Santos - Uma Releitura Da Teoria Das Financas Funcionais (Tese)
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1
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE ECONOMIA
UMA RELEITURA DA TEORIA DAS
FINANÇAS FUNCIONAIS
GUSTAVO ANTÔNIO GALVÃO DOS SANTOS
ORIENTADOR: FÁBIO N. P. DE FREITAS
Rio de Janeiro
2005
2
UMA RELEITURA DA TEORIA DAS
FINANÇAS FUNCIONAIS
GUSTAVO ANTÔNIO GALVÃO DOS SANTOS
Tese apresentada ao Instituto de Economia da
Universidade Federal do Rio de Janeiro como
requisito parcial à obtenção do título de Doutor em
Economia.
ORIENTADOR: FÁBIO N. P. DE FREITAS
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Instituto de Economia
Rio de Janeiro
2005
3
UMA RELEITURA DA TEORIA DAS
FINANÇAS FUNCIONAIS
GUSTAVO ANTÔNIOGALVÃO DOS SANTOS
TERMO DE APROVAÇÃO
Tese a ser defendida 31 de agosto 2005, como requisito parcial à obtenção do título de
Doutor em Economia, junto ao Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio
de Janeiro, pela Banca Examinadora formada pelos professores:
Prof. Fábio Freitas (Orientador)
Prof. Carlos Lessa
Prof. Franklin Serrano
Prof. Carlos Pinkusfeld Bastos
Prof. Antônio Henrique Pinheiro Silveira
4
Não sou imparcial. Sou parcial a tudo que prometa nos tirar
desta triste rotina de oligarquias eternizadas e privilégios
intocáveis, ou miséria eternizada e submissão intocável, e a
esta outra triste rotina de governos de esquerda abatidos no
nascedouro - quando não se autodestroem. E, claro, ao
Internacional e ao Botafogo, mesmo quando não merecem. No
Brasil, ser objetivo é quase uma forma de cumplicidade.
Veríssimo
>
“Se a norma fundamental do discurso teórico é a adequação descritiva ou representativa – ou verdade – a norma fundamental do discurso prático é a consecução, realização ou satisfação dos desejos, necessidades e propósitos humanos. Se há razões reais (causas) para a crença ou ação, não devemos nos equivocar sobre elas, pois se fracassamos na verdade podemos igualmente fracassar na satisfação” (Bhaskar, 1978: 206; tradução livre baseada em Duayer e Medeiros, 2003).
A propósito: na inauguração do governo Lula, num assomo de
otimismo e bairrismo, elogiei todos os gaúchos do Ministério —
Tarso, Olivio Dutra, Dilma Rouseff, Miguel Rosseto — e escrevi
que, se desse errado, seria culpa dos paulistas. Estou
pensando seriamente em comprar um turbante e me
estabelecer como vidente.
Veríssimo
5
Resumo
Esta tese objetiva adaptar a teoria das finanças funcionais para a realidade dos países que sofrem de restrição externa ao crescimento. No primeiro capítulo, será exposto a teoria das finanças funcionais tal como proposta por Lerner. Nas finanças funcionais, a meta de pleno emprego com estabilidade de preços pode ser alcançada com apenas um instrumento: políticas (fiscais e monetárias) para manipulação da demanda doméstica. No segundo capítulo, serão desenvolvidas as teorias Lernerianas da inflação. Nesse capítulo, indicaremos as possíveis insuficiências dessas teorias por desconsiderar a relação entre desvalorização cambial e inflação e, conseqüentemente, a restrição externa. O terceiro capítulo buscará propor uma explicação alternativa sobre a evolução da taxa de câmbio e o papel dos juros no financiamento externo. Em particular, tentaremos mostrar que, em economias abertas, a autonomia da política monetária é muito maior do que normalmente se supõe. Essa teoria será útil para a reformulação das finanças funcionais no capítulo seguinte. No quarto capítulo, será proposta uma adaptação da teoria das finanças funcionais para a situação de restrição externa. A versão proposta das finanças funcionais possuirá seis instrumentos: (1) políticas de manipulação da demanda doméstica, (2) políticas industriais e de competitividade externa, (3) políticas de administração do movimento de capitais e de indução de financiamento externo, (4) política de infra-estrutura, (5) política anti-inflacionária e (6) política social.
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Glossário
CK = saldo na conta de capitais DCC = déficit em conta corrente BP = saldo do balanço de pagamentos R = variação de reservas cambiais
AmE = saldo das amortizações dívidas de externas pagas DCC = déficit em conta corrente IDE = investimentos externos diretos líquidos EElp = saldo empréstimos externos de longo prazo tomados pelo setor privado
EEG = empréstimos externos tomados pelo governo FFEcp = saldo das fontes de financiamento externo de curto prazo Rmín = compras mínimas de reservas cambiais pelo
governo para recompor as reservas planejadas. R– = compras de reservas cambais acima do mínimo
planejado Amcp = Saldo das amortizações pagas da dívida externa de curto prazo estoq. Elp = Elp – Amlp = crescimento do estoque de
dívida externa de longo prazo NFE = DCC + AmE + Rmín
NFE = Necessidade de Financiamento Externo NFED = NFE - IDE NFED = Necessidade de Financiamento Externo de Dívida NFEDcp = NFED – Eelp = – (fluxo estrutural de divisas) NFEDcp = Necessidade de Financiamento Externo de Dívida de curto prazo Pressão cambial = NFEDcp - FFEcp NFE estrutural = a NFE que se espera que obter, se forem adotadas políticas contracionistas aceitáveis para redução da NFE NFEDcp pós-desvalorização = NFEDcp que se espera obter, se o câmbio for desvalorizado dentro de patamares aceitáveis
7
Introdução
A teoria das finanças funcionais propõe que o governo pode atingir a
meta de pleno emprego com baixas taxas de inflação através simplesmente de
políticas fiscais ou monetárias expansionistas e câmbio flutuante. Em países
que sofrem restrição externa esse resultado não é possível. Os objetivos
principais deste trabalho são: (1) mostrar porque a meta das finanças
funcionais não é alcançável, nessas circunstâncias, com os instrumentos de
política originalmente propostos e (2) identificar os instrumentos que tornariam
essa meta atingível sob condições de restrição externa.
A teoria econômica ortodoxa convencional acredita que o desemprego é,
na pior das hipóteses, um evento fugaz. Essa teoria sofreu uma grande crise
durante a grande depressão e manteve-se relativamente marginal por pelo
menos três décadas.
Nos anos 30, o alto e permanente desemprego não era apenas uma
evidência inquestionável, ele “caía no colo” dos economistas cobrando
soluções. No entanto, os conselhos dos economistas ortodoxos tradicionais
não surtiam efeitos.
Como sempre, esses só podiam dar a resposta usual: sugeriam que
mantendo a disciplina fiscal, o que era praticamente impossível devido à
redução da renda, em algum momento a atividade econômica iria se recuperar
voltando ao equilíbrio. Se a proposta surtisse o efeito esperado, todos ficariam
satisfeitos, caso contrário, a culpa seria dos governantes que não esperaram
tempo suficiente ou não tiveram a disciplina necessária em suas contas fiscais.
No entanto, dessa vez, o problema era muito grave para esperar que o
mundo se adaptasse às abstrações dos economistas ortodoxos. Os governos
da maioria os países foram obrigados a adotar soluções ad hoc contrárias a
seus conselhos. Freqüentemente essas soluções surtiram efeitos positivos, o
que tornava a prática política cada vez mais distante da teoria econômica.
Keynes escreveu em 1936 sua ‘Teoria Geral’, oferecendo uma
explicação inovadora e satisfatória para a existência de desemprego. Em
pouco tempo revolucionaria a disciplina e toda gestão de política econômica. O
autor sugeriu que a falta de trabalho poderia ser combatida com políticas fiscais
ou monetárias expansionistas.
8
Inicialmente, apesar da grande atenção despertada, havia uma
importante dúvida. Como operar uma política de aumento dos gastos públicos,
se na depressão a arrecadação de impostos estava muito reduzida e não havia
superávit público?
Abba Lerner, no início dos anos 40, foi o primeiro a responder a essa
pergunta e assim preencher a principal lacuna que faltava para difundir a
revolução keynesiana. Abba Lerner buscou, antes de tudo, mostrar que não
existiria qualquer empecilho de ordem fiscal, contábil-fiscal ou de grau de
endividamento público que pudesse impedir a economia de alcançar o pleno
emprego. Ele chamou essa teoria de finanças funcionais.
Essa teoria ajudou a dar a segurança que faltava aos keynesianos em
relação às possibilidades da política fiscal. Esses economistas puderam assim
preparar o espírito de sua época para receber o arcabouço de gestão
macroeconômica que ajudou a construir a chamada de era de ouro do
capitalismo, nos 25 anos seguintes à segunda guerra mundial.
O sucesso econômico e social sustentou um forte otimismo nos países
industrializados. Esse otimismo transbordou as fronteiras e chegou ao terceiro
mundo, que naqueles anos, chegou a achar que o desenvolvimento era
possível. Essa crença ajudou a sustentar as políticas que fizeram com que o
Brasil tivesse a mais alta taxa de crescimento do mundo.
Hoje, a realidade brasileira é muito diferente. Vivemos uma profunda
crise social e sem qualquer perspectiva de melhoria. O setor privado não pode
resolver essa situação, pois só pode gerar empregos se houver demanda.
Como nos anos 30, só o governo pode dar a resposta necessária. Essa
proposição implica que a continuidade da crise decorre da mediocridade das
propostas de política econômica atuais. Essas propostas, antes de tudo,
obrigam o governo limitar os investimentos públicos e os gastos sociais ao
mínimo, para que sejam garantidas metas contábeis-fiscais arbitrárias.
A teoria das finanças funcionais faz falta nesses momentos. Ela poderia
ser uma esperança. As finanças funcionais são muito coerentes com a política
econômica que ajudou a sustentar o Estado do bem-estar social. Elas
prometem a viabilidade do pleno emprego com baixa inflação. Se pudessem
ser adaptadas à realidade dos países com crônica dificuldade de balanço de
9
pagamentos, em particular aos países subdesenvolvidos, poderiam ser uma luz
na escuridão contemporânea.
Entretanto, o subdesenvolvimento não foi o objetivo de Abba Lerner ao
formular a teoria. As finanças funcionais pareciam, na época, se assentar como
uma luva à realidade dos países industrializados. No entanto, é uma teoria que
encontra dificuldades para explicar certos fenômenos, como as limitações à
política econômica nos países subdesenvolvidos e certos processos
inflacionários. Em geral, essas dificuldades estão relacionadas com a restrição
externa.
Dessa forma, esta tese objetiva adaptar a teoria das finanças funcionais
para a realidade dos países que sofrem de restrição externa ao crescimento.
No primeiro capítulo, vamos expor a teoria das finanças funcionais tal como
proposta por Lerner. Nas finanças funcionais, a meta de pleno emprego com
estabilidade de preços pode ser alcançada com apenas um instrumento:
políticas (fiscais e monetárias) para manipulação da demanda doméstica.
No segundo capítulo, serão desenvolvidas as teorias Lernerianas da
inflação. A inflação é fundamental para as finanças funcionais. Nessa teoria,
para manter a inflação controlada, bastaria manter o nível de atividade no nível,
chamado por Lerner, de baixo pleno emprego. Essa proposição possui
limitações. Nesse capítulo, indicaremos as possíveis insuficiências dessas
teorias por desconsiderar a relação entre desvalorização cambial e inflação e,
conseqüentemente, a restrição externa.
Por dar pequena atenção à restrição externa e por ter feito suas
propostas em um momento onde o controle de capitais era generalizado,
Lerner acabou não considerando as possíveis limitações que as taxas de juros
poderiam sofrer em decorrência dos movimentos de capitais.
No mundo atual, a liberdade de movimento de capitais tem sido a regra.
Nesse sentido, convém explicar as relações econômicas nessas
circunstâncias, ainda que elas possam não ser a política ideal. O terceiro
capítulo buscará propor uma explicação alternativa sobre a evolução da taxa
de câmbio e o papel dos juros para o financiamento externo sob essas
condições. Em particular, tentaremos mostrar que, em economias abertas, a
autonomia da política monetária é muito maior do que normalmente se supõe.
10
Essa teoria será útil para a reformulação das finanças funcionais no capítulo
seguinte.
No quarto capítulo, será proposta uma adaptação da teoria das finanças
funcionais para a situação de restrição externa. Sob restrição externa e com
liberdade de movimentos de capitais os desafios enfrentados pelos governos
são maiores. Torna-se, assim, necessário a adoção de um maior número de
metas intermediárias e, portanto, um maior número de instrumentos.
Dessa forma, a versão proposta das finanças funcionais possuirá seis
instrumentos: (1) políticas de manipulação da demanda doméstica, (2) políticas
industriais e de competitividade externa, (3) políticas de administração do
movimento de capitais e de indução de financiamento externo, (4) política de
infra-estrutura, (5) política anti-inflacionária e (6) política social.
11
Índice
INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 7
INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 7
1º CAPÍTULO: FINANÇAS FUNCIONAIS SEGUNDO LERNER ....................... 14
1.1. A MOTIVAÇÃO PRIMEIRA DAS FINANÇAS FUNCIONAIS: .......................................... 14
1.2. AS FINANÇAS SAUDÁVEIS .................................................................................... 15
1.3. LERNER E A TEORIA DAS FINANÇAS FUNCIONAIS ................................................... 16
1.3.1. Lições de Lerner para as finanças públicas e política econômica .............. 22
“Lição 1: Pleno emprego, estabilidade de preços e um padrão de vida decente
para todos são metas macroeconômicas fundamentais e é responsabilidade do
Estado promover sua obtenção”. ........................................................................ 22
“Lição 2: As políticas devem ser julgadas pela sua habilidade em alcançar os
objetivos para que elas foram projetadas e não qualquer noção sobre se elas são
“saudáveis” ou se estão em conformidade com os dogmas da economia
tradicional”. ........................................................................................................ 23
“Lição 3: ‘Dinheiro é uma Criatura do Estado’”. ............................................... 23
“Lição 4: Tributação não é uma operação de financiamento”. ........................... 27
“Lição 5: Emissão de dívida pública não é uma operação de financiamento”. .. 31
“Lição 6: O propósito primário da tributação é influenciar o comportamento do
público”. ............................................................................................................. 31
“Lição 7: O propósito primário da venda de títulos de dívida pelo governo é
regular a taxa de juros no overnight”. ................................................................ 32
“Lição 8: A venda de títulos seguem, ao invés de preceder, os gastos do
governo”. ............................................................................................................ 37
“Lição 9: O ato de ‘Imprimir dinheiro’ em si mesmo não tem absolutamente
nenhum impacto na economia”. ......................................................................... 38
“Lição 10: Sem uma política de pleno emprego, a sociedade não pode se
beneficiar do avanço de tecnologias poupadoras de trabalho, o que é eficiente se
torna ineficiente. Com uma política de pleno emprego, técnicas poupadoras de
trabalho tornam-se verdadeiramente benéficas para a sociedade”. .................... 38
“Lição 11: Sem uma política de pleno emprego, um país pode ser prejudicado
pelos resultados do seu saldo comercial. Com uma política de pleno emprego,
não há necessidade de preocupação por se estar importando muito relativamente
às exportações”. .................................................................................................. 39
“Lição 12: São contra-produtivas as tentativas de argumentar que o déficit e a
dívida pública não são tão grandes quanto parecem, ou que se nós os medirmos
de forma diferente ou se mantivermos uma conta de capital [no orçamento
público], [ver-se-ia que os montantes dessas variáveis] não são realmente tão
ruins”. ................................................................................................................. 40
“Lição 13: Quando há desemprego, postos de trabalho e moeda – e não recursos
e bens – são escassos”. ....................................................................................... 41
“Lição 14: Finanças Funcionais não é uma política, mas um arcabouço dentro do
qual todo um conjunto de políticas pode ser conduzido”. .................................. 41
“Lição 15: Para alcançar o [mais alto nível de] pleno emprego, gastos do
governo podem ter que incluir criação de trabalho direto”. ............................... 42
1.3.2. Limites aos estoques de riqueza em papéis de dívida pública? ................... 42
CAPÍTULO 2: LIMITAÇÕES .................................................................................... 51
12
2.1. TEORIAS LERNERIANAS DE INFLAÇÃO .................................................................. 55
Conflito distributivo ................................................................................. 66
Aspectos políticos do (baixo) pleno emprego ............................................ 70
2.2. BALANÇO DE PAGAMENTOS E AS FINANÇAS FUNCIONAIS SEGUNDO LERNER ........ 75
2.2.1. Restrição externa .......................................................................................... 75
2.2.2. A visão otimista de Lerner ............................................................................ 77
2.2.3. Câmbio e Inflação ........................................................................................ 80
2.2.3.1. Inflação em economias abertas .............................................................. 81
2.2.3.2. Câmbio flutuante não elimina a restrição externa ................................. 89
2.2.3.3. Câmbio, pleno emprego e finanças funcionais ...................................... 92
CAPÍTULO 3: CÂMBIO, JUROS E FINANCIAMENTO EXTERNO ................. 94
3.1. TENDÊNCIAS DA TAXA DE CÂMBIO: A PRESSÃO CAMBIAL ..................................... 94
3.2. ELEVAÇÃO DOS JUROS NÃO ELIMINA A RESTRIÇÃO EXTERNA ............................. 113
3.2.1. A visão tradicional ..................................................................................... 114
3.2.1.1. Juros ..................................................................................................... 114
3.2.1.2. A opção pela paridade coberta............................................................. 117
3.2.1.3. Mobilidade imperfeita de capitais, substituição imperfeita de ativos,
prêmio de risco e expectativa cambiais ............................................................ 119
3.1.2.4. Expectativas cambiais e prêmio de risco endógenos e função da curva
BP? ................................................................................................................... 121
3.2.1.5. Curva BP e restrição externa ............................................................... 122
3.2.1.6. Questionamentos ................................................................................. 125
3.2.1.7. Explicações ortodoxas ......................................................................... 126
3.2.1.8. Juros altos para maximizar o crescimento? ......................................... 131
3.3. UMA NOVA VISÃO: OS JUROS SÃO ALTOS PORQUE SÃO ALTOS ............................ 133
3.3.1. Endogenidade do custo de oportunidade em moeda estrangeira .............. 133
3.3.1.1. Bresser-Nakano ................................................................................... 136
3.3.1.2. Cirne de Toledo ................................................................................... 141
3.3.2. Uma Crítica à paridade juros .................................................................... 145
3.3.2.1. introdução: Heterodoxia tradicional e paridade juros.......................... 145
3.3.2.2. Endogenidade do custo de proteção cambial ....................................... 147
3.3.2.3. Endogenidade do custo de proteção cambial e risco-país ................... 152
3.4. A variação dos juros pode ser mais importante do que o diferencial ........... 154
3.4.1. Diferencial de juros, fluxo ou estoque? .............................................. 155
3.4.2. Taxas de juros e o financiamento externo de curto prazo .................. 159
3.4.3. Pressão cambial e elevação dos juros ................................................. 160
3.4.3.1. Manipular os ganhos de capital: uma oportunidade para os
especuladores e para a política econômica ............................................... 164
3.5. Elevação dos juros não é solução definitiva contra a pressão cambial ....... 171
3.6. Investimento externo direto, empréstimos de longo prazo e política de
financiamento externo .......................................................................................... 181
3.6.1. A importância da solvência externa........................................................ 190
3.6.2. Política cambial e creditícia .................................................................... 205
3.6.2.1. Autonomia da política cambial ........................................................ 206
3.6.2.2. Política cambial e crédito de longo prazo ........................................ 208
3.6.2.2.1. Moeda forte .............................................................................. 208
3.6.2.2.2. Taxa de juros de longo prazo mínima ...................................... 208
3.6.2.2.3. Construção de uma moeda forte e de uma baixa taxa de juros de
longo prazo ............................................................................................... 211
13
3.6.2.2.4. Política cambial, competitividade e crescimento ..................... 213
CAPÍTULO 4: FINANÇAS FUNCIONAIS SOB RESTRIÇÃO EXTERNA ...... 216
4.1. POR UMA PROPOSTA DE AMPLIAÇÃO DAS FINANÇAS FUNCIONAIS ....................... 217
4.2. A PROPOSTA ....................................................................................................... 225
4.3. POLÍTICA ANTI-INFLACIONÁRIA .......................................................................... 239
4.4. ADMINISTRAÇÃO DA PRESSÃO CAMBIAL ............................................................. 244
4.4.1. NFEDcp, pressão cambial, juros e inflação: uma retrospectiva ............... 247
4.4.2. Financiamento de curto prazo da NFEDcp: solução ágil mas temporária 253
4.4.2.1. Políticas mais adequadas para financiamento de curto prazo da NFEDcp
.......................................................................................................................... 254
4.4.2.2. Não existe diferencial mínimo para as taxas de juros no curto prazo . 259
4.4.2.3. Políticas ineficientes, mas potencialmente complementares em períodos
críticos .............................................................................................................. 263
4.4.3. Políticas de financiamento da NFEDcp com emissão de dívida pública
externa .................................................................................................................. 266
4.4.4. Políticas de redução da NFEDcp ............................................................... 267
4.5. POLÍTICAS PARA DESLOCAMENTO DA RESTRIÇÃO EXTERNA................................ 270
4.5.1. Políticas industriais e comerciais ............................................................ 272
4.5.2. Política cambial e creditícia .................................................................... 277
4.5.2.1. Autonomia da política cambial ........................................................ 278
4.5.2.2. Política cambial e crédito de longo prazo ........................................ 280
4.5.2.2.1. Moeda forte .............................................................................. 280
4.5.2.2.2. Taxa de juros de longo prazo mínima ...................................... 281
4.5.2.2.3. Construção de uma moeda forte e de uma baixa taxa de juros de
longo prazo ............................................................................................... 284
4.5.2.2.4. Política cambial, competitividade e crescimento ..................... 285
4.6. POLÍTICA DE INFRA-ESTRUTURA ......................................................................... 288
4.7. POLÍTICAS DE DEMANDA E EMPREGO .................................................................. 291
4.8. POLÍTICA SOCIAL ................................................................................................ 294
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................... 296
BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................ 301
14
1º Capítulo: Finanças Funcionais segundo Lerner
Keynes: “Sugerir à City de Londres uma ação social para o bem público é como discutir a Origem das Espécies com um bispo, sessenta anos atrás. A primeira reação não é intelectual, mas moral. É uma ortodoxia que está em questão e, quanto mais persuasivo os argumentos, mais grave será a ofensa.”
1.1. A motivação primeira das finanças funcionais:
“‘Fogo’, diz o velho provérbio, ‘é um bom servo, mas um mal mestre’. Isto é verdade não somente para o fogo, mas para todo instrumento que tenha sido projetado para ajudar o homem a alcançar seus fins. Quando o uso de algum instrumento se torna habitual, as pessoas tendem a esquecer os propósitos para que eles foram estabelecidos, os meios usurpam o status de fins, e nós freqüentemente temos o próprio fim sacrificado [em benefício] ao meio originalmente projeto para servi-lo. (...) A elevação do meio a um fim pode constituir a base da tragédia do fanatismo ou idolatria. (...) Na economia nacional nos temos visto isto na elevação do mecanismo de orçamento de um instrumento que tinha um papel a cumprir na saúde econômica em um princípio de equilibrar o orçamento em cujos pés a melhor saúde da economia pode ser oferecida como um sacrifício [em sinal] de devoção” (Lerner, 1951: 342).
A revolução keynesiana indicava novas esperanças para a solução dos
graves problemas econômicos e sociais no final dos anos 30. Mas naquele
momento ainda era uma teoria pouco difundida e muito controversa. De um
lado, Keynes sugeria políticas fiscais mais ativas, que, por acaso, se pareciam
com as empreendidas pelos países mais bem-sucedidos em reduzir o
desemprego, em especial, com as políticas encampadas por Roosevelt no
programa do New Deal.
Entretanto, tais políticas sofriam uma forte oposição nos EUA e em
outros lugares. Na própria academia não era fácil defender, por exemplo,
políticas de déficit público exercidas por longos períodos.
A política e a academia, naquela época, eram dominadas pela doutrina
que Lerner chamou de Finanças Saudáveis. As finanças saudáveis diziam que
os governos deveriam buscar decisivamente o equilíbrio orçamentário e
restringir a expansão do endividamento público. Essas doutrinas certamente
batiam de frente com as novas esperanças keynesianas. Para os keynesianos,
era necessário saber quando, como e em que montante seria possível expandir
15
os gastos públicos para induzir a economia a sair da recessão e eliminar o
desemprego.
Provavelmente o principal objetivo de Lerner ao construir sua teoria das
Finanças Funcionais tenha sido mostrar quais seriam as reais limitações ao
gasto e endividamento públicos. Esse objetivo está relacionado à escolha do
nome dessa teoria. As Finanças Funcionais são, antes de tudo, uma crítica às
Finanças Saudáveis. Mas não apenas uma crítica à teoria econômica ortodoxa
em que se baseia as Finanças Saudáveis. Lerner visava criticar também a
incoerência dos keynesianos e população em geral quando acreditam ao
mesmo tempo nas Finanças Saudáveis e na possibilidade de desemprego
estável.
As finanças saudáveis só seriam uma política funcional, se fossem
válidas as premissas ortodoxas, em particular a tendência automática e rápida
para o pleno emprego. Se existe desemprego crônico, as finanças saudáveis
se tornam irracionais. Entretanto, os keynesianos, e mesmo Keynes, a
princípio, não percebiam claramente essa incoerência. Lerner completou a
revolução keynesiana ao tornar as teorias das finanças públicas coerentes e,
portanto, funcionais com a premissa de desemprego estável. As finanças
funcionais são apenas o keynesianismo levado às últimas conseqüências.
1.2. As Finanças Saudáveis
“A irresponsabilidade praticada hoje, em qualquer nível de governo, resultará amanhã em mais impostos, em menos investimentos, ou em mais inflação, que é entre os impostos, o mais perverso, pois incide sobre os mais pobres. O governo não fabrica dinheiro. Esta afirmação pode parecer óbvia para alguns. Mas não para aqueles que administram contas públicas gastando mais do que arrecadam. Deixando dívidas para seus sucessores e assumindo compromissos que sabem, de antemão, não poderão honrar. É esse tipo de postura, danosa para o País, que vai ser coibida pela Lei de Responsabilidade fiscal” (Martus Tavares, 2000)
1.
“A analogia pode ser usada como inspiração, não como argumento” (Lerner, 1951: 270).
“Como outras ‘verdades auto-evidentes’, o axioma é aceitável somente enquanto alguém não pensa em questioná-lo.” (Lerner, 1951: 344)
1 Discurso do economista e do Ministro do Planejamento, Martus Tavares, no ato de sanção da Lei de Responsabilidade Fiscal, em 04 de maio de 2000.
16
A doutrina econômica ortodoxa, onde se fundamenta toda a defesa dos
chamados orçamentos “equilibrados”, se baseia na premissa de que a
economia está sempre em pleno emprego ou que ela tende automaticamente e
com a rapidez adequada para o pleno emprego.
Dessa forma, para que seja possível o aumento dos gastos públicos é
necessário que haja redução dos gastos privados de tal forma que os fatores
de produção que seriam utilizados na produção de bens e serviços para o setor
privado pudessem ser usados para produzir bens e serviços para o setor
público. A queda dos gastos privados ocorreria, mesmo que os gastos públicos
não viessem acompanhados por aumento dos impostos. Caso o “financiamento”
desse gasto não seja feito por meio de aumento dos impostos, a redução dos
gastos privados ocorrerá por meio do aumento da taxa de juros ou do “imposto
inflacionário”. Nessa perspectiva, o governo não pode aumentar o nível de
renda de longo prazo, reduzir a taxa de juros real e diminuir a relação dívida
pública/ base monetária. O governo, então, a não ser pela sua capacidade de
elevar a carga tributária, seria como qualquer outro agente econômico.
Se a economia está sempre no pleno emprego, a expansão de
quaisquer gastos implica na redução de outros ou no aumento no volume
trabalhado no presente e, provavelmente, uma proporcional redução no futuro.
Nessa situação, os gastos públicos sempre implicam em dilemas (trade-offs) e
os déficits possuem sempre um custo social.
Lerner chamou o arcabouço argumentativo que defende a necessidade
de orçamentos públicos com saldos nulos ou tendendo a zero de finanças
saudáveis, em referência aos próprios expoentes da mesma, que propõem que
seja “saudável” a manutenção de saldo nulos entre as contas de gasto e de
receitas fiscais dos governos.
1.3. Lerner e a teoria das finanças funcionais
17
As Finanças Funcionais proposta originalmente por Abba Lerner é
“meramente a consciente adoção pelo governo da responsabilidade de
prevenção da inflação e [ do desemprego]” (Lerner, 1951: 136)
Para se compreender os instrumentos propostos pelo autor é
necessário, antes de tudo, reconhecer as conseqüências da liberdade e do
monopólio estatal de emissão de moeda.
Não há referências de economia com possibilidade de livre acesso à
emissão de moeda na civilização ocidental. Se qualquer um pudesse produzir
moeda homogênea a partir apenas do próprio trabalho, não haveria
desemprego2. Entretanto, o mesmo pode não acontecer se a oferta de moeda
é monopolizada, pelo governo, bancos ou mineradoras de ouro.
Não há, no mundo real, garantias de que todos que queiram trabalhar
conseguirão empregos. O emprego total depende no nível de gasto total. Mas
nada garante que o nível de gasto total será exatamente o necessário para
empregar todos os demandantes de postos de trabalho. O setor privado não
pode ser responsabilizado por não realizar um volume de gasto o suficiente
acabar com o desemprego. Dessa forma, nas sociedades modernas, “o
desemprego surge como conseqüência quando o governo gasta muito pouco”
(Wray: 210)
“Porque o público necessita do dinheiro do governo (...), ele vai querer fornecer coisas para o governo a fim de obter ‘aquilo necessário para pagar impostos’ [aneppi]. Assim como as pessoas lutariam para obter peles de castor se estas fossem o [aneppi] exigido, os cidadãos nas economias modernas esforçam-se para obter moeda a fim de pagar os tributos. Isso significa que o governo pode, se assim escolher, estabelecer os termos em que a moeda pode ser obtida (isto é, o esforço necessário para obtê-la). Não teria sentido para o governo impor um tributo e depois recusar-se a oferecer a moeda necessária, pois isso poderia significar a prisão dos cidadãos por evasão fiscal! No mínimo, o governo terá de assegurar a oferta de um montante de moeda igual às obrigações tributárias a longo prazo. Na verdade, provavelmente, poderia, sem perigo, fornecer mais moeda que o estritamente necessário para os tributos. Muitos cidadãos ficariam felizes de acumular pequenas reservas de moeda extra num dado ano, para o caso de ser mais difícil obter moeda nos anos seguintes, e também para o caso de
2 É preciso sublinhar que essa idéia nada tem em comum com a proposta ultra-liberal de propor que cada cidadão possa emitir sua própria moeda plenamente fiduciária. De acordo com a teoria cartalista, esse tipo de sistema não poderia funcionar, porque não haveria um motivo para a demanda primária de moeda dos diversos agentes, pois eles não cobram impostos. E se o governo aceitasse a moeda de qualquer um como pagamento de impostos, haveria fortes incentivos à super-emissão. E ainda que fossem criados mecanismos acessórios para tornar essa proposta viável, ela ainda seria concentradora de renda e poder, pois apenas bancos e grandes capitalistas poderiam emitir com liberdade moeda fiduciária confiável. Certamente os desempregados não poderiam. A moeda não seria homogênea, sua capacidade de manter poder de compra dependeria do seu emissor.
18
perder algum dinheiro na troca. O caso ‘normal’, então, é o governo ‘incorrer em déficit’, isto é, fornecer mais moeda do que ele recolhe em tributos” (idem: 23).
O déficit público é fundamental para atender as demandas das pessoas,
bancos e empresas por moedas para transacionarem ou entesourarem3. Em
uma visão de finanças funcionais, o déficit público não é necessário
simplesmente para prover a demanda por moeda. Ele é necessário para prover
a “demanda” por renda dos desempregados.
Um desempregado sem patrimônio também “demanda moeda”. Mas a
menos que a falta de emprego, bens e capacidade de pagamento não seja
qualquer empecilho à obtenção de crédito, esse moeda só pode ser obtida
com renda monetária.
Os desempregados como um todo não podem por si próprios solucionar
seus problemas, pois o que podem oferecer – trabalho – já está com a
demanda completamente atendida. Para eles não resolve virar “camelô” ou
fazer artesanato em casa, a demanda por esses serviços ou bens é uma fração
relativamente estável da demanda agregada. Mas a demanda agregada não
pode ser aumentada sensivelmente pelos próprios desempregados.
Existe um nível de gasto na economia que gera pleno emprego. Mas,
como mostram as teorias keynesianas em suas várias vertentes, nada garante
que tal nível de gasto agregado possa ser alcançado automática ou
“naturalmente”. Volumes de gasto agregados inferiores ou superiores ao
requerido pela situação de pleno emprego podem muito bem ser estáveis ou
mesmo ser instáveis com tendência contrária à sugerida pela macroeconomia
ortodoxa.
Lerner (1951: 124-5) faz questão de ressaltar que mesmo se o setor
privado estivesse totalmente consciente da necessidade de manipulação do
gasto agregado, não seria possível manter a economia em pleno emprego sem
a ação pública. O interesse individual de gastar ou não gastar raramente vai
3 É preciso lembrar que o déficit público não é a única forma que o governo tem para oferecer moeda estatal para o setor privado. Ele também pode fazer isso comprando ativos do setor privado, sejam eles de emissão pública ou privada. Entretanto, se o governo mantiver o superávit fiscal indefinidamente, acabará comprando todos os ativos do setor privado. Nesse caso, a economia acabaria se tornando toda estatal (para espanto dos liberais defensores do superávit fiscal).
19
coincidir com o interesse social de manter o pleno emprego e a inflação
controlada. Nessa situação, o governo não pode se eximir de sua
responsabilidade com essas duas importantes demandas coletivas. “A primeira
responsabilidade do governo (visto que ninguém mais pode assumir essa
responsabilidade) é manter a taxa total de dispêndio no país em bens e
serviços nem maior nem menor que a taxa que, a preços correntes, compraria
todos os bens que é possível produzir” (Lerner, 1941; apud. Wray, 1998)4.
As Finanças Funcionais partem do princípio de que o ajuste pelo
governo do nível de gastos da economia torna possível a manutenção do nível
de pleno emprego com taxas controladas de inflação. Dessa forma, a variável
chave5 da teoria das Finanças Funcionais é o gasto agregado. Controlando o
nível de gasto agregado, pode-se evitar simultaneamente ambos malefícios
macroeconômicos, inflação e desemprego.
Segundo Lerner (1951: 126), o governo possui 3 pares de instrumentos
para ajuste do nível de gasto agregado:
1) Comprar e vender bens
2) Pagar transferências e tributar dinheiro dos cidadãos
3) Emprestar e tomar emprestado dinheiro
Esses seis instrumentos são exaustivos. “Eles incluem tudo que o
governo pode fazer para influenciar ou compensar [faltas ou excessos em
relação ao] nível de gasto total” (idem: 127-8).
Todos esses instrumentos podem ser usados de forma independente.
Não há, a priori, qualquer necessidade de complementaridade entre esses
instrumentos. Todavia, as Finanças “Saudáveis” insistem em só pensar esses
instrumentos de forma combinada, a partir da “idéia de que o propósito de usar
um dos instrumentos seja tornar possível o uso de um outro instrumento,
usualmente [quando] esse último tende a neutralizar o efeito do primeiro [sobre
o gasto agregado]” (grifo nosso; idem: 130).
Por exemplo, as finanças “saudáveis” supõem que a tributação prévia ou
tomar dinheiro emprestado sejam necessários para a viabilização do gasto
público. Mas a proposição inversa – a tributação só deve ser feita, se
4 É interessante observar a forte oposição que existe entre essa noção de responsabilidade e a que está da Lei de Responsabilidade Fiscal e que é bem resumida no discurso de Martus Tavares citado na epígrafe da Introdução deste trabalho. 5 Ou meta intermediária na terminologia de Tinbergen (1967).
20
acompanhada de gasto – também pode ser sugerida pelos seus defensores.
“Alguns escritores de finanças públicas vão tão longe a ponto de dizer que o
único propósito legítimo da tributação é obter dinheiro para o gasto do governo
e que a taxação por qualquer outro propósito é somente um tipo de perversão
ou uso impróprio dos instrumentos tributários, estigmatizados [nesse caso]
como ‘não fiscais’” (grifo nosso; idem: 130). Os defensores das finanças
saudáveis também podem vincular à tomada de empréstimos pelo governo
com gastos. “A noção de que a tomada de empréstimos pelo governo seja
inflacionária, o que é muito comum, deriva da combinação de emissão de
dívida com gastos governamentais” (idem: 132). De acordo com Lerner (idem:
128-9), essa necessidade de pensar de forma combinada as finanças públicas
gera confusão e distorção.
As Finanças Funcionais propõem a utilização de alguma combinação
dos seis instrumentos fiscais para alcançar o nível de gasto agregado que
permita a economia manter os objetivo de pleno emprego sem afetar o objetivo
de controle da inflação. Essa é a essência da proposta de Lerner.
Convém destacar que, para Lerner, o grau de emprego que é possível
atingir com essa política pode ser tanto o que o autor chama de nível de baixo
pleno emprego, quanto o nível de alto pleno emprego.
Lerner (1951) propõe esses dois conceitos para explicar a relação entre
nível de gasto, emprego e inflação. O nível de alto pleno emprego é definido
pelo ponto onde só existe o chamado desemprego friccional. O autor sugere
que nesse ponto o número de vagas de emprego abertas é igual ao número de
desempregados.
O nível de baixo pleno emprego é o que interessa às finanças
funcionais. Esse nível é determinado no ponto onde o crescimento da demanda
por trabalhadores acabará causando inflação de salários e preços. Na verdade,
para Lerner (1951) é possível que a economia ultrapasse o nível de baixo pleno
emprego sem que isso implique numa espiral inflacionária. Porém, esse seria o
máximo de emprego que se poderia atingir apenas com instrumentos atuam
sobre os gastos domésticos. Esses conceitos serão mais profundamente
discutidos no capítulo 2.
Em oposição às Finanças Funcionais, tem-se em geral o fetichismo do
orçamento “equilibrado”, proposto como objetivo primordial das Finanças
21
“Saudáveis”. Apesar do fetichismo do discurso não acadêmico das finanças
públicas convencionais, na verdade, o orçamento “equilibrado” só poderia
mesmo ser tratado nas teorias acadêmicas como instrumento e não como fim.
Dessa forma, o orçamento “equilibrado” se opõe como meio aos três pares de
instrumentos fiscais citados por Lerner. A diferença conceitual fundamental
entre as duas abordagens está na teoria da inflação. Lerner não considera que
o orçamento equilibrado seja uma medida necessária e nem mesmo eficaz
contra a inflação.
Assim, podemos dizer que a teoria da inflação é também fundamental
para a compreensão do conceito de Finanças Funcionais e afastar qualquer
temor de que essas sejam inflacionárias. Não é demais lembrar que as
Finanças Funcionais têm no combate à inflação um dos seus dois objetivos
prioritários. Abandoná-la em prol do orçamento equilibrado pelo temor da
inflação seria como “sacrificar o objetivo em benefício de um alegado meio de
alcançar o próprio [objetivo]” (Lerner, 1951: 131).
Como vimos, as Finanças Funcionais propõem apenas a liberdade para
a utilização dos seis instrumentos fiscais disponíveis com os objetivos de
alcançar o pleno emprego e a estabilidade do custo de vida. Vimos também
que a proposta de Abba Lerner contrasta com a visão tradicional de finanças
públicas que tem como meta o orçamento “equilibrado”, como política
necessária de combate à inflação. Porém, a teoria que propõe a independência
dos seis instrumentos fiscais mostra que o déficit não é nem necessário e nem
suficiente para combater a inflação. Resumindo:
“Finanças Funcionais rejeitam completamente doutrinas tradicionais de “finanças saudáveis” e o princípio de tentar equilibrar o orçamento durante um ano solar ou qualquer outro período arbitrário. Em seu lugar, prescreve: primeiro o ajustamento do dispêndio total (por todos na economia, incluindo o governo) a fim de eliminar tanto o desemprego quanto a inflação, usando o dispêndio governamental quando o dispêndio total é muito baixo e a tributação quando o dispêndio total é muito alto; segundo, o ajustamento da quantidade de dinheiro e de títulos governamentais em poder do público, pela tomada de empréstimos ou pagamento de dívida, a fim de alcançar a taxa de juros que resulta no nível mais desejável de investimento; e, terceiro, a impressão, armazenamento ou destruição de moeda à medida que for necessário para implementar as duas primeiras partes do programa” (Wray, 1998: 41)
Esses princípios são suficientes para a compreensão básica das
Finanças Funcionais. Mas podemos ir além e conhecer mais nuances e
possibilidades dessa teoria.
22
1.3.1. Lições de Lerner para as finanças públicas e política econômica
Nesta seção, pretendemos desenvolver um pouco mais profundamente
o pensamento de Abba Lerner. Para isso, vamos nos basear no trabalho de
Forstater (1999), que propõe 15 lições de Lerner para as finanças públicas e a
política econômica em geral.
“Lição 1: Pleno emprego, estabilidade de preços e um padrão de
vida decente para todos são metas macroeconômicas fundamentais
e é responsabilidade do Estado promover sua obtenção”.
Essa proposição pode parecer óbvia para alguns, mas certamente não é
para muitos, em particular para os defensores do laissez-faire. Para quem
aceita a premissa dos “mercados perfeitos”, ou para quem considera que a
intervenção pública tende sempre a ser desastrosa6, o Estado não deve
assumir de forma ativa essa responsabilidade, usando plenamente os poderes
de que dispõe.
Essa divergência é especialmente grave no que tange à meta de pleno
emprego. Os economistas ortodoxos não-keynesianos chegam ao ponto de
questionarem até a existência de desemprego prolongado, e, às vezes, até
mesmo a possibilidade de qualquer desemprego involuntário. O Estado não
pode assumir a responsabilidade sobre algum problema que não existe ou que
é apenas efêmero e auto-solucionável.
Lerner (1941) diz que essa posição significaria eximir a coletividade de
assumir o “volante da economia”. O pleno emprego, em particular, deveria ser
um objetivo a ser considerado com mais seriedade. Para o autor, “os ganhos
econômicos derivados do pleno emprego são enormes” (Lerner, 1951: 31-2).
“Isso inclui evitar perdas permanentes na produção de bens e serviços, mas
também custos sociais advindos de maior criminalidade, doenças, [etc]”
(Forstater, 1999: 1).
O pleno emprego aumenta a eficiência econômica ao permitir que os
trabalhadores tenham confiança em procurar outros empregos em que se
sintam mais realizados e onde possam utilizar melhor seus conhecimentos.
6 Ou que seja pior inclusive que as falhas de mercado.
23
“Isso frequentemente significa mover de empregos com menor produtividade
para empregos com maior produtividade” (Lerner, 1951: 32).
No entanto, os ganhos sociais são muito mais importantes do que os
ganhos econômicos (Lerner, 1951: 33). Esses ganhos incluem a redução da
discriminação na contração de trabalhadores, maior estabilidade social e
política e maior confiança na democracia (Lerner, 1951: 31-7).
“Lição 2: As políticas devem ser julgadas pela sua habilidade em
alcançar os objetivos para que elas foram projetadas e não
qualquer noção sobre se elas são “saudáveis” ou se estão em
conformidade com os dogmas da economia tradicional”.
Esse é explicitamente o princípio metodológico das Finanças Funcionais.
“A idéia central é que a política fiscal do governo, seu dispêndio e tributação, sua tomada e amortização de empréstimos, sua emissão de nova moeda e sua retirada de moeda [do mercado] serão todos tratados tendo exclusivamente em vista os resultados destas ações na economia, e não em alguma doutrina tradicional estabelecida sobre o que é ou não saudável. Esse critério de julgamento somente pelos efeitos tem sido aplicado em muitos outros campos da atividade humana, onde ele é conhecido como o método da ciência em oposição à escolástica. O critério de julgamento das medidas fiscais pelo modo em que operam ou funcionam na economia nós podemos chamar de Finanças Funcionais (...). Isso significa que déficit, emissão de dívida, impressão de dinheiro etc, não são por si por próprios nem bons nem maus, eles são simplesmente os meios para alcançar os fins do pleno emprego e da estabilidade de preços” (Lerner, 1943: 354; apud Forstater, 1999: 2).
A teoria das Finanças Funcionais mostra que não há inerentemente
nada de bom ou ruim no volume de déficit, dívida pública, tributação, gastos.
Se o volume dessas variáveis “conflitam com os princípios das ‘finanças
saudáveis’ ou com o ‘equilíbrio’ do orçamento ou com a limitação ao
crescimento da dívida pública, tanto pior para esses princípios” (Lerner, 1951:
11; apud Forstater, 1999: 3).
“Lição 3: ‘Dinheiro é uma Criatura do Estado’”.
“De acordo com Knapp, os metalistas [e hoje os economistas ortodoxos] tentam ‘deduzir’ o sistema monetário ‘sem a idéia de um Estado’. Isso acredita ele, é um ‘absurdo’, porque ‘a moeda de um Estado’ é aquela que é ‘aceita nos guichês de pagamento dos tributos públicos’ (Knapp, 1924). É pois impossível separar a teoria monetária da teoria do Estado” (Wray, 1998: 43).
24
“Knapp aceita como ‘moeda’ – exatamente como penso – qualquer coisa que o Estado se compromete a aceitar em seus guichês de pagamento [de tributos], seja ou não declarada de curso legal entre os cidadãos” (Keynes: 1930: 6-7).
Em uma economia normal funcionando bem, o dinheiro é uma criatura do Estado. Sua aceitação geral, que é seu atributo fundamental, decorre da sua aceitação pelo Estado. (tradução livre; Lerner, 1947; 313, citado por Forstater, 1999).
Defendemos que o déficit público não seja a causa da inflação, ou seja,
que o governo pode gastar mais do que arrecada sem ultrapassar suas “metas”
de inflação.
Aceita essa proposição, a pergunta que imediatamente vem à cabeça é:
“então, por que o governo cobra impostos das pessoas?”.
A resposta mais direta possível é: o governo cobra impostos das
pessoas para definir o que é moeda e criar a razão primária para que as
pessoas a demandem.
“O Estado moderno impõe e obtém pela força uma contribuição tributária
de seus cidadãos, e, importante, escolhe ‘aquilo que é necessário para pagar
[impostos (aneppi)]” (Wray, 1998: 22). O que ele definiu como aneppi será por
nomeação e de fato a moeda.
Se não houvesse impostos para pagar ou se os impostos fossem
cobrados em mercadorias ou em outras “moedas” que não as emitidas pelo
Banco Central, em algum tempo as pessoas iriam perceber que aqueles
pedaços de papel assinados e garantidos por aqueles austeros e confiáveis
presidentes de Banco Central não tinham nenhum valor, mesmo se o valor das
receitas do governo (cobradas em outras “moedas”) fossem muitas vezes
superiores a suas despesas. Nessa situação, uma tentativa mais generalizada
de especulação com algum ativo transformaria o valor da moeda em pó como
um passe de mágica.
O mesmo não poderia acontecer com uma moeda que fosse aceita
como pagamento de impostos. Se por acaso, as pessoas acreditarem
realmente que o governo não pode gastar mais do que arrecada e acharem
que os pedaços de papel denominados de dinheiro não têm valor intrínseco,
poderão tentar especular com outro ativo antes que “todos percebam que os
pedaços de papel não têm valor”.
