aplicações em ações e títulos prefixados de longo prazo. Da

mesma forma, uma expectativa de aumento da taxa tende a levar a fuga de

capitais externos das mesmas aplicações. Mas essa não é a única maneira em

que a variação da taxa de juros afeta o movimento de capitais.

Os agentes que estão comprados em moeda estrangeira no futuro (seja

por meio de contratos a termo, futuro ou em swaps) ganham quando há uma

pressão cambial, mesmo que essa pressão não resulte em desvalorização da

moeda local. Isso ocorre porque as operações de arbitragem fazem com que a

elevação da taxa de juros futura aumente a cotação do dólar negociado no

futuro.

“Define-se uma oportunidade de arbitragem como uma operação na qual

se realiza um ganho certo sem correr nenhum risco”. (Garcia, 1995: 4) Nas

operações de arbitragem, o agente obtém lucro econômico, ao comprar e

vender um ativo em diferentes mercados.

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163

Como vimos, caso o dólar no mercado futuro estiver muito caro em

relação ao dólar à vista, será lucrativo para um banco tomar emprestado no

mercado interbancário para comprar dólar à vista e vendê-lo no mercado

futuro.

Mercado à vista Mercado futuro

Compra Vende

Vende Compra

Essa operação será lucrativa sempre que o diferencial entre o dólar no

mercado futuro e à vista for maior do que a diferença entre as taxa de juros

entre a moeda nacional e o dólar.

Por outro lado, se o diferencial entre o dólar no mercado futuro e à vista

for inferior à taxa de juros do interbancário, o banco terá um lucro mais alto e

manterá a mesma posição em moeda estrangeira, por meio de operações de

arbitragem. A operação consistiria em vender dólar à vista e utilizar esse

dinheiro para emprestar no interbancário e comprar dólar no futuro. Essa

operação permitirá ao banco um lucro mais alto do que se ele comprar títulos

cambiais de curtíssimo prazo.

Dessa forma, como já havíamos concluído, o diferencial entra a cotação

do dólar no mercado à vista e futuro tende a ser próximo da diferença entre a

taxa de juros em moeda local e estrangeira.

Assim, se são aumentadas a taxa juros e o diferencial, é aumentada

também a diferença entre o dólar futuro e presente. Se o câmbio à vista não

cair de valor no mesmo montante, o dólar futuro se valorizará, portanto, os

agentes comprados em dólar no futuro obterão ganhos.

Assim, a expectativa de aumento da taxa de juros induz os

especuladores a comprar dólar futuro e, portanto, eleva a pressão cambial. Por

outro lado a expectativa de redução da taxa de juros induz especuladores a

vender dólar futuro e reduz-se a pressão cambial.

Page 164: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

164

3.4.3.1. Manipular os ganhos de capital: uma oportunidade para os

especuladores e para a política econômica

Concluímos na última seção, que independentemente no nível inicial da

taxa de juros, o aumento dessa pode estancar o processo de desvalorização

cambial, se é capaz de induzir a expectativa de retorno da taxa a seus

patamares anteriores no futuro. Esse processo se realiza por diversos canais,

que tentamos descrever.

Entretanto, precisamos ressalvar que a doutrina ortodoxa, baseada na

teoria dos mercados eficientes, poderia se opor a essa explicação do papel da

variação da taxa de juros sobre a especulação cambial.

Sabe-se que o principal instrumento da política monetária

contemporaneamente são os juros de curto prazo. Sugerimos que o papel da

variação dos juros sobre a especulação cambial depende principalmente da

capacidade do governo manipular as taxas de juros de longo prazo e as

expectativas de retorno no mercado acionário.

Essas proposições são consideradas controversas. O argumento da

teoria dos mercados eficientes diria que apenas o diferencial internacional de

taxa de juros poderia induzir a entrada de capitais, e não a variação em si,

como estamos propondo.

Mercados de capitais eficientes significa que “o preço dos títulos refletem

todas as informações disponíveis sobre esses títulos e novas informações são

imediatamente incorporadas a esses preços” (Fama, 1970: 383). Segundo essa

teoria, “o preço [dos ativos] se ajusta antes que o investidor tenha tempo de

negociar o título” (Brasil, 1997).

Nos mercados eficientes, os agentes seriam capazes identificar todas as

novas informações relevantes e avaliar imediatamente o impacto dessas sobre

o valor presente líquido dos ativos. Além disso, todos os agentes avaliariam as

novas informações de maneira idêntica, o que implica que todos teriam o

conhecimento idêntico em relação aos métodos de avaliação de risco e de

rentabilidade. Isso significa que a atribuição de risco é igual para todos os

ativos e, portanto, as carteiras de todos os investidores e capitalistas seriam

proporcionalmente iguais, sendo que o a única diferença seria o tamanho da

Page 165: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

165

mesma70. Por conseqüência, levando as premissas às últimas conseqüências,

todos os investidores pessoas físicas e jurídicas possuiriam carteiras que

englobariam todos os ativos do mundo.

Não nos interessa aqui discutir sobre a validade empírica dessas ou de

outras premissas explícitas ou implícitas ou das conclusões da teoria dos

mercados eficientes. Podemos dizer que adotamos, neste trabalho, o mesmo

arcobouço de Keynes (1936, cap. 12, 13 e 15) sobre o comportamento

individual nos mercados financeiros.

Esse arcabouço poderia explicar fenômenos empíricos que a teoria dos

mercados eficientes encontra grande dificuldade, como o aumento significativo

do volumes negociados nos mercados secundários em dias onde emergem

informações importantes.

Mais especificamente aqui, nos interessa explicar como a perspectiva de

queda na taxa de juros pode aumentar a atração de capitais para um país, o

que seria incoerente com a teoria dos mercados eficientes.

Nessa teoria, o surgimento de uma nova informação, como a queda das

taxas de juros básicas, seria imediata e completamente incorporada ao valor

dos títulos de renda fixa de longo prazo e nas ações. Assim, não seria lucrativo

adquirir esses títulos na esperança de que aumentarão de valor, pois o

aumento já foi realizado sem a necessidade de nenhuma operação de compra

ou venda, bastando apenas uma mudança nas ofertas de compra e venda.

Em oposição, propomos aqui que a redução das taxas de juros básicas

não será imediata e completamente incorporada nos preços dos títulos de

longo prazo e outros ativos. Esse resultado seria decorrente da imensa

variedade de opiniões, teorias e dúvidas sobre como incorporar essa nova

informação e principalmente como interpretar outras informações,

conhecimentos e cenários a partir desse novo dado. Por exemplo, a queda dos

juros futuros e o aumento do preço das ações depende se a redução dos juros

implicará em novas reduções ou não, se será bem recebida nos mercados

cambiais ou não, etc.

70 Não poderíamos afirmar com 100% de confiança que essa proposição é uma condição necessária para que a atribuição de risco de todos os ativos seja igual. Porém é muito difícil encontrar outra condição suficiente. Seria muita coincidência uma situação onde as carteiras fossem diferentes, particularmente tão diferentes como são no mundo real, e ainda assim a atribuição de risco de todos os ativos fossem iguais para todos os agentes. Sobre essa questões ver Soros (1988) ou Galvão dos Santos G. (1997).

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166

Para simplificar, vamos explicar nossas proposições apenas com relação

aos títulos públicos de longo prazo, pressupondo que o mesmo vale para os

títulos privados e ações, pois nesses as divergências de avaliação são ainda

maiores, reforçando o nosso argumento.

É esperado que uma nova informação que implique em redução dos

juros futuros – por exemplo, o anúncio dessa intenção pelo governo –

aumentará a demanda por títulos públicos nacionais, inclusive por parte de

estrangeiros, e também em uma redução na oferta. Pela teoria dos mercados

eficientes, esses efeitos seriam imediatos e ninguém seria capaz de se

aproveitar lucrativamente da nova informação, pois todos os agentes

reavaliariam os títulos de forma idêntica. Todos os antigos ofertantes

aumentariam o valor de suas ofertas na mesma proporção e os todos antigos

demandantes estariam dispostos apenas a aceitar preços também

proporcionalmente maiores. Isso significaria praticamente a manutenção do

antigo equilíbrio entre oferta e demanda.

Entretanto, essa não é uma boa teoria para mercados secundários ou

mercados de capitais, pois suas premissas e conclusões incorrem em vários

problemas empíricos, entre as quais a já citada incapacidade de explicar os

grandes aumentos de volume negociado em momentos de surgimento de

novas informações relevantes.

É mais razoável supor que o mercado reage de forma assimétrica a

novas informações. Ainda que parte dos antigos ofertantes avalie as novas

informações de forma muito parecida com parte dos antigos demandantes,

outros especuladores podem fazê-lo diferentemente. Há agentes que podem

dar um peso menor à nova informação por terem dúvida sobre sua efetividade,

ou sobre suas reais conseqüências, ou outro tipo de dúvida possível. Há

também agentes que simplesmente não utilizam ou não saberiam utilizar de

maneira precisa tal tipo de informação, mesmo que não haja dúvidas de sua

efetividade, porque dão menor importância àquele tipo informação, como é o

caso de especuladores grafistas ou com horizontes de investimento muito

curtos. A diferença de horizonte de investimento é, aliás, uma importante fonte

de divergência de avaliação.

Essa dispersão da forma de tratamento da nova informação – com

alguns agentes absorvendo de forma mais lenta, reticente, diferente ou

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167

simplesmente desconsiderando nova informação – abre espaço para que uma

parte dos agentes tente lucrar com a utilização da nova informação, pois o

preço não variará no mesmo montante do valor de sua nova avaliação.

Se o governo anuncia que pretende reduzir os juros, uma parte dos

especuladores pode utilizar essa informação de forma plena e calcular um valor

esperado significativamente superior para os títulos e aumentar assim suas

ofertas. Uma parte dos potenciais vendedores do título pode ter a mesma

avaliação e reajustar suas ofertas no mesmo montante do ajuste dos

demandantes, não induzindo assim novos negócios. Porém, outra parcela dos

agentes podem não mudar ou mudar muito pouco suas antigas ofertas de

venda, de forma a permitir um aumento no número de transações. As tabelas

abaixo tentam resumir essas idéias.

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168

Exemplo: anúncio de um processo de redução das taxas de juros 1) Premissas de um mercado de capitais eficiente

Ofertantes de títulos Demandantes de títulos

Sensíveis ao anúncio do governo, assim como a qualquer outra notícia relevante

Reduzem as ofertas de venda, exigindo preços maiores.

Aumentam as ofertas de compra, aceitando preços maiores

Resultado: aumento imediato e completo do preço dos títulos no montante suficiente para manter “equilibrados” os mercados de títulos. Nessa situação, não há incentivos a um aumento das transações.

2) Ausência das premissas de mercado de capitais eficiente, o que significa que as expectativas são diferentes, assim como as carteiras e, portanto, o risco dos agentes

Ofertantes de títulos Demandantes de títulos

Sensíveis ao anúncio do governo Reduzem as ofertas de venda, exigindo preços maiores

Aumentam as ofertas de compra, aceitando preços maiores

Pouco sensíveis ao anúncio do governo por serem grafistas ou tiverem dúvidas sobre a validade de notícias desse tipo, ou porque estejam apenas esperando um aumento dos preços dos títulos para vender, ou qualquer outro motivo

Não reduzem as ofertas de venda

Não aumentam as ofertas de compra.

Resultado: o efeito das mudanças das expectativas não ocorre completamente de imediato. É necessário o aumento do volume negociado para que haja modificações nos preços no montante necessário para tornar completo o efeito sobre os preços dos títulos. A seta grande indica a direção das compras que aumentam com as novas informações.

Se, entre esses novos demandantes, houver investidores “comprados

em dólar”, haveria um aumento na entrada de capitais no país. Assim, novas

informações que gerem expectativa de redução na taxa de juros nacionais,

podem aumentar a entrada de capitais de curto prazo no país com a

perspectiva de lucrar com a queda da taxa de juros. Nesse caso, as aplicações

não aumentariam apenas em títulos públicos prefixados de prazos maiores,

mas também em títulos privados e ações.

É importante ressaltar que novas informações relevantes, como essa,

geram fluxos líquidos positivos e não entradas e saídas de capitais mais ou

menos equivalentes. Informações relevantes em geral têm interpretações

concentradas em uma determinada direção. Por exemplo, se o governo

anuncia o desejo de redução dos juros a grande maioria ou mudará pouco sua

avaliação ou mudará no sentido de aumentar o peso sobre a hipótese de

queda dos juros. Poucos farão o movimento inverso, reduzindo o peso sobre a

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169

hipótese de queda dos juros, como se, ao contrário da maioria, achassem que

o governo anunciasse o contrário do que desejaria.

Dessa forma, espera-se que as expectativas de redução dos juros

possam atrair capital para o país. Resta saber se essa atração pode ser

significativa. Acreditamos que sim.

Os capitais são atraídos por boas oportunidades de lucro em condições

de risco aceitáveis. Uma possibilidade de lucro que pode mover grandes

volumes de capital em curto prazo são as expectativas de desvalorização

cambial. As modificações dos juros geram expectativas de rentabilidade e risco

relativamente parecidas, talvez com um horizonte de investimento um pouco

maior. Nesse sentido, é de se esperar que possam mobilizar volumes de

capital similares. Portanto, é de se esperar que essas expectativas sobre as

taxas de juros possam ter peso significativo no volume de capital de curto

prazo movimentado.

Mas nosso argumento vai além. A expectativa de mudança na taxa de

juros tem uma forte correlação com a pressão cambial. Portanto,

principalmente em regimes de câmbio flutuante, essas oportunidades se

reforçam mutuamente. Se há expectativa de desvalorização, há também

expectativa de aumento dos juros e ambas as expectativas favorecem a saída

de capitais, pois, como vimos, fazem lucrar ou deixar de perder quem apostou

em outras moedas. Essas variáveis são tão correlacionadas que, dependendo

das circunstâncias, as expectativas de aumentos dos juros podem aumentar as

expectativas de desvalorização. Isso acontece diretamente pela consciência

pelos investidores de que ocorrerão perdas nos mercados de ações e títulos de

longo prazo e ganhos com a elevação do dólar futuro.

Além disso, as modificações dos juros são uma sinalização do governo

sobre quando a desvalorização cambial está excessiva ou não, o que altera as

expectativas cambiais.

Essa proposição vale principalmente para o câmbio flutuante. Se o

câmbio é fixo, as expectativas de desvalorização se concentram nos momentos

de crise mais aguda. Nesse regime, o movimento de capitais estará

normalmente mais atento às expectativas de mudança dos juros do que nas

expectativas de desvalorização. Mesmo porque os juros são mais voláteis sob

esse regime em situações de liberdade de movimento de capitais.

Page 170: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

170

Em regime de câmbio fixo a pressão cambial se manifesta basicamente

sobre os juros. Mas em ambos os regimes, o aumento da pressão cambial

tende a induzir à saída de capitais, pois ou gera expectativa de desvalorização

ou expectativa de aumento dos juros e conseqüente perda de valor dos títulos

prefixados, ações e aumento do valor de contratos de dólar futuro.

É preciso reconhecer, porém, que em regimes de câmbio fixo com baixo

risco de ataque cambial ou em regimes de câmbio flutuante quando é muito

reduzido o risco de desvalorização, o diferencial de juros se torna mais

relevante, desde que significativo. Mas, mesmos nessas situações, a variação

dos juros continua sendo o principal instrumento para manipular os fluxos de

capitais no curto prazo (1) pelo efeito-Tsiang, (2) pelo efeito dessa variação

sobre as perdas de capital e a liquidez, (3) pela sinalização de disposição do

governo em defender o câmbio, (4) pela sinalização sobre a disposição do

governo em utilizar os juros, ou (5) pelas perspectivas de valorização de títulos,

ações e contratos de câmbio futuro.

Assim, uma vez aumentada a taxa de juros no montante esperado pelo

mercado, o fluxo se inverte pela atração de capitais que buscam lucrar com a

expectativa de redução da pressão cambial, que geraria valorização do câmbio

e ou redução dos juros de longo prazo. A tendência para prazos maiores,

porém, continuará sendo determinada pela NFEDcp.

Esses mecanismos não são muito intuitivos. O aumento da taxa de juros

só atrairá capital, se, a partir de um certo ponto, levar os especuladores a

acreditarem que a pressão cambial foi eliminada e os juros não precisarão mais

ser elevados e podem ser reduzidos. O que garante que os mercados sempre

acreditem que a pressão cambial não se extinguirá e a taxa de juros não se

elevará continuamente?

Em um regime de câmbio flutuante, o câmbio sempre oscila e é difícil

saber ser as inflexões de tendência são passageiras ou definitivas. Nesse

caso, após o governo aumentar a taxa de juros, haverá sempre um momento

em que a evolução do câmbio se inverterá, e não é possível saber se essa

inversão foi decorrência do aumento dos juros ou por coincidência. Surgirão

diversas hipóteses. Alguns dos agentes que estão especulando contra a

moeda nacional podem ter dúvidas e parar de especular e até mudar sua

aposta. Sempre que o governo aumentar a taxa de juros, mais agentes terão

Page 171: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

171

receio de especular contra a moeda nacional. Haverá um momento em que o

fluxo especulativo mudará de sinal. Se esse momento demorar mais do que o

desejado, o governo poderá vender reservas para manter um teto conjuntural

para a taxa de câmbio e, assim, garantir que aqueles que apostarem na

desvalorização serão mal-sucedidos.

Se o regime for de câmbio fixo, o governo só tem os juros para

coordenar as expectativas de ganhos de capital. Por um lado é uma

desvantagem, porque, quando há um ataque cambial, o país possui menos

instrumentos e precisará aumentar mais os juros para gerar o mesmo potencial

de ganhos de capital. Por outro lado, o número de momentos em que há

pressão cambial de origem especulativa é menor, porque uma vez sinalizado,

via aumento do juros, que não há pretensão em se sair do regime, o risco de

desvalorização se aproxima de zero em condições de liquidez externa normais.

Nessas condições, sob câmbio fixo, o diferencial de taxa de juros pode cumprir

um papel, pois, se a expectativa de desvalorização se aproxima de zero e a

aplicação não tem risco de juros, o diferencial será o principal ganho esperado

na operação.

As teorias acima colocadas podem ser considera polêmicas sob uma

perspectiva ortodoxa. Pela teoria dos mercados eficientes as mudanças nos

juros não poderiam impactar o movimento de capitais. Por isso a tradição

ortodoxa dá tanta importância ao diferencial de taxa de juros. Essa teoria gera

certos problemas, como os que tentaremos mostrar na próxima seção.

3.5. Elevação dos juros não é solução definitiva contra a pressão cambial

Procuramos sustentar que a elevação dos juros pode, de fato, reduzir a

pressão cambial, ainda que por razões diferentes das tradicionalmente

colocadas. A elevação da taxa de juros possui efeitos diversos sobre a taxa de

câmbio. O primeiro, mais rápido e talvez mais importante seja sobre as

expectativas de desvalorização. A elevação dos juros mostra claramente que o

governo considera que a taxa de câmbio não deveria se desvalorizar mais e

que ele está disposto a agir contra essa possibilidade. Dessa forma, os

especuladores ficariam receosos em apostarem em uma forte desvalorização

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172

cambial, desde que o governo se mostre capaz de garantir suas metas de

câmbio ou inflação. Assim, o primeiro efeito dos juros sobre a taxa de câmbio

seria a sinalização da disposição do governo em impedir a desvalorização.

A elevação da taxa de juros possui outros efeitos que não afetam

diretamente as expectativas cambiais, mas que acabam rebatendo sobre elas.

O primeiro deles é sobre o custo de oportunidade dos especuladores cambiais,

que, elevado, pode desincentivá-los a esperar muito tempo comprados em

dólar.

Mas ela tem efeito também sobre a liquidez, dificultando a alavancagem

com fins especulativos. A elevação dos juros faz cair os preços das ações e

dos títulos pré-fixados. Dessa forma, os potenciais especuladores perdem

capital, se a taxa de juros aumenta e isso por si só já reduz tanto o capital

disponível para especulação como reduz a possibilidade desses agentes

tomarem crédito para especulação, pois tanto o tomador quanto o credor

buscam fazer empréstimos proporcionais à disponibilidade de garantias.

Além disso, essa redução de capital causada pela elevação dos juros

aumenta as oportunidades de lucro das aplicações em moeda nacional dos

potenciais especuladores cambiais; pois, se o governo só elevou a taxa de

juros para reverter possíveis expectativas de desvalorização, logo que essas se

normalizarem, ele retornará a taxa de juros para seu patamar anterior, criando

oportunidades de ganho de capital.

É importante ainda destacar o efeito dos juros sobre o nível de atividade

e, portanto, sobre o saldo comercial. Dependendo da magnitude do aumento

dos juros a da elasticidade da renda a essas modificações, esse impacto pode

ser maior ou menor.

Entretanto, esse impacto é ambíguo. Um significativo aumento dos juros

leva à redução do consumo e do investimento e, portanto, das importações.

Entretanto, essa redução da renda pode reduzir as perspectivas de

crescimento e assim reduzir os investimentos externos diretos, os

investimentos de estrangeiros em bolsas de valores, e a demanda por

empréstimos externos para investimento em maquinário ou giro que tendem a

cair com o aumento dos juros e redução da demanda.

A teoria econômica normalmente associa aumento dos juros com

aumento na entrada de empréstimos externos no país. Entretanto, essa relação

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173

é ambígua. Para entender como chegamos a essa conclusão, temos que

separar os empréstimos externos de curto prazo dos empréstimos externos de

longo prazo.

Por maior que seja a taxa de juros de um país, a rentabilidade esperada

de uma minidesvalorização cambial prestes a ocorrer sempre superará a

rentabilidade da taxa de juros no curto período em que se espera a ocorrência

dessa desvalorização. Isso acontece porque uma miniesvalorização pode

ocorrer no espaço de poucos dias.

Assim, tomar dinheiro emprestado em dólar para aplicar na taxa de juros

de um país é geralmente uma operação muito arriscada e de baixa

rentabilidade esperada. E esse é um dos fatores pelos quais altos diferenciais

de taxa de juros em si geralmente não são capazes de aumentar o volume de

empréstimos externos de curto prazo tomados pelo país71.

Se o governo não subsidiar o custo de proteção cambial, não é possível

tomar empréstimos no exterior para aplicar em títulos públicos e proteger

completamente essa operação de risco cambial. Aliás, mesmo subsidiando o

custo de proteção cambial, dificilmente será possível ganhar mais do que o

custo de oportunidade nas operações com aquisição de títulos públicos

totalmente protegidos em dólar, porque, devido à arbitragem entre os títulos

públicos em dólar no mercado nacional (NTN-D) e internacional (C-Bond,

Globals), a taxa de juros desses títulos a taxa de juros desses títulos de mesma

maturação tendem a ser similares Toledo (2002: 142)72.

O aumento da taxa de juros eleva proporcionalmente o custo de

proteção cambial e pode elevar parcialmente o risco-país. Assim, aumenta o

custo final de captação externa. Portanto, os empréstimos externos com

proteção cambial só são viáveis quando a aplicação final será uma

rentabilidade superior aos juros internos. Esse tipo de empréstimo se torna

71 Os outros são a endogenidade do custo de proteção cambial, do “risco Brasil”, e os efeitos negativos decorrentes da redução da demanda por empréstimos, do aumento da inadimplência e da perspectiva de aumento dos juros futuros. Dessa forma, o rendimentos desses títulos se manteriam próximos. 72 Essa equivalência só não ocorreria, quando fosse possível perceber que existe uma grande diferença entre o risco de centralização do câmbio e o risco de inadimplência da dívida externa. Mas é muito difícil estimar tal tipo de coisa em momentos em que essas possibilidades estão distantes e mesmo de forte crise externa. Não se sabe se, quando necessário, a opção do governo será por uma, outra ou ambas soluções.

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174

interessante principalmente quando é possível obter, no mercado internacional,

prazos superiores aos obtidos no mercado interno.

Dessa forma, desde que não afetem o prazo máximo oferecido pelos

bancos nos empréstimos internos, o aumento da taxa de juros reduz os

empréstimos externos tomados com proteção cambial.

Já os empréstimos externos sem proteção cambial completa podem

aumentar com a elevação dos juros, principalmente os de longo prazo. Como

vimos, os diferenciais de taxa de juros, geralmente, não compensam a emissão

de dívida de curto prazo no exterior. Todavia, a longo prazo tomar emprestado

sem proteção cambial financeira é uma operação segura basicamente para o

setor industrial ou para os bancos que re-emprestam com correção cambial

para o setor industrial. Para o longo prazo, os industriais do setor de

importáveis, principalmente os exportadores, esperam que os preços de seus

produtos acompanhem relativamente bem a taxa de câmbio. Dessa forma, eles

se sentem mais seguros para tomar emprestado no exterior a longo prazo sem

proteção cambial completa. E por isso, quando se aumenta os diferenciais,

pode haver um incentivo a mais para tomarem emprestado no exterior, pois

não faz tanta diferença para eles o aumento paralelo do custo de proteção

cambial nos mercados de câmbio futuro.

Entretanto, mesmo nesse caso, não é de se esperar uma grande

elasticidade dos empréstimos à taxa de juros. Porque, uma vez que a taxa de

juros interna for suficientemente superior à internacional, a maior parte das

grandes empresas que podem tomar emprestado no exterior já teriam feito.

Assim, aumentos adicionais nas taxas de juros podem ter efeitos reduzidos,

ambíguos ou até contrários sobre o volume de empréstimos de longo prazo

tomados no país.

O efeito contrário ocorreria, se a política fiscal não contrabalançasse o

efeito negativo dos juros sobre a atividade econômica. O aumento dos juros, ao

impactar negativamente sobre o consumo, sobre as expectativas, sobre o custo

de investimento, deprecia a demanda por crédito ao consumidor, por capital de

giro e por investimento em ativos fixos. E, portanto, depreciaria a demanda total

por empréstimos. É certo que os empréstimos tomados internamente sofreriam

um impacto maior, mas essa diferença seria muito pequena, pois, o diferencial

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175

já era positivo e a grande maioria de quem pode tomar no exterior já se sente

suficientemente incentivada.

Ademais, como mostra Toledo (2002), o aumento dos juros não tem

impacto apenas sobre o custo de proteção cambial. Aliás, para esse autor, o

impacto do aumento dos juros recai principalmente sobre o chamado “risco

Brasil” que é o spread que os títulos brasileiros pagam sobre os títulos do

tesouro americano. Se isso acontece, o custo de captação dos empréstimos

externos de longo prazo também aumentaria com o aumento dos juros e,

assim, o impacto desse aumento sobre a entrada de financiamento seria ainda

menor.

Por último, os juros têm efeito sobre a competitividade externa do país, o

que obviamente impacta no saldo comercial. O volume de investimento em

exportações e substituição de importações é maior se a taxa de juros é mais

barata. Além disso, juros baixos significam maior competitividade dos

exportadores nacionais em oferecer crédito ao clientes, principalmente de bens

de capital, assim como, maior competitividade para as empresas que

concorrem com importados que são vendidos a crédito.

Podemos, assim, concluir que a importância da taxa de juros como

instrumento de redução permanente da pressão cambial é, em primeiro lugar,

menor do que a normalmente atribuída. Em segundo lugar, seus principais

efeitos ainda são pouco explorados.

Aumentar o diferencial de taxas de juros, ao contrário do que sugeriria a

teoria tradicional, pode não levar ao resultado desejado. A política monetária,

quando visa reduzir a pressão cambial, deveria estar mais focada em reverter

as expectativas de desvalorização via oscilação dos juros, do que em

manutenção de elevados diferenciais. Mas isso significa também que a política

de juros é eficaz contra a pressão cambial por períodos não muito longos. Altos

diferenciais mantidos persistentemente não teriam efeitos positivos sobre o

balanço de pagamentos.

No início do capítulo, buscamos mostrar que, na ausência de

intervenção do governo, uma NFEDcp positiva causa uma pressão cambial

persistente e consequentemente à desvalorização da taxa de câmbio. A

elevação da taxa de juros pode atrair capitais de curto prazo. O efeito sobre os

capitais de longo é mais lento e depende de outros fatores.

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176

A atração de capitais de curto prazo financia a NFEDcp e mantêm a

pressão cambial controlada. Porém, esse efeito não é prolongado. Para impedir

que o fluxo positivo de capitais de curto prazo se reduza substancialmente, o

governo terá que aumentar os juros novamente. Assim, enquanto a NFEDcp for

positiva, a taxa de juros será freqüentemente e cumulativamente pressionada

subir, pois, uma vez transcorridos os momentos mais intensos de fluxo

especulativo a NFEDcp acaba determinando a pressão cambial. O aumento

dos juros atrai capital quando a taxa vigente se torna superior à taxa que boa

parte do mercado considera normal. Essa taxa normal é fortemente

influenciada pela taxa média do passado recente. Assim, se a NFEDcp positiva

implicar em uma freqüência de pressão cambial maior, e, conseqüentemente,

uma freqüência de elevações de taxas de juros maior; a taxa de juros média

aumentará, e, assim, a taxa normal. Uma taxa normal mais alta implicará na

necessidade de maiores aumentos na taxa de juros para resultar no mesmo

efeito sobre as perspectivas de ganhos de capital, realimentando a tendência

de cumulativo aumento dos juros.

Vimos que o capital de curto prazo é atraído principalmente por

expectativas de redução da taxa de juros, de valorização cambial ou de

crescimento da bolsa de valores. Assim, uma vez realizadas as “previsões”, o

capital retorna, a menos que surjam novas expectativas de aumento da

rentabilidade do ativo adquirido ou a menos que tenham ocorrido perdas

iniciais, que os investidores esperam ver revertidas. Se as previsões não se

realizam e as expectativas iniciais se mostrem equivocadas, o capital também

retornará.

Em um país que sofre de pressão cambial decorrente de uma NFEDcp

positiva, se o governo aumenta a taxa de juros para reduzir um ataque

especulativo e posteriormente criar a expectativa de futuro retorno da taxa de

juros para seus patamares “normais”, será atraído capital externo para lucrar

com bolsa de valores e títulos prefixados. A entrada de capitais de curto prazo

reduzirá a pressão cambial, que poderá levar à redução da taxa de juros ou

valorização do câmbio, e assim geraria os lucros previstos pelos capitais

internalizados. A conseqüente realização de lucros tornaria o fluxo de capitais

negativo e, portanto, a pressão cambial retornaria juntamente com a

necessidade de elevar os juros.

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177

Uma política desse tipo pode financiar uma NFEDcp transitória, mas não

uma NFEDcp permanente. Primeiramente porque o capital que entra é o

mesmo que sai posteriormente. Aliás, que tende a sair com algum lucro.

Portanto, o financiamento de uma NFEDcp no presente, significa uma NFEDcp

maior no futuro. Considerando prazos mais longos, a NFEDcp não estaria de

fato sendo financiada. Secundariamente, uma grande volatilidade da taxa de

juros de curto prazo acaba sendo descontada sobre os juros de longo prazo e a

rentabilidade média das ações, tornando o efeito-riqueza da movimentação dos

juros de curto prazo menores e os movimentos de capitais menos sensíveis à

política monetária. Portanto, enquanto a NFEDcp for positiva, os juros terão

que ser sempre aumentados.

Vimos que o diferencial tem um papel secundário. Porém, se ele for

realmente elevado sua importância será maior. O Brasil é hoje talvez o único

país que possui um diferencial de taxas de juros suficientemente comparável

com a perda potencial em caso de ocorrência do pior cenário esperado de

desvalorização. É comparável desde que esse cenário não seja esperado para

um momento muito próximo.

Em caso como esse, poderíamos dizer que o diferencial seja realmente

importante para o movimento de capitais de curto prazo. Entretanto, para esses

casos vale a teoria proposta por Tsiang (1975), o que importa para a atração

de capitais de longo prazo é o aumento do diferencial e não a manutenção. Se

o governo aumenta o diferencial, haverá um ajuste de estoques nas carteiras

no primeiro momento, mas logo o fluxo positivo cessará ou se tornará reduzido.

Assim, portanto, nem mantendo diferencias de taxas muito elevados, seria

possível manter o fluxo de entrada de divisas. Podemos concluir que esse é

mais um motivo para taxa de juros também precisa ser continuamente elevada

enquanto a NFEDcp positiva for financiada pelas FFEcp.

Há ainda outros dois motivos para sustentar essa proposição. Se a

NFEDcp e o déficit em conta corrente forem positivos, a NFEDcp tenderá a ser

crescente em diversos momentos. Nessa situação, para que a NFEDcp seja

crescente, bastaria que:

NFEDcp > Amcp

Onde:

Amcp = Saldo das amortizações pagas da dívida externa de curto prazo

Page 178: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

178

Isso significa que bastaria que:

Amlp + DCC > IDE + Elp

ou que

DCC > IDE + estoq. Elp

Onde:

estoq. Elp = Elp – Amlp = crescimento do estoque de dívida externa de

longo prazo

Como o déficit em conta corrente aumenta o passivo externo líquido,

para que a NFEDcp não seja maior do que as amortizações de dívida de curto

prazo, é necessário que o financiamento externo de longo prazo seja

crescente.

Os investimentos externos diretos e os empréstimos de longo prazo são

relativamente instáveis, principalmente se o país não tem bons indicadores de

solvência externa. Supô-los sempre crescentes pode não ser razoável,

principalmente se o país tem um déficit permanente em conta corrente. Em

primeiro lugar, é preciso que a taxa de crescimento seja elevada para atrair os

IDE e induzir as empresas do país a fazer empréstimos de longo prazo no

exterior. Mas é preciso também que o país se mantenha solvente. Na próxima

seção, veremos que o IDE e os empréstimos de longo prazo são sensíveis aos

indicadores de solvência do país. Em situação de forte crise de liquidez

internacional, eles se contraem. Veremos também na próxima seção que o

reconhecimento geral dessa possibilidade faz com que superávit em conta

corrente seja um indicador de solvência ou de “bom crédito” em momentos de

crise de liquidez internacional ou quando o país está com uma situação de

liquidez muito frágil, devido a um passivo externo líquido muito elevado e com

alto risco de inadimplência ou crise cambial. O superávit em conta corrente

indica que o país não precisa de financiamento externo crescente para honrar

suas dívidas. Indica também que não necessita incorrer em grande recessão

ou desvalorização cambial em um futuro próximo para obter um superávit, ou

seja, ainda pode ser um destino de baixo risco para os IDE.

Dessa forma, a NFEDcp positiva acompanhada de déficit em conta

corrente muito provavelmente implica que o financiamento externo de longo

prazo não será sempre crescente. Nesse caso, mesmo se fossem válidas as

proposições tradicionais que diriam que o diferencial de juros poderia atrair um

Page 179: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

179

fluxo estável de financiamento para a NFEDcp, os juros tenderiam a ser

crescentes, enquanto a NFEDcp e o déficit em conta corrente fossem positivos;

bastaria para isso que houvesse oscilações na entrada de financiamento

externo de longo prazo, o que implicaria na necessidade de induzir um

aumento na entrada de financiamentos externos de curto prazo, ou seja, que

se aumentasse os juros.

Nessa situação, o passivo externo líquido de curto prazo e a NFEDcp

aumentariam abruptamente, devido à redução do prazo médio da dívida

externa. Além disso, a NFEDcp seria crescente, devido ao déficit em conta

corrente e, portanto, haveria necessidade de aumentos recorrentes dos juros

para aumentar as FFEcp. A liquidez do país seria bastante reduzida, e assim

sua capacidade de resistir a ataques cambiais e se manter adimplente.

Os investidores externos são muito sensíveis a essas situações de risco

iminente e adiariam suas decisões. Os tomadores e os ofertantes de

empréstimos de longo prazo recuariam, devido ao alto risco percebido e ao

crescimento do custo de captação referido no spread de “risco-país”, que

cresce com o aumento dos juros internos e com o maior risco de inadimplência.

Dessa forma, enquanto o governo não gerar, no mínimo, um superávit

em conta corrente, a NFEDcp não pararia de crescer e os financiadores

externo e especuladores em geral permaneceriam intranqüilos.

É preciso ainda lembrar que, mesmo sem a iminência de uma crise,

financiar o balanço de pagamentos com um passivo externo líquido de curto

prazo crescente pode levar ainda a outros inconvenientes. O crescimento do

passivo externo de curto prazo torna o país mais sensível aos “humores” dos

especuladores, que podem sair ou deixar de financiar o país a qualquer

momento. Quanto maior o passivo líquido de curto prazo, maior é o impacto

que essa fuga teria sobre a desvalorização cambial e, portanto, maiores são os

riscos de perdas e, assim, mais assustados se tornam os investidores e mais

voláteis se tornam os capitais. Nessa situação, os juros precisam ser

aumentados com maior freqüência e um maior número de vezes.