Nesse caso, a tentativa de especular com mercadorias levará muito mais
a aumento da produção e dos impostos e menos em aumento da inflação. Se a
25
especulação se concentrar em poucas mercadorias haveria aumento maiores
nos preços delas, na verdade, seria uma mudança de preço relativo. Mas o
impacto na inflação ficaria restrito ao peso de tais mercadorias no índice de
preços. Se a especulação se concentrar em muitas mercadorias o impacto
recairia quase exclusivamente sobre a produção, pelo menos enquanto a
economia não estiver em pleno emprego. Se a especulação recair sobre um
ativo financeiro qualquer, como ações, não haveria maiores impactos sobre a
inflação. Apenas se a especulação recair sobre moeda estrangeira, poderia
haver problemas sobre a taxa de inflação, mas essa relação será explicada no
segundo capítulo.
A moeda tem valor intrínseco, não como as mercadorias, mas como os
direitos de propriedade. Em última instância, se ninguém confiar nela, pelo
menos salva da prisão por sonegação aqueles que tiveram rendas monetárias
e ainda não depositaram suas obrigações fiscais.
O que o governo define como “aquilo necessário para pagar impostos” –
aneppi – terá valor. Os aneppis serão demandados pelas pessoas que
precisam pagar impostos e por aquelas que sabem que podem trocá-los por
bens e serviços oferecidos pelas pessoas que pagam impostos e pelas outras
pessoas que também sabem que os contribuintes demandam dinheiro etc.
Da mesma forma, se o governo escolhe outra coisa para ser aneppi,
essa coisa passará a ter valor, ainda que não possua qualquer valor de uso.
Enquanto isso, a antiga moeda aos poucos perderá completamente o valor; ou,
se for uma mercadoria com valor de uso, terá seu valor definido pelo custo de
produção mais a margem de lucro de seus produtores.
Provavelmente, a primeira apresentação completa dessa teoria foi
descrita pela abordagem cartalista desenvolvida por Knapp.
“Na abordagem cartalista, o dinheiro é uma criatura do Estado; ao menos no caso do dinheiro moderno, sendo difícil de ocorrer exemplos de dinheiro sem Estado. O Estado define dinheiro como aquilo que aceita nos guichês públicos de pagamento (principalmente em pagamento de tributos). Isto tem importantes implicações políticas. Uma vez que o Estado impõe um tributo aos seus cidadãos, pagável numa moeda sobre a qual tem um monopólio de emissão, ele pode influenciar o valor daquela moeda estabelecendo as condições sob as quais a população pode obtê-la. O governo não tem ‘necessidade’ do dinheiro do público para gastar; ao contrário, o público necessita do dinheiro do governo para pagar tributos. Isso significa que o governo pode ‘comprar’ qualquer coisa que esteja à venda em termos de seu dinheiro, apenas pelo fornecimento desse dinheiro”. (Wray, 1998: 38).
26
Abba Lerner seguia a abordagem cartalista, como pode ser constatado
em seus escritos.
“O Estado moderno pode, em geral, tornar moeda qualquer coisa que escolha aceitável como moeda (...). É verdade que uma simples declaração de que isto ou aquilo é moeda não funcionará, mesmo se apoiada pela evidência constitucional mais convincente da soberania absoluta do Estado. Mas, se o Estado está pretendendo aceitar a moeda proposta em pagamento de tributos ou de outras obrigações para consigo, a mágica está feita. Qualquer um que tenha obrigações para com o Estado desejará aceitar os pedaços de papel com que pode pagar obrigações, e todas as outras pessoas desejarão aceitar estes pedaços de papel porque sabem que os contribuintes, etc, por sua vez, os aceitarão” (Lerner, 1947: 313; tradução livre).
Keynes também era um assumido seguidor da teoria cartalista de
Knapp. De acordo com Keynes (1930: 3, citado por Wray, 1998: 49), a “moeda
de conta” é o “principal conceito” de uma teoria monetária; o dinheiro de conta
“surge junto com as dívidas que são contratos de pagamento diferido, e as
listas de preços, que são ofertas de contratos para compra e venda”. Por sua
vez, “o próprio dinheiro, principalmente aquele com o qual é mantido um
estoque de poder de compra geral, deriva sua natureza das suas relações com
a moeda-de-conta, desde que dívidas e preços tenham sido primeiro expressos
em termos desta última” (idem). Mais adiante, esclarece a distinção entre
dinheiro e moeda-de-conta: “moeda-de-conta é a descrição ou denominação e
o dinheiro é aquilo que corresponde à descrição” (idem: 3-4).
Como Knapp, Keynes defende que o Estado determina tanto o que
serve como moeda-de-conta, quanto estabelece “a coisa” que será aceita como
dinheiro.
“O Estado, portanto, atua, em primeiro lugar, como a autoridade legal que obriga o pagamento da coisa que corresponde ao nome ou descrição nos contratos. Mas atua uma segunda vez quando, além disso, invoca o direito de determinar e declarar que coisa corresponde ao nome, e mudar sua declaração de tempos em tempos – quando, por assim dizer, ele invoca o direito de reeditar o dicionário. Este direito é invocado por todos os Estados modernos e vem sendo invocado há quatro mil anos pelo menos” (Keynes, 1930: 4; citado por Wray: 49).
O Estado “invocou o direito não apenas de impor o dicionário, mas
também de escrever o dicionário” (Keynes, 1930: 5; citado por Wray: 49-50).
“Em resumo, com a evolução do Estado moderno, o dinheiro de conta (‘a
descrição’) é escolhido pelo Estado, que é livre para escolher o que qualificará
como moeda (‘a coisa’ que corresponde à descrição). Isso vai além das leis de
curso legal – que estabelecem o que pode legalmente liquidar contratos – para
27
incluir o que o Estado aceita em pagamento nos seus ‘guichês’ de pagamento”
(Wray: 52).
O Estado moderno escreve a descrição do que é dinheiro quando
denomina a obrigação tributária numa moeda-de-conta. E define “a coisa” que
corresponde à descrição quando decide que será aceita nos guichês de
pagamento públicos (aneppi). Mas ele exerce outro papel fundamental, pois é o
fornecedor exclusivo “da coisa”.
Assim, não apenas o governo pode gastar mais do que arrecada, mas
deve gastar mais do que arrecada e (em termos lógicos) gastar antes de
arrecadar.
“Lição 4: Tributação não é uma operação de financiamento”.
O propósito dos tributos não é realmente financiar o dispêndio, mas
remover renda excessiva do setor privado. Os impostos não servem para
financiar o Estado no sentido de recolher moeda que possa ser utilizada em
pagamentos, já que ele emite a moeda que usa em pagamentos. A importância
primária dos impostos é: (1) definir qual a unidade ou moeda de conta (real,
dólar etc.), (2) definir o que é o dinheiro que corresponde à unidade de conta
(aqueles pedaços de papel com determinadas características), (3) criar a razão
primária para a demanda por moeda nacional e (4) sustentar a razão para a
demanda por moeda pela criação de uma “dívida” flexível, não contabilizada e
crescente do setor privado (sob autoridade do Estado) com o Estado. É essa
“dívida” que garantirá, em última instância, que qualquer uma expansão na
oferta de títulos públicos decorrente de uma expansão nos gastos públicos terá
demanda e que todo crescimento econômico puxado pelo déficit público
(gastos) é sustentável desde que exista desemprego7, não importando qual
seja o tamanho da dívida governamental.
Na economia moderna, os gastos públicos não precisam ser financiados.
Eles próprios se financiam, pois são, a priori, diretamente e imediatamente uma
emissão monetária. Como vimos, os gastos públicos, ao contrário do que diz a
visão tradicional, vem historicamente e logicamente antes dos impostos, pois
as pessoas precisam de moeda para poder pagar seus impostos.
7 E desde que não comprometa a capacidade de sustentação da taxa de câmbio. Essa condição será explicada quando estivamos tratando explicitamente de uma economia aberta.
28
Ao contrário do que ressalta o pensamento tradicional, o déficit público
não é só possível, mas também necessário. “Permanentes déficits
governamentais consolidados são a norma teórica e prática numa economia
moderna. Embora seja certamente possível realizar um superávit a curto prazo
(...), isto tem efeitos sobre a renda e os balanços que desatam poderosas
forças deflacionárias. Dadas as preferências usuais dos setor privado em
relação à poupança líquida8, crescimento econômico requer persistentes
déficits governamentais” (Wray, 1998: 94).
“[A] função mais importante [do déficit público] é ser o meio através do qual o poder de compra não gasto em consumo, nem reciclado enquanto renda pela criação privada de capital líquido9, é reinjetado enquanto poder de compra pelo governo, que toma emprestado e gasta. O poder de compra que não é reinjetado desta maneira se torna não-compra, não-venda, não-produção, e desemprego” (Vickrey, 1993: 1).
O aumento dos gastos públicos e, conseqüentemente, do déficit público
tem como função essencial a expansão dos gastos totais da economia quando
o nível de atividade não está suficientemente alto. Essa função é bem
desenvolvida pela teoria das Finanças Funcionais de Abba Lerner, que será
exposta mais à frente.
Mas o déficit público tem também uma importante função que talvez seja
menos conhecida. Os déficits acompanhados de emissão de moeda e mesmo
de títulos de dívida são fontes fundamentais de provimento de liquidez e
solvência para o sistema privado.
O crescimento econômico sustentável exige expansão das fontes de
liquidez. Na falta dessa, o crescimento econômico acabaria resultando em crise
financeira.
Em primeiro lugar é preciso reconhecer a inviabilidade completa de
políticas de superávit público permanente, ao menos em países que não
operam com significativos superávits externos permanentes.
“Se o governo fosse tentar realizar um superávit, o público descobriria que suas receitas de ‘moeda líquida’ seriam menores do que suas obrigações tributárias, requerendo que as famílias recorressem a seus estoques de moeda fiduciária (acumuladas a partir do dispêndio deficitário governamental e de compras públicas de ativos do passado) para pagar tributos. Eventualmente, como é natural, os estoques se esgotariam. Finalmente, o público apresentaria para pagamento títulos governamentais a vencer a fim de obter moeda fiduciária com que pagar
8 Poupança total menos investimento. Ou seja, superávit em conta corrente mais déficit público.
9 Ou seja, investimento privado.
29
tributos, mas, de novo, isto está limitado à parcela do estoque de dívida pendente que está por vencer (ela própria uma função de déficits governamentais prévios e da estrutura temporal de vencimento da dívida). Neste ponto, a única fonte de dinheiro de curso forçado para pagar tributos é um novo dispêndio governamental (déficit) ou compras governamentais de ativos” (Wray, 1998: 100).
É, portanto, óbvio que políticas de superávit permanente são impossíveis
se não acompanhadas de superávits externos equivalentes. Mas podemos ir
além. Não apenas o superávit permanente é inviável, o chamado déficit público
é de fato necessário.
As empresas, bancos e famílias não podem aumentar indefinidamente
seus dispêndios via redução dos seus níveis de solvência ou liquidez
financeira. Se a liquidez atinge níveis críticos, o agente auto-restringe seus
gastos e investimentos ou é compelido a fazê-lo pelos credores. Se parte
significativa dos agentes se vê nessa situação, a economia entrará certamente
em recessão. A menos que existam outra fontes de expansão da demanda
agregada.
Existem diversas formas de medir a liquidez. A solvência a curto prazo
ou liquidez pode ser medida pelo saldo de tesouraria ou capital líquido10 sobre
o passivo.
Em uma economia fechada ou com déficit em conta corrente nulo, se o
governo mantém um déficit público também nulo, o crescimento econômico
tenderá a levar a uma piora nos índices médios de liquidez, porque ativos de
curto prazo são fontes de liquidez para empresas bancos e famílias, e o setor
privado não pode criar ativos de curto prazo sem criar também passivos11.
Se os agentes estiverem eufóricos com algum boom econômico, as
perspectivas para o futuro podem estar superavaliadas. Nesse caso, a piora
nesses índices de solvência poderia não ocasionar maiores impactos
imediatos. Porém, a tendência seria a crise financeira.
Na verdade, é bem provável que, na maior parte das situações, os
agentes resistam a piorar em demasia seus índices de solvência. Nesse caso,
o desejo de poupar deverá ser em média superior ao desejo de investir. De
10 Ativos de curto prazo menos passivo de curto prazo. 11 Praticamente a única exceção seria a valorização de ações em bolsa, mas devido ao risco desse tipo de investimento, eles não são considerados completamente como fontes de liquidez confiáveis para os momentos onde a liquidez se mostra fundamental, isto é, nos momentos de crise econômica.
30
fato, essa parece ser a situação mais comum, pois boa parte dos agentes tem
naturalmente o desejo de melhorar seus índices de solvência e, não deve ser
um equívoco supor que em média o resto dos agentes não deseja reduzi-los, a
não ser que a capacidade de alavancagem financeira dos bancos, das famílias
e das empresas esteja sub-aproveitada.
Assim sendo, é muito provável que o setor privado deseje em média
poupar mais do que deseje investir. Se o déficit público e externo forem nulos,
essa atitude em algum momento levará necessariamente a reduções dos
gastos privados período a período, conduzindo a economia a uma recessão.
Dessa forma, o déficit governamental é fundamental para manter os índices de
liquidez e solvência da economia, e consequentemente a sustentabilidade dos
gastos privados.
“Se o governo deixar de preencher o hiato e de atender à demanda por ativos através da emissão de um volume adequado de títulos, a tentativa dos indivíduos de adquirir ativos através do não-gasto [poupança] causará uma redução nas vendas, investimento temporário em estoques excedentes, cancelamento de encomendas, desemprego e redução do produto nacional e da renda. Isto pode ser parcialmente compensado pela elevação de valor dos ativos, levando a um certo volume de aumento nos gastos vindos dos ganhos de capital, mas a “poupança” incorporada nestes ganhos de capital não envolve a criação de capital novo ou o emprego de indivíduos na construção civil. A redução das taxas de juros poderia a princípio elevar tipos de investimento intensivos em tecnologia poupadora de trabalho, mas após o estímulo inicial o efeito sobre o emprego tende a ser negativo. É pouco provável que haja investimento ampliador de capacidade, mesmo com reduzidas taxas de juros, caso o mercado para o produto não exista. Existe um sério perigo de que a elevação dos preços dos ativos possa criar uma bolha de valores insustentável, que corre o risco de estourar desastrosamente, como aconteceu em 1929 após os superávits públicos dos anos anteriores. Cedo ou tarde uma redução na produção e na renda nacional vai acontecer, até que a redução na renda reduza a demanda por ativos a um nível compatível com a oferta. Reduzir o “déficit” pode reduzir a dívida do governo, mas reduz também a oferta de ativos que as pessoas querem adquirir para prover a sua necessidade de segurança. Reduzir o “déficit” não melhora a herança real deixada para o futuro; ao contrário, deteriora esta herança, deixando um legado de trabalhadores inexperientes, infra-estrutura ineficiente, e investimentos em capacidade reduzidos por causa da reduzida demanda pelos produtos, para não falar do impacto do desemprego quanto à saúde, à delinqüência e aos lares desfeitos. O “déficit” não é nem calculado numa base empresarial. Não faz distinção entre os itens de custeio e os da conta de capital. Se a GM, a AT&T e as famílias tivessem sido compelidas a “equilibrar seu orçamento” calculado da forma como o orçamento federal é calculado, teríamos agora muito menos automóveis, telefones, e casas” (Vickrey, 1993: 1).”
Podemos assim concluir que os déficits públicos pela emissão de moeda
ou mesmo de títulos de dívida são fontes fundamentais de liquidez para o setor
privado.
31
Ao contrário do que comumente se pensa, a política monetária não
cumpre esse papel. Nas suas formas mais tradicionais essa política apenas
troca ativos líquidos por outros, ou seja, não muda significativamente as
condições de solvência e liquidez do setor privado. Para melhorar realmente a
liquidez, é necessário aumentar a relação entre ativos líquidos e passivo dos
agentes em geral. Isso significa que é preciso aumentar as rendas de uns sem
reduzir a liquidez de outros. Apenas o déficit público, o superávit externo e uma
aquisição líquida de ativos privados pelos bancos podem fazer isso. Nesse
último caso, entretanto, se os bancos assim procederem, sem correspondente
aumento do déficit público ou saldo em conta corrente, estariam piorando seus
indicadores de solvência, pois tanto o indicador ativo/patrimônio líquido, quanto
o indicador ativo/títulos públicos teriam se deteriorado.
“Lição 5: Emissão de dívida pública não é uma operação de
financiamento”.
“O governo só deveria tomar empréstimo em moeda se fosse desejável que o público devesse ter menos moeda e mais títulos governamentais” (Lerner, 1943: 40, citado por Wray, 1998: 95).
Para as finanças funcionais, a emissão de títulos públicos tem a função
de oferecer um ativo líquido remunerado como alternativa de aplicação de
parte da riqueza do setor privado e definir sua taxa de rendimento. Essa
política permite que o governo possa influir sobre as condições de
financiamento e aplicação de capital, portanto, sobre as condições de
rentabilidade do setor privado e suas disposições de gasto em consumo e
investimento. A política monetária influencia o setor privado na medida em que
manipula a taxa de juros. Na lição 7, será explicado como a política monetária
determina a taxa de juros.
“Lição 6: O propósito primário da tributação é influenciar o
comportamento do público”.
“Um interessante corolário é que a tributação nunca deve ser estabelecida apenas porque o governo precisa fazer pagamentos monetários (...) Tributação deveria, pois, ser imposta somente quando é desejável que os contribuintes
32
tenham menos moeda para gastar” (Lerner, 1943: 40, citado por Wray, 1998: 95)
Como vimos, a tributação tem a função de fundar e manter a demanda
por moeda. Mas ela pode influenciar o comportamento dos cidadãos de outras
formas. Uma das mais importantes e que é essencial para as Finanças
Funcionais é alterar o nível de gastos privados, via redução da acumulação de
riqueza líquida disponível dos contribuintes.
A possibilidade de redução do poder de compra do setor privado permite
ao governo reduzir a demanda agregada total sem ser obrigado a reduzir
gastos públicos em volumes superiores aos desejáveis.
A tributação também pode ser um instrumento imprescindível em
políticas de distribuição de renda e como formas de induzir determinados tipos
de comportamento pelo setor privado.
“Lição 7: O propósito primário da venda de títulos de dívida pelo
governo é regular a taxa de juros no overnight”.
A primeira coisa que precisa ser compreendida sobre a política
monetária é a importância e a função do dinheiro estatal. O dinheiro estatal é o
objeto das reservas bancárias. Ele é constituído por papel-moeda e depósitos
dos bancos no Banco Central. O outro tipo de dinheiro são os depósitos à vista,
que é o dinheiro criado pelos bancos.
Para o público não faz muita diferença entre o dinheiro estatal e os
depósitos à vista, porém, para os bancos, há uma grande diferença.
Normalmente as despesas dos bancos, suas aquisições de títulos de dívida
privados e ativos em geral são supridas por emissão de cheques contra si
próprios ou registro de novos depósitos na conta de terceiros. Assim, toda vez
que fazem pagamentos ao público, os bancos emitem moeda.
Para o público, os depósitos emitidos pelos bancos são moeda como
outra qualquer. Mas para os outros bancos e para o governo não são. Há
situações em que os bancos não podem fazer pagamentos simplesmente
emitindo e precisam de moeda estatal. Essas situações são quando: (1) o
público saca dinheiro do banco, (2) o banco ou o público fazem algum
33
pagamento ao governo e (3) quando o público deposita o cheque do banco em
outro banco.
Em todas as três situações o banco é obrigado a entregar moeda
estatal, se ele não o faz, estará sujeito a punições do banco central ou perda
de confiança do público, que poderá levar a uma fuga de depósitos e à possível
falência do banco.
Dessa forma, os bancos procuram sempre por iniciativa própria manter
um volume mínimo de reservas de moeda estatal em seus ativos para evitar
essas situações. Esse volume mínimo é geralmente uma proporção fixa em
relação aos depósitos do banco. Ademais, os bancos são comumente
obrigados a manter um certo volume mínimo de depósitos no banco central em
proporção fixa ao depósitos detidos por seus clientes. Assim forma-se o
chamado sistema de reservas fracionárias, onde as reservas detidas pelos
bancos são uma fração dos depósitos. A relação entre depósitos e reservas é
chamada também de alavancagem. Como os novos empréstimos concedidos
aumentam os depósitos, eles também aumentam a demanda por reservas para
que seja mantida a mesma alavancagem.
A teoria do multiplicador monetário supõe que o banco central fixa o
volume de reservas e os bancos vão emprestando até que seus depósitos
atinjam o nível máximo permitido pelo sistema de reservas fracionárias.
Entretanto, não é isso o que acontece no mundo real. Os bancos sabem
por experiência diária que, mesmo estando operando no limite da sua
alavancagem, podem oferecer, sem grandes problemas, empréstimos a bons
clientes às taxas fixadas pela sua política de crédito.
Nesse caso, ao fazer isso, os bancos ultrapassariam o nível de
alavancagem desejado. A solução é tomar pelo interbancário reservas
emprestadas dos outros bancos. Essas reservas são uma fração do
empréstimo concedido e geralmente pagam taxas de juros inferiores aos
empréstimos feitos pelos bancos. Portanto, isso, a princípio, não causaria
maiores problemas de liquidez ou rentabilidade12.
Os bancos que tivessem reservas ociosas estariam ansiosos para
emprestá-las a taxas superiores à remuneração dos depósitos no banco
12 Desde que o banco não estivesse com exagerado descasamento de prazos entre seus ativos e passivos.
34
central. Assim, diariamente, os bancos que concederam relativamente menos
crédito, emprestam reservas para os que concederam relativamente mais
crédito.
Há, porém, um problema. Nada garante que a demanda por reservas
será diariamente igual à oferta de reservas. Por um lado, as reservas recebem
pouca ou nenhuma remuneração, o que faz com que os bancos desejem
mantê-las ao mínimo. Por outro, os bancos tem que preservar esse mínimo,
por exigência do banco central ou para se manterem confiáveis para o público
e outros bancos. O sistema opera então sempre “no fio da navalha” e
raramente a demanda por reservas se iguala à oferta.
Por não emitirem a moeda estatal, os bancos dependem do banco
central para manter seus requerimentos de reserva. Sem intervenção do banco
central, se a demanda por reservas for superior à oferta, o sistema entraria em
colapso. Os bancos com falta de reservas estariam buscando
desesperadamente quem poderia oferecê-las e estariam aceitando taxas de
juros cada vez maiores para quem pudesse emprestar seu dinheiro estatal.
Mas não haveria ofertantes suficientes. O resultado disso poderia ser a
insolvência do banco ou mesmo uma séria crise bancária.
O banco central certamente não deseja uma crise bancária. Mas esse
tipo de crise é evitado normalmente e trivialmente pelas políticas corriqueiras
da “autoridade monetária”.
O principal instrumento de ação do banco central sobre o nível de
atividade, sobre a inflação, sobre o risco de crise bancária e outras variáveis
econômicas é a taxa de juros de curto prazo. O banco central pode emitir
moeda e vender títulos próprios ou do Tesouro em qualquer volume que quiser.
Assim a autoridade monetária tem interesse e poder para fixar a taxa de juros.
Faz então todo sentido que defina uma meta de taxa de juros que
precisa ser cumprida diariamente. Se faltam reservas no sistema, os bancos
tentam tomar emprestado no interbancário e acabam puxando as taxas de
juros para cima. Em resposta, o banco central passa a comprar títulos públicos
35
até que a demanda por reservas seja atendida e, portanto, acabe a pressão por
aumento da taxa de juros 13
.
Mas pode haver também sobra de reservas. Nesse caso, não há risco
de crise ou de elevação da taxa de juros. Na verdade, ocorrerá o contrário.
Como as reservas têm uma remuneração nula ou muito baixa, os bancos
oferecerão suas reservas excedentes para empréstimo. Como não existiria
demanda para todas as reservas ociosas, a taxa de juros cairia imediatamente
para virtualmente zero.
Porém, como vimos, o governo possui uma meta de taxa de juros de
curto prazo. Se a taxa cai abaixo da meta, o governo buscará vender títulos até
que o excesso de reservas seja drenado e acabe a pressão para redução da
taxa de juros.
Dessa forma, a razão de existência dos títulos públicos é a viabilizar a
manipulação e a fixação da taxa de juros e, assim, não apenas gerenciar o
nível de gasto privado, mas também ter controle sobre o risco de booms e
crises liquidez.
Os governos costumam fixar apenas as taxas de juros de curto prazo,
mas podem também fazer o mesmo para as taxas de longo prazo. Entretanto,
fixar taxas de longo prazo é considerado uma política “muito intervencionista”
no mundo atual. Mas a prática, na verdade, não é muito diferente disso.
As secretarias do Tesouro dos países definiriam implicitamente uma
faixa de variação para o diferencial entre as taxas de curto e de longo prazo. E
só vendem títulos a longo prazo quando conseguem vender dentro da faixa de
variação. Se necessário pedem ajuda do banco central para tentar reduzir os
juros futuros. Se mesmo assim os juros de longo prazo se mantiverem
elevados, o Tesouro deixa de vender títulos a longo prazo e, portanto, com a
oferta reduzida, os juros futuros, ou de longo prazo, tendem a ser reduzir; pois
eles são uma tentativa de adivinhar os juros de curto prazo no futuro com o
acréscimo de um normalmente pequeno componente de risco. Para agilizar
esse processo, alguns tesouros nacionais vendem títulos de longo prazo com
instrumentos de recompra, impondo assim um teto para os juros de longo
prazo.
13 O Banco Central pode também oferecer reservas de outras formas, como via redesconto, ou reduzindo as exigências de depósito compulsório.
36
Concluímos assim que o governo é o único que pode oferecer ao
mercado a moeda que esse precisa crescentemente com o aumento do nível
de atividade.
“É fácil ver que somente o governo pode ser um ofertante ‘líquido’ de moeda. (...) Cada criação privada de moeda efetuada por alguém é contrabalançada pela criação de obrigação privada igual. Por exemplo, toda vez que um banco cria um depósito à vista (moeda), isto é lançado na conta do depositante como um ativo, mas é uma exigibilidade do banco. O depósito, por sua
vez, é criado pelo banco na medida em que compra um ativo – tipicamente o IOU14
de um
tomador. Moeda bancária é uma moeda ‘interna’; embora seja um ativo do detentor (ou depositante), é contrabalançada pela exigibilidade do banco e nunca pode ser um ativo líquido para o setor privado [como um todo]. Pagamentos que usam moeda bancária fazem-na mudar de bolsos mas a deixam intacta exceto (1) se um empréstimo bancário é pago, ou (2) se um cheque bancário é apresentado ao caixa, ou (3) se são feitos pagamentos ao governo. Em todos esses três casos, a moeda bancária é destruída; os últimos dois casos requerem uma moeda de fora, governamental. Quando as famílias usam depósitos bancários para pagar tributos, o resultado é uma drenagem na compensação, de tal forma que os bancos não podem satisfazer os requerimentos de reservas. As taxas de juros de overnight (nos Estado Unidos, a taxa dos fundos do FED) se elevam enquanto os bancos tentam desesperadamente satisfazer os requerimentos legais; dado o excesso de demanda por reservas e uma elasticidade de demanda muito próxima de zero (visto que os requerimentos devem ser satisfeitos), poderia seguir-se uma interrupção do mercado (com demanda mas sem oferta). O banco central nesse ponto teria de intervir para proporcionar as reservas de moeda fiduciária requeridas. O procedimento mais provável seria engajar-se em compras de títulos governamentais no mercado aberto” (Wray, 1998: 98-9).
Por último, entendida a importância da gestão fina das reservas
bancárias, convém notar que, ao contrário do que tentam sugerir os defensores
da “independência” do Banco Central, esse invariavelmente agirá
coordenadamente com o Tesouro.
Os defensores da “independência” do Banco Central, em geral,
acreditam que a emissão monetária e principalmente o déficit público por
emissão monetária sejam necessariamente inflacionários.
Eles estão supostamente preocupados em impedir que o governo se
financie, como dizem, “inflacionariamente” com emissão. Por isso, propõem
que o Tesouro seja impedido de emitir e o governo seja impedido de pressionar
o Banco Central a comprar esses títulos diretamente do Tesouro, pois se
houvesse déficit público essa medida seria supostamente inflacionária.
Entretanto, parece que os monetaristas não compreendem as relações
fundamentais entre o dinheiro estatal, o dinheiro bancário e as políticas
14 I owe you. Devo-lhe.
37
monetárias e fiscais. A independência administrativa do Banco Central não
pode impedi-lo de acomodar a política fiscal do Tesouro.
Diferentemente do que parece sugerir a visão tradicional, é óbvio que o
Tesouro modifica a base monetária e portanto as reservas bancárias, além de
modificar a demanda por essas reservas. É preciso ressaltar ainda que o
Tesouro modifica as reservas bancárias, mesmo operando com déficit zero,
porque as despesas fiscais raramente se igualam todos os dias às receitas
fiscais. Apenas como exemplo, como afirma Wray (1998), as despesas do
governo americano são bem distribuídas durante o ano, enquanto as receitas
estão fortemente concentradas no dia 15 de abril.
Dessa forma, se o Banco Central não agir complementarmente e
acomodar as operações do Tesouro, não seria possível definir meta para a
taxa de juros e essa variaria diariamente e de forma muito acentuada, tornando
altíssimo o risco de aguda crise bancária. Ou seja, é impossível a um Banco
Central “independente” se abster de acomodar as operações do Tesouro.
“Em qualquer caso, como o governo é o único ofertante de moeda fiduciária, não pode receber em tributos uma moeda que não forneceu aos mercados privados. A fonte original de toda moeda fiduciária deve ser o governo (consolidado), e a coordenação entre o Tesouro e o Banco Central é exigida para manter as reservas. Se não fosse pelo efeito do dispêndio governamental sobre as reservas bancárias, não haveria necessidade de vincular o dispêndio a transferências provenientes de contas tributárias; a [possível] coincidência no tempo de ‘receitas’ tributárias e dispêndio governamental (ou operações de mercado aberto do banco central) não é uma indicação de uma operação de ‘financiamento’, mas é, isto sim, uma exigência para manter a estabilidade no mercado de reservas” (Wray, 1998: 98).
“Lição 8: A venda de títulos seguem, ao invés de preceder, os
gastos do governo”.
Todo gasto público é realizado com dinheiro. Para quem vende um
serviço ao Estado não faz diferença, se esse dinheiro foi recolhido por impostos
ou emissão de dívida ou se foi simplesmente emitido. O pensamento ortodoxo
tradicional diria que essa operação causaria inflação. No próximo capítulo
desenvolveremos porque Lerner considera que essa pressuposição é
equivocada.
Se o governo precisa gastar, simplesmente emite dinheiro. Essa
emissão implica em aumento da reserva de caixa dos bancos e muito
38
provavelmente implicará em pressão no sentido da redução da taxa de juros.
Dessa forma, se o governo desejar manter a taxa de juros fixa, terá que vender
títulos para o setor privado. Portanto, a emissão de dívida tende a seguir a
expansão dos gastos públicos e nunca o contrário.
“Lição 9: O ato de ‘Imprimir dinheiro’ em si mesmo não tem
absolutamente nenhum impacto na economia”.
Nas Finanças Funcionais a emissão líquida de moeda é apenas uma
conseqüência residual dos instrumentos fiscais. Mas sua possibilidade é
fundamental para a ampla autonomia desses instrumentos. Nesse sentido, a
emissão de moeda é simplesmente uma conseqüência dos instrumentos
utilizados para se atingir as metas sociais da ação pública, e não uma atitude
deliberada dos governantes.
Para Lerner, há seis instrumentos fiscais que tem impacto sobre a
economia: tributação e transferências, compra ou venda de bens, tomar ou
emprestar dinheiro. “Imprimir dinheiro” não pode ser um ato independente
desses, ele “é completamente subsidiário aos seis instrumentos fiscais”
(Lerner: 1951: 132). “A criação de dinheiro não tem efeitos sobre a economia
enquanto permanecer na casa da moeda. É somente quando o dinheiro entra
em circulação na economia [por via dos instrumentos fiscais] surgem seus
efeitos. Dinheiro recém criado e mantido trancado é como se nunca tivesse
sido criado” (idem). “A impressão de dinheiro não é um instrumento de política.
É apenas um servo das políticas” (Lerner, 1944: 312-4; apud Forstater, 1999:
4). “Todas as decisões de qualquer importância são feitas quando é decidido
aplicar os instrumentos fiscais (...). Se quaisquer dos instrumentos envolvem o
pagamento de dinheiro (...),os efeitos são justamente os mesmos se o dinheiro
pago estava previamente guardado no Tesouro ou se ele teve que ser
impresso” (Lerner, 1951: 133; apud. Forstater, 1999: 5).
“Lição 10: Sem uma política de pleno emprego, a sociedade não
pode se beneficiar do avanço de tecnologias poupadoras de
trabalho, o que é eficiente se torna ineficiente. Com uma política de
39
pleno emprego, técnicas poupadoras de trabalho tornam-se
verdadeiramente benéficas para a sociedade”.
Em uma situação de pleno emprego contínuo, sempre que forem criadas
formas mais eficientes de produção, que economizem de alguma forma mão-
de-obra, a sociedade como um todo ganha. Mas quando o governo permite a
manutenção do desemprego, isso não acontece. “Lerner sugere a possibilidade
de que, ao invés de produzir a mesma quantidade de produção com menor
número de trabalhadores, a sociedade poderia produzir mais com o mesmo
número de trabalhadores” (Forstater, 1999: 5).
Lerner (1951: 144) propõe que a simples mudança para técnicas menos
intensivas em trabalho – e que, portanto, podem gerar o mesmo tanto de
produção com menor número de trabalhadores – não tende a gerar um
crescimento da demanda necessária para vender todo o potencial adicional de
produção. Nesse caso, haveria maior desemprego, que significa desperdício de
recursos e maior miséria, ao invés de maior eficiência (Lerner, 1951: 144).
“Lição 11: Sem uma política de pleno emprego, um país pode ser
prejudicado pelos resultados do seu saldo comercial. Com uma
política de pleno emprego, não há necessidade de preocupação por
se estar importando muito relativamente às exportações”.
Consideramos que essa proposição é plenamente válida para os
Estados Unidos e talvez mesmo para países que são importantes credores
internacionais ou que são capazes de gerar com facilidade, em situação de
pleno emprego, saldos comerciais positivos com relativamente reduzidas
desvalorizações cambiais. Porém, é preciso ter cuidado com essa afirmação,
pois pode ser incoerente com a idéia de restrição externa. Um dos principais
objetivos dessa tese é mostrar que essa conclusão não é geral. No capítulo 2,
serão apontadas as possíveis limitações da visão de Lerner nesse aspecto. No
capítulo 4, buscar-se-á adaptar a teoria das finanças funcionais para que possa
ser aplicável a situações de restrição externa relevante.
40
“Lição 12: São contra-produtivas as tentativas de argumentar que o
déficit e a dívida pública não são tão grandes quanto parecem, ou
que se nós os medirmos de forma diferente ou se mantivermos uma
conta de capital [no orçamento público], [ver-se-ia que os montantes
dessas variáveis] não são realmente tão ruins”.
Para Lerner as tentativas de contemporizar com as Finanças
“Saudáveis” ou as teorias em que se baseiam dificultariam a difusão e a
compreensão das idéias das Finanças Funcionais. Essa contemporização
poderia se dar de duas maneiras.
A primeira seria mostrando que a contabilidade usada normalmente para
calcular o chamado déficit público está equivocada. De fato, Lerner tinha
consciência do equívoco da contabilidade pública tradicional, mas ele
ressaltava que mudanças nas regras da contabilidade não são nada além de
mudanças de nomes. Em si elas não mudariam significativamente a visão das
pessoas sobre a verdadeira natureza das finanças públicas. Para Lerner (1951:
15), os que tentarem aplacar preocupações sobre o déficit ou a dívida
governamental, na verdade estariam prejudicando sua própria posição como
“proponentes da prosperidade”. “Um tipo de timidez fazem eles se esquivarem
de dizer qualquer coisa que possa chocar os respeitáveis defensores da
doutrina tradicional (...), [o que] freqüentemente prejudica sua causa”. (idem).
Segundo Forstater (1999: 5), ainda piores para Lerner (1951: 16), seriam
aqueles que concordam com os princípios das Finanças Funcionais, mas não a
defendem porque acham que não pode ser compreendida pelo público, ou
aqueles que a consideram uma teoria razoável, mas desconfiam que deve
existir alguma coisa errada que eles não podem perceber e esperam, assim,
que um economista realmente “prestigiado” defenda tal teoria para se sentirem
seguros. Para Lerner, essa situação se parece com a parábola em que
ninguém diz que o ‘Rei está nu’. “A diferença entre nossa situação presente e
aquela da história é que não é o rei que está nu, mas o povo, que
periodicamente está sem roupas, sem comida, inseguro e descontente” (idem;
ênfase no original).
41
“Lição 13: Quando há desemprego, postos de trabalho e moeda15 –
e não recursos e bens – são escassos”.
Em uma situação de desemprego, “o que é escasso é o dinheiro. A falta
de dinheiro para gastar em bens é o que mantém desempregados os recursos
para produzir mais bens. Além disso, o trabalho, ao invés de ser um fardo, é
desejado mais do que qualquer coisa, porque a alternativa não é usufruto do
lazer, mas o sofrimento do desemprego e da privação. Certamente, se as
pessoas pudessem obter renda sem ter que trabalhar não haveria grande
objeção (embora alto-respeito em se sentirem membros úteis da sociedade (...)
[não deva ser] subestimado). Mas é somente encontrando trabalho que eles
podem obter a renda que eles necessitam” (Lerner, 1951: 147-8).
“Lição 14: Finanças Funcionais não é uma política, mas um
arcabouço dentro do qual todo um conjunto de políticas pode ser
conduzido”.
As Finanças Funcionais não defendem uma política específica. Não
defende grandes déficits, nem pequenos, nem nulos. “As Finanças Funcionais
são mais uma abordagem geral dentro da qual uma série de políticas podem
ser conduzidas” (Forstater, 1999: 6). As políticas reais que seriam adotadas a
partir dessa abordagem depende das circunstâncias existentes. “As Finanças
Funcionais são uma perspectiva em que o que importa são os efeitos das
políticas, as políticas em si mesmas são meramente meios” (Fostater, 1999: 6).
“O que as Finanças Funcionais advogam antes de tudo e principalmente que as políticas devem se basear na compreensão do sistema monetário e financeiro em que nós vivemos, e não alguma visão idealizada de algum outro sistema, ou algum sistema que pode ter existido em algum outro tempo. Por exemplo, se as políticas fiscais e monetárias são formuladas como se nós estivéssemos no padrão-ouro, nós não somente sacrificaríamos imensos benefícios em potencial, nós poderíamos sujeitar nós mesmos a um grave perigo. Você não pode, e não deve, conduzir um sistema de moeda fiduciária pela lógica de um sistema de padrão metálico” (Fostater, 1999: 6).
15 Escassez de moeda significa em geral escassez de renda monetária.
42
“Lição 15: Para alcançar o [mais alto nível de] pleno emprego,
gastos do governo podem ter que incluir criação de trabalho direto”.
Como veremos no próximo capítulo, Lerner (1951) cria dois conceitos de
pleno emprego, baixo e alto. O baixo é definido pelo nível de emprego máximo
que não gera aceleração da inflação. O alto é o nível em que só existe
desemprego friccional, ou onde o número de vagas de trabalho abertas é igual
ao número de desempregados por período.
Em ambos os casos, há ainda desempregados. Muito provavelmente, o
oferecimento pelo governo de trabalho aos desempregados é a forma mais
viável e socialmente mais interessante de fazer a economia ultrapassar o nível
de baixo desemprego sem aumentar a inflação e reduzindo a necessidade de
relocalização de trabalhadores na situação de alto desemprego. Se o governo
oferece emprego aos desempregados, ele poderá resolver o problema da falta
de trabalho e renda sem ter que puxar a demanda da economia a ponto de
faltar trabalhadores para um número significativo de segmentos produtivos, o
que causaria aceleração da inflação.
1.3.2. Limites aos estoques de riqueza em papéis de dívida pública?
“Uma dívida nacional, se não for excessiva, seria para nós um
verdadeiro tesouro” (Alexander Hamilton, século XVIII16).
“Nenhuma nação pode deixar de ter dívida [porque] uma dívida nacional é um título nacional” (Thomas Phaine, 1776
17)
As teorias tradicionais costumam acreditar que exista um determinado
limite arbitrário para a dívida pública, quando medida em relação ao PIB.
Assim, propõe-se a doutrina do orçamento “equilibrado”. “De acordo com as
finanças “saudáveis” a tributação é a forma normal e apropriada para o governo
para obter o dinheiro que ele precisa, tomar emprestado é só para emergências
e imprimir dinheiro é impensável” (Lerner, 1951: 270).
16 Considerado um dos próceres mais talentosos da nascente nação norte-americana: um dos seus Pais Fundadores. (...) tornou-se o primeiro Secretário do Tesouro dos Estados Unidos.
17 Um dos pais fundadores dos EUA.
43
Segundo Lerner (idem) essa forma de pensar se baseia na analogia com
o indivíduo. Como se a coleta de impostos pelo governo fosse tomada como
correspondente os rendimentos obtidos pelas pessoas. Esse é um argumento
apenas analógico, e como tal, não pode ser considerado como cientificamente
aceitável, segundo Lerner (idem). Principalmente nesse caso, pois o
funcionamento da dívida pública em moeda nacional é completamente
diferente das obrigações dos indivíduos, pois, como vimos, a emissão de dívida
pública não tem a função de financiar o Estado.
Essa analogia tem valia como inspiração apenas para o caso da dívida
externa dos países. “A analogia apropriada com a dívida pessoal é a dívida
internacional” (Lerner, 1951: 273). Paradoxalmente, os defensores das finanças
saudáveis geralmente não estão preocupados com a dívida externa. Alguns, ao
contrário, acham até que o acúmulo de dívida externa seja positivo para o
crescimento dos países, pois significaria a “atração” de que eles chamam de
“poupança externa”.
Na teoria das Finanças Funcionais, a tributação só deve ser adotada se
ela tiver alguma utilidade ou função racional justificável. Obter dinheiro não
pode ser função da tributação, pois o governo pode fazer isso de forma mais
fácil e menos penosa para as pessoas simplesmente emitindo dinheiro, o que,
como vimos, não poderia nunca ser inflacionário em si. A função principal de
mudanças no nível de tributação é influenciar o comportamento do público
via alterações em seus estoques de riqueza líquida e renda disponível.
Da mesma forma, a emissão de dívida só deve ser adotada se ela tiver
alguma utilidade ou função. A função da emissão de dívida pública é de
gerenciar a taxa de juros da economia. E a função da manipulação da taxa de
juros é de gerenciar o nível de investimento e consumo privado, nas finanças
funcionais.
Para Lerner, toda vez que essa função for requerida, deve-se emitir
dívida, não importando qual seja o estoque de obrigações acumulado. Assim, o
tamanho da dívida não afeta as propostas das Finanças Funcionais e a
possibilidade de atingir o pleno emprego ou a estabilidade de preços. Dito isso,
logo vem à cabeça dos conhecedores das finanças “saudáveis”: “mas
certamente deve haver um limite ao tamanho da dívida pública!”.
44
Lerner (1951: 274) recomenda que “antes de (...) tratar desse protesto é
necessário distinguir entre os dois significados da palavra limite”. As finanças
“saudáveis” sugerem que exista um teto para a dívida pública, normalmente
medido em relação ao PIB. Esse é um limite arbitrário, pois não há teoria que
possa justificar tal nível de precisão. Por coerência, sugerem ainda que, uma
vez atingido tal nível, o governo não deveria mais tomar emprestado, o que só
pode ser feito zerando o déficit público ou permitindo que a expansão da base
monetária faça o governo perder o controle sobre a redução das taxas de juros.
A conseqüência dessa omissão é o abandono das Finanças Funcionais.
Mais especificamente, dependendo da solução adotada, as conseqüências
poderiam ser tanto a depressão econômica em caso de adoção inflexível de
uma política de déficit nulo, ou a inflação em caso da emissão resultar em juros
zero e super-investimento e super-consumo privados.
Lerner propõe uma melhor compreensão das finanças funcionais ao
invés de adotar o dogma de que exista um limite arbitrário à dívida pública.
“Impor um limite arbitrário à dívida nacional é definir a regra [ou meta] de que
em algum ponto é mais importante prevenir o crescimento da dívida nacional
do que do que manter o pleno emprego ou a evitar a inflação” (idem: 274).
“Se prosperidade e estabilidade são mais importantes do que equilibrar o déficit quando a dívida é pequena, elas também são mais importantes quando essa dívida é grande. O objeção a uma grande e crescente dívida nacional é fundamentalmente baseada na crença de ela causaria algum vagamente definido dano econômico. Sacrificar as finanças funcionais em prol de prevenir o crescimento da dívida pública é, portanto, abraçar os definidos danos econômicos da depressão ou da inflação em prol de evitar uma possível causa de [um vagamente definido] dano econômico no futuro” (idem: 275).
Para o autor há, de fato, um limite ao endividamento do governo. Mas é
um limite automático e que não mereceria uma maior preocupação da política
econômica, no caso de adoção das finanças funcionais. “Se nós seguirmos os
princípios das Finanças Funcionais sem considerarmos o que pode acontecer
com a dívida nacional, a dívida nacional não aumentaria indefinidamente, mas
se manteria abaixo de um limite não definido por nós, mas pelas condições de
nossa economia” (idem 274).
Esse limite automático ao crescimento da dívida pública decorre da
dívida pública ser uma riqueza nas mãos de quem a possui. Se a dívida for
45
realmente muito grande18, é possível que os detentores de títulos de dívida se
sintam tão ricos que seu consumo sozinho seja capaz de levar a economia
para o pleno emprego. Isso pode acontecer apenas com o consumo de parte
da renda de juros ou, via a utilização do próprio estoque de títulos, caso
prefiram em algum momento consumir a acumular, a partir de certo ponto19.
Nessa situação, seguindo os princípios das finanças funcionais o
governo, para impedir que seja ultrapassado o nível de pleno emprego, é
obrigado a eliminar o déficit público. A dívida governamental, portanto, pararia
de crescer e talvez até cairia.
Lerner ressalta ainda que, da mesma forma que existe um limite
automático para dívida pública, há um limite automático para a base monetária.
O governo pode manter como contrapartida de seus déficits apenas emissão
monetária e não o endividamento. Nesse caso, o volume de dinheiro em poder
do público cresceria continuamente, mas não indefinidamente. Haveria duas
razões para que o crescimento da base monetária encontre um limite.
O primeiro é que o aumento contínuo do estoque de dinheiro em poder
do público, sem ser acompanhado por qualquer emissão de dívida, faria a
liquidez crescer significativamente e as taxas de juros se aproximariam de zero,
induzindo assim o investimento e o consumo privado. O segundo é que, da
mesma forma que o crescimento do estoque de títulos de dívida, o crescimento
do estoque de dinheiro é um crescimento da riqueza nas mãos das pessoas.
Mais ricas, as pessoas consumiriam e investiriam mais. Assim, em algum ponto
a liquidez e riqueza ficariam tão grandes que o pleno emprego poderia ser
obtido apenas com gastos privados. Seguindo os preceitos das finanças
funcionais, o governo seria obrigado a eliminar o seu déficit e a base monetária
pararia de crescer.