Podemos assim, concluir que uma NFEDcp positiva tende a implicar em

juros crescentes. Essa conclusão é especialmente válida se o país conviver

com déficit em conta corrente.

Page 180: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

180

Portanto, embora a elevação dos juros possa financiar a NFEDcp, esse

efeito é temporário, porque: (1) se o diferencial não for muito grande, o fluxo de

capital atraído será revertido depois de algum tempo; ou (2), se o diferencial for

realmente grande, o fluxo será, a princípio, alto para, logo depois, se reduzir

para patamares pouco significativos; ou (3) se a conta corrente for negativa, a

demanda por empréstimos de curto prazo tenderá a aumentar requerendo

novos aumentos da taxa de juros. Portanto, se a NFEDcp continuar positiva, a

pressão cambial retornará. A solução definitiva para a pressão cambial é

portanto reduzir a NFEDcp.

O gráfico abaixo busca ilustrar sob a perspectiva de um modelo

keynesiano simples a relação entre renda, juros e pressão cambial. Se a

entrada líquida de capital de longo prazo for pouco sensível às perspectivas de

crescimento, para níveis de atividade baixos, a pressão cambial será negativa

e a haverá tendência de queda de juros, valorização ou acumulação de

reservas. À medida em que se aumenta o nível de atividade, aumenta-se

também a NFEDcp. Haverá um ponto onde ela ser tornará positiva. Nesse

ponto, a pressão cambial também terá tendência a se tornar positiva e, assim,

ocorreria tendências à desvalorização, perda de reservas ou aumento da taxa

de juros. No próximo capítulo, buscaremos mostrar como o governo pode

reduzir a NFEDcp sem políticas recessivas.

y

j insolvente

solvente

NFEDcp 0 Pleno emprego

j = Exp%

Pressão Cambial positiva

Tendência à: desvalorização cambial perda de reservas

ou juros crescentes

Pressão Cambial negativa

Tendência à: valorização cambial acumulação de reservas

ou juros decrescentes

Hipótese de Baixa elasticidade do capital de longo prazo às perspectivas de crescimento

Page 181: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

181

3.6. Investimento externo direto, empréstimos de longo prazo e política de financiamento externo

Um país que tem uma NFEDcp positiva e não é capaz de induzir um

aumento das exportações ou substituição de importações no curto prazo terá o

crescimento fortemente dependente de capital externo. Nessa situação, se não

há crédito internacional para o país, esse ver-se-á obrigado a adotar políticas

recessivas, aceitar taxas de inflação muito elevadas ou, se tiver sorte, adotar

uma política industrial suficientemente eficaz para garantir a médio ou longo

prazo uma taxa de crescimento das exportações que possa viabilizar no futuro

o crescimento com baixa inflação.

Todavia, o país pode crescer sem maiores concessões à inflação e sem

grandes alterações na política industrial, se o país tem acesso a financiamento

internacional de longo prazo.

Existem basicamente três tipos de financiamento de longo prazo.

Investimentos externos diretos e empréstimos de longo prazo tomados pelo

setor privado e pelo governo.

Os investimentos externos diretos podem ser separados em (1)

investimentos que visam principalmente atender o crescimento do mercado

interno e (2) que visam principalmente atender as exportações e substituição

de importações73. No primeiro caso, a rentabilidade geral estimada na

avaliação dos projetos de investimento é determinada principalmente pela taxa

de crescimento esperada, mas em parte também pela taxa de câmbio real, se o

investimento pertencer ao setor de importáveis, porque a falta de

competitividade externa da produção local, em geral, reduzirá a atratividade da

fabricação local. No segundo caso, a rentabilidade geral estimada é

determinada principalmente pela taxa de câmbio real, mas também em parte

pela taxa de crescimento esperada.

73 Os investimentos externos diretos não são necessariamente investimentos produtivos. Investimentos externos em aquisições de empresas e em compra de ações em bolsa com horizonte de longo prazo são também considerados investimentos externos. Mesmo esses podem ser divididos entre investimentos que visam atender o crescimento do mercado interno, ou exportações e substituição de importações.

Page 182: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

182

Assim, se o governo desejar aumentar a entrada de investimento direto

externo, é necessário que ele mantenha o câmbio competitivo e que induza o

crescimento. Os investimentos em geral são mais elásticos em relação à renda

do que os gastos em consumo e insumos, porque pequenos aumentos de

renda costumam ser vistos como movimentos conjunturais e que podem ser

atendidos por capacidade ociosa, assim, taxas mais altas de crescimento

aumentam o risco esgotamento da capacidade ociosa e induzem o

investimento. Portanto, espera-se que o saldo líquido de investimento externo

direto seja bastante elástico em relação à renda e provavelmente mais elástico

do que o saldo comercial.

Os empréstimos externos de longo prazo tomados pelo setor privado

são quase sempre aplicados em investimentos também privados. Isso

acontece porque só é possível suportar o risco cambial de aplicações de longo

prazo financiadas por empréstimos, se o tomador possuir algum tipo de

proteção cambial, e eventualmente se a rentabilidade esperada da aplicação

for mais alta que a taxa de juros de ativos financeiros de baixo risco e

maturidade semelhante.

Muito dificilmente tomar-se-á empréstimos externos para adquirir títulos

de renda fixa. Primeiro porque o agente não consegue obter proteção cambial

a custos compensatórios. Sem proteção, a rentabilidade desse tipo de

operação raramente é suficientemente alta para tornar suportável o risco

cambial de um país de câmbio flutuante ou de câmbio fixo sujeito a ataques

cambiais. Essa conclusão decorre da altíssima probabilidade de que as

desvalorizações possam gerar perdas muitas vezes superiores ao diferencial

de taxa de juros de longo prazo no horizonte temporal da aplicação.

Essa conclusão é especialmente válida para as aplicações em títulos

públicos, pois os títulos públicos geram uma rentabilidade ainda menor do que

os títulos privados. Essa rentabilidade é menor do que o custo de proteção

cambial. Como vimos, o custo de proteção cambial é aproximadamente igual

ao diferencial internacional de taxas de juros. Dessa forma, o lucro de uma

operação de aquisição de títulos públicos com financiamento externo e

proteção cambial seria negativo. Se os títulos comprados forem privados e de

risco maior, essa operação pode ser lucrativa, mas os riscos de juros e de

inadimplência seriam significativos para uma rentabilidade muito reduzida.

Page 183: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

183

Entretanto, o setor privado de muitos países toma no exterior um grande

volume de empréstimos de longo prazo, o que freqüentemente é uma forma

importante de financiamento do balanço de pagamentos. Pretendemos

defender que a partir de um certo ponto o crescimento dessas operações tem

uma forte correlação com o crescimento econômico e com a competitividade da

taxa de câmbio e que o diferencial de taxa de juros tenha mais um papel

estrutural do que conjuntural.

O objetivo é propor que, após ultrapassado determinado patamar,

elevações adicionais na taxa de juros possuem em geral um efeito ambíguo ou

mesmo negativo sobre a captação de empréstimos de longo prazo.

Mesmo se o aumento do diferencial for capaz de induzir a entrada de

empréstimos externos, aumentar tais taxas, após atingido um certo patamar

mínimo não é necessário, porque, em momentos de liquidez internacional e

solvência externa do país, o crescimento econômico já é capaz de induzir o

crescimento dos IDE e dos empréstimos de longo prazo. Ademais, se essas

fontes de financiamento não forem suficientes para tornar a NFEDcp menor ou

igual a zero, o governo pode ainda emitir dívida externa de longo prazo e

vender esse acréscimo de reservas, ao invés de aumentar a taxa de juros. Em

momentos de ocorrência de crises externas, os tomadores privados de dívida

externa estão retraídos e o aumento dos juros não é capaz de induzir a entrada

de maior volume de financiamento de longo prazo.

No entanto, a visão tradicional sugere que elevações no diferencial de

taxa de juros é uma política adequada para o aumento na captação de

empréstimos de longo prazo. De fato, dada as taxas de juros e condições de

pagamento, e tendo como opção se endividar em uma moeda fraca ou em uma

moeda forte74, é sempre preferível se endividar na primeira. Nesse sentido, se

o governo pretende que o setor privado capte grandes volumes de

empréstimos externos de longo prazo, é necessário que seja mantido um

diferencial positivo entre as taxas de juros de longo prazo nacionais e

estrangeiras.

Porém, não é de se esperar que a manipulação da taxa de juros seja

uma política adequada para ajustar os empréstimo de longo prazo à

74 Esses conceitos serão definidos com mais precisão no próximo capítulo.

Page 184: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

184

necessidade de financiamento externo. Isso significa que o aumento dos juros

não é uma política normalmente adequada para aumentar a emissão de dívida

privada de longo prazo no exterior, principalmente nos momentos em que a

necessidade de financiamento externo é mais fundamental, como nas crises

cambiais.

Essa conclusão decorre de várias razões. Em primeiro lugar, a maioria

dos tomadores preferem se endividar em moeda nacional ou não possuem a

opção de emitir dívida externa. As empresas menores, em particular, não tem

alternativa além dos bancos nacionais. As grandes empresas com receitas

pouco indexadas ao câmbio só tomariam significativamente no exterior se

protegidas por derivativos cambiais ou se tiverem garantias de estabilidade da

taxa de câmbio. Mas, como o custo dessa proteção é igual ao diferencial

internacional de taxa de juro, elas só tomariam grandes volumes em um regime

flutuante, se não houvesse empréstimos de longo prazo em moeda nacional.

Em países subdesenvolvidos essa é uma situação comum. Porém, nessa

situação, os aumentos no diferencial de taxas de juros seriam inócuas ou, mais

provavelmente, teriam efeito negativo sobre o volume de empréstimos de longo

prazo tomados, ou porque não há financiamento alternativo no mercado

interno, ou porque em financiamentos com proteção cambial os aumentos dos

juros majoram no mesmo montante o custo dos financiamentos externos.

Portanto, nesse caso, a única variável que pode manipular o volume de

empréstimos de longo prazo tomados seria a taxa de crescimento.

Nas grandes empresas com receita indexada ao câmbio, a situação é

um pouco diferente. Essas empresas não precisam de proporção significativa

de proteção cambial com derivativos financeiros. Nessas empresas, o aumento

do diferencial pode induzir a tomada de mais empréstimos de longo prazo.

Porém, é preciso lembrar que o aumento do diferencial tem um efeito retardado

e em geral pequeno sobre esse volume a partir de certo ponto.

Além disso, o aumento da taxa de juros interna implica geralmente em

aumentos não proporcionais e não estáveis na taxa de captação dos

empréstimos externos de longo prazo. Isso pode acontecer por vários motivos

que já nos referimos sob outros aspectos. O aumento da taxa de juros interna

quando não tem seu efeito inteiramente absorvido pelo custo de proteção

cambial leva ao aumento do spread dos títulos da dívida externa e, portanto, o

Page 185: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

185

aumento direto no risco-país. Isso acontece (1) quando o país busca subsidiar

o custo de proteção cambial emitindo no mercado nacional dívida pública em

moeda estrangeira com a intenção de manter uma rentabilidade para esses

títulos suficientemente alta para desestimular a fuga de capitais, mas

principalmente (2) quando os investidores percebem como alto o risco de

inadimplência da dívida externa ou de adoção de rígido controle de capitais.

Nessa situação, devido ao risco de controle de capitais, fazer operações

consideradas normalmente como arbitragem em que se compra dólares no

futuro e se vende no presente deixam de ser realmente sem risco. As

operações de especulação cambial com compra de dólares no futuro também

passam a ser não compensatórias. A especulação cambial se concentraria na

aquisição de dólar à vista. O que faz com que a diferença entre o dólar futuro e

presente se reduza substancialmente, podendo até ser negativo apesar do

grande diferencial de juros que prevalecem nessas situações. De fato, perde-se

a correspondência entre o custo de proteção cambial (diferença entre o dólar

futuro e presente) e o diferencial de taxas de juros, pois o princípio da

arbitragem dominante não mais funciona. Esse resultado é evidente devido à

incapacidade das operações de dólar futuro protegem os investidores contra a

centralização da taxa de câmbio.

Nesses casos, aumentos nos diferenciais de taxas de juros impactam

principalmente o spread de “risco-país”, aumentando as taxas de captação de

empréstimos de longo prazo. Esse efeito também pode ser direto, via aumento

do risco percebido de inadimplência da dívida externa.

Mas mesmo em situações de menor risco, há forte chance de que o

aumento dos juros impacte ao menos parcialmente o “risco-país”, porque o

aumento dos juros pode não a ser inteiramente absorvido no custo de proteção

cambial nos títulos de prazo maior. Nas relações entre moedas fortes e fracas,

os derivativos cambiais de longo prazo têm baixa liquidez, devido à grande

incerteza em relação a perdas não propriamente cambiais no futuro mais

distante, como de centralização do câmbio, e, portanto, não podem absorver

Page 186: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

186

completamente o impacto do aumento dos juros75, que acaba recaindo ao

menos parcialmente sobre o risco-país.

Além disso, juros altos ou crescentes realmente conotam para o

mercado risco de juros, câmbio e de inadimplência elevados tanto para

empréstimos externos públicos e privados.

Supostamente, juros altos e crescentes não são desejáveis e

implicariam na necessidade de reduzi-los sempre que necessário, o que levaria

à expectativa de alta volatilidade da taxa de juros, ou seja, alto risco de juros.

Juros altos e crescentes estão associados a países que sofrem alta pressão

cambial e, portanto, mais fortemente sujeitos a crises externas e oscilações na

taxa de crescimento. Juros altos podem significar ainda dificuldades futuras no

balanço de pagamentos e, assim, alta probabilidade de crises externas e

inadimplência da dívida externa e centralização de câmbio no futuro76. Se tudo

isso não bastasse, juros altos significam também alto risco de inadimplência

dos tomadores desse tipo de empréstimos, que são basicamente do setor

privado. Além dos maiores risco de crises externas, recessão, de juros voláteis;

altas taxas de juros significam alto risco de crises de crédito internas e maior

dificuldade de pagamento dos compromissos. Os bancos internacionais

dificilmente não considerariam essas questões. Assim, quanto maior os juros

internos, maiores tendem a ser os custos de captação internacional descoberta

(risco-país + juros internacionais), reduzindo a elasticidade à taxa de juros

interna da captação líquida de empréstimos de longo prazo.

Ademais, a taxa de juros pode ter efeito sobre o nível de atividade, o que

reduz a demanda por empréstimos, reduzindo essa elasticidade. Se a política

fiscal não contrabalançar o efeito negativo dos juros sobre a demanda, o

impacto do aumento da taxa de juros sobre a redução da demanda total por

75 Mesmo porque os próprios contratos de juros futuros de longo prazo tem baixa liquidez nesses países, impedindo que os contratos de dólar futuro de longo prazo tenham liquidez adequada. 76 Juros altos significam também crescimento da dívida pública. Para um governo que adota finanças funcionais, isso não é motivo para aumento do risco de inadimplência, porém, a maioria dos especuladores e ministros da fazenda acreditam nisso e, de fato, há casos em que ocorrem calotes voluntários na dívida pública. Ainda que por motivos muito diferentes, o Brasil de Collor e a Argentina de De La Rua são exemplos de inadimplência da dívida pública devido à incompreensão dos mecanismos que em que se baseia as finanças funcionais.

Page 187: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

187

financiamento de longo prazo77 pode ser maior do que o impacto sobre a

substituição de empréstimos internos por externos.

Na perspectiva das finanças funcionais, a política econômica

(principalmente a política fiscal) é suficientemente ativa para definir o nível de

atividade. Nesse caso, o possível efeito negativo do aumento dos juros sobre o

nível de atividade seria contrabalançado por uma política fiscal expansionista.

Portanto, não se espera que o aumento da taxa de juros impacte

negativamente os investimentos nos setores de não exportáveis e não

importáveis. Os outros setores podem ser impactados pela redução da

competitividade externa decorrente do aumento dos juros.

Ainda a elasticidade dos empréstimos externos de longo prazo aos

diferenciais de juros possa ser elevada em certas situações, em geral, ela é

muito menos importante do que o efeito da taxa de crescimento e da taxa de

câmbio real esperada sobre o volume de captações externas de longo prazo,

se for considerado o efeito negativo sobre os investimentos diretos, percebe-se

que o aumento do diferencial é ainda menos favorável.

Quando a taxa de juros de longo prazo do país é próxima das chamadas

taxas de juros internacionais, não haveria volumes significativos de

empréstimos de longo prazo tomados no exterior. Porém, à medida em essa

taxa interna se eleva, mais empresários estariam dispostos a trocar

financiamento interno por financiamento externo. A participação dos

empréstimos externos nos empréstimos totais é uma variável com

comportamento logístico. Portanto, a partir de certo ponto, os efeitos marginais

da taxa de juros sobre os empréstimos seriam cada vez menores.

Pode-se esperar inclusive que seja muito pequeno o intervalo de taxas

de juros em que a elasticidade dos empréstimos externos aos juros é

significativa. A maioria dos tomadores privados emite dívidas de longo prazo

no exterior em condições muito específicas. Eles têm dificuldade em ajustar a

proporção de dívida externa em seu passivo à medida que o governo manipula

a taxa de juros de acordo com as condições do balanço de pagamentos ou do

nível de atividade. Mesmo porque os bancos impõem condições de garantia e

solvência muito restritivas para esse tipo de empréstimo. Empréstimos de longo

77 Essa demanda é fortemente dependente do nível de investimento.

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188

prazo estão associados a investimentos de alto prazo de maturação e são

decisões estratégicas que exigem muito cuidado. Investimentos de maior

maturação, como novas plantas, se beneficiam menos da complementaridade

com outros ativos e, portanto, raramente oferecem taxas de lucro “marginal”

esperadas tão altas78. Isso significa que as empresas preferem usar

principalmente recursos próprios, se a taxa de juros ultrapassa um determinado

nível. Os empréstimos externos implicam em risco cambial79, o que pode ter

um grande impacto sobre a viabilidade do empreendimento. Assim a taxa de

juros precisa ser significativamente maior do que a internacional para que

induza a um empréstimo no exterior. Some-se a isso o fato de que o valor de

juros acumulado em relação ao financiamento total é maior nos empréstimos

de longo prazo. Isso significa que a decisão sobre o tipo e volume de

financiamento tomado é crucial. Quando o diferencial de taxa de juros for

suficientemente grande para induzir os empresários a tomarem empréstimos

no exterior, a maioria dos investidores já estará estudando essa possibilidade e

com taxas não muito maiores quase todas as empresas que podem tomar no

exterior já estariam fazendo. Dessa forma, espera-se que seja reduzido o

intervalo de juros em que a elasticidade dos empréstimos externos de longo

prazo ao diferencial de juros é significativa.

Podemos assim defender que, em países com necessidade externa por

dívida NFED positiva, predomina de forma estável no tempo taxas de juros que

induzem as empresas a captarem no exterior. Portanto, dado que é pequeno o

intervalo de juros onde a elasticidade-juros dos empréstimos externos de longo

prazo é alta, é estrutural, para esses países, a condição de que os

empréstimos externos de longo prazo são pouco elásticos aos juros. Dessa

forma, a política monetária se manifesta entre patamares em que os

empréstimos externos são relativamente independentes da mesma, ou seja,

em patamares onde o efeito da taxa de juros sobre esses empréstimos é

ambíguo, pouco significativo, quando não negativo. Isso significa que não

deve-se esperar que oscilações conjunturais da política monetária possam ser

78 Esse motivo pode explicar como as empresas freqüentemente, nos últimos anos, chegaram a pagar, no Brasil, taxas de juros que já se aproximaram de 100% para financiamento de capital de giro, mas não se tem notícia de taxas similares em empréstimos de longo prazo. 79 Como vimos, para operações com total proteção cambial, a mudança no diferencial de taxas básicas de juros é irrelevante e, portanto, não é um incentivo à entrada de novos empréstimos desse tipo.

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189

de grande valia para ajustar o volume de empréstimos externos de longo prazo

contraídos às necessidades de financiamento externo do país.

Os empréstimos de longo prazo se tornam ainda mais independentes

dos juros nos momentos onde o financiamento externo é mais importante, isto

é, nos momentos de ocorrência de crise cambial. Nessas circunstâncias, o

financiamento externo de longo prazo é muito raro, porque as empresas adiam

seus investimentos, o custo de capitação externa sobe significativamente e os

bancos internacionais se retraem.

É reconhecido que aumentos na taxa de juros tendem a reduzir a

demanda agregada e, portanto, o nível de investimento. Nesse sentido, nos

patamares em que a participação dos empréstimos externos nos empréstimos

totais é próxima do máximo aceito pelas empresas, o aumento da taxa de juros

tende a reduzir e não a aumentar o volume de empréstimos externo tomados.

Esse efeito só não seria válido, se o país adotasse uma política fiscal

expansionista muito ativa com o objetivo de neutralizar o efeito dos juros sobre

a demanda agregada. De qualquer forma, esse exemplo mostra qual é a

variável mais importante na manipulação do volume de empréstimos de longo

prazo tomados pelo país.

A taxa de crescimento é decisiva para a determinação do volume de

empréstimos externos de longo prazo emitido pelas empresas de um país que

precisa se financiar no exterior. Os empréstimos externos de longo prazo são

usados principalmente para financiar investimentos do setor privado.

Conjunturalmente seria de se esperar que essas duas variáveis tenderiam a ter

forte correlação temporal. Portanto, seria aconselhável que o governo induzisse

as expectativas de crescimento econômico, se pretende aumentar o volume de

empréstimos tomados no exterior.

Existe ainda outra variável muito importante para a determinação do

volume de empréstimos externos de longo prazo emitidos. Essa variável é o

câmbio real. Quanto mais competitivo é o câmbio real, maior é o volume de

empréstimos externos tomados. Primeiramente o câmbio real tem um efeito

positivo sobre os investimentos nos setores de importáveis, principalmente de

aumento de capacidade exportadora e de substituição de importações. Esse

efeito afeta todos os setores, porque o maior volume de exportações e de

investimentos nesses setores induz ao crescimento de toda a economia.

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190

Secundariamente, mas não menos importante, é preciso lembrar o efeito do

câmbio real desvalorizado sobre as expectativas de desvalorização. Um

câmbio real competitivo (desvalorizado) significa menor expectativa de

ocorrência de pressão cambial no futuro e, portanto, menor possibilidade de

crises externas e desvalorização cambial acentuada. Menores expectativas de

desvalorização significam menor risco cambial nos empréstimos externos

tomados e, assim, maior disposição em tomá-los. Menor possibilidade de crises

externas significa ainda menor risco de recessão.

Dessa forma, podemos concluir o mesmo que concluímos para os

investimentos externos diretos. Ou seja, que quanto maior a taxa de

crescimento e mais competitivo é o câmbio real, maior a disposição de tomar

empréstimos de longo prazo no exterior.

3.6.1. A importância da solvência externa

Acabamos de concluir que o crescimento econômico atrai capital de

longo prazo, o que pode impedir que ocorra crescimento que isso implique em

uma NFEDcp positiva, portanto, sem pressão cambial persistente. Entretanto,

não se espera que o governo possa financiar indefinidamente o balanço de

pagamentos simplesmente aumentando a taxa de crescimento e mantendo o

câmbio real desvalorizado. Essa proposição implicaria na inexistência ou

irrelevância da restrição externa.

De fato, há motivos para achar que nem todos os países podem confiar

que terão sempre o financiamento necessário para viabilizar seu crescimento,

mesmo mantendo taxas de câmbio competitivas.

Deve-se levar em consideração a preocupação dos financiadores

estrangeiros de longo prazo com a solvência externa do país. Esses

financiadores, como é óbvio, não consideram apenas a rentabilidade em suas

análises, mas também o risco. A solvência externa do país é um dos principais

indicadores de risco sistêmico dos investimentos externos diretos e dos

financiamentos de longo prazo.

A solvência é um termo originário da avaliação de capacidade de

pagamento de débitos das empresas. Ela busca saber o risco de inadimplência

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191

da dívida financiada. Assim, avaliação de solvência é sinônimo de avaliação de

crédito. Se um país é solvente, ele “tem um bom crédito”. Pela teoria das

finanças funcionais, em moeda nacional, a capacidade de pagamento das

dívidas e despesas em moeda nacional de um governo é total.

Em uma economia fechada, por exemplo, o governo poderá pagar seu

serviço da dívida qualquer que seja o grau de endividamento. Todavia,

governos e residentes também possuem dívidas e pagamentos realizados em

moeda estrangeira. Nesse caso, é óbvio que a capacidade de pagamento não

é ilimitada, pois divisas são realmente o recurso escasso por excelência para

a maioria das situações de uma economia que não emite a moeda

internacional.

Assim, se solvência em moeda nacional é um conceito vazio. Por outro

lado, a solvência em moeda estrangeira é um conceito importante. O

interessante é que a solvência em moeda estrangeira não depende apenas dos

pagamentos em moeda estrangeira realizados pelo governo, mas também e

exatamente com a mesma importância dos pagamentos realizados pelo setor

privado.

Essa não é uma conclusão muito intuitiva. Entretanto, é uma

decorrência imediata do que está por detrás de toda esta tese. As divisas

interessam à política econômica principalmente porque elas são as chaves

para o controle dos juros e da inflação. Assim, se o setor privado tem

dificuldade de encontrar moeda estrangeira para fazer seus pagamentos, seu

preço sobe e o governo não consegue cumprir suas metas de política

econômica. Assim, não faz muita diferença se falta dólares para o governo ou

para os residentes, o resultado será o mesmo. Mesmo porque o setor privado

residente sempre aceita vender os ativos que possui pelo preço de mercado

em troca de moeda nacional80, e assim o governo pode obter de seus

contribuintes moeda estrangeira que eles possuírem aos preços de mercado.

Mas se a demanda de divisas do governo somada à demanda do setor privado

for superior à oferta, poderá haver dificuldades de cumprimento dos objetivos

do governo e, portanto, restrições importantes à política econômica.

80 Cujo suprimento para o governo é ilimitado.

Page 192: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

192

A solvência de um país é uma questão importante para avaliar a

capacidade de atração de financiamento estrangeiro. Para o financiamento por

dívida o que importa é a capacidade de pagamento de dívidas em moeda

estrangeira do país. Já para o financiamento em investimentos externos

diretos a solvência é uma questão mais complexa.

A solvência deveria medir a capacidade de retorno do capital investido.

Assim, para o investidor externo direto ou o investidor estrangeiro em ativos de

renda variável denominados em moeda nacional, o que importa não é

simplesmente a capacidade do país em pagar suas dívidas ou ser permitido

transformar seus ativos nacionais em moeda estrangeira (liberdade de

movimento de capitais). Se a taxa de câmbio se desvalorizar mais do que a

valorização de seus ativos de renda variável em moeda nacional ou se houver

uma depreciação do valor desses ativos em moeda nacional, o investidor

estrangeiro não poderá retornar todo capital investido.

Portanto, solvência em moeda estrangeira não deve medir apenas a

capacidade de pagamento de dívidas em moeda estrangeira. Deve também

medir a possibilidade da escassez de divisas levar à desvalorização cambial, a

maior controle sobre os movimentos de repatriação de capital, à recessão,

estagnação econômica ou deflação de títulos de renda fixa (elevação dos juros)

ou de ativos de renda variável.

Em países que sofrem de restrição externa, essas situações estão em

geral relacionadas com crises internacionais de liquidez, com recessão a nível

mundial, ou com crises cambiais. Assim a solvência externa deve medir a

sensibilidade dos países a crises externas ou cambiais, ou seja, medir o grau

de vulnerabilidade externa. Nos termos propostos neste trabalho, a solvência

externa mediria o risco de pressão cambial implicar em fortes e duradouras

restrições à política econômica.

A solvência a curto prazo ou a liquidez externa mede a sensibilidade da

política econômica a crises externas em termos de elevação dos juros,

desvalorização cambial, recessão ou propensão a reduzir as facilidades para

movimento de capitais no curto prazo. Enquanto a solvência a longo prazo

mede a sensibilidade a crises externas em um futuro mais distante.

A solvência de títulos de dívida externa está relacionada principalmente

com o risco de inadimplência, porém não apenas ao risco real de

Page 193: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

193

inadimplência, mas também o risco de elevação do chamado ‘prêmio de risco’

que o mercado paga para esses títulos. Se o ‘prêmio de risco’ exigido pelo

título sobe acentuadamente, o detentor pode incorrer num prejuízo tão grande

quanto o que teria em caso de inadimplência e necessidade de renegociação

da dívida.

A solvência externa para dívidas de curto, médio e longo prazo em

moeda estrangeira é máxima ou próxima a isso em países com necessidade de

financiamento externa – NFE negativa. Esses países não teriam a princípio

dificuldade em pagar dívidas e nem disposição em não pagar, já que podem

pagar e, como credores internacionais, tem interesse em dar o exemplo de

bons pagadores. Dessa forma, o risco de inadimplência seria muito pequeno,

assim, como a possibilidade de alterações significativas no prêmio de risco

cobrado pelos títulos do país.

A solvência do país ou potencial de prejuízo sistêmico para

investimentos externos em renda variável, como os investimentos diretos,

depende da possibilidade de forte desvalorização, instituição de controles de

capitais, recessão aguda ou elevação acentuada do diferencial de taxa de juros

causados por crise externa.

A crise externa decorre da escassez de divisas ou pressão cambial que

o governo não é capaz de conter ou que para conter necessita de adotar

políticas econômicas muito duras que acabam por gerar prejuízos importantes

à atividade econômica.

A pressão cambial persistente, como vimos, não pode ser causada por

pura especulação cambial, pois o governo tem à sua disposição instrumentos

para conter essa especulação quando ela é resultado de auto-referenciação ou

na crença em profecias auto-realizáveis. Raramente um governo precisaria

adotar políticas mais dolorosas para conter um ataque cambial baseado em

auto-referenciação. Bastaria apenas colocar em dúvida as expectativas e diluir

o consenso instituído para que o volume líquido de especulação cambial se

reduzisse e oscilasse, fazendo assim com que o fluxo estrutural de dólares

(NFEDcp) passasse a ser a força mais importante com relação à evolução da

taxa de câmbio e, portanto, da própria formação de expectativas.

O fluxo estrutural de dólares é igual à NFEDcp com sinal invertido. As

políticas econômicas e as expectativa cambiais tem pouca influência, no curto

Page 194: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

194

prazo, sobre a NFEDcp, particularmente se o efeito desejado for de reduzi-la.

Assim, quando o fluxo estrutural é persistentemente negativo, o governo é

obrigado a aceitar desvalorizações acentuadas, elevar muito os juros ou reduzir

significativamente a taxa de crescimento.

Mas esses problemas são pouco prováveis em países com NFE

negativa81. Tais nações praticamente não estão sujeitas a escassez de divisas

persistentes ou crises externas. Isso decorre de três motivos: (1) eles

costumam ter a NFEDcp negativa, nula, levemente positiva ou apenas

temporariamente positiva; (2) eles não precisam de grandes modificações na

política econômica para tornar negativa uma NFEDcp previamente positiva; e

(3) eles não precisam de grandes modificações na política econômica para

tornar positivo o fluxo de entrada de capital especulativo e assim financiar a

NFEDcp enquanto ela estiver positiva.

Para que um país que possui uma NFE negativa tenha uma NFEDcp

positiva é necessário que a soma do fluxo de investimentos externos diretos

líquidos enviados para o exterior mais os empréstimos líquidos de longo prazo

concedidos a outros países seja significativamente maior do que zero. Ou seja,

precisa ser um importante exportador de capital de longo prazo. Nem sempre

um país com NFE negativa consegue ser um grande exportador de capital de

longo prazo. Para isso seria necessário ser a sede de um volume muito grande

de multinacionais em processo de expansão internacional e ou possuir muitos

bancos multinacionais com sede no país também em processo de expansão

internacional. Dessa forma, nem todo país com NFE negativa consegue

permanentemente um volume de exportação de capital de longo prazo grande

o suficiente para tornar a NFEDcp positiva.

A exportação de capital é volátil e sensível à possibilidade de crises

internacionais, e portanto, o país tende a atrair capital em caso de turbulências

internacionais, o que reduz ainda mais a sensibilidade do país a crises

externas.

Mas se a exportação de capital for muito grande e estável e, portanto, a

NFEDcp for persitentemente positiva, a pressão cambial decorrente poderá

81 Os EUA estão incluídos entre os países com NFE negativa, pois a NFE é medida em termos de pagamentos realizados em moeda estrangeira.

Page 195: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

195

aumentar o risco de ultrapassagem da meta de inflação. Nessa situação, o

governo deverá reduzir a NFEDcp.

Se um país é credor internacional líquido, sua solvência é máxima ou

praticamente máxima. Um credor líquido quase certamente possui uma NFE

negativa. Se, além disso, ele também possui um saldo em conta corrente

positivo, o que também é comum nessas situações, sua solvência é máxima.

Assim, podemos dizer que o sinal da NFE pode ser um primeiro

indicador para a avaliação da solvência de um país. O sinal do saldo em conta

corrente é o segundo.

Se a NFE é positiva, o país precisa de crédito externo. Portanto, a

solvência a curto e a longo prazo dependeria de uma infinidade de outras

questões. Entre essas, estariam as condições de liquidez internacional.

Quando há abundância de liquidez internacional os parâmetros de solvência

para os investidores tornam-se muito mais flexíveis. Isso ocorre porque os

credores e investidores externos tem uma visão individual do risco do país.

Individualmente, um financiamento a mais concedido não implica em aumento

significativo da demanda futura de divisas daquele país. Os credores em

potencial estão observando os outros credores, se a maioria confia, o país tem

crédito e pode pagar suas dívidas, se não confiam, o país se torna insolvente

ou inadimplente.

Entretanto, os indicadores de solvência continuam importantes, mesmo

porque eles são uma importante fonte de evidências para avaliar a confiança

média dos credores em potencial. Os problemas, como esses, em que surgem

auto-referenciação de opiniões são difíceis de modelar. Nesse caso, é comum

serem adotados indicadores de solvência com variáveis auto-referenciadas.

Por exemplo, às vezes se considera como um indicador de solvência o que

chamamos de necessidade de financiamento externo por dívida – NFED ou o

saldo em conta corrente menos os investimentos direto externos. Essa solução

pode ser interessante para um investidor avaliar o risco de um país, mas não é

adequada para explicar as razões da condição vigente de solvência de um

país, pois os próprios investimentos diretos dependem da solvência externa.

Nesse caso, esse indicador não seria capaz de explicar as razões desse

volume de investimento externo, pois acabaria caindo em um problema de

regressão infinita.

Page 196: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

196

Indicadores de solvência no mercado financeiro são instrumentos

reconhecidamente imperfeitos para avaliar se um país é um “bom crédito”. São

sempre arbitrários e dependentes de convenções. Nesse sentido, não é nosso

objetivo aqui se prender rigidamente a indicadores específicos, mas apenas

mostrar a lógica por detrás desses indicadores e como eles podem afetar a

economia. A suposição de que tais indicadores podem ser importantes na

decisão de financiamento e investimento externos é fundamental para a

construção da resposta a uma importante questão desta tese: quando os

países podem manter políticas expansionistas em situações de pressão

cambial? Acreditamos que essas políticas podem ser sustentáveis, nessa

situação, desde que respeitados os índices de solvência.

Antes de expor alguns indicadores de solvência, precisamos esclarecer

melhor o que entendemos por solvência. O significado de solvência aqui é

similar ao normalmente usado em avaliações financeiras de crédito.

Solvência seria a situação onde o crédito ou o investimento são

considerados seguros. Essa definição decorre de nosso objetivo de saber

quando o país terá financiamento externo de longo prazo.

A garantia de adimplência de um crédito – e, portanto, a solvência –

depende principalmente da sustentabilidade do passivo e da liquidez do

devedor. Dessa forma, os critérios de solvência que vamos propor aqui

deverão agregar essas duas dimensões.

Os indicadores de solvência não devem ser independentes do passivo

externo líquido e do seu prazo de maturação. Também não podem ser

independentes do horizonte temporal dos investimentos analisados. O efeito

desses indicadores sobre o volume de capital atraído para o país depende

entre outras coisas, da lucratividade média esperada no país, o que depende,

por exemplo, do câmbio real e da taxa de crescimento esperada. Além disso,

há uma forte auto-referenciação no volume de capital atraído, o que tornaria, a

princípio, os indicadores de solvência menos relevantes em comparação à

expectativa dos investidores sobre a opinião média do “mercado”. Todas essas

questões tornam o problema muito complexo.