O medo maior das finanças “saudáveis” é que o governo se financie com
emissão. Esse exemplo ilustra bem que esse medo não tem fundamento. Em
uma economia fechada ao menos, é possível fazer a economia atingir o pleno
emprego com estabilidade de preços a partir de grandes e contínuos déficits
18 Provavelmente muitas vezes superior ao PIB. 19 Esse resultado depende do governo aceitar comprar os títulos que estiverem sendo colocados a venda. Se não fizer isso, nessa situação, a taxa de juros aumentaria explodiria.
46
acompanhados apenas de emissão monetária sem qualquer emissão de
dívida.
Porém, sem a emissão de dívida, o governo perde o poder de controlar a
taxa de juros e, portanto, de conduzir melhor o nível de gasto privado. O normal
é que o déficit público seja acompanhado parcialmente por emissão monetária
e parcialmente por endividamento, de acordo com as deseja composição
desses pelo setor privado a cada nível de taxa de juros. Isso não impede que
exista um limite automático para a expansão combinada dessas variáveis.
Seria um limite diferente e provavelmente em uma posição intermediária entre
ambos os exemplos citados acima: a expansão só com endividamento e a
expansão só com emissão de moeda.
Vimos que o tamanho da dívida é uma conseqüência da prosperidade e
do pleno emprego e que adotadas as finanças funcionais, a dívida não pode
causar inflação ou desemprego. Todavia, sob uma perspectiva estática, dívidas
públicas muito grandes podem ser julgadas negativamente a partir de
determinados valores a priori.
Em uma situação de pleno emprego permanente, após a dívida pública
atingir um patamar realmente muito grande20, quanto maior for a dívida pública,
menor deverão ser os gastos e o déficit público em proporção do PIB. Essa
conclusão se parece com as conclusões das finanças “saudáveis” que afirmam
que uma dívida maior hoje significaria a necessidade de geração de superávits
no futuro.
Entretanto, para Lerner (1951: 280), essa semelhança é apenas
superficial. Em primeiro lugar, a conclusão só é válida, se adotada uma política
de pleno emprego permanente com estabilidade de preços, ou seja, finanças
funcionais. Em segundo lugar, a explicação é outra. Nas finanças “saudáveis” a
emissão de dívida hoje significa geração de superávit no futuro porque “a
dívida tem que ser paga(!)”, dizem, em analogia ao endividamento privado. O
que Lerner está propondo é diverso. Dada a política de manter sempre o gasto
total da economia em um nível nem maior nem menor do que o necessário
para o pleno emprego, gastos privados muito elevados podem implicar a
20 Como já ressaltamos, esse patamar deveria corresponder a várias vezes o PIB. Entretanto, esse patamar grande provavelmente não é atingível, se as taxas de juros forem normais. Porque, com exceção dos juros, os gastos públicos aumentam a renda e o investimento aumentando a arrecadação.
47
necessidade reduzi-los, e na maioria dos casos a melhor maneira de fazer isso
é eliminando o déficit público.
Assim, dívidas muito grandes causariam duas supostas “desvantagens”.
Em primeiro lugar, podem implicar na manutenção gastos públicos em um nível
menor do que o governo poderia desejar. Em segundo lugar, podem implicar
alternativa ou complementarmente na necessidade de induzir o setor privado a
manter gastos menores do que ele desejaria.
Porém, como Lerner (1951: 281-2) faz questão de ressaltar, esses
efeitos “negativos” do endividamento público são causados pela prosperidade
econômica e só podem ser prevenidos evitando a própria prosperidade. “Não é
útil culpar a dívida nacional por esses efeitos danosos”. Porque o crescimento
da dívida pública é conseqüência direta e inescapável do fato do setor privado
desejar gastar menos do que a renda que a sociedade democrática considera
que a economia deve atingir.
Como se pode depreender da discussão do primeiro capítulo, na
ausência de uma resposta contra-cíclica do governo, quando o setor privado
deseja gastar menos do que sua renda, a economia tende a cair
indefinidamente até que a renda fique tão baixa que o desejo de gastar deixe
de ser menor do que a renda. Os governos de nações preocupadas com o
bem-estar de seu povo não permitem que isso aconteça, mesmo porque
precisam manter condições mínimas de funcionamento da máquina pública,
que poderiam ser inviabilizadas em uma situação onde o governo
acompanhasse a redução da arrecadação com redução de gastos. Mais
especificamente, a adoção das finanças funcionais implica que a dívida pública
é uma conseqüência totalmente inevitável da propensão do setor privado
desejar gastar menos do que sua renda no nível de pleno emprego. A dívida
pública é um subproduto do progresso e do aumento da riqueza da sociedade.
Se o setor privado deseja acumular riqueza financeira líquida, os dois efeitos
“negativos” de uma dívida pública muito grande só podem ser evitados com
uma profunda e contínua depressão econômica e conseqüente caos social.
Tais efeitos “negativos” são conseqüência da riqueza e prosperidade
“excessiva”. Comparados com uma depressão econômica, tornam-se
insignificantes.
48
Como vimos logo acima, é possível que o pleno emprego e a
prosperidade sejam alcançados sem crescimento da dívida pública. Nesse
caso, o governo emitiria prioritariamente dinheiro para cobrir a necessidade do
setor privado gastar menos do que ganha, isto é, acumular21. A dívida pública
não iria aumentar, mas sim a base monetária. Aumentaria menos, pois a taxa
de juros estaria muito próxima de zero e, portanto, o pleno emprego seria
atingido com maiores gastos privados e menor déficit público.
Alguém poderia pensar que, nessa situação, seria alcançado a
prosperidade sem os efeitos “negativos” que acompanham uma dívida pública
muito grande. Lerner (1951: 282-3) afirma que não é bem esse o caso. No
lugar de dívida pública, haveria uma maior acumulação de dívida privada
incorrida pelas empresas e famílias. Essa dívida privada, como a dívida
pública, constitui riqueza para as pessoas que a possuem. Essa acumulação
de dívida privada tem o mesmo motivo da acumulação de dívida pública. Ela é
causada pelo desejo das pessoas acumularem riqueza, ou seja, pelo desejo de
pouparem. Nas finanças funcionais, não importa se adota-se mais gastos
públicos ou mais gastos privados, o nível de renda atingido é aproximadamente
o mesmo e igual ao nível de pleno emprego. Assim o acúmulo total de dívida é
aproximadamente o mesmo, podendo ser majoritariamente pública ou privada.
“Essa dívida privada, da mesma forma que a dívida pública, constitui riqueza para as pessoas que a possuem. Essas pessoas sentem-se ainda mais ricas [nesse caso] do que no caso da dívida pública, porque a taxa de juros e os lucros são maiores. Haverá a mesma necessidade do governo em reduzir seu próprio gasto ou aumentar os impostos com o objetivo de prevenir a inflação [por ultrapassagem do nível de pleno emprego], e haverá os mesmo males em uma escala um tanto maior. Os males são resultados não da dívida nacional, mas da acumulação de riqueza privada que ocorre quando nós obtemos prosperidade em uma sociedade capitalista, tanto se toma a forma de dívida pública quanto se toma a forma de dívida privada. O único jeito de prevenir esses males é pela manutenção de um estado de depressão em que as pessoas são pobres demais para acumular riqueza” (Lerner: 1951: 283)22.
Os efeitos negativos do crescimento do endividamento público ou
privado só existem em situação de pleno emprego permanente, seja ele obtido
“automaticamente” ou via finanças funcionais. Esses efeitos decorrem da
propensão a poupar ativos financeiros. Se uma economia é mantida em pleno
21 Existe ainda uma outra possibilidade. Seria a instituição de impostos tão altos e tão progressivos que induzam o setor privado a não acumular ativos financeiros. 22 Esses argumentos são uma crítica muito contundente aos temores sobre a ‘carga da dívida’, e as teorias “modernas”, que os fundamentam, como a equivalência ricardiana.
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emprego pela expansão dos gastos públicos ou gastos privados e uma parte
da sociedade desejar poupar ativos financeiros, haverá acumulação de dívida
pública ou privada. Se esse desejo for mantido por muito tempo, haverá uma
grande acumulação de dívida. Dessa forma, mantida a hipótese de que pleno
emprego constante, se, em algum momento, os agentes que acumularam
esses ativos financeiros não desejarem mais acumular e passarem a gastar
mais do que ganham, outros agentes terão que reduzir seus gastos para que a
demanda por trabalho não supere a oferta. Se o país adota finanças funcionais,
o governo será obrigado a gerar superávit fiscal. O que seria supostamente o
efeito negativo da acumulação prévia de endividamento que tanto temem
Robert Barro e outros assustados com a ‘carga da dívida’ para as futuras
gerações.
Na verdade, os tais efeitos “negativos” do grande endividamento público
ou privado decorrente prosperidade23 só são, de fato, negativos sob certos
pontos de vista. Chamar esses efeitos de negativos é um julgamento de valor.
Sob um ponto de vista tipicamente capitalista ou tipicamente de liberalismo
econômico, esses efeitos são conseqüência do direito que têm as famílias ou
empresas, que no passado gastaram menos do que ganharam e acumularam
títulos de dívida públicos e privados, de gastarem mais do que sua renda,
utilizando para isso a riqueza ou a renda obtida da riqueza que economizaram
ou que herdaram de seus pais. Assumido isso como direito legítimo e justo,
não existiriam efeitos negativos de uma dívida (pública ou privada) muito
grande decorrente da prosperidade24.
É preciso lembrar que esses efeitos “negativos” só ocorrem em uma
situação de pleno emprego permanente. Sob desemprego, o efeito seria, na
verdade, positivo, pois aumentaria a demanda por mão-de-obra. Dessa forma,
23 E do inerente e compreensível desejo de poupar na forma de ativos financeiros. 24 Esse não é o caso da dívida pública brasileira recente. Essa cresceu enormemente sem gerar sensível crescimento econômico. A partir de 1994, a dívida pública cresceu na sua maior parte não devido a grandes investimentos públicos ou gastos com fins sociais, mas cresceu principalmente para pagar juros inéditos a banqueiros e rentistas. Como esses agentes tendem a acumular a maior parte da renda que obtém, não houve crescimento do consumo e nem do investimento que acompanharia o crescimento do consumo. Os juros elevadíssimos além de prejudicar o investimento privado, a competitividade internacional e inibir o consumo, fizeram a dívida pública crescer exponencialmente sem gerar renda, pois foram transferências feitas a agentes que simplesmente a acumularam. A política econômica brasileira conseguiu fazer a quase inédita proeza de aumentar a dívida sem aumentar significativamente a renda da economia. Isso só é possível com juros absurdamente altos.
50
os efeitos “negativos” da ‘carga da dívida’ só existiriam em uma situação de
grande prosperidade e pleno emprego, e seriam decorrentes apenas do desejo
de gastar acima da própria renda dos agentes ou dos filhos dos agentes que
pouparam durante o processo de alcance da prosperidade25.
Lerner (1951: 285-6) destaca ainda que é inapropriado culpar o
endividamento público pela má distribuição de renda. Em primeiro lugar, como
ressalta o autor, essa atribuição de culpa deve ser igualmente dirigida ao
endividamento privado, pois ambos são resultados da prosperidade. Em
segundo lugar, mesmo se aplicado ao endividamento em geral, é incorreto
atribuir a ele a má distribuição de renda.
O tamanho do endividamento é decorrente da propensão consumir e da
prosperidade da sociedade. O fato desses títulos serem acumulados
principalmente pelos mais ricos decorre apenas do fato de eles serem mais
ricos e não o contrário. Os ricos acumularam mais riqueza porque no passado
puderam se apropriar e poupar mais renda. Então não se pode culpar o
tamanho das dívidas pela má distribuição de renda. A culpa dela são fatores
estruturais que permitem a certos extratos da sociedade acumular mais renda,
como progressividade de impostos, poder de monopólio, instituições do
mercado de trabalho, desemprego, taxa de juros, entre outros. Claro que
depois de acumulada a riqueza, os juros que os ricos recebem por seu
patrimônio é obviamente maior do que o dos pobres. Mas, nesse caso, a culpa
é do valor e da existência de uma taxa de juros positiva, do nível de
progressividade dos impostos e da acumulação do passado. Assim, o tamanho
da riqueza acumulada não pode ser culpada pela má distribuição de renda, ela
é apenas conseqüência. Mesmo porque dadas as condições estruturais de
distribuição da renda – que não tem relação com o tamanho da dívida – o
tamanho da dívida só poderia ser evitado com a recusa em alcançar a
prosperidade, ou seja, escolhendo o pior para todos.
25 Esses “efeitos negativos” podem também ser facilmente prevenidos ou remediados, se o governo imputa um imposto sobre capital ou impostos suficientemente progressivos sobre rendas de juros ou de capital. Nesse caso, a acumulação privada de ativos financeiros pode ser reduzida.
51
Capítulo 2: Limitações
“A função social da doutrina das finanças saudáveis é a tornar o nível de emprego dependente do estado de confiança [dos empresários] (Kalecki, 1942: 350)”.
“Uma das mais importantes funções do facismo, como tipificado pelo sistema nazista, era a de remover as objeções capitalistas ao pleno emprego. A reprovação à política de despesa governamental é superada, sob o fascimo, pelo fato de a máquina estatal estar sob controle direto de uma associação do grande negócio com os bem-sucedidos fascistas. É removida a necessidade do mito das finanças saudáveis, que servia para impedir o governo de sobrepor-se, por meio dos gastos, à crise de confiança. Numa democracia ninguém sabe como será o próximo governo. No fascismo não há próximo governo.” (Kalecki, 1942: 352)
Durante a segunda guerra mundial, a política econômica foi guiada de
forma a produzir ao máximo para suprir as necessidades das forças
combatentes. Esse esforço foi especialmente difícil, se lembrarmos que boa
parte da força de trabalho estava de fato servindo direta ou indiretamente os
exércitos envolvidos.
Naqueles anos difíceis, as velhas normas de “prudência financeira” das
contas públicas certamente estavam longe de ter qualquer prioridade.
Entretanto, não era difícil perceber que essa suposta “imprudência” não estava
causando nenhum dos males outrora lhe atribuídos.
Coincidentemente ou não, a revolução keynesiana ensaiava os
primeiros passos. As dúvidas e desconfianças, porém, ainda eram muitas. Uma
das quais dizia respeito à capacidade financeira do Estado. A política fiscal era
o principal remédio sugerido por Keynes para combater o desemprego. No
entanto, a autonomia para utilização desse tipo de política era questionada pela
teoria prevalecente das finanças “saudáveis”, que insistia que o orçamento
público devia ser equilibrado ao menos no longo prazo.
Abba Lerner foi um dos primeiros autores a perceber de forma clara que
tal teoria era equivocada e que não existiam restrições contábeis-fiscais ao
52
tamanho do déficit ou da dívida pública26. Ao mostrar isso, permitiu que o
arcabouço keynesiano fosse completado.
Terminada a guerra, a revolução keynesiana invadiu a academia e
forneceu base teórica para parte significativa das políticas que ajudaram a
construir a chamada era de ouro do capitalismo e o estado do bem-estar social.
Podemos dizer que as políticas econômicas do mundo desenvolvido e a
construção do Estado do bem-estar social foram coerentes com as propostas
das finanças funcionais. Aliás, o próprio primeiro mundo, tal como conhecemos
hoje, não existiria sem a adoção de políticas fiscais desvinculadas de metas
contábeis-fiscais.
Lerner mostrou com clareza que não haveria limitações intrínsecas ao
tamanho da dívida ou do déficit público, enquanto houvesse desemprego.
Quaisquer temores com relação à “carga da dívida” ou supostas características
explosivas da mesma eram infundadas. A grande lição foi que a dívida pública
não se comporta como a dívida privada.
Dessa forma, graças às finanças funcionais e teorias similares, rompeu-
se uma grande barreira teórico-ideológica à prosperidade. E essa foi, de fato,
alcançada. Mas a oposição às políticas de pleno emprego não foi extinta.
Graças às finanças funcionais, o grande debate entre keynesianos e liberais
econômicos, que se opõem a políticas de pleno emprego, se deslocou da pura
questão contábil-fiscal para a teoria da inflação.
De fato, a inflação passou a ser a questão central dos debates sobre
política econômica. Já nos anos 70, a dificuldade de lidar com a inflação foi
certamente uma das principais causas da derrota teórico-ideológica dos
keynesianos.
Provavelmente, Lerner percebeu, antes de qualquer um, a importância
da questão da inflação para as finanças funcionais e todo o arcabouço
keynesiano. Em seu grande clássico, Economia do Emprego de 1951, Lerner
incorpora às finanças funcionais uma sólida e interessante teoria sobre a
inflação. Lerner (1951) usou o termo ‘baixo pleno emprego’ para relacionar o
26 É preciso esclarecer que os conceitos “prudência fiscal”, “austeridade fiscal” em si são vazios de sentido, devido à possibilidade de emissão de dinheiro. Prudência ou austeridade fiscal é sinônimo de prudência ou austeridade contábil. Em uma visão mais científica, os liberais poderiam usar o termo prudência anti-inflacionária para retirar a excessiva conotação contábil.
53
dilema entre desemprego e inflação. Levar e manter a economia nesse ponto
de ‘baixo pleno emprego’ passou a ser a meta das finanças funcionais.
Entretanto, o ponto de baixo pleno emprego ainda comportava uma
acentuada proporção de desempregados. A ultrapassagem desse ponto,
mesmo antes de se alcançar o pleno emprego implicaria em inflação crescente.
Foi uma das primeiras vezes em que a Macroeconomia teorizava sobre a
possibilidade de desemprego com inflação. Outros autores só iriam propor
teorias similares entre 10 e 20 anos depois.
A incorporação desse conceito tornou a teoria das finanças funcionais
muito mais sólida. No entanto, surgiram com o tempo diversos eventos que
indicavam insuficiências na teoria das finanças funcionais. Em primeiro lugar,
(1) podemos citar a impossibilidade das políticas de incentivo à demanda
doméstica viabilizarem o pleno emprego em determinados países, em
particular os subdesenvolvidos. Esses problemas estão associados à restrição
externa.
Já a partir do final dos anos 60 e início dos anos 70, começa-se a
perceber dificuldades em solucionar os problemas inflacionários com as
políticas sugeridas pelas finanças funcionais. Percebeu-se na prática o que
Lerner já havia previsto, ainda que talvez com menor intensidade. Mais
especificamente, nos países centrais, que (2) altas inflações poderiam conviver
com desemprego acentuado. Nos países periféricos, essa proposição sempre
foi trivial, em decorrência da dificuldade em manter um câmbio estável.
A política econômica keynesiana sofreu outro tipo de questionamento
partir dos anos 60. O grande diferencial de taxas de crescimento entre os
países centrais (3) causava insatisfações nos países menos dinâmicos, em
particular naqueles acostumados a posições de liderança: Inglaterra e EUA. As
políticas de estímulo à demanda doméstica se mostravam insuficientes para
combater essa situação no regime de Bretton Woods. Sugeriu-se como arma
competitiva o câmbio flutuante.
Todavia, as finanças funcionais não poderiam ser culpadas por esse tipo
de problema. Lerner deixou claro que suas propostas poderiam sofrer
limitações caso o câmbio fosse fixo. No entanto, após a adoção do câmbio
flutuante, percebeu-se que, em geral, essa não seria uma solução para as
deficiências de crescimento dos países.
54
Porém, deve-se ressaltar que (4) o câmbio não é apenas uma restrição à
política econômica, ele pode ser também um instrumento adicional que permite
em certas situações uma maior liberdade. Ao contrário do que proporia Lerner,
pretendemos defender que a ultrapassagem do baixo pleno emprego não
necessariamente gera inflação, porque o câmbio restringe o repasse dos
custos trabalhistas sobre os preços, pois determina um teto para boa parte dos
preços, podendo obrigar grande proporção do setor privado a reduzir, ao
menos temporariamente, suas margens de lucro para absorver aumentos dos
custos trabalhistas.
Sugerimos que parte das limitações encontradas nas teorias das
finanças funcionais decorrem da desconsideração, por parte de Lerner, da
importante relação entre câmbio e inflação. Essa posição resulta na dificuldade
em perceber: (i) as limitações do câmbio flutuante em deslocar a restrição
externa e (ii) a necessidade utilizar o câmbio como instrumento de combate à
inflação.
Dessa forma, a questão cambial é um problema para a teoria lerneriana
da inflação. De fato, essa teoria tem dificuldade geral em considerar o potencial
de acomodação dos salários e das margens de lucro a mudanças nos custos
ou aumentos de preços. Isso não acontece apenas pela dificuldade de
considerar os aspectos cambiais na determinação das margens de lucro.
Lerner (1951) também desconsidera (5) que as margens de lucro são
dependentes da taxa de juros real e, portanto, dependendo do comportamento
do banco central, podem acomodar aumentos de custos. As margens de lucro
das empresas não são independentes da taxa de juros real, portanto, reduções
nos juros reais podem fazer com que os capitalistas absorvam parte
significativa do aumento dos custos salariais.
Ademais, o baixo pleno emprego (6) não é um ponto tão rígido como
defende o autor, porque o baixo pleno emprego não é um ponto estável ou
independente das instituições e das circunstâncias políticas, ele depende
decisivamente de fatores como poder de barganha e expectativas dos
trabalhadores, o que muda historicamente. No período de ouro do capitalismo,
havia grande resistência à perda de salário real, como supõe Lerner. Porém, a
história recente mostrou que os trabalhadores, em determinadas condições,
podem aceitar perdas salariais significativas. Por outro lado, políticas que
55
alteram as condições de reivindicação e indexação salariais, como as políticas
de renda, também podem alterar o ponto de baixo pleno emprego.
Na próxima seção, desenvolveremos as teorias Lernerianas da inflação.
Nas seções seguintes, vamos desenvolver as limitações dessas teorias, dando
uma ênfase maior para a questão da restrição externa.
2.1. Teorias Lernerianas de inflação
Abba Lerner, após concluir sua proposta de finanças funcionais, dedicou
boa parte de sua carreira às teorias de inflação. Lerner possuía uma grande
preocupação em tornar o pleno emprego uma realidade. Porém, achava que
esse resultado não seria alcançável, se no caminho para o pleno emprego
fosse provocada uma espiral inflacionária.
No trabalho seminal de 1993, onde propôs a teoria das finanças
funcionais, Functional Finance and the Federal Debt, Lerner não aprofunda a
discussão sobre a inflação. Essa é tratada simplesmente como uma questão de
demanda, como é usual. Assim, as finanças funcionais proporiam que “o gasto
total pode ser mantido no nível requerido, onde ele seria suficiente para
comprar os bens que podem ser produzidos por todos que querem trabalhar,
e ainda não fosse suficiente para causar inflação por demandar (aos preços
correntes) mais do que pode ser produzido [grifos nossos; tradução livre]
(Lerner, 1943: 468).
Nesse primeiro trabalho sobre as finanças funcionais, Lerner (1943)
ainda via a inflação como um resultado do excesso de demanda. Por essa
teoria, o aumento de preços seria decorrente de ultrapassagem do nível de
pleno emprego. Portanto, não espera-se a convivência de inflação e
desemprego. Porém, essa teoria encontra alguns problemas, como Lerner
percebeu prematuramente.
Com aproximadamente 20 anos de antecedência, Lerner foi um dos
primeiros a dar importância à possibilidade de convivência de alta inflação com
desemprego elevado. Essa possibilidade tornou os estudos sobre inflação tão
importantes para o autor, pois essa poderia significar a inviabilidade do pleno
emprego.
56
A existência de uma “region between depression and inflation where we
have both depression and inflation” (Lerner, 1951, apud Scitovsky: 1984)
induziu Lerner (1951) a propor os termos baixo e alto pleno emprego. O termo
baixo pleno emprego delimitaria as situações onde a expansão do nível de
atividade pressionaria e onde não pressionaria a taxa de inflação. Esse termo
tem semelhanças com a curva de Phillips e com o conceito de taxa natural de
desemprego de Friedman (Scitovsky, idem), porém foi criado 7 anos antes do
primeiro e quase duas décadas antes do segundo. Mas há uma diferença muito
importante entre Lerner (1951) e esses autores. Para o primeiro, a inflação
causada pela ultrapassagem do nível de baixo pleno emprego não pode ser
considerada simplesmente como uma inflação de demanda.
Em seu livro de 1972, Flation, o autor propõe a existência de três tipos
de inflação: (1) inflação de compradores, (2) inflação de vendedores e (3)
inflação de expectativas. Vamos desenvolver mais à frente sobre esses três
tipos de inflação utilizando também outros autores.
Em seu livro de 1951, Economics of Employment, Lerner escreveu 4
capítulos dedicados à inflação e seus problemas. Depois desse livro, ele
escreveu muito mais artigos e um livro sobre inflação; mas, segundo Scitovsky
(1984: 1562), a maioria de suas idéias sobre o assunto já estavam contidas no
Economics of Employment.
Nesse livro, já está claro que a manutenção do desemprego poderia não
ser uma condição suficiente para a redução da inflação, pois o tipo de inflação
mais provável seria uma inflação de vendedores. Vamos, nesta seção, analisar
a teoria de inflação que Lerner desenvolve em seu importante trabalho de 1951
e como ele a torna fundamental para as finanças funcionais.
Na grande maioria dos casos, os dois principais objetivos da política
econômica são o controle da inflação e a maximização do emprego. A teoria
macroeconômica também dá grande importância e relaciona essas duas
variáveis.
O conceito de pleno emprego é chave para esse relacionamento. Esse
conceito é geralmente usado para exprimir a idéia de escassez de mão-de-
obra. Como a mão-de-obra é o insumo fundamental de todas economias, sua
escassez poderia em teoria significar a elevação de custos gerais da economia
em momentos de expansão da demanda por trabalho.
57
Mantidas relativamente rígidas em termos reais as margens de lucro, o
aumento generalizado dos custos de trabalho implicaria em aumentos nos
preços. Aumentos esses que acabariam em grande parte sendo indexados aos
salários, devido à pressão por manutenção do poder de compra pelos
sindicatos, gerando uma inflação realimentável.
Diversas correntes econômicas relacionam inflação com aumentos de
salários. Entretanto, há mais divergência entre Lerner e essas visões do que
parece à primeira vista.
A inflação é frequentemente associada ao conceito de ‘taxa de
desemprego não aceleradora da inflação’, conhecida pela sigla NAIRU (non
accelerating inflation rate of unemployment).
Segundo Wray (1998: 33), muitos economistas consideram que “pleno
emprego” significa um nível mínimo de desemprego que está associado a uma
taxa constante de inflação, que é a taxa de desemprego não aceleradora da
inflação ou NAIRU. “Outros (...) associam pleno emprego a uma “taxa natural”
de desemprego que se supõe ser determinada pelo salário real de equilíbrio
(na interseção da curva de demanda e oferta de trabalho) de forma que todo
desemprego é voluntário no sentido de que os desempregados não querem
trabalhar pelo salário de equilíbrio” (idem: 33).
Muito economistas também associam pleno emprego com “a situação na
qual somente persiste desemprego friccional (por exemplo, aqueles que estão
temporariamente entre empregos) e talvez desemprego estrutural (por
exemplo, devido ao descompasso entre as qualificações requeridas para
assumir dadas vagas de emprego e as qualificações do desempregado)” (idem:
33). Há ainda os que consideram que a situação de pleno emprego deve ser
“consistente com uma situação na qual o número de desempregados iguala o
número de postos de trabalho oferecidos” (idem: 34).
Além das divergências quanto à definição de pleno emprego, há ainda
divergências metodológicas ainda maiores sobre a definição de desempregado
(Pigeon e Wray, 1998; Wray 1998: 34, 172-3).
As estatísticas americanas definem como desempregado apenas aquele
que procurou emprego nas últimas 4 semanas anteriores à pesquisa. Sob esse
critério, muitos que gostariam de trabalhar, mas que não procuraram
ativamente emprego no último mês por um motivo qualquer, acabam sendo
58
classificados como fora-da-força-de-trabalho. Além dos trabalhadores que
gostariam de trabalhar mas não puderam procurar ativamente emprego no
último mês, há aqueles que estão trabalhando menos horas do que gostariam,
aqueles que estão trabalhando em condições precárias e aceitando funções
que não requerem suas qualificações, educação e treinamento e aqueles que
estão “se virando fazendo bicos”. Esses casos poderiam ser chamados de
parcialmente desempregados, subempregados, ou simplesmente de
desemprego disfarçado.
Apenas como ilustração do grau de viés que os critérios oficiais de
desemprego podem causar, podemos citar um estudo de Pigeon e Wray (1998)
que mostra que “a taxa de desemprego oficial não dá uma boa indicação do
grau de estreitamento do mercado de trabalho, porque [devido às critérios
arbitrários e restritivos da definição de desempregado] são amplos os fluxos
entre categorias emprego, desemprego e fora-da-força-de-trabalho” (Wray,
1988: 173). Por esse estudo é possível perceber que “mesmo no pico do ciclo
de negócios as taxas de participação da força de trabalho daqueles que não
cursaram faculdade são significativamente mais baixas que as participações
dos que atingiram a faculdade27” 28 (idem).
Essa grande quantidade de definições nos sugere muitas coisas. Uma
delas é a grande relação existente entre o conceito de desemprego e as teorias
de inflação. Segundo Wray (1998) e Lerner (1951), a relação entre desemprego
e inflação é dependente da institucionalidade do mercado de trabalho.
Dependendo dessa institucionalidade, níveis mais altos de emprego podem ser
atingidos sem impacto inflacionário.
Para esses autores, em um mercado de trabalho sem determinadas
regulações específicas, no processo de crescimento econômico, a NAIRU é
27 No ano de baixíssimo desemprego de 1998, na população norte-americana com mais de 25 anos, “a proporção do emprego sobre a população (...) era de 79% para graduados em faculdade, 72% para os que tinham freqüentado alguma faculdade, 63% para graduados no segundo grau, e menos de 40% para o que não concluíram o segundo grau” (Wray, 1998: 232). São dados que mostram que devem realmente existir problemas nos indicadores oficiais de desemprego e de população economicamente ativa. 28 Para evitar esses tipos de vieses, Wray (1998) sugere que pleno emprego seja definido como “uma situação na qual todos os que desejam trabalhar a uma salário nominal fixado pelo governo serão providos com um trabalho de tempo integral”. Wray (1998) considera que esse conceito de pleno emprego implicaria em uma definição de desemprego mais adequada, pois revelaria desempregados ocultos que tenham desistido de procurar empregos, que estejam trabalhando como subempregados ou em condições de trabalho muito precárias. Essa definição é interessante também porque independe de aspectos mais subjetivos como desemprego friccional ou acelerativo da inflação.
59
atingida antes do nível de pleno emprego. Isso significaria que é possível
conviver com níveis de inflação crescentes e aceleracionistas antes de atingir o
pleno emprego e que esse só poderia ser, de fato, atingido com estabilidade
econômica com políticas salariais e instituições específicas.
Como vimos, Lerner (1951) propõe 2 conceitos de pleno emprego: baixo
pleno emprego e alto pleno emprego. Para Lerner, pleno emprego é um
conceito de definição muito difícil, e por isso sugere uma definição
aparentemente vaga. “Pleno emprego significa apenas que aqueles que
querem trabalhar ao salário prevalecente são capazes de encontrar trabalho
sem excessiva dificuldade” (Lerner, 1951: 17, tradução livre).
A definição fica mais precisa quando ele afirma que na situação de alto
pleno emprego o desemprego existente é friccional. Uma situação onde
prevalece o desemprego friccional se diferencia de uma situação onde
prevalece o que chama-se simplesmente de desemprego ou que Lerner chama
de desemprego deflacionário.
Quando ocorre desemprego deflacionário, os empregadores não
encontram grande dificuldade em encontrar trabalhadores dispostos a trabalhar
aos salários vigentes, mas, analogamente, o mesmo não pode ser dito de
forma generalizada para os trabalhadores.
Em uma situação de predominância de desemprego friccional, espera-se
que a dificuldade em encontrar empregos seja aproximadamente tão grande
quanto a dificuldade em encontrar trabalhadores dispostos a trabalhar. Assim,
Lerner (1951: 21) chega a sugerir a definição de ‘alto pleno emprego’, que seria
a situação “em que há tantos empregos procurando por trabalhadores, quanto
trabalhadores procurando por empregos”.
O desemprego friccional seria de alguma forma decorrente do tempo
necessário para os empregadores encontrar trabalhadores capacitados em
localidades específicas e dos trabalhadores desempregados encontrarem
empregos que satisfaçam suas exigências de condições de trabalho e
remuneração em localidades específicas. Poderíamos dizer que o desemprego
friccional seria decorrente da natural dificuldade de saber onde estão os
empregos vagos em todas as atividades, onde estão os desempregados de
cada especialização, quando serão abertas novas vagas e quando os atuais
60
empregados sairão de seus empregos. Os economistas usam o termo
‘informação imperfeita’ para caracterizar esse tipo de problema.
Para Lerner, na situação de alto pleno emprego, prevalece apenas
desemprego fricional e o nível de atividade não pode ser alterado por políticas
de estímulo à demanda sem afetar a taxa de inflação, ainda que políticas que
aumentem e melhorem a difusão de informações possam aumentar o nível de
alto pleno emprego.
O conceito de baixo pleno emprego é muito similar ao conceito de
NAIRU máxima. Segundo Lerner (1951: 23) baixo pleno emprego é a situação
onde “a inflação começa”.
Para o autor, acima do nível de baixo pleno emprego, haveria
“excessivo” poder de barganha dos trabalhadores. Se o nível de atividade
ultrapassar aquele definido pelo nível de baixo pleno emprego “a pressão por
maiores salários pelos trabalhadores seria maior do que a resistência aos
aumentos de salários pelos empregadores, e os salários tenderiam a subir
mais rapidamente do que o crescimento da produtividade do trabalho. Os
empregadores prefeririam evitar interrupções na produção, porque os negócios
estariam muito bem. Não seria tão fácil conseguir novos trabalhadores. Os
empregadores poderiam até fazer ofertas salariais superiores na tentativa de
expandir rapidamente e tirar vantagem dos bons negócios. E os salários
subiriam”. (Lerner, 1951: 194; tradução livre).
Para Lerner, esses aumentos decorrem de um poder
de barganha “excessivo” por parte dos trabalhadores, mas não de um poder de
barganha generalizado em todas as regiões e setores.
O nível de baixo pleno emprego é inferior ao nível de alto pleno
emprego, onde, de fato, o número de vagas de trabalho oferecidas se aproxima
do número de trabalhadores procurando emprego. No nível de baixo pleno
emprego, há ainda muito mais desempregados do que ofertas de emprego.
Porém, os salários já seriam crescentes, assim como a inflação.
De acordo com Lerner (1951), esse resultado esperado seria
conseqüência da rigidez para baixo dos salários, da pouca mobilidade dos
trabalhadores e da baixa difusão de informações nos mercados de trabalho.
Quando o nível de atividade atingisse determinado patamar, a escassez
de trabalhadores em determinadas especializações em determinadas regiões
61
aumentaria muito o poder de barganha de certas categorias, apesar do
desemprego em outras regiões e categorias, devido à pouca mobilidade dos
desempregados de outras regiões ou especialidades. Dessa forma, a rigidez
dos salários à queda faria com que houvesse aumento dos salários médios,
apesar da existência de desemprego significativo em muitas regiões e setores.
Wray (1998) tem uma visão parecida com a de Lerner (1951), com a
diferença talvez de que o último, até por ter vivido em outra época, parece estar
pensando mais em operários de chão de fábrica, enquanto o primeiro parece
estar preocupado também com os funcionários de formação superior. Segundo
Wray (1998:173), “(...) as expansões econômicas promovem ‘contração no
topo’ [mais qualificados] e fazem pouco para aumentar as oportunidades para
os que estão embaixo, a menos que a demanda seja tão grande que induza
inflação salarial para os altamente qualificados de forma a levar os
empregadores a ‘contratar os de baixo’ [menos qualificados]. É por causa disso
que as expansões econômicas provavelmente causam inflação antes que o
pleno emprego seja alcançado”.
Em seus trabalhos, Lerner supõe que as margens de lucro são
relativamente rígidas em termos reais e que os trabalhadores em geral não
admitem perdas reais de salários, a menos em situações de prolongado
desemprego.
Dadas essas premissas, segundo Lerner (1951), uma vez ultrapassado
o nível de baixo pleno emprego, a economia sofrerá uma aceleração da
inflação. Lerner (1951) não utiliza diretamente o termo ‘conflito distributivo’,
mas pela descrição que ele faz do processo de reajuste dos preços e a
posterior tentativa dos trabalhadores em manter o poder de compra
conquistado, podemos interpretar que ele tem essa idéia por detrás.
“Os aumentos dos salários aumentariam os custos e os preços dos produtos se elevariam. A possibilidade de aumentos nos preços dos produtos é a mais importante questão em consideração na persuasão dos empregadores para pagar maiores salários. O aumento nos preços destrói os benefícios do aumento dos salários esperados pelos trabalhadores. Eles não podem comprar agora mais bens com seus maiores salários nominais do que eles podiam comprar antes com seus menores salários nominais. Isso leva à demanda por outro aumento de salários que desse aos trabalhadores o esperado aumento em seus salários reais, que foi furtado pelo aumento dos preços, e a próxima rodada de aumentos de salários leva a um outro aumento dos preços; e dessa forma têm-se a espiral inflacionária” (Lerner, 1951: 194; tradução livre). “Quanto mais rapidamente os salários são elevados, mais rapidamente preços vão crescer. Em curto prazo, os aumentos dos preços e salários ficarão cumulativos e auto-acelerativos” (idem: 196).
62
Uma implicação importante das teorias de Lerner é a praticamente nula
possibilidade de inflação estritamente de excesso de demanda. Lerner (1972)
chama a conhecida inflação de demanda de inflação de compradores
(Scitovsky, 1984: 1562). Ocorreria quando “os compradores estiverem tentando
comprar mais do que 100% do que a força de trabalho disponível pode
produzir” (Scitovsky, idem). Esse tipo de inflação só pode ser prevenida ou
remediada pela a redução do gasto total.
A definição escolhida por Lerner para a inflação de demanda não deixa
dúvidas de que, para ele, esse tipo de inflação é impossível nas condições
conhecidas em tempos de paz. Para comprar mais do que 100% do que a força
de trabalho é capaz de produzir, é necessário que seja ultrapassado o nível de
alto pleno emprego. Porém, Lerner (1951: 195-204) considera que o arcabouço
institucional vigente nos mercados de trabalho impede que o nível de alto pleno
emprego seja atingido, pois, antes de ser alcançado esse nível de emprego, a
inflação seria muito alta e acelerativa e ocorreria uma “desorganização da
produção” (idem: 199) e um “redução nos incentivos à produção” devido à
compra especulativa de mercadorias e, podemos acrescentar, ativos
estrangeiros.
Podemos concluir, por suas definições, que, para Lerner, a inflação que
decorrente da ultrapassagem do nível de baixo pleno emprego seja uma
inflação de vendedores (i.e., de custo) e não de compradores (i.e., de
demanda).
Lerner, dessa forma, estaria sugerindo que a inflação de demanda seja
uma situação, na melhor das hipóteses rara. O autor foca sua atenção na
questão da oferta de mão-de-obra, mas poderíamos generalizar sua conclusão
para outras possíveis fontes de escassez de insumos.
Uma inflação de demanda decorre da escassez de insumos. Esses
insumos podem ser mão-de-obra, matérias-primas ou capacidade instalada. A
primeira coisa que precisa ficar clara quanto às possíveis inflações de
demanda é que elas poderiam até precipitar, mas por si só não podem ser as
causas da manutenção de processos contínuos ou aceleracionistas de inflação.
É necessário algum mecanismo de indexação para que isso ocorra.
63
Assim, por si só, mesmo se possível, a chamada inflação de demanda
seria limitada. O aumento do preço de certos insumos mais escassos apenas
causaria uma mudança nos preços relativos em favor desses insumos até o
ponto em que a oferta se ajuste à demanda. Após esse ajuste, deveria haver
uma redução na demanda ou aumento da oferta desse insumo e uma
acomodação da inflação.
Caso contrário, se esse aumento de preços se torna generalizado, não
podemos chamar o processo simplesmente de inflação de demanda; porque,
se os preços de outros insumos ou produtos que não utilizam tal insumo
aumentam, não é devido a um excesso de demanda em seus mercados, mas a
outras causas, como conflito distributivo.
Uma inflação contínua causada e mantida apenas pelo aumento dos
preços de insumos escassos levaria a um aumento contínuo da participação do
setor ofertante de insumos escassos na renda nacional ou internacional.
De qualquer forma, essa não é a natureza mais usual do que se
costuma chamar de processos inflacionários. Eles costumam ter forte inércia. É
mais razoável afirmar que os processos inflacionários que ocorrem
normalmente não são acompanhados de contínuos e proporcionais processos
de elevação da participação de um determinado segmento na renda agregada.
Nos processos usuais de inflação todos os setores sociais tentam manter sua
participação na renda. Fazem isso negociando ou impondo aumentos nos seus
preços ou rendimentos. Podemos assim dizer que a manutenção de taxas
contínuas de inflação não pode ser causada apenas por alguma coisa que
poderíamos chamar de inflação de demanda. É necessário um mecanismo
complementar que leve à generalização dos aumentos e à inércia. Esse
mecanismo pode ser o conflito distributivo ou expectativas de inflação que
levam os agentes a reajustar nominalmente seus rendimentos para manter sua
participação na renda.
Para reforçar o argumento, é preciso sublinhar que a maioria dos
insumos importantes não é de fato escassa, e é por isso que são importantes.
Quando um insumo é escasso, rapidamente se encontram substitutos ou
64
formas mais econômicas de utilização29. O insumo que, a priori, poderia ser de
fato escasso é a mão-de-obra.
No capitalismo, inflação persistente por escassez de capacidade
instalada é ainda muito menos provável, se for possível. Fazendo uma análise
setorial podemos afirmar que é muito difícil imaginar algum setor do comércio
ou dos serviços que poderia aumentar seus preços por falta de capacidade
instalada dos bens de capital. Além disso, esses setores, assim como a maioria
dos setores industriais da indústria tradicional, da indústria de montagem e da
indústria de plásticos, indústria gráfica, construção civil e mineração, entre
outros30, tem quase todo seu maquinário produzido em série ou pode ser
entregue em prazos muito curtos. Muitas vezes, é mais rápido colocar uma
nova máquina em operação do que treinar um novo funcionário.
Poucas indústrias possuem prazos de maturação muito longos para os
investimentos em capacidade instalada. Porém, essas costumam operar com
grande capacidade ociosa, e geralmente suportam anos de crescimento
acelerado para serem ocupadas. Além disso, esse tipo de indústria possui, na
maior parte das vezes, programas contínuos e de longo prazo de ampliação da
capacidade instalada baseados em previsões de longo prazo e com grande
margem de segurança em relação às expectativas de crescimento da
demanda31.
Se ainda assim, a maior parte dessas indústrias forem surpreendidas por
um crescimento de demanda muito superior às previsões mais a margem de
segurança, pode-se reduzir a quantidade exportada ou aumentar as
importações, tornando praticamente impossível inflação por escassez de
capacidade instalada.
29 De fato, a única matéria-prima importante que poderia ter aspectos de insumo escasso seria o petróleo, devido à incerteza e ao grande prazo de maturação dos investimentos em prospecção. Ou seja, elevações do preço do petróleo até hoje não foram decorrentes da escassez de petróleo, mas de faltas temporárias de capacidade instalada, nos países menos propensos a participar ativamente dos cortes de produção nos momentos em que se realizam de políticas de contenção de oferta pela OPEP. 30 A indústria tradicional abarca todo ramo têxtil e calçados, móveis, alimentos, entre outros. A indústria de montagem abarca, por exemplo, os setores duráveis de consumo e indústria de bens de capital seriados. 31 Quanto maior a taxa de juros, menores os prazos de financiamento e piores as outras condições de financiamento, menor é a disposição dos empresários em garantir grandes margens de segurança na sua capacidade instalada, mas, ainda assim, as empresas mantêm significativas capacidades ociosas. Se não adotarem essa estratégia, poderão perder crescente e definitivamente parcela de mercado para os concorrentes.
65
Os únicos setores cuja maturação é de longo prazo e há pouca
possibilidade de importações para suprir falta de oferta interna são os setores
de infra-estrutura. Esse é um dos motivos que fazem da oferta de infra-
estrutura uma responsabilidade do governo, ainda que formalmente suprida
pelo setor privado. Só o governo pode garantir que a economia não sofra
pressões inflacionárias por falta de capacidade em infra-estrutura. De fato, os
governos, em geral, fazem questão de manter margens de capacidade ociosa
muito grandes no setor de infra-estrutura, além de possuírem um programa de
investimento permanente baseado em planejamento de longo prazo32
.
De fato, é difícil citar casos onde tenha ocorrido altas inflações por excesso de
demanda. Como mera ilustração exibimos a tabela abaixo que mostra os países que
mais cresceram entre 1974 e 94. Poderíamos chamá-los de “milagres econômicos” do
período.
Países que obtiveram taxas de crescimento acima de 7% durante pelo menos 5 anos no período entre 74 e 94 (com exceção da África)
Taxa de inflação no último ano antes do ciclo de crescimento acelerado
Taxa de inflação no último ano do ciclo de crescimento acelerado
Coréia (1983-88) 9,5% 8%
Tailândia (1987-94) 1,8% 5,3%
Paraguai (1977-81) 4,6% 14%
China (1982- 88) 2,5% 20,7%
China (1991-2005)* 16,3% 2,3% anualizado no primeiro semestre de 2005 33
Países que tiveram taxas de crescimento médio acima de 9% por 5 anos no período entre 74 e 94 (com exceção da África)
Taxa de inflação no último ano antes do ciclo de crescimento acelerado
Taxa de inflação no último ano do ciclo de crescimento acelerado
Síria (1974-78) 18,5% 4,8%
Coréia (1974-79) 24,3% 18,3%
Fonte: Secretaria de assuntos internacionais do Ministério do Planejamento, Dezembro de 1996. Dados obtidos no Banco mundial. * Os dados sobre a China vão até 2005
A despeito de esse ser o período de mais altas inflações no mundo desde o
pós-guerra e do período se iniciar no primeiro choque do petróleo e pertencer a ele o
segundo choque do petróleo e a crise da dívida do terceiro mundo, os dados não
mostram relação entre altas taxas de crescimento da demanda e altas inflações. Os
dados mostram que a maioria (5 em 7) desses países com altas taxas de crescimento
da demanda obtiveram taxas de inflação cadentes ou mantidas baixas.
32 Buscaremos mostrar no último capítulo que o governo não pode alegar falta de dinheiro para honrar essa responsabilidade de garantir que a economia não sofra pressões inflacionárias por falta de capacidade da infra-estrutura, pois os gastos básicos em infra-estrutura econômica, assim como os gastos em política industrial, em geral, aumentam a capacidade de controlar a inflação e, portanto, tendem a aumentar a própria capacidade de gasto público. 33 http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u98390.shtml
66
As exceções são a China entre 1982 e 1988 e o Paraguai entre 1977 e 1981. A
priori, são exceções com particularidades que não ferem a regra geral. É preciso saber
se o aumento da taxa de inflação nesses dois países foi causado por desvalorizações
cambiais ou por excesso de demanda. O caso chinês é difícil de avaliar, pois nesse
período passa de uma economia quase completamente socialista para uma economia
com bolsões localizados de capitalismo. O Paraguai, no final de seu período de alto
crescimento em 1981, entra como todo o resto da América Latina na crise da dívida.
Em toda América Latina, a crise da dívida foi acompanhada de altas taxas de inflação
associadas a desvalorização34
cambial e não a excesso de demanda. Outro bom
exemplo é o Brasil no período do milagre, a inflação no último ano do milagre (1973) é
menor do que a do ano anterior ao milagre (1967). Os EUA durante a segunda
Guerra35
o Japão e a Europa Ocidental no pós-guerra também são bons exemplos.