Precisamos primeiramente adotar uma solução para esse problema de

auto-referenciação. Para isso vamos propor indicadores de solvência diferentes

Page 197: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

197

para situações de normalidade, de euforia e de crise de liquidez nos mercados

financeiros internacionais.

É importante notar que um país só pode sofrer uma crise de liquidez, se

não houver crédito. A falta de crédito pode ser decorrente de crises nos

mercados internacionais, de um endividamento externo excessivo ou da falta

de reservas cambiais para cumprir compromissos de curto prazo.

O endividamento externo excessivo seria medido pela relação

NFE/exportação Não nos interessa especificar o valor exato da relação que

dividiria os níveis de endividamento considerados baixos e altos, porque é uma

escolha inevitavelmente arbitrária e que precisa de uma justificativa detalhada.

O objetivo aqui é outro, como se verá a seguir.

Para incorporar a questão do prazo de maturação do passivo externo

líquido, vamos utilizar os termos NFE e NFE estrutural. Dois países de dívida

externa idêntica podem ter necessidades de financiamento externo diferentes

em decorrência de diferenças no perfil de suas dívidas. Quanto maior a

proporção de dívidas de longo prazo, menor é a NFE.

NFE e NFE estrutural negativas indicariam que o país é solvente. A NFE

estrutural é a NFE que se espera que o país obtenha se precisar adotar

medidas leves e politicamente aceitáveis para redução da NFE, em uma

situação de grave crise internacional, quando não pudesse se financiar no

exterior. Essas medidas aceitáveis poderiam ser a redução da taxa de

crescimento, mas sem que a taxa de desemprego atingisse níveis não

considerados muito altos, e a desvalorização do câmbio, mas sem que a

inflação ultrapasse significativamente a meta.

Buscaremos contornar os outros problemas propondo três níveis de

solvência para cada situação. Essa é uma das principais soluções técnicas das

empresas especializadas em avaliação de solvência. Essas empresas, porém,

usam um número muito maior de níveis de classificação.

Os critérios de solvência propostos estão reunidos nas tabelas abaixo:

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198

Países com NFE negativa ou com NFE estrutural negativa Solventes

Países com NFE estrutural positiva

Classificação de risco

Condições conjunturais e estoque de dívida

Euforia ou normalidade com dívida baixa

( NFE/Export < parâmetro )

Normalidade ou crise de liquidez com dívida baixa

( NFE/ Export < parâmetro )

crise de liquidez ou países com dívida muito alta ( NFE/Export > parâmetro )

Solvente

Taxa de crescimento das exportações ≥ que a taxa de crescimento das importações E Taxa de crescimento das exportações ≥ que a remuneração do passivo externo líquido Ou Conta corrente ≥ 0

Conta corrente ≥ 0 E Taxa de crescimento das exportações ≥ que a taxa de crescimento das importações E Taxa de crescimento das exportações ≥ que a remuneração do passivo externo líquido

conta corrente > 0 e significativamente altos níveis de reservas em relação à NFE e Taxa de crescimento das exportações ≥ que a taxa de crescimento das importações e Taxa de crescimento das exportações ≥ que a remuneração do passivo externo líquido

Solvência condicionada à disposição dos credores

ou à manutenção das condições de liquidez ou à

melhoria na taxa de crescimento das

exportações

Taxa de crescimento das exportações > 0

Conta corrente ≥ 0 ou Taxa de crescimento das exportações ≥ que a taxa de crescimento das importações E Taxa de crescimento das exportações ≥ que a remuneração do passivo externo líquido

conta corrente > 0 e significativamente altos níveis de reservas em relação à NFE

Insolvente Inadimplência

Conta corrente < 0 e Taxa de crescimento das exportações < que a remuneração do passivo externo líquido Ou Taxa de crescimento das exportações ≥ que a taxa de crescimento das importações

Conta corrente < 0

Esses indicadores foram definidos com certa arbitrariedade, o que é

inevitável neste tipo de problema82. No entanto, para nossos objetivos,

interessa apenas mostrar a importância do saldo em conta corrente e da taxa

de crescimento das exportações.

O saldo positivo em conta corrente indica que o país tem capacidade de

pagar os juros da dívida externa. Mostra ainda que o país não precisa tomar

novos financiamentos externos, basta apenas trocar os antigos empréstimos.

82 Além disso, eles não abrangem todas as possibilidades, o que seria evitado se no quadro “insolvente” de cada coluna escrevêssemos: “caso contrário”. Porém, seria uma proposição forte, pois as fronteiras entre os resultados dessas situações não são suficientemente precisas.

Page 199: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

199

Em circunstâncias normais, essas condições mantêm os credores seguros e,

portanto, dispostos a adquirir títulos de dívida. Ademais, se o saldo em conta

corrente for positivo, os residentes desse país estão acumulando ativos em

moeda forte e, portanto, reduzindo continuamente a NFE.

A princípio, é racional considerar também a taxa de crescimento das

exportações, e compará-la com a taxa de crescimento das importações e

com a remuneração média do passivo externo líquido. Assim, a taxa de

crescimento das exportações estaria avaliando se as condições de solvência

são sustentáveis no longo prazo.

Porém, os investidores e financiadores geralmente não estão tão

preocupados com o longo prazo. O saldo em conta corrente indica boas

condições de solvência para o curto prazo e garante resistência à crise sem a

necessidade de recessão profunda, risco de hiperinflação ou inadimplência da

dívida externa. Se o país consegue manter o saldo em conta corrente positivo

sem perder o controle da taxa de câmbio e sem recessão profunda, não será

difícil garantir o refinanciamento de sua dívida externa, mesmo em condições

de crise externa, ainda que para isso seja necessário uma renegociação

coletiva. Caso contrário, esse resultado não é garantido e os credores e

investidores externos estarão sujeitos a grandes perdas. Por isso, a

capacidade de gerar superávit em conta corrente sem grandes dificuldades é

uma condição fundamental, ainda que não ideal para os credores, para garantir

a solvência, mesmo em condições de crise externa.

Dessa forma, a taxa de crescimento das exportações é um critério

subalterno ao critério do saldo em conta corrente. Mas a taxa de crescimento

das exportações confrontada com outras variáveis é um indicador importante

para as condições de solvência no longo prazo. Os investidores externos não

são alheios a esse ponto, mas sabem que o longo prazo é muito incerto e

qualquer indicador que vise prever o risco em um futuro muito distante não será

muito confiável. A taxa de crescimento das exportações obtida no presente

pode ser diferente da taxa obtida nos anos futuros, ela pode ser maior ou

menor. Além disso, o país pode reduzir sua taxa de crescimento no futuro

ajustando as importações à baixa taxa de crescimento das exportações.

Os investidores estão assim mais preocupados com as condições de

solvência de curto prazo, com o lucro esperado no negócio e com a opinião da

Page 200: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

200

maioria. Para um analista de investimento, se um país está recebendo um

grande volume de empréstimos de longo prazo e investimentos externos seu

risco deve ser baixo.

Assim, podemos sugerir que o saldo em conta corrente seja o principal

critério de solvência avaliado pelos credores e o segundo seja a taxa de

crescimento das exportações. Quando o país obtém notas positivas em ambos

indicadores, ele estará em uma situação de solvência muito confortável. Se o

país tem apenas um desses indicadores positivos diríamos que a solvência é

condicionada. Se o país tem déficit em conta corrente, sua solvência é

condicionada à confiança dos mercados de que ele será capaz de gerar com

facilidade um superávit em conta corrente em momentos de crise externa. Uma

taxa elevada de crescimento das exportações indica que essa capacidade

existe e que as condições de solvência serão mantidas no futuro. Se o país tem

superávit em conta corrente, mas a taxa de crescimento das exportações muito

reduzida, sua solvência para aplicações de longo prazo de maturação é

condicionado à opinião majoritária sobre a capacidade futura de pagamento do

país. Se o país garante solvência a curto prazo e recebe grande volume de

capital de longo prazo, podemos concluir que “o mercado” confia que será

capaz de manter solvência no futuro. O investidor individual provavelmente

acha que a maioria dos seus colegas ou concorrentes confia que a taxa de

crescimento das exportações aumentará ou que o governo reduzirá a taxa de

crescimento para manter o saldo em conta corrente. Os analistas de

investimentos confiam na capacidade analítica da maioria dos seus pares ou,

no mínimo, prefere errar em comunidade do que errar sozinho.

Portanto, o saldo em conta corrente e a taxa de crescimento das

exportações (comparada com a taxa de crescimento das importações e com a

remuneração do passivo externo líquido) são os principais critérios para

avaliação da solvência dos países. Eles são muito importantes para a indicar

as condições de risco sistêmico dos países em situações normais de liquidez

internacional. E mais importante, indicam a capacidade do resistir a crises

externas no futuro sem maiores prejuízos para os investidores e financiadores

externos. O saldo em conta corrente indica capacidade de resistir a crises em

futuro próximo e a taxa de crescimento das exportações em um futuro distante.

Page 201: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

201

Entretanto, esses indicadores podem não ser tão relevantes em

momentos de euforia nos mercados financeiros internacionais, quando um

determinado país é visto como um “maná” com grandes lucros prontos para

serem colhidos, ou ainda quando o endividamento externo do país for muito

reduzido em relação a suas exportações. Da mesma forma, uma boa

performance nesses critérios pode não ser a solução para viabilizar uma

grande entrada de capital externo em momentos de crise de liquidez. Como já

repetimos diversas vezes, os investidores tendem a se mover em bando,

principalmente, nesses casos.

Todavia, essa constatação não impede que os indicadores de solvência

externa não sejam fundamentais. Os governos bem sucedidos os adotam

informalmente por experiência ou são induzidos a adotá-los pelas condições de

evolução dos movimentos de capitais. De fato, eles devem ser considerados

como um critério fundamental para as decisões econômicas dos governos,

porque eles permitem que a política possa se fundamentar não apenas nas

condições conjunturais dos mercados cambiais.

Como vimos, pressão cambial sentida através desses mercados é a

fonte de constrangimento básica da política econômica. Como vimos, ela só se

torna persistente quando a NFEDcp é significativamente positiva. O governo

pode reduzir essa pressão aumentando as FFEcp ou vendendo reservas.

Porém, essas são soluções temporárias. O governo é obrigado a manter a

NFEDcp em valores menores ou próximos a zero, em algum momento, se

quiser ser capaz de manter controle sobre a taxa de câmbio e, portanto, sobre

a taxa de inflação. Entretanto, existem diversas maneiras de reduzir a NFEDcp,

umas mais dolorosas outras menos.

Uma forma eficaz de reduzi-la é diminuindo a taxa de crescimento da

economia. No entanto, é possível obter o mesmo resultado aumentando as

expectativas de crescimento da economia, quando isso é possível. Essa

solução é socialmente mais interessante.

As expectativas de crescimento para a economia aumentam as

perspectivas de lucro no país atraindo investimento externo direto. Essas

expectativas aumentam também o investimento e, portanto, a demanda por

empréstimos externos de longo prazo. O volume de capital que entra no país

nessas circunstâncias depende ainda da vigência de um câmbio competitivo.

Page 202: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

202

Quanto mais competitivo é o câmbio, maior é a atratividade dos investimentos

em importáveis e menor é o risco de desvalorizações futuras, que aumentam o

custo e o risco dos financiamentos externos.

Dessa forma, o governo pode responder à pressão cambial decorrente

de uma NFEDcp positiva, induzindo o crescimento da economia. Porém, o

sucesso ou a sustentabilidade dessa solução é condicionada pelo não

comprometimento dos indicadores de solvência.

O crescimento econômico e o câmbio competitivo garantem boa

rentabilidade para os investidores externos e internos. Bons indicadores de

solvência garantiriam baixo risco. Assim, bastaria que os investimentos

externos diretos sejam atraídos em volume suficiente ou que a taxa de juros

esteja levemente acima da internacional ou ainda que o governo tomasse ele

próprio empréstimos no exterior para que a NFEDcp fosse mantida reduzida ou

fosse financiada por empréstimos de longo prazo tomados pelo governo.

Os IDE e os empréstimos a longo prazo são voláteis e, podem não ser

suficientes para manter a NFEDcp menor do que zero em todos os momentos.

Nessa situação, o governo pode simplesmente emitir dívida externa e vender

reservas para neutralizar a pressão cambial. Para o país, o volume de dívida

externa e para a contabilidade pública não faz grande diferença entre

endividamento externo é público ou privado. O endividamento externo, quando

internalizado gera um crescimento da dívida pública interna similar.

Assim, podemos concluir que o governo pode responder eficazmente à

pressão cambial com políticas expansivas, aumentando o emprego, sem a

necessidade de elevar os juros para atrair capital, desde que sejam respeitados

os indicadores de solvência.

É preciso ressaltar apenas que esses indicadores não são tão rígidos

como poderia parecer a partir dessa conclusão. Em momentos de pouca

liquidez internacional o indicador mínimo que precisa ser obtido é o saldo em

conta corrente. Em momentos onde o crédito internacional funciona

normalmente, bastaria uma taxa de crescimento elevada para as exportações

em comparação à taxa de crescimento do PIB e que seja respeitada a

condição de que a ela seja em média próxima à taxa de remuneração do

passivo externo líquido.

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203

Dessa forma, como a pressão cambial pode se eliminada com soluções

expansivas, enquanto os indicadores de solvência forem respeitados; esses

indicadores estariam determinando, em situação de liquidez internacional, o

ponto de restrição externa, onde a política econômica passaria a ser

claramente condicionada. A consideração teórica desse ponto será

fundamental, no próximo capítulo, para a proposta de ampliação da teoria das

finanças funcionais.

No gráfico abaixo buscamos ilustrar as conclusões desta seção. À

esquerda do ponto de restrição externa, o país estaria solvente e poderia

expandir o nível de atividade, mesmo que eventualmente sofra pressão cambial

decorrente de uma NFEDcp positiva. Se isso acontecer o governo pode tentar

aumentar o incentivo à entrada de capital externo de longo prazo via melhoria

nas perspectivas de crescimento econômico, via, por exemplo, uma política

fiscal expansionista. Outra política que pode ser muito eficaz em atrair capital

de longo prazo é tornar o câmbio real mais competitivo via uma desvalorização.

Se os capital externo de longo prazo não responder bem a essas medidas o

governo poderá ele próprio captar financiamentos externos para aumentar as

reservas e assim intervir nos mercados de câmbio quando surgir tendências à

desvalorização. Dessa forma, o país poderá eliminar a NFEDcp positiva ou

financiá-la com emissão de dívida pública no exterior, sempre que o nível de

atividade estiver à esquerda no ponto de restrição externa.

No gráfico abaixo, a seta em curva tenta mostrar a capacidade do

governo em levar “deslocar” o nível de atividade que delimita as regiões onde a

NFEDcp passa a ser positiva para o ponto de restrição externa.

É importante notar que há no gráfico uma taxa de juros de longo prazo

estrutural mínima que deve ser respeitada para que o país possa manter a

NFEDcp não-positiva. A manutenção de taxas de juros menores do que essa

por muito tempo fariam com que o saldo de empréstimos de longo prazo se

tornar suficientemente negativo para dificultar o país manter a NFEDcp não-

positiva, mesmo se o país estiver solvente. No próximo capítulo, buscaremos

explicar o porquê da existência dessa taxa mínima estrutural de juros de longo

prazo e como ela seria determinada.

O ponto onde o nível de emprego e a taxa de crescimento seriam

maximizados no nível de atividade dado pelo ponto de restrição externa com a

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204

taxa de juros mínima de longo prazo. Quanto menor a taxa de juros, maior é a

competitividade do país e maior é a taxa de crescimento das exportações,

portanto, mais rápido se desloca o ponto de restrição externa.

A definição desse ponto depende do critério de solvência que o país

precisa cumprir no momento (DCC ≤ 0 ou taxa de crescimento das exportações

é menor ou igual à taxa de crescimento das importações). O nível de atividade

pode ultrapassar esse ponto, mas nada garante que o país conseguirá atrair o

capital de longo prazo que permitirá uma suficiente imunidade a ataques

especulativos decorrentes de NFEDcp persistentemente positivas. Nesse

ponto, as metas de inflação e a estabilidade econômica geral estariam em

risco.

y

j insolvente

solvente

ponto de restrição externa

DCC 0 ou

%Exp % Imp

Pleno emprego

j = %Exp

insolvente

j mín. estrut

NFEDCP 0

SETA: Políticas de expansão econômica, emissão de

dívida pública no exterior, manutenção de um diferencial mínimo estrutural e utilização da política monetária e de reservas para impedir que o processo de deslocamento

da NFEDcp 0 para o ponto de restrição externa implique em pressão cambial suficiente para colocar em risco as metas de inflação ou câmbio

Ponto de maximização da taxa de crescimento

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205

3.6.2. Política cambial e creditícia

“Um dos problemas mais vexatórios da teoria econômica é a explicação de como se forma a taxa de câmbio. Num mundo sem surpresa, em que todo o futuro fosse absolutamente transparente, em que todos os mercados fossem concorrenciais e instantaneamente equilibrados, em que o comércio de bens e serviços não sofresse qualquer restrição e a liberdade de movimento de capitais fosse absoluta, a taxa de câmbio se formaria como preço de uma mercadoria qualquer. (...) [Entretanto a]s nações não são espaços abertos que satisfazem a concepção dos economistas: são espaços fechados que freqüentemente se organizam em torno de projetos de poder interno e pretensão de poder externo, de acordo com sua capacidade de cooptar os nacionais e de impor sua presença ao não-residentes. As potências, na sua hierarquia, só aceitam a liberdade de comércio e de capitais quando já construíram um escudo defensivo que permite acomodá-la com a permanência e continuidade do seu poder político. É aqui que a ‘Teoria econômica’ tem de ser substituída pela ‘Economia Política’. Pois bem: o que a Teoria econômica não sabe sobre a taxa de câmbio, a ‘Economia Política sabe! Os países bem-sucedidos (a exemplo de Alemanha, Itália e Japão, depois da Segunda Guerra Mundial), a China e outros asiáticos mostraram que o desenvolvimento sustentado depende de um enorme esforço exportador com uma taxa de câmbio ligeiramente subvalorizada que permita rápida expansão das exportações e razoável acumulação de reservas capaz de blindar o país dos choques produzidos pelo comportamento de manada dos capitais internacionais” (Delfim Netto, 2004)

83.

Nesta seção, vamos discutir a importância da política cambial

para o tipo de inserção externa escolhido pelo país e sua taxa de crescimento.

A hipótese é que a escolha da política cambial acaba sendo determinante para

a taxa de juros de longo prazo obtida, a forma de financiamento do balanço de

pagamentos, a taxa de crescimento das exportações, e portanto, para a taxa

de crescimento econômico.

Essa hipótese é válida se o país adota liberdade de movimento de

capitais. Nesta seção, estaremos trabalhando com a premissa de liberdade de

movimento de capitais. Não faremos isso porque essa política seja mais

desejável do que o controle de capitais. De fato, o controle de capitais é o ideal

83 Carta Capital 1º de dezembro de 2004.

Page 206: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

206

um país em processo de desenvolvimento, pois permite manter uma taxa de

juros muito baixa e estável e ter mais controle sobre o câmbio nominal e real.

Entretanto, pensamos que a liberdade de movimento de capitais é uma

opção de política tão difundida que é desejável utilizar o arcabouço das

finanças funcionais para compreender melhor a política econômica sob essa

condição, ainda que ela não seja a ideal.

3.6.2.1. Autonomia da política cambial

As perspectivas de valorização ou desvalorização do câmbio dependem

fortemente das políticas cambiais. A grande maioria dos governos é capaz de

escolher sua taxa de câmbio nominal dentro de uma grande faixa de variação

possível.

Qualquer país pode impedir que sua taxa de câmbio se valorize, assim

como pode desvalorizar sua moeda no montante que deseja. Os governo

emitem moeda. Dessa forma, podem comprar muito mais divisas do que o

volume que estiver à venda e, portanto, tem liberdade completa de impedir

valorizações e promover desvalorizações. Essa capacidade da política

econômica pode não ter respaldo suficiente em termos jurídicos ou políticos. A

Europa, por exemplo, tem encontrado dificuldades em impedir a valorização do

euro, porque seu Banco Central não tem como diretriz prioritária comprar

divisas de forma a manipular a taxa de câmbio. Por seu turno, o Japão tem

sofrido muita pressão dos EUA para que não impeça a valorização do iene.

Nos anos 80 os EUA pressionaram o Japão e a Europa a permitirem a

valorização de suas moedas.

Mas essas constatações, apenas confirmam a regra que queremos

ressaltar: a liberdade da política cambial é muito grande – principalmente na

direção da desvalorização.

Todavia, impedir desvalorizações ou promover valorizações pode ser

mais difícil, pois os governos não possuem uma oferta plenamente elástica de

moeda de outros países. Ainda assim, a grande maioria dos países é capaz de

impedir desvalorizações e até promover valorizações sustentáveis, pelo menos,

a curto ou médio prazo, mas muitas vezes também a longo prazo.

Essa capacidade decorre do grande poder dos Estados Nacionais sobre

as operações comerciais, financeiras e sobre as expectativas acerca das

Page 207: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

207

variáveis macroeconômicas que envolvem moeda nacional. Comprando e

vendendo divisas, manipulando taxas de juros, gastos públicos, tributação geral

e impostos específicos, alterando tarifas alfandegárias, coordenando

expectativas, os governos geralmente se tornam capazes de fixar e mesmo

decidir a variação do câmbio.

Entretanto, com freqüência, para impedir desvalorizações, os governos

precisa fazer usos de políticas que também tem outras funções e, portanto,

modificar outras variáveis econômicas. Alguns governos não precisam de

grande esforço para impedir desvalorizações, já outros podem ser obrigados,

nessas circunstâncias, a tomar medidas politicamente tão difíceis que preferem

aceitar desvalorizações que comprometam suas metas de câmbio ou inflação.

As perspectivas de evolução do câmbio dependem assim

fundamentalmente do poder e da disposição do governo em definir os limites

para flutuação livre da taxa de câmbio sem ser obrigado a enfrentar dilemas

(trade-offs) políticos importantes.

Praticamente todos os governos na prática definem explícita ou

implicitamente tetos e pisos conjunturais para as taxas de câmbio. Os tetos são

definidos basicamente em decorrência do objetivo de controle da inflação.

Como vimos, taxas de inflação elevadas são decorrentes de desvalorizações

acentuadas ou cumulativas da taxa de câmbio. Dessa forma, o controle da taxa

de câmbio é fundamental para a manutenção inflação dentro das metas que o

governo define.

Os pisos para a taxa de câmbio são determinados basicamente pelo

objetivo de limitar o déficit em conta corrente ou para determinar um valor

mínimo para a taxa de crescimento das exportações. Essas variáveis são

fundamentais para a solvência externa do país e para determinação da sua

taxa de crescimento a longo prazo.

O câmbio é, portanto, uma questão de decisão política e não mais um

preço determinado pelo mercado.

Page 208: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

208

3.6.2.2. Política cambial e crédito de longo prazo

3.6.2.2.1. Moeda forte

O conceito de moeda forte é muito utilizado no jornalismo, nas finanças

internacionais em até em debates sobre relações internacionais. É um conceito

útil, se considerarmos que existe algum atributo teoricamente relevante que

diferencia o dólar, o euro e o iene de moedas como o peso mexicano e o real

brasileiro.

O conceito de moeda forte está ligado à propriedade dessa moeda como

ativo financeiro. Não há dúvidas de que é mais rentável guardar euros ou

dólares em um cofre por dez anos do que guardar reais ou outra moeda de um

país subdesenvolvido. Essa certeza decorre da crença generalizada de que

essas moedas se desvalorizarão a longo prazo em relação às primeiras.

Podemos concluir que, ao contrário do que, às vezes se pensa, uma

moeda não é forte quando está valorizada “em termos reais” em relação a

outras. Uma moeda é forte quando existe perspectiva de valorização

nominal a longo prazo dela em relação a outras. O que é muito diferente.

Geralmente uma moeda com perspectiva de valorização a longo prazo é uma

moeda desvalorizada “em termos reais”.

A força da moeda depende da expectativa de valorização nominal

esperada a longo prazo. Se houver um diferencial significativo de inflação

esperada entre os países, a força da moeda dependerá da capacidade e da

disposição do governo que possui taxas de inflação superiores em manter a

taxa de câmbio nominal estável, apesar da tendência a apreciação do câmbio

real.

3.6.2.2.2. Taxa de juros de longo prazo mínima

Vimos que a taxa de juros de curto prazo pode ser reduzida quando a

NFEDcp é não-positiva. Se essa variável for positiva haverá pressão para

aumento dos juros. Dessa forma, a taxa média mínima de juros de curto prazo

é resultado da freqüência e da intensidade das ocorrências de NFEDcp

positivas.

Page 209: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

209

A taxa de juros de longo prazo é uma expectativa média para as taxas

de juros de curto prazo dos períodos futuros mais um spread de risco. Essa

expectativa média é ponderada pela taxa de desconto, de forma a tornar o

futuro mais próximo mais relevante do que o futuro mais distante. Portanto, a

taxa de longo é muito dependente taxas básicas vigentes.

Assim, se a taxa de juros média mínima de curto prazo é resultado da

freqüência e da intensidade das ocorrências de NFEDcp positivas, a taxa de

juros média mínima de longo prazo também muito dependente desses fatores.

Essa explicação para a taxa de juros média mínima de longo prazo

poderia ser aperfeiçoada, se pudéssemos explicar a relação entre a taxa de

juros de longo prazo e essa freqüência de ocorrências de NFEDcp positivas.

Vimos que os empréstimos de longo prazo são relativamente sensíveis

ao diferencial de taxas finais de juros de longo prazo, apesar de não reagirem

tão rapidamente às mudanças nesse diferencial.

Na ausência de intervenção do governo nos mercados cambiais, a

relação entre a taxa de juros mínima de longo prazo e a freqüência em que

seria gerada a NFEDcp positiva dependeria da NFED. Uma NFED negativa

implica que o país não depende de empréstimos de longo prazo. Assim, a

princípio, enquanto a NFED for negativa, raramente ocorreriam episódios em

que a NFEDcp fosse positiva, se o saldo dos empréstimos de longo prazo

forem próximos a zero. Portanto, nesse caso, desde que não existam grandes

expectativas de desvalorização no longo prazo, a taxa de juros nominal de

longo prazo pode ser reduzida até se tornar inferior à taxa americana. O quão

inferior dependerá, além da já citada NFED, da internacionalização e da

competitividade do sistema financeiro nacional em conceder empréstimos

externos a longo prazo.

Essas conclusões seriam válidas se a moeda do país fosse forte. Se a

moeda for fraca, haveria um empecilho que dificultaria manter a taxa de juros

nominal de longo prazo abaixo ou mesmo iguail à taxa americana, mesmo se a

NFED puder ser mantida negativa.

Moedas fracas são aquelas que o mercado considera que a

probabilidade de desvalorização no longo prazo em relação à moeda central é

altíssima. Eventualmente poderiam ser caracterizadas como moedas que

precisam manter taxas de juros permanente e sensivelmente mais elevadas do

Page 210: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

210

que a taxa do país central. Essa proposição possui duas implicações.

Primeiramente, a expectativa de desvalorização significativa da moeda fraca a

longo prazo é muito confiável, pelo menos a taxas de juros similares. E mais

importante, aplicações de longo prazo na moeda mais forte a taxas de juros

equivalentes são mais rentáveis e menos arriscadas.

Dessa forma, à mesma taxa de juros nominal de longo prazo, o setor

privado em geral e principalmente os bancos tenderão a comprar grandes

quantidades de títulos de longo prazo no exterior.

Essa atitude, muito provavelmente implicaria em tendência à NFEDcp

positiva, mesmo quando a NFED for negativa. A taxa de juros de curto prazo

precisaria ser elevada com freqüência e não seria possível sustentar por muito

tempo uma taxa de longo igual ou menor do que a NFEDcp. Poderíamos assim

concluir que, na média, essa taxa precisará ser superior à americana, para que

a exportação de capital na forma de empréstimos de longo prazo fosse

ajustada às condições do balanço de pagamentos.

Porém, a taxa de juros nominal de longo prazo não precisa ser muito

superior à americana, mesmo se a moeda for fraca. Se a inflação for moderada

e esse diferencial for ligeiramente positivo, o volume de exportação de capital

na forma de empréstimos tende a ser moderado. Primariamente porque para

financiamentos de longo prazo o diferencial tem alguma relevância. Além disso,

o risco de curto prazo dessa operação pode ser alto, portanto, para boa parte

dos agentes só seria compensador, se não houvesse diferencial de juros de

longo prazo.

Se a moeda for fraca a taxa de juros nominal de longo prazo só

precisaria ser significativamente superior à americana, se a taxa de inflação

esperada para o futuro for significativamente maior do que a inflação nos EUA.

Porque esse diferencial de taxas de inflação é um importante critério para

formular as expectativas mínimas de desvalorização a longo prazo. Uma

grande diferença esperada entre as expectativas mínimas de desvalorização

esperadas que não é minimamente compensada com um diferencial de juros

nominais, implicará que as aplicações em títulos de longo prazo em dólares

serão significativamente mais rentáveis e menos arriscados do que a aplicação

em títulos nacionais. Portanto, haveria uma demanda muito grande e uma

grande exportação de capital.

Page 211: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

211

Entre moedas fortes, esse diferencial positivo seria desnecessário e um

diferencial negativo seria sustentável. Porque não há uma posição tão

majoritária sobre qual seria a tendência a longo prazo de variação do câmbio

entre essas moedas.

Dessa forma, se o país é solvente, a taxa média mínima de juros

nominal de longo prazo é basicamente uma conseqüência da necessidade de

impedir a exportação de capital na forma de empréstimos externos de longo

prazo e não da necessidade de atrair financiamentos. Porque, sempre que o

país for solvente, é possível manter:

NFED – EEG 0

Onde:

EEG = empréstimos externos tomados pelo governo

Portanto, torna-se desnecessário sustentar um diferencial de juros de

longo prazo para induzir financiamento externo.

Se a moeda for fraca a taxa nominal de juros de longo prazo precisa ser

em média superior à taxa internacional para que a exportação de capital de

longo prazo não acabe tornando a NFEDcp maior do que zero84. Se a moeda

for forte, a taxa de juros mínima pode ser inferior à taxa de juros internacional,

desde que a NFED negativa, pois não faz sentido para o país tomar

empréstimos governamentais no exterior para depois o setor privado nacional

emprestar no exterior a taxas inferiores. O quão menor depende de diversos

fatores, como a internacionalização e a competitividade internacional do seu

sistema bancário.

3.6.2.2.3. Construção de uma moeda forte e de uma baixa taxa de juros

de longo prazo

84 Esses pisos se referem à moeda que utilizada como reservas cambiais. Caso o país não tenha uma política de reservas tradicional, a referência deverá ser o dólar. Essa referência é importante porque os tomadores privados de longo prazo desejam correr o menor nível de risco cambial possível. Se seu país adota uma determinada moeda como referência, essa é a moeda internacional que tem maior correlação com seus preços internos.

Page 212: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

212

A força da moeda pode ser construída. Se o governo desvaloriza o

câmbio para torná-lo competitivo e posteriormente fixa ou garante sua

estabilidade, poderá obter altas taxas de crescimento das exportações. Se

busca minimizar a taxa de juros também estará aumentando a competitividade

e a taxa de crescimento das exportações.

Nessas condições, atrairá uma grande quantidade de capital externo de

longo prazo e acumulará um volume crescente de reservas. Se a taxa de

crescimento das exportações for suficientemente elevada para permitir que o

país atinja um taxa satisfatória de crescimento econômico, não haverá qualquer

necessidade de desvalorização. Nessa situação, não haveria significativa

expectativa de desvalorização da moeda nacional. Pelo contrário, se o país

adotasse um regime de câmbio flutuante a tendência seria de valorização

cambial, devido principalmente à grande entrada de capital de longo prazo.

Essa conclusão é válida, mesmo se a taxa de inflação do setor de não-

importáveis no país for maior do que a taxa de inflação do setor de não-

importáveis da moeda central.

Dessa forma, o país pode construir a situação em que permitiria no

futuro ter uma moeda forte e, portanto, uma taxa de juros mínima de longo

prazo menor do que as taxas internacionais.

Entretanto, independentemente da moeda ser forte ou não, para que as

taxas de juros sejam efetivamente baixas, é necessário que o governo adote

políticas específicas que permitam que a taxa de juros de longo prazo atinja

esse mínimo. Essas políticas são, em primeiro lugar, manter o país solvente e,

em segundo lugar, garantir que não será necessário utilizar a taxa de juros

para atrair financiamento de longo prazo. Para isso é necessário manter:

NFED – EEG 0

As políticas de aumento da competitividade externa acima citadas, não

necessariamente serão capazes de tornar a moeda do país forte. Porém, elas

ainda assim permitem que a taxa de juros mínima de longo prazo possa se

reduzir. Porque aumentam a taxa de crescimento das exportações, melhoram a

solvência, tornam os IDE e os empréstimos de longo prazo mais seguros e

rentáveis em moeda estrangeira, permitem a acumulação de reservas e

reduzem o risco de pressão cambial em decorrência de uma NFEDcp > 0.

Page 213: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

213

3.6.2.2.4. Política cambial, competitividade e crescimento

Kaldor (1971) propõe a relevância da definição de dois tipos de modelos

de crescimento: liderado pelo consumo e liderado pelas exportações. O autor

aparentemente é inspirado nas diferenças entre os processos históricos de

crescimento da Inglaterra e Alemanha do pós-guerra.

Kaldor (1971) sugere que o crescimento liderado pelo consumo seria

menor do que o crescimento liderado pelas exportações. Esse resultado seria

decorrência de um maior crescimento da produtividade no segundo caso,

devido, entre outros motivos, a um maior nível de investimento e participação

na renda do setor industrial.

O autor diagnóstica que uma das principais causas desse resultado seria

o baixo incentivo à exportação em economias com crescimento liderado pelo

consumo. Ele propõe como remédio, que os países usem a taxa de câmbio

y

j insolvente

solvente

ponto de restrição externa

“Pleno emprego”

j = Exp%

insolvente

j dólar LP

j mín LP moeda fraca

j mín LP moeda forte

Políticas de competitividade

externa (principalmente

câmbio competitivo)

NFED – EEG 0

NFED 0 e moeda forte

Page 214: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

214

competitiva como ferramenta para aumentar esse incentivo às exportações e

conseqüentemente aumentar a rentabilidade do setor industrial no curto prazo,

seus investimentos, sua participação na renda e sua taxa de crescimento da

produtividade.

O modelo que Kaldor (1971) propõe é baseado em uma situação de

pleno emprego permanente garantido por políticas que, poderíamos dizer, são

muito similares às finanças funcionais de Abba Lerner.

Entretanto, o principal objeto deste trabalho são os países onde o pleno

emprego não pode ser atingido com tais tipos de política. Nesses países, os

incentivos à competitividade externa não precisam induzir o crescimento da

produtividade para que gerem uma taxa de crescimento maior no longo prazo.

A moeda do país desvalorizada em termos reais e os juros de longo

prazo reduzidos são incentivos fundamentais para a competitividade externa, e,

portanto, afetam diretamente a taxa de crescimento das exportações e da

economia. Se incluirmos o efeito que Kaldor levanta, essas variáveis se tornam

ainda mais importantes. Kaldor propõe que quanto maior o crescimento das

exportações, maior é o crescimento da produtividade e, portanto, mais

rapidamente cresce a competitividade externa do país. O mesmo poderia ser

dito com relação à taxa de crescimento econômico. Quanto maior é tamanho

futuro esperado de uma economia, maiores são as perspectivas de ganhos de

escala que aumentam a competitividade das exportações e viabilizam a escala

mínima para diversas atividades. Portanto, quanto maior a taxa de crescimento

esperada maiores são os investimentos que destinam parte da produção para

exportação e maiores são os investimentos em substituição de importações.

Vimos acima que as baixas taxas de juros de longo prazo dependem da

manutenção da solvência externa e da força da moeda. Vimos também que

esses atributos podem ser em grande parte construídos com um câmbio real

competitivo e estável.

As baixas taxas de juros também aumentam a competitividade externa

do país, via redução dos preços de oferta das empresas nacionais, aumento na

capacidade de investimento em atividades não relacionadas a atendimento da

demanda interna como P&D e exportações e aumento da capacidade de

financiar aos clientes em comparação a concorrentes externos.

Page 215: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

215

O foco da política de deslocamento da restrição externa será elevar a

taxa de investimento em novos setores industriais ao máximo. Quanto maior é

essa taxa de investimento nesses setores, mais rápida é a taxa de crescimento

das exportações e de substituição de importações.

As políticas cambial e creditícia estão relacionadas com essa a política

industrial de inclusão de novos setores industriais. Se o país mantém o câmbio

suficientemente competitivo, a instalação de novos setores é viável, porque o

país terá custos trabalhistas inferiores aos das nações que dominam tais

setores. A partir desse ponto, poderá ser mais importante para o país garantir a

estabilidade do financiamento externo ao crescimento econômico

acompanhada da instalação desses setores do que buscar ganhos adicionais

de competitividade que possam colocar em risco a estabilidade da taxa de

juros, seu baixo custo e a taxa de investimento em novos setores85. Porque a

taxa de investimentos nesses setores será o principal determinante da taxa de

crescimento das exportações86.

Dessa forma, poderíamos concluir que uma política cambial que vise

manter o câmbio competitivo induzirá um processo de “causação circular

cumulativa” entre a taxa de juros de longo prazo, a taxa de investimento em

novos setores, a taxa de crescimento das exportações e o crescimento

econômico geral.

85 Nessa situação, pode ocorrer o seguinte dilema: (1) Manter uma política de desvalorização sucessiva para garantir o câmbio real relativamente constante, mesmo se a inflação não estiver comprometendo os níveis mínimos desejados de competitividade ou (2) manter o câmbio nominal estável e só alterar, quando for sentida a necessidade de melhorar a competitividade. É provável que o câmbio real seja em média mais competitivo no primeiro caso. No segundo caso, os juros de longo prazo serão menores em média. É provável que, no segundo caso, taxas de juros de longo prazo e de inflação menores impliquem em prazos de financiamentos maiores e, portanto, o haveria um incentivo adicional ao crescimento dos investimentos em exportação. No primeiro caso, a indexação dos salários seria maior e o câmbio real não seria tão mais competitivo em média. Ademais, no segundo caso, a distribuição de renda seria melhor e, provavelmente, crescente. 86 Para manter esse tipo de investimento elevado, é aceitável inclusive que o governo desrespeite temporariamente os indicadores de solvência, quando as importações de bens de capital para as indústrias de exportáveis forem a causa do déficit. Nessa situação, se necessário, o país não teria dificuldade de melhorar esses indicadores, bastaria reduzir levemente a taxa de crescimento ou fazer uma desvalorização do câmbio.

Page 216: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

216

Capítulo 4: finanças funcionais sob restrição externa

A primeira lição de Lerner que Forstater (1999) ressalta é: “Pleno

emprego, estabilidade de preços e um padrão de vida decente para todos são

metas macroeconômicas fundamentais e é responsabilidade do Estado

promover sua obtenção”.

Partindo desses princípios, buscaremos construir um arcabouço de

finanças funcionais que seja compatível com a situação de restrição externa.

Em restrição externa o pleno emprego pode não ser alcançável apenas com as

políticas originalmente propostas por Lerner. Dessa forma, as finanças

funcionais deveriam sugerir a maximização da taxa de crescimento do

emprego.

Para isso, nessas condições, são necessárias políticas industriais, de

crédito e de manutenção de câmbio competitivo para deslocar a restrição

externa; políticas para gerir o movimento especulativo de capitais e a atração

de financiamento de longo prazo para administrar a pressão cambial; políticas

para ampliar a infra-estrutura; e políticas sociais para garantir “um padrão de

vida decente para todos”.

Dessa forma, na medida do possível, vamos utilizar o arcabouço

desenvolvido até então para explicar como cada uma dessas políticas pode ser

incorporada coerentemente dentro de uma visão de finanças funcionais para

maximizar a taxa de crescimento do emprego sob condições de restrição

externa.

Entretanto, precisamos fazer uma importante ressalva. O foco principal

desta tese é sugerir soluções para as deficiências das finanças funcionais em

condições de restrição externa, portanto, procuramos concentrar os esforços

propositivos deste trabalho sobre as questões da inflação, câmbio e juros.

Assim, as políticas de administração da pressão cambial, de controle da

inflação, de crédito e de câmbio real receberam maior atenção.

As políticas industrial, de infra-estrutura e social também são

fundamentais para ao conjunto, mas elas, particularmente as duas últimas, não

fazem parte das contribuições desta tese. As conclusões tiradas nas seções

Page 217: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

217

específicas sobre essas políticas são mais corolários das propostas gerais do

que discussões aprofundadas sobre os temas. Não há qualquer pretensão aqui

de esgotar ou aprofundar o debate nesses assuntos. Pretendemos apenas

interpretar essas políticas a partir do arcabouço de finanças funcionais

desenvolvido. Mas nada sugere que outras propostas de políticas industriais,

de infra-estrutura ou sociais não possam ser compatíveis com as finanças

funcionais.

4.1. Por uma proposta de ampliação das finanças funcionais

A primeira coisa que precisa estar claro sobre a versão das finanças

funcionais que vamos propor aqui é que ela é muito coerente com as metas de

política econômica de modelos históricos bem-sucedidos de desenvolvimento.

Kaldor (1971: 155-6), utilizando o exemplo da Inglaterra, sugere que as

principais democracias européias no pós-guerra definiram e perseguiram metas

macroeconômicas de: (1) pleno emprego, (2) saldo em conta corrente, (3)

crescimento econômico e (4) crescimento dos salários.

Kaldor não cita nesse ponto uma meta de inflação. Porém, isso não

significa que controlar a inflação não fosse uma meta prioritária, mas, muito

provavelmente, porque a meta de inflação é desnecessária quando se tem uma

meta de câmbio nominal muito bem definida, como naquela época. Em outro

ponto do mesmo artigo, Kaldor (idem: 157) ressalta que foi também objetivo

assegurar uma “razoável estabilidade de salários e preços” e que “increases in

the general level of wages must be related to increased productivity.

Segundo Kaldor (1971: 156), naquela época, os líderes dos principais

partidos e o público consideravam “that Governments can, and should, assume

responsibility for the ‘management of economy’; and that ‘successful

management’ comprises the simultaneous attainment of at least the four major

objectives”.

Partindo da proposta de Finanças Funcionais, algumas questões

emergem imediatamente dessas proposições de Kaldor: porque seria

necessária uma meta de conta corrente? Como atuar nas metas de

crescimento e nas metas de crescimento de salários?

Page 218: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

218

Lerner (1951) sugere duas metas para o governo: (baixo) pleno emprego

e estabilidade de preços. Lerner não tem maiores preocupações com o saldo

em conta corrente. Para ele, bastaria o câmbio flutuante para que o balanço de

pagamento se mantenha equilibrado.

O câmbio flutuante não era uma opção plena disposição no período em

que Kaldor estava analisando, portanto, uma meta de conta corrente poderia

ser necessária para condicionar a política de demanda doméstica. Essa meta é

importantes para garantir que o país se mantenha relativamente imune a crises

cambiais e suas conseqüências negativas.

No entanto, apesar do câmbio fixo, as políticas de manipulação da

demanda doméstica (monetária e fiscal) que Lerner recomenda foram por si só

capazes de gerar os níveis de emprego e estabilidade de preços visados pelas

finanças funcionais.

As políticas sugeridas pelas finanças funcionais foram, em geral,

capazes tornar o baixo pleno emprego uma realidade nos países

desenvolvidos. Porém, Kaldor (1971) considera que as metas de crescimento

obtiveram resultados muito díspares nesses países. A Inglaterra em particular

obteve resultados dinâmicos muito inferiores a seus principais vizinhos

continentais. Para Kaldor, essa constatação implicaria que essas metas teriam

sido insatisfatoriamente atendidas na Inglaterra da época.

De acordo com o autor, esse resultado seria conseqüência da utilização

de um número de instrumentos de política econômica muito pequeno para

tantas metas.

A finanças funcionais, a princípio, sugere três instrumentos: política

fiscal, política monetária e política cambial (câmbio flutuante). Desses, os

países europeus do pós-guerra utilizaram continuamente de forma ativa

apenas os dois primeiros. A política de câmbio fixo (ou quase) foi um

instrumento importante para o controle da inflação, mas não teve flexibilidade

suficiente para buscar a atender também a outras metas.

Segundo Tinbergen (1952, apud Kaldor, 1971: 158), para atingir um

determinado número de objetivos, o governo precisa operar pelo menos um

conjunto igual de instrumentos. Somente em circunstâncias excepcionais um

instrumento poderia atingir mais de uma meta simultaneamente.

Page 219: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

219

Supondo que a política de câmbio fixo foi suficiente para manter a

inflação sob controle, mas não possuía outros objetivos, as políticas de

demanda agregada ficaram sobrecarregadas pelas outras 4 metas. Kaldor

(1971: 160) sugere que a meta de crescimento ficou comprometida.

“My basic contention (...) is that by choosing the control of the pressure of demand through fiscal management as the centerpiece of an economic structure which has involved a slower rate of growth in our productive potential than was both possible and desirable. (…) My main criticism (…) of the post-war policies of economic management [inglesas] is that it treated the problem of full employment and (implicitly) of growth as one of internal demand management, and not one of exports and of international competitiveness”.

Kaldor parece estar querendo dizer que as políticas de crescimento da

demanda doméstica não são as mais eficazes para induzir o crescimento.

Como o país tem uma meta de saldo em conta corrente, o crescimento

econômico depende do crescimento das exportações. Portanto, basear-se

apenas nas políticas de estímulo à demanda doméstica não é a melhor solução

para atender à meta de crescimento.

Kaldor (1971) diferencia entre dois tipos de políticas de crescimento:

liderada pelo consumo e liderada pelas exportações. No primeiro caso, o

governo utiliza como instrumento basicamente as políticas de demanda

doméstica. No segundo caso, o governo utilizaria, se necessário, também

políticas de incentivo às exportações. Kaldor (1971) sugere principalmente

utilizar a política cambial para manter as exportações competitivas e uma alta

taxa de crescimento da produtividade. Mas poderíamos dizer que a política

industrial pode também ter um importante papel em aumentar a

competitividade.

No momento, o que mais nos interessa nessa tipologia são seus

resultados propostos. Kaldor sugere que o crescimento baseado no consumo

implica em menor crescimento da produtividade (competitividade externa) e,

portanto, menor taxa de crescimento das exportações e menor taxa de

crescimento da economia, dada a meta de saldo em conta corrente87.

Seguindo a terminologia de Kaldor, em contraposição à classificação da

Inglaterra do pós-guerra de crescimento liderado pelo consumo, poderíamos

dizer que a Alemanha e o Japão poderiam ser tidos como economias com

87 Essa conclusão seria válida especialmente para uma situação de pleno emprego permanente induzido pelas políticas fiscal e monetárias. Se não há pleno emprego, um câmbio competitivo pode induzir uma maior taxa de crescimento no longo prazo, mesmo se não houver nenhum crescimento da produtividade.

Page 220: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

220

crescimento liderado pelas exportações88. O mesmo poderia ser dito para os

tigres asiáticos em um período posterior e a China hoje.

Objetivamos aqui, propor uma releitura das finanças funcionais que

possa incorporar os aspectos comuns positivos dessas experiências. Como

Kaldor, em comparação a política econômica que se concentra basicamente

nos instrumentos típicos das finanças funcionais original, consideramos que

essas experiências onde as exportações lideram enfrentam de forma mais

adequada a restrição externa e, por essa razão, permitem alcançar taxas de

crescimento superiores. Essa conclusão é especialmente importante para

países não desenvolvidos, onde nem mesmo as metas de pleno emprego com

estabilidade de preços podem ser alcançadas e, portanto, a meta de

crescimento é muito mais urgente do que na Inglaterra do início dos anos 70. A

meta de crescimento, nesse caso, pode ser corolário simplesmente do objetivo

de alcançar o pleno emprego o mais rápido possível.

Certamente essas experiências de crescimento liderado pelas

exportações são muito diversas tanto em resultado alcançado, quanto em nível

de democracia, distribuição de renda, inserção externa e modelo de

desenvolvimento. Porém, tem em comum duas coisas que são fundamentais à

nossa proposta. Em primeiro lugar a disposição de adotar políticas

expansionistas para reduzir as taxas de desemprego e aumentar a renda

nacional e em segundo lugar a consciência da importância de utilização,

quando necessário, das políticas comerciais, industriais e manter o câmbio

desvalorizado (quando possível) para deslocar a restrição externa, e assim

possibilitar o crescimento com o mínimo de pressão cambial.

As diferenças, por outro lado, são muitas, o que não é incoerente com a

proposta de Abba Lerner para as finanças funcionais. As finanças funcionais

foram criadas apenas para tornar as políticas governamentais mais racionais e

coerentes com a hipótese levantada por Keynes, entre outros, de que o

desemprego crônico seria uma situação possível.

Se um país pode atingir o pleno emprego apenas com políticas de

demanda doméstica e câmbio flutuante, as finanças funcionais alcançam seus

88 Convém lembrar que em alguns países, como a Alemanha e Japão, podemos considerar que a meta de baixo pleno emprego foi ultrapassado sem implicar em inflação aceleracionista. No terceiro capítulo, buscamos explicar que esse resultado pode ser possível em situações de câmbio fixo ou estável.

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221

objetivos. Porém, como vimos no terceiro capítulo, os países subdesenvolvidos

são exemplos de situações onde o pleno emprego não pode ser atingido

somente com essas políticas. Nesse caso, elevar a taxa de crescimento passa

também a ser um objetivo e as finanças funcionais precisam incluir novos

instrumentos. Novos instrumentos também, poderiam ser buscados em países

que já atingiram o pleno emprego, ainda que apenas para manter essa

conquista. Vimos que Kaldor (1971) sugere que a Inglaterra deveria ter adotado

mais instrumentos para alcançar metas mais ambiciosas de crescimento.

Políticas funcionais se viabilizam quando o governo é capaz de

transformar seus objetivos-fins em objetivos-meio instrumentais que são os

critérios que permitem a comparação e avaliação dos resultados.

As propostas de Lerner são funcionais para os objetivos de pleno

emprego e estabilidade de preços. Lerner sugere que elas seriam também

coerentes e funcionais para qualquer regime de distribuição de renda

imaginado. Lerner utiliza essa hipótese para não se envolver com essa

questão89.

As Finanças Funcionais partem dos “desejos sociais” considerados

consensuais: pleno emprego e estabilidade de preços90. A proposta de Lerner

visa apenas dar coerência à política econômica, liberando para outros

economistas ou para os políticos a decisão sobre temas que ele consideraria

mais particulares, polêmicos ou dependentes de juízos de valor não

consensuais. Ele queria que as finanças funcionais não fosse estigmatizada

como posição política específica e se tornasse um critério racional de decisão

para os governantes independentemente de seu posicionamento91.

Lerner (1951) não defende nenhuma composição específica entre

gastos públicos ou privado, ou nível de taxa de juros ou de câmbio real. O autor

quase certamente era consciente do impacto que as essas variáveis têm sobre

a distribuição de renda. Por mais que ele desejasse manter a teoria das

finanças funcionais “neutra” em relação à distribuição de renda, a distribuição

89 Lerner se dizia socialista e defendia mais igualdade de renda, porém suas finanças funcionais não se posicionam quanto a isso (Scitovsky, 1984: 1547; 1549-54; 1559-61 ). 90 Economistas ortodoxos não-keynesianos muitas vezes não assumem o pleno emprego como meta. Mas não porque ele não seja desejável. Fazem isso simplesmente porque consideram que o nível máximo de emprego pode ser alcançado independentemente da ação do governo. 91 Aparentemente esse resultado deveria ser alcançável, entre os keynesianos e qualquer um que considerasse que o desemprego crônico fosse possível.

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222

não era neutra às diferentes composições da demanda agregada e à taxa de

juros.

Lerner (1951; 1972), porém, não pôde se manter completamente alheio

à questão da distribuição de renda. A teoria da inflação que sustenta as

finanças funcionais se baseia na idéia de que o aumento do poder de barganha

dos trabalhadores, quando ultrapassado o nível de baixo pleno emprego, não

pode alterar a distribuição de renda. Esse resultado é obtido, porque Lerner

supõe que os trabalhadores não aceitariam reduções em seus salários reais,

se ultrapassado o nível de baixo pleno emprego. Nesse caso, uma vez que

parte dos trabalhadores tem o poder de barganha aumentado devido à

“escassez” localizada de mão-de-obra, a inflação teria, para o autor, um

comportamento acelerativo, nesse ponto.

Como proposta de generalização das finanças funcionais para a

situação de restrição externa, este trabalho buscará fazer como Lerner e evitar

discutir diretamente metas de distribuição de renda. As políticas aqui

apresentadas terão como fim último de longo prazo unicamente as mesmas

duas conhecidas metas levantadas por Lerner em sua Finanças Funcionais.

Entretanto, não possível negar que as propostas desta tese sejam

neutras à distribuição de renda. Em primeiro lugar, procuramos mostrar que

ultrapassar o nível de baixo pleno emprego em uma situação de estabilidade

cambial pode implicar em melhoria na distribuição de renda, devido a um

provável crescimento dos salários acima da inflação nesse ponto.

Sugerimos que o governo deve expandir o nível de atividade para atingir

o nível de alto pleno emprego, se for possível. Se a aproximação do pleno

emprego não implicar em uma fragilidade externa que acabe causando uma

inflação acima do desejável, ele deve ser buscado. A estabilidade cambial é a

principal política sugerida nesta tese para o controle da inflação. Portanto, a

ultrapassagem do nível de baixo pleno emprego com a inflação controlada pela

taxa de câmbio tende a levar à melhoria na distribuição de renda.

Além disso, sugerimos a minimização da taxa de juros para aumentar a

competitividade externa e, assim, a taxa de crescimento. Essa política também

implica em melhoria na distribuição de renda.

Voltando ao Lerner, devemos ressaltar que o tipo de arcabouço de

política sugerido pelas finanças funcionais só pode ser adotado por inteiro. Em

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223

qualquer conjunto de políticas que se pretende funcional, devem prevalecer os

objetivos finais e os instrumentos não se confundem com os fins, portanto, uns

não podem ser incoerentes com os outros.

Nos países onde foram adotadas políticas similares, não existiam

compromissos rígidos com os meios, mas sim com as metas mais elevadas. O

que difere muito com certas experiências contemporâneas onde os meios se

tornam fins e justificativas enganosas para políticas de cunho invariavelmente

neoliberal, e, porque não dizer, conservador. Enquanto nos anos 50 e 60 se

buscava de forma flexível e oportuna objetivos de claro conteúdo e interesse

social como as melhorias de qualidade de vida, e o pleno emprego com

estabilidade de preços, hoje os governos fetichizam certos meios e os

perseguem sem qualquer questionamento, como metas rígidas de déficit

público, inflação, “credibilidade”, ser market friendly, ser um país “competitivo”

para atração de investimentos externos, ter as finanças “saudáveis”, realizar

certas reformas padrão etc.

A escolha entre essas políticas não pode ser feita de forma parcial, pois

assim a funcionalidade seria abandonada. Ela é antes de tudo uma escolha de

padrões de desenvolvimento, de projeto de nação e de inserção internacional.

Se o governo se compromete a perseguir os objetivos elevados de pleno

emprego e estabilidade de preços sem confundi-los com os instrumentos, ele

invariavelmente estará adotando em alguma medida as finanças funcionais.

Nesse caso, se o país sofre restrição externa, adotará um arcabouço de

políticas que é muito similar a este que vamos propor aqui. As diferenças entre

as políticas decorrerão basicamente dos condicionantes próprios de cada país.

Em particular, do posicionamento geoestratégico dependerá as condições do

balanço de pagamentos. A restrição externa é o mais forte condicionante dos

governos, mas ela impacta os países de forma muito diversa, gerando, em

países que adotam princípios mais objetivos, diferentes padrões de inserção

externa. Esses padrões determinarão o regime cambial e por conseqüência

toda estrutura de política econômica. Assim, as finanças funcionais sob

restrição externa precisam dar grande atenção a esse ponto. Dados os

condicionantes externos, as Finanças Funcionais estão completamente ligadas

à escolha do modelo de desenvolvimento e portanto de inserção externa.

Page 224: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

224

Lerner não se preocupou com isso porque não tinha em vista os

problemas do desenvolvimento. Seu objeto era a economia desenvolvida, os

EUA em particular. Por isso também não deu atenção à possibilidade do pleno

emprego não ser alcançável só com políticas de demanda. Pelo mesmo motivo

só deu no fim da vida maior importância ao fato de que a meta de inflação

poderia também não ser alcançada apenas com políticas de demanda

doméstica. E mesmo assim manteve-se completamente focado à situação

norte-americana.

Sob restrição externa, as políticas de demanda92 não são capazes de

alcançar o pleno emprego, portanto, as conclusões de Lerner não se aplicam.

Porém, seu método continua válido. É preciso propor políticas funcionais para

essa realidade diversa da focada por Lerner.

A dificuldade em acabar com o pleno emprego rapidamente com

políticas de demanda e outras questões típicas de países subdesenvolvidos

levantam outra questão muito importante e não tratada por Lerner.

O pleno emprego é desejável em grande parte porque ele pode garantir

renda e, portanto, condições mínimas de vida para todos. Se ele não pode ser

alcançado rapidamente, a necessidade de políticas de assistência social

compensatórias se torna muito maior. Isso é particularmente válido em países

subdesenvolvidos onde as condições mínimas de cidadania são mais

dificilmente alcançáveis para os desempregados, subempregados e

assalariados de baixa remuneração. Assim, para ser coerente com o desejo de

pleno emprego e para se adaptar à demanda por maior urgência na melhoria

das condições de vida em países subdesenvolvidos, as finanças funcionais

devem incorporar objetivos de assistência social.

Dessa forma, para que possam ser generalizadas para países

subdesenvolvidos e países que sofrem com restrição externa em geral, as

finanças funcionais precisam incorporar como objetivo-fim garantir condições

mínimas de vida para todos. Precisam também incorporar as premissas

teóricas de que o pleno emprego não pode ser alcançável apenas com políticas

de demanda e que para ser alcançado um conjunto de políticas muito mais

amplo do que o imaginado por Lerner precisa ser mobilizado. Esse conjunto de

92 Neste trabalho, quando nos referirmos a políticas de demanda, estamos querendo dizer: políticas de demanda doméstica.

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225

políticas precisa ser coerente entre si e funcional aos fins visados. Dessa

forma, o método das finanças funcionais implicaria necessariamente na

definição das políticas de inserção externa.

4.2. A proposta

“O preço pago [pela] despolitização da economia é a despolitização da própria política” (Zizek, 2003; citado na revista primeira leitura)

A versão original das finanças funcionais possui apenas dois objetivos:

pleno emprego e estabilidade de preços. A presente versão teria seis, que

serão desenvolvidos no texto abaixo:

1) Maximizar o emprego até os pontos de restrição de políticas. Os

pontos de restrição são níveis de atividade econômica potencialmente

alcançáveis cuja ultrapassagem implica em taxas de inflação superiores à

aceitável. Existem quatro pontos de dilemas de políticas: (a) pleno emprego, (b)

ponto de NFEDcp positiva, (c) ponto de limite da solvência externa e (d) ponto

de gargalo da infra-estrutura. O objetivos 2 a 4 que visam deslocar os pontos

de restrição ao mais rápido possível.

2) Deslocar o mais rápido possível o ponto de limite de solvência

externa.

3) Evitar a necessidade de redução do crescimento, impedir a

desvalorização acima da meta conjuntural, deslocar o mais rápido possível e

com os menores custos o ponto de pressão cambial positiva. Essa meta indica

quando e como agir, caso o país esteja sofrendo pressão para desvalorização

cambial superior ao desejado. Esse objetivo também pode ser expresso como

administrar a pressão cambial para tornar as desvalorizações acima do

aceitável menos prováveis, intensas e ou dolorosas.

4) deslocar o mais rápido possível o ponto de gargalo da infra-estrutura.

A princípio, esse objetivo poderia ser parcialmente tratado em termos dos

objetivos de deslocar a restrição externa e melhorar o padrão de vida da

população. De fato, a deficiência de infra-estrutura aumenta os custos

produtivos, impacta a competitividade externa, o custo de vida dos

trabalhadores e a oferta de infra-estrutura social. Porém, convém lembrar que

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226

gargalos de infra-estrutura podem também implicar em restrições físicas de

curto prazo. O caso mais evidente é a energia elétrica. Esse é um dos motivos

pelo qual é necessária a explicitação desse objetivo. Outro motivo é que as

políticas de infra-estrutura utilizam instrumentos bem específicos, que

influenciam o resultado de mais de uma das outras metas, e, portanto, seria

aconselhável que fosse especificado um objetivo-instrumental que sirva de

critério-síntese para avaliar sem grandes ambigüidades os resultados desses

instrumentos.

5) Impedir que a taxa de inflação se torne alta ou adquira inércia acima

do aceitável via definição dos pontos de restrição e das políticas adicionais

anti-indexação. Os outros objetivos também fazem parte da política anti-

inflacionária, pois ultrapassá-los significaria aceitar maiores taxas de inflação

do que as definidas por esse objetivo.

6) garantir condições mínimas de cidadania e melhoria contínua da

mesma para toda população. Atingir o pleno emprego pode ser uma forma de

generalizar condições mínimas de cidadania, se o salário mínimo garante

essas condições mínimas. Ficaria faltando talvez apenas certa infra-estrutura

social que só o governo pode prover. Lerner provavelmente não se preocupou

com essas questões porque o pleno emprego seria facilmente alcançável para

a realidade em que ele estava preocupado e porque a infra-estrutura social já

fosse adequada. Essa certamente não é a realidade em todos os lugares.

Em muitas situações, o pleno emprego não pode ser alcançado devido à

restrição externa. Nessas situações, manter os objetivos e o método das

finanças funcionais, tal como sugeridos por Lerner, implica em submeter um

grande número de políticas capazes de deslocar a restrição externa até que o

pleno emprego possa ser obtido.

Quando o pleno emprego não pode ser atingido, as finanças funcionais

precisam definir como meta maximizar a taxa de crescimento do emprego, para

que o objetivo final (pleno emprego com estabilidade de preços) possa ser

atingido no prazo mais curto possível.

Entretanto, esse objetivo não pode ser instrumentalizado com a mesma

facilidade proposta pelas finanças funcionais na sua forma original. Lerner

propõe a utilização apenas de políticas de demanda. Mas vimos que elas não

são suficientes para os problemas que propomos trabalhar.

Page 227: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

227

As finanças funcionais partem de dois objetivos muito precisos e que

podem ser atendidos ao mesmo tempo com um único instrumento. Um único

instrumento só pode atender a dois objetivos se ambos podem ser alcançados

ao mesmo tempo. Por sinal, a versão original das finanças funcionais supõe

que existe um ponto onde a meta de estabilidade de preços coincide com a

meta de desemprego. Esse é o ponto de baixo pleno emprego. Em trabalhos

posteriores, Lerner (1972; 1977a; 1977b; 1978; 1982) propõe que esses pontos

nem sempre coincidem.

Entretanto, em uma economia aberta essa coincidência pode não existir

no curto prazo. Ainda que possa ser uma meta a ser buscada para o longo

prazo. Nessa situação, visando seus fins no longo prazo, o governo precisa

definir metas de curto prazo para poder colocar em prática e avaliar

instrumentos operáveis no tempo presente.

Maximizar a taxa de crescimento do emprego é um meio para atingir no

futuro o pleno emprego. Porém, não é o que vamos chamar de um objetivo

instrumental. Objetivos instrumentais deveriam ser capazes de definir todos os

instrumentos que precisam ser usados e todas as situações onde os

instrumentos devem ser usados e onde não devem ser usados para o fim

proposto.

Apenas propor maximizar a taxa de crescimento não define quais

instrumentos e como usar. Sabemos que os instrumentos não podem ser

apenas as políticas de demanda, pois usá-las para aumentar a renda, sem a

preocupação com outras questões, pode levar o país a experimentar pressão

cambial significativa e, portanto, alto risco de crise cambial e inflação. Como

ficou evidente, é preciso que existam outros critérios determinando as políticas

de demanda.

O fim último da versão original das finanças funcionais é atingir o pleno

emprego com estabilidade de preços. Mas, no curto prazo, esse fim não é

alcançável, implicando que devem ser tomadas medidas para torná-lo viável.

Dessa forma, é preciso definir objetivos-meio instrumentais. Esse tipo de

objetivo seria o critério necessário para tornar essas medidas funcionais.

Antes disso, é preciso solucionar um problema. Baixas taxas de inflação

podem ser alcançadas em qualquer país. Porém, metas de inflação muito

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228

rígidas e exigentes podem ser um sério empecilho ao alcance do pleno

emprego com rapidez.

Essa conclusão decorre de duas coisas. Em primeiro lugar, os países

que sentem os efeitos da restrição externa estão sujeitos a crises cambiais,

que, muitas vezes, requerem desvalorizações cambiais mais fortes para serem

solucionadas. Se a meta de inflação for muito rígida, não será permitido

desvalorizações muito fortes e, portanto, as crises cambiais implicarão em

contenção de renda mais intensas do que seria necessário. Essa solução, além

de mais prejudicial para a população por elevar o desemprego, retarda o

processo de desenvolvimento.

Em segundo lugar, metas de inflação muito exigentes podem significar

estancamento do ajuste de preços relativos necessário à continuidade do

processo de desenvolvimento. O desenvolvimento não é um processo neutro,

sempre alguns extratos sociais ganham mais do que outros.

Salários e mesmo preços nominais são muito rígidos à queda. Dessa

forma, aumentos na participação de alguma parcela da sociedade na renda,

implica em algum aumento de nível geral de preços. Mas, se os salários reais e

preços relativos também forem rígidos à queda, tentativas de aumento na

participação de alguma parcela da sociedade na renda pode gerar dificuldades

em manter baixas taxas de inflação93.

Assim, quando o crescimento gera o aumento mais do que proporcional

da participação de algum segmento no produto – por exemplo, da renda

fundiária urbana – a tentativa do governo em manter metas de inflação muito

rígidas e exigentes poderá impedir mudanças nos preços relativos e implicar na

redução da taxa de crescimento e, portanto, em adiamento do momento em

que o pleno emprego poderá ser atingido.

Um fator que pode ter seus preços elevados no processo de

desenvolvimento é o trabalho. Altas taxas de crescimento implicam em

crescimento acelerado da demanda por mão-de-obra. Considerando que

alguns setores crescem muito mais rapidamente do que a média, alguns anos

de alta taxa de crescimento podem levar a esgotamento temporário dos

excedentes de trabalhadores de certas especialidades em certas regiões. Esse

93 As políticas de renda podem ser uma solução muito eficaz para conter a inflação, mesmo em situações onde esteja ocorrendo alterações na distribuição de renda.

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229

processo pode levar aumentos dos salários médios de forma a incentivar a

imigração de trabalhadores especializados e a alteração da estrutura de

formação profissional da força de trabalho local.

Se for ultrapassado o nível de baixo pleno emprego, e crescer o poder

de barganha dos trabalhadores, esses aumentos implicarão quase certamente

em aumentos reais de salários e melhorias na qualidade de vida no curto

prazo, enquanto a taxa de câmbio for estável. Esses aumentos poderão

implicar até mesmo em melhorias na distribuição de renda.

No longo prazo, a manutenção desse resultado depende de outros

fatores, como os juros reais, a taxa de crescimento da produtividade, da

estrutura de impostos, da sensibilidade da competitividade dos exportadores às

variações dos custos em dólar da unidade de trabalho, das diferenças de

competitividade externa entre os diversos setores exportadores94, de políticas

salariais, velocidade e tendência de ajuste dos investimentos às diferenças de

rentabilidade entre os diversos setores e empresas, da legislação trabalhista,

da organização dos trabalhadores etc.

É importante ressaltar a diferença entre essas proposições e o

pensamento tradicional. Esse último repete que a inflação é sempre associada

à piora na distribuição de renda em decorrência de “imposto inflacionário” e

que, portanto, menos inflação é sempre melhor. Porém, essa posição é um

equívoco. É possível que uma inflação um pouco maior possa ser

conseqüência de ajustes de curto prazo ou mesmo de longo prazo nos salários

reais acima da produtividade. Esse tipo de ajuste pode ser possível durante o

processo de desenvolvimento devido ao crescimento superior dos preços no

setor de não-importáveis, em decorrência do aumento dos salários nominais.

Esse caso seria possível quando (1) o crescimento da produtividade do

setor de importáveis fosse maior do que do setor de não importáveis. Essa é

uma situação empiricamente muito provável, porque em geral os setores mais

modernos, que mais sofrem pressão competitiva, que tem menor poder de

94 Setores exportadores mais competitivos podem suportar crescimento do custo unitário do trabalho em dólar, sem perder mercado. Se esses setores estiverem crescendo rapidamente, o aumento do custo unitário do trabalho em dólar não necessariamente dependerá do crescimento da produtividade das diversas indústrias, mas da alteração da estrutura industrial. A perda de saldo comercial decorrente dos setores que perderam competitividade com o aumento do custo do trabalho em dólar, pode estar sendo compensada pelo crescimento autônomo das exportações dos setores mais competitivos.

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230

impor preços (individual e setorialmente) e de maior conteúdo tecnológico são

os setores de importáveis.

É possível também quando (2) alguns setores exportadores tivessem

uma competitividade e uma taxa de crescimento de sua demanda externa

muito elevadas, ou se tivesse implantando para substituição de importações e

exportação setores com essas características. Nesse caso, a estabilidade

cambial permitiria que a taxa de crescimento do custo da unidade de trabalho

em dólar fosse relativamente alto e provavelmente maior do que o crescimento

da produtividade média dos setores de importáveis. É provável também que o

aumento do salário nominal seja maior do que a inflação.

O crescimento das exportações dos setores de alta competitividade e

alto crescimento da demanda externa permitiria que a solvência do país fosse

mantida apesar do crescimento dos salários em dólar e possivelmente também

do crescimento do salário real. Nessa situação, os setores pouco competitivos

aos poucos deixariam de ser produzidas, o que não comprometeria a solvência

se a taxa de crescimento das exportações de alguns setores for

suficientemente elevada. Isso aconteceria mesmo se o crescimento da

produtividade desses setores fosse reduzido95.

95 Dependendo de como se mede a taxa média de crescimento da produtividade, poder-se-ia dizer que na verdade a produtividade média estaria crescendo. Porém, esse pode ser mais um problema decorrente de definição pela descrição e não pela causa. Essa interpretação pode ser inadequada, porque poderia confundir as reais causas do processo. O salário real estaria crescendo porque os setores mais competitivos estão com altas taxas de crescimento das exportações e não necessariamente porque a produtividade desses ou de quaisquer outros esteja crescendo muito. Esse é o tipo de processo que explica o grande crescimento asiático nos anos 80 e 90. A mão-de-obra era barata e qualificada e implantaram-se indústrias com o mesmo maquinário europeu, japonês e americano. Como seria esperado, a produção nesses países seria muito mais competitiva. Dessa forma, o crescimento das exportações desses países dependia da taxa de crescimento dos investimentos nesses maquinários e não do crescimento de produtividade desses setores ou de outros setores. Por isso que talvez alguns autores ortodoxos chegaram a considerar, nos anos 90, paradoxal o crescimento asiático, por não ser decorrente de “aumento de produtividade”, mas de simples aumento de utilização de recursos, capital e trabalho. Em uma visão keynesiana ciente da restrição externa e das finanças funcionais não é nada paradoxal. Aliás, esse é o processo mais usual de desenvolvimento econômico. É muito importante deixar claro essas diferenças de definição, pois se for considerado que o crescimento dos salários reais só é possível em razão do crescimento da produtividade, uma das políticas prioritárias de um país subdesenvolvido seria o investimento em aumento de produtividade (como investimentos em P&D ou transferências tecnológicas para os setores que já dominam), enquanto a política prioritária deve ser instalação de novos setores. Investimento em pesquisa e desenvolvimento tem impactos mais lentos e deve ser prioridade principalmente para os países desenvolvidos que não tem outra solução para induzir o crescimento dos salários reais. Nos subdesenvolvidos é muito mais rápido, barato e viável instalar os setores já existentes nos desenvolvidos, aproveitando assim a grande competitividade decorrente de seus inicialmente baixos salários nominais em dólar. Imagina-se que ninguém acha que o grande

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231

Nessa situação, altas taxas de crescimento com estabilidade cambial

implicarão em algum momento em aumentos de salários. Esses aumentos não

implicarão em grandes mudanças de preços nos setores de importáveis, mas

serão facilmente repassados nos setores de importáveis. Dessa forma, o

aumento dos salários acima do crescimento dos preços é uma conseqüência

natural e desejável de altas taxas de crescimento e inevitavelmente pressiona

as taxas de inflação. Isso significa que processos de desenvolvimento

acelerado estão associados a taxas de inflação maiores do que as que podem

ser obtidas pelos países desenvolvidos maduros.