Algum economista ortodoxo poderia alegar que esses dados não evidenciam
que a inflação de demanda é uma situação rara. Ele diria que, nesses casos, a oferta
cresceu na mesma velocidade que a demanda. Mas é exatamente isso que queremos
dizer: se a oferta foi capaz de crescer na velocidade requerida até nessas situações
limites, ela pode crescer no ritmo necessário com mais facilidade, se a taxa de
crescimento da demanda não for tão elevada.
Conflito distributivo
A princípio, segundo os argumentos teóricos citados mais acima, não
seria razoável imaginar que os processos inflacionários usuais sejam
decorrência simplesmente de excesso de demanda.
Seria mais razoável supor que os processos inflacionários observados
sejam decorrentes de aumentos ou tentativas de reajuste de rendimentos
nominais com o objetivo de aumentar ou garantir a manutenção da participação
de alguma parte da sociedade na renda, que conduziriam à luta de outros
34 Neste trabalho, quando nos referirmos a desvalorização ou desvalorização cambial estamos querendo dizer: desvalorização da moeda doméstica. 35 Apesar de boa parte da mão-de-obra estar no exército ou trabalhando para o serviço de guerra e haver dificuldade de importar da maior parte do mundo. Nesse caso, pode ser alegado que houve controle de preços pelo governo e por isso não houve inflação significativa. De qualquer forma, não houve significativo “excesso de demanda”. Apesar do alto crescimento da demanda e das restrições ao aumento de preços, a oferta cresceu a taxas muito elevadas.
67
grupos por manter sua participação e, por conseqüência, uma aceleração ou
inércia do processo inflacionário.
Lerner dá maior destaque ao que ele chama de inflação de vendedores
ou inflação administrada36. Segundo Scitovsky (1984: 1562), a primeira menção
à esse tipo de inflação na teoria econômica foi no Tratado da Moeda de Keynes
(1930), mas Lerner teria sido o primeiro a notar a característica crucial desse
tipo de inflação: o excesso de reivindicação por apropriação de parcela da
renda, ao invés de excesso de demanda por produtos. Segundo Lerner
(Scitovsky, 1984: 1562-3), esse tipo de inflação ocorreria quando “os donos de
fatores de produção reclamam, como suas respectivas partes na renda,
pagamentos que somados representam mais do que 100% do valor do
produto”.
Scitovsky (1984: 1563) ressalta que a inflação de vendedores é
compatível com uma ampla gama de níveis de desemprego e de capacidade
ociosa. Segundo Lerner (1972, apud Scitovsky, 1984: 1563) esse tipo de
inflação só é possível na presença de imperfeições de mercado e poder de
monopólio. O excesso de reivindicação por apropriação de parcelas da renda
surgem das decisões conscientes dos “administradores” responsáveis pela
definição de preços e salários. Tais “administradores” teriam poder para decidir
os preços ou salários unilateralmente ou por negociação com outros
“administradores”.
Para Lerner (1972, apud Scitovsky, 1984: 1564) há ainda a inflação
expectacional, que ocorre quando uma inflação decorrente de outras causas
persiste a ponto de levar os agentes a esperar ou temer sua continuidade.
Nessa situação, os preços e salários seriam reajustados por seus
“administradores” com o objetivo de impedir a perda de participação no
produto.
Esse tipo de inflação se distinguiria dos outros tipos de inflação
administrada por não ser “agressiva”. Na forma mais agressiva, as pretensões
sobre as parcelas da renda dos diversos grupos sociais superam a renda total
36 “Administered inflation”. Uma tradução alternativa poderia ser inflação administrativa. O conceito “administrada” não visa conotar um gerenciamento da inflação, mas um gerenciamento dos preços por parte dos administradores de preços e salários das empresas e sindicatos.
68
gerada, enquanto a inflação expectacional é defensiva, pois os grupos sociais
se sentiriam satisfeitos com a parcela da renda que se apropriam.
Esses dois últimos tipos de inflação, que são os realmente destacados
por Lerner, poderiam ser reunidos pelo conceito de inflação por conflito
distributivo. O primeiro caso seria, como sugere Lerner, decorrente de uma
posição ofensiva de um grupo social que deseja ou precisa aumentar sua
parcela na renda, o que leva outros grupos a adotar uma posição defensiva, o
que pode gerar espiral inflacionária crescente. No segundo caso, os diversos
grupos sociais assumem uma posição defensiva frente à inflação esperada e
buscam reajustar seus preços para que não percam sua participação na renda.
Assim, podemos dizer que o chamado conflito distributivo seria para
Lerner a causa da inércia inflacionária e dos comportamentos mais comumente
observados de crescimento da inflação.
Segundo Serrano (2002: 3), aumentos, precipitados por razões diversas, nos
chamados preços de oferta37
podem gerar “(...) inflação de custos por conta de
uma incompatibilidade distributiva entre os seus diversos componentes
(salários, lucros etc.) e não por escassez física de produtos”.
O conflito distributivo é um processo de luta pela manutenção ou
ampliação da participação na renda dos grupos sociais com poder para
negociar ou impor condições mínimas de participação na renda. Isso faz com
que o conflito distributivo possa resultar em inflação aceleracionista ou em
alguma inércia inflacionária.
O processo depende principalmente da tentativa dos trabalhadores em
impedir que aumentos dos preços reduzam seu poder de compra. Os
sindicatos reivindicariam a manutenção do poder de compra dos salários.
Em uma economia fechada, o valor dos produtos vendidos pode ser
dividido simplificadamente em renda do capital (lato sensu) e do trabalho. Os
principais componentes das rendas de capital são os lucros e os juros.
Muitas empresas e mesmo alguns setores conseguem impor margens
de lucro que embutem significativo poder de monopólio. Entretanto, as
margens de praticamente nenhuma empresa é independente das taxas de
juros. Essas taxas são fundamentais para o cálculo do custo de oportunidade
37 “Os preços de oferta são determinados pelas variáveis distributivas e pela tecnologia” (Serrano, 2002: 3). Os preços de oferta são os custos de produção mais uma margem de lucro.
69
dos investimentos. Dessa forma, são fundamentais para o cálculo da margem
de lucro máxima que inibe a entrada de concorrentes, imitadores e produtos
substitutos; assim como, da disposição da empresa em sacrificar margem de
lucro no presente para desenvolver mercados, tecnologias, posições de
mercado ou ganhos de escala estáticos ou dinâmicos.
Enquanto a taxa de lucro esperada dos investimentos for superior à
remuneração38 do excedente de caixa ou do custo final de financiamento,
haverá desejo de investir e, portanto, pressão sobre a margem de lucro
possível das firmas já instaladas, mesmo em setores com poder de monopólio,
no sentido dado por Kalecki (1954).
Dessa forma, a participação dos lucros/juros na renda depende
significativamente do nível de taxa de juros. Assim, dados os salários nominais,
a política de juros afeta o nível de preços e, portanto, a taxa de inflação, mas
de maneira inversa à atribuída pelo pensamento ortodoxo. Em situação de
desemprego, dada a taxa de câmbio, reduzir a taxa de juros, reduz a taxa de
inflação. Aumentar a taxa de juros tem o efeito inverso.
Assim, em uma economia fechada, dada a taxa de juros, a margem de
lucro tenderia a permanecer estável. Exclusivamente nesse caso, a taxa de
inflação seria determinada pela taxa de inflação dos salários. A taxa de inflação
dos salários depende de vários fatores, como o reajuste de preços passados,
medo de inflação futura e pode de barganha de diversas categorias de
trabalhadores. Nessa situação, como defende Lerner (1951), se uma categoria
deseja ganhos reais e as outras não admitem perdas, haverá aceleração do
processo inflacionário.
Entretanto, mesmo em uma economia fechada, as margens de lucro não
são rígidas. Como vimos, o Banco Central, via política monetária, pode afetar
as margens de lucro. Dessa forma, ao reduzir as taxas de juros, pode permitir
que o desejo de ganhos reais de determinado conjunto de trabalhadores não
signifique necessariamente inflação. O Banco Central pode manter ou reduzir
os juros nominais estáveis, permitindo que o aumento dos salários leve à
redução dos juros reais, reduzindo o impacto do aumento dos salários sobre a
inflação, via redução das margens de lucro.
38 Ponderada pelo risco.
70
Mas se o Banco Central impede a queda dos juros reais, a luta por
manutenção da participação na renda significará inflação inercial ou mesmo,
em circunstâncias especiais, em aceleração da inflação.
Podemos dizer que uma das falhas na teoria da inflação de Lerner é
desconsiderar a possibilidade de redução das margens de lucro em
decorrência da queda dos juros reais. Para o autor, essas margens são
estáveis e não considera a dependência das mesmas em relação à taxa de
juros.
Lerner sugere que um dos momentos em que poderia ocorrer uma
tentativa de aumento da participação na renda é quando o nível de atividade
atinge o que ele chama de nível de baixo de pleno emprego ou outros autores
chamam de NAIRU39. Nessa situação, algumas categorias em algumas regiões
teriam seu poder de barganha elevado e obteriam aumentos salariais, que uma
vez repassados aos custos poderiam iniciar um processo inflacionário. As
primeiras categorias terão aumentos salariais que significam ganhos reais de
poder de compra. Porém, à medida que os outros sindicados exigirem
aumentos equivalentes, o aumento dos custos na economia será generalizado.
As empresas repassarão esse aumento generalizado de custos nos seus
preços e os ganhos dos trabalhadores serão em grande parte anulados.
Mas em uma economia aberta o aumento do poder de barganha dos
trabalhadores não é a única forma de ativação do conflito distributivo. Existem
outras formas, como o aumento dos juros, mas a mais importante delas é o
câmbio.
Aspectos políticos do (baixo) pleno emprego
"Sugerir à City de Londres [ou à Av. Paulista] uma ação social para o bem público [e.g., subsídio ao consumo popular] é como discutir a Origem das Espécies com um bispo, sessenta anos atrás. A primeira reação não é intelectual, mas moral. É uma
39 Lerner e Colander (1980 e 1982) propõem um plano para eliminar a inflação de conflito distributivo (administrativa) sem a necessidade de eliminar o conflito distributivo em si. É um plano muito interessante que vê o aumento geral de preços como uma externalidade negativa dos aumentos individuais. Ele propõe que o governo impute uma penalidade sobre os agentes que aumentarem seus preços. Para os agentes que reduzirem seus preços o governo concede títulos que podem ser vendidos para os agentes que aumentaram seus preços usarem como pagamentos de suas penalidades ao governo. A intenção é que as mudanças de preços relativos não causem impacto no índice geral de preços.
71
ortodoxia que está em questão e, quanto mais persuasivo os argumentos, mais grave será a ofensa." Jonh Maynard Keynes
“Entre os opositores da (...) [da idéia de que o pleno emprego pode ser alcançado pelo gasto público] estão proeminentes economistas proximamente conectados com os bancos e a grande indústria. Isso sugere que há uma motivação política de fundo na oposição às propostas de pleno emprego, ainda que os argumentos utilizados sejam econômicos. Isso não quer dizer que aquelas pessoas que defendem tais argumentos não acreditam em sua ciência econômica, ainda que ela seja tão pobre. Mas ignorância obstinada é usualmente uma manifestação de motivações políticas ocultos. Há, entretanto, indicações ainda mais diretas que uma questão política de primeira grandeza esteja em jogo aí.” (Kalecki, 1942: 349)
Em seu livro de 1951 (Economics of Employment), Lerner sugere que o
ponto de baixo pleno emprego corresponderia a um volume de desemprego de
aproximadamente 6 milhões de trabalhadores. Pelos cálculos de Scitovsky
(1984: 1562), esse montante corresponderia à época a uma taxa de 10% de
desemprego.
Confiando na precisão de Lerner e Scitovsky, a princípio, poderíamos
dizer que Lerner (1951) tenha cometido um grande erro na sua estimação do
nível de baixo pleno emprego.
Esse erro pode ser conseqüência da desconsideração por parte do autor
de importantes aspectos do principal atributo do conceito de baixo pleno
emprego: o “excessivo” poder de barganha dos trabalhadores.
Podemos dizer que a posição de Lerner seja, de certa forma, ingênua ao
desconsiderar os aspectos políticos sobre essa questão. Nesse sentido,
Kalecki em seu grande clássico de 1942, ‘Aspectos políticos do pleno
emprego’, criando uma grande luz sobre esse problema.
Para Lerner, o “excessivo” poder de barganha dos trabalhadores seria
causado pela escassez de mão-de-obra de determinadas categorias em
determinadas regiões. Kalecki (1942) mostra que essa explicação não mostra
toda a história.
Kalecki sugere que o poder de barganha dos trabalhadores não depende
apenas de circunstâncias estritamente econômicas, como excedentes de mão-
de-obra por localidade. Ele mostra que há questões políticas fundamentais
determinando as condições de exercício desse poder de barganha.
72
O grande economista polonês observou a dinâmica política dos anos 30
e constatou que os países facistas alcançavam com políticas fiscais
expansionistas níveis muito altos de emprego sem que os grandes capitalistas
se sentissem ameaçados pelo crescimento do poder de barganha dos
trabalhadores. Por outro lado, nos países democráticos, as tímidas tentativas
de expansão fiscal eram duramente combatidas pelos grandes empresários.
Segundo Kalecki (1942), esses temiam que se o governo descobrisse
com gear pleno emprego quando desejasse, o poder de barganha dos
trabalhadores se tornaria maior do que o aceitável. O surpreendente é que as
políticas fiscais expansionistas geram aumento nos lucros. Mas para Kalecki,
os grandes capitalistas prefeririam menos lucro, se mais lucro viesse
acompanhado de menor dependência do governo em relação a eles. Se o
governo tem uma política fiscal flexível e capaz de manter o pleno emprego
independentemente do nível de investimento privado, suas promessas de gerar
emprego ficam dependentes da disposição a investir dos empresários, e,
assim, terá sempre que agradar os grandes empresários e evitar quaisquer
medidas que possam deixar assustados ou contrariá-los.
Além do temor quanto à possibilidade do nível de atividade se tornar
independente de seu estado de confiança, segundo Kalecki (1942: 351), a
reprovação dos líderes do mundo dos negócios a uma política de gasto público
torna-se ainda mais aguda quando os objetivos desse gastos forem o
investimento público ou o subsídio ao consumo popular. No primeiro caso, o
motivo é o temor do investimento público concorrer com o investimento privado.
No segundo caso, cuja oposição é ainda maior, o temor dos capitalistas se
deve a uma questão moral. “Os fundamentos da ética capitalista requerem que
você ganhará o pão com o suor do seu rosto – a menos que tenha meios
privados [para conseguir seu pão sem suor]” (Kalecki, 1942: 351). Mas talvez a
maior restrição dos capitalistas a uma política de pleno emprego seja o medo
de que a demissão de empregados deixe “de exercer sua função de medida
disciplinar. A posição social do patrão ficaria minada. (...) As greves por
aumento salarial e melhorias nas condições de trabalho criariam tensão
política. (...) Os líderes empresariais apreciam mais a disciplina nas fábricas e a
estabilidade política do que os lucros” (Kalecki, 1992: 351).
73
Kalecki (1942) conclui que a estrutura política dos países capitalistas
democráticos precisaria passar por uma “reforma crucial” para se tornar
adequada à manutenção de políticas de pleno emprego. No entanto, Kalecki
admite que não haveria, após a Segunda Guerra, maiores restrições políticas à
usar política fiscal para manter a economia livre da depressão e de recessões
mais sérias.
Nesse ponto, podemos perceber algumas conclusões comuns entre
Kalecki (1942) e Lerner (1951). O nível de emprego estimado por Lerner (1951)
para o nível de baixo pleno emprego é similar a um nível que seja apenas o
suficiente para manter a economia livre de recessões mais sérias.
Estranhamente, é nesse ponto de concordância que ambos se
equivocam com relação ao período do pós-guerra. Nesse período, a economia
dos países desenvolvidos em geral se manteve muito próxima a uma pleno
emprego de fato, apesar das baixas taxas de inflação.
“Esta performance foi resultado de um nível bastante moderado de
conflito distributivo nos países capitalistas centrais no pós-guerra praticamente
até o fim dos anos 60, contrariando o que Kalecki (1942) havia previsto”
(Serrano, 2004:185).
Serrano (2004: 185) atribui esse resultado, para o caso americano, à
“forte, rápida e eficaz repressão aos sindicatos e organizações de esquerda a
partir de 1947”. Porém, em troca “os sindicatos obtinham alto nível de emprego
e salários reais crescentes” (Serrano, 2004: 185).
Em outros países industrializados em que a esquerda e o movimento
operário eram mais fortes, apesar do pleno emprego, a inflação foi em parte
controlada pelo câmbio fixo, mas houveram também instrumentos de
manutenção da disciplina pelos trabalhadores. Um desses instrumentos foi o
próprio câmbio fixo. Os aumentos salariais nos setores que dependiam de
mercado externo ou concorriam com importação eram necessariamente
limitados e dependiam do crescimento da produtividade. A resistência dos
empresários desses setores a reajustar salários é mais alto, pois possuem
maior dificuldade de repassar os preços. Além disso,se os salários subissem
demais, o país pode sofrer perda de competitividade, restrição externa e
desemprego. Mas um importante fator para a manutenção do baixo conflito
distributivo pode ter sido o espírito de consenso do período. Por parte dos
74
trabalhadores o desejo de reconstrução e o grande progresso material pode ter
contribuído para aumentar a disposição para o consenso. No caso dos
capitalistas, além desses fatores, o perigo do comunismo pode ter ajudado.
Ademais, “em alguns países específicos onde talvez a esquerda fosse ‘forte
demais’, o compromisso com a moderação das reivindicações se devia
também ao justificado temor de que uma radicalização levasse a golpes
militares doméstico patrocinados pelos EUA, em nome da luta do mundo livre
contra a ameaça comunista” (Serrano, 2004: 186).
Entretanto, não podemos esquecer que as baixas e estáveis taxa de
juros o estável preço do petróleo, a elevada taxa de progresso técnico
contribuíram para esses resultados.
“Quando Kalecki retoma a discussão dos aspectos políticos do pleno emprego em um artigo de 1971 (Kalecki & Kowalik, 1971), o sucesso deste arranjo do pós-guerra o faz coerentemente argumentar que, de fato, houve uma ‘reforma crucial’ nos países capitalistas. Esta performance econômica e social dos países capitalistas regulados pelo Estado no contexto geopolítico da Guerra Fria, segundo Kalecki, afastou simultaneamente a possibilidade de colapso econômico, de guerras entre os principais países capitalistas e também da revolução socialista nos países avançados, onde a prosperidade dos trabalhadores era crescente. Segundo o autor, os países capitalistas haviam ‘aprendido o truque’ de evitar as crises e a desordem do capitalismo desregulado através da intervenção estatal. Ao final deste artigo de Kalecki, no entanto, chama a atenção para o fato de que a relativa estabilidade do capitalismo reformado dependia de uma alto grau de ‘conformismo social’ e que isto talvez estivesse começando a mudar a partir dos movimentos sociais contestatórios que surgiram no final dos anos 60 – ainda que na visão do autor estes não parecessem chegar a ameaçar a existência das relações de propriedade capitalista” (Serrano, 2004: 190).
A importância dos aspectos políticos para a determinação do ponto de
baixo pleno emprego se tornam mais evidentes quando percebemos a
velocidade em que as economias desenvolvidas passaram entre o final dos
anos 60 para o início dos anos 70 de uma situação de baixa contestação
social, baixo conflito distributivo, inflação reduzida e desemprego muito
pequeno, para uma situação em que todas essas variáveis se tornam críticas.
“Nos últimos anos da década de 60 ocorreu uma súbita redução do grau de ‘conformismo social’ nos países industrializados com a chegada no mercado de trabalho de uma nova geração de trabalhadores que havia crescido em um ambiente de excepcional segurança política e econômica. O grau de militância sindical aumentou drasticamente, simultaneamente aos movimentos estudantis e de grupos em luta por direitos civis. No caso dos EUA, o grande ímpeto a esta radicalização política e a contestação da ordem social vigente foi dado pelos conflitos raciais e pela oposição à guerra do Vietnã. A principal conseqüência econômica direta deste novo ambiente de contestação foi um grande acirramento do conflito distributivo em todos os países centrais.” (Serrano, 2004: 190-1).
75
Poderíamos dizer que nos anos 70 nos EUA o nível de baixo
pleno emprego passou a corresponder a um nível de desemprego mais
elevado. Já a partir dos anos 80 e principalmente nos anos 90, graças à forte
repressão aos sindicatos o nível de baixo pleno emprego se deu com um nível
de desemprego menor.
Dessa forma, concluímos que o nível de baixo pleno emprego é
fortemente dependente de condições políticas, institucionais e se altera
historicamente. Além disso, o nível de baixo pleno emprego está distante de
ser a única variável importante a determinar a taxa de inflação. Outra variável
que tem uma relação muito importante com o nível de preços é o câmbio. Na
próxima seção desenvolveremos melhor essa relação.
2.2. Balanço de pagamentos e as Finanças funcionais segundo Lerner
2.2.1. Restrição externa
“Na prática a principal restrição objetiva a políticas macroeconômicas que levem a uma expansão ordenada da demanda final se encontra, de forma especialmente drástica no caso de países em desenvolvimento, na restrição de balança de pagamentos, pois as divisas são, em última instância, o "insumo" que é realmente escasso no processo de desenvolvimento.” (Serrano e Medeiros, 2004: 10)
A restrição externa é um conceito fundamental para se compreender a
natureza da política econômica em uma economia aberta. Como os países não
são auto-suficientes e precisam, em geral, pagar importações e obrigações
com moeda internacional que não emitem, é perfeitamente possível que não
disponham de divisas no volume necessário.
Se houver risco de “escassez de divisas”, haverá limitações à política
econômica, pois a necessidade de gerar divisas condicionará as outras metas
do governo.
A característica mais relevante do comércio entre países é que esse só
pode ser realizado com moeda aceita como meio de pagamento internacional.
Na grande maioria dos casos, os Estados não são capazes de emitir a moeda
aceita como meio de pagamento internacional. Dessa forma, os Estados
76
precisam adquiri-la interna ou externamente de quem aceita trocá-la por sua
moeda nacional40. Quem aceita essa operação são basicamente exportadores
residentes no país, que são obrigados a pagar impostos, despesas e dívidas
em moeda nacional e, portanto, precisam vender sua moeda internacional em
troca de moeda nacional. Em geral, esses exportadores são a fonte primária de
moeda internacional não apenas para o Estado, mas também para outros
residentes que necessitam importar ou pagar compromissos com o exterior.
Os Estados Nacionais ao fazerem uso de sua política econômica podem,
a princípio, expandir a economia e assim empregar crescentemente os
trabalhadores ociosos até alcançar uma situação de pleno emprego ou quase.
Para isso bastaria-lhe apenas a autoridade “natural” sobre a utilização da
política de juros, de gastos e de tributação.
Porém, a economia não pode funcionar adequadamente sem um
contínuo abastecimento de insumos importados, sendo que boa parte dessas
importações não pode ser substituída por produção interna ou pode ser
substituída apenas sob condições de custo ou qualidade muito desfavoráveis.
A princípio, o país poderia se endividar no exterior para cobrir um
volume de obrigações externas e importações superior a suas receitas em
moeda estrangeira. No entanto, há limites ao endividamento externo, nesse
ponto, o governo será obrigado a reduzir sua demanda liquida de divisas e,
portanto, sua capacidade de crescimento. Nesse ponto, seria evidente a
restrição externa à expansão do nível de emprego.
Para Lerner o nível de baixo pleno emprego é uma restrição ao
crescimento econômico. Se for possível atingi-lo sem problemas de
financiamento do balanço de pagamentos, não seria razoável dizer que a
‘restrição externa’ seja um limite relevante, pois a verdadeira restrição seria,
seguindo Lerner, as limitações localizadas na oferta de mão-de-obra, que
poderiam causar “excessivo” poder de barganha para os trabalhadores. Assim,
nesta tese, vamos utilizar o conceito de restrição externa para as situações em
que a limitação à expansão do nível de emprego no curto prazo decorre de
problemas no balanço de pagamentos. Faremos isso para diferenciar das
outras possíveis causas de restrição ao crescimento do emprego.
40 Ou tomar empréstimo no exterior. Mas o pagamento de empréstimos supõe capacidade de trocar moeda nacional por moeda internacional no futuro.
77
2.2.2. A visão otimista de Lerner
A restrição externa é uma questão fundamental. Porém, até agora nem a
restrição externa e nem questões típicas de economia aberta receberam maior
tratamento em nossa discussão sobre o trabalho de Lerner. De fato, Lerner não
mostra grande preocupação com essa questão quando escreve sobre finanças
funcionais. No entanto, poderíamos dizer que Lerner está ciente dos problemas
em potencial da restrição externa.
Como vimos no capítulo anterior, Lerner diz que a analogia do
endividamento individual não faz sentido para entender a dívida pública, mas
tem relação com a dívida externa. O endividamento público não tem a função
de financiar o governo, pois o dinheiro arrecadado não é necessário para
viabilizar seus gastos. Mas, como a dívida individual, a dívida externa é sim
uma forma de financiamento externo do país. A possibilidade de restrição
externa se evidencia nesse ponto.
Lerner reconhece o efeito direto que as políticas deliberadas de
obtenção de superávit comercial têm sobre a redução nas importações e,
portanto, no emprego industrial e agrícola nos seus parceiros comerciais.
Assim, reconhece que o déficit comercial imposto pelas políticas protecionistas
ou recessivas dos parceiros comerciais pode causar desemprego. Lerner
(1951), no entanto, pensa que os efeitos recessivos desse déficit comercial
podem ser plenamente eliminados pelas finanças funcionais.
Nesse caso, as finanças funcionais terão como conseqüência imediata
um aumento ainda maior do déficit comercial decorrente da maior necessidade
de gastos públicos e privados feitos por residentes. Supor, por princípio, uma
sustentabilidade desse resultado seria negar os princípios da restrição externa.
Seria negar a analogia que Lerner ressalta entre a dívida externa e a dívida
privada. Afirmar a conveniência dessa analogia significa que os princípios de
solvência e prudência financeira requeridos dos devedores privados são
aplicáveis, com as devidas adaptações, ao devedor externo. Lerner, portanto,
como veremos, tem ciência de que são importantes as preocupações com o
endividamento EXTERNO excessivo.
78
A princípio, Lerner (1951: 332-4) não parece ver como um grande
problema o financiamento do déficit comercial. Para ele, os países que estão
em recessão acabam tendo pouca demanda por importações e saldo comercial
positivo. O aumento das exportações é uma forma de reduzir o desemprego
causado pela queda nas vendas internas. Dessa forma, os governos e os
exportadores de países com alto desemprego ofereceriam crédito farto aos
importadores.
Mas o crédito externo tem limites. Lerner (idem: 334) sustenta que os
exportadores dos países que acumulam saldos comerciais podem reduzir seu
interesse em manter o crescimento do volume de financiamento
indefinidamente. Além disso, os concorrentes nacionais dos bens importados
podem alegar concorrência desleal dos exportadores de outros países pelo o
uso abusivo de condições de financiamento facilitadas. Porém, a questão mais
importante é o risco de insolvência externa e crise cambial do país. Esse é um
problema temido tanto por credores quanto pelos governos dos países
devedores, pois pode fazer com que a demanda por importações e serviço da
dívida externa sejam menores do que a oferta de crédito externo.
Assim, “se os países deprimidos não financiam nossas importações
líquidas, haverá escassez de divisas” (idem: 334). A possibilidade e escassez
de divisas é o princípio básico da restrição externa.
Lerner (idem: 334) acha que essa escassez de divisas pode ser
eliminada pela desvalorização cambial e, assim, seriam mantidas as metas das
finanças funcionais. A falta de divisas levará à desvalorização da moeda do
país e consequentemente ao crescimento da competitividade de suas
exportações e uma perda na competitividade dos importados. Por
conseqüência, o saldo comercial aumentaria.
Lerner é otimista em relação à possibilidade desse processo levar à
eliminação do déficit em conta corrente e no balanço de pagamentos. “O
movimento da taxa de câmbio, portanto, continuará até que o déficit comercial
desapareça. Nossas importações cairão e nossas exportações aumentarão até
que elas se igualem. (...) [Assim, adotando as Finanças Funcionais] não há
necessidade da nossa economia como um todo sofrer qualquer depressão que
pode estar ocorrendo no exterior” (idem: 334-5).
79
Essa conclusão de Lerner é muito polêmica. Ela implica que não haveria
de fato uma decisiva restrição externa, ou pelo menos, não haveria restrição
que impedisse uma economia de atingir o pleno emprego.
Mas se, por um lado, essa proposição é polêmica, por outro, ela é
fundamental para viabilizar a generalidade da teoria das finanças funcionais; ou
seja, sua a validade inclusive para os países pequenos ou subdesenvolvidos.
Lerner (1951: 335-9) reconhece que sem ela a teoria das finanças funcionais
não poderia se limitar apenas às políticas fiscais e monetárias para se manter
capaz de atingir suas duas metas essenciais. Para o autor (1951: 335), “as
alternativas à depreciação [da moeda] são a deflação, as restrições às
importações e a depressão”. A alternativa do endividamento externo
continuamente crescente é considerada não sustentável.
Como a maioria dos keynesianos, Lerner (1951: 336-8) considera
“impossível” um ajuste de competitividade externa por via da deflação sem uma
conseqüente depressão. A depressão pode realmente ser eficaz para manter o
endividamento externo e o câmbio estáveis.
A possível tendência do déficit comercial levar à depressão, no entanto,
abortaria a conclusão fundamental da teoria das finanças funcionais: a
conclusão de que o pleno emprego pode ser alcançado apenas com políticas
fiscais e monetárias.
A possível necessidade de restrições às importações implicaria na
utilização de outras políticas, que não tipicamente fiscais ou monetárias, para o
alcance do pleno emprego e, de certa forma, mostraria que as finanças
funcionais é uma teoria incompleta, pelo menos para a aplicação em
determinados países.
É, portanto, fundamental para a defesa do formato original da teoria que
Lerner (334-6) afirme que as restrições às importações são desnecessárias.
Para o autor a desvalorização cambial sempre resolveria as deficiências do
balanço de pagamentos.
Além de desnecessária, a restrição às importações também seria
desaconselhável, pois seria “danosa à cooperação internacional (...) [e ao]
melhor uso da divisão internacional do trabalho” (idem: 338).
A principal questão dessa tese será mostrar que, na maior parte dos
casos, a conclusão do Lerner não é válida. Mais especificamente, nos países
80
que sofrem as conseqüências da restrição externa, a teoria das finanças
funcionais, tal como formulada originalmente, não é satisfatória. Isso decorre
da impossibilidade, na maioria das situações, (i) de alcance do pleno emprego
a curto ou médio prazo e (ii) do alcance do pleno emprego apenas com a
utilização de políticas fiscais e monetárias.
Essas impossibilidades se devem principalmente à grande dificuldade
em alterar significativamente o saldo em conta corrente e saldo de capitais sem
recorrer à recessão, a políticas comerciais e industriais ativas ou sem grandes
desvalorizações cambiais, principalmente em países menores ou menos
desenvolvidos. As desvalorizações cambiais maiores, em geral, levam a
inflações superiores às consideradas aceitáveis pelos governos e ou a
indexação de salários que impedem que o câmbio real se desvalorize o
suficiente para fazer a desejada reversão do saldo em conta corrente. Isso
significa que os objetivos das finanças funcionais podem não ser ambos
satisfeitos com a utilização apenas de políticas de demanda.
Assim, pretendemos adaptar, no capítulo 4, a teoria das finanças
funcionais para as situações onde não é possível atingir o pleno emprego com
rapidez e com a utilização de políticas de gerenciamento da demanda.
Mas antes vamos tentar explicar porque as desvalorizações podem não
ser capazes de permitir que a economia atinja o pleno emprego. A explicação
passa pela relação entre câmbio e inflação.
2.2.3. Câmbio e Inflação
“A inflação de custos; isto é, causada por aumentos autônomos nos preços de oferta [custos de produção + margens de lucro]; pode ocorrer mesmo em situações onde não haja excesso de demanda agregada” (Serrano, 2002: 3).
Como vimos acima, segundo Lerner e Wray, o processo inflacionário por
via do conflito distributivo poderia ser iniciado pela ultrapassagem do nível de
baixo pleno emprego ou de NAIRU. Todavia, não é preciso atingir tal nível de
emprego para se ativar o conflito distributivo. Aumentos exógenos nos custos
ou nas margens de lucro podem ter efeito parecido, mesmos em situações
recessivas ou de alto desemprego.
81
Dadas as taxas de juros reais, os empresários em geral colocam
margens relativamente fixas sobre os custos como forma de proteção das
taxas de lucro e de coordenação do aumento de preços. Assim, aumentos
generalizados nos custos das matérias-primas, de moradia ou nas tarifas
públicas, por exemplo, podem levar a aumentos dos preços e
consequentemente aumentos das reivindicações salariais. Sindicatos fortes em
geral são capazes de garantir seu poder de compra. Uma vez atendidas essas
reivindicações, os preços subiriam e novas demandas por aumentos de
salários seriam levantadas.
Para Lerner, esse processo pode acontecer mesmo sob desemprego.
Segundo Lerner (1951: 200) “a proposição de que aumentos [generalizados] de
salários mantêm inalterados o salário real e a participação dos salários na
renda nacional é igualmente verdadeira para todos os níveis de emprego. Isto é
verdade tanto para uma situação de depressão, quanto para uma situação de
pleno emprego e por exatamente as mesmas razões”.
Essa constatação de Lerner decorre da perspectiva que o autor tem com
relação às margens de lucro. Para ele, as margens de lucro são rígidas em
termos reais. No item anterior, vimos que as margens de lucro são
dependentes da taxa de juros real, portanto, não são rígidas com relação ao
aumento de custos, quando o Banco Central permite que aumentos dos preços
impliquem em queda da taxa de juros reais. Essa atitude pode fazer com que
as margens de lucro absorvam boa parte do aumento de salários, diminuindo a
pressão inflacionária.
Há ainda outro fator importante que impede que as margens de lucro
sejam rígidas. Esse fator é a taxa de câmbio. Na seção seguinte, tentaremos
desenvolver essa relação.
2.2.3.1. Inflação em economias abertas
A doutrina dominante diz que as altas inflações são conseqüência de
elevados déficit públicos, entretanto, contrariando as conclusões dessa
doutrina, é muito comum observar taxas de inflação mais elevadas em países
com déficits públicos reduzidos e o contrário, taxas de inflação baixas, em
países com déficits públicos altos.
82
A partir de Lerner (1951; 1972) e Serrano (2002), defendemos que os
processos contínuos, inerciais de inflação são mantidos por conflito distributivo
que toma a forma de inflação de custos. Esses processos são precipitados
pela tentativa de algum segmento da sociedade em aumentar sua participação
na renda ou algum tipo mais específico de aumento de custos, e são mantidos
pela tentativa de outros segmentos em manter sua participação a partir da
indexação de seus rendimentos à inflação passada ou esperada.
Vimos também que Lerner (1951) e Wray (1998) sugerem que esses
processos podem ser precipitados por aumento do poder de barganha dos
trabalhadores decorrentes de escassez generalizada ou localizada de mão-de-
obra. Esses autores, de certa forma, são parecidos com a tradição da teoria
econômica mais convencional ao relacionar inflação com o aumento de salários
decorrentes da redução do desemprego, como os diversos modelos da curva
de Philips e o conceito de taxa natural de desemprego.
Pretendemos mostrar, nesta seção, que, em economias abertas41,
inflações altas e contínuas não podem ser causadas simplesmente por
aumentos salariais ou escassez de trabalhadores. Certamente os aumentos
salariais podem gerar aumento dos preços, mas em uma economia aberta,
uma inflação alta só pode ser causada por uma espiral de câmbio-preços-
salários, e não uma simples espiral de preços-salários com sugere Lerner
(1951). Sob um câmbio fixo a inflação será necessariamente baixa42. E mais,
mantida a situação de câmbio fixo, ou com variação sob controle, a
ultrapassagem eventual do nível de baixo pleno emprego poderia em certas
situações deixar de ter potencial para precipitar uma inflação aceleracionista
mesmo se utilizadas as hipóteses de Lerner (1951) sobre o mercado de
trabalho43.
Falta ainda definir inflação baixa e alta. Poderíamos escolher um valor
arbitrário específico e afirmar que ele delimitaria imprecisamente esses
conceitos. Mas preferimos defini-los seguindo a metodologia funcionalista
proposta por Lerner. Seria interessante definir inflação baixa como aquela
41 Salvo talvez aquela que puxa a atividade econômica mundial. 42 Desde que a inflação internacional seja também baixa. 43 Como ilustração podemos citar algumas economias européias (alemã em particular) nos anos 60 e o Japão em seus períodos de mais alto crescimento. Esses países, por longos períodos, ultrapassaram significativamente os níveis de emprego em que normalmente se define como NAIRU.
83
considerada aceitável e alta, a inflação que fosse não aceitável. No último
caso, sacrificar-se-ia, se necessário, outros objetivos governamentais para
reduzi-la.
Os governos podem definir e muitas vezes definem realmente suas
metas de inflação de forma arbitrária e rígida. Porém, a inflação não pode ser
um mal em si. Ela precisa causar outros males para que seja considerada
prejudicial. Lerner (1951: 96-7) dá alguns exemplos de problemas criados pela
inflação. Ele considera, entre outros problemas, que a inflação pode causar
uma redução do incentivo à produção em favor da especulação com a compra
de mercadorias. Hoje os economistas ortodoxos costumam destacar o que eles
chamam de “imposto inflacionário”. Esses problemas em geral seriam
significativos apenas com taxas de inflação muito superiores às metas
normalmente definidas pelos Bancos Centrais. Por isso, deve haver outra
justificativa para metas tão baixas.
Provavelmente ela deve estar relacionada com algum medo de que
acima de níveis mínimos, os salários e ou preços se tornem cada vez mais
rigidamente indexados. Assim, a partir desse patamar em que a inflação fica
mais rigidamente indexada, qualquer choque de custos ou modificação na
participação de algum segmento na renda nacional levará a indexação geral
que impediria a acomodação do choque e a alteração da distribuição de renda.
Nesse ponto, se um segmento da sociedade conseguir aumento em seus
rendimentos, haveria um choque de custos que seria incorporado como
aumento do nível de inflação, se essa parcela insistir em aumentar sua parte
na renda. Assim, supostamente, haveria um nível de inflação em que os preços
e salários se tornariam mais rigidamente indexados. E esse poderia ser o nível
que divide o conceito de inflação aceitável ou baixa do conceito de inflação
indesejável ou alta.
Concordamos com a visão tradicional que, mesmo sob câmbio fixo, as
inflações baixas podem ser resultado simplesmente de aumentos autônomos
de salários, aumentos de margens de lucro ou outros tipos de aumentos gerais
de custos. Porém, vamos propor aqui que, mantido o câmbio fixo ou com
pequena variação, a inflação alta é impossível ou efêmera. Em uma economia
aberta, esse nível de inflação só seria possível ou sustentável em decorrência
de desvalorizações cumulativas e indexadas aos salários e preços. Para
84
defender essas proposições usaremos a teoria da inflação de custos por
conflito distributivo.
De forma geral, as teorias que relacionam inflação com problemas
cambiais não são novas. Há diversos autores que relacionam a hiperinflação
alemã e de outros países europeus pós primeira e segunda guerras a
problemas de balanço de pagamentos44.
Mais influentes foram as teorias da inflação estruturalistas-cepalinas. “Os
estruturalistas defendiam a idéia de que o crescimento gerava déficits externos
que causavam pressões de demanda no mercado de divisas e, em
conseqüência, provocavam uma desvalorização cambial elevando os custos
que eram repassados aos preços” (Sicsú, 2002: 119). Segundo Sicsú (2002:
119), os estruturalistas acreditavam que “um déficit externo, que em um regime
de taxas cambiais semifixas [nos anos 40 a 60], causaria pressão no mercado
de câmbio que era dissolvida com uma desvalorização, o que provocava um
aumento generalizado de preços”. Mas, nos anos 50 e 60, não só os cepalinos
ressaltavam a importância do câmbio para a taxa de inflação. “Segundo
[Ignácio] Rangel, a inflação tinha [também] como causa a instabilidade cambial”
(Bielschowsky, 2000: 234-5; apud Sicsú, 2002: 121).
Nos anos 80, essa abordagem focada no câmbio voltou a ter
importância, a partir da ampliação do interesse com relação à inflação
inercialista. Realmente, pode-se sugerir que “os fatos apontam na direção de
que os surtos inflacionários dos anos 80 são conseqüência direta da
deterioração das contas externas dos países latino-americanos e do virtual
estancamento dos fluxos voluntários de capitais para os mesmos. Da mesma
forma, as estabilizações que se consolidaram nos anos 90 refletiram um
movimento simétrico, qual seja, a melhoria das contas externas desses países
e principalmente seu retorno ao mercado internacional de capitais” (Bastos,
2001: 202) 45.
44 “Keynes (...) [associa] a natureza hiperinflacionária, em alguns países europeus [nos anos 20], às flutuações cambiais” (FERRARI, 1999: 231). Sobre a importância que Keynes dava à estabilização do câmbio no combate à inflação, ver Batista Júnior (1999) e Bastos (2001).
45 Em um contexto diferente podemos ver a mesma opinião: “os países latino-americanos que conseguiram evitar a inflação, ou gradualmente eliminar seus processos inflacionários, foram aqueles que conseguiram superar, de uma forma ou de outra, o impasse da restrição crônica de balanço de pagamentos” (Kaldor, 1978: 133; apud. Bastos, 2001: 213).
85
Segundo Bastos (2001: 202), a mais importante “interpretação
alternativa [para “altas inflações”] segue a teoria da inflação de custos, e
aponta esses surtos inflacionários como resultado de grave desequilíbrio
externo, ocasionando persistente desvalorização do câmbio nominal com
impacto sobre os custos”.
Bastos (2001: 230) expõe ainda uma versão heterodoxa muito popular
no final dos anos 90 e neste início de século da posição ortodoxa, que defende
a importância do dilema entre juros e inflação. Pare ele, “uma taxa de juros
nominal reduzida implicaria na fuga de capital, que por sua vez teria como
conseqüência a aceleração da desvalorização cambial e finalmente da própria
inflação”. Mais à frente, vamos relativizar essa posição, mas, por hora, nos
interessa mostrar o quão difundida são as visões que relacionam inflação ao
câmbio.
Em economias abertas, a taxa de inflação está intimamente ligada à taxa
de câmbio, pois a taxa de câmbio determina a tendência da taxa de inflação (1)
do setor de importáveis46, (2) nos setores não-importáveis, mas que são
exportáveis e possuem pouca concorrência e alta facilidade de colocação de
parcela significativa da produção no mercado externo, (3) dos setores de não-
importáveis e não exportáveis que possuem alta concorrência e alta proporção
de insumos importáveis ou ainda alta proporção de endividamento ou de capital
externo. Esses setores, cujas taxas de inflação são determinadas basicamente
pela taxa de câmbio, são a maior parte da economia, e, portanto, determinam a
maior parte da inflação.
46 Chama-se aqui de importáveis o que a literatura econômica chama normalmente de tradeable. Considera-se mais apropriado esse conceito, em primeiro lugar, porque ele diz respeito ao fato dos bens ou serviços serem importáveis ou não, e não ao fato de serem tradeable (“comercializáveis externamente”). Segundo porque, por questões de barreiras comerciais e hábitos de consumo, existem, entre os produtos que normalmente seriam amplamente chamados de comercializáveis, alguns que são importáveis e não-exportáveis ou que são exportáveis e não-importáveis. Prefere-se aqui usar o termo importável, porque o que nos interessa aqui é a capacidade do câmbio alterar o teto de preços viável que os produtores nacionais podem atingir sem perder mercado para as importações. Essa diferenciação de conceitos pode ser especialmente útil para compreender uma das causas da relativa insensibilidade da inflação em alguns países desenvolvidos à desvalorização que suas moedas sofrem, particularmente, Japão, Europa e Inglaterra e com ressalvas os EUA. Nesses países, existiria um grande conjunto de setores que são exportáveis, mas fracamente importáveis. São setores que possuem pouca concorrência externa, ou porque as empresas do país são as mais competitivas, ou são monopolistas, ou tem alta fidelidade de seus clientes.
86
Como se isso não bastasse, a taxa de inflação dos outros setores de
não-importáveis não consegue se distanciar a grande velocidade da taxa de
desvalorização da moeda a médio e longo prazo, quando a maioria desses
setores possui capacidade instalada e oferta de mão-de-obra suficiente para
suprir a demanda. Essa proposição se deve às propriedades estruturais da
distribuição de renda.
Os setores de não-importáveis ou são (4) fortemente concorrenciais, ou
(5) são oligopólios e sua margem de lucro possui um componente estrutural
determinado a médio e longo prazo pelas barreiras à entrada47, ou (6) seus
preços são controlados pelo governo. Isso significa que as empresas desses
setores não poderiam elevar significativamente suas margens por conta
própria, mesmo se estivesse ocorrendo um forte crescimento da demanda.
Entretanto, essas margens poderiam ser reajustadas se houvesse um
crescimento dos juros reais.
Os preços nesses setores poderiam ainda ser elevados se ocorresse um
aumento de custos. O principal componente de custos são os salários. Assim,
dada uma certa estabilidade da taxa de juros e de câmbio, uma inflação
elevada só seria possível se os salários se elevassem acentuadamente por
longos períodos acima da taxa de crescimento da produtividade.
No entanto, essa situação não é possível. O aumento no preço dos
importáveis não pode se descolar significativamente da taxa de desvalorização.
Uma elevação muitíssimo acelerada dos salários, por longos períodos, acima
da taxa de aumento da produtividade, quando as taxas de câmbio e juros estão
estabilizadas, implica que o lucro dos setores de importáveis ficaria muito
reduzida e o país perderia competitividade externa. Essa situação é
insustentável, primeiro porque a perda de mercado externo e interno obrigaria a
indústria nacional a fazer demissões em massa, o que impediria que os
salários se elevassem na proporção pressuposta, e segundo porque o déficit
em conta corrente aumentaria tanto que o governo seria obrigado a
desvalorizar ou a promover uma séria recessão.
47 Não queremos dizer que recessões, pressão sindical ou elevações de custos não afetem a margem de lucro, mas apenas que esse efeito ou é pouco significativo, se não implicar em mudanças sensíveis da taxa de lucro a longo prazo. Isso não implica que a distribuição de renda não possa ser alterada.
87
Na verdade, os empresários dos setores de importáveis, dos setores de
exportáveis e seus fornecedores, que correspondem no conjunto à boa parte
da demanda por mão-de-obra, tendem a conceder aumentos salariais em um
ritmo próximo ao crescimento da produtividade em economias com câmbio fixo.
Dessa forma, podemos concluir que a inflação elevada é possível, se e
somente se a taxa de câmbio se desvalorizar acentuadamente e de forma
cumulativa. Em outras palavras, a desvalorização acentuada e permanente é
condição necessária e suficiente para altas inflações em economias abertas.
Se a taxa câmbio estiver estabilizada, os salários médios não poderão
crescer tanto a ponto de causar uma inflação anual acima de um dígito. Porque
os salários são uma parte dos custos das empresas e precisarão crescer muito
mais do que 10% nas empresas que pode repassar aumentos tão grandes de
custos. Entretanto, apenas uma fração das empresas podem repassar esse
tipo de aumento de custos, pois quase todo setor industrial e agrícola compete
com importações ou dependem de exportações cujos preços dependem da
taxa de câmbio que estamos supondo estável. Portanto, a maior parte do setor
industrial e agrícola não poderia repassar os aumentos salariais tão grandes
para seus preços em um período tão curto.