Como vimos, em casos como esse, as tentativas de manter metas de

inflação muito baixas e rígidas implicarão em redução da velocidade de alcance

do pleno emprego, da taxa de crescimento econômico, da taxa de crescimento

dos salários, da taxa de melhoria da qualidade de vida e talvez até da melhoria

da distribuição de renda.

Essas proposições não significam de modo algum que estejamos

dizendo que a inflação seja um bem ou que inflações muito altas não sejam um

problema que deve ser evitado. Consideramos que a fixação de tetos máximos

de inflação seja uma política absolutamente fundamental. Significam apenas

que metas muito rígidas e muito ambiciosas podem reduzir a velocidade do

processo de desenvolvimento e de melhoria das condições de vida, quando os

salários estão crescendo mais rapidamente do que os preços.

A adoção das finanças funcionais significa a adoção de um modelo de

desenvolvimento. Um modelo de desenvolvimento é um arcabouço de metas e

instrumentos que funciona como critério para escolha e avaliação de políticas

que serão implantadas em um processo que demanda um longo período de

tempo. Esse processo requer progresso contínuo sem retrocesso ou

paralisações muito extensas. Tais eventualidades podem significar perda de

legitimidade do esforço de desenvolvimento, acirramentos dos conflitos

políticos por pura questão eleitoral, queda de governantes comprometidos e

atrasos desnecessários ao alcance da situação de pleno emprego.

crescimento dos salários nominais em dólar e dos salários reais chineses decorre de um enorme investimento em pesquisa e desenvolvimento.

Page 232: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

232

Levar esses pontos em consideração significa que será critério

fundamental dos executores de qualquer plano de desenvolvimento garantir a

sustentabilidade político-institucional do projeto de desenvolvimento.

Isso significa manter baixo o risco de crises cambiais que possam levar

o país a ser obrigado a aceitar inflações muito acima do desejável ou que

possam levar a economia à recessão ou a baixas taxas de crescimento.

A recessão, além de atrasar o alcance do pleno emprego, também

sinaliza que as políticas adotadas não estão sendo eficazes e que poderiam e

deveriam ser questionadas. Ademais, reduz ou atrasa o volume de

investimento privado e, se decorrente de contração fiscal, atrasa os

investimentos públicos necessários ao bom andamento do projeto de

desenvolvimento.

A inflação envolve um problema político muito complicado. Partes

importantes da sociedade colocam a inflação como um grande mal. Realmente

quando essa atinge determinado ponto, torna-se inercial e só pode ser

reduzida com políticas heterodoxas, como a adotada no plano real. Altas

inflações criam grandes oposições políticas e indicam para a sociedade que o

projeto do governo está sendo mal-sucedido. As políticas usadas para baixá-la

quando essa atinge elevados patamares podem ter efeitos colaterais ainda

mais deletérios.

Controlar a inflação é o principal foco do objetivo 5. Mais

especificamente ele é definido como: impedir que a taxa de inflação se torne

muito alta ou adquira inércia acima do aceitável. Os instrumentos são: definição

da meta de inflação, definição de metas conjunturais para a taxa de câmbio,

definição dos pontos de restrição e políticas adicionais anti-indexação.

Os pontos de restrição são definidos a partir da taxa de inflação máxima

aceitável. As políticas anti-indexação são importantes porque a redução da

indexação na economia permite que pontos de restrição possam ser definidos

com taxas de crescimento mais elevadas. Essa conclusão decorre

basicamente do fato de que parte da inflação é apenas indexação. Se essa

parte é menor, as outras partes podem ser maiores mantido o mesmo nível de

inflação. A taxa de crescimento pode ser maior principalmente porque os

aumentos de custos em um setor se difundem mais lentamente.

Page 233: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

233

A principal causa de altas inflações são desvalorizações cumulativas

associadas à indexação da taxa de câmbio e dos salários. Elas acontecem

quando o governo tem pouco controle sobre a pressão cambial e é obrigado a

permitir taxas de desvalorizações maiores do que o desejável como forma de

reduzir tal pressão. O efeito da desvalorização sobre a pressão cambial

depende ainda de quão indexados estão os preços ao câmbio e os salários aos

preços.

A pressão cambial é mais intensa e de mais difícil controle nos

momentos de ataque especulativo. Esses momentos devem ser evitados para

que se reduza o risco do país ser obrigado a aceitar desvalorizações maiores

do que o desejável ou ter que adotar políticas recessivas para impedi-las.

Esses eventos só podem ser completamente prevenidos com controle de

capitais. Sob liberdade de movimento de capitais, o governo tem que atuar

para que as corridas cambiais tenham o menor custo possível em termos de

inflação e crescimento.

Assim o objetivo 3 é: evitar a necessidade de redução do crescimento,

impedir a desvalorização acima da meta conjuntural, deslocar o mais rápido

possível e com os menores custos o ponto de pressão cambial positiva. Essa

meta indica quando e como agir, caso o país esteja sofrendo pressão para

desvalorização cambial superior ao desejado. Os instrumentos principais são

oscilação da taxa de juros, oscilação da taxa de câmbio (se o câmbio for

flutuante), mudanças no regime cambial, venda de reservas, emissão de dívida

externa pública, ajustes nas normas e impostos sobre movimento de capitais,

outras normas de política monetária. Eventualmente podem ser necessários

ajustes na política de atração de capitais de longo prazo, como elevação do

diferencial médio de juros de longo prazo, no câmbio real ou nas expectativas

de crescimento econômico ou outras políticas que possam aumentar a atração

de capital de longo prazo.

No terceiro capítulo, vimos que a pressão cambial positiva persistente

decorreria de uma NFEDcp positiva. A NFEDcp é constituída de NFE e

financiamentos externos de longo prazo. Um maior crescimento econômico

aumenta a NFE, o que tende a aumentar também a NFEDcp. Porém, pode

aumentar os financiamentos concedidos ao país, porque a rentabilidade dos

investimentos externos diretos e dos investimentos em geral que tomam

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234

financiamento no exterior aumenta. Se esse segundo efeito for mais

importante, o crescimento reduzirá a NFEDcp e, portanto, a pressão cambial.

Entretanto, como vimos no capítulo anterior, os financiadores externos

não focam apenas a rentabilidade esperada. Eles também se preocupam com

o risco. O risco de um país depende de diversos fatores. Mas eles em geral são

sintetizados nos chamados indicadores de solvência. A solvência a longo prazo

de um país devedor poderia se comprometer se a taxa de juros do passivo

externo líquido ou se a taxa de crescimento das importações forem

consistentemente superiores à taxa de crescimento das exportações. Se o país

for um credor externo ou tiver uma NFE baixa em relação às exportações, pode

adotar uma taxa de crescimento maior do que a permitida por esses

indicadores por algum tempo sem risco de insolvência. Por outro lado, em

momentos de pouca liquidez internacional, esses indicadores podem não ser

condição suficiente para manter condições mínimas de crédito externo ou de

refinanciamento negociado.

O objetivo 2 visa incorporar essas questões. Assim, deslocar o mais

rápido possível esses pontos limites de solvência externa significa dizer que o

governo deverá induzir o crescimento das exportações e a substituição de

importações de forma permitir o crescimento mais rápido possível.

Como vimos, inflações altas podem ser evitadas simplesmente

mantendo taxa de câmbio estável. Entretanto, essa proposição não implica que

o governo não deva se preocupar com a elevação dos preços nos setores de

não-importáveis.

Se a meta de inflação for muito ambiciosa, a inflação no setor de não

importáveis poderia comprometê-la em determinadas circunstâncias96. Mas,

mesmo se não for tão ambiciosa, haverá situações onde possa ser necessário

adotar políticas de controle dos preços do setor de não-importáveis. Um

aumento dos custos nesse setor pode resultar em perda de competitividade

externa. Se essa perda for significativa, o país poderá ser obrigado a

desvalorizar a taxa de câmbio o que pode implicar em uma alta taxa de

inflação.

96 Não vamos dar maior atenção a esse ponto, porque metas de inflação muito ambiciosas podem comprometer o ajuste de preços relativos decorrente do crescimento e implicar em aceitação de taxas de crescimento inferiores ao desejável.

Page 235: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

235

Essas perdas de competitividade são mais prováveis em decorrência de

aumentos salariais. Aumentos de salários trazem melhorias nas condições de

vida, por isso, a princípio, deve-se vê-los com bons olhos.

Mas se forem decorrentes simplesmente de recuperação de perdas

decorrentes de aumentos do custo de vida, podem estar sinalizando a

necessidade de combater as fontes primárias de tal aumento de preços. O

aumento dos preços ou a piora na qualidade da oferta no setor de não-

importáveis pode ter impacto sobre o custo de vida dos trabalhadores. Esses

aumentos no custos de reprodução da força de trabalho podem ser

conseqüência, por exemplo, de aumentos na renda fundiária urbana ou nas

tarifas de serviços públicos.

Certamente a renda fundiária urbana tem um impacto direto sobre a

inflação muito menor que os salários, pois ela corresponde a uma fração da

cesta de consumo, e é muito menos importante do que o trabalho para os

custos de produção. Porém, em certas situações de alto crescimento pode

resultar em perda de competitividade, se o câmbio permanecer estável. O

impacto sobre a cesta de consumo pode induzir maiores demandas sobre

aumentos de salários. Além disso, pode ter também algum impacto direto sobre

o custo de alguns setores, particularmente serviços, comércio e transporte

urbano.

A renda fundiária urbana e outros custos decorrentes da aglomeração

produtiva e populacional podem ser reduzida com maiores investimentos em

infra-estrutura urbana.

Educação também é infra-estrutura econômica. O crescimento acelerado

pode fazer os salários nominais de algumas categorias subirem muito

rapidamente no curto prazo, aumentando a inflação ou reduzindo a

competitividade externa, mesmo se grande parte da população ainda estiver

desempregada ou subempregada e miserável. Essa situação pode ser

esperada quando a fração da população educada e qualificada for

relativamente pequena.

Os custos dos serviços públicos também podem impactar a cesta de

consumo dos trabalhadores e a competitividade externa. Esse impacto pode

ser direto, via tarifas, ou indireto por má qualidade do serviço. Se a taxa de

crescimento for muito acelerada, esses fatores podem ser importantes.

Page 236: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

236

Nesses casos, melhorias na infra-estrutura podem ser importantes para

manter o padrão de vida dos trabalhadores em um nível desejado e a

competitividade externa adequada.

Por último, convém lembrar que o investimento em infra-estrutura pode

ainda ser importante para se evitar restrições físicas ao crescimento. Falta de

energia elétrica é uma restrição desse tipo que pode emergir de forma mais

óbvia.

A partir dessas proposições, definimos o objetivo 4: deslocar o ponto de

gargalo de infra-estrutura. Esse ponto, se ultrapassado, resultaria em

deficiências de infra-estrutura que poderiam gerar crises de racionamento,

perda de competitividade externa e eventualmente elevações acima do

desejável na cesta de consumo dos trabalhadores.

Os pontos de restrição são todos definidos a partir da meta de inflação

definida pelo objetivo 5. O ponto de restrição que corresponde ao mais baixo

nível de atividade econômica potencial indicará a renda máxima alcançável por

período. Cabe assim, ao governo usar políticas de demanda para alcançar o

objetivo 1: maximizar o emprego até os pontos de restrição.

Por último, o objetivo 6 é definido como garantir condições mínimas de

vida e melhoria contínua da mesma para todos os cidadãos. A inclusão desse

objetivo é especialmente importante para países menos desenvolvidos onde o

pleno emprego só poderia ser alcançado após um longo processo de

desenvolvimento. É consenso que a sociedade não deve esperar muitos anos

para a construção de toda uma estrutura econômica, que gere um nível de

exportação e um coeficiente de importações que permitem o alcance do pleno

emprego, para então poder oferecer condições mínimas de cidadania a seus

membros menos favorecidos. Lerner (1951) não precisou se preocupar com

isso, pois no pleno emprego, supostamente as condições mínimas de

cidadania e renda seriam cumpridas com maior facilidade.

Esses seis objetivos instrumentais fundamentam uma proposta de

generalização das finanças funcionais. Essa proposta pretende tornar as

finanças funcionais válidas também para países em desenvolvimento e outros

países sensíveis à restrição externa. Esta seção e a proposta estão resumidas

no quadro a seguir. Nas próximas seções, detalharemos como esses objetivos

podem ser atingidos com os instrumentos de política econômica disponíveis.

Page 237: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

237

1 Maximizar o emprego até os pontos de dilema de políticas (a, b, c, d, e)

Instrumentos: política fiscal e monetária

6 Garantir condições mínimas de vida e melhora-las continuamente. Instrumentos: política de serviços públicos, de assistência social e complementação de renda para manter as condições mínimas de vida e de cidadania para aqueles que não puderam se beneficiar das políticas de emprego.

5 Impedir que a taxa de inflação se torne aceleracionista ou que adquira inércia em níveis elevados. Instrumentos: definição de tetos para a taxa de inflação e para a taxa de câmbio, utilização de instrumentos

anti-indexação

Pleno emprego efetivo

Baixa inflação

Garantir a sustentabilidade do

processo de desenvolvimento

a) Maximizar a taxa de crescimento no curto prazo, mantendo a inflação como prioridade secundária no curto prazo.

f) Em caso de crise cambial ela dever ser resolvida o mais rápido e com os

menores custos possíveis

e) Manter a inflação em

patamares controlados

d) Manter baixo o risco de crise cambial grave

b) Manter baixo o risco de crises por deficiência de infra-estrutura

Garantir um processo contínuo de melhoria das condições mínimas de vida para todos, sem retrocessos ou paralisações

significativas

4 Deslocar o mais rápido possível o ponto de gargalo da infra-estrutura (a, b, e) Instrumentos: política de infra-estrutura

3 Administrar a pressão cambial (a, d, e, f) Instrumentos: política de juros (conjuntural e tetos estruturais), política bancária (conjuntural), política cambial (conjuntural), política de reservas, política de endividamento externo público e privado.

c) Não comprometer os indicadores de

solvência

Objetivos fins de curto prazo: 2 Deslocar o mais rápido possível o ponto de limite de solvência externa (a, c, e) Instrumentos: política industrial, tecnológica, cambial (pisos) e creditícia (testos estruturais)

Objetivos-meio não-instrumentais de curto prazo: Objetivos-fins de longo prazo:

Objetivos-meio instrumentais de curto prazo: Finanças Funcionais generalizada

Page 238: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

238

No gráfico abaixo, buscamos ilustrar o impacto da esperado dessas

políticas sobre a economia. As políticas de administração da pressão cambial

buscam manter a taxa de câmbio dentro dos patamares desejados. A

estabilidade cambial decorrente de tal política é importante para manter a

inflação controlada e o capital externo de longo prazo seguro. Essa política visa

ainda induzir a capitação de financiamento externo de longo prazo para evitar

que o crescimento econômico torne o fluxo estrutural de divisas negativo (i.e., a

NFEDcp > 0), enquanto o país ainda está solvente. Essa política está

representada pela seta à esquerda abaixo do gráfico.

As políticas que visam ampliar as exportações e substituir importações

estão representadas pela seta branca. Elas visam impedir que o crescimento

econômico comprometa os indicadores de solvência do país. A manutenção da

taxa de juros de longo prazo em seu patamar mínimo é uma das mais

importantes políticas desse tipo. Essa política está representada no gráfico pela

reta pontilhada paralela horizontal. O objetivo, no longo prazo, desse tipo de

política é tornar o país solvente ao nível de demanda agregada de pleno

emprego.

As políticas de infra-estrutura estão representadas pela seta à direita

abaixo do gráfico. Elas visam evitar riscos de que gargalos de infra-estrutura

causem perdas de competitividade, impacto sobre os salários e restrições

físicas ao crescimento. No longo prazo, objetivam construir uma infra-estrutura

compatível com o nível de atividade de pleno emprego.

Page 239: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

239

4.3. Política anti-inflacionária

O pensamento tradicional propõe políticas de contração de demanda

doméstica como solução contra a inflação. As versões mais radicais desse

pensamento sugerem, por vias um tanto tortuosas, que políticas de demanda

doméstica nem mesmo afetam o nível de atividade, mas apenas os preços.

Essa idéia certamente não é coerente com a perspectiva keynesiana que

adotamos em todo o trabalho.

Políticas contracionistas, de fato, podem ter algum impacto na redução

da inflação. Mas esse impacto em geral não é direto. Em economias abertas,

esse papel nunca é independente da taxa de câmbio. Grandes manipulações

da demanda agregada podem ter impacto direto de apenas alguns pontos

percentuais na taxa de inflação por período. Entretanto, o câmbio pode ter

impactos muito maiores. Ele é inevitavelmente uma âncora para os outros

preços. Nesse sentido, é de se esperar que o controle da taxa de câmbio seja a

política anti-inflacionária por excelência.

O controle da taxa de câmbio não é apenas mais eficaz, é

também menos custosa para a sociedade, portanto, mais eficiente. Políticas

fiscais contracionistas reduzem o nível de atividade, mas impõem diversos

danos. Elas aumentam o desemprego, podem reduzir os investimentos

y

j insolvente

solvente

ponto de restrição externa

“Pleno emprego”

j = Exp% insolvente

j mín. estrut

NFEDCP 0

Ponto de maximização da taxa de crescimento

Ponto de risco de gargalos na infra-estrutura Política de

administração da pressão cambial e financiamento a

longo prazo

Política de infra-estrutura

Política de deslocamento da restrição externa

Page 240: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

240

privados e ser efetivadas por via da redução da oferta de serviços públicos ou

de investimento governamentais.

As políticas monetárias contracionistas, além dos custos

elevados, têm a eficácia, na melhor das hipóteses, duvidosa. Em geral, a

demanda agregada é pouco elástica aos juros, sendo necessário grandes

movimentos nessa taxa para que possa surtir os efeitos desejados. De

qualquer forma, o efeito direto a médio e longo prazos é de aumento dos

preços, pois aumentam os custos financeiros e de oportunidade das empresas.

Novos investimentos são avaliados a taxas de desconto superiores e muitos só

serão viabilizados, se os preços usados nas projeções de receita forem

superiores.

Mas há um outro grande efeito negativo. O aumento dos juros reduz a

competitividade dos setores de importáveis e exportáveis do país. Esse

resultado se dá por diversos canais: (1) o aumento dos custos financeiros e de

oportunidade reduz a capacidade de baixar preços das empresas nacionais; (2)

reduz também os investimentos em atividades que não dependem do

crescimento da demanda da empresa ou que concorram com empresas

estrangeiras, como investimentos em inovação, diversificação, substituição de

importações, exportação e, portanto, reduz a capacidade de exportar e de

substituir importações; (3) reduz a capacidade das empresas nacionais

competirem com as estrangeiras no oferecimento de crédito aos clientes

internos e externos. Essa perda de competitividade significa piores níveis de

solvência externa no futuro para os mesmos níveis de renda e câmbio. Dessa

forma, implica em menos crescimento ou mais inflação.

As políticas de demanda não são um instrumento adequado contra a

inflação. Porém, essas políticas não podem ser alheias à política anti-

inflacionária. É necessário reconhecer que há efeitos potenciais indiretos das

políticas de demanda sobre a taxa de inflação. O nível de atividade pode ser

importante para o controle da taxa de câmbio.

No mundo moderno a inflação é um fenômeno onipresente. Todos

os países sofrem em todos ou quase todos os anos. O que é indesejável de

fato não é a inflação, mas uma inflação considerada alta. O nível de atividade

pode variar muito sem que a inflação se torne inaceitável. Em geral, ela atinge

essa situação, quando os preços, câmbio e salários se tornam amplamente

Page 241: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

241

indexados e mudanças de preços relativos podem aumentar os patamares da

inflação.

Dessa forma, torna-se fundamental definir tetos para a taxa de

inflação. A princípio, esses tetos já seriam justificáveis a partir das metas

originais das finanças funcionais. Porém, nos países onde essas metas só

podem ser alcançadas depois de um longo e difícil processo de

desenvolvimento, o teto para a taxa de inflação precisa ser relativizado. Tetos

muito baixos podem atrasar o processo de desenvolvimento. O objetivo

prioritário é atingir as metas das finanças funcionais (o pleno emprego com

baixa inflação) no menor tempo possível, mesmo que isso implique em aceitar

taxas maiores de inflação no decorrer da trajetória.

Entretanto, taxas muito altas também podem atravancar o

desenvolvimento. Quanto mais alta a taxa de inflação, mais reativos precisam

ser os diversos segmentos da sociedade para evitar perdas severas de poder

de compra. Nesse sentido, é fácil entender porque quanto mais alta a taxa de

inflação, mais indexada tende a ser a economia. A forte indexação da

economia causa diversos problemas. Ela dificulta acomodação da mudança de

preços relativos e da distribuição de renda. O crescimento acelerado implica

em mudanças de preços relativos. Portanto, nessas circunstâncias, pode levar

a taxas inflacionárias mais altas. Além disso, a indexação tende a tornar as

políticas de redução da inflação mais custosas em termos de perda de produto

para a sociedade.

Assim, definir tetos para a taxa de inflação é também uma política

anti-indexação. A política anti-inflacionária que propomos aqui, baseada no

método das finanças funcionais, é parcialmente uma política que visa impedir a

indexação de preços e salários e parcialmente uma política que visa impedir

aumentos generalizados de custos. Os aumentos generalizados de custos

devem ser evitados em primeiro lugar porque podem precipitar um processo

geral de indexação.

Na ausência de pleno emprego, os aumentos generalizados de

custos são causados principalmente por desvalorizações acentuadas, mas

também podem ser resultantes de deficiências de infra-estrutura. Existem dois

tipos básicos de deficiências de infra-estrutura que podem resultar em aumento

Page 242: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

242

de inflação: os gargalos de infra-estrutura física e a escassez de mão-de-obra

especializada nas regiões de maior crescimento.

Assim, como o aumento da indexação da economia, os aumentos

generalizados desses tipos de custos podem ser prevenidos no curto prazo a

partir da definição de um teto de inflação. A partir da previsão do impacto que

os gargalos possam ter sobre a inflação, a meta de inflação determinaria um

teto de renda aceitável por período.

Há limites para a taxa de crescimento das exportações e da substituição

de importações, assim como há limites para a taxa de crescimento da infra-

estrutura97. Dessa forma, taxas de crescimento muito altas podem significar

elevado risco de pressão cambial e de gargalos de infra-estrutura, e, portanto,

risco de aumento de inflação.

A definição do teto para a inflação determina os limites potenciais para o

nível de renda de duas formas diferentes. A primeira delas, indireta, passa pela

definição do teto da taxa de câmbio. A meta de inflação determina, de maneira

flexível, níveis máximos de desvalorização cambial aceitáveis por período. A

inflação só pode ser controlada se o câmbio é controlado. O câmbio é a

principal referência para todos os custos e preços e a arma mais potente contra

a indexação. Assim sustentar esses tetos cambiais são a principal arma anti-

inflacionária.

Entretanto, sustentar o câmbio pode não ser tarefa trivial. Se a pressão

cambial for muito alta, essa sustentação pode significar restrições ao

crescimento econômico. A desvalorização cambial reduz a pressão, mas pode

não ser suficiente para extingui-la, ou porque o teto de câmbio determinado

pelo governo não permite ou porque a indexação de preços e salários impede

que a desvalorização seja tão grande quanto necessário em termos reais.

97 A opção chinesa contemporânea de tentar, em termos, limitar a taxa de crescimento do investimento e do crescimento em geral é justificada em parte pela grande pressão que tal crescimento tem exercido sobre a infra-estrutura do país, que às vezes não cresce na mesma velocidade. Algumas regiões da China têm sofrido com dificuldades de oferta de energia elétrica. Nas grandes cidades a especulação imobiliária tem sido muito intensa, apesar das tentativas de combate por parte do governo. As maiores cidades chinesas já estão com custos de vida próximos às das grandes cidades do planeta. A demanda por engenheiros e executivos alterou completamente a distribuição de renda entre assalariados, e esses profissionais já estão recebendo remunerações próximas aos níveis internacionais, apesar do ainda baixo salário dos trabalhadores não-qualificados e das grandes reservas de mão-de-obra nas regiões rurais. Ainda assim, é preciso ressaltar, a inflação chinesa permanece reduzida, graças ao câmbio fixo.

Page 243: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

243

A desvalorização reduz a pressão cambial e permite que níveis de renda

mais altos sejam alcançados com níveis de pressão cambial reduzidos. Porém,

ela não impede a existência de limites ao nível de renda por período. Quando o

crédito internacional é escasso e o governo não pretende perder mais reservas

e desvalorizar mais o câmbio, esse limite é definido pelo ponto em que a

NFEDcp torna-se positiva. Quando o crédito internacional é normal, esse limite

é definido pelo indicador de solvência usado pelo governo e seus credores.

Assim a política anti-inflacionária é constituída basicamente na

definição de tetos de inflação, câmbio e nível de atividade. Além desses tetos,

a política anti-inflacionária dispõe de instrumentos de combate direto à

indexação. Esses instrumentos de combate à indexação podem ser

preventivos ou curativos. Como exemplos de instrumentos curativos temos o

congelamento de preços e salários, a desindexação de contratos e as reformas

monetárias baseadas em “trocas de moedas”. Essas trocas, em geral, são

feitas tendo como base uma referência de valor que era estável no período

inflacionário. Pode ser a moeda de outro país, uma mercadoria, indexadores de

preços ou formas mistas.

Instrumentos de combate à indexação preventivos podem ser

tabelamentos parciais de preços, políticas de renda e formas diversas de

desincentivo à elevação dos salários de certas categorias acima do aumento

médio das outras98. Lerner (1951; 1977a; 1977b; 1978; 1982) dá especial

importância a esses mecanismos.

Lerner e Colander (1980; 1982) propõem o plano MAP, no qual o

governo imputa uma penalidade sobre os agentes que aumentarem seus

preços. Para os agentes que reduzirem seus preços o governo concede títulos

que podem ser vendidos para os agentes que aumentaram seus preços

usarem como pagamentos de suas penalidades ao governo. A intenção é que

tal plano acabe tornando os preços relativos flexíveis e o índice geral de preços

estabilizado.

98 As políticas de renda são especialmente importantes. Porém, essas podem estar associadas a metas específicas de distribuição de renda. Vamos adotar a posição das finanças funcionais, tais como originalmente formuladas por Lerner, e buscar não aprofundar em políticas que envolvem metas de distribuição de renda. Todavia, essa é uma questão relevante e que pode ser avançada futuramente utilizando, em parte esse arcabouço.

Page 244: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

244

4.4. Administração da pressão cambial

[A discussão sobre a política cambial] é hoje muito pertinente, porque nenhuma "escola" sabe qual deveria ser o nível da taxa de câmbio nominal para atender ao presente e, mais importante, ao futuro do nosso desenvolvimento”

99

(Delfim, 2004).

Uma pressão cambial persistente acaba levando à inflação, a menos

que o governo tenha disponível um volume de reservas muito grande. Nesse

sentido a administração da pressão cambial é prioritária. Normalmente a

inflação é considerada um problema muito grave. Dessa forma, todos os

instrumentos de política econômica são normalmente considerados válidos

para a gestão da pressão cambial, incluindo as políticas fiscais e monetárias.

A administração da pressão cambial é muito complexa, pois essa é

formada por um conjunto de partes determinadas de maneira diversa e

relativamente independente.

Pressão cambial = NFEDcp – FFEcp = EEG – R–

Onde:

EEG = empréstimos externos tomados pelo governo

R– = compras líquidas de reservas cambiais pelo governo subtraídas

das compras mínimas planejadas.

NFEDcp = AmE + DCC – IDE – EElp + Rmín

Onde:

AmE = saldo das amortizações dívidas de externas pagas

DCC = déficit em conta corrente

IDE = investimentos externos diretos líquidos

EELP = saldo de empréstimos externos de longo prazo tomados pelo

setor privado

Rmín = compras mínimas de reservas cambiais planejadas pelo governo

para recompor reservas.

99 Delfim, Valor 15/02/2004.

Page 245: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

245

Os componentes da NFEDcp agregados por partes geram as seguintes

variáveis: necessidade de financiamento externa – NFE, necessidade de

financiamento externa por dívidas – NFED e por último a NFEDcp.

NFE = AmE + DCC + Rmín

NFED = NFE – IDE

A NFE indica o quanto de financiamento externo o país precisa para

pagar os bens, serviços e compromissos que tem com o exterior e para

acumular o volume mínimo de reservas desejado.

Esse indicador mostra a dependência do país de capital estrangeiro. Os

financiamentos externos dependem da liquidez internacional e da possibilidade

de crises cambiais. Assim, a NFE é um indicador apropriado da capacidade do

país resistir a crises e de honrar seus compromissos externos. Uma NFE

positiva indica que o país não pode prescindir de financiamento em moeda

estrangeira. Se há uma crise internacional que reduza as fontes de

financiamento externo, o país sofrerá mais fortemente as conseqüências,

podendo até se ver inadimplente. Por outro lado, se o país possui uma NFE

negativa, ele se torna independente de financiamentos estrangeiros e poderá

nem sentir os efeitos de crises internacionais, se o governo tem uma política de

emprego ativa.

A NFED indica o quanto de financiamento por empréstimos de longo

prazo e passivos de curto prazo em geral o país precisa atrair para honrar seus

compromissos com o exterior. Uma NFED não-positiva indica que o país não

precisa obter empréstimos externos e outros tipos de passivos de curto prazo

para financiar seu balanço de pagamentos. Por sua vez, uma NFED positiva

indica o contrário.

Na ausência de intervenção do governo nos mercados cambiais e nos

movimentos de capitais, uma NFED positiva indica que o país precisa manter

estruturalmente taxas de juros de longo prazo para títulos privados

suficientemente superiores à taxa de juros equivalente na moeda que usa

como reserva, para que possa atrair mais empréstimos externos do que

concede ao exterior. Assim, a NFED positiva normalmente indica uma

necessidade de juros superiores aos externos. Essa questão será melhor

desenvolvida na próxima seção.

Page 246: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

246

Mas podem existir situações onde seja necessário juros mais do que

simplesmente superiores aos juros internacionais de referência. Para entender

o porque é necessário ir além da análise da NFED. Assim, se somarmos à

NFED os empréstimos líquidos de longo prazo (acima de 1 ano) teremos uma

indicação da necessidade de financiamento de curto prazo (até um ano).

A necessidade de financiamento por empréstimos de curto prazo –

NFEDcp mostra o volume de empréstimos líquidos de curto prazo que o país

precisa tomar no exterior ou a venda de reservas cambiais que precisa fazer

para honrar seus compromissos com o estrangeiro, pois já considerou os

investimentos externos diretos e os empréstimos de longo prazo.

Se o país tem uma NFEDcp positiva, estará muito provavelmente em

uma situação financeira delicada, porque os empréstimos de curto prazo são

muito voláteis e dependentes das expectativas de desvalorização cambial.

Mesmo se o país capta um volume de empréstimos de curto prazo superior à

NFEDcp, sua situação poderá não estar muito melhor, porque, o país terá o

balanço de pagamentos financiado, mas muito possivelmente à custa de um

crescimento da dívida de curto prazo. Os especuladores cambiais vêem esse

processo com muita clareza. Para eles, manter o balanço de pagamentos

financiado à custa de aumento da dívida de curto prazo não faz o país melhorar

seu grau de risco cambial no curto prazo, pois o passivo acumulado se

transformará integralmente em obrigações e, conseqüentemente, NFEDcp

maiores no futuro próximo.

Pode ser que a NFEDcp seja tão pequena que uma simples

desvalorização cambial dentro de patamares que não comprometem as metas

de câmbio e inflação pode torná-la negativa. Nesse caso, dizemos que a

necessidade estrutural de financiamento externo com dívida de curto prazo

pós-desvalorização é negativa.

Como vimos no segundo capítulo, Lerner (1951) propõe que o câmbio

flutuante permitiria o alcance do pleno emprego com estabilidade de preços.

Poderíamos agora afirmar que essa proposição teria validade, se o país tivesse

uma NFEDcp pós-desvalorização negativa em situação próxima ao pleno

emprego.

Entretanto, se a NFEDcp pós-desvalorização for positiva, uma

desvalorização dentro dos patamares considerados aceitáveis não resolveria o

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247

problema da falta de divisas. Nessa situação, haveria a necessidade de

políticas fiscais contracionistas ou de juros ainda maiores. Quão maiores? Não

é possível saber antecipadamente com precisão, tudo dependerá das

expectativas de desvalorização, da liquidez internacional e da atuação do

Banco Central no sentido de manipular as expectativas de desvalorização e de

juros futuros.

Uma NFEDcp positiva mostra dependência do país em relação aos

voláteis empréstimos de curto prazo, geralmente associados a operações

especulativas com câmbio e juros ou operações de arbitragem viabilizadas por

taxas de lucro superiores à taxa de juros em empréstimos bancários com risco

de inadimplência ou investimentos em giro ou capital fixo.

Propomos, no capítulo anterior, que os passivos de curto prazo não

podem financiar por muito tempo uma NFEDcp positiva. Se é esperada uma

NFEDcp positiva mesmo após uma desvalorização dentro de patamares

aceitáveis, haverá pressão para elevação de juros no curto prazo e utilização

de políticas para reduzir a NFEDcp ou para emissão de dívida pública no

exterior.

4.4.1. NFEDcp, pressão cambial, juros e inflação: uma retrospectiva

Em um país com câmbio flutuante, a demanda líquida especulativa de

dólares dificilmente fica muitos dias positiva, porque o próprio movimento das

taxas de câmbio altera as hipóteses em que se baseiam os especuladores. Por

exemplo, se parte dos especuladores acha que os dólar vai subir até 2,90 no

prazo de uma semana e o câmbio, de fato, atingir esse valor, os especuladores

deverão supor novas hipóteses. Nesse processo de avaliar novas hipóteses a

maioria dos especuladores em potencial poderá não estar ofertando nem

demandando dólares. De fato, há momentos em que a especulação líquida em

determinada direção possui um valor muito baixo. Nesses momentos, os

especuladores estarão criando e testando hipóteses tanto de desvalorização

quanto de valorização.

Em uma situação de dúvida como essa, onde os especuladores, de uma

forma geral, não possuem uma opinião hegemônica sobre o movimento futuro

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248

do câmbio, o que determina a evolução da cotação do câmbio são contas

estruturais do balanço de pagamentos. Essas contas agrupadas na NFEDcp

são o saldo em conta corrente, os investimentos diretos externos e os

empréstimos de longo prazo.

Parte significativa dos empréstimos de curto prazo depende muito

fortemente das expectativas de desvalorização cambial, portanto, estamos

considerando-os aqui como parte dos movimentos especulativos de capitais.

Suponhamos um empréstimo externo de curto prazo tomado em dólar com

prazo de maturação de 3 meses, o rendimento anual desse título é de

aproximadamente 10% e o rendimento do tomador que aplicará o dinheiro será

de aproximadamente 20% anuais no Brasil100. O rendimento líquido do tomador

do empréstimo no período de três meses será de 2,2%. Ora, sabemos que

nossa taxa de câmbio pode variar muito mais do que isso no prazo de uma

semana, no prazo de 3 meses pode variar substancialmente mais.

Imediatamente percebemos que o risco dificilmente compensa tal

operação, a não ser se esse tomador estiver seguro de que o dólar se

valorizará ou no mínimo ficará com seu valor constante no período. Nesse

caso, podemos dizer que a operação descrita seja uma operação de altíssimo

risco cambial. Quem estiver disposto a realizá-la estará fazendo um grande

aposta sobre a taxa de câmbio, podendo ser considerado um especulador

cambial.

Entretanto, alguém poderia imaginar que esse tomador de empréstimos

externos poderia comprar um derivativo cambial e assim se proteger da queda

do dólar. A princípio poderíamos achar que essa seja uma operação viável,

mas isso não corresponderia à verdade, pois o custo de proteção cambial mais

o custo de captação em dólar para aplicações em moeda nacional é maior do

que o lucro esperado em uma operação desse tipo.

Não é viável proteger em dólar um investimento de aquisição de títulos

nacionais que rendem juros básicos. Essa proposição pode ser compreendida

a partir dos motivos pelo qual alguém oferece proteção cambial. Obviamente

quem oferece proteção cambial está se beneficiando dessa operação. Existem

100 Em praticamente qualquer outro país do mundo esses valores seriam significativamente menores.

Page 249: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

249

agentes econômicos que oferecem proteção cambial porque possuem ativos

em dólar de baixa liquidez e que não podem se desfazer deles. Entretanto, a

grande maioria dos ofertantes de proteção cambial são o que se chama

convencionalmente de arbitradores.

Quando o custo de proteção cambial está muito elevado, os arbitradores

enxergam uma boa oportunidade de lucro. Nessa situação, eles tomam

emprestado em reais e compram ativos em dólar de baixo risco que tenham um

bom rendimento ao mesmo tempo que vendem dólar no futuro para quem está

comprando proteção cambial.

Mantendo a mesma situação econômica de nosso exemplo anterior,

podemos dizer que o arbitrador conseguirá pegar emprestado à taxa mínima de

20% e poderá aplicar em títulos em dólar que rendem no máximo uns 10%. Se

ao mesmo tempo venderem dólar no mercado futuro com um rendimento acima

de 10% poderão obter lucro em uma operação sem risco.

Quem comprar dólar futuro desse arbitrador estará conseguindo

proteção cambial. Entretanto, o custo de proteção cambial nesse exemplo será

de mais de 10%. Ora, com um custo de proteção cambial de 10% não é

possível lucrar em operações de arbitragem de juros onde se toma emprestado

no exterior a 10% e aplica-se no país a 20%.

Assim não existem operações com arbitragem internacional de juros de

curto prazo, onde ambas as partes que viabilizam a operação tenha posições

não arriscadas ou não especulativas. As únicas operações viáveis de

especulação com diferencial de juros são: (1) as operações onde quem está

tomando recursos no exterior está pelo menos parcialmente desprotegido na

aplicação no mercado interno, ou seja, está especulando que o câmbio ficará

constante101 ou valorizará; ou (2) quando os especuladores, também

apostando na valorização, aplicam grandes volumes na venda de dólar futuro;

essas decisões podem reduzir o valor desse ativo futuro e assim viabilizar uma

operação de arbitragem pelos bancos que se baseia em ficar vendido em

títulos em dólar e comprado em títulos públicos e dólar futuro; ou (3) quando

quem está tomando emprestado no exterior está aplicando a taxas superiores

ao que os arbitradores podem tomar emprestado. Esse terceiro caso só é

101 Quando o câmbio é fixo essa é uma operação comum.

Page 250: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

250

possível se o operador for um banco que pode emprestar a taxas superiores à

dos outros agentes econômicos, ou uma empresa que está utilizando os

recursos para investir. Entretanto, os bancos só podem fazer isso emprestando

ao setor privado, ou seja, assumindo operações com risco de inadimplência.

Nesse sentido, podemos sugerir que, com exceção dos especuladores

que apostam diretamente na valorização ou estabilidade cambial e dos

tomadores que assumem diretamente pelo menos algum risco cambial, os

empréstimos internacionais existem mais devido à diferença internacional entre

os spreads de taxas de juros de longo prazo do setor privado do que pela

diferença entre as taxas de juros básicas.

Dessa forma, se mudarmos nossa premissa inicial de que os

especuladores cambiais não chegaram a uma opinião dominante sobre as

expectativas de desvalorização; mais precisamente, se supusermos que as

expectativas hegemônicas sejam de valorização cambial, os especuladores

fariam aumentar significativamente o passivo de curto prazo assumido pelo

país. Isso acontece de duas formas: (1) diretamente, os especuladores tomam

emprestado em dólar e aplicam no Brasil, ou (2) via compra de dólar futuro. O

crescimento da demanda por dólar futuro reduz seu preço viabilizando,

operações de arbitragem pelos bancos que podem vender dólar futuro

enquanto tomam emprestado em dólar e aplicam em títulos públicos ou outras

aplicações em reais.

Como vimos, a entrada de capital externo de curto prazo depende das

expectativas de desvalorização. Na verdade, para sermos mais precisos, o que

mais importa para o volume de especulação cambial é mais a expectativa

sobre a pressão cambial, pois essa sintetiza as expectativas de desvalorização

e de variação dos juros. Mesmo quando o mercado acredita que o governo seja

capaz de manter a taxa de câmbio fixa; e, portanto, não haja expectativa de

desvalorização; haverá possibilidade de lucros extraordinário ou de evitar

prejuízos extraordinários com operações que significam saída de capitais, se

houver expectativa de aumento significativo da pressão cambial.

Sabe-se que na situação de pressão cambial o governo tem três

respostas imediatas: permitir a desvalorização, aumentar os juros e vender

reservas. Considerando que a última possa ser uma solução não disponível por

muito tempo, o mercado geralmente esperará nessa situação pelo menos

Page 251: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

251

alguma das duas primeiras. Assim, em caso de expectativa de pressão cambial

significativa, (1) valerá à pena para o detentores de títulos prefixados de longo

prazo e ações venderem tais ativos e comprarem outros com menor

possibilidade de perda em maior rentabilidade esperada no curto prazo. Em

geral esses ativos serão denominados em moeda estrangeira, pois esses são

imunes à elevação da taxa de juros e dão bons rendimentos em caso de

desvalorização. A outra operação (2) que seria induzida pela expectativa de

pressão cambial é a compra de dólar futuro. Se há pressão cambial, os

detentores de dólar futuro ganham com a desvalorização, mas ganham

também se o governo mantiver o câmbio fixo e aumentar a taxa de juros.

Há momentos em que os especuladores cambiais acreditam

hegemonicamente na desvalorização, há momentos em que acreditam

hegemonicamente na valorização, e há momentos em que não há posição

majoritária. Assim há momentos em que existe uma demanda especulativa

líquida positiva, negativa e próxima de zero.

Assim, sempre existirão momentos onde o valor da NFEDcp será maior

do que o movimento especulativo de capitais e os empréstimos de curto prazo

tomados pelo país. Portanto, sempre ocorrerá situações onde o movimento da

taxa de câmbio será determinado pela NFEDcp. Ou seja, na ausência de

intervenção do governo, uma NFEDcp positiva leva à desvalorização do

câmbio, e uma NFEDcp negativa leva à valorização do câmbio.

Ainda que uma NFEDcp positiva possa levar diretamente a uma

desvalorização, esse é um processo suave, se comparado a um ataque

especulativo gerado pela concentração das expectativas de desvalorização em

um determinado momento. Entretanto, uma NFEDcp positiva pode gerar um

ataque especulativo. Suponhamos inicialmente que não haja expectativas de

desvalorização dominantes e que a NFEDcp seja maior do que os empréstimos

líquidos de curto prazo tomados no exterior. Nessa situação, o sinal da

NFEDcp vai determinar se a demanda líquida por dólares é positiva ou

negativa e, portanto, vai determinar a evolução da taxa de câmbio.

Dessa forma, as expectativas de desvalorização, que estavam bem

divididas, se desbalancearão, pois os especuladores que suspeitavam que o

câmbio se desvalorizaria terão suas expectativas confirmadas e investirão

pesadamente na compra de dólares. Os especuladores que acreditavam que o

Page 252: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

252

câmbio se valorizaria passariam a ter maiores dúvidas quanto a suas

expectativas. E os especuladores que não tinham opinião formada, cada vez

mais, passarão a formular expectativas de desvalorização.

Assim, aceitando que sempre existem momentos em que a especulação

líquida e os empréstimos de curto prazo tomados sejam inferiores à NFEDcp,

se a NFEDcp manter o mesmo sinal por algum tempo, ela acabará

determinando a evolução da taxa de câmbio. Uma NFEDcp negativa levaria à

valorização do câmbio, enquanto uma NFEDcp positiva levaria à

desvalorização do câmbio, e até mesmo a um ataque especulativo.

Se o câmbio flutuante, como sugeriu Lerner (1951), fosse capaz de

resolver as dificuldades do balanço de pagamentos sem que se perdesse o

controle da taxa de inflação e sem que fosse necessário impor restrições às

políticas monetária ou fiscal; poderíamos dizer que as proposições de Lerner

implicariam em uma NFEDcp sempre negativa após as desvalorizações.

Em oposição, pode-se dizer que uma NFEDcp pós-desvalorização

positiva leva a uma taxa de juros elevada ou a uma necessidade de políticas

fiscais recessivas. Definimos anteriormente uma NFEDcp pós-desvalorização

como sendo a expectativa para a NFEDcp para o caso onde a taxa de câmbio

se desvalorize ao máximo que o governo considera aceitável para suas metas

de câmbio ou inflação. Se ela é negativa, seria esperado que desvalorizações

aceitáveis no câmbio tornassem negativa uma NFEDcp inicialmente positiva,

mas se a NFEDcp pós-desvalorização for positiva, desvalorizações aceitáveis

não tornariam a NFEDcp negativa.

O conceito de NFEDcp pós-desvalorização pode ser útil, porque ajuda a

diferenciar os casos onde valeria o otimismo de Lerner em relação ao câmbio

flutuante dos casos onde esse otimismo não é justificável. Esse otimismo é

válido quando um país que possui uma NFEDcp pós-desvalorização negativa,

pois não precisa se preocupar em elevar suas taxas de juros ou adotar políticas

recessivas ou buscar capital externo em caso de sofrer pressão cambial, basta

apenas permitir que o câmbio flutue.

Se isso não acontece, ou seja, se a NFEDcp pós-desvalorização for

positiva, há o risco do câmbio se desvalorizar além das metas do governo, ou

iniciar um processo retro-alimentável com a inflação de preços e salários.

Nessa circunstância o governo será obrigado a agir para impedir essa

Page 253: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

253

possibilidade. Adotando políticas fiscais ou monetárias recessivas ou buscando

atrair capital externo.

Nessa situação, torna-se necessário a utilização de políticas ativas de

administração da pressão cambial. Há três formas de administração da pressão

cambial:

i) financiamento de curto prazo da NFEDcp

ii) financiamento da NFE Dcp com dívida externa pública

iii) redução da NFEDcp

Nas próximas seções, mostraremos como funcionariam essas políticas

de administração da pressão cambial.

4.4.2. Financiamento de curto prazo da NFEDcp: solução ágil mas temporária

Como vimos, a NFEDcp determina a tendência da pressão cambial e,

portanto, a necessidade de perda de reservas ou de desvalorização cambial.

Manter a NFEDcp reduzida é, portanto, tarefa de todos os governos.

Financiar a NFEDcp por tempo razoável com dívidas de curto prazo ou

perda de reservas tende a ser inviável. Por mais que se eleve a taxa de juros,

as FFEcp serão sempre fortemente dependentes das expectativas de

valorização cambial. Como vimos, a elevação dos juros atrai capital

principalmente porque cria a expectativa que eles reduzirão no futuro. Assim,

se o governo reduzir a taxa, os especuladores realizam lucros e saem. Se a

pressão cambial não se arrefecer e, consequentemente, as expectativas de

queda dos juros ou elevação do câmbio não reduzirem; os especuladores

também acabariam fugindo dos ativos nacionais, porque não haverá

expectativa de lucros extraordinários e será muito arriscado manter uma

posição com grande risco cambial e eventualmente risco de juros. O governo

tem poder para manipular as FFEcp no curto prazo, mas esse controle funciona

por um período curto, pois não é possível evitar a tendência à realização de

lucros ou de fuga de risco cambial e de juros.

Porém, como veremos na próxima seção, é muito difícil reduzir a

NFEDcp em prazos muito curtos. Mesmo quando essa seja uma política

Page 254: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

254

necessária, ela pode não ser viável a curto prazo. Por isso as políticas de

financiamento da NFEDcp via manipulação das FFEcp ou via venda de

reservas podem ser importantes no curto prazo.

As principais políticas para financiar a curto prazo a NFEDcp são:

1) desvalorização cambial102,

2) elevação da taxa de juros,

3) venda de reservas

Com efeitos parciais e pouco eficientes, há ainda as seguintes políticas,

que podem ser complementares às três primeiras em situações críticas:

4) a manutenção de elevados diferenciais de taxas de juros e

5) o oferecimento de subsídios à proteção cambial

4.4.2.1. Políticas mais adequadas para financiamento de curto

prazo da NFEDcp

“A desvalorização tem, em geral, antes de tudo, esse efeito imediato:

voltam os capitais que emigraram anteriormente, receosos ante a possibilidade

de seus lucros serem eliminados” (Kalecki, 1936: 70-1). Se o governo se

mostra capaz de impedir a continuidade da perda de valor da moeda nacional

depois que ocorre uma desvalorização significativa, as expectativas de

desvalorização serão menos majoritárias do que as expectativas de

valorização.

Na verdade, esse efeito pode ocorrer independentemente de

expectativas de desvalorização serem substituídas por expectativas de

valorização, ou seja, mesmo que a desvalorização seja vista como uma

mudança definitiva de patamar da taxa de câmbio. Uma vez conscientes do

estancamento do processo de desvalorização, os especuladores residentes –

que possuem boa parte de suas despesas e obrigações financeiras, comerciais

e fiscais em moeda nacionais –buscarão realizar seus lucros.

102 A função mais importante da desvalorização cambial é aumentar a competitividade do país e assim reduzir a NFEDcp. Porém, ela também pode ser usada para financiar no curto prazo a NFEDcp. Se o governo permite uma desvalorização e indica que essa desvalorização não será sucedida por outras, o país tende a trazer de volta em busca de realização de lucros, os capitais recém emigrados pelo temor da desvalorização. Pode também atrair capitais para aplicações em renda variável de atividades cuja renda é parcialmente indexada ao câmbio e cujos custos de aquisição não acompanharam a desvalorização da moeda.

Page 255: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

255

Outros especuladores buscarão ganhar com a menor pressão cambial

sobre a taxa de juros decorrente da desvalorização. A aceitação de uma

desvalorização “once for all” pelo governo tem um efeito parecido com a

elevação da taxa de juros sobre as expectativas de rentabilidade de títulos

prefixados e ações. Ambas políticas geram perdas sobre os investidores com

aplicações em moeda nacional, particularmente em títulos prefixados e ações

no caso da elevação dos juros. Porém, uma vez realizadas e disseminadas as

expectativas de que tais políticas não são mais necessárias, os especuladores

passarão a esperar que o câmbio volte a se valorizar ou que a taxa de juros

volte a cair. Nessas situações, surge a oportunidade de lucros extraordinários

com a aplicação em moeda nacional, particularmente em ações e títulos

prefixados de longo prazo.

Assim, a desvalorização cambial e a elevação dos juros, se conduzidas

de forma a coordenar as expectativas, são políticas eficazes para financiar a

NFEDcp. Mas por pouco tempo. [A atração de capitais de curto prazo

decorrente da desvalorização] é, evidentemente, um efeito de uma só vez”

(Kalecki, 1936: 70-1). Os capitais atraídos por essas políticas de coordenação

de expectativas tem horizonte de investimento de curto prazo; uma vez

confirmada suas expectativas, realizam seus lucros, invertendo o fluxo de

capital. Se não forem confirmadas suas expectativas, eles realizam o que

obtiveram (prejuízo ou lucro nulo), pois essas operações são muito arriscadas.

Outra política de financiamento da NFEDcp é a venda de reservas

cambiais. Se o país dispõe de um volume de reservas significativo, ele pode

financiar por algum tempo seu balanço de pagamentos dessa forma. Porém,

essa situação não pode ser indefinida, mesmo porque quando as reservas vão

se reduzindo os temores de desvalorização aumentam, podendo levar a um

ataque cambial e, assim, perda acelerada de reservas.

A alternativa é o governo tomar empréstimos no exterior para financiar

essa perda de reservas. Se esses empréstimos forem de curto prazo haverá

também uma limitação a curto prazo, pois o aumento do endividamento líquido

de curto prazo do país também acaba levando ao ataque especulativo. Se

forem empréstimos de longo prazo, a situação seria mais confortável. Essa

solução será discutida na próxima seção.

Page 256: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

256

É preciso sublinhar o seguinte ponto. A taxa de juros só deve reagir à

pressão cambial. Se houver uma expectativa de que ela reaja a outros

fenômenos, haverá crescimento da especulação cambial e muito

provavelmente da pressão cambial, toda vez que surgirem sinais que indiquem

a possibilidade de ocorrência desses outros fenômenos.

Uma regra tradicional de política monetária é reagir às possibilidades de

ultrapassagem de uma determinada meta de inflação. A taxa de câmbio é a

principal responsável por inflações elevadas. Mesmo quando não há indexação

do câmbio, desvalorizações geram aumentos de custos que têm impacto sobre

a inflação. Mas existem outros fatores que podem afetar os índices de preços.

Normalmente acredita-se que alguns desses fatores possuem uma importância

muito maior do que a real. Se o governo promete reagir ao aumento da

inflação, mesmo quando esse não for causado por aumentos da pressão

cambial, será obrigado a aumentar a taxa de juros toda vez que o mercado

imaginar ou especular que determinado fenômeno pode levar a aumento da

inflação, mesmo se os técnicos do banco central considerem que a inflação

está controlada.

Toda vez que o mercado imaginar que a meta de inflação corre o risco

de não ser cumprida surgirá a possibilidade de que as taxas de juros

aumentem. Se as taxas de juros aumentarem, ganha quem apostou em dólar

futuro e deixa de perder quem vender títulos prefixados de longo prazo ou

ações e comprarem, por exemplo, títulos ou ações estrangeiros. Os

investidores estrangeiros quando fogem de uma perda geralmente fogem para

a moeda de origem, que é sua referência de segurança. Portanto, a expectativa

de aumento dos juros tende a implicar em saída de capitais. Esse processo

pode acabar resultando em pressão cambial. Se a pressão cambial for

realmente significativa, aumentará o risco de ultrapassagem da meta e o

governo acabará sendo obrigado a elevar a taxa de juros. Assim, a

expectativas dos especuladores funcionarão, devido aos defeitos do sistema de

metas de inflação, como profecias auto-realizáveis.

Dessa forma, a política monetária estará tão mais sujeita aos humores

dos mercados quanto mais ambiciosa ou mais rígida for um meta de inflação.

Essa regra de política monetária estará assim induzindo o país a conviver com

taxas de juros médias mais elevadas desnecessariamente.

Page 257: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

257

Essas conclusões são válidas quando existe risco de desvalorização, ou

seja, para todos os casos de câmbio flutuante ou câmbio fixo com possibilidade

de desvalorização. Nesses casos, se houver expectativa de elevação de juros

e o governo não reagir rapidamente, aumenta a saída de capitais. Dessa

forma, se o governo divulga para o mercado uma função de reação que o

obriga a aumentar taxa de juros toda vez que houver sinais de ultrapassagem

da meta de inflação e, além disso, cria uma meta de inflação muito apertada e

rígida, sempre que houver sinais de inflação, o governo será induzido a elevar

a taxa de juros, pois caso contrário haverá saída de capitais e desvalorização

cambial. O interessante é que nas aparências parece que o mercado está

muito preocupado com o não cumprimento da meta e busca moedas com

maior “credibilidade”, quando há risco de descumprimento da meta, mas na

verdade os especuladores não estão preocupados com o descumprimento da

meta em si, eles estão preocupados em não perder e se possível ganhar

dinheiro com as sinalizações de modificações nos juros. Essa possibilidade de

perda e oportunidades de ganho são criadas pela própria função de reação do

banco central e não por um suposto risco de perda de credibilidade103.

O governo perde assim muito da sua capacidade discricionária de fazer

política monetária e acaba obrigado a manter taxas de juros médias superiores

103 Esse sistema é uma armadilha que o governo cria para si próprio. Em países com alta vulnerabilidade externa, isto é, sujeitos com muita freqüência à pressão cambial intensa, as necessidades de elevação de juros são muito maiores. Se acrescentar a isso outras funções para as taxas de juros ou uma meta de inflação muito apertada, a todo momento, haverá necessidade de elevação de juros para impedir a pressão cambial. Nesse sistema, crenças do mercado podem influenciar as “funções” que o banco central dá à política monetária. Se os especuladores majoritariamente imaginam que determinado evento implique em aumento da inflação, esse evento poderá resultar em aumento dos juros. Porque, se os especuladores supõem que a inflação tende a ultrapassar a meta e essa informação é difundida, esperarão que o banco central precisará aumentar a taxa de juros. Se anteciparem a esse evento, especularão contra a moeda nacional, tornando a pressão cambial positiva. A forma usual de resposta contra a pressão cambial é o aumento dos juros. Nessa situação, o banco central acabará tendo que responder com aumento de juros, quando essa possível “causa” for sinalizada. Se o Banco Central for dirigido com a mesma visão desses especuladores financeiros, poderá absorver essas crenças, incorporando novas “funções” para a política monetária. Assim podem ser criadas pelas convenções dos especuladores outras “funções” para a taxa de juros. Essa conclusão seria tão mais válida, quanto mais apertada é a meta de inflação. Certamente, essas novas “funções” podem ser facilmente eliminadas pelo governo, se ele faz uma política de administração cambial objetiva (funcional, no sentido de Lerner) e indica para o mercado quais são suas verdadeiras funções, não se deixando perturbar por qualquer movimento especulativo.

Page 258: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

258

ao que seria necessário para simplesmente manter a taxa de câmbio

estável104.

Podemos assim concluir que, sob liberdade de movimento de capitais,

deve-se evitar utilizar a política monetária como política de manipulação de

demanda doméstica105.

Assumindo como válida a hipótese de que, quanto mais baixos os juros

de longo prazo, maior a competitividade do país, essa escolha significaria

reduzir a taxa de crescimento do país a longo prazo106, e reduzir a própria

capacidade de gasto público no futuro.

Assim, a política de monetária deve ser basicamente usada contra a

pressão cambial e para favorecer a competitividade do país. O nível de

atividade deve ser controlado primordialmente com políticas fiscais. É

interessante notar que, ainda que por razões diversas, essa última conclusão

não é muito diferente da encontrada pelos velhos keynesianos, cujas teorias

serviram como fundamento para as políticas econômicas européias e

americanas na época de ouro do capitalismo107.

104 Apenas como ilustração, poderíamos sugerir que, para o caso brasileiro, há um complicador adicional. A dívida pública e mesmo a privada, em termos gerais, tem baixo risco de juros e o valor da dívida privada prefixada e do mercado acionário são relativamente pequenos. Assim, os efeitos-riqueza das variações da taxa de juros são muito menores. Como conseqüência, em caso de pressão cambial, o governo precisa realizar aumentos de juros muito superiores ao que seria necessário em outros países. Lagrota (2002) chega à mesma conclusão com uma argumentação um pouco diferente. Dessa forma, dado esse perfil da dívida, uma adequada gestão da política monetária implicaria que o governo deveria variar os juros com uma intensidade maior do que em outros países, para que possa gerar ganhos de riqueza suficientemente significativos para induzir a entrada de capitais. Particularmente, o governo precisa reduzir as taxas de juros com maior agilidade quando houver uma janela de oportunidade, pois a pressão cambial e as outras sinalizações de aumento da inflação são muito freqüentes. Como a necessidade de variação dos juros é muito maior aqui, se a taxa de juros for reduzida em velocidade similar à realizada pelos bancos centrais dos países desenvolvidos, o efeito riqueza será reduzido serão necessários muito mais meses ou anos para que seja alcançada uma taxa de juros adequada para momentos sem pressão cambial. Porém, dificilmente é possível manter, no país, muitos meses sem pressão cambial. Dessa forma, os juros se manteriam sempre com uma média muito alta. Esses efeitos apenas reforçam a conclusão de que as manipulações das taxas de juros devem ser reduzidas ao mínimo. 105 Essa proposição seria válida ainda que manipulações da taxa de juros fossem muito eficazes para controle do nível de atividade e que os juros mais elevados não tivessem impactos negativos sobre a distribuição de renda e sobre a competitividade do país. Uma exceção a essa proposição seria possível quando há uma razão muito boa para deslocar gastos privados e o aumento da tributação não pode ser utilizado. 106 Kaldor (1971) mostra que o crescimento das exportações é fundamental para o crescimento econômico. 107 Nesse período, havia controles de capitais e a política monetária não era necessária diretamente para administrar a pressão cambial. Esses autores consideravam que as manipulações da taxa de juros não

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259

4.4.2.2. Não existe diferencial mínimo para as taxas de juros no

curto prazo

Nessa altura, é necessário tecer algumas considerações adicionais

sobre a taxa de juros. Não demos até agora grande importância à possibilidade

de diferenciais mínimos para a taxa de juros de curto prazo, e apenas nos

referimos à necessidade de um diferencial mínimo estrutural para a taxa de

juros de longo prazo.

Buscaremos mostrar nesta seção que não existe diferencial mínimo de

taxas de juros de curto prazo. Geralmente há pisos conjunturais para a taxa de

juros nominal, o que difere de diferenciais mínimos, pois não é referido

diretamente a uma taxa de juros externa.

Não existe mínimo para o diferencial de juros de curto prazo porque o

que poderia limitar a queda dos juros, a pressão cambial, pode ser reduzida

com a manipulação dos juros, independentemente do patamar do diferencial.

De qualquer forma, os juros são uma solução apenas temporária contra

a pressão cambial, a solução definitiva é manter a NFEDcp menor ou igual a

zero ou emitir dívida pública no exterior.

Em geral, o fluxo de capitais que pode ser induzido apenas por

diferenciais entre as taxas de juros de curto prazo seria muito pequeno em

regimes de câmbio flutuante ou de câmbio fixo com sensível risco cambial.

Em oposição a essas proposições, alguém poderia sugerir que esse

volume poderia ser muito maior, se o diferencial induzisse à formação de

expectativas cambiais. No entanto, poderíamos sugerir duas críticas a essa

conclusão. Em primeiro lugar, a alteração das taxas também induzem à

formação de expectativas cambiais, mesmo se os diferenciais forem muito

baixos. E, muitas vezes, de forma mais eficiente. Em segundo lugar,

poderíamos dizer que a alteração das expectativas cambiais, não importando

sua causa, pode induzir à entrada de capitais por pouco tempo. Não sendo

assim uma solução definitiva, mesmo se o diferencial for mantido alto por muito

tempo.

eram tão eficientes quanto a política fiscal para manipulação da demanda, além disso, taxas elevadas implicariam em pioras na distribuição de renda.

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260

Se a NFEDcp for não-positiva ou se o país tiver uma situação de

solvência internacional muito confortável, será fácil para o governo liquidar a

especulação ou pelo menos suas conseqüências negativas. Porque (1) o

volume envolvido na especulação é limitado, (2) são investimentos de curta

duração e (3) são muito sensíveis a dúvidas com relação à aposta realizada.

Se o governo investir contra a especulação e tiver sustentação com uma

NFEDcp negativa ou com reservas abundantes e eventualmente abastecidas

com financiamento internacional direto ao governo, os especuladores

rapidamente perceberão que perderão mais dinheiro se sustentarem a aposta.

O governo não pode adotar, no curto prazo, a taxa de juros que quiser.

Portanto, existiriam taxas de juros mínimas conjunturais. A variação na taxa de

juros é um dos mais importantes instrumentos para controle da pressão

cambial. Quando essa pressão é alta, e o governo não deseja ou não pode

utilizar outros instrumentos, a taxa de juros tem que ser elevada, portanto, o

governo não é completamente livre para decidi-la. Mas essa necessidade de

elevação é pouco dependente do patamar inicial, portanto, podemos dizer que

ainda assim não haveria um diferencial mínimo que precise ser respeitado no

curto prazo.

Quando ocorre pressão cambial, o governo pode se ver obrigado a

elevar suas taxas de juros. Para que esse instrumento surta o efeito desejado,

é necessário que os juros de longo prazo subam e ou as ações caiam de valor.

Os especuladores imaginam que o governo prefira taxas de juros mais baixas a

taxas mais altas. Quando o motivo da elevação dos juros não mais existir,

esperará que eles caiam. Assim, surgirão expectativas de rentabilidade

extraordinária com a compra de títulos de longo prazo e ações, tão logo a

pressão cambial der sinais de arrefecimento.

Porém, todo esse processo leva tempo. Os aumentos iniciais dos juros

podem não se mostrar suficientes; a pressão cambial pode se sustentar por

algum tempo; pode voltar; a taxa de longo e as ações podem reagir com

lentidão ou de forma parcial em relação à taxa de curto, se essa for muito

volátil; os capitais externos podem reagir lentamente, desconfiados da

capacidade do governo manter a taxa reduzida; o governo pode ser obrigado a

reduzir a taxa de juros lentamente para que o efeito do aumento dos títulos e

ações não ocorra de uma vez só e dê tempo para que mais capitais externos

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261

invistam nessa aposta. Dessa forma, esse processo pode ser tão lento que o

governo pode ser obrigado a aumentar a taxa de juros novamente antes que

essa atinja um patamar reduzido.

Assim, se o país sofre continuamente pressão cambial, ou seja, quando

a NFEDcp é persistentemente positiva, o governo será obrigado a aumentar as

taxas de juros mais vezes e com intensidade maior do que quando a NFEDcp é

negativa ou próxima a zero. Portanto, a taxa média de juros de curto prazo será

maior. Será maior também a taxa média de juros de longo prazo. Quanto mais

baixa é essa taxa normal em relação à taxa vigente, maiores são as

perspectivas de ganho de capital no país. Assim, podemos dizer que a

tendência da NFEDcp determinaria as taxas médias de juros, se o país tenta

minimizar a taxa de juros de curto prazo, ou seja, o patamar médio mínimo da

taxa de juros.

Dessa forma, não haveria um diferencial mínimo de taxa de juros

básicas no curto ou médio prazo, mas valores médios mínimos que seriam

determinados pela freqüência com que precisam ser aumentados e pela

velocidade em que podem ser reduzidos.

A capacidade de o governo reduzir a taxa de juros no curto prazo

depende de:

1) NFEDcp não positiva

2) efeito-riqueza esperado

3) taxa de juros de longo prazo que o mercado em média considera

normal

4) expectativas de valorização cambial

5) expectativas de crescimento econômico e da sensibilidade dessas

expectativas à redução dos juros

6) liquidez internacional

Os pontos 2 a 6 acima são conjunturais e em parte dependente do seu

própria evolução histórica recente. A taxas de juros médias mínimas seriam,

assim, determinadas basicamente pela NFEDcp. A NFEDcp média e a

facilidade que o governo tem de manipula-la são os principais fatores para

determinação da taxas de juros média mínimas no curto e médio prazo.

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262

No entanto, há duas situações em que se pode dizer que o diferencial de

juros tem alguma relevância. A mais importante é com relação às taxas de

juros de longo prazo.

A manutenção de um diferencial mínimo estrutural de juros de longo

prazo pode ser necessária, porque os empréstimos de longo prazo são mais

sensíveis aos diferenciais de juros do que os de curto prazo. Portanto, a taxa

de curto prazo também deveria tendencialmente a longo prazo respeitar esse

diferencial mínimo estrutural. Porém, os empréstimos de longo prazo – que o

diferencial de juros de longo prazo busca manipular – são também muito

dependentes de outros fatores, como crescimento, câmbio real, solvência

externa, internacionalização do sistema bancário e por isso reagem muito lenta

e moderadamente aos diferenciais. Portanto, esses só precisam ser

respeitados de forma tendencial e no longo prazo. Além disso, a necessidade

do governo atrair empréstimos de longo prazo precisa ser considerada. Os

diferenciais positivos podem não ser necessários por causa de uma NFED

negativa e por causa das possibilidades de emissão de dívida externa pública.

Ademais, existem claros limites à capacidade e disposição dos bancos de um

país em conceder empréstimos de longo prazo ao exterior. Essa questão será

desenvolvida adiante na seção que trata de política de crédito e de câmbio.

A outra situação onde o diferencial pode ter relevância não seria

suficientemente forte para determinar um diferencial mínimo. Essa situação

ocorreria quando eficácia da política de variação de taxa de juros é muito

menor, sendo necessárias variações muito maiores dos juros para gerar o

mesmo efeito sobre a valorização dos ativos. Se o governo não deseja uma

taxa de juros muito volátil, será obrigado a manter taxas de juros médias

superiores para gerar um diferencial de juros elevado como um ganho adicional

para os investidores externos. Mas essa política não elimina a necessidade de

utilizar a manipulação de juros contra a especulação cambial.

Essa situação seria possível quando os títulos de dívida do país

possuem baixo risco de juros e o mercado acionário é relativamente pouco

desenvolvido ou menos sensível aos juros108. Poderíamos dizer, com diversas

ressalvas, que o Brasil tem características que o tornam não muito distante

108 Quanto mais alta a taxa de juros, menos sensível é o mercado acionário as variações de pontos porcentuais nos juros.

Page 263: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

263

dessa situação. Mas isso não significa que manter altos diferenciais seja uma

política mais adequada no Brasil do que usar a variação dos juros como outros

países. Em primeiro lugar porque, como propõe Tsiang (1975), mesmo quando

o diferencial pode ter efeito sobre o movimento de capitais (i.e., quando o

diferencial é realmente muito elevado), ele tem efeito temporário.

Um país na situação estilizada como essa, onde o efeito-riqueza é muito

menor, precisa utilizar mais a variação dos juros e talvez até a variação dos

diferencial, porém ambas as medidas são temporárias. A política para atacar

definitivamente a pressão cambial é manter a NFEDcp sempre não-positiva ou

financiada por emissão de dívida pública no exterior.

4.4.2.3. Políticas ineficientes, mas potencialmente complementares

em períodos críticos

Em nenhuma situação, a política de manutenção de diferenciais de juros

é adequada para manter a pressão controlada por muito tempo. Se os

diferenciais não forem muito grandes não atrairão volumes significativos de

empréstimos de curto prazo, porque oferecem uma rentabilidade muito

pequena em comparação ao risco cambial, de inadimplência ou de juros, que

podem ser realmente muito elevados. Se o diferencial for suficientemente

elevado para compensar esses riscos, seu efeito ainda é temporário.

Mas ainda assim haveria vários custos e riscos envolvidos. Juros muito

altos podem reduzir a taxa de crescimento da economia e reduzir a entrada de

investimento direto e financiamentos de longo prazo, que estão em geral

associados a investimentos em ativos fixos ou capital de giro109. A princípio, o

governo poderia adotar uma política fiscal expansionista para compensar a

redução dos investimentos e consumo privados decorrentes dos juros altos.

Mas ainda assim a taxa de crescimento de longo prazo seria menor do que na

situação em que o governo adota juros baixos. Juros altos reduzem a

competitividade externa e a taxa de crescimento das exportações e, portanto, o

potencial de crescimento de longo prazo. Os juros altos causam ainda outro

109 O capital de giro é usualmente financiado por capital próprio ou empréstimos de longo prazo. Em empresas multinacionais que podem obter capital de giro na matriz ou empresas que se financiam no exterior, a demanda por aumento de capital de giro, decorrente do crescimento econômico, pode implicar em crescimento do IDE e dos EElp.

Page 264: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

264

inconveniente. Eles podem reduzir a pressão cambial em determinado

momento, mas, a menos que impliquem em significativa redução da renda, não

reduzem a NFE e, portanto, o país continua dependente de financiamento

externo e, conseqüentemente, bastante sujeito a pressão cambial. Ainda que a

solvência do país não se deteriore com os juros muito altos, quando ocorrer

pressão cambial novamente o governo será obrigado a aumentar os juros,

mesmo estando eles já muito altos.

Assim a política de variação da taxa de juros básica ou a flutuação de

câmbio combinada com a venda de reservas são eficazes e muito mais

eficientes contra pressão cambial do que a manutenção de diferenciais de juros

elevados. Essa proposição é perfeitamente válida, quando a NFEDcp for

negativa, nula ou apenas temporariamente positiva. Quando a NFEDcp for não

positiva ou temporariamente positiva, essas políticas podem ser necessárias

para extinguir um movimento especulativo ou para manter uma NFEDcp

positiva financiada temporariamente por capital de curto prazo, enquanto se

espera o crescimento da entrada de capitais de longo prazo.

Se a maior parte da dívida pública for de títulos pré-fixados de médio e

longo prazo em moeda nacional, a política monetária é muito eficaz contra

ataques cambiais com relativamente pequenas modificações na taxa de juros.