Sendo assim, se os salários levarem a inflação para patamares acima de
casa de um dígito, os preços do setor de não-importáveis estariam aumentando
muito acima de 10% e os salários aumentando ainda mais, pois eles são
apenas uma parte dos custos. Não seria nenhum exagero imaginar que os
salários precisariam aumentar mais de 30% em um ano para que os preços
dos não-importáveis se elevem a ponto de causar sozinhos uma inflação geral
de 10%; porque os outros custos dos não-importáveis, como insumos
industriais, minerais e agrícolas que venham do setor de importáveis,
depreciação, amortizações, aluguéis, infra-estrutura como telecomunicação e
transporte, energia e custos de capital não teriam aumentado
significativamente48. E, como já afirmamos, mesmo que os salários tenham tido
aumentos tão significativos a ponto de causar uma elevação da inflação geral
de mais de 10% em um determinado ano, essa situação não pode ser
48 Não-importáveis como aluguéis e custos de infra-estrutura, como energia elétrica, telecomunicação e transporte, possuem custo salarial reduzido.
88
recorrente, porque significaria que a participação dos salários e dos lucros do
setor de não-importáveis na renda estaria crescendo a taxas insustentáveis.
Com uma taxa de câmbio estável, essa situação implicaria que a margem de
lucro do setor de importáveis se tornaria negativa em pouco tempo, e, portanto,
faria as exportações despencarem e as importações explodirem.
Aliás, os empresários do setor de não-importáveis, nem mesmo
concederiam aumentos de salários em tais patamares. Se os trabalhadores
insistirem em cobrar tais aumentos, a demanda por mão-de-obra do setor de
importáveis provavelmente sofreria uma sensível redução, impedindo
viabilidade de aumentos tão grandes de salários. Essa conclusão decorreria da
redução da rentabilidade. E mesmo se os empresários fossem obrigados a
conceder esses aumentos de salários e o governo garante a demanda por
mão-de-obra com políticas expansionistas, a perda de competitividade tornaria
o déficit comercial muito elevado que cresceria em uma progressão geométrica
a partir do crescimento dos salários e a economia acabaria sofrendo uma crise
de balanço de pagamentos. Dessa forma, não seria sustentável aumentar
salários a taxas muito elevadas e manter a taxa de câmbio estabilizada. O
mesmo poderia ser dito em relação à taxa de juros, pois se essa cresce sem
parar e os salários reais não perdem muito valor, a perda de competitividade
externa seria equivalente.
Pelos motivos acima colocados. Numa economia aberta que não emite a
moeda que funciona como meio de pagamentos internacional e que mantêm a
taxa de câmbio estabilizada, não é possível que a inflação se sustente em
patamares considerados elevados, como por exemplo, acima da casa de um
dígito por ano.
Concluindo, essa afirmação se sustenta em dois motivos: o primeiro é
que os bens importáveis representam parte significativa dos gastos dos
consumidores e dos custos das empresas, e o segundo é que uma inflação
independente nos não-importáveis é sempre contida. Esse segundo resultado é
devido principalmente à pressão da concorrência sobre as margens ou a
pressão do desemprego no setor de importáveis sobre o crescimento dos
salários. A elevação nos lucros via aumento de preços de alguns setores é
sempre limitada, não podendo ser autocumulativa, assim como, o aumento dos
89
salários acima dos preços médios, que é necessariamente limitado por período,
se a taxa de câmbio estiver estabilizada.
2.2.3.2. Câmbio flutuante não elimina a restrição externa
“Inflação aleija, desemprego esfola, câmbio mata” Mario Henrique Simonsen
Vimos, que Lerner (1951) reconhece as questões envolvidas na restrição
externa. Para ele, um déficit comercial prolongado pode ser financiado por
algum tempo, mas não para sempre. Nesse caso, o déficit comercial em algum
momento tem que ser eliminado. Segundo o autor, as opções para isso seriam
a depreciação da moeda, a deflação, a recessão e as restrições à importação.
Dessas, somente a primeira seria uma escolha factível e desejável. A deflação
não seria viável sem recessão. A recessão seria condenável pelo efeito sobre o
emprego. E as restrições à importação seriam condenáveis pelo efeito negativo
sobre o comércio e a cooperação internacional.
Restaria, assim, a depreciação cambial como política viável para evitar o
déficit comercial e seus outros potenciais remédios. Lerner (1951) nem
considera a hipótese de que a depreciação possa não ser suficiente para
eliminar o déficit comercial e nem a necessidade de utilização de outros
remédios mais amargos.
De fato, Lerner (1951) está negando que a restrição externa possa ser
capaz de impedir que economia atinja o pleno emprego. De certa forma, está
negando a própria relevância da restrição externa, pois a verdadeira restrição
ao crescimento continuaria sendo, como no resto de sua teoria, o pleno
emprego.
Este trabalho objetiva mostrar que essas proposições de Lerner (1951)
não podem ser generalizadas. Elas podem realmente valer em países e
situações específicas, mas de modo algum são gerais. Uma desvalorização
real que possa induzir saldos comerciais não negativos em situação de pleno
emprego pode não ser possível ou implicar em inflação superior à considerada
aceitável pelo governo.
90
Vimos que, em economias abertas, a inflação alta é conseqüência de
uma espiral de câmbio-preços-salários na forma de conflito distributivo. Esse
tipo de inflação decorre da incapacidade ou indisposição do governo impedir a
reindexação da taxa de câmbio.
A moeda pode se desvalorizar de forma consentida pelo governo ou a
despeito desse. O segundo caso ocorreria quando o governo se mostrasse
incapaz de impedi-la.
O governo pode não ser capaz de impedir a desvalorização da moeda,
se a demanda do setor privado por divisas for muito maior do que a oferta e os
instrumentos disponíveis para reduzir ou financiar essa demanda líquida (1)
estiverem esgotados, (2) implicarem em males piores do que a desvalorização
ou (3) seus efeitos ocorrerem em um prazo superior ao necessário.
Entretanto, mesmo quando o governo é, a princípio, incapaz de conter
uma desvalorização, ela pode não resultar em inflação persistente ou
significativa. Isso acontece quando, após a desvalorização, o governo impede
novas desvalorizações subseqüentes. Ao fazer isso, a desvalorização causaria
um pequeno aumento da inflação, que aos poucos se retrocederia devido à
posterior estabilidade cambial.
Esse resultado seria possível se a desvalorização capacitou o governo a
impedir a novas elevações do dólar. A desvalorização tende a melhorar o saldo
da balança comercial e trazer capital por mecanismos que detalharemos no
próximo capítulo. Dessa forma, a demanda líquida por dólares se reduz e o
governo terá mais facilidade em controlar o câmbio.
Entretanto, nem sempre a desvalorização cambial torna o governo capaz
de impedir novas desvalorizações. Nesse caso, será obrigado a permitir que o
dólar continue subindo até que o saldo comercial e a entrada de capitais
decorrente da desvalorização sejam tão altos que o demanda líquida por
divisas se anule. Essa seria exatamente a recomendação de Lerner (1951).
Todavia, Lerner (1951) não deu a devida importância à inflação causada
pela desvalorização cambial. Vimos que a taxa de câmbio nominal é a principal
referência nominal para os preços internos. Se os preços se elevarem, os
trabalhadores sentirão perda do poder de compra e reivindicarão aumentos.
Dessa forma, os ganhos de competitividade resultantes da desvalorização
seriam erodidos. Se a indexação dos salários aos preços e dos preços ao
91
câmbio forem muito altas e rápidas, o efeito sobre a balança comercial pode
ser pouco significativo, e a desvalorização, por maior que seja, não será uma
política eficaz para anular a restrição externa. Nessa situação, o governo será
obrigado a restringir a demanda agregada para impedir que a inflação assuma
uma trajetória crescente.
Assim, a desvalorização só tornará o governo capaz de controlar o
câmbio quando (1) resultar em um efeito forte e rápido sobre o saldo comercial,
ou seja, quando as elasticidades-câmbio das importações e exportações forem
altas. Além disso, é necessário (2) que a indexação dos salários à inflação não
seja muito alta e de preferência que (3) o nível de preços do país e o índice de
inflação que é referência para as negociações salariais não sejam muito
indexado ao câmbio.
Mesmo quando as desvalorizações forem capazes de eliminar o déficit
em conta corrente, pode haver restrição externa quando tem uma meta de
inflação tão ambiciosa que qualquer desvalorização pode comprometê-la.
Nesse caso, restrição externa ocorreria por indisposição do governo em fazer
maiores desvalorizações.
Kalecki não tem o mesmo otimismo de Lerner em relação as
possibilidade da desvalorização superar a restrição externa.
“Que acontece no país onde se dá uma recuperação econômica “natural” ou “artificial’ [induzida pelo governo via, por exemplo, aumento do déficit público] sem que haja uma entrada de capital estrangeiro? Se, em face da saída de ouro ou de divisas, o Banco Central reage de acordo com a receita clássica, elevando a taxa de juros ou adotando outras restrições de crédito, isso pode realmente (...) levar ao equilíbrio no balanço de pagamentos, ao frear a recuperação econômica e, conseqüentemente, ao reduzir a demanda por mercadorias estrangeiras não produzíveis no país. [Essa solução expressa a restrição externa e não seria satisfatória para Lerner, que considera a desvalorização cambial a forma adequada de ajustar o balanço de pagamentos.] Mas o que acontece se o Banco Central não reage desse modo? Se possui grandes reservas de ouro ou de divisas, o país pode, é claro, esperar bastante tempo por uma configuração mais próspera do comércio internacional ou do movimento internacional de capitais. Mas a situação pode tornar-se complicada pelo fato de que, se a saída de ouro dura muito tempo, ela levará à instabilidade financeira e provocará – se não houver medidas contra isso – um entesouramento de ouro ou de divisas estrangeiras. Surge aqui a pergunta: se a desvalorização monetária, sendo freqüentemente resultado dessa situação, não provoca o equilíbrio no balanço de pagamentos? A desvalorização tem, em geral, antes de tudo, esse efeito imediato: voltam os capitais que emigraram anteriormente, receosos ante a possibilidade de seus lucros serem eliminados. Mas esse é, evidentemente, um efeito de uma só vez. Estamos aqui interessados em outra coisa: a desvalorização pode efetivamente conduzir a uma forte corrente de exportação, que equilibraria a acrescida necessidade de importar mercadorias estrangeiras, resultante da recuperação econômica. Suponhamos que, em decorrência da desvalorização, os preços de exportação de um dado país, computados em ouro, diminuíram de 20%. Isso significa que, pela mesma exportação de antes, pode-se agora obter 0,8 da importação anterior.
92
Logo, para receber o anterior volume de importação, é preciso exportar 1 / 0,8 = 1,25 vezes mais do que antes. Se, entretanto, com a desvalorização, a exportação cresce menos do que 25%, isso não permite comprar nem mesmo a quantidade de produtos importados antes. Se a exportação aumenta um pouco mais do que 25%, isso permite importar um pouco mais, mas à disposição do país fica uma quantidade de bens menor do que antes da desvalorização e, portanto, será possível aumentar de apenas um pouco a produção (devido ao pequeno acréscimo na importação de matérias-primas), enquanto sai do país uma quantidade consideravelmente maior (cerca de 25% a mais) do que antes da desvalorização. Essa recomposição do mercado dá-se de tal modo que a elevação de preços em moeda nacional, provocada pelo encarecimento das matérias-primas estrangeiras, influencia no sentido de reduzir o consumo interno. A desvalorização pode, portanto, resolver a dificuldade no comércio exterior – a qual surge em decorrência da expansão econômica – somente se a demanda externa pelas mercadorias do país é bastante elástica; se, por exemplo, uma desvalorização de 20% tem como resposta um aumento de exportação bem maior do que 25%. Devido à forte pressão do protecionismo, a demanda externa é muito rígida. No mundo da livre concorrência, as mercadorias do país com a moeda desvalorizada se espalhariam por todos os mercados que antes não eram acessíveis devido aos altos custos de transporte e a outros custos (corretagem, propaganda, etc). No sistema do protecionismo, entretanto, a desvalorização não atua assim; uma pequena desvalorização é, em geral, insuficiente para ‘transpor’ a existente barreira alfandegária, e uma desvalorização maior provoca uma retaliação alfandegária dos países interessados” [grifo nosso] (Kalecki, 1936: 70-1).
De fato, é perfeitamente possível que a desvalorização não seja capaz
de reduzir significativamente a demanda líquida por dólares e, portanto, manter
a inflação baixa no nível de pleno emprego. Essa proposição é tão mais válida
quanto maiores forem a elasticidade-renda das importações e, como já citado
acima, menores forem elasticidade-câmbio do saldo comercial e maiores a
indexação dos preços ao câmbio e dos salários ao preços.
Conclui-se, assim, que o câmbio livre pode não ser capaz de gerar o
pleno emprego com estabilidade de preços. Nesse caso, as finanças
funcionais, tal como originalmente formuladas, não podem ser consideradas
um instrumento geral suficiente para atingir esse objetivo. Sugere-se então
adaptar a teoria das finanças funcionais para situações com restrição externa
relevante.
2.2.3.3. Câmbio, pleno emprego e finanças funcionais
A teoria da inflação exposta acima tem uma implicação importante sobre
a relação entre pleno emprego e inflação e, portanto, sobre as conclusões das
finanças funcionais.
Como vimos, Lerner (1951) associa inflação indesejada ou
aceleracionista com ultrapassagem do nível de pleno emprego, seja o nível que
93
o autor chama de alto ou de baixo pleno emprego. Essa teoria da inflação é
fundamental para a definição da forma final das finanças funcionais.
Por essa teoria, a inflação aceleracionista não deveria, de forma geral,
ser esperada antes de se atingir o nível de baixo pleno emprego. Mas deveria
ser esperada acima desse nível.
A teoria da inflação para economias abertas que foi exposta aqui
questiona a generalidade dessas duas proposições. Acreditamos que tenha
ficado claro, na seção acima, que dificuldades em controlar a taxa de
câmbio podem levar a economia manter altos níveis de inflação mesmo
em situações de grande desemprego.
Outra implicação da teoria da inflação em economias abertas, é a
possibilidade de se ultrapassar o nível de baixo pleno emprego. A taxa de
câmbio fixa ou estável permitiria que se ultrapassasse o nível de baixo pleno
emprego e até que fosse alcançado o nível de alto pleno emprego sem que a
inflação se tornasse alta. Nessa situação, os salários poderiam subir mais do
que os preços, porém não devem subir significativamente mais, porque os
empresários do setor de importáveis não poderiam conceder aumentos muito
elevados.
É possível que, se a economia ultrapassar o nível de baixo pleno
emprego, a participação do setor de não-importáveis na renda cresça. Esse
processo seria sustentável se for alta a taxa de crescimento das exportações e
da produtividade média dos setores mais competitivos ou menos dependentes
do custo de mão-de-obra. Essas tentativas de atingir ou ultrapassar o nível de
baixo pleno emprego tenderão a implicar também em melhorias na distribuição
de renda no curto prazo.
Essas conclusões conduzem à necessidade de reformulação da teoria
das finanças funcionais. Numa economia aberta, as políticas de gerenciamento
da demanda podem não ser suficientes para impedir nem a inflação nem o
desemprego, se o governo tem dificuldade de controlar a taxa de câmbio. Mas,
se a taxa de câmbio é estável, essas políticas podem também não ser
necessárias para controlar a inflação em caso de ultrapassagem do nível de
baixo pleno emprego. Essas proposições implicam na necessidade de
reformulação das finanças funcionais, ainda que se mantenha o objetivo de
pleno emprego com estabilidade de preços.
94
Capítulo 3: Câmbio, juros e financiamento externo
Valor: No início do Real, a equipe econômica tinha em mente a livre flutuação do câmbio? ”Olhando para esse período com olhar de historiador, acho que os economistas brasileiros não entendiam nada de economia aberta. Não só não entendiam, como continuam não entendendo! E não são só os economistas brasileiros que não entendem. Ninguém (ou quase ninguém) entende!” (Chico Lopes, 2005)
49
Os economistas estranhamente costumam pensar a economia como se
ela fosse fechada ao comércio externo e aos fluxos internacionais de capitais,
ou considerar apenas parcialmente as conseqüências dessas hipóteses. Se por
um lado essa atitude simplifica alguns problemas, por outro, esquece que
certas questões só podem ser compreendidas a partir de seu papel em uma
economia aberta.
Isso é especialmente válido para a política econômica. A política
econômica tem a função de gerenciar certas variáveis que são total ou
parcialmente dependentes de temas típicos de uma economia aberta.
3.1. Tendências da taxa de câmbio: a pressão cambial
“Nenhuma dessas ‘escolas’ tem uma explicação definitiva sobre as flutuações cambiais. Nem os mais sofisticados modelos matemáticos são capazes de dar conta daqueles fenômenos. Às vezes parecem melhorar nosso entendimento e responder empiricamente muito bem àquelas flutuações para, logo depois, esgotado o período da experimentação, elas se comportarem de forma diferente. O máximo que algumas sabem é que o dólar se comporta como um ativo financeiro, cujo preço se ajusta instantaneamente às expectativas futuras. Uma coisa é certa: o conceito platônico - a taxa de câmbio real de equilíbrio - aquela que produz o equilíbrio em conta-corrente no nível do pleno emprego da economia no longo prazo, não é a gestada endogenamente a cada instante. Em qualquer regime de câmbio a taxa de câmbio real é produzida dentro do sistema econômico como resposta a uma miríade de fatores (produtividade, taxa de juros, expectativas, taxa de crescimento, inflação etc.) e pode flutuar forte e longamente em torno daquele ‘conceito’, com graves conseqüências para o nível de atividade e endividamento da economia”
50 (Delfim, 2004).
A teoria ortodoxa convencional, através da teoria da paridade juros
descoberta, sugere que a expectativa de desvalorização cambial é igual às
diferenças entre as taxas nominais de juros mais um prêmio de risco país em
caso de países que possuem risco de inadimplência da dívida externa. Quando
não há esse risco, isso implicaria que observar o diferencial de juros nominais
49 Ex-diretor de política monetária e ex-presidente do banco central. Valor 29 de julho de 2005 50 Valor 15/02/2004.
95
de curto prazo seria uma forma de se conhecer quais seriam as expectativas
de desvalorização no curto prazo. Não porque o diferencial de juros seja a
causa da desvalorização, mas ele pode ser um indicador, haja visto que a
teoria propõe a existência de uma paridade entre essas variáveis.
Entretanto, na nossa perspectiva a taxa de juros só poderia ser igual à
expectativa de desvalorização por coincidência. A visão tradicional diz ainda
que o câmbio se ajusta para equilibrar o saldo em conta corrente. Nesse caso,
a expectativa de desvalorização seria causada pelo déficit em conta corrente.
Nesta seção mostraremos que o déficit em conta corrente não é variável que
determina a tendência à desvalorização cambial. Em uma seção adiante,
mostraremos o que determina o diferencial de taxa de juros.
O câmbio é uma variável de difícil explicação e previsão. Moedas
estrangeiras são ativos alvos de especulação, sujeitos aos humores dos
mercados financeiros. Mas seu valor é também um importante instrumento de
política econômica, sujeito às idiossincrasias da política. Os governos muito
raramente permitem que o câmbio flutue livremente ao sabor das necessidades
dos negócios e dos humores dos especuladores.
Segundo Reinhart (2000: 65), “countries that say they allow their
exchange rate to float mostly do not; there seems to be an epidemic case of
‘fear of floating’”. Reinhart considera que o medo da flutuação do câmbio é
generalizado e leva aos governo a utilizar os mais diversos instrumentos para
controlar a oscilação, como manipulação das taxas de juros, compra e venda
de reservas, controle de capitais, etc.
“The root causes of the marked reluctance by emerging markets to float their exchange rates are multiple. When circumstances are favorable (i.e., there are capital inflows, positive terms-of-trade, shocks, etc.), many emerging-market countries are reluctant to allow the nominal (and real) exchange rate to appreciate. This probably stems from fears fo the “Dutch disease” type problems (loss of competitiveness and serious setback to export diversification). When circumstances are adverse, the case againts allowing large depreciations becomes possibly even more compelling. The fear of a collapse in the exchange rate comes from pervasive liability dollarization, as in most emerging markets the debt of both the government and the private sector are largely denominated in hard foreign currency. For this and others reasons, devaluations in developing countries have a history of being associated with recessions, not export-led booms. Furthemore, the authorities may resist large devaluations because of their infalionary consequences and the credibility problems these may feed” (Reinhart, 2000: 69).
O câmbio é a variável econômica chave para problemas de economia
aberta. O comportamento da taxa de câmbio é decisivo para a taxa de inflação
e de juros e, portanto, para a política econômica e o próprio crescimento. Essa
96
conjugação de importância política e objeto especulativo tornam o câmbio tão
difícil de explicar e prever. Porém, devido a sua grande importância, é
necessário compreender minimamente as causas de sua evolução.
Para isso, deve-se conhecer as tendências dos chamados mercados
cambiais; ou seja, as tendências de um câmbio se deixado livre pelo governo.
A taxa de câmbio é determinada pela política cambial e pela oferta e demanda
do setor privado.
Embora seja uma variável fortemente gerenciada pela política
econômica, em muitos momentos, o câmbio é deixado flutuar de maneira
vigiada. Flutuando ou não, ele afeta a política econômica. Os governos
raramente possuem uma disponibilidade ilimitada de divisas. Por isso, se os
mercados demandam muita divisa, o governo precisa reduzir essa demanda.
Ele faz isso com o uso de diversas políticas econômicas. Assim, os mercados
cambiais – sendo a taxa fixa ou flutuante – têm o poder de afetar toda a
economia.
Os mercados cambiais afetam a economia de duas formas, alterando de
valor da taxa de câmbio e condicionando a política econômica. Os mercados
cambiais só podem afetar negativamente a economia ou a política econômica,
se faltarem divisas. Se sobrarem divisas, o câmbio só geraria efeitos negativos
por má gestão da política econômica. Essa proposição decorre do simples fato
de que o governo imprime dinheiro. Portanto, para o governo, nunca faltará
moeda nacional. Se os mercados cambiais estiverem com excesso de
demanda por moeda nacional, o câmbio tenderá a se valorizar ou os juros a
cair. Como o governo tem o poder perfeitamente elástico de emitir dinheiro e
títulos para atender à demanda, pode facilmente impedir esses resultados.
A restrição externa à política econômica decorre do excesso de
demanda líquida por moeda estrangeira nos mercados cambiais ou os
condicionantes que ele impõe sobre a política econômica. Vamos chamar esse
excesso de demanda líquida por divisas de pressão cambial.
Assim, ‘pressão cambial’ ocorreria quando os mercados cambiais
condicionam as políticas econômicas, ou em outras palavras, quando houvesse
restrição externa à política econômica.
A pressão cambial se faz sentir de maneira diferente de acordo com o
regime cambial. Nos chamados regimes de câmbio flutuante, a pressão
97
cambial tem efeito principalmente na política cambial por via das
desvalorizações. Nos regimes de câmbio fixo ou com bandas estreitas a
pressão cambial é sentida principalmente na política de juros. Nos regimes de
câmbio múltiplo é sentida principalmente na taxa de câmbio dos mercados
livres. Mas em qualquer dos regimes, o efeito do mercado cambial sobre a
política econômica é muito amplo. Ele afeta quase invariavelmente as políticas
fiscal e monetária.
A pressão cambial é a expressão da restrição externa à política
econômica. Apesar da importância, não é fácil modelar suas causas e prever
momentos em que ocorre.
Nos mercados cambiais, são realizadas transações de comércio exterior,
de pagamentos de rendas e de aplicação de capital. As transações de
aplicação de capital podem ser divididas em dois tipos. O primeiro corresponde
às operações com horizonte de aplicação mais extenso e focadas em
expectativas de lucratividade a longo prazo. O segundo tipo são as operações
com horizonte de aplicação mais breve e focadas em expectativas de
rentabilidade a curto prazo.
Em ambos os tipos de aplicação, mas principalmente no segundo, as
expectativas de desvalorização cambial são parte fundamental na avaliação de
risco e retorno. Essas expectativas tornam difícil teorizar e modelar a pressão
cambial. Isso decorre da grande importância que os movimentos de capitais de
curto prazo e a especulação cambial podem ter sobre o balanço de
pagamentos total em momentos de crise.
Não é possível criar com validade empírica relações funcionais precisas
e estáveis no tempo – ou seja, definir parâmetros – entre a especulação
cambial e outras variáveis macroeconômicas, como nível de atividade, juros,
câmbio nominal ou real, inflação ou balança comercial. Isso não acontece com
outros componentes do balanço de pagamentos. Por exemplo, é válido propor
relações funcionais relativamente estáveis para explicar a relação entre a
balança comercial, o nível de atividade e o câmbio real, o mesmo pode ser dito
em relação ao nível de investimentos externos diretos.
A especulação cambial não pode ser relacionada de maneira estável as
variáveis macroeconômicas que citamos, porque ela é fortemente dependente
do que se espera ser a opinião média do mercado sobre o nível “normal” do
98
câmbio. O fluxo de aquisição de divisas para especular com câmbio pode ser,
em um determinado momento, muito maior do que o fluxo comercial. Nesse
caso, a própria evolução da taxa câmbio é determinada pela especulação e,
portanto, pelas expectativas. Keynes (1936) foi talvez o primeiro economista a
destacar essa questão, que é chamada de “profecia auto-realizável”. Esse fator
faz com que os mercados cambiais sejam fortemente auto-referenciados. A
relação entre as variáveis marcroeconômicas fundamentais e o câmbio fica
assim mediada pela expectativa que os especuladores têm em relação ao que
seja opinião média sobre a desvalorização cambial. Essas expectativas podem
ser tão instáveis e imprevisíveis que torna muito difícil definir parâmetros
precisos para explicar a evolução do câmbio.
Essa conclusão pessimista, todavia, não impede que seja possível
teorizar de forma menos precisa sobre as causas da evolução da pressão
cambial. Consideramos que não vale à pena tentar buscar um parâmetro
estável entre evolução conjuntural dos capitais de curto prazo e do câmbio e
qualquer variável macroeconômica, mas achamos que seja possível definir
uma teoria que relacione essas variáveis com a tendência geral da taxa de
câmbio. Essa tendência geral pode ser expressa basicamente como
desvalorização, valorização, estabilidade e indefinição.
Não precisamos ter uma teoria que defina uma elasticidade precisa entre
câmbio e outra variável. Essas tendências gerais são suficientes para mostrar
os aspectos fundamentais de como a restrição externa condiciona as diversas
políticas econômicas, o que é nosso objetivo.
Podemos agora propor um modelo teórico que tente explicar as causas
da evolução da taxa de câmbio. Para isso vamos dividir o balanço de
pagamentos em duas partes. Uma parte pouco dependente das expectativas
de curto prazo sobre a desvalorização e a variação da taxa de juros e outra
parte mais dependente dessas expectativas.
Mas antes, vamos fazer uma ressalva. No dia a dia, a grande maioria
dos componentes do balanço de pagamentos, como as exportações,
importações e os investimentos externos diretos dependem das expectativas
cambiais de curto prazo, pois a possibilidade de antecipação ou postergação
da entrada de divisas pode gerar lucros. Porém, as operações comerciais e de
investimentos possuem limites e oportunidades que impedem que essas
99
antecipações ou postergações sejam prolongadas. Assim, no médio ou longo
prazo, o efeito das expectativas cambiais de curto prazo sobre a balança
comercial, os pagamentos de juros, lucros e dividendos e os investimentos
diretos é muito pequeno. Podemos, dessa forma, concluir que, quando medido
em períodos maiores, o fluxo de comércio, investimento e pagamentos de
dívidas e rendas de propriedade tem pouca relação com as expectativas
cambiais e expectativas de juros de curto prazo.
O mesmo acontece com os empréstimos de longo prazo tomados pelo
setor privado. O fluxo desse tipo de empréstimo, quando medido em períodos
mais extensos, não é tão dependente das expectativas de desvalorização de
curto prazo. Ele é dependente principalmente do diferencial de taxa de juros de
longo prazo entre o país e o exterior, da taxa de câmbio real e do volume de
investimento do país51. Quando o câmbio é fixo e seguro, essa proposição é
trivial. Quando o câmbio é flutuante ou fixo com alto risco de desvalorização, os
tomadores privados de empréstimos externos em geral precisam de receitas
relativamente indexadas ao câmbio para os protegerem no longo prazo contra
o risco cambial.
Dada essas considerações, vamos propor um modelo de contabilização
do balanço de pagamentos que tem duas funções. Em primeiro lugar, visa
isolar as variáveis que causam, na ausência de reação contrária do governo,
pressão cambial pró-desvalorização nos mercados de divisas. Em segundo,
visa isolar as variáveis menos dependentes das expectativas cambiais e de
variação de juros e que, portanto, tem poder para determinar a tendência das
variáveis mais dependentes.
O balanço de pagamentos pode ser dividido nos seguintes
componentes:
BP = CK – DCC
Onde:
CK = saldo na conta de capitais
DCC = déficit em conta corrente
BP = saldo do balanço de pagamentos = R = variação de reservas
cambiais
51 O câmbio desvalorizado reduz o risco de desvalorização cambial e aumenta a rentabilidade das indústrias de importáveis. No próximo capítulo, essa questão será discutida com maior detalhamento.
100
O saldo na conta de capitais pode ser divido nos seguintes
componentes:
CK= IDE + EElp + EEG + FFEcp – AmE
Onde:
AmE = saldo das amortizações dívidas de externas pagas
DCC = déficit em conta corrente
IDE = investimentos externos diretos líquidos
EElp = saldo empréstimos externos de longo prazo tomados pelo setor
privado
EEG = empréstimos externos tomados pelo governo
FFEcp = saldo das fontes de financiamento externo de curto prazo
A variação de reservas pode ser dividida em:
R = Rmín – R–
Rmín = compras mínimas de reservas cambiais pelo governo para
recompor as reservas planejadas.
R– = compras de reservas acima do mínimo planejado
Buscaremos isolar as variáveis que possuem forte autoreferenciação e,
portanto, comportamento instável, de difícil previsão e não transformável em
funções relacionadas com as principais variáveis macroeconômicas. Assim,
poderemos explicar o prever o comportamento das outras variáveis. Como
tentaremos mostra posteriormente, essa atitude possibilitará explicar e prever a
tendência da própria taxa de câmbio.
A princípio, as variáveis menos dependentes das expectativas de curto
prazo são: o saldo em conta corrente (DCC) o saldo líquido dos capitais de
longo prazo (IDE, EELP, AmE).
Outra questão importante que precisamos considerar nessa divisão
entre fluxos mais dependentes e menos dependentes das expectativas de curto
prazo é o objetivo dos movimentos de capitais para operações com ativos
securitizados de longo prazo. Por exemplo, as ações são a princípio um
financiamento de longo prazo. Porém, a aquisição de ações, quando visa lucrar
com a redução dos juros ou variação geral da bolsa de valores, é uma
operação com horizonte de curto prazo e fortemente dependente de
expectativas macroeconômicas. O mesmo não pode ser dito da aquisição de
101
ações para tomada de controle de uma empresa. Dessa forma, as operações
de câmbio com ações e títulos securitizados poderão ser classificados de um
lado ou de outro, dependendo do horizonte de investimento.
O principal objetivo desse modelo de contabilização do balanço de
pagamentos é isolar as variáveis que afetam a pressão cambial. Para isso
vamos separar os empréstimos tomados pelo governo dos empréstimos
tomados pelo setor privado. Os primeiros não passam pelos mercados
cambiais, portanto, não afetam demanda líquida de dólares nesses mercados.
Diríamos que eles não têm impacto direto na pressão por desvalorização
cambial.
A segunda modificação que precisa ser feita para que essa equação se
ajuste ao conceito de pressão cambial decorre do papel que o governo pode ter
sobre essa pressão. A necessidade de recomposição de reservas pelo governo
pode gerar pressão nos mercados de câmbio que poderia implicar em
restrições a outras políticas econômicas. Por outro lado a venda de reservas
tem como principal função a contenção da pressão cambial.
Consideradas essas questões podemos propor uma forma de separar as
contas do balanço de pagamentos que visa tratar ao mesmo tempo a pressão
cambial, suas formas de financiamento e se ela é causada por variáveis
dependentes ou independentes das expectativas de curto prazo.
Primeiramente, propomos um conceito para medir a dependência do
país de capital externo por período. Chamaremos esse conceito de
necessidade de financiamento externa:
NFE = DCC + AmE + Rmín
Os investimentos externos diretos são uma forma de financiamento que
possui uma dinâmica completamente diversa dos empréstimos. Eles, por
exemplo, não seriam atraídos por elevações das taxas de juros. Se houver
interesse em avaliar a quantidade de financiamento que pode ser atraído por
aumentos de juros, o conceito de necessidade de financiamento externo por
dívida pode ser interessante:
NFED = NFE - IDE
Os empréstimos externos de longo prazo podem ser atraídos por
aumentos na taxa de juros. Entretanto, eles têm uma dinâmica muito diferente
dos financiamentos de curto prazo. São mais estáveis e menos dependentes
102
das expectativas de curto prazo. A parte do balanço de pagamentos que é
relativamente independente das expectativas de horizonte muito curto sobre
desvalorização cambial ou mudanças nas taxas de juros vamos chamar de
necessidade de financiamento externo por dívidas de curto prazo – NFEDcp:
NFEDcp = NFED – EElp
Alternativamente vamos chamar essa variável, quando negativa, de fluxo
estrutural de divisas:
Fluxo estrutural = – NFEDcp
É necessário destacar que qualquer operação só pode fazer parte da
NFEDcp, se envolver pagamentos em moeda estrangeira. Pagamentos em
moeda nacional, mesmo para estrangeiros não seriam acrescidos à NFEDcp.
Dessa forma, podemos dizer que os EUA tem uma NFEDcp negativa apesar do
déficit em balanço de pagamentos registrado na contabilidade tradicional.
O resto do balanço de pagamentos será dividido em duas partes. Na
primeira, constarão as operações que dependem mais fortemente das
expectativas de câmbio e ou juros que chamaremos de fontes de financiamento
de curto prazo – FFEcp. Na outra, teremos os empréstimos externos tomados
pelo governo e as vendas líquidas de reservas cambiais, se o valor dessas
vendas líquidas for positiva.
Assim o balanço de pagamentos seria dividido nos seguintes
componentes:
EEG – R– = NFEDcp – FFEcp
Fazem parte das FFEcp os saldos de empréstimos externos de curto
prazo e as compras ou vendas de títulos de dívida securitizada (inclusive de
longo prazo), moedas e ações com horizonte de investimento de curto prazo
que envolvem operações com câmbio, ou seja, operações que envolvem
investidores estrangeiros ou nacionais que estão trocando ativos denominados
em moeda estrangeira por ativos denominados em moeda nacional.
Essas operações de curto prazo que envolvem operações com câmbio
significam em geral uma aposta cambial de alguém, mesmo que o investidor
estrangeiro faça proteção (hedge) cambial, quem está oferecendo tal proteção
estará fazendo uma aposta cambial. Essas operações só não envolveriam
nenhuma aposta cambial, se houvesse uma operação onde ambas as partes
fossem arbitradores no mercado de câmbio. Isso só seria possível, se o
103
investidor estrangeiro pagasse integralmente o custo de proteção cambial e
fizesse uma aplicação que prometesse uma rentabilidade superior a esse
custo. Como veremos mais à frente, esse custo de proteção cambial é igual ao
diferencial de juros entre as moedas envolvidas na operação, portanto, a
rentabilidade deveria ser superior à taxa de juros básica do país. Entre os
ativos de curto prazo, apenas operações em bolsa ou em títulos mais
arriscados de dívida privada poderiam oferecer uma rentabilidade superior a
essa. Ou seja, investimentos de curto prazo que envolve operações cambiais
são, em geral, arriscados ou com rentabilidade reduzida pelo custo de proteção
cambial. Mas, nesse caso, geralmente não compensa pagar esse custo,
porque o risco sistêmico de inadimplência dos títulos privados e de queda na
bolsa de valores possuem ambos forte correlação com as crises cambiais e os
períodos de estabilidade cambial. Dessa forma, quando a rentabilidade
esperada for alta e o risco baixo em reais, o risco em dólares e, portanto, o
risco total também serão.
Nesse sentido, é esperado que essas operações sem proteção cambial
sejam menos importantes do que as operações que incorram em aposta
cambial. As aplicações de estrangeiros ou de endividamento em moeda
estrangeira em títulos privados ou ações tende a crescer exatamente quando o
país está crescendo, o que em geral coincide com os momentos em que não
está ocorrendo pressão cambial. A lucratividade e a segurança desses
investimentos em ativos financeiros privados costumam ser mais altas quando
a pressão cambial é menor, o que está associado com um menor risco de
aumento dos juros e maior taxa de crescimento. Nessa situação, haveria
pequeno risco cambial e, portanto, uma disposição muito pequena em absorver
todo o custo da proteção cambial, e a maioria dessas operações com títulos
privados seria feita sem proteção cambial. Assim, seriam apostas cambiais, da
mesma forma que são quase sempre as operações envolvendo em títulos
públicos com financiamento externo. Quando o risco cambial é maior, o risco
de aumento dos juros também, assim como o risco de redução da taxa de
crescimento. Por conseqüência a demanda líquida de estrangeiros por títulos
privados nacionais tende a ser pequena ou mesmo negativa, pois eles
provavelmente teriam opções de investimento superiores em outros países.
Isso ajuda a reforçar ainda mais a parcela da FFEcp que implica em algum tipo
104
de aposta cambial. O detalhamento dessas questões não nos interessam nesta
seção, elas serão aprofundadas quando discutirmos sobre taxa de juros. O que
interessa aqui é afirmar que a maioria das operações da FFEcp envolvem
algum tipo de aposta cambial.
A pressão cambial é:
Pressão cambial = NFEDcp + FFEcp.
Ela pode ser “financiada” pelos EEG e posterior venda de reservas.
Financiamento da pressão cambial EEG – R–
A pressão cambial é fundamental para a determinação da tendência
cambial e, assim, da restrição externa. Portanto, conhecer suas causas é muito
importante.
A FFEcp é composta de variáveis autoreferenciadas. É muito difícil
construir relações funcionais para explicar sua evolução. Felizmente a
NFEDcp e a FFEcp não são variáveis independentes.
Essa seção tem como principal objetivo propor que a NFEDcp determina
a tendência geral a médio e longo prazo da FFEcp e, portanto, a tendência da
própria pressão cambial. O saldo líquido acumulado da FFEcp tende a zero.
Como a pressão cambial é a variável em que se expressa no curto prazo a
restrição externa sobre a política econômica, a NFEDcp determina também os
condicionantes da política econômica.
As FFEcp são influenciadas principalmente pelas expectativas com
relação à pressão cambial. Portanto, mantendo nossa linha de argumentação,
a NFEDcp deve ter uma forte influência sobre essas expectativas. O processo
de formação de expectativas é um tema importante em boa parte da teoria
macroeconômica e em particular para a compreensão da formação do câmbio.
Proporemos, nessa seção, um processo que mostra como a NFEDcp
influencia as expectativas sobre a pressão cambial. Para melhor ilustrar como
esse processo funciona, vamos expor o que consideramos ser um exemplo
estilizado de evolução do câmbio em um regime de câmbio flutuante
administrado.
Suponhamos que a princípio o câmbio esteja se comportando de forma
errática por algum tempo e que não existam evidências para corroborar
nenhuma opinião confiável. Mas se o câmbio iniciar um processo de
desvalorização contínua, os especuladores podem achar que não existem
105
motivos para que esse processo não se mantenha e passam a comprar moeda
estrangeira. Essa reação reforça a tendência inicial.
Mas o câmbio se comporta de forma muito volátil. Além disso, nunca se
sabe ao certo quando a tendência se reverterá, ou seja, se as oscilações
freqüentes são apenas espasmos que não se contrapõem à tendência geral ou
se são sinais de reversão dessa tendência. Os especuladores são conscientes
dessa incerteza, e sabem que precisam ser muito ágeis. Quando já
acumularam lucro que compensou o risco da operação, ficam apenas
esperando o melhor momento para realizá-lo. Esse momento pode ser uma
reversão ou uma estabilidade da trajetória da taxa de câmbio. Quando passam
a vender, podem gerar uma reversão mais forte na evolução da taxa e assim
outros podem achar que a tendência alcançou um teto conjuntural ou teto
psicológico. Mas se não for formada uma tendência de queda, a taxa
provavelmente flutuará entre um piso psicológico e o teto estabelecido
anteriormente. Esse tipo oscilação terá um fim quando a taxa atravessar um
dos dois limites conjunturais.
Se isso acontecer com a ultrapassagem do teto, formará novamente um
novo “consenso” de que há uma tendência de alta e essa tendência se auto-
realizará, pelo menos, até que seja restabelecido um novo teto conjuntural.
Mas se a tendência geral for de elevação da taxa esses tetos serão pouco a
pouco ultrapassados, em um processo que se assemelha a uma subida de
escadas52.
Mais à frente proporemos que essa tendência geral seria causada pela
NFEDcp. Mas o que nos interessa agora é a lógica desse processo de
evolução da taxa de câmbio. Os especuladores tentam encontrar esses
consensos conjunturais – tetos, pisos e tendências – de forma mais sistemática
com o instrumento da chamada análise grafista ou técnica53.
52 Não é nosso objetivo propor um modelo muito preciso sobre os movimentos especulativos, mesmo porque essa seria uma tarefa difícil e talvez infrutífera. Porém, podemos dizer que o arcabouço que propomos aqui para esses movimentos é perfeitamente coerente em parte com o proposto por Soros (1988) e em parte com o que se chama de análise grafista. 53 Esse método tem raízes muito antigas e existem registros de técnicas desse tipo, pelo menos, desde o século XVIII, quando os japoneses inventaram os gráficos de velas para tentar prever o mercado de arroz. Hoje existe um número muito grande de técnicas desse tipo, que são muito usadas, apesar da total desconsideração das mesmas por parte da teoria econômica.
106
É de conhecimento geral que o processo de evolução da taxa de câmbio
é fortemente influenciado pelos especuladores. Porém, defendemos aqui que
as variáveis mais estruturais do balanço de pagamentos – NFEDcp – acabam
definindo a tendência de longo prazo dessa taxa. É preciso, assim, mostrar
como a especulação se processa sem negar essa proposição. A ilustração
exposta acima teve esse objetivo. Mas pretendemos mostrar isso de forma
mais precisa e genérica com um modelo não-matemático.
Como vimos, existem basicamente quatro tipos de tendências gerais
para a taxa de câmbio nos regimes de flutuação administrada:
1) valorização
2) desvalorização
3) estabilidade
4) indefinição
Nos regimes de câmbio fixo existem tendências análogas:
1) acumulação de reservas
2) perda de reservas
3) estabilidade de reservas
4) indefinição
Esses dois tipos de tendências poderiam ser resumidos como:
1) pressão cambial negativa
2) pressão cambial (positiva)
3) ausência de pressão cambial
4) indefinição em relação à pressão cambial
Os agentes tentam inferir essas tendências a partir de 4
hipóteses:
a) a pressão cambial seguirá a tendência da evolução recente.
b) a pressão cambial atingiu o teto ou o piso conjuntural
c) a tendência mantida não é sustentável
d) não há evidências coerentes suficientes para formação de opinião
confiáveis.
Nas expectativas de curto prazo o que mais importa é a opinião da
maioria. Dessa forma, a tendência do câmbio recente mostra como tem sido a
opinião da maioria em relação às expectativas de rentabilidade cambial. Essa é
uma importante justificativa para a hipótese ‘a’, isto é, que o câmbio seguirá a
107
tendência da evolução recente. Outra justificativa é que a tendência da
evolução recente pode estar também expressando a tendência das variáveis
estruturais (NFEDcp) e as forças pró-cíclicas dessas variáveis. Entre essas
forças pró-cíclicas estão a inflação que é induzida pela desvalorização cambial
e reforça as expectativas de desvalorização futura, via efeito que ela tem sobre
o câmbio real. Esse processo é auto-reforçado, à medida que os agentes tem
consciência de que a maioria também pode estar levando essa hipótese em
consideração.
A hipótese ‘b’ – o câmbio atingiu o teto ou piso conjuntural – pode surgir
em algum momento de inflexão da tendência decorrente da volatilidade da taxa
de câmbio. Essa hipótese decorre da consciência que os especuladores
possuem em relação à natureza errática dos mercados cambiais e da
necessidade de agilidade para realização de lucros, além de possíveis dúvidas
em relação à sustentabilidade das tendências.
A hipótese ‘c’ – a tendência não é sustentável – indica, no caso de
câmbio flutuante, a consciência em relação às metas do governo para a taxa
de câmbio e as conseqüências das mudanças no câmbio real. Ela mostra que
os especuladores sabem que o governo tem instrumentos para impedir que o
câmbio se desvalorize além do desejável.
A hipótese ‘d’ – não há evidências coerentes suficientes para a formação
de opiniões confiáveis – na verdade não é uma hipótese, mas a ausência de
confiança suficiente nas hipóteses anteriores.
A ilustração que exibimos acima tenta mostrar como essas hipóteses se
transformam na opinião da maioria de forma mais ou menos cíclica. Na
verdade, são dois processos cíclicos diferentes, um de maior duração e outro
de menor duração. O processo cíclico de maior duração está relacionado com
as metas do governo e a sustentabilidade de determinada taxa de câmbio real.
O processo cíclico de menor duração está relacionado com a tentativa dos
especuladores formarem hipóteses para tentarem reconhecer a opinião média
que definiria a tendência de curto prazo e testarem continuamente se a
tendência pode ser mantida.
Descobrir essas opiniões médias pode ser muito útil em operações de
horizonte curto, mas acreditamos que a tendência geral da taxa para prazos
mais longos é determinada na maior parte dos casos pela NFEDcp. Porém, as
108
tendências cambiais não podem se manter indefinidamente, sob pena de levar
a economia ao colapso.
Essa possibilidade, porém, é remota. Em primeiro lugar, existem forças
contra-cíclicas que resistem às tendências gerais da taxa de câmbio. Essas
forças estão relacionadas com a desvalorização ou valorização da taxa de
câmbio real. Por exemplo, a desvalorização do câmbio real aumenta a
competitividade, reduz o poder de compra em moeda estrangeira melhorando o
saldo comercial e atrai investimentos diretos para atividades de exportação e
setores de bens importáveis em geral. A valorização tem o efeito inverso.
No entanto, existem também forças pró-cíclicas. A primeira é o efeito da
evolução passada da taxa de câmbio sobre as expectativas de desvalorização.
Mas a força mais importante é a inflação. A inflação impede que o câmbio real
mude na proporção adequada e que tenha assim seu efeito contra-cíclico.
Portanto, a inflação conjugada com as expectativas baseadas na evolução
passada tornam-se conjuntamente uma força pró-cíclica importante.
Qual dessas forças é mais poderosa? Isso depende de muitos fatores,
principalmente das variáveis mais autônomas do balanço de pagamentos,
como o pagamento de juros e amortizações. Porém, o que mais importa com
relação às limitações dessas tendências são as metas dos governos.
Os governos têm um poder muito grande sobre a taxa de câmbio
diretamente e indiretamente pela influência sobre a maioria das outras
variáveis que afetam essa taxa. A primeira coisa que precisa ficar claro sobre
isso é que o governo pode impedir qualquer valorização que quiser e pode
fazer qualquer desvalorização que quiser. Isso se deve ao poder de emissão. O
Estado pode comprar todas as divisas que estiverem sendo oferecidas e a
qualquer preço.
O poder para impedir as desvalorizações não é tão grande e de conduzir
valorizações é ainda menor, pois não tem poder de emitir moeda estrangeira.
Mas não faltam instrumentos. O governo acumula e vende reservas, toma
empréstimos no exterior, gerencia a taxa de juros, modifica os impostos sobre
operações que envolvem câmbio, faz política industrial e comercial, ajusta a
política fiscal, manipula o nível de atividade e as expectativas etc.
A utilização desse arsenal, na grande maioria dos casos, torna o
governo apto a definir limites às tendências que o câmbio teria se fosse
109
deixado livre. Podemos concluir, assim, que em geral as tendências cambiais
possuem limites dados pelas metas dos governos e pela possibilidade de
alteração do câmbio real.
Os especuladores sabem disso. Quando se inicia um processo contínuo
de valorização, desvalorização ou de perda de reservas, o usual é que se
forme uma opinião majoritária de que essa tendência vai prevalecer. Mas esse
processo é errático. Os especuladores sabem que os lucros obtidos podem ser
rapidamente perdidos e buscam realiza-los sempre que houver dúvidas. E
assim, geram inversão da tendência anterior.
Dessa forma, a especulação cambial tende levar o câmbio a um
comportamento volátil. Esse comportamento segue o seguinte processo:
(1) Forma-se uma tendência e os especuladores adotam a hipótese ‘a’
(a pressão cambial seguirá a tendência da evolução recente).
(2) A tendência dá sinais de esgotamento, criam-se dúvidas quanto sua
continuidade e busca-se realizar lucros. Nesse ponto, adota-se a hipótese ‘b’.
Forma-se uma nova tendência e recomeça o processo.
(3) Eventualmente, se uma tendência é mantida por muito tempo, pode-
se começar a colocar em dúvida sua sustentabilidade, mesmo que a tendência
não dê sinais de estancamento. Essa é a hipótese ‘c’.
Sob dúvida os especuladores retraem suas apostas. Se o resto do
balanço de pagamentos (NFEDcp) tem um saldo líquido nulo, as tendências de
valorização e de desvalorização não são sustentáveis. Porque elas formam
hipóteses e dúvidas que alteram as proporções de oferta e demanda e acabam
e contradizendo a própria tendência.
Nesse caso, o saldo líquido da especulação cambial e a própria taxa de
câmbio, quando em regime flutuante, evoluem de maneira cíclica e errática.
Inclusive quando há grandes fugas de capitais e eventos desse tipo, sempre há
o movimento contrário a posteriori. Mesmo porque o governo tem objetivos
políticos que o obriga a ter metas de taxa de câmbio, ainda que essas sejam
implícitas e conjunturais.
A possibilidade de períodos de estabilidade em que o saldo líquido da
especulação cambial e a própria pressão cambial se mantenham próximos de
zero não impede que o ciclo seja a norma, principalmente quando a NFEDcp é
próxima de zero. É importante ressaltar que esses períodos de estabilidade, na
110
maioria dos casos, têm que ser garantidos por políticas ativas de
gerenciamento dos fluxos cambiais. Caso contrário, eles tendem a ser curtos,
porque quaisquer mudanças nas expectativas e na atratividade de outras
aplicações mudam as posições dos especuladores e, portanto, a pressão
cambial. Mesmo quando o saldo líquido de especulação cambial é
acompanhado por saldo líquido nulo na NFEDcp – isto é, nas variáveis menos
especulativas do balanço de pagamentos – pode surgir pressão cambial. Essa
situação seria conseqüência da “natureza” dos mercados cambiais, pois a
usual emergência de novas informações e as mudanças de atratividade dos
diversos ativos, gera uma necessidade de alteração das carteiras e uma
mudanças nas posições cambiais de forma inicialmente pró-ciclica.
Essas mudanças de composição tendem a gerar movimentos
autocumulativos. Uma vez desbalanceada a relação entre oferta e demanda de
divisas, as expectativas tendem a alavancar essa situação, criando uma
tendência mais forte em determinada direção.
Mas esse movimento não é contínuo. Quando esse processo avança
demais cria-se expectativas de que a tendência pode ter sido exagerada e
dúvidas quanto sua continuidade. Essas dúvidas fazem os especuladores
retraírem, o que altera a relação entre compradores e vendedores de divisas e,
portanto, inversões temporárias ou definitivas na pressão cambial. Isso não
significa que a pressão cambial tenha uma tendência a gravitar em torno de um
equilíbrio, mas uma tendência inerente à volatilidade, o que é muito diferente.
Assim, a estabilidade tende a ser apenas temporária. O que não significa que
essa volatilidade seja suficientemente alta para afetar a política econômica.
Nos maiores países desenvolvidos, nos países com grandes reservas cambiais
e nos países com controles de capitais geralmente não afeta muito a política
econômica.
Podemos assim concluir que o saldo líquido da especulação cambial
tende a oscilar entre montantes positivos, negativos e nulos, mesmo quando a
NFEDcp é aproximadamente zero. Se não houvesse uma espécie de ciclo
como esse descrito, haveria uma acumulação ou desacumulação indefinida de
ativos de curto prazo em moeda estrangeira. No último caso, seria certamente
uma situação insustentável, pois levaria o país à bancarrota. No primeiro caso,
também seria, porque a especulação cambial é um investimento de horizonte
111
curto e risco alto. Acumular continuamente ativos em moeda estrangeira
significa que alguém está se endividando crescentemente em uma moeda e
aplicando em ativo de curto prazo em outra. Seria uma operação muito
arriscada para ser adotada durante um período longo.
O movimento normalmente oscilatório do saldo líquido de especulação
cambial tem implicações muito importantes. Ele explica porque a NFEDcp,
quando significativamente diferente de zero, determina a tendência da pressão
cambial. Quando a NFEDcp é aproximadamente nula, a oscilação do saldo
líquido da especulação cambial determina sozinha o movimento errático da
taxa de câmbio nos regimes flutuantes. Quando a NFEDcp é significativamente
diferente de zero, ela terá peso na pressão cambial. Esse peso será majoritário
e, portanto, determinante quando o saldo líquido da especulação cambial for
reduzido. Por si só, essa situação é capaz de conduzir a tendência cambial,
primeiro porque os períodos de saldo líquido de especulação cambial nulo não
serão acompanhados de ausência de pressão cambial, pois essa será
determinada pela NFEDcp. E segundo porque nos períodos de saldo líquido de
especulação cambial diferente de zero, esses terão seu efeito sobre a pressão
cambial reforçados quando esse tem o mesmo sentido da NFEDcp e reduzidos
quando tem um sentido contrário. Em todas essas circunstâncias, reforça-se a
tendência ditada pela NFEDcp.
De fato, se levarmos em consideração que o saldo líquido acumulado de
especulação cambial por longos períodos tende a ser muito pequeno, seria
realmente esperado que a NFEDcp decidisse a tendência geral da taxa de
câmbio. Como já foi discutido, os investidores não podem acumular
indefinidamente ativos de curto prazo em uma moeda adquirindo dívidas em
outra moeda.
Além disso, existe outro fenômeno que reforça o argumento. O saldo
líquido de especulação cambial acumulado geralmente se move na mesma
direção da NFEDcp. O saldo líquido da especulação cambial não é
independente da pressão cambial. Os especuladores, como é óbvio, tentam
adivinhar a tendência e jogar a favor dela, reforçando-a e mesmo antecipando-
a quando possível. Quando a NFEDcp é significativamente diferente de zero, a
especulação cambial não pode sustentar por muito tempo um saldo líquido
contrário à NFEDcp.
112
Isso acontece porque a especulação cambial tem como comportamento
usual a aposta na tendência, seguida de teste de sustentabilidade dessa
tendência. Qualquer sinal de dúvida em relação à tendência, os especuladores
se retraem e realizam lucros. Se, depois desse teste, a tendência se mantiver;
voltam a apostar, se a tendência se inverter, apostam na inversão. E
dependendo dos sinais emitidos pela economia e pelo próprio movimento da
taxa de câmbio, voltam em breve a testar a tendência.
Dessa forma, o saldo líquido de especulação cambial tem um movimento
volátil em que são alternados momentos de saldo líquido diferente de zero com
momentos de saldo líquido próximo a zero. Dependendo da tendência mais
geral da taxa de câmbio ou da acumulação de reservas, essa alternância pode
significar saldos positivos sendo trocados com saldos próximos a zero, saldos
negativos sendo trocados com saldos próximos a zero ou saldos positivos
sendo trocados por saldos negativos passando por saldos próximos a zero.
Esse tipo de comportamento dos especuladores fará com que eles
sigam a tendência ditada pela NFEDcp. Se a NFEDcp mantiver
sustentadamente diferente de zero e sem alteração de sinal; nos momentos em
que os especuladores estiverem testando a tendência e retraírem suas
apostas, tornando pequeno o valor do saldo líquido de especulação cambial; a
NFEDcp passará a definir sozinha a tendência da pressão cambial. Uma vez
esclarecida a tendência, os especuladores voltariam a apostar nela, reforçando
o movimento.
Dessa forma, concluímos que a NFEDcp, quando significativamente
diferente de zero e de sinal estável, determinará a médio e longo prazo a
tendência da pressão cambial e, portanto, governará o comportamento da taxa
de câmbio em regimes de câmbio flutuante. Em regimes de câmbio fixo,
governará a acumulação de reservas.
O gráfico abaixo busca ilustrar essas proposições. Suponhamos um
modelo keynesiano simples. Se a elasticidade dos investimentos diretos às
perspectivas de crescimento forem reduzidas, a NFEDcp é negativa para níveis
de renda mais baixos e torna-se positiva para níveis de renda superiores. Essa
conclusão decorreria do efeito negativo que o nível de atividade tem sobre o
saldo comercial no curto prazo.
j
Hipótese de Baixa elasticidade do capital de
longo prazo às perspectivas de crescimento
113
Resta agora saber se é possível sustentar por longo tempo uma
NFEDcp significativamente diferente de zero e de sinal estável. Em certas
circunstâncias uma NFEDcp negativa pode ser sustentável por longos
períodos. Mas a sustentabilidade de uma NFEDcp positiva implicaria pressão
cambial prolongada, o que significaria desvalorização constante do câmbio ou
fim das reservas cambiais. Esse processo conduziria invariavelmente à
desvalorização cambial e inflação agudas. Pode até levar a uma hiperinflação.
De fato, uma NFEDcp positiva não é sustentável a longo prazo. Essa
insustentabilidade se expressa como restrição externa. Mas isso será objeto da
próxima seção.
3.2. Elevação dos juros não elimina a restrição externa
Nas seções anteriores, vimos que o otimismo de Lerner (1951) com
relação às possibilidades do câmbio flutuante eliminar a restrição externa pode
ter sido exagerado. No entanto, existe um instrumento que, a princípio, poderia
permitir a manutenção de crescimento econômico sem pressão por
desvalorização cambial e inflação. Esse instrumento é a taxa de juros.
É praticamente um consenso na teoria econômica que mais juros
implicam em maior entrada de capitais na grande maioria das situações.
114
Portanto, mais juros permitiria que o país crescesse mais, utilizando,
provavelmente, uma política fiscal expansionista.
Entretanto, supondo uma taxa de crescimento das exportações dada,
mais juros pagos à dívida externa e mais crescimento implicam em maior
endividamento externo. É de se esperar que haja limites ao endividamento
externo, portanto, a restrição externa poderia novamente ser relevante.
Nesta seção vamos mostrar como algumas visões tradicionais sobre
essa questão veriam as limitações da taxas de juros em extinguir a restrição
externa. Posteriormente, exporemos o que entendemos como problemas
dessas visões e suas possíveis soluções.
3.2.1. A visão tradicional
Geralmente, as visões tradicionais sobre a relação entre juros e balanço
de pagamentos concluem que, tudo mais constante, mais juros implica em
maior fluxo de entrada de capitais. Essas conclusões se baseiam em algum
nível nas teorias da paridade de juros.
3.2.1.1. Juros
Como vimos, numa economia fechada, é fácil para o governo manter a
taxa de juros estável em baixos patamares. Numa economia aberta, não é tão
simples manter os juros estáveis e baixos, se houver liberdade de movimentos
de capitais. Isso decorre principalmente da possibilidade dos capitais saírem de
aplicações transacionadas em moeda nacional para aplicações em moeda
estrangeira. Essa fuga implicará em pressão sobre os mercados de câmbio e,
portanto, pressão para desvalorização da moeda.
Nessa situação, o governo muito provavelmente se verá obrigado a
adotar políticas específicas com o objetivo de controlar o nível de
desvalorização do câmbio, pois tem como meta manter o câmbio ou a inflação
dentro de determinados patamares.
Umas das políticas mais utilizadas para impedir a desvalorização é a
manipulação da taxa de juros. A princípio, essa manipulação tem que
considerar a diferença entre os juros internos e externos, pois, se uma parte
dos aplicadores externos considerarem que aplicar em títulos estrangeiros for
115
mais rentável e tão seguro ou mais seguro e tão rentável quanto aplicar em
títulos nacionais, o governo terá dificuldade de garantir suas metas de câmbio e
inflação.
Para tentar explicar essas relações, foram criadas as teorias da paridade
de juros. Existem três versões dessa teoria: a paridade coberta, descoberta e a
paridade dos juros reais.
A teoria da paridade juros coberta é a mais aceita contemporaneamente.
Ela pode ser resumida pela seguinte fórmula, já na forma logaritímica:
j internacional + êf
j nacional
Onde:
êf = (ef1 - e0) / e0
onde:
j internacional = taxa de juros internacional
j nacional = taxa de juros em euro
ef1 = taxa de câmbio no mercado futuro no tempo t1
e0 = taxa de câmbio corrente
êf = custo de proteção contra desvalorizações na moeda nacional
Essa igualdade seria decorrente de operações de arbitragem. Se o
custo de proteção cambial mais os juros internacionais forem inferiores ao juros
nacionais, tomar-se-ia emprestado no exterior e aplicar-se-ia no país. O
arbitrador receberia os juros nacionais e pagaria os juros internacionais mais o
custo de proteção cambial, mas não teria qualquer risco cambial. A teoria
supõe que o volume de capital que deseja lucrar sem riscos seja praticamente
infinito e essa oportunidade de lucro seria efêmera. Se os juros internacionais
forem superiores aos juros nacionais mais o custo de proteção contra
desvalorizações da moeda internacional (que é o inverso de proteção contra
desvalorizações da moeda nacional), faz-se a operação inversa. O único ponto
onde não haveria oportunidade de operações de arbitragem seria aquele dado
pela fórmula da paridade juros coberta.
Nos modelos macroeconômicos tradicionais, essa teoria costuma
ser usada para explicar porque aumentos das taxas de juros atraem capital
para um país. Para isso supõe-se que o custo de proteção cambial seja
116
exógeno. Dessa forma, aumentos na taxa de juros atrairiam uma quantidade
infinita de capital, financiando o balanço de pagamentos do país.
Além de operações de arbitragem, os movimentos internacionais
de capitais de curto prazo podem ser constituídos também pelos chamados
especuladores. Os especuladores compram títulos em moeda estrangeira sem
proteção cambial, visando lucrar com a expectativa de desvalorização cambial
ou com a diferença entre as taxas de juros dos países. A teoria da paridade
juros descoberta diria que a operação desses agentes resultaria em uma
situação de equilíbrio na seguinte fórmula:
j internacional + ëf
j nacional
Onde:
ëf = (e1 - e0) / e0
onde:
j internacional = taxa de juros internacional
j nacional = taxa de juros nacional
e1 = taxa de câmbio esperada no tempo t1
e0 = taxa de câmbio corrente
ëf = expectativa de desvalorização cambial
Segundo Lavoie (2000: 7), “the UIP relation [teoria da paridade
descoberta] asserts that nominal interest rates (in a riskless enviroment) are
determined by world interest rates plus the expected change in exchange rates.
Thus the interest rate differentials for one-month assets are determined by
expectations about future exchange rates. In the neoclassical framework, the
answer is straightforward: inflation rate differentials, as determined by money
supply growth differentials net of output growth, should provide the correct
expectations, if PPP holds. Thus, uncovered interest parity implies the
equalization of real interest rates between countries – the real interest parity
theorem (RIP). Ainda segundo esse autor, “the purchasing power parity
theorem is often associated with the classical Quantity theory of money, or the
contemporary monetarist theory. In that framework, while differential rates of
inflation explain the evolution of exchange rates, the differential rates of inflation
117
are themselves explained by differential rates of money supply growth (having
taken into account growth in the normal real output)” (Lavoie, 2000: 7).
Apesar de enfatizarmos as diferenças fundamentais entre as teorias da
paridade coberta e descoberta, na teoria neoclássica elas costumam estar
associadas.
“The uncovered interest parity relation must also be made consistent with covered interest parit. Covered interest parity asserts that the interest rate differentials must be equal to the forward exchange premium (or discount) with respect to the spot exchange rate, a relationship which indeed yiels a perfect match in empirical observation. Putting together the CIP (paridade coberta) and UIP relation implies that the forward exchange rate and the expected future spot exchange rate must be equal. Thus the forward exchange rate, within this standard neoclassical theoretical framework, should reflect the expectations of the financial markets with respect to future spot exchange rates.
The trouble with the neoclassical model, however, is that there is hardly any correlation between the forward exchange rate and its corresponding realized future spot exchange rate. It must thus be concluded either that the expectations of the agents operating in the financial markets are consistently wrong, or that the forward exchange rate hás nothing to do with expectations of the future values fo the spot exchange rate, in contrast to what is asserted in the neoclassical model” (Lavoie, 2000: 8).
A teoria da paridade juros descoberta, porém, contêm premissas
especialmente restritivas, como a hipótese de “mercados eficientes”, e não tem
resultados empíricos muito favoráveis (Froot e Richard, 1990; Gandolfo, 1995:
34-5).
3.2.1.2. A opção pela paridade coberta
Em ambas teorias da paridade juros, pode-se dizer que as condições do
balanço de pagamentos determinariam o diferencial de taxa de juros, porque as
expectativas de desvalorização ou o custo de proteção cambial refletiriam
diretamente ou indiretamente as condições de oferta e demanda esperadas de
dólares.
As versões mais tradicionais da teoria ortodoxa, não consideram o
prêmio de risco. Utilizando as hipóteses da paridade de poder de compra e
mercados eficientes, supõem que a taxa de câmbio deve se ajustar para
manter equilibrado o saldo em conta corrente. Assim os diferenciais de juros
seriam apenas transitórios, pois o saldo em conta corrente equilibrado indicaria
que o câmbio real está no seu ponto de equilíbrio e não haveria forças para
ajustá-lo. Nesse ponto, não haveria tendência à valorização ou desvalorização
118
do câmbio e, assim, não haveria motivo para qualquer diferencial de juros.
Portanto, a arbitragem internacional eliminaria qualquer diferencial de juros.
Todavia, sabe-se que certos países e o Brasil especificamente mantêm
taxas de juros permanentemente mais elevadas do que a taxa americana, no
mínimo, há mais de 12 anos para o caso brasileiro. Esse fato é um problema
principalmente para a teoria da paridade de juros descoberta, pois ela supõe
que o diferencial decorre de um “expectativa implícita de desvalorização”, que,
de fato, não poderia corresponder aos elevados diferenciais de juros por
períodos tão longos no montante “esperado”.
Apenas para continuar com a ilustração do caso brasileiro, a
capitalização do diferencial de taxas de juros de 1994 até este ano é muito
superior à desvalorização acumulada. O valor capitalizado da taxa Selic, no
período, é igual a 1332,6%, enquanto a valorização acumulada do dólar atinge
apenas 231%. Isso significa uma variação líquida em dólar de 577%, ou 17,3%
ao ano.
Supondo a teoria da paridade juros descoberta, essa constatação
empírica implicaria que os agentes econômicos erram continuamente e
cumulativamente e sempre da mesma maneira ou que tivessem “expectativas
irracionais”. Além disso, há países que já obtiveram o “equilíbrio” do saldo em
conta corrente e os juros permaneceram muito altos. O Brasil já está fazendo
três anos de saldo positivo em conta corrente e as taxas de juros básicas e
futuras permanecem em patamares elevados. O superávit acumulado desde
agosto de 2002 é de 22,5 bilhões de dólares, sendo 56% registrado nos últimos
12 meses, 1,86% do PIB.
Esses fatos não são exclusivos do Brasil, o diferencial de taxas de juros
é persistente, em muitos países, e não necessariamente é equivalente à
desvalorização acumulada. A teoria da paridade descoberta encontra franca
contradição a essas evidências.
Já a teoria da paridade coberta, quando não relaciona diretamente o
custo de proteção cambial com as expectativas de desvalorização, acaba
sendo uma teoria menos incoerente com os dados. De fato, há estudos
estatísticos que mostram que a fórmula da paridade juros coberta tem uma boa
adequação empírica (Froot e Richard, 1990).
119
3.2.1.3. Mobilidade imperfeita de capitais, substituição imperfeita de
ativos, prêmio de risco e expectativa cambiais
As versões ortodoxas mais tradicionais da teoria de paridade juros
consideram mobilidade perfeita de capitais e a substituição perfeita de ativos.
Entretanto, a premissa de substituição perfeita de ativos, especialmente, não é
adequada para descrever fenômenos macroeconômicos reais.
A teoria da paridade descoberta está representando operações
financeiras arriscadas. Sua fórmula está supondo que o risco dos ativos
nacionais e estrangeiros seja igual para todos os agentes – substituição
perfeita – ou que esses sejam neutros ao risco (Gandolfo, 1995: 32-3). Essas
são situações muito pouco prováveis. É mais razoável supor que especulador
exija algum prêmio de risco. “Quando títulos em moedas doméstica e
estrangeira são substitutos imperfeitos, a condição (...) [da paridade juros] não
se mantém em geral. Ao contrário, o equilíbrio no mercado de câmbio
internacional requer que a taxa de juros doméstica seja igual ao rendimento
esperado em moeda doméstica sobre os títulos estrangeiros mais o prêmio de
risco, , que reflete diferentes riscos entre os títulos doméstico e estrangeiro”
(Krugman e Obsfeld, 20??, 513):
j internacional + ëf +
j nacional
As hipóteses de substituição imperfeita de ativos ou de mobilidade
imperfeita de capitais implicam que, se um governo adotar uma taxa de juros
superior ao mínimo, atrairia capital externo, mas o volume de capital atraído
não seria “infinito”.
É importante notar que essas hipóteses não significam apenas custos
sobre o movimento de capitais. O efeito mais importante que elas estariam
tentando representar é a existência de limites ao volume de capital
internacional disponível para cada país por nível de remuneração oferecida.
Os modelos macroeconômicos tradicionais consideram ainda que, pelo
menos até um determinado ponto, essa solução será sempre válida. Ou seja,
120
toda vez que o governo aumentar a taxa de juros, atrairá um fluxo maior,
porém, finito de capital externo. É importante notar a que estamos falando de
fluxo e não de estoque. Isso significa que, se não houver mudanças na
economia, essa taxa de juros manterá um fluxo positivo de capitais. Modelos
derivados do IS-LM-BP com mobilidade imperfeita de capitais possuem essas
conclusões.
Esses modelos ativos constroem uma função contínua e
monotonicamente crescente entre a taxa de juros e a entrada de capitais, e
portanto, entre juros e renda para balanços de pagamentos equilibrados. O
gráfico abaixo busca ilustrar essa função.
Esses modelos se baseiam na teoria da paridade juros. Portanto, a
função monotonicamente crescente significa que – tudo mais constante –
sempre que se aumenta a demanda interna e, consequentemente, a
necessidade de financiamento externo, aumenta-se as expectativas cambiais
ou o prêmio de risco.
y
j BP = 0
121
3.1.2.4. Expectativas cambiais e prêmio de risco endógenos e
função da curva BP?
A curva BP positivamente inclinada foi muito difundida a partir dos
modelos Mundell-Fleming com liberdade imperfeita de capitais ou substituição
imperfeita de ativos, informalmente conhecidos como IS-LM-BP. No entanto, a
construção de uma relação funcional monotonicamente positiva e estável
incorre em problemas teóricos e empíricos. É difícil sustentar que possa existir
alguma relação funcional; ou seja, traduzível em uma função matemática; entre
juros, entrada de capitais e renda.
Imaginando um modelo macroeconômico que supõe uma curva BP
implícita ou explícita podemos fazer a seguintes perguntas: o que determina a
localização da curva, sua inclinação? Quanto os juros precisam ser elevados
para que o país possa aumentar sua renda? Poderíamos, a priori, dizer que as
respostas de todas essas perguntas dependem de quais sejam as expectativas
de desvalorização cambial e a percepção de risco.
A posição e a inclinação da curva BP depende fortemente das
expectativas cambiais e da percepção de risco. A teoria da paridade juros
conclui que, quanto maior a expectativa de desvalorização e maior a percepção
de risco, maior tem que ser a taxa de juros necessária para atrair o mesmo
volume de capital. Essa teoria traz um sério problema para os modelo IS-LM-
BP. As expectativas cambiais possuem uma forte endogenidade com relação
ao crescimento, aos juros, ao movimento de capitais e às próprias expectativas
cambiais e o prêmio de risco. Dessa forma, qualquer mudança nos juros, na
renda, ou no intercepto, ou seja, no volume de capital autônomo que entra no
país, altera a própria curva.
As expectativas de desvalorização e a percepção de risco são
fortemente auto-referenciadas. Isso significa que pode existir o efeito chamado
de profecia auto-realizável. A auto-referenciação dessas expectativas resultam
em um problema mais sério: qualquer mudança na curva altera a própria curva.
Resumindo, não é possível definir uma relação funcional estável entre essas
variáveis.
122
3.2.1.5. Curva BP e restrição externa
Apesar dos problemas acima citados, a curva BP foi muito utilizada para
explicar importantes fenômenos. Ela pode ser usada para explicar a restrição
externa. O modelo Mundell-Fleming com perfeita mobilidade de capitais não
pode explicar a restrição externa. O balanço de pagamentos pode sempre ser
financiado com aumentos temporários na taxa de juros.
A princípio, nesse tipo de modelo, mesmo com liberdade imperfeita de
capitais, não haveria restrição externa, pois o governo pode sempre induzir o
crescimento econômico, por exemplo, com políticas fiscais e financiar o
balanço de pagamentos com aumento da taxa de juros. Nessa situação, o
governo, sempre que desejar aumentar o nível de atividade, precisará
aumentar a taxa de juros, pois a quantidade de capitais que entram no país por
nível de diferencial de taxa de juros é limitado.
Porém, mesmo uma curva BP positivamente inclinada e com derivada
não infinita pode ser usada para explicar a restrição externa. Para isso, basta
supor um teto para a taxa de juros. Como o crescimento da demanda por
importações implica na necessidade de aumento da taxa de juros, se houver
limite à taxa de juros, haverá limite ao crescimento da renda.
A solvência externa de um país busca prever sua capacidade honrar a
dívida externa. Um dos mais importantes indicadores de solvência externa é a
relação entre dívida externa e exportações. Supõe-se que, se esse indicador
ultrapassar certos patamares o país teria alto risco de insolvência e os credores
externos deixariam de financiá-lo e estaria muito sujeito a uma séria crise
externa. Esse indicador aumentaria indefinidamente enquanto a taxa de juros
for superior à taxa de crescimento das exportações.
Nessas condições, para garantir a estabilidade da relação dívida
externa/exportações, a taxa de crescimento das exportações seria um teto para
a taxa de juros do passivo externo líquido. Portanto, esse critério de solvência
determinaria a restrição externa.
Se o governo precisa atrair mais empréstimos externos, tem que
incentivar o setor privado a fazê-lo. Precisa aumentar a taxa de juros interna,
induzindo a emissão de dívida no exterior.
123
A hipótese de mobilidade imperfeita decorre principalmente da
suposição de limites ao montante de capital disponível para o país para cada
nível de juros oferecidos.
Dessa forma, quando o governo aumentar a taxa de juros interna para
atrair capitais, aumentará também a taxa de juros externa. Assim, quando o
governo elevar o diferencial, serão atraídos fluxos adicionais de empréstimos,
permitindo que o nível de atividade cresça. Porém, haverá um momento em
que a taxa de juros externa será tão alta quanto a taxa de crescimento das
exportações. Se esse ponto for ultrapassado a relação entre dívida externa e
exportações tenderá a ser explosiva e o país poderá caminhar para a
insolvência. Esse ponto poderia determinar a restrição externa nesse
arcabouço. O gráfico que segue objetiva ilustrar essas relações.
124
Essa conclusão é válida para os tradicionais modelos IS-LM-BP com
liberdade imperfeita de capitais. Mas não é completamente incoerente com
análises que são críticas à existência de uma relação funcional estável entre
juros e entrada de capitais. Desde que suponham que, ceteris paribus, quanto
maior o diferencial, maior a entrada de capitais. Essa conclusão decorreria da
aceitação da perspectiva contida na teoria da paridade juros coberta.
O gráfico abaixo busca ilustrar porque a conclusão anterior, de que o
nível de renda máximo é obtido no ponto onde a taxa de juros se iguala à taxa
de crescimento das exportações, pode ser mantida, mesmo se retirada a
suposição de existência de uma relação funcional estável entre renda, balanço
de pagamentos e juros. Supõe-se que, dependendo das expectativas, os
possíveis pontos de balanço de pagamentos nulo se situam no espaço entre as
curvas BP = 0 mín e BP = 0 máx. A premissa de validade da teoria da paridade
juros coberta sugere que mais juros tendem a atrair mais capital externo. Ela se
expressa no gráfico pela relação positiva entre renda e juros nas duas curvas
que limitam o espaço onde é esperado encontrar uma BP = 0.
y
j
BP = 0
insolvente
solvente
y máx = ponto de
restrição externa
Pleno emprego
j = Exp%
125
3.2.1.6. Questionamentos
As teorias acima citadas são, a princípio, coerentes. No entanto, como
sugerimos, não é tão óbvio a compatibilização – em um modelo
macroeconômico – da teoria da paridade juros com a suposição de mobilidade
imperfeita de capitais ou a substituição imperfeita de ativos, i.e, com uma curva
de balanço de pagamentos positivamente inclinada.
Supondo a teoria da paridade juros coberta, essa compatibilização pode
implicar que os custos de proteção cambial e ou o prêmio de risco crescem
com o crescimento da demanda agregada. A partir delas pode-se levantar
algumas dúvidas: O que determina o custo de proteção cambial? As
expectativas de desvalorização? O risco de desvalorização? Como se calcula
tais variáveis? Porque elas cresceriam monotonicamente com o crescimento da
renda mesmo enquanto o país ainda está solvente? O que determina o risco-
país? O risco de inadimplência? Como se calcula esse risco? Porque ele
cresceria monotonicamente com o crescimento da renda mesmo enquanto o
país ainda está solvente? Como se explica a grande volatilidade dessas
y
j insolvente
solvente Espaço onde pode haver necessidade de aumento dos juros para financiar o BP
Faixa onde pode ocorrer restrição externa
Pleno emprego
j = Exp%
BP = 0 máx BP = 0 mín
Y max possível
126
variáveis? Como se explica as grandes diferenças internacionais no valor
dessas variáveis?
Aparentemente as diversas teorias de paridade juros não explicam, por
exemplo, porque as taxas de juros brasileiras são tão elevadas. Assim, como
não explicam a alta liberdade dos governos em definir suas taxas de juros. As
taxas de juros brasileiras são tão maiores que as taxas de outros países
subdesenvolvidos, que esse fato não pode ser explicado pela teoria da
paridade juros, nem mesmo incluindo a idéia de “risco país”.
3.2.1.7. Explicações ortodoxas
Segundo Arida, Bacha e Lara-Resende (2004: 2), há três explicações
tradicionais de perspectiva de ortodoxa para as elevadas taxas de juros
brasileiras e eles propõem uma quarta. Todas essas explicações se
fundamentam na doutrina das finanças “saudáveis”.
A explicação mais tradicional se baseia na idéia de que, no Brasil,
“despite an expressive primary surplus, the burden of public debt is very high
and puts pressure on the interest rate. The public sector high financing
requirements, generated mainly by its very high debt financing needs, competes
for the scarce available savings, causing the interest rate that clears the goods
market to be very high” (Arida, Bacha e Lara-Resende, 2004: 3).
Essa explicação se baseia no secular e altamente questionável axioma
ortodoxo ainda não demonstrado de que todas as economias estão sempre em
pleno emprego na ausência de intervenção do governo. Como resultado, têm-
se as velhas idéias da doutrina das finanças “saudáveis” de que a poupança
privada “financia” o déficit público e que o nível de poupança pode ser uma
restrição à capacidade do governo definir a taxa de juros. Mostramos no
primeiro capítulo, porque tais idéias não seriam válidas para descrever os
fenômenos econômicos.
A segunda explicação propõe que “there was an unusual series of
adverse shocks, external and internal, in the last couple of years: the blowing
up of the Nasdaq buble, the blackout and rationing of domestic energy supply,
September 11, the collapse of Argentina, and, finally, in 2002 the fear of an
electoral victory of the Workes’ Party and the so-called ‘Lula risk’. The result of
such shocks was that the economic tripod, although adequate, did not yet have
127
the time to produce its results for economic recovery and lower interest rates.
An inflation targeting monetary policy should attempt to smooth interest rate
volatily in its trajectory towards long run equilibrium. Thus in the absence of
additional adverse shocks, it would be only a question of time for the Brazilian
real interest rate to converge to the levels of other stable economies.
Essa explicação certamente não é sustentável, pois as crises externas
acima citadas a princípio deveriam afetar a todos os emergentes,
principalmente a América latina, e, no entanto, apenas as taxas brasileiras se
mantiveram extraordinariamente altas o tempo todo por mais de doze anos.
Além disso, as crises internas citadas passaram há muito tempo, não
justificando a manutenção de taxas tão altas e, paradoxalmente, no período em
que ocorreram, as taxas de juros eram mais baixas do que no período de
inédito boom de crédito para os países emergentes que estamos vivendo há
quase três anos.
A terceria se baseia na hipótese de dominância fiscal em uma economia
aberta.
“A standard proposition in open economy macroeconomics is that a central bank engineered increase in the real interest rate makes domestic government debt more attractive and leads to a real appreciation. If, however, the increase in the real interest rate also increases the probability of default on the debt, the effect may be instead to make domestic government debt less attractive, and to lead to a real depreciation. That outcome is more likely the higher the initial level of debt, the higher the proportion of foreign-currency denominated debt, and the higher the price of risk.
Under that outcome, inflation targeting can clearly have perverse effects: An increase in the real interest in response to higher inflation leads to a real depreciation. The real depreciation leads in turn to a further increase in inflation. In this case, fiscal policy, not monetary policy, is the right instrument to decrease inflation” (Blanchard, 2004: 2).
A hipótese de dominância fiscal sugere que existam dois
equilíbrios possíveis para as taxas de juros, um “bom equilíbrio” e um
“equilíbrio perverso”. A possibilidade desse equilíbrio perverso é a novidade
dessa teoria e ele ocorreria se a dívida pública fosse muito elevada e de perfil
inadequado.
Arida, Bacha e Lara-Resende (2004: 2) consideram que “the double
equilibrium is a theoretically possibility. Its empirical relevance however, has not
yet been established. Moreover, interest rate smoothing considerations may
render it unattractive in practice. A Central Bank concerned with the credibility
128
and the coherence of policies through time would hardly dare to make the
abrupt interest rate cut required to reach the good equilibrium”.
Essa crítica não parece ser cientificamente aceitável, pois não se baseia
em uma inadequação teórica ou empírica, mas na simples oposição a uma
prática política, que sintomaticamente é exposta como fim, quando sabemos
que só pode ser justificada cientificamente como um meio54.
De fato, teoria da dominância fiscal parece ser a melhor das três
explicações tradicionais e melhor do que a teoria que os autores propõem, que
vamos expor a seguir. Mais à frente iremos expor com maior detalhes a versão
que consideramos mais adequada da teoria da dominância fiscal, chamada de
efeito Bresser-Nakano.
Arida, Bacha e Lara-Resende (2004) defendem que as taxas de juros
brasileiras são extraordinariamente altas devido ao que eles chamam de
incerteza “juridicional”55. Esse conceito criado pelos autores busca abarcar uma
enorme quantidade de tipos de incertezas contratuais, jurídicas, políticas,
54 Esses autores propõem uma teoria alternativa à dominância fiscal, que exporemos a seguir. Porém, convém ressaltar o quão precário são seus argumentos para rejeitar a teoria da dominância fiscal. Sugerem que uma teoria possa ser “unattractive in practice”. Sob princípios científicos pode-se dizer que uma teoria seja uma explicação adequada ou não para um determinado evento empírico. Propor que uma teoria deva ser descartada, portanto, não-válida em termos científicos por questionar uma determinada prática política significa explicitar que justificar socialmente tal prática política seja mais importante do que encontrar a verdadeira explicação para o fenômeno empírico (no debate científico, descartar uma teoria significa dizer que considera-se que ela não seja uma explicação adequada. Caso contrário, estar-se-ia explicitando que a escolha de teorias não se baseia em critérios científicos, mas possivelmente nos interesses pessoais ou preconceitos ideológicos do pesquisador.). Ou seja, significa dizer claramente que os pesquisadores estão mais preocupados com a manutenção de certas práticas políticas do que com a ciência em si. O próprio uso do adjetivo unattractive para uma teoria é um sinal indicativo com relação a essa possibilidade. É ainda sintomático que a prática política defendida por esses autores seja manter a credibilidade do Banco Central (governo) frente aos investidores. Essa é a mesma prática que Kalecki (1942) acusa como sendo um dos principais alicerces das teorias das finanças “saudáveis”, qual seja, manter o governo dependente das expectativas, opiniões e temores dos investidores. É interessante ainda notar que os autores não criticam as outras duas explicações tradicionais, apesar de serem teórica e empiricamente muito inferiores à teoria da dominância fiscal. Paradoxalmente criticam apenas a dominância fiscal. Coincidentemente ou não, diferentemente da explicação da dominância fiscal, essas duas explicações tradicionais, assim como a quarta explicação que proporão sugerem que a política monetária brasileira de taxas de juros extraordinariamente altas não está equivocada. Coincidentemente ou não, esses autores foram participantes da formulação do arcabouço de políticas que criou e mantém até hoje a política de juros extraordinariamente altos. Nunca é demais lembrar que essa política, como qualquer outra, beneficia mais a uns do que a outros. Nesse caso particular, convém lembrar o setor financeiro e rentistas é o grande beneficiado por esse tipo de política e que esses autores têm ou tiveram fortes ligações com o setor financeiro. O levantamento dessa suspeição não pode ser um argumento válido para questionar dentro da macroeconomia essas teorias, porém, pode ajudar a entender dentro de uma perspectiva sociológica e política porque e como os questionamentos à atual política do Banco Central têm sido pouco debatidos em certos ambientes acadêmicos. 55 Neologismo.
129
sociais e mesmo econômicas, seriam em grande parte decorrente de um “viés
ideológico” na sociedade brasileira que não respeitaria os credores.
Supostamente essas incertezas contratuais, jurídicas, políticas, sociais e
econômicas seriam maiores no Brasil do que em qualquer outro país, haja visto
que nossas taxas de juros são incrivelmente maiores do que de qualquer outro
país. É difícil imaginar que a incerteza “juridicional” possa ser maior no Brasil
do que qualquer um desses países: Síria, Líbano, Paraguai, Bolívia, Vietnã,
Laos, Camboja, Peru, Indonésia, Equador, Haiti, Ubequistão, Casaquistão,
Rússia, Ucrânia, Irã, Paquistão, China, Índia, Venezuela, Argentina, Colômbia e
países africanos em geral.
As relações causais que os autores buscam desenvolver entre essa
“incerteza juridicional” e as taxas de juros de curto prazo são em geral bastante
nebulosas ou questionáveis, mas na maior parte das vezes se baseiam ou na
idéia de que a incerteza “juridicional” aumenta o prêmio de risco-país ou reduz
a propensão a poupar ou a aplicar em ativos financeiros.
Como vimos, em uma visão de finanças funcionais ou de moeda
endógena em geral, a propensão a poupar ou a aplicar em ativos financeiros
não pode impedir o governo de definir a taxa de juros que quiser.
Quanto ao prêmio de risco-país a questão é mais complexa. Esse
prêmio certamente afeta o volume de capital disponível para aplicar no país e
seu custo de oportunidade. Mas como veremos mais à frente, o prêmio de
risco-país não necessariamente e muito dificilmente afeta as taxas de juros
internas, porque (1) essas podem estar desvinculadas de taxas externas em
decorrência de controles de capitais ou (2) da independência do país em
relação a financiamento externo tomado pelo setor privado ou (3) ainda porque
o prêmio de risco-país é fortemente dependente das taxas de juros internas
que são decididas de forma bastante autônoma pelo Banco Central. Veremos
com maiores detalhes esses argumentos nas próximas seções.
Arida, Bacha e Lara-Resende (2004) parecem encontrar dificuldades
teóricas em relacionar a incerteza “juridicional” às elevadas taxas de juros
brasileiras e dificuldades empíricas em demonstrar porque o Brasil teria uma
incerteza “juridicional” maior do que os países subdesenvolvidos em geral.
Desviando-se desses problemas, os autores, gastam boa parte do
tempo (i) descrevendo detalhadamente todos os tipos de limitações existentes
130
no Brasil ao que eles veriam como condições ideais de liberdade de mercado e
previsibilidade contratual e financeira, i.e, de tipos de incerteza “juridicional”; ou
(ii) tentando mostrar a importância da incerteza “juridicional” para a inexistência
de mercado de crédito privado de longo prazo no Brasil.
Entretanto, parecem superestimar significativamente a importância
dessa incerteza “juridicional” na determinação do crédito de longo prazo. Se a
incerteza “juridicional” fosse realmente tão importante, as taxas de juros de
longo prazo no Brasil seriam superiores às taxas de juros de curto prazo, o que
raramente acontece, desde que o governo resolveu adotar essas taxas de juros
elevadíssimas. Existem títulos públicos de prazos relativamente altos, tanto
prefixados quanto indexados à inflação que quase sempre tem taxas de
remuneração menores do que os títulos pós-fixados diariamente. Resultado
esse que é completamente contraditório com a experiência internacional, a
teoria tradicional e a suposição de que exista uma incerteza “juridicional” que
seja absolutamente determinante na determinação das taxas de juros.
De fato, não há mercado para crédito privado de longo prazo no Brasil.
Mas a explicação precisa ser diversa da oferecida por Arida, Bacha e Lara-
Resende (2004), pois, se a incerteza “juridicional” fosse realmente
determinante, as taxas de juros de longo prazo seriam superiores às taxas de
juros de curto prazo, os empresários nacionais não conseguiriam obter taxas
de juros tão baixas nos mercados de crédito externo (a lei brasileira é co-
soberana nesses contratos), o Brasil não seria o país que mais recebeu
investimento direto externo em relação ao tamanho de sua economia entre as
grandes nações e as taxas de juros brasileiras não seriam as maiores do
mundo.
Arida, Bacha e Lara-Resende (2004) falham em parte por desconsiderar
que que o mercado de crédito de longo prazo, como em qualquer mercado, só
pode operar se além de oferta há demanda. Eles não fazem quaisquer
considerações sobre a demanda por crédito de longo prazo.
Em grande medida não existe crédito de longo prazo no país decorre de
que não há demanda e não pela falta de oferta. A taxa de juros reais de 50% é
comum prevalecer no Brasil ultimamente para empréstimos de curto prazo ao
setor privado. Um empréstimo com o prazo de 30 anos a taxas de juros
equivalentes implica que o pagamento de juros será 19.175.006% maior ou
131
191,175 mil vezes maior em termos reais do que o valor de empréstimo
tomado. Não custa lembrar que nenhum empreendimento no planeta poderia
render tais taxas. Na verdade, mesmo taxas de juros muito mais baixas seriam
dificilmente assumidas por empresários para empréstimos de longo prazo. Na
verdade, em média, as taxas de juros reais dos empréstimos de longo prazo
não podem superar significativamente as taxas de crescimento da economia,
pois se espera-se que a partição dos lucros na renda fique estável, taxas de
juros maiores para empréstimos de longo prazo do que a taxas de crescimento
da economia significam no longo prazo uma inadimplência generalizada desses
financiamentos.
Não há financiamento de longo prazo em reais principalmente porque
ninguém é capaz de pagá-los devido à taxas de juros possível para esses
empréstimos. Ou seja, a taxa de juros básica alta é o principal motivo para a
inexistência de mercado de empréstimos de longo prazo no país. Quando o
país tinha inflação muito elevada, esse era o principal motivo da não existência
de empréstimos de longo prazo, tanto credores quanto devedores se
arriscariam muito, pois as taxas de juros reais e nominais desses empréstimos
para prazos mais longos teriam uma grande incerteza, no período de alta
inflação. Quanto aos outros países subdensenvolvidos a principal razão de
inexistência de empréstimos privados de longo prazo é a alta volatilidade das
taxas de juros, de câmbio e da inflação.
3.2.1.8. Juros altos para maximizar o crescimento?
A explicação mencionada acima para a restrição externa sofre ainda de
alguns outros problemas menos abstratos. As conclusões implícitas nos
modelos do tipo IS-LM-BP diriam que o nível máximo de emprego alcançável
em determinado período seria definido no ponto onde a taxa de juros se
equivaleria à taxa de crescimento das exportações.
Partindo dessa proposição, poderíamos concluir que, em uma política de
maximização do emprego, a taxa de juros seria equivalente à taxa de
crescimento das exportações.
Esse resultado seria incoerente com as experiências históricas mais
bem sucedidas de desenvolvimento, ou seja, de crescimento mais acelerado. É
132
importante notar que essas experiências são tratadas como modelo. Em todas
elas ou talvez quase todas, as taxas de juros prevalecentes foram muito
baixas, frequentemente mais baixas do que a taxa de inflação, e certamente
mais baixas do que a taxa de crescimento das exportações. Podemos, ainda,
dizer que as taxas de desemprego foram em geral relativamente baixas
durante o processo de desenvolvimento, principalmente em seus estágios
finais.
Por último, podemos dizer que uma política de maximização do
crescimento não é compatível com a manutenção de taxas de juros elevadas.
A taxa de juros de longo prazo, principalmente, é um fator essencial para a
competitividade externa de um país. Se isso for verdade, tornar a taxa de juros
equivalente à taxa de crescimento das exportações significaria reduzir a própria
taxa de crescimento das exportações e, portanto, a taxa de crescimento.
Esses problemas decorreriam principalmente de uma inversão de
causalidade criada pela teoria da paridade coberta de juros. Essas teorias
propõem que a relação de causalidade é basicamente do “risco-Brasil”, da
expectativa de desvalorização e do custo de proteção cambial para os juros.
Defendemos que a causalidade no outro sentido – dos juros para o “risco-
Brasil” e para o custo de proteção cambial – também exista e que seja mais
importante.
Aparentemente a suposição de liberdade imperfeita de capitais evitaria
essas contradição com os fatos, pois permitiria explicar porque as políticas
monetárias dos países são autônomas. Entretanto, a suposição de mobilidade
imperfeita de capitais ou substituição imperfeita de ativos associada à teoria da
paridade juros não resolve o problema e cria outros. Ela sugere uma relação
funcional monótona positiva entre o nível de atividade e o custo de proteção
cambial ou o risco país que é difícil de explicar, pelo menos, nas situações em
que o país está solvente. As grandes diferenças de taxas de juros
internacionais continuariam sem explicação adequada.