Se a dívida pública for composta basicamente por títulos de curto prazo, ou

pós-fixados ou dolarizados, seriam necessárias grandes modificações na taxa

de juros para surtir o mesmo efeito. Mas ainda assim seria eficaz.

Todavia, a pressão cambial pode ser causada ou acompanhada de uma

NFEDcp significativamente positiva. Essa variável em geral é pouco sensível à

política de juros básica. Nessas situações, as modificações nas taxas de juros

não podem segurar a pressão cambial por longos períodos, pois seu efeito

sobre a especulação cambial e sobre a compra de especulativa de títulos dura

pouco tempo. Nesse caso, a política monetária não é suficiente extinguir a

pressão cambial, fazendo-se necessário a utilização de outras políticas para

viabilizar tais metas. Essas políticas serão desenvolvidas nas duas próximas

seções.

A política mais óbvia de controle da taxa de câmbio é a venda de

divisas. No entanto, a efetividade dessa política depende muito do volume total

Page 265: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

265

de reservas. Se esse estiver relativamente baixo, a venda de reservas vai

apenas incentivar a especulação cambial.

Nessa circunstâncias, os governos podem ainda lançar no mercado

interno títulos dolarizados. Nesse caso, ele não estará reforçando suas

reservas, mas estará reduzindo o custo de captação externo do setor privado.

Os juros dos títulos dolarizados vendidos no mercado internos são uma

espécie de subsídio à proteção cambial. Dessa forma, ao vender títulos em

dólar em volume suficiente para manter elevada a taxa de juros paga por esses

títulos, o governo estará reduzindo o custo de proteção cambial e, portanto,

tornando mais barato a captação no exterior com proteção cambial. O

inconveniente dessa política é que pode aumentar o risco-país. Operações de

arbitragem entre os títulos em dólar no mercado interno e externo podem tornar

os juros dos títulos brasileiros no mercado internacional ligados aos juros dos

títulos dolarizados no mercado nacional. Portanto, o efeito da redução do custo

de proteção cambial pode ser compensando negativamente com o aumento do

spread pago pelos títulos brasileiros no mercado internacional, sendo assim um

instrumento pouco eficaz para aumentar o volume de financiamento externo

para o país.

Todavia, nos momentos de ataque especulativo, quando tomar

empréstimos no exterior torna-se muito difícil, a emissão de títulos em dólar no

mercado interno é uma instrumento eficaz para diminuir a intensidade do

ataque. Esse instrumento pode oferecer uma opção de investimento mais

interessante para os especuladores cambiais que assim não desembocariam

sobre os mercados de câmbio.

A venda de títulos públicos dolarizados no mercado interno é eficaz

contra a pressão cambial em momentos de forte expectativa de desvalorização.

Entretanto, não se pode dizer o mesmo para períodos de tranquilidade cambial

e para períodos de crise mais séria, quando a solvência do país está

comprometida.

Em caso de tranqüilidade cambial, a emissão de grande quantidade de

títulos públicos dolarizados, mesmo quando associada a uma elevada taxa de

juros para esses títulos110, tem pouca eficiência em aumentar o volume de

110 Essa taxa é chamada de cupom cambial.

Page 266: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

266

empréstimos tomados pelo país. Porque, apesar de reduzir o custo de proteção

cambial, um elevado cupom cambial tende a criar, por arbitragem, um elevado

spread para os títulos nacionais negociados no mercado externo, chamado de

risco-país; compensando, assim, em grande parte, a redução do custo de

proteção cambial decorrente do aumento do cupom cambial.

Quando o país está com a solvência comprometida, a emissão de um

grande volume de títulos públicos dolarizados não é capaz de conter de

maneira suficiente a especulação cambial, pois existe um grande risco de

inadimplência da dívida pública externa, de centralização do câmbio ou de

controle sobre os movimentos de capitais. Nessas situações, só moeda ou

títulos de outros países podem ser, entre os ativos financeiros, um porto

seguro. Dessa forma, a emissão de títulos em dólar no mercado interno com

taxas de juros elevadas não é capaz reduzir significativamente a pressão

cambial.

Além das limitações quanto à eficácia, a política de venda de títulos

dolarizados ainda causa problemas em outras políticas públicas. O maior deles

é a perda de eficiência da política monetária para reprimir os ataques

especulativos.

Se a dívida interna é dolarizada, quando ocorre pressão cambial e,

consequentemente, aumento dos juros, ela não cai de valor em reais, portanto,

a expectativa de redução dos juros também não cria a expectativa que esses

títulos aumentarão de valor. Dessa forma, a política de juros torna-se pouco

eficaz sobre o movimento de capitais.

4.4.3. Políticas de financiamento da NFEDcp com emissão de dívida pública externa

A venda de reservas é uma política muito eficaz para controlar a taxa de

câmbio. Porém, a menos que as reservas sejam realmente muito grandes, não

se espera que se possa financiar uma NFEDcp positiva por muito tempo

apenas com a venda de reservas.

Mas o governo pode emitir dívida no exterior enquanto houver liquidez

internacional e solvência externa. E assim, pode usar as divisas obtidas para

financiar a NFEDcp.

Page 267: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

267

A princípio, essa política não tem qualquer efeito negativo sobre o

endividamento público total, pois se o setor privado toma emprestado no

exterior e internaliza o dinheiro a dívida pública se eleva em montante similar.

Na verdade, para as contas públicas ou para a solvência externa faz pouca

diferença se o endividamento externo é público ou privado.

O volume total de empréstimos externos que um país, incluindo

empresas privadas e governo, podem tomar é muito próximo ao volume total

de empréstimos que esse governo pode tomar sozinho. O volume de

empréstimos que o governo do país pode tomar no exterior depende da

solvência do país.

Se os indicadores de solvência estiverem bons e houver liquidez

internacional, o governo poderá tomar empréstimos no exterior a custos

razoáveis. É razoável que o governo se endivide para manter as reservas

elevadas e assim não ser obrigado a ter que tomar crédito quando houver crise

de liquidez internacional. Uma NFEDcp positiva pode resultar em risco de

inflação ou necessidade de recessão para reduzi-la. Mas como acabamos de

ver, esses problemas podem ser evitados com uma política de emissão de

dívida pública no exterior, desde que o país esteja solvente. Porém essa não é

a única maneira de evitar esses problemas. A solvência externa permite que o

país possa anular uma NFEDcp positiva sem políticas recessivas. Para isso

bastaria induzir a entrada de capital externo de longo prazo com medidas pró-

crescimento econômico e manter o câmbio competitivo.

4.4.4. Políticas de redução da NFEDcp

Como vimos, não é possível financiar a NFEDcp por muito tempo com

financiamento de curto prazo, capital especulativo ou perda de reservas.

Assim, o governo tem que atuar para manter essa variável próxima ou menor

do que zero. Em alguns casos, essa tarefa pode ser cumprida com certa

eficácia com políticas recessivas. Porém, interessa ao governo e à sociedade

saber como financiar a longo prazo ou eliminar uma NFEDcp positiva com as

políticas menos recessivas possíveis. Na seção anterior, vimos como a

NFEDcp positiva pode ser financiada a longo prazo. Nesta seção, veremos

como poderia ser eliminada.

Page 268: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

268

A solução proposta por Lerner (1951, cap. 21) e que parece realmente

menos dolorosa é permitir a desvalorização do câmbio. A desvalorização do

câmbio pode ser uma política muito eficiente em países que possuem dívidas

externas reduzidas, uma elasticidade câmbio do saldo comercial elevada e que

não convivam com grande indexação de preços ao câmbio e de salários aos

preços. Nesses países a NFE é negativa ou muito reduzida. Se a NFE for

negativa, para que a NFEDcp seja também negativa, bastaria que as

exportações de capital não sejam muito elevadas. Se elas forem elevadas, o

país pode reduzi-las com facilidade, se aumentar a taxa de crescimento ou

aumentar levemente os juros. Essa conclusão decorre da suposição de que os

investidores e bancos, ceteris paribus, prefirem investir e emprestar localmente.

Se a NFE for levemente positiva e o saldo comercial oferece uma boa resposta

às desvalorizações da moeda nacional, o país não terá dificuldade em obter

uma NFE negativa.

Essas condições, em geral, estão presentes em países credores, em

países com indústria competitiva integrada em mercados comuns poderosos e

em países com indústria relativamente completa e competitiva e que possuem

taxas de inflação reduzidas. Porém, essas não são situações comuns em

países subdesenvolvidos. Esses costumam possuir a NFE significativamente

positiva. Assim, as desvalorizações não são capazes de anular a NFE sem

implicar em uma inflação acima do aceitável. Esses países precisam assim

atrair financiamentos de longo prazo para manter a NFEDcp não-positiva. Para

se obter um fluxo positivo relativamente estável desse tipo de investimento, é

necessário que o país se mantenha solvente. Garantir a solvência implica em

manter o saldo em conta corrente não negativo ou manter a taxa de

crescimento das importações inferior à taxa de crescimento das exportações.

Se a indústria do país não for capaz de aumentar significativamente suas

parcelas de mercado, após uma desvalorização que não prejudique a meta de

inflação, o saldo comercial é pouco elástico às desvalorizações cambiais.

Nesse caso, dificilmente o governo poderá fazer com que a taxa de

crescimento das exportações supere a taxa de crescimento das importações ou

o saldo em conta corrente seja não-negativo sem que seja necessário reduzir a

taxa de crescimento da economia.

Page 269: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

269

Se a desvalorização não é suficiente para eliminar a NFEDcp positiva e

o governo não deseja tomar emprestado no exterior; poderia, a princípio, com

já afirmamos, adotar políticas recessivas. Essas, porém, podem ter uma

eficiência no curto prazo menor do que imaginada. As políticas recessivas têm

como efeito positivo o aumento do saldo comercial e de serviços. Porém, a

menos que seja adotada uma política de redução realmente muito profunda do

PIB, esse efeito é lento e em geral insuficiente para reduzir uma NFEDcp

positiva, principalmente se o país for um devedor externo líquido.

Além disso, a redução do crescimento ou a recessão possuem efeitos

ambíguos sobre a NFEDcp. Os investimentos externos diretos e mesmos o

volume de empréstimos de longo prazo tomados dependem das expectativas

de crescimento e da demanda por investimento em geral. A recessão

certamente reduz o potencial de crescimento dessas variáveis. Entretanto,

essas variáveis têm em geral uma elasticidade à renda muito superior ao saldo

comercial, tornando a solução recessiva, além de naturalmente dolorosa,

menos eficaz, sob essa hipótese, do que uma solução expansiva.

De fato, é mais razoável pensar que a recessão só seja uma solução

interessante para redução da NFEDcp em situações onde não há liquidez

internacional, o país está insolvente ou não tem acesso a financiamento

externo de longo prazo a custos razoáveis. Mais especificamente poderíamos

dizer que esses custos seriam razoáveis quando forem menores ou iguais à

taxa de crescimento das exportações.

Entretanto, podemos considerar que esses casos não sejam os mais

comuns. Portanto, geralmente, as políticas recessivas de redução da NFEDcp

não são as mais adequadas.

Dessa forma, a melhor solução para reduzir uma NFEDcp nula ou

negativa é manter a taxa de crescimento elevada para atrair capitais de longo

prazo. Outras políticas podem ser necessárias. Entre elas a manutenção de

taxas de câmbio reais competitiva e a manutenção estrutural da taxa de juros

de longo prazo acima de um determinado patamar mínimo, que será discutido

na próxima seção.

A manutenção da taxa de câmbio competitiva reduz o risco cambial para

os investidores estrangeiros e tomadores de empréstimos externos. Além

Page 270: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

270

disso, aumenta a rentabilidade do setor de importáveis atraindo investimentos e

financiamentos eventualmente externos para essas atividades.

A manutenção sistemática da taxa de juros de longo prazo acima de um

determinado patamar mínimo pode ser necessário para aumentar o volume de

empréstimos de longo prazo tomados pelo país ou para reduzir o volume de

financiamentos de longo prazo que o país concede ao exterior.

Não vamos alongar aqui sobre essas três políticas, induzir o

crescimento, manter o câmbio real competitivo e manter a taxa de juros de

longo prazo estruturalmente acima de um patamar mínimo. Porque essas

políticas são determinadas e avaliadas principalmente por outros objetivos

instrumentais. Mais especificamente o objetivo de manutenção do emprego no

nível máximo permitido pelos pontos de restrição e o objetivo de deslocamento

da restrição externa.

4.5. Políticas para deslocamento da restrição externa

O crescimento econômico pode ser inviabilizado por uma pressão

cambial causada por uma NFEDcp persistentemente positiva. Entretanto, se os

indicadores de solvência do país forem bons, o governo poderá manter uma

boa taxa de crescimento, se induzir o aumento da entrada de capital externo de

longo prazo.

Existem basicamente três tipos de financiamento externo de longo

prazo. Dois deles, o investimento externo direto e os empréstimos ao setor

privado podem reduzir a NFEDcp. O outro são os empréstimos tomados

diretamente pelo governo.

Entretanto, só existem garantias de que o fluxo de capital externo será

suficiente para manter a pressão cambial reduzida, se a liquidez dos mercados

financeiros internacionais estiver normal e os indicadores de solvência do país

estiverem bons.

Se não houver liquidez internacional, o país é obrigado a atingir uma

NFE negativa ou próxima a zero, ou, se isso não for possível, manter um saldo

em conta corrente positivo e tentar refinanciar de forma negociada seus débitos

vincendos.

Page 271: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

271

Em condições normais de liquidez internacional, o país está solvente

quando o saldo em conta corrente é positivo ou quando a taxa de crescimento

das exportações é superior à taxa de crescimento das importações e que a

remuneração do passivo externo líquido.

O crescimento econômico tende a deteriorar esses indicadores no curto

prazo. O mesmo pode não acontecer no longo prazo. Em uma nação que

dispõe em seu território dos setores industriais mais importantes, um dos

principais determinantes da taxa de crescimento das exportações no longo

prazo é a própria taxa de crescimento da economia. Essa proposição está

relacionada ao que Kaldor (1971) chama de ‘crescimento liderado pelo

consumo’. Mas nada garante que a taxa de crescimento das exportações será

maior ou igual à taxa de crescimento da economia no curto prazo ou que a taxa

de crescimento das exportações será suficientemente alta para atingir as metas

de crescimento desejadas, se não forem adotadas políticas específicas para

esse fim.

Portanto, para que a taxa de crescimento da economia não deteriore os

indicadores de solvência no curto ou no longo prazo, o país precisa garantir

pelo menos a condição Kaldor-Thirlwall, que diz que a taxa de crescimento das

exportações seja aproximadamente maior ou igual à taxa de crescimento das

importações. Diríamos assim que o governo precisa deslocar continuamente a

restrição externa para manter o crescimento econômico sustentável.

As políticas que mais obviamente tem essa função são as políticas

industriais e comerciais, pois elas visam basicamente aumentar as exportações

e substituir importações.

Entretanto, a coerência geral desse tipo de política está associada à

inserção externa do país. As políticas industriais e comerciais não são

independentes da política cambial, creditícia e fiscal. A política cambial e

creditícia de longo prazo são a própria escolha de um modelo de

desenvolvimento. A política fiscal depende do empenho desse modelo em

promover o deslocamento da restrição externa e das prioridades da política

tributária e de incentivos fiscais que também são associadas a esse modelo e

são os principais instrumentos práticos da política industrial.

Page 272: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

272

4.5.1. Políticas industriais e comerciais

Neste arcabouço, a política comercial tem como objetivo promover

exportações e proteger o país de importações. Portanto, é certamente uma

política de deslocamento da restrição externa. A política industrial e tecnológica

também cumprirem esse papel, porém, o pensamento tradicional costuma

confundir as principais funções dessas políticas.

Tradicionalmente se atribui à política industrial a função de corrigir as

falhas de mercado. Entretanto, historicamente esse tipo de política está

geralmente associado a projetos de substituição de importações, defesa do

mercado nacional e promoção de exportações.

A política industrial muitas vezes se confunde com políticas tecnológicas

pró-inovação e aumento da produtividade. Tradicionalmente também se atribui

a esse tipo de política industrial a função de corrigir falhas de mercado

relacionadas ao processo de inovação, um vez que as inovações dependem

muito de externalidades e criam outras. Nesse caso, as falhas de mercado

deveriam ser compensadas pelo governo, pois a inovação é um bem, aumenta

a produtividade e o bem-estar da sociedade. Da sociedade mundial no caso,

pois esse tipo de benefícios das inovações é em geral difundido mundialmente,

senão como melhoria da produtividade, pelo menos como inovações de

produto. Isso é verdade, mas a partir de uma visão de finanças funcionais,

dificilmente a esses benefícios difusos seriam mais importantes do que o

deslocamento da restrição externa.

Possuir altos níveis de inovação pode ser extremamente benéfico para o

deslocamento da restrição externa. As inovações aumentam a competitividade

da indústria nacional tanto na competição com importados quanto em

mercados externos. A inovação é particularmente benéfica porque pode

permitir que as empresas do país criem novos mercados, entrem em setores

de alto crescimento da demanda externa ou que desloquem concorrentes

internacionais. Esses possíveis resultados podem permitir que a taxa de

crescimento das exportações se torne sensivelmente superior ao crescimento

do comércio mundial, sem a necessidade de redução de nenhum componente

Page 273: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

273

de renda do país em termos de moeda estrangeira, como salários nominais

medidos em dólar.

Na verdade, as principais funções da política tecnológica, como as

outras partes da política industrial, estão associadas a questões geopolíticas.

Deslocar a restrição externa pode ser considerado uma questão geopolítica,

porque a restrição externa é uma contenção de potencial imposto pela

dependência do país das relações econômicas que tem com o sistema

internacional. A questão política torna-se mais evidente, quando percebemos

que deslocar a restrição externa pode implicar em perda de mercados de

parceiros comerciais e conflito diplomático. Mas o maior indício desse

entrelaçamento decorre da importância do deslocamento da restrição externa

para o desenvolvimento de um país. O desenvolvimento acelerado altera a

relação de forças no sistema regional e mundial e pode gerar conflitos.

O desenvolvimento acelerado de uma grande nação como a China pode

significar redução no potencial de crescimento econômico e dos salários reais

das nações mais desenvolvidas. Porque a nação ascendente está se

especializando em indústrias antes dominadas pelos países mais ricos, ela, em

geral, faz isso com maior competitividade devido aos salários inicialmente mais

baixos. Rouba assim mercados desses países, aumentando suas importações

e reduzindo seu potencial de exportador. Além disso, seu crescimento leva ao

aumento de seus salários reais e aumento dos preços das manufaturas e bens

agrícolas intensivos em trabalho barato que exportava. A ascensão de novas

potências aumenta ainda a pressão sobre os recursos naturais. Assim, as

tradicionais potências perdem potencial de crescimento e tem que amargar

quedas na taxa de crescimento de seus salários reais. O desenvolvimento é

inevitavelmente um projeto de poder e, portanto, sujeito a conflito

internacional111.

111 Mas o aspecto geopolítico da política industrial e tecnológica não está associado apenas às questões econômicas. Países que possuem clara intenção de melhorar ou garantir seu posicionamento internacional utilizam a política industrial e tecnológica para diminuir a dependência econômica e tecnológica, visando não se fragilizarem em caso de conflito. Assim buscam ter acesso a conhecimento de novas tecnologias essenciais e buscam ter suprimento interno de certos insumos que consideram estratégico, como energia, alimentos, insumos industriais essenciais e insumos gerais para indústria armamentista. Mas essas questões não nos interessam neste trabalho.

Page 274: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

274

Nos países subdesenvolvidos o foco da política industrial deve ser a

instalação de novos setores. É muito mais rápido, barato e viável a um país em

desenvolvimento investir pesadamente na instalação de setores industriais de

alto crescimento de demanda ou setores quaisquer dominados pelos países

desenvolvidos do que investir em pesquisa e desenvolvimento.

Se seu crescimento dependesse do investimento em pesquisa e

desenvolvimento em setores que já domina, dependerá de um lento e incerto

processo de inovação tecnológica, que pode ser ainda mais lento que o normal,

tendo em vista que esses são geralmente setores maduros. Ademais, se a

inovação aumentar a produtividade, esse investimento em P&D pode

eventualmente ser prejudicial para o país, se o setor for muito competitivo ou

se outros países concorrentes conseguirem imitar a nova tecnologia. Nessa

situação, os preços de exportação cairão e muito provavelmente também o

valor total exportado, pois a grande maioria dos setores, incluindo

principalmente os setores maduros, tem baixa elasticidade preço da demanda.

Portanto, as inovações que geram melhoria da produtividade, nos setores já

tradicionalmente dominados, podem gerar redução do crescimento do país (se

esse depender desse tipo de exportação), ainda que gere um pequeno do

aumento do crescimento e dos salários reais médios a nível mundial, mas

provavelmente não no país.

Por outro lado, se seu crescimento depender do investimento em

pesquisa e desenvolvimento em setores dominados pelos países

desenvolvidos, o investimento poderá ser praticamente inócuo. Porque sem ter

esses setores presentes, o país não poderia se beneficiar com o novo

conhecimento. Beneficiariam as grandes empresas dos países desenvolvidos

que possuem uma posição competitiva suficientemente forte para se

apropriarem das possibilidades de comercialização de novos conhecimentos

tecnológicos.

De forma alguma, essas conclusões implicariam que os países

subdesenvolvidos não devem investir em P&D. Só estamos querendo dizer que

esses países não devem esperar obter altas taxas de crescimento em

decorrência puramente desses investimentos. Na medida em que esses países

passem a competir, de fato, nos setores de ponta com as nações

desenvolvidas, o P&D passará a ser cada vez mais fundamental. A princípio, o

Page 275: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

275

P&D deveria ser focado principalmente em imitação e transferência de

tecnologia.

Assim, o foco da política industrial dos países sudesenvolvidos deve ser

a instalação de setores dominados pelos países desenvolvidos112. A questão

menos importante nem é a substituição de importações, mas a competição nos

mercados externos. A instalação de uma indústria nova com o mesmo

maquinário usado no país desenvolvido permite a um país em desenvolvimento

uma competitividade potencial superior, ainda que a indústria seja muito

intensiva em capital, porque todas as indústrias usam trabalho. Mesmo em uma

indústria onde a participação da mão de obra nos custos seja muito reduzida,

custos salariais muito inferiores podem significar uma margem de lucro muito

superior ou preços ligeiramente menores.

Se um setor é dominado pelos países desenvolvidos, o custo salarial,

que é referência para a determinação de seus preços médios internacionais, é

relativamente alto. Assim, desde que a escala produtiva seja similar, tendem a

ser bem-sucedidas políticas industriais de instalação de novos setores, pois os

custos de produção serão menores nos países subdesenvolvidos. No limite, se

um país em desenvolvimento não investir nada em inovação113, mas instalar

com o mesmo maquinário os principais setores industriais dos países

desenvolvidos com a mesma proporção de trabalhadores que esses setores

operam nos países desenvolvidos, ele será imediatamente um país

desenvolvido e seus salários reais poderão ser imediatamente próximos aos

dos países desenvolvidos114. Essa só não é uma política viável, porque o país

não tem crédito externo suficiente para importar todo esse maquinário e porque

uma indústria para ser competitiva não precisa só de maquinário, mas também

112 Isso não significa que os países em desenvolvimento não devam investir em pesquisa e desenvolvimento. Mas apenas que, enquanto parte significativa de sua PEA ainda não está nos setores dominados pelos países desenvolvidos, a política de instalação de novos setores deve ser prioritária. O investimento de pesquisa e desenvolvimento é muito útil para sustentar a competitividade dos setores industriais já instalados. 113 Essa é uma hipótese extrema, porque para adquirir tecnologia externa é necessário conhecimento especializado, e para adaptá-la às condições locais há sempre algum grau de inovação. Entretanto, estamos separando hipoteticamente os investimentos em conhecimento e inovação para comprar e imitar tecnologia externa, dos investimentos para criar algo realmente novo. 114 A produção local dos bens de capital não seria uma solução, pois, na maioria dos setores, é muito difícil obter capacidade de produzir bens de capital, se o próprio setor consumidor desses bens não existe. Além disso, para produzir bens de capital é preciso bens de capital e insumos que normalmente seriam importados.

Page 276: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

276

de capacidade administrativa, funcionários treinados, condições institucionais e

infra-estrutura econômica adequada. Esses fatores demandam tempo.

O crédito externo é obtido com a manutenção da solvência externa.

Assim, ele cresce acompanhando o crescimento das exportações. Esse

crescimento das exportações é viabilizado pela própria política de instalação de

novos setores.

Se o país garantir uma união política nacional forte o suficiente para

manter o processo, essa é uma política que funciona muito bem. Essa política

de instalação de setores antes dominados pelas principais potências foi o

principal mecanismo pelo qual se deu o desenvolvimento inicial de todos os

países, pelo menos desde o século XIX.

Mas essa não é uma política onde todos necessariamente ganham. Os

países que antes dominavam os setores, agora, invadidos pelos países em

processo de desenvolvimento acelerado perdem exportações e inclusive

mercado interno. Podem assim, perder empregos e ter a taxa de crescimento

dos salários nominais em dólares reduzida. Essa segunda possibilidade existe

inclusive, se adotar uma política contra-cíclica ativa. Porque o crescimento

acelerado de grandes nações em desenvolvimento, aumenta seus salários

nominais em dólar e pode implicar em aumento do custo de bens

tradicionalmente exportados por esse, cujos preços se baseavam nos

inicialmente baixos custos de mão de obra. Além disso, haveria maior pressão

de demanda sobre os recursos naturais.

Se os países desenvolvidos não reagirem a isso perderão posição

relativa na hierarquia internacional e poderão ter o crescimento de seus

salários reais relativamente reduzido.

Uma reação tradicional é o protecionismo localizado onde suas perdas

são maiores. Mas, se o protecionismo for generalizado, os países

desenvolvidos tendem a perder mais do que ganhar. Principalmente aqueles

que possuem déficit comercial.

Dessa forma, a solução mais interessante para os desenvolvidos é

investir em pesquisa e desenvolvimento. Assim, podem manter o diferencial

competitivo em relação aos países em desenvolvimento e manter seus salários

superiores e crescentes.

Page 277: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

277

Portanto, não é possível analisar as funções e operacionalização dessas

políticas de deslocamento da restrição externa isoladas do modelo de

desenvolvimento. Mesmo porque questões como acordos internacionais,

câmbio real, política de crédito e capacidade de gasto público condicionam

fortemente as oportunidades e recursos para as políticas comerciais, industriais

e tecnológicas.

As questões mais decisivas para a formatação de um modelo de

desenvolvimento passam pelas políticas cambial e creditícia de longo prazo,

que definem complementarmente o câmbio real, a taxa mínima estrutural de

juros de longo prazo e a taxa de crescimento que o país pode obter, se as

políticas fiscal, de infra-estrutura e industrial se ajustarem com agilidade.

4.5.2. Política cambial e creditícia

“Um dos problemas mais vexatórios da teoria econômica é a explicação de como se forma a taxa de câmbio. Num mundo sem surpresa, em que todo o futuro fosse absolutamente transparente, em que todos os mercados fossem concorrenciais e instantaneamente equilibrados, em que o comércio de bens e serviços não sofresse qualquer restrição e a liberdade de movimento de capitais fosse absoluta, a taxa de câmbio se formaria como preço de uma mercadoria qualquer. (...) [Entretanto a]s nações não são espaços abertos que satisfazem a concepção dos economistas: são espaços fechados que freqüentemente se organizam em torno de projetos de poder interno e pretensão de poder externo, de acordo com sua capacidade de cooptar os nacionais e de impor sua presença ao não-residentes. As potências, na sua hierarquia, só aceitam a liberdade de comércio e de capitais quando já construíram um escudo defensivo que permite acomodá-la com a permanência e continuidade do seu poder político. É aqui que a ‘Teoria econômica’ tem de ser substituída pela ‘Economia Política’. Pois bem: o que a Teoria econômica não sabe sobre a taxa de câmbio, a ‘Economia Política sabe! Os países bem-sucedidos (a exemplo de Alemanha, Itália e Japão, depois da Segunda Guerra Mundial), a China e outros asiáticos mostraram que o desenvolvimento sustentado depende de um enorme esforço exportador com uma taxa de câmbio ligeiramente subvalorizada que permita rápida expansão das exportações e razoável acumulação de reservas capaz de blindar o país dos choques produzidos pelo comportamento de manada dos capitais internacionais” (Delfim Netto, 2004)

115.

115 Carta Capital 1º de dezembro de 2004.

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278

Nesta seção, vamos discutir a importância da política cambial

para o tipo de inserção externa escolhido pelo país e sua taxa de crescimento.

A hipótese é que a escolha da política cambial acaba sendo determinante para

a taxa de juros de longo prazo obtida, a forma de financiamento do balanço de

pagamentos, a taxa de crescimento das exportações, e portanto, para a taxa

de crescimento econômico.

Essa hipótese é válida se o país adota liberdade de movimento de

capitais. Nesta seção, estaremos trabalhando com a premissa de liberdade de

movimento de capitais. Não faremos isso porque essa política seja mais

desejável do que o controle de capitais. De fato, o controle de capitais é o ideal

um país em processo de desenvolvimento, pois permite manter uma taxa de

juros muito baixa e estável e ter mais controle sobre o câmbio nominal e real.

Entretanto, pensamos que a liberdade de movimento de capitais é uma

opção de política tão difundida que é desejável utilizar o arcabouço das

finanças funcionais para compreender melhor a política econômica sob essa

condição, ainda que ela não seja a ideal.

4.5.2.1. Autonomia da política cambial

As perspectivas de valorização ou desvalorização do câmbio dependem

fortemente das políticas cambiais. A grande maioria dos governos é capaz de

escolher sua taxa de câmbio nominal dentro de uma grande faixa de variação

possível.

Qualquer país pode impedir que sua taxa de câmbio se valorize, assim

como pode desvalorizar sua moeda no montante que deseja. Os governo

emitem moeda. Dessa forma, podem comprar muito mais divisas do que o

volume que estiver à venda e, portanto, tem liberdade completa de impedir

valorizações e promover desvalorizações. Essa capacidade da política

econômica pode não ter respaldo suficiente em termos jurídicos ou políticos. A

Europa, por exemplo, tem encontrado dificuldades em impedir a valorização do

euro, porque seu Banco Central não tem como diretriz prioritária comprar

divisas de forma a manipular a taxa de câmbio. Por seu turno, o Japão tem

sofrido muita pressão dos EUA para que não impeça a valorização do iene.

Nos anos 80 os EUA pressionaram o Japão e a Europa a permitirem a

valorização de suas moedas.

Page 279: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

279

Mas essas constatações, apenas confirmam a regra que queremos

ressaltar: a liberdade da política cambial é muito grande – principalmente na

direção da desvalorização.

Todavia, impedir desvalorizações ou promover valorizações pode ser

mais difícil, pois os governos não possuem uma oferta plenamente elástica de

moeda de outros países. Ainda assim, a grande maioria dos países é capaz de

impedir desvalorizações e até promover valorizações sustentáveis, pelo menos,

a curto ou médio prazo, mas muitas vezes também a longo prazo.

Essa capacidade decorre do grande poder dos Estados Nacionais sobre

as operações comerciais, financeiras e sobre as expectativas acerca das

variáveis macroeconômicas que envolvem moeda nacional. Comprando e

vendendo divisas, manipulando taxas de juros, gastos públicos, tributação geral

e impostos específicos, alterando tarifas alfandegárias, coordenando

expectativas, os governos geralmente se tornam capazes de fixar e mesmo

decidir a variação do câmbio.

Entretanto, com freqüência, para impedir desvalorizações, os governos

precisa fazer usos de políticas que também tem outras funções e, portanto,

modificar outras variáveis econômicas. Alguns governos não precisam de

grande esforço para impedir desvalorizações, já outros podem ser obrigados,

nessas circunstâncias, a tomar medidas politicamente tão difíceis que preferem

aceitar desvalorizações que comprometam suas metas de câmbio ou inflação.

As perspectivas de evolução do câmbio dependem assim

fundamentalmente do poder e da disposição do governo em definir os limites

para flutuação livre da taxa de câmbio sem ser obrigado a enfrentar dilemas

(trade-offs) políticos importantes.

Praticamente todos os governos na prática definem explícita ou

implicitamente tetos e pisos conjunturais para as taxas de câmbio. Os tetos são

definidos basicamente em decorrência do objetivo de controle da inflação.

Como vimos, taxas de inflação elevadas são decorrentes de desvalorizações

acentuadas ou cumulativas da taxa de câmbio. Dessa forma, o controle da taxa

de câmbio é fundamental para a manutenção inflação dentro das metas que o

governo define.

Os pisos para a taxa de câmbio são determinados basicamente pelo

objetivo de limitar o déficit em conta corrente ou para determinar um valor

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280

mínimo para a taxa de crescimento das exportações. Essas variáveis são

fundamentais para a solvência externa do país e para determinação da sua

taxa de crescimento a longo prazo.

O câmbio é, portanto, uma questão de decisão política e não mais um

preço determinado pelo mercado.

4.5.2.2. Política cambial e crédito de longo prazo

4.5.2.2.1. Moeda forte

O conceito de moeda forte é muito utilizado no jornalismo, nas finanças

internacionais em até em debates sobre relações internacionais. É um conceito

útil, se considerarmos que existe algum atributo teoricamente relevante que

diferencia o dólar, o euro e o iene de moedas como o peso mexicano e o real

brasileiro.

O conceito de moeda forte está ligado à propriedade dessa moeda como

ativo financeiro. Não há dúvidas de que é mais rentável guardar euros ou

dólares em um cofre por dez anos do que guardar reais ou outra moeda de um

país subdesenvolvido. Essa certeza decorre da crença generalizada de que

essas moedas se desvalorizarão a longo prazo em relação às primeiras.

Podemos concluir que, ao contrário do que, às vezes se pensa, uma

moeda não é forte quando está valorizada “em termos reais” em relação a

outras. Uma moeda é forte quando existe perspectiva de valorização

nominal a longo prazo dela em relação a outras. O que é muito diferente.

Geralmente uma moeda com perspectiva de valorização a longo prazo é uma

moeda desvalorizada “em termos reais”.

A força da moeda depende da expectativa de valorização nominal

esperada a longo prazo. Se houver um diferencial significativo de inflação

esperada entre os países, a força da moeda dependerá da capacidade e da

disposição do governo que possui taxas de inflação superiores em manter a

taxa de câmbio nominal estável, apesar da tendência a apreciação do câmbio

real.

Page 281: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

281

4.5.2.2.2. Taxa de juros de longo prazo mínima

Vimos que a taxa de juros de curto prazo pode ser reduzida quando a

NFEDcp é não-positiva. Se essa variável for positiva haverá pressão para

aumento dos juros. Dessa forma, a taxa média mínima de juros de curto prazo

é resultado da freqüência e da intensidade das ocorrências de NFEDcp

positivas.

A taxa de juros de longo prazo é uma expectativa média para as taxas

de juros de curto prazo dos períodos futuros mais um spread de risco. Essa

expectativa média é ponderada pela taxa de desconto, de forma a tornar o

futuro mais próximo mais relevante do que o futuro mais distante. Portanto, a

taxa de longo é muito dependente taxas básicas vigentes.

Assim, se a taxa de juros média mínima de curto prazo é resultado da

freqüência e da intensidade das ocorrências de NFEDcp positivas, a taxa de

juros média mínima de longo prazo também muito dependente desses fatores.

Essa explicação para a taxa de juros média mínima de longo prazo

poderia ser aperfeiçoada, se pudéssemos explicar a relação entre a taxa de

juros de longo prazo e essa freqüência de ocorrências de NFEDcp positivas.

Vimos que os empréstimos de longo prazo são relativamente sensíveis

ao diferencial de taxas finais de juros de longo prazo, apesar de não reagirem

tão rapidamente às mudanças nesse diferencial.

Na ausência de intervenção do governo nos mercados cambiais, a

relação entre a taxa de juros mínima de longo prazo e a freqüência em que

seria gerada a NFEDcp positiva dependeria da NFED. Uma NFED negativa

implica que o país não depende de empréstimos de longo prazo. Assim, a

princípio, enquanto a NFED for negativa, raramente ocorreriam episódios em

que a NFEDcp fosse positiva, se o saldo dos empréstimos de longo prazo

forem próximos a zero. Portanto, nesse caso, desde que não existam grandes

expectativas de desvalorização no longo prazo, a taxa de juros nominal de

longo prazo pode ser reduzida até se tornar inferior à taxa americana. O quão

inferior dependerá, além da já citada NFED, da internacionalização e da

competitividade do sistema financeiro nacional em conceder empréstimos

externos a longo prazo.