Nas seções seguintes tentaremos expor uma teoria alternativa para a
determinação da taxa de juros. Essa teoria mostraria que: (1) empréstimos de
curto prazo não são uma forma sustentável de financiamento externo, (2) o
133
governo não precisa manter taxas de juros elevadas para maximizar a taxa de
emprego que pode atingir por período. Essas conclusões serão fundamentais
para, no quarto capítulo, mostrar qual seria o modelo de desenvolvimento
compatível com as finanças funcionais. Ou seja, que permitiria o máximo de
emprego por período com o máximo de crescimento econômico.
3.3. Uma nova visão: Os juros são altos porque são altos
3.3.1. Endogenidade do custo de oportunidade em moeda estrangeira
“Chega de política monetária equivocada. Que volte o bom senso ao Banco Central, e o país aliviado o aplaudirá.” Joaquim Elói Cirne de Toledo
A taxa de juros brasileira tem sido mantida continuamente entre as mais
altas do mundo pelo menos desde o início do plano real. São muitos anos de
vigência dessa anormalidade teórica e empírica que tem causado sérios danos
à sociedade brasileira. Por um lado, essas taxas de juros elevadíssimas
promovem uma tremenda e catastrófica redistribuição de renda em favor dos
rentistas, bancos, e outros capitalistas, por outro lado fragiliza financeira e
competitivamente a indústria brasileira de capital nacional que teve nos últimos
anos seu crescimento fortemente restringido e sua competitividade externa
erodida frente a concorrentes internacionais que conseguem fazer empréstimos
a longo prazo, colocar ações no mercado a custo baixíssimo e financiar
agressivamente seus clientes externos e internos. De fato, é fácil constatar que
o plano real foi o período na história brasileira que mais intensamente se
desnacionalizou a indústria brasileira.
Outra grande tragédia das taxas de juros brasileiras vigentes pelo menos
desde o início do plano real foi a enorme elevação da dívida pública. Essa
passou de aproximadamente 70 bilhões de reais para mais de 700 bilhões de
reais no prazo de menos de 10 anos. Em uma visão de finanças funcionais
essa elevação não traz impactos negativos sobre a capacidade de manter
controlados os juros ou a inflação, mas tem um forte impacto na distribuição de
renda e na distribuição de poder dentro da sociedade.
134
Entretanto, mais espantoso do que os efeitos deletérios dessas taxas tão
elevadas de juros é a aparente indiferença do governo e principalmente a
dificuldade da academia encontrar uma explicação plausível para essas taxas
de juros.
A explicação tradicional sobre a taxa de juros brasileira se baseia no
chamado “risco-Brasil”. O “risco Brasil” é o spread dos títulos públicos
brasileiros negociados em dólar em relação aos preços dos títulos públicos
americanos de maturidade equivalente. Essa explicação é falha, pois países
claramente tão ou mais arriscados que o Brasil como Colômbia, Peru,
Venezuela entre outros possuem “risco-país” significativamente menores. Mais
à frente, desenvolveremos melhor o motivo pelo qual as altas taxas de juros
brasileiras não são decorrentes do chamado “risco Brasil”. Ver as tabelas
abaixo como ilustração.
Taxa de inflação e taxa real de juros para países selecionados em Outubro de 2001
(em geral houve redução dos juros no mundo a partir de então, e o Brasil se manteve como excepcionalidade, como se
pode ver no quadro posterior, apesar de seguir todas as recomendações do FIM)
País IPC (setembro) Taxa de juros CP Taxa real de juros
Turquia 61,8 57 -2,97
Chile 3,9 2,78 -1,08
República Checa 4,7 5,24 0,52
Cingapura 0,5 1,19 0,69
México 6,1 7,02 0,87
Coréia do Sul 3,2 4,37 1,13
Tailândia 1,4 2,9 1,48
Índia (IPC ago) 5,2 7 1,71
Malásia 1,4 3,3 1,87
Israel 2,5 4,47 1,92
Venezuela 12,3 14,75 2,18
Hungria 8 10,76 2,56
Colômbia 8 11,54 3,28
Hong Kong -1,2 2,25 3,49
Taiwan -0,5 3 3,52
Rússia (IPC jul) 20,1 25 4,08
Peru 0,9 5,04 4,1
Indonésia 13 17,96 4,39
África do Sul 4,4 9,12 4,52
Egito (IPC jul) 2,2 8,69 6,35
Filipinas 6,1 13,81 7,27
Polônia 4,3 13,68 8,99
Brasil em outubro de 2001 7,3 19,05 10,95 (!)
Brasil em maio de 2003 8,5 (esperado para o ano) 26,5 16,59 (!!)
Fonte: The economist 27 de outubro de 2001, Citado por Bresser e Nakano (2002).
135
Taxa de juros (em %)
País Dez/00 Abr/03 Variação (%)
Polônia 19 5,75 -13,25
México 17,17 7,77 -9,4
Filipinas 13,5 7 -6,5
Chile 8 2,75 -5,5
Hungria 11,75 6,5 -5,25
Estados Unidos 6,5 1,25 -5,25
Suíça 3,5 0,25 -3,25
Indonésia 14,42 11,18 -3,24
Taiwan 4,63 1,63 -3
Rep. Checa 5,25 2,5 -2,75
Canadá 5,7 3,25 -2,5
União Européia 4,75 2,5 -2,25
Reino Unido 6 3,75 -2,25
Índia 8 6,25 -1,75
Austrália 6,25 4,75 -1,541
Noruega 7 5,5 -1,5
Nova Zelândia 6,5 5,5 -1
Coréia 5,25 4,25 -1
China 5,85 5,31 -0,54
Suécia 4 3,5 -0,5
Japão 0,25 0 -0,25
Brasil 15,75 26,5 + 10,75 (!!!)
Fonte: Carta Capital
Ranking Mundial País Taxa de juros real
Julho de 2005
1º Brasil 14,1 (400% do 2º colocado!!)
2 º Hungria 5,1
3 º Turquia 4,7
4 º Israel 4,7
5 º México 3,9
6 º África do Sul 3,7
7 º Polônia 3,6
8 º Austrália 3,4
9 º Inglaterra 2,8
10 º China 2,5
Fonte: OESP 2º de julho de 2005
Comparação geral (julho de 2005)
Média dos desenvolvidos 0,7
Média mundial (40 países) 1,3 (elevada pelos dados do Brasil)
Média dos emergentes (exclui os desenvolvidos dos 40 países analisados)
2,1 (elevada pelos dados do Brasil)
1º Brasil 14,1 !!
Fonte: OESP 2º de julho de 2005 citando estudo de GRC Visão
Ranking Mundial País Taxa de juros nominais
Julho de 2005
1º Brasil 19,75
2 º Venezuela 17
3 º Turquia 14,3
Fonte: OESP 2º de julho de 2005
136
3.3.1.1. Bresser-Nakano
“A teoria econômica prevê situações de taxas de juros elevadas como as praticadas no Brasil nos últimos 13 anos como uma aberração. Sem dúvida a questão é controvertida, já que envolve os interesses de empresários, trabalhadores e rentistas. Os empresários perdem porque são desestimulados a investir, os trabalhadores perdem porque se reduz o nível de emprego; ganham apenas os rentistas, que receberam, de janeiro a setembro de 2001, o equivalente a 12% do PIB na forma de juros. Na verdade, este já se tornou um jogo de soma menor do que zero, em que todos perdem, inclusive os próprios beneficiários dos juros, já que, além do custo em termos fiscais, taxas de juros dessa dimensão representam uma perda de PIB potencial incalculável, que nos permitem, todavia, supor que todos estariam melhor hoje se não houvessem prevalecido taxas de juros tão altas no país nos últimos 13 anos [grifos nossos]” (Bresser e Nakano, 2002: 165).
Os professores Bresser e Nakano (2002) propuseram a crítica que ficou
mais conhecida até o presente momento à explicação tradicional das taxas de
juros brasileiras. Boa parte dessa crítica se baseia em uma visão ortodoxa de
claro posicionamento de ‘finanças saudáveis’. Porém, outra parte da crítica é
ousada e interessante por negar a explicação usual da teoria da paridade juros,
o que foi uma grande novidade por incluir a questão da restrição externa já
corriqueira nos meios heterodoxos.
Os autores partem também da impossibilidade de explicação das taxas
de juros brasileiras pela teoria da paridade juros, mesmo quando incluído o
risco-país. Eles questionam se o spread de juros chamado risco-país mede o
“risco efetivo do país”. O cálculo diário e a criação desse conceito se deve ao
banco JP Morgan e é apenas a diferença entre a taxa de juros paga nos títulos
públicos brasileiros em dólar e os títulos públicos americanos de maturação
equivalente. Para os autores, o risco efetivo do país seria mais melhor
estimado pelas empresas de classificação de risco do que pelo spread
calculado pelo JP Morgan.
Nesse caso, é interessante notar que a classificação de risco do Brasil e
de nenhum país é uma boa explicação para as diferenças internacionais de
taxa de juros real. Apenas como exemplo podemos citar a seguinte tabela.
137
País Risco Outubro 2001 (ordem descendente)
Taxa real de juros
Indonésia CCC+ 4,39
Turquia B - - 2,97
Rússia B 4,08
Venezuela B 2,18
Peru BB - 4,10
Brasil BB - 10,95 (!)
Colômbia BB 3,28
Índia BB 1,71
Fonte: Bresser e Nakano (2002: 163). Dados coletados na Standard & Poor´s e The Economist.
Como é evidente a partir desses dados, a classificação do risco
brasileiro não pode explicar porque as taxas de juros brasileiras são tão altas,
pois países com classificações de risco próximas, iguais, piores e muito piores
possuem taxas de juros reais significativamente menores do que as brasileiras.
Segundo Bresser e Nakano (2002: 163), “a taxa de juros de curto prazo
determinada pelo Banco Central (...) está muito acima daquela que o mercado
determinaria dada a classificação de risco”. Porém, o diagnóstico é ainda pior
do que aparenta, como veremos mais à frente, a classificação de risco
brasileira, seria melhor, se os juros não fossem tão altos.
Para Bresser e Nakano (2002) a explicação para essas discrepâncias
decorre primordialmente da omissão voluntária do governo brasileiro em fazer
outras políticas econômicas ativas além da política monetária.
“Em termos gerais, a taxa de juros é tão alta no Brasil porque as autoridades econômicas e mais amplamente o sistema financeiro no Brasil tem atribuído à taxa de juros funções múltiplas nos últimos anos. Através dela se busca:
1) Reduzir os investimentos e a demanda agregada quando aquecida, de forma a evitar a pressão salarial e aceleração a inflação
2) Limitar a desvalorização da taxa de câmbio para evitar a inflação de custos;
3) Atrair capital externo para fechar o balanço de pagamentos;
4) Induzir investidores externos a comprar títulos para financiar o déficit público;
5) Reduzir o déficit comercial através do controle da demanda interna
Dadas essas múltiplas funções, uma ou mais delas estará apontando no sentido de uma alta taxa de juros. (...) É evidente que um único instrumento não pode alcançar simultaneamente todos esses objetivos. Além do mais, estes objetivos são contraditórios. A elevação da taxa de juros pode permitir o alcance de um objetivo, mas caminhará na direção oposta aos outros, aprofundando os desequilíbrios macroeconômicos. Por exemplo, quando o Banco Central eleva a taxa de juros para atrair capital externo, pode ajudar a fechar o balanço de pagamentos e controlar a inflação, mas estará, simultaneamente, valorizando a taxa de câmbio, o que levará a déficit comercial e, num prazo maior, ao desequilíbrio do próprio balanço de pagamentos. Isso poderá levar a uma desvalorização mais brusca gerando impactos inflacionários e crises financeiras. Dada a multiplicidade de objetivos, a taxa real de juros ao longo dos últimos anos tem sido a mais alta do mundo.” (Bresser e Nakano, 2002: 162-3).
138
Essa grande quantidade de funções criaria uma tendência à elevação
dos juros e de permanência em altos patamares. Bresser e Nakano ressaltam
ainda o fato do Banco Central repetir exaustivamente o contrário do que
realmente faz; isto é, insistir que a política monetária teria apenas uma função:
a meta de inflação. Os autores, porém, acreditam que não haja contradição
entre que o Banco Central diz ser sua meta uma meta única e o que eles dizem
ser metas múltiplas. Porque “todas elas [as metas], afinal, podem ser
justificadas pela taxa de inflação, dada a interdependência das variáveis
econômicas” (Bresser e Nakano, 2002: 162).
Os cinco objetivos que eles dizem ser buscados pelo Banco Central
teriam como finalidade última o controle da inflação, e isso causaria a
tendência ao aumento dos juros. Como é evidente na maior parte do tempo,
algum desses objetivos demandaria aumento da taxa de juros, mesmo porque
eles são contraditórios. Porém essa multiplicidade de objetivos levaria quase
sempre a um aumento dos juros ou manutenção dos mesmos em patamares
altos.
Os autores destacam ainda que o Banco Central erra por adotar de
forma muito rígida os indicadores de inflação. “Na definição de meta as
experiências mostram que os bancos centrais procuram estabelecer como
meta uma taxa de inflação de longo prazo e, ao invés da taxa efetiva de
inflação utiliza-se a ‘core inflation’, isto é, eliminam-se os elementos transitórios
da inflação efetiva. Com isso alcança-se maior estabilidade do produto, e
portanto, maior crescimento” (idem: 168).
Isso significa que países desenvolvidos visam mais a tendência da
inflação e menos metas rígidas de inflação para anos calendários arbitrários,
“procurando sempre agir de forma suave” (idem: 169). O que não deixa de ser
surpreendente. Pois o Brasil é mais sensível a choques externos do que as
grandes nações desenvolvidas e, pior, esses choques impactam mais
decisivamente a inércia inflacionária na economia brasileira, pois nessa os
preços das tarifas públicas são indexados fortemente à inflação passada e ao
câmbio56.
56 E ainda mais surpreendente é que o Brasil, como nação pobre e com alto nível de desemprego e sub-emprego, deveria ter uma política monetária menos conservadora.
139
“É preciso ter claro que a meta relevante de inflação deve ser a de
médio e longo prazo, pois acelerações e desacelerações transitórias não
exigem mudança na taxa de juros” (idem: 169). Bresser e Nakano sugerem que
esses aumentos evitáveis dos juros acabam impactando negativamente nos
chamados fundamentos do país e, portanto, auto-justificando e chancelando de
forma perversa a manutenção de juros permanentemente elevados.
“Compreendemos, assim, porque duas economias com fundamentos macroeconômicos semelhantes podem praticar taxas de juros muito diferentes, ou então porque países com ratings de crédito semelhantes podem ter patamares diferentes de juros. Os países, como o Brasil, que atribuem à taxa de juros muitos papéis acabam no ponto de equilíbrio perverso dessa taxa [isto é, a política monetária se acomoda a juros mais altos]” (idem: 167)
Os autores talvez não tenham explorado ou explicitado completamente
essa questão. É fundamental para esse resultado que o Banco Central adote
uma meta de inflação suficientemente apertada e rígida para que qualquer sinal
de turbulência em alguma variável indique algum risco de descumprimento da
meta e faça acender a luz vermelha. Como o Banco Central
conservadoramente quer correr o mínimo de risco possível de estouro da meta,
qualquer sinal que justifique o aumento dos juros, o banco central usa como
justificativa para esse aumento.
Se o governo atua conservadoramente – graças a metas de inflação
difíceis de serem cumpridas – e dá mais importância às evidências de aumento
da inflação do que de redução da inflação e, além disso, utiliza muitos
indicadores de risco de inflação, que muito raramente estariam todos indicando
necessidade de redução da inflação, ele quase sempre se sentirá compelido a
aumentar os juros ou mantê-los elevados.
É preciso ter claro que essa conclusão não seria possível se fossem
válidas as teorias da paridade juros. Pois, se o governo aumenta
exageradamente a taxa de juros, pela teoria, o risco país e a expectativa de
desvalorização não seriam afetados. Ora, essa medida implicaria em uma
entrada infinita de capitais no país. Nessa situação, manter o câmbio fixo ou
valorizá-lo seria tarefa fácil, portanto, a inflação seria rapidamente controlada.
Assim, logo acabaria a razão para manter juros elevados.
Para Bresser e Nakano isso não acontece porque a manutenção de
juros elevados acaba resultando em aumento do spread de risco-país e do
“risco país efetivo”. Como sugerem os autores, para complicar ainda mais a
140
situação, os juros elevados têm implicações na economia. E essas implicações
vão sempre no sentido de piorar alguns dos próprios indicadores que o Banco
Central usa para medir o cumprimento de seus múltiplos objetivos.
Assim, como o próprio Banco Central diz que acredita que os juros são
altos porque o déficit e dívida pública são altos, quando eles aumentam ou
mantêm excessivamente alta a taxa de juros, isso reforçará a justificativa para
que o risco-país seja alto e, portanto, para que os juros permaneçam altos.
Bresser e Nakano (2002) dão uma atenção especial para o efeito sobre
a dívida pública, mas não param aí. Os juros elevados aumentam a entrada de
capitais, principalmente em momentos de calmaria, valorizando o câmbio e
aumentando o endividamento externo. Esses devedores em dólar certamente
usarão sua força política para que o câmbio não se desvalorize e, quem sabe,
continue se valorizando. Esses fatores fazem aumentar o pagamento de juros e
lucros ao exterior, assim como reduzem o saldo da balança comercial. O déficit
em conta corrente faz aumentar a vulnerabilidade externa do país, que também
é meta visada pelo Banco Central, sendo justificado novamente o risco-país e a
manutenção de juros abusivos. Ademais, a vulnerabilidade externa deixa o país
sensível a crises cambiais, que são exatamente os momentos onde os juros
mais sobem.
Dessa forma, a manutenção de juros elevados faz aumentar déficit
público, em conta corrente e as dívidas públicas e externa, que são os
principais indicadores das empresas de classificação de risco. Mas a própria
taxa de juros do país é um indicador usado pelas empresas de classificação de
risco. “A taxa de juros interna contamina a taxa externa [risco-país + taxa FED].
(...) Se o governo brasileiro estabelece uma taxa de juros de curto prazo tão
alta, deve ser mesmo um país arriscado” (idem: 164). Assim, a “redução de
juros, por sua vez, diminuirá, de fato, a probabilidade de ‘default’, que,
virtuosamente, se refletirá na percepção de risco do financiador” (idem: 167).
Nesse ponto, Bresser e Nakano (2002) vão além da simples questão
fiscal e propõe uma relação mais direta entre juros e risco-país, ainda que essa
não seja plenamente correspondida com sua própria teoria, onde se está mais
preocupado com o “risco-país-efetivo”, dependente dos “fundamentos”,
principalmente fiscais, que seriam deteriorados pelas taxas de juros altas. A
141
relação mais direta que sugerem em algumas partes desvincula o risco-país
diretamente dos fundamentos.
“Em síntese, o risco-país é muito subjetivo e acaba sendo identificado, na prática com o diferencial entre a taxa internacional e a taxa interna de juros, ao invés de refletir o risco efetivo-país. Em outras palavras, uma elevação da taxa interna de juros, qualquer que seja a razão, acabará sendo percebida como um aumento no risco-país e não o contrário. Dessa forma, ironicamente, países que praticam taxas de juros baixas acabam sendo percebidos como tendo risco-país baixo, ainda que seus fundamentos sejam piores que de um outro país com taxas de juros elevadas. Esse é o caso do Brasil, que acaba sendo percebido como tendo risco-país elevado. (...) E depois da persistente manutenção da taxa de juros em um nível muito elevado é natural que surja o medo de redução, e que esse nível se torne uma convenção. Ora, essa é uma convenção perversa, e precisa ser superada” (idem: 168).
Uma explicação mais precisa para essa relação direta será desenvolvida
por Toledo (2002).
3.3.1.2. Cirne de Toledo
Bresser e Nakano (2002) dão importância à necessidade de um saldo
em conta corrente positivo, assim, reconhecem a importância da restrição
externa, o que não é incomum entre autores heterodoxos. São inovadores e
felizes ao destacarem o equívoco da política monetária que diz só visar à meta
de inflação; mas na prática, criar diversos objetivos meio e atua sobre eles de
forma sempre conservadora. Acertam também quando mostram que os juros
elevados causam a deterioração das variáveis que justificam a própria escolha
de juros elevados.
Discordamos, porém, que o aumento do endividamento público possa
significar, de fato, maior risco para dívida pública ou que o país precise adotar
políticas para aumentar o que chamam de poupança. De qualquer forma,
temos que destacar a grande inovação que sugerem que é a inversão da
causalidade da teoria da paridade juros. Essa inversão se dá quando se
reconhece que o governo aumenta autonomamente a taxa de juros e isso
acaba aumentando o risco país.
Entretanto, achamos que a causalidade proposta não é a mais
adequada por colocar um peso indevido ao aumento da dívida pública e,
portanto, não explicaria o fenômeno real. Nesse caso, consideramos mais
interessante a proposta de Toledo (2002), que sugere uma relação direta entre
a taxa de juros e risco-país.
142
Toledo (2002) propõe uma explicação inovadora para a taxa de juros
brasileira e que pode ser resumida pela seguinte proposição: “os juros não são
altos porque o risco-Brasil é alto, mas ao contrário: o risco-Brasil é alto porque
os juros são altos – aliás, excessiva e equivocadamente altos”. (Toledo, 2002:
138).
Toledo (2002: 139) começa sua argumentação enfatizando que o
denominado “risco-país” não é uma taxa de risco, mas um spread. “Ele é
definido e calculado pela simples diferença entre duas taxas de juros: a do
país, e a dos títulos do governo americano (ambos na mesma moeda), usada
como padrão”.
Segundo Toledo (2002: 139), a taxa de juros de um país pode variar
sem nenhuma mudança em seu risco efetivo, pois elas decorrem da política
monetária ou da expectativa com relação à mesma.
“ As taxas de juros de curto prazo subiram e caíram fortemente nos EUA ao longo dos últimos anos, mas nem por isso nenhum analista tresloucado decretou que houvera aumento ou queda do ‘risco-EUA’. Ou o aumento das taxas de juros nos EUA, ao longo do primeiro semestre de 1999 e 2000, teria sido devido às incertezas da eleição presidencial e a um “efeito-Gore” [em analogia ao chamado ‘efeito-Lula’ nas eleições de 2002], indicando que ‘os mercados’ avaliavam como pouco confiável e não market friendly o candidato democrata, progressista? E a rápida e significativa queda dos juros após a (demorada e incerta) apuração dos votos, seria devido a um ‘efeito-Bush’, indicando a ‘grande credibilidade’ do republicano, como sempre conservador?
As mudanças nos juros de curto prazo foram atos de política monetária do FED; as mudanças nos juros de longo prazo, por sua vez, refletiram apenas as expectativas sobre o comportamento da própria política monetária. Assim, direta ou indiretamente, tanto os juros de curto como os de longo prazo foram determinados pelo caminho viável esperado da política monetária, como disse Keynes na ‘Teoria Geral...’”.
Supostamente, segundo a forma tradicionalmente usada do conceito, o
risco-Brasil seria uma medida que indicaria o quanto o mercado está
precificando o risco de inadimplência da dívida pública em moeda estrangeira e
o risco de volatilidade da taxa de juros desses títulos.
Toledo mostra que a precificação do risco de calote da dívida pública
não é capaz de explicar porque as taxas de juros brasileiras são tão altas. Para
isso ele escolhe um título público que possui apenas risco de inadimplência, ou
seja, um título público que não possui risco de alterações nos juros. Esse título
é a LFT (letra financeira do tesouro nacional), “cujo rendimento diário é igual ao
seu custo (médio) de oportunidade, ou de ‘carregamento’, que é a taxa Selic-
referencial”. (Toledo, 2002: 140).
143
O spread de risco desses títulos, em 28 de fevereiro de 2001, com
vencimentos em 2003, 2004, 2005 e 2006 era respectivamente de 0,017%a.a.,
0,023% a.a., 0,026% a.a. e 0,027% a.a. – quando o risco-Brasil era de 7,5%
a.a.. Isso significa que, naquele período, o risco de inadimplência explicaria
apenas 0,36% do “risco-Brasil” para títulos de 5 anos. Situação que não se
modificou significativamente desde então.
Como o risco de inadimplência percebido pelo “mercado” é muito
pequeno e muito estável no tempo, o risco de volatilidade da taxa de juros
também não pode ser explicado por modificações no risco de inadimplência.
Dessa forma, a única explicação possível para a volatilidade da taxa de juros
seriam as modificações das taxas de juros de curto prazo, definidas pela
política monetária.
Toledo (2002: 142) conclui assim que “os juros futuros, no Brasil, assim
como nos EUA, têm basicamente refletido apenas a expectativa de política
monetária e não aspectos de risco”.
Com essa afirmação, o autor quer dizer também que a taxa de juros dos
títulos públicos brasileiros em dólar no mercado internacional é definida
basicamente pela política monetária do BC em reais.
Segundo a teoria econômica tradicional essa proposição seria
certamente um absurdo. Por que canal haveria essa ligação entre os juros
internos e os juros dos títulos públicos brasileiros negociados nos mercados
externos?
Toledo (2002: 142) tem uma explicação para esse canal. A explicação é
baseada em dois fatores. Primeiro, “como é evidente, os juros sobre os títulos
denominados em dólar, no Brasil (como as NTN-Ds), e os títulos
transacionados externamente (como os C-bonds, os Globals, etc.) tendem a
ser equiparados. Isso ocorre devido à arbitragem, possibilitada pela livre
movimentação de capitais. Segundo, a volatilidade da taxa de câmbio faz com
que o custo do ‘hedge’ (ou expectativa de desvalorização) seja relativamente
estável – ainda que elevado. Assim, quando sobem os juros futuros em reais,
sobem junto os juros em dólares, aumentando seu ‘spread’ (ou o risco-Brasil)”.
Essa explicação realmente contraria a forma em que estamos
acostumados a pensar a questão. Aceita a existências dessas duas operações
144
de arbitragem – entre NTN-D e C-bond e entre títulos públicos em reais e NTN-
D casados com venda de dólar futuro – ainda persiste uma dúvida.
Sem qualquer alteração do real risco de inadimplência do país, o
aumento da taxa de juros em reais levaria, segundo Toledo (2002), por
arbitragem, a um aumento da taxa de juros dos títulos em dólar, e, portanto, a
um aumento do spread chamado de “risco-Brasil”. Ou seja, um aumento da
taxa de juros leva a um aumento da rentabilidade dos títulos brasileiros sem
aumento do risco real, já que o C-Bond caiu apenas pela ação da arbitragem.
Ora, a teoria econômica tradicional diria que, nessa situação, a demanda pelos
títulos brasileiros deveria aumentar, o que, dada a liberdade de movimento de
capitais, corresponderia a uma inundação de capitais externos na economia
brasileira. Entretanto, isso não acontece. Por que?
“Na impossibilidade prática de mensurar corretamente o verdadeiro risco de um país, que é uma entidade econômico-política de absoluta complexidade, e na ausência de padrões históricos e estáveis para as taxas de juros, os investidores externos agem como nós: ou seja, equivocadamente interpretam um aumento do ‘spread’ pago pelo Brasil como um aumento de risco. Como uma coisa compensaria a outra, não há razão para os juros altos atraírem mais capitais” [grifo nosso] (Toledo, 2002).
Concluí-se assim que, de acordo com Toledo (2002), o aumento dos
juros leva a um aumento do risco-Brasil, mesmo sem qualquer alteração do
risco real do país. Mas o aumento do risco-Brasil faz com que o aumento dos
juros não implique em maiores entradas de capitais, como a teoria tradicional e
o governo a princípio imaginariam.
Pelo contrário, segundo Toledo, as entradas de capitais tendem a
diminuir com o aumento dos juros. Esse efeito seria explicado em parte pela
maior taxa de desconto – que incorpora o risco-Brasil – aplicada sobre os
projetos para investimento externo diretos no Brasil e, portanto, uma redução
dos fluxos desse investimento. Além disso, como Bresser e Nakano (2002),
Toledo defende que a elevação dos juros aumenta não só o risco-Brasil, como
também o verdadeiro risco do país, graças ao aumento do passivo externo
líquido e da dívida pública. Embora nesse segundo ponto haja uma explícita
divergência entre as posições do Toledo e as defendidas nesta tese, no geral a
inversão da equação da paridade juros coberta é uma grande inovação que
consideramos muito apropriada para explicar as relações entre as taxas de
juros internacionais.
145
3.3.2. Uma Crítica à paridade juros
3.3.2.1. introdução: Heterodoxia tradicional e paridade juros
A visão sobre a relação entre juros e balanço de pagamentos que inspira
a teoria da paridade juros é, em geral, aceita inclusive em meios heterodoxos.
Segundo Robinson (1952: 137) “When laisser faire ruled [i.e., havia livre
movimento de capitais], an important influence on the rate of interest in any one
country was the state of it’s balance of payments, and the objective of
monetary policy was control of the foreign exchanges. When the break-up
of the world capital market, and exchange control, have largely insulated
interest rates in each country”.
De acordo com Medeiros e Serrano (2001: 123), “as entradas de capital
de curto prazo estão associadas a um diferencial da taxa de juros (doméstica e
externa) grande o bastante para compensar as desvalorizações esperadas na
taxa de câmbio e o prêmio de risco do país receptor”.
Já Miranda (1998: 3) considera que, “o piso do juros nominal no Brasil é,
no mínimo, igual ao juros básico americano acrescido do prêmio de risco Brasil
e da depreciação mensal do real em relação ao dólar americano.
Conseqüentemente, sempre que aumente o juro americano ou haja
desvalorização mensal do real, o juros interno deve subir para manter a
rentabilidade dos títulos em dólares e, assim, garantir o financiamento externo
do déficit em transações correntes e o nível das reservas cambiais. Note que
este processo ocorre independentemente de qualquer necessidade de
administrar a demanda interna para conter eventuais pressões inflacionárias ou
minimizar o déficit do balanço comercial. A restrição é, antes de tudo, de
financiamento”. Miranda está se referindo ao período pré-99, mas suas
proposições seriam válidas também para o período posterior, entre outros
motivos, porque o governo precisa controlar a taxa máxima de desvalorização,
para manter a inflação em níveis aceitáveis.
O consenso sobre essa questão era muito grande no final dos anos 90 e
nos primeiros anos do segundo governo FHC. Alguns autores adicionavam, no
máximo alguns detalhamentos empíricos na fórmula tradicional.
146
“(...) assumiu-se que os juros brasileiros tinham de ser altos o suficiente para, mantido o regime de câmbio, continuar financiando o déficit em transações correntes através da atração de capitais externos. Era preciso, portanto, colocar os juros internos num patamar que compensasse os juros externos mais as expectativas de desvalorização, o risco país e demais custos (diferença entre os impostos domésticos e os externos sobre aplicações financeiras, restrições à entrada e saída de capital, etc.)” (Barros de Castro e Studart, 1999: 17).
Bastos (2001: 236), mais sucintamente, não ressalta o risco país. Para
ele, o saldo positivo “na conta de capitais, (...) como se sabe, depende
diretamente do valor do diferencial de taxas de juros internas e externas, que é
uma variável de política econômica”. Ou ainda, “A taxa de juros nominal teria
que ser suficientemente grande para cobrir a expectativa de desvalorização
cambial” (Bastos, 2001: 230)57.
De fato, a elevação da taxa de juros é uma das medidas mais
importantes, mais eficazes, mais rápidas e de menor resistência política (pelo
menos na atual conjuntura internacional) para reduzir no curto prazo a
demanda líquida de dólares. Considera-se normalmente que a taxa de juros
tem a função de: (1) reduzir a liquidez dos especuladores em dólar, (2)
aumentar o custo de oportunidade dos mesmos58, (3) elevar a rentabilidade dos
emprestadores e tomadores de financiamentos externos, (4) reduzir a demanda
agregada e conseqüentemente as importações líquidas.
Se um país não necessita atrair financiamento externo e nem corre esse
risco, não será necessário usar a taxa de juros para reduzir a demanda líquida
por dólares. Todavia, a princípio, parece que esse instrumento precisa ser
largamente utilizado, se o país necessita atrair financiamento externo, como o
Brasil. Porém, os diferenciais de taxas de juros entre os países são tão grandes
e persistentes que é difícil explicá-los, principalmente para países de risco
aparentemente semelhantes.
Podemos concluir que a visão heterodoxa, normalmente, considera que
a taxa de juros elevada seria decorrente da necessidade de obter empréstimos
57 Ver ainda Serrano (1998).
58 Os itens 1 e 2 tem a importante função de conter a especulação cambial, que em países com liberdade de movimento de capitais, pode ter muita importância. A “acumulação de reservas [nos anos 90] forneceu ao ‘policy maker’ margem de manobra para execução de um plano de estabilização baseado na estabilização da taxa de câmbio. Entretanto, por maior que fosse esse estoque, e ainda mais se resultasse da liberalização das contas de capital, um ataque especulativo poderia dilapidá-lo em pouco tempo, como mostrou a crise cambial do final de 1998” (Bastos, 2001, 235).
147
externos para pagar amortizações e déficit em conta corrente, quando o
governo se abstém de restringir o movimento de capitais.
Pelo nosso ponto de vista, essa perspectiva é muito superior à visão
ortodoxa tradicional. Entretanto, consideramos que, por herdar certos
equívocos da teoria da paridade juros, não explica adequadamente porque há
tão grandes diferenciais de taxas de juros entre países com necessidade de
financiamento externo similares – como no caso brasileiro comparado a outras
nações latino americanas.
3.3.2.2. Endogenidade do custo de proteção cambial
As conclusões da teoria de Toledo (2002) explicam certas
situações, mas não outras. A partir de 2003, aparentemente, essas conclusões
entram em contradição com os fatos. Essa teoria sugeriria que a elevação dos
juros implicaria em aumento do risco-país. Porém, ocorreu o contrário. Nesta
seção, tenta-se postular que a teoria de Toledo (2002) pode ter falhado ao
considerar o custo de proteção cambial independente da taxa juros. Será
proposto aqui que o custo de proteção cambial também é endógeno ao
diferencial de taxas de juros. Assim, o aumento do diferencial pode impactar
apenas parcialmente ou mesmo não impactar o risco-país.
Essa teoria pode explicar porque ocorreu uma queda significativa do
risco-país a partir do final de 2002 ao mesmo tempo em que subiram os juros e
nem assim houve uma entrada “infinita” de capital externo no país. A seguir
tentaremos mostrar porque o custo de proteção cambial é endógeno aos juros.
A teoria da paridade juros coberta propõe que:
j internacional + êf
j nacional
Essa teoria é sustentada por evidências empíricas (Froot e Richard,
1990).
O pensamento ortodoxo supõe que o custo de proteção cambial é
definido exogenamente de alguma maneira pelo mercado a partir da
148
expectativa média de desvalorização cambial e da expectativa de volatilidade
cambial.
A teoria da paridade poder de compra considera que em um regime de
câmbio flutuante o câmbio real se ajustaria para equilibrar o balanço de
pagamentos. Nessa situação, o câmbio spot seria exógeno à determinação dos
juros em uma situação de equilíbrio. O mesmo aconteceria se for vigente o
regime de câmbio fixo.
Dessa forma, supondo essas premissas, a “taxa de juros internacional”
define a taxa de juros dos outros países de moeda forte. Vamos usar o Euro
como exemplo:
j dólar + êf
j euro
O processo se daria pela arbitragem internacional de taxas de juros.
Assim, arbitradores de taxas de juros pegam dinheiro emprestado na moeda
hegemônica e compram títulos na moeda doméstica, se o custo de proteção
cambial for menor do que o diferencial de taxas de juros. Caso contrário, fazem
a operação inversa.
Por essa teoria, a arbitragem internacional faria com que a taxa de juros
dos países se igualasse à taxa de juros da moeda utilizada como meio de
pagamentos internacionais mais o custo de proteção cambial.
Dessa forma, essa teoria implicaria que as taxas de juros convergiriam
para a taxa internacional, de forma endógena. Concluí-se, portanto, que os
bancos centrais não têm autonomia para fixar as taxas de juros.
Entretanto, “in the open economy, central banks still can set short-term
interest rates” (Lavoie, 2000)59. Segundo Lavoie (2000), “The increase in the
rate of interest is not the endogenous result of the capital outflow. Rather, it is
an economic and political decision of the central bankers. The central bank
does have a choice”.
Supondo que os bancos centrais possuem realmente autonomia para
fixar a taxa de juros, as teorias da paridade de juros estariam com problemas.
Porque, se o custo de proteção cambial é definido pela expectativa de
59 Lavoie M. (2000).
149
desvalorização e de volatilidade cambial, como supõe a teoria, ele muito
raramente iria coincidir com os diferenciais de taxas de juros definidos, a partir
das metas de inflação ou de desemprego, pelas políticas monetárias dos
diversos países.
Entretanto, como afirmamos logo acima, as evidências empíricas
parecem corroborar a existência da equivalência entre o custo de proteção
cambial e o diferencial de taxas de juros, pelo menos, entre as moedas fortes,
que não pagam “risco-país” significativo.
j dólar + êf j euro
Dados os pressupostos, só podemos concluir daí que a teoria sobre a
definição do custo de proteção cambial está equivocada.
A teoria da paridade juros sofre de problemas empíricos e de um sério
problema de incompatibilidade teórica. O problema empírico é que o diferencial
de taxas de juros raramente tem correspondência tão estrita com as reais
expectativas de desvalorização cambial. Caso contrário, as moedas não
oscilariam tanto e a em velocidades tão grandes, pois os diferenciais de taxas
de juros entre os países centrais são muito pequenos e estáveis. Ademais, a
estabilidade do sinal dos diferenciais indicaria que, sendo válida a teoria de que
o custo de proteção cambial é determinado pela expectativa de desvalorização
cambial média, a moeda de países de juros altos deveria se desvalorizar
continuamente em relação a outras. E teriam, portanto, diferenças de inflação
equivalentes aos diferenciais de juros60.
Além disso, pode-se observar empiricamente que as taxas de juros são
decididas ativamente pelos Bancos Centrais de forma relativamente
independente e seguindo critérios de controle sobre a inflação ou o
desemprego. Ou seja, observa-se grande autonomia dos bancos centrais na
definição das taxas de juros.
Essa teoria pode ser incoerente com parte da teoria econômica ortodoxa
que defende a liberdade de ação da política monetária sobre a taxa de juros
como política necessária para o controle da inflação ou do desemprego.
60 Esse certamente não é o caso brasileiro. Antes de 94 o diferencial de juros era muito inferior ao diferencial de inflação, pós 94 o diferencial de juros se torna muito superior ao diferencial de inflação. Esse também não é o caso da maioria dos países.
150
Entretanto, a arbitragem com juros e câmbio futuro existe e movimenta
boa parte dos negócios com câmbio no mundo, possuindo um efeito econômico
importante. Há razões para acreditar que essa arbitragem leva realmente à
equiparação entre as taxas de juros do país hegemônico mais o custo de
proteção cambial com a taxa de juros dos outros países desenvolvidos.
Todavia, a relação de causalidade seria inversa à relatada pela teoria
tradicional, ou seja:
j euro – j dólar
êf
A relação de causalidade indicada pela seta significa que os
diferenciais de taxas de juros determinam o custo de proteção cambial via ação
da arbitragem.
Essa conclusão trivial quando entendemos que (1) a política
monetária é autônoma e (2) a arbitragem iguala o custo de proteção cambial e
o diferencial de juros.
Essa arbitragem opera da seguinte maneira: se o custo de
proteção cambial para passivos em dólar e ativos em euro ‘êf’ 61 for menor do
que o diferencial de taxas de juros futuras, os bancos pegam dinheiro
emprestado em dólares, compram títulos em euros e compram dólar no futuro
para garantir a proteção contra o risco cambial. Se o custo de proteção cambial
‘êf’ for maior do que o diferencial de taxa de juros, fazem a arbitragem no
sentido contrário. O resultado dessas operações de arbitragem pode ser
expresso formalmente pelo conjunto de inequações abaixo62:
j euro – j dólar > êf > j euro – j dólar
Ou seja:
61 Exatamente o inverso do custo de proteção cambial para passivos em euro e ativos em dólar.
62 Para sermos mais precisos, deveríamos incluir o custo de transação e a margem de lucro mínima requerida para essas transações, entretanto, isso poluiria a fórmula para acrescentar um conteúdo pouco relevante.
151
j euro – j dólar
<>
êf
j euro – j dólar
êf
O custo de proteção cambial gravita bem próximo a esse valor. Isso se
deve a uma característica dos mercados financeiros que vamos chamar de
‘princípio da arbitragem dominante’. A utilização desse princípio significa que
se está pressupondo que sempre a demanda por operações de arbitragem é
elástica e suficientemente maior do que a demanda por operações
especulativas e de proteção financeira (hedge) a ponto das primeiras definirem
os preços dos ativos. É importante ressaltar a utilização dessa premissa,
porque, ao contrário do que possa parecer, ela não é tão óbvia ou geral quanto
uma visão ortodoxa suporia. Há situações em que a arbitragem não é perfeita,
imediata, majoritária ou possível. Um exemplo são os momentos onde ocorre
alto risco de centralização cambial. Mas em condições normais, o mercado de
câmbio é talvez a situação em que a arbitragem funciona da forma mais
próxima a esse princípio.
No caso da arbitragem específica com câmbio futuro e juros, que nos
interessa aqui, esse princípio implica que a demanda líquida de câmbio em
uma determinada direção (apostando na desvalorização ou valorização) de
especuladores e demandantes de proteção são sempre menores do que a dos
arbitradores.
Nesses mercados, como em quaisquer outros, é óbvio que os
arbitradores nunca fazem negócios entre si, eles fazem negócios com
especuladores ou demandantes de proteção que acham ou temem que o
câmbio variará mais do que a diferença entre o câmbio presente e futuro, ou
custo de proteção cambial.
O ‘princípio da arbitragem dominante’ diz que a demanda por operações
de arbitragem será “infinita” toda vez que os especuladores ou demandantes
152
de proteção cambial demandarem câmbio futuro a preços que superem o
diferencial entre as taxas de juros63.
Esse princípio parte da idéia de que as operações de arbitragem perfeita
não entram na gestão financeira do banco como operações que criam uma
necessidade de patrimônio liquido. Ao contrário, operações especulativas, por
serem passíveis de trazer prejuízo, criam uma necessidade de cobertura de
patrimônio líquido. Assim o volume máximo das mesmas é limitado pelo
volume de patrimônio líquido, se os bancos querem limitar o volume máximo de
perda em relação ao patrimônio líquido; e eles querem, pois esse é a principal
regra para manutenção da solvência.
Concluímos, portanto, que a autonomia dos países em definir pelo
menos no curto prazo sua taxa de juros, aliada ao princípio da arbitragem
dominante, que é comum às visões ortodoxas, faz com que o diferencial de
taxa de juros determinaria o custo de proteção cambial e não o contrário, como
normalmente se imagina.
As decisões de arbitragem são passivas. Elas dependem do excesso de
oferta ou demanda de câmbio futuro por especuladores e hedgers. Dessa
forma, não haveria movimentos de câmbio causadas por decisões cobertas de
arbitragem de juros, mas pelas decisões de especuladores ou demandantes de
proteção. Essa conclusão seria válida, mesmo se o governo elevar a taxa de
juros, pois, a arbitragem faz com que essa medida implique em aumento
imediato do custo de proteção cambial.
3.3.2.3. Endogenidade do custo de proteção cambial e risco-país
“O estrategista-chefe do BNP Paribas, Alexandre Lintz, explica que a proteção contra as oscilações do dólar está cara porque o cupom cambial – o juro em dólar no país – está muito baixo” (Valor, segunda e terça feira, 1 e 2 de novembro de 2004: A3).
Vimos que, entre países de moeda forte e que não possuem
significativa dívida externa em moeda estrangeira, os diferenciais de taxas de
63 Esse princípio só vale quando a arbitragem é perfeita e há liquidez para fazer e passivos indexados por qualquer dos 2 ativos envolvidos na relação de troca. Não vale, portanto, para mercados futuros de commodities, pois não há oferta elástica para aluguel de commodities (empréstimos indexados na variação da commodity), portanto, um dos sentidos das operações de arbitragem fica comprometido.
153
juros determinam o custo de proteção cambial via arbitragem com câmbio
futuro.
Em países que possuem dívidas públicas significativas indexadas
em moeda estrangeira, a arbitragem acontece de forma diferente e gera
resultados também diferentes.
Se há uma grande demanda para aquisição de dólar futuro para
especular contra uma moeda, o valor do dólar futuro tende a ultrapassar
ligeiramente o diferencial de taxas de juros, o que cria oportunidade para
arbitradores ganharem com essa pequena ultrapassagem.
Esses arbitradores venderão dólar no futuro, pegarão dinheiro
emprestado em moeda nacional e aplicarão esse dinheiro em títulos públicos
americanos. Assim, impedirão que a grande demanda por dólares futuros faça
o valor do custo de proteção cambial ultrapassar significativamente o
diferencial de juros:
j euro – j dólar
êf
Em países que possuem um grande volume de títulos de dívida externa
em dólar, a princípio, os arbitradores poderiam obter maiores lucros, se, ao
invés de adquirir títulos públicos americanos, comprassem títulos públicos
nacionais indexados ao dólar que pagam maiores taxas de lucros.
Se o risco de inadimplência desses títulos for reduzido para o prazo da
operação, a maior parte dos arbitradores seguiriam esse caminho, quando, o
que alteraria o valor do custo de proteção cambial. Esse ficaria mais barato.
A operação de arbitragem inversa também seria alterada. Entre países
de moeda forte, se a demanda líquida por dólar no futuro for muito elevada, o
valor do dólar no futuro cai ligeiramente abaixo do diferencial de juros. Nesse
caso, os arbitradores comprarão dólar no futuro, pegarão emprestado em dólar
e aplicarão em títulos nacionais.
Em países que possuem volumes significativos de dívida pública
negociada em dólar e que paga spread sobre os títulos americanos, a
operação será diferente. Esse spread, chamado de risco-país determina o
custo de oportunidade em dólar e o custo de captação em dólar para
aplicações em títulos nacionais é maior do que para aplicação em títulos de
154
países de moeda forte com baixo risco de inadimplência da dívida externa.
Dessa forma, essa operação ficará mais cara para os arbitradores.
Podemos assim concluir que, em países que pagam spread sobre sua
dívida externa em moeda estrangeira, a seguinte relação, a arbitragem com
câmbio futuro determinará o seguinte valor para o custo de proteção cambial:
j euro – j dólar – risco-país
êf
Onde:
risco-país = spread de risco-país
Esse resultado não modifica decisivamente as conclusões obtidas na
seção anterior de que as operações de arbitragem não podem ser induzidas
diretamente por aumentos dos juros.
3.4. A variação dos juros pode ser mais importante do que o diferencial
Tentamos mostrar que a NFEDcp positiva torna a pressão cambial
persistente e cria uma tendência à desvalorização da taxa de câmbio, se o
governo não intervir. Os defensores das teorias da paridade juros acreditam
que a manutenção de diferenciais internacionais de juros é um grande incentivo
para a movimentação de capitais e, portanto, é uma política adequada e segura
para financiar o balanço de pagamentos de um país. Entretanto, essa crença
parece estar equivocada.
Vamos propor que os diferenciais possuem, em geral, um papel muito
secundário sobre a movimentação de capitais no curto prazo e que a
autonomia da política monetária é muito maior do que suporia a teoria da
paridade juros coberta.
A tabela abaixo tenta ilustrar que os diferenciais não guardariam relação
com as diferenças de risco e de expectativa de desvalorização entre os
países64. Podemos perceber que esses diferenciais se alteram
significativamente em períodos relativamente curtos, 2 anos e 5 meses. Pela
64 É preciso notar que alguns países como China e Índia possuem controles de capitais e, portanto, os movimentos de capitais não podem restringir a política monetária.