Page 282: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

282

Essas conclusões seriam válidas se a moeda do país fosse forte. Se a

moeda for fraca, haveria um empecilho que dificultaria manter a taxa de juros

nominal de longo prazo abaixo ou mesmo iguail à taxa americana, mesmo se a

NFED puder ser mantida negativa.

Moedas fracas são aquelas que o mercado considera que a

probabilidade de desvalorização no longo prazo em relação à moeda central é

altíssima. Eventualmente poderiam ser caracterizadas como moedas que

precisam manter taxas de juros permanente e sensivelmente mais elevadas do

que a taxa do país central. Essa proposição possui duas implicações.

Primeiramente, a expectativa de desvalorização significativa da moeda fraca a

longo prazo é muito confiável, pelo menos a taxas de juros similares. E mais

importante, aplicações de longo prazo na moeda mais forte a taxas de juros

equivalentes são mais rentáveis e menos arriscadas.

Dessa forma, à mesma taxa de juros nominal de longo prazo, o setor

privado em geral e principalmente os bancos tenderão a comprar grandes

quantidades de títulos de longo prazo no exterior.

Essa atitude, muito provavelmente implicaria em tendência à NFEDcp

positiva, mesmo quando a NFED for negativa. A taxa de juros de curto prazo

precisaria ser elevada com freqüência e não seria possível sustentar por muito

tempo uma taxa de longo igual ou menor do que a NFEDcp. Poderíamos assim

concluir que, na média, essa taxa precisará ser superior à americana, para que

a exportação de capital na forma de empréstimos de longo prazo fosse

ajustada às condições do balanço de pagamentos.

Porém, a taxa de juros nominal de longo prazo não precisa ser muito

superior à americana, mesmo se a moeda for fraca. Se a inflação for moderada

e esse diferencial for ligeiramente positivo, o volume de exportação de capital

na forma de empréstimos tende a ser moderado. Primariamente porque para

financiamentos de longo prazo o diferencial tem alguma relevância. Além disso,

o risco de curto prazo dessa operação pode ser alto, portanto, para boa parte

dos agentes só seria compensador, se não houvesse diferencial de juros de

longo prazo.

Se a moeda for fraca a taxa de juros nominal de longo prazo só

precisaria ser significativamente superior à americana, se a taxa de inflação

esperada para o futuro for significativamente maior do que a inflação nos EUA.

Page 283: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

283

Porque esse diferencial de taxas de inflação é um importante critério para

formular as expectativas mínimas de desvalorização a longo prazo. Uma

grande diferença esperada entre as expectativas mínimas de desvalorização

esperadas que não é minimamente compensada com um diferencial de juros

nominais, implicará que as aplicações em títulos de longo prazo em dólares

serão significativamente mais rentáveis e menos arriscados do que a aplicação

em títulos nacionais. Portanto, haveria uma demanda muito grande e uma

grande exportação de capital.

Entre moedas fortes, esse diferencial positivo seria desnecessário e um

diferencial negativo seria sustentável. Porque não há uma posição tão

majoritária sobre qual seria a tendência a longo prazo de variação do câmbio

entre essas moedas.

Dessa forma, se o país é solvente, a taxa média mínima de juros

nominal de longo prazo é basicamente uma conseqüência da necessidade de

impedir a exportação de capital na forma de empréstimos externos de longo

prazo e não da necessidade de atrair financiamentos. Porque, sempre que o

país for solvente, é possível manter:

NFED – EEG 0

Onde:

EEG = empréstimos externos tomados pelo governo

Portanto, torna-se desnecessário sustentar um diferencial de juros de

longo prazo para induzir financiamento externo.

Se a moeda for fraca a taxa nominal de juros de longo prazo precisa ser

em média superior à taxa internacional para que a exportação de capital de

longo prazo não acabe tornando a NFEDcp maior do que zero116. Se a moeda

for forte, a taxa de juros mínima pode ser inferior à taxa de juros internacional,

desde que a NFED negativa, pois não faz sentido para o país tomar

empréstimos governamentais no exterior para depois o setor privado nacional

emprestar no exterior a taxas inferiores. O quão menor depende de diversos

116 Esses pisos se referem à moeda que utilizada como reservas cambiais. Caso o país não tenha uma política de reservas tradicional, a referência deverá ser o dólar. Essa referência é importante porque os tomadores privados de longo prazo desejam correr o menor nível de risco cambial possível. Se seu país adota uma determinada moeda como referência, essa é a moeda internacional que tem maior correlação com seus preços internos.

Page 284: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

284

fatores, como a internacionalização e a competitividade internacional do seu

sistema bancário.

4.5.2.2.3. Construção de uma moeda forte e de uma baixa taxa de juros

de longo prazo

A força da moeda pode ser construída. Se o governo desvaloriza o

câmbio para torná-lo competitivo e posteriormente fixa ou garante sua

estabilidade, poderá obter altas taxas de crescimento das exportações. Se

busca minimizar a taxa de juros também estará aumentando a competitividade

e a taxa de crescimento das exportações.

Nessas condições, atrairá uma grande quantidade de capital externo de

longo prazo e acumulará um volume crescente de reservas. Se a taxa de

crescimento das exportações for suficientemente elevada para permitir que o

país atinja um taxa satisfatória de crescimento econômico, não haverá qualquer

necessidade de desvalorização. Nessa situação, não haveria significativa

expectativa de desvalorização da moeda nacional. Pelo contrário, se o país

adotasse um regime de câmbio flutuante a tendência seria de valorização

cambial, devido principalmente à grande entrada de capital de longo prazo.

Essa conclusão é válida, mesmo se a taxa de inflação do setor de não-

importáveis no país for maior do que a taxa de inflação do setor de não-

importáveis da moeda central.

Dessa forma, o país pode construir a situação em que permitiria no

futuro ter uma moeda forte e, portanto, uma taxa de juros mínima de longo

prazo menor do que as taxas internacionais.

Entretanto, independentemente da moeda ser forte ou não, para que as

taxas de juros sejam efetivamente baixas, é necessário que o governo adote

políticas específicas que permitam que a taxa de juros de longo prazo atinja

esse mínimo. Essas políticas são, em primeiro lugar, manter o país solvente e,

em segundo lugar, garantir que não será necessário utilizar a taxa de juros

para atrair financiamento de longo prazo. Para isso é necessário manter:

NFED – EEG 0

Page 285: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

285

As políticas de aumento da competitividade externa acima citadas, não

necessariamente serão capazes de tornar a moeda do país forte. Porém, elas

ainda assim permitem que a taxa de juros mínima de longo prazo possa se

reduzir. Porque aumentam a taxa de crescimento das exportações, melhoram a

solvência, tornam os IDE e os empréstimos de longo prazo mais seguros e

rentáveis em moeda estrangeira, permitem a acumulação de reservas e

reduzem o risco de pressão cambial em decorrência de uma NFEDcp > 0.

4.5.2.2.4. Política cambial, competitividade e crescimento

Kaldor (1971) propõe a relevância da definição de dois tipos de modelos

de crescimento: liderado pelo consumo e liderado pelas exportações. O autor

aparentemente é inspirado nas diferenças entre os processos históricos de

crescimento da Inglaterra e Alemanha do pós-guerra.

Kaldor (1971) sugere que o crescimento liderado pelo consumo seria

menor do que o crescimento liderado pelas exportações. Esse resultado seria

decorrência de um maior crescimento da produtividade no segundo caso,

devido, entre outros motivos, a um maior nível de investimento e participação

na renda do setor industrial.

O autor diagnóstica que uma das principais causas desse resultado seria

o baixo incentivo à exportação em economias com crescimento liderado pelo

consumo. Ele propõe como remédio, que os países usem a taxa de câmbio

competitiva como ferramenta para aumentar esse incentivo às exportações e

conseqüentemente aumentar a rentabilidade do setor industrial no curto prazo,

seus investimentos, sua participação na renda e sua taxa de crescimento da

produtividade.

O modelo que Kaldor (1971) propõe é baseado em uma situação de

pleno emprego permanente garantido por políticas que, poderíamos dizer, são

muito similares às finanças funcionais de Abba Lerner.

Entretanto, o principal objeto deste trabalho são os países onde o pleno

emprego não pode ser atingido com tais tipos de política. Nesses países, os

incentivos à competitividade externa não precisam induzir o crescimento da

produtividade para que gerem uma taxa de crescimento maior no longo prazo.

Page 286: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

286

A moeda do país desvalorizada em termos reais e os juros de longo

prazo reduzidos são incentivos fundamentais para a competitividade externa, e,

portanto, afetam diretamente a taxa de crescimento das exportações e da

economia. Se incluirmos o efeito que Kaldor levanta, essas variáveis se tornam

ainda mais importantes. Kaldor propõe que quanto maior o crescimento das

exportações, maior é o crescimento da produtividade e, portanto, mais

rapidamente cresce a competitividade externa do país. O mesmo poderia ser

dito com relação à taxa de crescimento econômico. Quanto maior é tamanho

futuro esperado de uma economia, maiores são as perspectivas de ganhos de

escala que aumentam a competitividade das exportações e viabilizam a escala

mínima para diversas atividades. Portanto, quanto maior a taxa de crescimento

esperada maiores são os investimentos que destinam parte da produção para

exportação e maiores são os investimentos em substituição de importações.

Vimos acima que as baixas taxas de juros de longo prazo dependem da

manutenção da solvência externa e da força da moeda. Vimos também que

esses atributos podem ser em grande parte construídos com um câmbio real

competitivo e estável.

As baixas taxas de juros também aumentam a competitividade externa

do país, via redução dos preços de oferta das empresas nacionais, aumento na

capacidade de investimento em atividades não relacionadas a atendimento da

demanda interna como P&D e exportações e aumento da capacidade de

financiar aos clientes em comparação a concorrentes externos.

O foco da política de deslocamento da restrição externa será elevar a

taxa de investimento em novos setores industriais ao máximo. Quanto maior é

essa taxa de investimento nesses setores, mais rápida é a taxa de crescimento

das exportações e de substituição de importações.

As políticas cambial e creditícia estão relacionadas com essa a política

industrial de inclusão de novos setores industriais. Se o país mantém o câmbio

suficientemente competitivo, a instalação de novos setores é viável, porque o

país terá custos trabalhistas inferiores aos das nações que dominam tais

setores. A partir desse ponto, poderá ser mais importante para o país garantir a

estabilidade do financiamento externo ao crescimento econômico

acompanhada da instalação desses setores do que buscar ganhos adicionais

de competitividade que possam colocar em risco a estabilidade da taxa de

Page 287: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

287

juros, seu baixo custo e a taxa de investimento em novos setores117. Porque a

taxa de investimentos nesses setores será o principal determinante da taxa de

crescimento das exportações118.

Dessa forma, poderíamos concluir que uma política cambial que vise

manter o câmbio competitivo induzirá um processo de “causação circular

cumulativa” entre a taxa de juros de longo prazo, a taxa de investimento em

novos setores, a taxa de crescimento das exportações e o crescimento

econômico geral.

117 Nessa situação, pode ocorrer o seguinte dilema: (1) Manter uma política de desvalorização sucessiva para garantir o câmbio real relativamente constante, mesmo se a inflação não estiver comprometendo os níveis mínimos desejados de competitividade ou (2) manter o câmbio nominal estável e só alterar, quando for sentida a necessidade de melhorar a competitividade. É provável que o câmbio real seja em média mais competitivo no primeiro caso. No segundo caso, os juros de longo prazo serão menores em média. É provável que, no segundo caso, taxas de juros de longo prazo e de inflação menores impliquem em prazos de financiamentos maiores e, portanto, o haveria um incentivo adicional ao crescimento dos investimentos em exportação. No primeiro caso, a indexação dos salários seria maior e o câmbio real não seria tão mais competitivo em média. Ademais, no segundo caso, a distribuição de renda seria melhor e, provavelmente, crescente. 118 Para manter esse tipo de investimento elevado, é aceitável inclusive que o governo desrespeite temporariamente os indicadores de solvência, quando as importações de bens de capital para as indústrias de exportáveis forem a causa do déficit. Nessa situação, se necessário, o país não teria dificuldade de melhorar esses indicadores, bastaria reduzir levemente a taxa de crescimento ou fazer uma desvalorização do câmbio.

y

j insolvente

solvente

ponto de restrição

externa

“Pleno emprego”

j = Exp%

insolvente

j dólar LP

j mín LP moeda fraca

j mín LP moeda forte

Políticas de competitividade

externa (principalmente

câmbio competitivo)

NFED – EEG 0

NFED 0 e moeda forte

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288

4.6. Política de infra-estrutura

Em primeiro lugar, serviços de infra-estrutura são essenciais para um

grande número de atividades, não podem ser importados e não podem ser

estocados. Em segundo lugar, são serviços cuja responsabilidade de

suprimento se deve ao governo, ou porque (1) o setor privado não supre com a

segurança, qualidade ou custos adequados, devido a externalidades ou outro

tipo das chamadas “falhas de mercado”; ou porque (2) são atividades que são

monopólios naturais; ou (3) porque seu investimento é tão arriscado que o

custo adequado, qualidade, segurança de suprimento, condições de

fornecimento e universalização não podem ser todas garantidas ao mesmo

tempo pelo setor privado.

O suprimento de serviços de infra-estrutura com qualidade, segurança

de suprimento, custos socialmente adequados e internacionamente

competitivos é fundamental para o desenvolvimento econômico. Porém, o setor

privado não pode garantir todas as condições e ainda fazer os investimentos

necessários, se a taxa de crescimento da economia for muito elevada. Isso

acontece ou porque tem dificuldade de se apropriar dos benefícios, ou porque

o prazo de maturação e a relação capital-produto imposta pelos custos

máximos politicamente aceitáveis são muito altas. Quanto maior o prazo de

maturação de um investimento, com mais antecedência tem que ser feito o

investimento para que não haja risco de falta de suprimento. Se um empresário

faz, com cinco anos de antecedência119, um investimento em capacidade

instalada suficiente para superar o pico esperado da demanda cinco anos

depois, o risco de excesso de capacidade será muito elevado. Principalmente

se as taxas de crescimento do país forem muito grandes e incertas. O setor

privado faria investimentos nessas condições, se tivesse garantira de que

poderia cobrar o preço que achasse suficiente, ou se o governo pré-acordasse

uma tarifa suficientemente alta para quando o investimento maturasse. Em

países subdesenvolvidos as condições de risco financeiro desse tipo de

119 Que é o prazo de maturação que pode chegar, por exemplo, os investimentos em grandes hidroelétricas.

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289

investimentos são ainda maiores, além da maior chance de erro de previsão de

demanda, há um maior risco de juros e de câmbio, uma vez que normalmente

não há financiamento privado de longo prazo em moeda nacional120.

Se os serviços de infra-estrutura forem fornecidos pelo setor privado, os

custos necessários para cobrir todos esses riscos implicariam em tarifas de

fornecimentos muito superiores às que poderiam ser fornecidas pelo governo.

Essa diferença seria tanto maior quanto menos desenvolvido for o país e

quanto maiores as taxas de crescimento.

Dessa forma, se o governo não assumir a responsabilidade de oferecer

ele próprio a infra-estrutura, ele deve regular, fiscalizar, financiar e talvez até

subsidiar o setor privado para esse ofereça os serviços nas condições

adequadas.

Gargalos na infra-estrutura podem significar restrições físicas ao

crescimento. O caso paradigmático é a energia elétrica. Mas os gargalos

podem ter outros tipos de conseqüência negativas.

O fornecimento privado pode significar maiores custos, além do maior

risco de desabastecimento. A deficiência em alguns serviços de infra-estrutura

como transporte não trazem risco de racionamento, mas trazem gargalos que

podem reduzir a eficiência da economia, diminuindo, como no caso do

fornecimento puramente privado, a competitividade externa e aumentando os

custos de vida dos trabalhadores. Esse aumento do custo de vida dos

trabalhadores pode resultar em perda de qualidade de vida ou em aumentos

dos salários reduzindo a competitividade.

Altas taxas de crescimento estão normalmente associadas a

crescimento da renda fundiária urbana superior ao crescimento médio. Esse

processo pode também implicar na piora da distribuição de renda, da qualidade

de vida e redução da competitividade internacional. Para evitar ou minorar

essas conseqüências, a política de infra-estrutura urbana deve ser muito ativa.

A infra-estrutura urbana pode ser melhorada principalmente a partir de

investimentos em transporte público, transporte em geral e desconcentração

industrial.

120 A existência de financiamento público barato em moeda nacional não é suficiente para resolver o problema de risco de demanda.

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290

Uma política educacional universalista e gratuita poderia também reduzir

o possível impacto negativo das altas taxas de crescimento sobre a

competitividade externa. O salário é definido por tipo de ocupação e por

instituição em que o trabalhador está empregado. Normalmente as ocupações

que exigem qualificações mais especializadas e possuem uma menor oferta de

trabalhadores permitem maior poder de barganha a eles, que, assim, obtêm

maiores salários. As ocupações mais genéricas que exigem menor qualificação

podem ser acessadas pela maior parte dos trabalhadores, assim, o poder de

barganha é reduzido e os salários são menores.

Essa estrutura pode sofrer uma maior dispersão em momentos de altas

taxas de crescimento. Como os excedentes de mão de obra são normalmente

menores nas ocupações mais especializadas, quando a taxa de crescimento é

alta, esses trabalhadores tem seu poder de barganha aumentado mais do que

proporcionalmente aos trabalhadores das ocupações menos especializadas.

Esse fenômeno pode ter impacto direto sobre a competitividade do país e

indireto via aumento do custo da cesta de consumo média. Se os salários dos

trabalhadores menos qualificados não acompanharem esse aumento de custo,

esses perderiam em qualidade de vida.

Enquanto o pleno emprego não é alcançado, os aumentos salariais

estão concentrados principalmente em qualificações mais especializadas.

Políticas educacionais e de treinamento de mão-de-obra mais universais

permitem que mais trabalhadores tenham acesso às ocupações mais

especializadas e por um menor custo. Dessa forma, os excedentes de

trabalhadores seriam melhor distribuídos, e conseqüentemente o poder de

barganha.

Essas políticas podem assim viabilizar aumentos de salários mais

igualitários entre as categorias e menores em média, enquanto houver

desemprego.

Dessa forma, o governo precisa ter uma política de infra-estrutura ativa

para impedir que o crescimento econômico gere piora na distribuição de renda,

na qualidade de vida, redução da competitividade externa ou risco de

racionamento121.

121 E eventualmente em maior taxa de inflação se o câmbio estiver indexado à inflação.

Page 291: Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)

291

4.7. Políticas de demanda e emprego

Segundo Lerner (1951), existe um nível de atividade que, se

ultrapassado, resultaria em de inflação aceleracionista. A localização desse

ponto dependeria da existência de políticas salariais que impedissem que os

salários subissem acima da inflação antes de se extinguir todo o desemprego

não-friccional. Lerner (1951) chama essa situação de ausência de desemprego

não friccional de alto pleno emprego. Sem essas políticas, a inflação se tornaria

aceleracionista em um ponto com maior nível de desemprego, onde a escassez

de trabalhadores qualificados em algumas categorias ou regiões geraria

aumento geral de preços, apesar da existência de desemprego em outros

lugares.

O governo não deveria tentar alcançar um nível de atividade superior à

do ponto onde a inflação se torna alta, pois, além de não reduzir

significativamente o nível de emprego, causaria uma inflação crescente e

acabaria desorganizando a produção e reduzindo o próprio nível de emprego.

Assim a teoria das finanças funcionais diz que o governo deve manter a

economia no ponto de pleno emprego, nem menos onde causaria desemprego

desnecessariamente, nem mais onde a inflação se tornaria incontrolável.

Nesse ponto, a adoção das finanças funcionais obrigaria o governo a aceitar o

dilema entre as políticas de gasto, tributação e manipulação dos juros. Mais

gastos implicariam em menos tributação ou em mais juros. Menos juros

implicariam em mais tributação ou menos gastos. E mais tributação em menos

gastos ou mais juros.

A teoria das finanças funcionais não sugere qualquer combinação

específica para essas políticas, desde que se mantenha a economia no pleno

emprego. Parar Lerner (1951), as diferentes combinações deveriam ser

escolhidas pelo governo a partir de seus próprios juízos de valor. Por exemplo,

o grau ideal de distribuição de renda ou a relação entre gastos públicos e

privados não são objetos das finanças funcionais.

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292

No entanto, como vimos, para economias abertas, as finanças funcionais

podem não ser indiferentes a quaisquer combinações de juros e inflação. Pelo

menos enquanto o pleno emprego ainda não tiver sido alcançado.

A taxa de juros influencia a competitividade externa do país. Por isso,

deve ser usada muito comedidamente. Essa política poderia comprometer as

taxas de crescimento futuras, porque maiores taxas de juros reduzem a

competitividade do país pelo aumento dos custos de financiamento das

operações de exportação e pelo aumento dos custos gerais da economia.

O efeito negativo sobre a taxa de crescimento das exportações faz com

que a taxa de crescimento do país seja reduzida. Isso acontece mesmo se

adotada as finanças funcionais.

Além disso, como vimos, a utilização de política de juros para conter a

demanda causa distúrbios nos mercados cambiais e tendem a induzir taxas

médias de juros superiores.

A teoria original das finanças funcionais considera que o pleno emprego

pode ser alcançado de forma relativamente rápida somente com políticas de

demanda. Esse resultado pode não ser possível por causa da restrição externa

ou por escassez de infra-estrutura. Se o governo não investir o suficiente em

infra-estrutura, se não tentar induzir a taxa de crescimento das exportações ou

se faltar crédito externo ao país, as tentativas de usar a demanda para

ultrapassar determinados níveis de atividade poderá causar inflação por conflito

distributivo originada por desvalorizações cambiais. Dessa forma, pode não ser

possível alcançar o pleno emprego.

Dessa forma, existem outros pontos de restrição de demanda além do

ponto de pleno emprego. Se o país não tem acesso a financiamento externo

suficiente, por estar insolvente ou por falta de liquidez internacional, esse ponto

será determinado pelo momento em que a NFEDcp for significativamente

positiva.

Como vimos, essa situação tende a gerar pressão cambial, que, se não

for extinta, acabará levando à desvalorização da taxa de câmbio. Se o governo

não tem acesso a financiamento externo de longo prazo, será obrigado a elevar

o saldo em conta corrente para tentar reduzir a NFEDcp. Ele pode fazer isso

desvalorizando o câmbio. Mas se a NFEDcp após a desvalorização

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293

permanecer positiva, o governo será obrigado a adotar políticas recessivas

para reduzi-la. Nesse ponto, a restrição externa será imposta ao governo.

O governo pode ainda restringir as taxas de crescimento da economia

mesmo se a NFEDcp for conjunturalmente negativa. Isso pode acontecer, se o

crescimento econômico implicar em uma taxa de crescimento das importações

superior à taxa de crescimento das exportações. Essa política é necessária

para garantir os indicadores de solvência. Se o país não for mais considerado

solvente, ele poderá ter dificuldade de obter crédito internacional, mesmo em

condições de normalidade dos mercados financeiros internacionais.

O quarto e último ponto de restrição ao crescimento é definido pelo

ponto em que podem surgir riscos de deficiências de infra-estrutura. Como

vimos, gargalos de infra-estrutura física são possíveis. Mas as situações mais

decorrem de redução da competitividade externa ou redução da qualidade de

vida dos trabalhadores.

O objetivo final das finanças funcionais, mesmo nesta versão, é atingir o

pleno emprego com baixos níveis de inflação. Porém, em uma nação que sofre

com a restrição externa e ou gargalos de infra-estrutura o pleno emprego pode

não ser atingível apenas com políticas de demanda.

As políticas de demanda devem ser usadas para induzir o crescimento

da economia sempre que essa não for alcançado nenhum dos pontos de

restrição. Da mesma forma, devem se utilizadas para reduzir a taxa de

crescimento quando a economia tiver ultrapassado algum dos pontos de

restrição.

Nesse sentido, o ponto de restrição que corresponder ao nível de

atividade mais baixo será a verdadeira restrição ao crescimento. As políticas de

demanda devem ser usadas para manter a economia nesse ponto de maneira

parecida com que Lerner sugere. A diferença é que, se a economia for aberta e

esse ponto de restrição não for o próprio nível de pleno emprego, as políticas

monetárias não devem ser usadas como políticas de demanda. Porque, se a

taxa de juros de longo prazo não estiver em seu patamar mínimo, a economia

estaria desperdiçando potencial de crescimento e, portanto, estaria atrasando o

momento de alcance dos objetivos finais das finanças funcionais.

Dessa forma, no ponto de restrição que corresponde ao mais baixo nível

de atividade potencial, é imposto ao governo o dilema entre gastos públicos e

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294

tributação. Mais gastos implicariam em menos tributação e vice-versa.

Dependendo da disposição e capacidade do governo em aumentar a

tributação, em algum ponto, nesse nível de atividade, seria definido o limite ao

gasto público.

Se esse ponto de restrição for o pleno emprego, as necessidades de

maximização da taxa de crescimento se tornam menores e assim seriam

menores os inconvenientes da utilização da política monetária para ajuste de

gasto privado, valendo assim, condições similares às propostas por Lerner.

4.8. Política social

Lerner (1951) não se preocupou em fazer considerações sobre políticas

sociais em sua teoria das finanças funcionais. Essa posição talvez fosse

decorrente da aparente pouca dificuldade que ele via de se atingir o pleno

emprego. Em uma situação de pleno emprego as questões sociais estão em

geral associadas a questões específicas ou questões de grande polêmica

ideológica. Dessa forma, talvez ele considerasse pouco relevante e produtiva a

inclusão dessas questões em suas propostas.

Entretanto, em países subdesenvolvidos, o pleno emprego só pode ser

atingido depois de um processo longo, conflituoso e sujeito a todo tipo de

interrupções e retrocessos. Nesse caso, a mesma razão que torna o pleno

emprego desejável faz com que seja também desejável outros mecanismos

para garantir renda e condições mínimas de vida, enquanto o pleno emprego

não é possível.

A princípio alguém poderia pensar que oferecer pleno emprego seja

mais “barato” do que oferecer renda e serviços públicos mínimos. Entretanto,

no curto prazo, pode ser mais “barato” em termos de importações oferecer aos

desempregados renda ou emprego no governo do que emprego no setor

privado. O ideal é oferecer um emprego no setor privado em setores de alto

valor agregado. Entretanto, essa opção pode ser muito cara. É necessário um

volume grande de investimento para gerar empregos nesses setores,

investimento esse que demanda um grande volume de insumos e maquinário

importado e um grande volume de crescimento da renda (e portanto, das

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295

importações) para que uma parte seja destinada ao salário do novo

empregado.

Dessa forma, as políticas de renda ou emprego público complementares

ou emergenciais e de fornecimento de serviços públicos gratuitos permitem que

o país possa oferecer renda mínima e serviços públicos para uma quantidade

maior de pessoas do que seria possível se simplesmente com políticas

tradicionais de demanda, para um mesmo patamar de exportações e

coeficiente de importações. Assim, políticas de assistência social universais

são fundamentais.

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296

Considerações finais

“Objetividade [em economia] não resulta em desconsiderar o que deve ser para se focar apenas no que é, mas simplesmente evitar manter por debaixo dos panos a defesa dos objetivos desejados sem deixar claro que isso está sendo feito, ou sem deixar claro de quem são os interesses envolvidos” [Tradução livre, grifos no original] (Lerner, 1969: 131; apud Forstater, 1999: 1)

Apesar dos problemas práticos encontrados, devemos dizer que as

políticas de perfil keynesiano adotadas nos 25 anos seguintes à segunda

guerra foram, em geral, muito bem-sucedidas. Certamente lograram seus

principais intentos. Naqueles anos, demonstrou-se na prática, pela primeira vez

na historia da civilização ocidental, que a miséria não era uma inevitabilidade.

Aliás, demonstrou-se que a miséria não era um problema de difícil solução.

A Europa, o Japão, a América do Norte e as ilhas Anglo-Saxônicas do

Pacífico sempre conviveram com desemprego considerável e mesmo pobreza

antes da segunda guerra mundial. Nesses países, mesmo a classe

trabalhadora empregada vivia normalmente em condições que em apenas 15

anos depois da guerra poderiam ser consideradas muito precárias por eles

próprios ou seus filhos.

Em todos esses países, que adotaram decisivamente os princípios

keynesianos coerentes com as finanças funcionais, o nível de emprego atingiu

permanentemente níveis raramente alcançados. As condições de assistência

social, saúde e educação permitiram um grau de cidadania que tornou as

velhas utopias de democracia política e social realmente palpáveis. Em alguns

países, como a Suécia, os níveis de distribuição de renda alcançaram níveis

considerados impossíveis sob o capitalismo.

Apesar de todos os problemas e conflitos da época, a humanidade

sentiu a possibilidade do progresso em todas as áreas. E assistiu o progresso.

Os direitos políticos e sociais atingiram níveis muito elevados. As minorias

começaram a obter conquistas cada vez maiores.

No chamado terceiro mundo, as esperanças eram as mesmas. A

descolonização da África e da Ásia e o progresso econômico em certos países

da América Latina indicava que um dia os níveis de desenvolvimento

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297

alcançado nos países industrializados pudessem ser atingidos. Chegou a ser

dominante a máxima de que o desenvolvimento era apenas uma questão de

etapas necessariamente transponíveis. Todos um dia chegariam lá.

Hoje vivemos em um mundo muito diferente. Entre os anos 70 e 90, os

princípios que sustentaram a revolução keynesiana foram duramente

combatidos e suas propostas foram, em grande parte, substituídas pelas

políticas do liberalismo econômico típicas do período anterior à primeira guerra

mundial e que fora, por acaso, marcado pelo chamado imperialismo.

A distribuição de renda piora e a pobreza cresce nas nações centrais. As

regiões outrora periféricas estão divididas em duas realidades completamente

diversas. De um lado temos o leste asiático utilizando políticas muito ativas

para conduzir um processo de desenvolvimento econômico numa velocidade

comparável e, às vezes, superior à obtida na era de ouro do capitalismo.

Por outro lado, temos a África e a América Latina, onde as sociedades

perderam completamente as esperanças e deixaram de acreditar em sua

própria capacidade de construir um futuro. Nesses países, as políticas

econômicas formuladas sob as bases da ortodoxia econômica dominam. Essas

políticas criam amarras que impedem a sociedade de agir coletivamente por

meio do Estado. A ortodoxia econômica insiste que a sociedade não deve

utilizar os instrumentos disponíveis para alcançar suas potencialidades. Os

economistas ortodoxos defendem o uso dessas amarras com os mesmo

argumentos e propostas criticados por Lerner no início dos anos 40 do século

passado. As Finanças Saudáveis foram rejuvenecidas e voltaram a ser

seguidas com afinco na América Latina, África e em boa parte da Europa.

Nesse ambiente, é muito preocupante a quase completa descrença com

relação aos princípios das finanças funcionais. A desconsideração apriorística

das finanças funcionais não é apenas uma atitude anti-científica. É antes de

tudo uma opção explícita pela mediocridade e pelo status quo. Suas

promessas são muito boas para serem desconsideradas. Seus mecanismos

são muito simples para não serem compreendidos. Suas políticas não têm

custo significativo, não sendo aceitável que não sejam cogitadas. Suas

realizações já foram demonstradas, não é justificável que sejam

desacreditadas.

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298

No entanto, a evolução da teoria econômica e a experiência histórica

podem ter contribuído para tornar mais claras as insuficiências da teoria das

finanças funcionais de Abba Lerner para países subdesenvolvidos.

Sugerimos que as limitações encontradas nas teorias das finanças

funcionais decorrem da desconsideração, por parte de Lerner, da importante

relação entre câmbio e inflação. Essa posição resulta na dificuldade em

perceber: (1) as limitações do câmbio flutuante em deslocar a restrição externa

e (2) a necessidade de utilizar o câmbio como instrumento de combate à

inflação.

Essas limitações impedem que a teoria das finanças funcionais possa

alcançar sua meta de pleno emprego com estabilidade de preços em países

subdesenvolvidos.

De forma simplificada, poderíamos dizer que esses países

freqüentemente precisariam alcançar níveis de exportação por habitante

superiores para que possam viabilizar o pleno emprego com estabilidade de

preços.

Foi proposto nesse trabalho repensar a teorias das finanças funcionais

de forma que ela possa ser aplicada em países que sofrem de restrição

externa. Nessa situação, em particular, se há liberdade de movimento de

capitais, o governo enfrenta maiores dilemas. Para enfrentá-los é necessário

definir diversas metas intermediárias. Dessa forma, nessas condições, as

finanças funcionais precisam incorporar novos instrumentos.

O primeiro instrumento adicional é a utilização de tetos para a taxa de

câmbio como forma de combate à inflação. A manutenção desses tetos

depende da capacidade do governo em manter controlada a pressão cambial.

A pressão cambial é o excesso de demanda por moeda estrangeira decorrente

de um fluxo estrutural de dividas negativo (NFEDcp > 0). Os instrumentos

próprios para administrar a pressão cambial são principalmente a política

monetária, de reservas cambiais e de endividamento público externo. A

variação da taxa de juros e a venda de reservas são as políticas adequadas

para controlar a pressão cambial no curto prazo. A expansão econômica, a

manutenção de câmbio competitivo e o endividamento público no exterior são

as políticas adequadas para administrar a pressão cambial para prazos

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299

maiores por serem formas de aumentar o volume de financiamento de longo

prazo e de diminuir a necessidade de financiamento externo.

As políticas originais sugeridas pelas finanças funcionais para expansão

do emprego mantêm-se com o mesmo fim. Porém, é esperado que elas não

sejam capazes de alcançar sozinhas o pleno emprego. O crescimento do nível

de atividade tende a deteriorar no curto prazo os indicadores de solvência

externa do país, o que pode levar as políticas de administração da pressão

cambial à inoperância e, conseqüentemente, ao descontrole da taxa de câmbio

e, assim, da taxa de inflação.

Para que o crescimento econômico não implique na deterioração dos

indicadores de solvência, é necessário que o crescimento das exportações se

mantenha acima do crescimento das importações e, eventualmente, que o país

obtenha um saldo em conta corrente positivo. Os instrumentos que visam esse

fim são a política industrial, de minimização do custo do crédito de longo prazo

e a manutenção de uma taxa de câmbio competitiva.

Em especial nos países subdesenvolvidos com alta taxa de crescimento,

é necessário que o governo invista recursos suficientes na política de infra-

estrutura, para que o crescimento econômico não implique em gargalos na

infra-estrutura. Esses gargalos poderiam causar restrições físicas ao

crescimento, redução da competitividade externa ou na qualidade de vida da

população.

Sugere-se ainda que as finanças funcionais incorporem como meta uma

política de garantias mínimas e de melhorias contínuas no padrão de vida, para

que a população tenha acesso à infra-estrutura social básica e para que não

fique desamparada enquanto o pleno emprego ainda não é uma realidade.

Neste trabalho, foi dada especial atenção à taxa de juros. Buscou-se

mostrar que mesmo sob liberdade de movimento de capitais, a autonomia da

política monetária é muito grande e não há justificativas para manter taxas de

juros de curto ou longo prazo permanentemente superiores à média

internacional e mesmo sensivelmente superiores às taxas americanas. Se essa

proposição estiver realmente correta, o controle de capitais não seria

imprescindível à redução dos juros. O controle de capitais é uma política

eficaz e, muito provavelmente, é a melhor solução para uma política de

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“gestão” dos fluxos de capital especulativo. Mas pode ser desnecessária para a

retomada do processo de crescimento acelerado.

Não temos a pretensão de que essas propostas sejam a melhor solução

para a adaptação da teoria das finanças funcionais para os problemas da

restrição externa, em particular com relação às breves exposições sobre

política industrial, de infra-estrutura e social. Buscamos apenas sugerir

soluções para as insuficiências da versão original que fossem coerentes com

seus objetivos e método. Esperamos que essas propostas possam contribuir

para reacender o debate sobre a validade das finanças funcionais nas

condições contemporâneas. Em particular, desejamos que a viabilidade das

promessas contidas na teoria de Abba Lerner possa novamente ser colocada

como centro das discussões sobre política econômica e de desenvolvimento.

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