155
tabela é possível perceber que os diferenciais entre os países sem risco de
inadimplência da dívida externa65, isto é, sem risco-país, são bastante
díspares. É interessante notar ainda que, no espaço de 2 anos e 5 meses, os
EUA, que regem a “taxa de juros internacional”66 passam de 12o para 3o na
classificação, invertendo assim o sinal do diferencial para muitos países.
Classificação dez/2000
país
diferencial de juros
nominais de curto prazo dez/2000
Classificação
abril/2003 país
diferencial de juros de curto prazo abril/2003
Classificação dez/2000
1 Japão
-6,25
1 Japão -1,25 1
2 Suíça
-3
2 Suíça -1 2
3 Suécia
-2,5
3 Estados Unidos 0
12
4 Taiwan
-1,87
4 Taiwan 0,38 4
5
União Européia
-1,75
5 Rep. Checa 1,25
6
6 Rep.
Checa -1,25
6 União Européia 1,25 5
7 Coréia
-1,25
7 Chile 1,5 15
8 Canadá
-0,8
8 Canadá 2 8
9 China
-0,65
9 Suécia 2,25 3
10 Reino Unido -0,5
10 Reino Unido 2,5
10
11 Austrália
-0,25
11 Coréia 3 7
12
Estados Unidos
0
12 Austrália 3,5
11
13
Nova Zelândia
0
13 China 4,06
9
14 Noruega
0,5
14 Noruega 4,25 14
15 Chile
1,5
15 Nova Zelândia 4,25 13
16 Índia
1,5
16 Polônia 4,5 22
17 Hungria
5,25
17 Índia 5 16
18 Filipinas
7
18 Hungria 5,25 17
19 Indonésia
7,92
19 Filipinas 5,75 18
20 Brasil
9,25
20 México 6,52 21
21 México
10,67
21 Indonésia 9,93 19
22 Polônia
12,5
22 Brasil 25,25 20
Fonte: Carta Capital
3.4.1. Diferencial de juros, fluxo ou estoque?
Em outra seção, foi proposto que os diferenciais de juros não podem
atrair capital externo para aplicações sem risco cambial ou, ao menos, sem
risco de crédito do setor privado. Os investidores privados têm limitações com
65 Todos, com as possíveis exceções de Brasil, México, Filipinas e Indonésia. 66 A taxa de juro internacional é a taxa de juros em dólar para títulos sem risco de inadimplência.
156
relação ao valor máximo de capital que podem aplicar em operações
arriscadas, portanto, aumentos das taxas de juros não atraem um volume
“infinito” de capital externo.
Essa conclusão é similar à encontrada nos modelos tipo IS-LM-BP que
supõem mobilidade imperfeita de capitais. Esses modelos consideram que os
diferenciais atraem um montante finito de capitais, mas a manutenção de
elevados diferenciais permanece sendo uma política adequada para
financiamento do balanço de pagamentos. Para esses modelos, os diferenciais
atraem um fluxo estável de capitais que poderia financiar um déficit estável nas
outras contas do balanço de pagamentos.
Porém, segundo Tisang (1975: 195) essa proposição encerra um grave
equívoco teórico, mesmo sob uma perspectiva ortodoxa, e ainda que a
manutenção de diferenciais realmente for um grande incentivo à entrada de
capitais. “[O modelo Mundell-Fleming] contained a serious weakness, (...) the
assumption that international capital flows can be treated as a function of the
level of the domestic interest rate compared with foreign interest rates. (…)
Portfolio allocation theory (...) would clearly indicate that it is the changes in the
interest differential between the domestic and foreign money markets that is
responsible for the volatile capital flow between nations, rather than the size of
the differential. In other words, capital flows are, to a large extent, adjustment of
capital stocks held in different financial centers in response to changes in the
yields at those centers. Such adjustments would come to an end after a period
of time if the yields of different centers stay constant, even though at different
levels” (Tsiang, 1975: 195) 67.
Tsiang levanta uma questão fundamental. Sob qualquer teoria de gestão
de carteiras de investimento, os diferenciais de juros implicam em ajuste de
estoques de carteiras e não em fluxos permanentes. Isso significa que mesmo,
se o aumento do diferencial amplia a entrada de capitais no país, mantido esse
diferencial, o fluxo de entrada será decrescente e tende a zero ou a um valor
muito pequeno.
Toda a carteira é gerida como um estoque de ativos. Se reduz o risco,
aumenta a liquidez ou a remuneração de algum ativo em particular, os
67 Esse ponto foi inicialmente levantado por Willet e Forte (1969) e Levin (1972).
157
investidores tendem a aumentar sua proporção no total das carteiras. O
aumento da remuneração de um determinado ativo em particular não pode
aumentar indefinidamente a proporção da carteira investida naquele ativo,
devido ao aumento do risco da carteira. Os especuladores buscam limitar o
risco máximo em que seu capital está exposto.
Assim, o aumento do diferencial poderia até ampliar o peso dos títulos
de um país nas carteiras internacionais, mas não criar um fluxo permanente
que possa ser considerado significativo.
Essa conclusão é válida, mesmo se os investidores internacionais
decidirem se alavancar para comprar os títulos do país que ofereceu um
acréscimo na remuneração. Vimos que os investimentos em títulos em uma
moeda financiados por passivos indexados ou registrados em outras moedas é
sempre um investimento arriscado, por isso os agentes tem limites de
aplicação alavancada ou não-alavancada nesse tipo de operação. Essa
proposição decorre da necessidade de reservar uma parte do patrimônio
líquido para cobrir perdas potenciais decorrente de investimentos arriscados.
Como o patrimônio líquido é finito, o volume de investimento em um ativo
arriscado também é. Isso talvez pudesse não ser verdade apenas para o caso
de arbitragens perfeitas. Nessa circunstância, como não há risco e não há
outras exigências de patrimônio líquido, não há limites para a aplicação.
Entretanto, esse não é o caso.
Para Tsiang (idem: 198-199), em uma situação de steady state, o
diferencial positivo de juros poderia ou não atrair um fluxo positivo de capitais,
porém o valor líquido seria muito pouco significativo em comparação aos fluxos
decorrentes de ajustamentos de estoques em resposta a mudanças nos
diferenciais.
Tsiang (1975: 196-7) ressalta ainda que o aumento da taxa de juros
pode implicar em aumento de pagamento total de juros pelo país. Isso significa
que maiores diferenciais de juros possam implicar um balanço de pagamentos
pior e não melhor em uma situação de steady state.
Dessa forma, Tsiang (1975) sugeriria que para manter um elevado nível
de atração de capitais, o país precisaria estar sempre aumentando os
diferenciais. O autor, portanto, só pode mesmo concluir que a política
monetária não deve ser usada para o “equilibrar” um balanço de pagamentos.
158
Ele sugere que essa seria mais uma função da política fiscal do que da política
monetária. O nível de atividade deveria ser ajustado em um ponto em que o
balanço de pagamentos se “equilibrasse”. Todavia, Tsiang (1975: 207) lembra
que a política fiscal não pode ser usada para ajustar problemas de balanço de
pagamentos decorrentes dos voláteis e transitórios ajustes de estoques das
carteiras internacionais. Nesse caso, a política monetária poderia cumprir seu
papel.
Tsiang (1975) propõe uma teoria muito bem fundamentada e uma crítica
realmente arrasadora aos modelos derivados da versão original Mundell-
Fleming. Sem sair do arcabouço ortodoxo, ele propõe a coerência entre as
teorias de gestão de portfolios e os modelos de macroeconomia aberta. Suas
conclusões de política são muito interessantes e não divergem
significativamente das nossas, apesar de propormos também outras causas
para justificar a maior relevância das variações da taxa em relação aos
diferenciais.
Tsiang (1975) acredita que os diferenciais importam sim, mas por pouco
tempo. Acreditamos que os diferenciais importam basicamente para os
empréstimos externos de longo prazo. Para as operações classificadas como
pertencentes às FFEcp, os diferenciais tem uma importância secundária, como
veremos a seguir. Mas antes de explicar a relação da taxa de juros com as
FFEcp, vale sublinhar que o argumento de Tsiang é válido para o ajustamento
de estoque de empréstimos de longo prazo, ou seja, um aumento do diferencial
inicialmente tende a elevar o estoque de dívida externa privada de longo prazo
do país, depois esse efeito é significativamente menor, como defende o autor.
Porém, o efeito do diferencial sobre os fluxos de empréstimos externos de
longo prazo não deve ser desprezado. Não como condição suficiente para
manter esses fluxos elevados, mas como condição necessária em certos casos
particulares. Os fluxos de empréstimos de longo prazo podem ser muito
significativos, e eles podem exigir que o diferencial de juros de longo prazo seja
positivo. Porém, o que eleva esses fluxos e pode fazê-los acompanhar as
necessidades de financiamento externo são (1) a manutenção de uma boa
perspectiva de crescimento econômico, (2) uma taxa real de câmbio
competitiva e (3) um bom nível de solvência externa. Dadas essas condições,
um pequeno diferencial pode ter um papel complementar. Mais adiante
159
voltaremos a essa questão. Por hora, pretendemos mostrar porque a variação
das taxas de juros é o que interessa para as FFEcp.
3.4.2. Taxas de juros e o financiamento externo de curto prazo
As finanças “saudáveis” propõem que a dívida pública em moeda
nacional deva ser preferencialmente de longo prazo e prefixada, porque assim
seria reduzido o “risco fiscal” do governo, ou seja, o risco de ter um déficit
maior do que o esperado. A partir de uma visão de finanças funcionais, é óbvio
que essa motivação está equivocada. Como vimos, para as finanças
funcionais, déficit não é um mal nem um bem, é apenas o resultado numérico
de certo tipo de contabilidade. Se um governo adota as finanças funcionais, o
déficit público seria apenas resultado da pouca disposição a gastar do setor
privado ao nível de atividade escolhido pelo governo.
Dessa forma, ocorrer um déficit maior do que o esperado não pode ser,
de fato, um risco, mas apenas um resultado sem maior significado valorativo.
Sabemos também que os países mais ricos possuem, em termos gerais,
dívidas públicas de maiores prazos de vencimento e sempre prefixadas, ao
contrário de certos países subdesenvolvidos.
Isso significa que a dívida pública dos países mais prósperos possui
maior risco de juros para seus detentores. Levando em consideração o
conhecimento e a aceitação pelos governos dos países mais pobres em
relação à posição consensual das finanças públicas tradicionais, que
recomenda dívidas públicas com prazos mais longos possíveis e prefixadas, e
que isso implica em dívida com maior risco para seus possuidores, só podemos
concluir que esses países não conseguem aumentar o prazo médio de suas
obrigações.
Certamente para o setor privado, quanto maior a rentabilidade e menor o
risco mais interessante é o título. Por outro lado, para o governo não é um
verdadeiro risco as possibilidade de aumento do pagamento de juros. Mesmo
porque é o próprio governo quem decide as taxas de juros. Mas ainda para
quem não concorda com as finanças saudáveis, faz sentido suspeitar que seja
interessante para o governo que a dívida pública tenha maior prazo quanto
160
possível e que seja prefixada, ou seja, que a dívida pública tenha maior risco
de juros para o setor privado quanto possível.
De fato, há diversas razões para corroborar essa suspeita.
Provavelmente, para quem compreende a importância da restrição externa,
talvez as razões mais importantes devem estar relacionadas com o papel dos
juros sobre a taxa de câmbio.
Qualquer que seja o papel, decorre principalmente das diferenças na
sensibilidade do valor da dívida às variações da taxa de juros. Para títulos
prefixados com critério de amortização idêntico, quanto maior o seu prazo,
maior é o efeito dos juros sobre seu valor de mercado. Esse resultado da
variação da taxa de juros pode ter um impacto muito grande sobre o
movimento especulativo de capitais. A especulação cambial em particular pode
ser eficazmente combatida com oscilações da taxa de juros.
3.4.3. Pressão cambial e elevação dos juros
É de concordância geral que quanto maior o diferencial da taxa de juros
maior é o custo de oportunidade da especulação cambial. Porém a importância
do diferencial como instrumento contra a especulação cambial ainda é muito
sobreestimado. “It’s clear (...) that an interest rate policy [contra a especulação]
needs to be drastic: a 1% change in the exchange rate within a month will be
sufficient to cover 12% interest rate differential” (Lavoie, 2000). Em
praticamente todos os países os diferenciais são uma pequena fração desses
12%68. Em países com câmbio flutuante, esse altíssimo diferencial, equivalente
a menos de 1% ao mês (anuais de 12%), tende a não compensar os grandes
riscos cambiais envolvidos.
Entretanto, é muito comum que países com câmbio flutuante possuam
diferenciais de taxas de juros anuais com relação aos juros americanos de
menos de 1%. Nesse caso, o diferencial em um mês é de menos do que 0,1%.
Certamente não compensa o risco cambial de uma operação descasada69.
68 Diferenciais de taxas de juros nesses níveis só existem no Brasil ou em países com inflação elevada. Mas nesses últimos o diferencial entre taxas de juros reais é baixo como seria normal. 69 Nem os diferenciais de juros brasileiros são capazes de impedir uma especulação forte, quando os agentes estão mais seguros de que o câmbio se desvalorizará. Para compensar a rentabilidade da expectativa de desvalorização cambial de 1% em um dia seria necessária um diferencial de juros anual
161
Nesse sentido, é de se esperar que, pelo menos, em momentos onde há
grandes expectativas de desvalorização o efeito do diferencial seja pouco
relevante. “The central bank may then pursue a deliberate restrictive monetary
policy, pushing up overnight rates of interest, not so much to induce incoming
capital flows, but rather to increase the cost of outgoing capital transfers
(Coulbois, 1982: 200)”. (…) By hiking up rates of interest, the central bank wish
to increase the cost of send funds abroad, and it increase the cost of
speculation” (Lavoie: 2000).
Uma variação da taxa de juros pode causar grandes impactos nas
oportunidades de aplicação de capital pode reduzir a riqueza, a liquidez e
aumentar as perspectivas de rentabilidade com a aquisição de títulos
prefixados, ações em moeda nacional. Vamos avaliar esses efeitos uma a um.
O aumento da taxa de juros reduz o valor presente dos títulos de renda
fixa e, portanto, reduz riqueza líquida do setor privado. Essa redução da
riqueza é mais do que proporcional à redução do valor dos títulos, porque o
setor privado possui também um passivo elevado. Como o patrimônio líquido é
menor do que o ativo, qualquer redução nesse último reduz mais do que
proporcionalmente o primeiro. Essa redução da riqueza pode reduzir as
disponibilidades para especulação com a aquisição de dólares.
Mas a redução da riqueza tem seu efeito multiplicado via diminuição da
liquidez. As ações de empresas de primeira linha e os títulos de renda fixa – e,
com papel destacado entre eles, as obrigações públicas – subtraídos dos
passivos de curto prazo fazem parte do chamado saldo de tesouraria que é o
colchão de liquidez das empresas. O aumento da taxa de juros, além da
redução do valor desse saldo, diminui a liquidez também por rebaixar a
capacidade de assumir novos passivos. A capacidade de assumir novos
passivos depende do patrimônio líquido, que também foi diminuído. Assim,
uma redução do valor do saldo de tesouraria e da capacidade de assumir
novas dívidas, reduz a disposição do setor privado em se arriscar em
operações arriscadas de especulação cambial.
Porém, o mais importante efeito do aumento da taxa de juros sobre a
especulação cambial decorre da criação de futuras perspectivas de redução da
de aproximadamente 3595%. Claro que a taxa de juros nunca precisará chegar a esse nível, porque taxas não tão grandes já seriam capazes de afetar as expectativas cambiais.
162
própria taxa. A possibilidade de redução da taxa de juros gera uma expectativa
de lucro extraordinário com a posse de títulos nacionais de renda fixa e ações.
Se o banco central reage a uma corrida cambial com o aumento da taxa de
juros, ele cria, em algum nível, expectativas de que a taxa de câmbio deixará
de se desvalorizar. Essas expectativas não costumam ser, a princípio,
majoritárias; mas, se o câmbio parar de desvalorizar de repente ou se o
governo voltar a aumentar a taxa, elas poderão se tornar significativas ou até
majoritárias. Assim, poderão surgir sérias dúvidas sobre a possibilidade de
retorno ou continuação do processo de desvalorização. Como as taxas de juros
foram elevadas para impedir que o dólar permaneça aumentando de valor,
quanto maior a possibilidade de estancamento desse processo, maiores são as
possibilidades de redução da taxa de juros.
A redução da taxa de juros de longo prazo implica em valorização
aproximadamente proporcional dos títulos de renda fixa de longo prazo e
ações. Nessa situação, os especuladores terão um motivo adicional para
comprar títulos de renda fixa e ações denominados em moeda nacional, o que
tende a aumentar o fluxo de capitais para o país. À medida em que esse fluxo
positivo afeta as cotações do dólar, aumenta as expectativas de valorização da
moeda nacional ou de novas reduções nos juros e, portanto, atrai mais capital.
Assim, a expectativa de redução da taxa de juros atrai capital para
o país para aplicações em ações e títulos prefixados de longo prazo. Da
mesma forma, uma expectativa de aumento da taxa tende a levar a fuga de
capitais externos das mesmas aplicações. Mas essa não é a única maneira em
que a variação da taxa de juros afeta o movimento de capitais.
Os agentes que estão comprados em moeda estrangeira no futuro (seja
por meio de contratos a termo, futuro ou em swaps) ganham quando há uma
pressão cambial, mesmo que essa pressão não resulte em desvalorização da
moeda local. Isso ocorre porque as operações de arbitragem fazem com que a
elevação da taxa de juros futura aumente a cotação do dólar negociado no
futuro.
“Define-se uma oportunidade de arbitragem como uma operação na qual
se realiza um ganho certo sem correr nenhum risco”. (Garcia, 1995: 4) Nas
operações de arbitragem, o agente obtém lucro econômico, ao comprar e
vender um ativo em diferentes mercados.
163
Como vimos, caso o dólar no mercado futuro estiver muito caro em
relação ao dólar à vista, será lucrativo para um banco tomar emprestado no
mercado interbancário para comprar dólar à vista e vendê-lo no mercado
futuro.
Mercado à vista Mercado futuro
Compra Vende
Vende Compra
Essa operação será lucrativa sempre que o diferencial entre o dólar no
mercado futuro e à vista for maior do que a diferença entre as taxa de juros
entre a moeda nacional e o dólar.
Por outro lado, se o diferencial entre o dólar no mercado futuro e à vista
for inferior à taxa de juros do interbancário, o banco terá um lucro mais alto e
manterá a mesma posição em moeda estrangeira, por meio de operações de
arbitragem. A operação consistiria em vender dólar à vista e utilizar esse
dinheiro para emprestar no interbancário e comprar dólar no futuro. Essa
operação permitirá ao banco um lucro mais alto do que se ele comprar títulos
cambiais de curtíssimo prazo.
Dessa forma, como já havíamos concluído, o diferencial entra a cotação
do dólar no mercado à vista e futuro tende a ser próximo da diferença entre a
taxa de juros em moeda local e estrangeira.
Assim, se são aumentadas a taxa juros e o diferencial, é aumentada
também a diferença entre o dólar futuro e presente. Se o câmbio à vista não
cair de valor no mesmo montante, o dólar futuro se valorizará, portanto, os
agentes comprados em dólar no futuro obterão ganhos.
Assim, a expectativa de aumento da taxa de juros induz os
especuladores a comprar dólar futuro e, portanto, eleva a pressão cambial. Por
outro lado a expectativa de redução da taxa de juros induz especuladores a
vender dólar futuro e reduz-se a pressão cambial.
164
3.4.3.1. Manipular os ganhos de capital: uma oportunidade para os
especuladores e para a política econômica
Concluímos na última seção, que independentemente no nível inicial da
taxa de juros, o aumento dessa pode estancar o processo de desvalorização
cambial, se é capaz de induzir a expectativa de retorno da taxa a seus
patamares anteriores no futuro. Esse processo se realiza por diversos canais,
que tentamos descrever.
Entretanto, precisamos ressalvar que a doutrina ortodoxa, baseada na
teoria dos mercados eficientes, poderia se opor a essa explicação do papel da
variação da taxa de juros sobre a especulação cambial.
Sabe-se que o principal instrumento da política monetária
contemporaneamente são os juros de curto prazo. Sugerimos que o papel da
variação dos juros sobre a especulação cambial depende principalmente da
capacidade do governo manipular as taxas de juros de longo prazo e as
expectativas de retorno no mercado acionário.
Essas proposições são consideradas controversas. O argumento da
teoria dos mercados eficientes diria que apenas o diferencial internacional de
taxa de juros poderia induzir a entrada de capitais, e não a variação em si,
como estamos propondo.
Mercados de capitais eficientes significa que “o preço dos títulos refletem
todas as informações disponíveis sobre esses títulos e novas informações são
imediatamente incorporadas a esses preços” (Fama, 1970: 383). Segundo essa
teoria, “o preço [dos ativos] se ajusta antes que o investidor tenha tempo de
negociar o título” (Brasil, 1997).
Nos mercados eficientes, os agentes seriam capazes identificar todas as
novas informações relevantes e avaliar imediatamente o impacto dessas sobre
o valor presente líquido dos ativos. Além disso, todos os agentes avaliariam as
novas informações de maneira idêntica, o que implica que todos teriam o
conhecimento idêntico em relação aos métodos de avaliação de risco e de
rentabilidade. Isso significa que a atribuição de risco é igual para todos os
ativos e, portanto, as carteiras de todos os investidores e capitalistas seriam
proporcionalmente iguais, sendo que o a única diferença seria o tamanho da
165
mesma70. Por conseqüência, levando as premissas às últimas conseqüências,
todos os investidores pessoas físicas e jurídicas possuiriam carteiras que
englobariam todos os ativos do mundo.
Não nos interessa aqui discutir sobre a validade empírica dessas ou de
outras premissas explícitas ou implícitas ou das conclusões da teoria dos
mercados eficientes. Podemos dizer que adotamos, neste trabalho, o mesmo
arcobouço de Keynes (1936, cap. 12, 13 e 15) sobre o comportamento
individual nos mercados financeiros.
Esse arcabouço poderia explicar fenômenos empíricos que a teoria dos
mercados eficientes encontra grande dificuldade, como o aumento significativo
do volumes negociados nos mercados secundários em dias onde emergem
informações importantes.
Mais especificamente aqui, nos interessa explicar como a perspectiva de
queda na taxa de juros pode aumentar a atração de capitais para um país, o
que seria incoerente com a teoria dos mercados eficientes.
Nessa teoria, o surgimento de uma nova informação, como a queda das
taxas de juros básicas, seria imediata e completamente incorporada ao valor
dos títulos de renda fixa de longo prazo e nas ações. Assim, não seria lucrativo
adquirir esses títulos na esperança de que aumentarão de valor, pois o
aumento já foi realizado sem a necessidade de nenhuma operação de compra
ou venda, bastando apenas uma mudança nas ofertas de compra e venda.
Em oposição, propomos aqui que a redução das taxas de juros básicas
não será imediata e completamente incorporada nos preços dos títulos de
longo prazo e outros ativos. Esse resultado seria decorrente da imensa
variedade de opiniões, teorias e dúvidas sobre como incorporar essa nova
informação e principalmente como interpretar outras informações,
conhecimentos e cenários a partir desse novo dado. Por exemplo, a queda dos
juros futuros e o aumento do preço das ações depende se a redução dos juros
implicará em novas reduções ou não, se será bem recebida nos mercados
cambiais ou não, etc.
70 Não poderíamos afirmar com 100% de confiança que essa proposição é uma condição necessária para que a atribuição de risco de todos os ativos seja igual. Porém é muito difícil encontrar outra condição suficiente. Seria muita coincidência uma situação onde as carteiras fossem diferentes, particularmente tão diferentes como são no mundo real, e ainda assim a atribuição de risco de todos os ativos fossem iguais para todos os agentes. Sobre essa questões ver Soros (1988) ou Galvão dos Santos G. (1997).
166
Para simplificar, vamos explicar nossas proposições apenas com relação
aos títulos públicos de longo prazo, pressupondo que o mesmo vale para os
títulos privados e ações, pois nesses as divergências de avaliação são ainda
maiores, reforçando o nosso argumento.
É esperado que uma nova informação que implique em redução dos
juros futuros – por exemplo, o anúncio dessa intenção pelo governo –
aumentará a demanda por títulos públicos nacionais, inclusive por parte de
estrangeiros, e também em uma redução na oferta. Pela teoria dos mercados
eficientes, esses efeitos seriam imediatos e ninguém seria capaz de se
aproveitar lucrativamente da nova informação, pois todos os agentes
reavaliariam os títulos de forma idêntica. Todos os antigos ofertantes
aumentariam o valor de suas ofertas na mesma proporção e os todos antigos
demandantes estariam dispostos apenas a aceitar preços também
proporcionalmente maiores. Isso significaria praticamente a manutenção do
antigo equilíbrio entre oferta e demanda.
Entretanto, essa não é uma boa teoria para mercados secundários ou
mercados de capitais, pois suas premissas e conclusões incorrem em vários
problemas empíricos, entre as quais a já citada incapacidade de explicar os
grandes aumentos de volume negociado em momentos de surgimento de
novas informações relevantes.
É mais razoável supor que o mercado reage de forma assimétrica a
novas informações. Ainda que parte dos antigos ofertantes avalie as novas
informações de forma muito parecida com parte dos antigos demandantes,
outros especuladores podem fazê-lo diferentemente. Há agentes que podem
dar um peso menor à nova informação por terem dúvida sobre sua efetividade,
ou sobre suas reais conseqüências, ou outro tipo de dúvida possível. Há
também agentes que simplesmente não utilizam ou não saberiam utilizar de
maneira precisa tal tipo de informação, mesmo que não haja dúvidas de sua
efetividade, porque dão menor importância àquele tipo informação, como é o
caso de especuladores grafistas ou com horizontes de investimento muito
curtos. A diferença de horizonte de investimento é, aliás, uma importante fonte
de divergência de avaliação.
Essa dispersão da forma de tratamento da nova informação – com
alguns agentes absorvendo de forma mais lenta, reticente, diferente ou
167
simplesmente desconsiderando nova informação – abre espaço para que uma
parte dos agentes tente lucrar com a utilização da nova informação, pois o
preço não variará no mesmo montante do valor de sua nova avaliação.
Se o governo anuncia que pretende reduzir os juros, uma parte dos
especuladores pode utilizar essa informação de forma plena e calcular um valor
esperado significativamente superior para os títulos e aumentar assim suas
ofertas. Uma parte dos potenciais vendedores do título pode ter a mesma
avaliação e reajustar suas ofertas no mesmo montante do ajuste dos
demandantes, não induzindo assim novos negócios. Porém, outra parcela dos
agentes podem não mudar ou mudar muito pouco suas antigas ofertas de
venda, de forma a permitir um aumento no número de transações. As tabelas
abaixo tentam resumir essas idéias.
168
Exemplo: anúncio de um processo de redução das taxas de juros 1) Premissas de um mercado de capitais eficiente
Ofertantes de títulos Demandantes de títulos
Sensíveis ao anúncio do governo, assim como a qualquer outra notícia relevante
Reduzem as ofertas de venda, exigindo preços maiores.
Aumentam as ofertas de compra, aceitando preços maiores
Resultado: aumento imediato e completo do preço dos títulos no montante suficiente para manter “equilibrados” os mercados de títulos. Nessa situação, não há incentivos a um aumento das transações.
2) Ausência das premissas de mercado de capitais eficiente, o que significa que as expectativas são diferentes, assim como as carteiras e, portanto, o risco dos agentes
Ofertantes de títulos Demandantes de títulos
Sensíveis ao anúncio do governo Reduzem as ofertas de venda, exigindo preços maiores
Aumentam as ofertas de compra, aceitando preços maiores
Pouco sensíveis ao anúncio do governo por serem grafistas ou tiverem dúvidas sobre a validade de notícias desse tipo, ou porque estejam apenas esperando um aumento dos preços dos títulos para vender, ou qualquer outro motivo
Não reduzem as ofertas de venda
Não aumentam as ofertas de compra.
Resultado: o efeito das mudanças das expectativas não ocorre completamente de imediato. É necessário o aumento do volume negociado para que haja modificações nos preços no montante necessário para tornar completo o efeito sobre os preços dos títulos. A seta grande indica a direção das compras que aumentam com as novas informações.
Se, entre esses novos demandantes, houver investidores “comprados
em dólar”, haveria um aumento na entrada de capitais no país. Assim, novas
informações que gerem expectativa de redução na taxa de juros nacionais,
podem aumentar a entrada de capitais de curto prazo no país com a
perspectiva de lucrar com a queda da taxa de juros. Nesse caso, as aplicações
não aumentariam apenas em títulos públicos prefixados de prazos maiores,
mas também em títulos privados e ações.
É importante ressaltar que novas informações relevantes, como essa,
geram fluxos líquidos positivos e não entradas e saídas de capitais mais ou
menos equivalentes. Informações relevantes em geral têm interpretações
concentradas em uma determinada direção. Por exemplo, se o governo
anuncia o desejo de redução dos juros a grande maioria ou mudará pouco sua
avaliação ou mudará no sentido de aumentar o peso sobre a hipótese de
queda dos juros. Poucos farão o movimento inverso, reduzindo o peso sobre a
169
hipótese de queda dos juros, como se, ao contrário da maioria, achassem que
o governo anunciasse o contrário do que desejaria.
Dessa forma, espera-se que as expectativas de redução dos juros
possam atrair capital para o país. Resta saber se essa atração pode ser
significativa. Acreditamos que sim.
Os capitais são atraídos por boas oportunidades de lucro em condições
de risco aceitáveis. Uma possibilidade de lucro que pode mover grandes
volumes de capital em curto prazo são as expectativas de desvalorização
cambial. As modificações dos juros geram expectativas de rentabilidade e risco
relativamente parecidas, talvez com um horizonte de investimento um pouco
maior. Nesse sentido, é de se esperar que possam mobilizar volumes de
capital similares. Portanto, é de se esperar que essas expectativas sobre as
taxas de juros possam ter peso significativo no volume de capital de curto
prazo movimentado.
Mas nosso argumento vai além. A expectativa de mudança na taxa de
juros tem uma forte correlação com a pressão cambial. Portanto,
principalmente em regimes de câmbio flutuante, essas oportunidades se
reforçam mutuamente. Se há expectativa de desvalorização, há também
expectativa de aumento dos juros e ambas as expectativas favorecem a saída
de capitais, pois, como vimos, fazem lucrar ou deixar de perder quem apostou
em outras moedas. Essas variáveis são tão correlacionadas que, dependendo
das circunstâncias, as expectativas de aumentos dos juros podem aumentar as
expectativas de desvalorização. Isso acontece diretamente pela consciência
pelos investidores de que ocorrerão perdas nos mercados de ações e títulos de
longo prazo e ganhos com a elevação do dólar futuro.
Além disso, as modificações dos juros são uma sinalização do governo
sobre quando a desvalorização cambial está excessiva ou não, o que altera as
expectativas cambiais.
Essa proposição vale principalmente para o câmbio flutuante. Se o
câmbio é fixo, as expectativas de desvalorização se concentram nos momentos
de crise mais aguda. Nesse regime, o movimento de capitais estará
normalmente mais atento às expectativas de mudança dos juros do que nas
expectativas de desvalorização. Mesmo porque os juros são mais voláteis sob
esse regime em situações de liberdade de movimento de capitais.
170
Em regime de câmbio fixo a pressão cambial se manifesta basicamente
sobre os juros. Mas em ambos os regimes, o aumento da pressão cambial
tende a induzir à saída de capitais, pois ou gera expectativa de desvalorização
ou expectativa de aumento dos juros e conseqüente perda de valor dos títulos
prefixados, ações e aumento do valor de contratos de dólar futuro.
É preciso reconhecer, porém, que em regimes de câmbio fixo com baixo
risco de ataque cambial ou em regimes de câmbio flutuante quando é muito
reduzido o risco de desvalorização, o diferencial de juros se torna mais
relevante, desde que significativo. Mas, mesmos nessas situações, a variação
dos juros continua sendo o principal instrumento para manipular os fluxos de
capitais no curto prazo (1) pelo efeito-Tsiang, (2) pelo efeito dessa variação
sobre as perdas de capital e a liquidez, (3) pela sinalização de disposição do
governo em defender o câmbio, (4) pela sinalização sobre a disposição do
governo em utilizar os juros, ou (5) pelas perspectivas de valorização de títulos,
ações e contratos de câmbio futuro.
Assim, uma vez aumentada a taxa de juros no montante esperado pelo
mercado, o fluxo se inverte pela atração de capitais que buscam lucrar com a
expectativa de redução da pressão cambial, que geraria valorização do câmbio
e ou redução dos juros de longo prazo. A tendência para prazos maiores,
porém, continuará sendo determinada pela NFEDcp.
Esses mecanismos não são muito intuitivos. O aumento da taxa de juros
só atrairá capital, se, a partir de um certo ponto, levar os especuladores a
acreditarem que a pressão cambial foi eliminada e os juros não precisarão mais
ser elevados e podem ser reduzidos. O que garante que os mercados sempre
acreditem que a pressão cambial não se extinguirá e a taxa de juros não se
elevará continuamente?
Em um regime de câmbio flutuante, o câmbio sempre oscila e é difícil
saber ser as inflexões de tendência são passageiras ou definitivas. Nesse
caso, após o governo aumentar a taxa de juros, haverá sempre um momento
em que a evolução do câmbio se inverterá, e não é possível saber se essa
inversão foi decorrência do aumento dos juros ou por coincidência. Surgirão
diversas hipóteses. Alguns dos agentes que estão especulando contra a
moeda nacional podem ter dúvidas e parar de especular e até mudar sua
aposta. Sempre que o governo aumentar a taxa de juros, mais agentes terão
171
receio de especular contra a moeda nacional. Haverá um momento em que o
fluxo especulativo mudará de sinal. Se esse momento demorar mais do que o
desejado, o governo poderá vender reservas para manter um teto conjuntural
para a taxa de câmbio e, assim, garantir que aqueles que apostarem na
desvalorização serão mal-sucedidos.
Se o regime for de câmbio fixo, o governo só tem os juros para
coordenar as expectativas de ganhos de capital. Por um lado é uma
desvantagem, porque, quando há um ataque cambial, o país possui menos
instrumentos e precisará aumentar mais os juros para gerar o mesmo potencial
de ganhos de capital. Por outro lado, o número de momentos em que há
pressão cambial de origem especulativa é menor, porque uma vez sinalizado,
via aumento do juros, que não há pretensão em se sair do regime, o risco de
desvalorização se aproxima de zero em condições de liquidez externa normais.
Nessas condições, sob câmbio fixo, o diferencial de taxa de juros pode cumprir
um papel, pois, se a expectativa de desvalorização se aproxima de zero e a
aplicação não tem risco de juros, o diferencial será o principal ganho esperado
na operação.
As teorias acima colocadas podem ser considera polêmicas sob uma
perspectiva ortodoxa. Pela teoria dos mercados eficientes as mudanças nos
juros não poderiam impactar o movimento de capitais. Por isso a tradição
ortodoxa dá tanta importância ao diferencial de taxa de juros. Essa teoria gera
certos problemas, como os que tentaremos mostrar na próxima seção.
3.5. Elevação dos juros não é solução definitiva contra a pressão cambial
Procuramos sustentar que a elevação dos juros pode, de fato, reduzir a
pressão cambial, ainda que por razões diferentes das tradicionalmente
colocadas. A elevação da taxa de juros possui efeitos diversos sobre a taxa de
câmbio. O primeiro, mais rápido e talvez mais importante seja sobre as
expectativas de desvalorização. A elevação dos juros mostra claramente que o
governo considera que a taxa de câmbio não deveria se desvalorizar mais e
que ele está disposto a agir contra essa possibilidade. Dessa forma, os
especuladores ficariam receosos em apostarem em uma forte desvalorização
172
cambial, desde que o governo se mostre capaz de garantir suas metas de
câmbio ou inflação. Assim, o primeiro efeito dos juros sobre a taxa de câmbio
seria a sinalização da disposição do governo em impedir a desvalorização.
A elevação da taxa de juros possui outros efeitos que não afetam
diretamente as expectativas cambiais, mas que acabam rebatendo sobre elas.
O primeiro deles é sobre o custo de oportunidade dos especuladores cambiais,
que, elevado, pode desincentivá-los a esperar muito tempo comprados em
dólar.
Mas ela tem efeito também sobre a liquidez, dificultando a alavancagem
com fins especulativos. A elevação dos juros faz cair os preços das ações e
dos títulos pré-fixados. Dessa forma, os potenciais especuladores perdem
capital, se a taxa de juros aumenta e isso por si só já reduz tanto o capital
disponível para especulação como reduz a possibilidade desses agentes
tomarem crédito para especulação, pois tanto o tomador quanto o credor
buscam fazer empréstimos proporcionais à disponibilidade de garantias.
Além disso, essa redução de capital causada pela elevação dos juros
aumenta as oportunidades de lucro das aplicações em moeda nacional dos
potenciais especuladores cambiais; pois, se o governo só elevou a taxa de
juros para reverter possíveis expectativas de desvalorização, logo que essas se
normalizarem, ele retornará a taxa de juros para seu patamar anterior, criando
oportunidades de ganho de capital.
É importante ainda destacar o efeito dos juros sobre o nível de atividade
e, portanto, sobre o saldo comercial. Dependendo da magnitude do aumento
dos juros a da elasticidade da renda a essas modificações, esse impacto pode
ser maior ou menor.
Entretanto, esse impacto é ambíguo. Um significativo aumento dos juros
leva à redução do consumo e do investimento e, portanto, das importações.
Entretanto, essa redução da renda pode reduzir as perspectivas de
crescimento e assim reduzir os investimentos externos diretos, os
investimentos de estrangeiros em bolsas de valores, e a demanda por
empréstimos externos para investimento em maquinário ou giro que tendem a
cair com o aumento dos juros e redução da demanda.
A teoria econômica normalmente associa aumento dos juros com
aumento na entrada de empréstimos externos no país. Entretanto, essa relação
173
é ambígua. Para entender como chegamos a essa conclusão, temos que
separar os empréstimos externos de curto prazo dos empréstimos externos de
longo prazo.
Por maior que seja a taxa de juros de um país, a rentabilidade esperada
de uma minidesvalorização cambial prestes a ocorrer sempre superará a
rentabilidade da taxa de juros no curto período em que se espera a ocorrência
dessa desvalorização. Isso acontece porque uma miniesvalorização pode
ocorrer no espaço de poucos dias.
Assim, tomar dinheiro emprestado em dólar para aplicar na taxa de juros
de um país é geralmente uma operação muito arriscada e de baixa
rentabilidade esperada. E esse é um dos fatores pelos quais altos diferenciais
de taxa de juros em si geralmente não são capazes de aumentar o volume de
empréstimos externos de curto prazo tomados pelo país71.
Se o governo não subsidiar o custo de proteção cambial, não é possível
tomar empréstimos no exterior para aplicar em títulos públicos e proteger
completamente essa operação de risco cambial. Aliás, mesmo subsidiando o
custo de proteção cambial, dificilmente será possível ganhar mais do que o
custo de oportunidade nas operações com aquisição de títulos públicos
totalmente protegidos em dólar, porque, devido à arbitragem entre os títulos
públicos em dólar no mercado nacional (NTN-D) e internacional (C-Bond,
Globals), a taxa de juros desses títulos a taxa de juros desses títulos de mesma
maturação tendem a ser similares Toledo (2002: 142)72.
O aumento da taxa de juros eleva proporcionalmente o custo de
proteção cambial e pode elevar parcialmente o risco-país. Assim, aumenta o
custo final de captação externa. Portanto, os empréstimos externos com
proteção cambial só são viáveis quando a aplicação final será uma
rentabilidade superior aos juros internos. Esse tipo de empréstimo se torna
71 Os outros são a endogenidade do custo de proteção cambial, do “risco Brasil”, e os efeitos negativos decorrentes da redução da demanda por empréstimos, do aumento da inadimplência e da perspectiva de aumento dos juros futuros. Dessa forma, o rendimentos desses títulos se manteriam próximos. 72 Essa equivalência só não ocorreria, quando fosse possível perceber que existe uma grande diferença entre o risco de centralização do câmbio e o risco de inadimplência da dívida externa. Mas é muito difícil estimar tal tipo de coisa em momentos em que essas possibilidades estão distantes e mesmo de forte crise externa. Não se sabe se, quando necessário, a opção do governo será por uma, outra ou ambas soluções.
174
interessante principalmente quando é possível obter, no mercado internacional,
prazos superiores aos obtidos no mercado interno.
Dessa forma, desde que não afetem o prazo máximo oferecido pelos
bancos nos empréstimos internos, o aumento da taxa de juros reduz os
empréstimos externos tomados com proteção cambial.
Já os empréstimos externos sem proteção cambial completa podem
aumentar com a elevação dos juros, principalmente os de longo prazo. Como
vimos, os diferenciais de taxa de juros, geralmente, não compensam a emissão
de dívida de curto prazo no exterior. Todavia, a longo prazo tomar emprestado
sem proteção cambial financeira é uma operação segura basicamente para o
setor industrial ou para os bancos que re-emprestam com correção cambial
para o setor industrial. Para o longo prazo, os industriais do setor de
importáveis, principalmente os exportadores, esperam que os preços de seus
produtos acompanhem relativamente bem a taxa de câmbio. Dessa forma, eles
se sentem mais seguros para tomar emprestado no exterior a longo prazo sem
proteção cambial completa. E por isso, quando se aumenta os diferenciais,
pode haver um incentivo a mais para tomarem emprestado no exterior, pois
não faz tanta diferença para eles o aumento paralelo do custo de proteção
cambial nos mercados de câmbio futuro.
Entretanto, mesmo nesse caso, não é de se esperar uma grande
elasticidade dos empréstimos à taxa de juros. Porque, uma vez que a taxa de
juros interna for suficientemente superior à internacional, a maior parte das
grandes empresas que podem tomar emprestado no exterior já teriam feito.
Assim, aumentos adicionais nas taxas de juros podem ter efeitos reduzidos,
ambíguos ou até contrários sobre o volume de empréstimos de longo prazo
tomados no país.
O efeito contrário ocorreria, se a política fiscal não contrabalançasse o
efeito negativo dos juros sobre a atividade econômica. O aumento dos juros, ao
impactar negativamente sobre o consumo, sobre as expectativas, sobre o custo
de investimento, deprecia a demanda por crédito ao consumidor, por capital de
giro e por investimento em ativos fixos. E, portanto, depreciaria a demanda total
por empréstimos. É certo que os empréstimos tomados internamente sofreriam
um impacto maior, mas essa diferença seria muito pequena, pois, o diferencial
175
já era positivo e a grande maioria de quem pode tomar no exterior já se sente
suficientemente incentivada.
Ademais, como mostra Toledo (2002), o aumento dos juros não tem
impacto apenas sobre o custo de proteção cambial. Aliás, para esse autor, o
impacto do aumento dos juros recai principalmente sobre o chamado “risco
Brasil” que é o spread que os títulos brasileiros pagam sobre os títulos do
tesouro americano. Se isso acontece, o custo de captação dos empréstimos
externos de longo prazo também aumentaria com o aumento dos juros e,
assim, o impacto desse aumento sobre a entrada de financiamento seria ainda
menor.
Por último, os juros têm efeito sobre a competitividade externa do país, o
que obviamente impacta no saldo comercial. O volume de investimento em
exportações e substituição de importações é maior se a taxa de juros é mais
barata. Além disso, juros baixos significam maior competitividade dos
exportadores nacionais em oferecer crédito ao clientes, principalmente de bens
de capital, assim como, maior competitividade para as empresas que
concorrem com importados que são vendidos a crédito.
Podemos, assim, concluir que a importância da taxa de juros como
instrumento de redução permanente da pressão cambial é, em primeiro lugar,
menor do que a normalmente atribuída. Em segundo lugar, seus principais
efeitos ainda são pouco explorados.
Aumentar o diferencial de taxas de juros, ao contrário do que sugeriria a
teoria tradicional, pode não levar ao resultado desejado. A política monetária,
quando visa reduzir a pressão cambial, deveria estar mais focada em reverter
as expectativas de desvalorização via oscilação dos juros, do que em
manutenção de elevados diferenciais. Mas isso significa também que a política
de juros é eficaz contra a pressão cambial por períodos não muito longos. Altos
diferenciais mantidos persistentemente não teriam efeitos positivos sobre o
balanço de pagamentos.
No início do capítulo, buscamos mostrar que, na ausência de
intervenção do governo, uma NFEDcp positiva causa uma pressão cambial
persistente e consequentemente à desvalorização da taxa de câmbio. A
elevação da taxa de juros pode atrair capitais de curto prazo. O efeito sobre os
capitais de longo é mais lento e depende de outros fatores.
176
A atração de capitais de curto prazo financia a NFEDcp e mantêm a
pressão cambial controlada. Porém, esse efeito não é prolongado. Para impedir
que o fluxo positivo de capitais de curto prazo se reduza substancialmente, o
governo terá que aumentar os juros novamente. Assim, enquanto a NFEDcp for
positiva, a taxa de juros será freqüentemente e cumulativamente pressionada
subir, pois, uma vez transcorridos os momentos mais intensos de fluxo
especulativo a NFEDcp acaba determinando a pressão cambial. O aumento
dos juros atrai capital quando a taxa vigente se torna superior à taxa que boa
parte do mercado considera normal. Essa taxa normal é fortemente
influenciada pela taxa média do passado recente. Assim, se a NFEDcp positiva
implicar em uma freqüência de pressão cambial maior, e, conseqüentemente,
uma freqüência de elevações de taxas de juros maior; a taxa de juros média
aumentará, e, assim, a taxa normal. Uma taxa normal mais alta implicará na
necessidade de maiores aumentos na taxa de juros para resultar no mesmo
efeito sobre as perspectivas de ganhos de capital, realimentando a tendência
de cumulativo aumento dos juros.
Vimos que o capital de curto prazo é atraído principalmente por
expectativas de redução da taxa de juros, de valorização cambial ou de
crescimento da bolsa de valores. Assim, uma vez realizadas as “previsões”, o
capital retorna, a menos que surjam novas expectativas de aumento da
rentabilidade do ativo adquirido ou a menos que tenham ocorrido perdas
iniciais, que os investidores esperam ver revertidas. Se as previsões não se
realizam e as expectativas iniciais se mostrem equivocadas, o capital também
retornará.
Em um país que sofre de pressão cambial decorrente de uma NFEDcp
positiva, se o governo aumenta a taxa de juros para reduzir um ataque
especulativo e posteriormente criar a expectativa de futuro retorno da taxa de
juros para seus patamares “normais”, será atraído capital externo para lucrar
com bolsa de valores e títulos prefixados. A entrada de capitais de curto prazo
reduzirá a pressão cambial, que poderá levar à redução da taxa de juros ou
valorização do câmbio, e assim geraria os lucros previstos pelos capitais
internalizados. A conseqüente realização de lucros tornaria o fluxo de capitais
negativo e, portanto, a pressão cambial retornaria juntamente com a
necessidade de elevar os juros.
177
Uma política desse tipo pode financiar uma NFEDcp transitória, mas não
uma NFEDcp permanente. Primeiramente porque o capital que entra é o
mesmo que sai posteriormente. Aliás, que tende a sair com algum lucro.
Portanto, o financiamento de uma NFEDcp no presente, significa uma NFEDcp
maior no futuro. Considerando prazos mais longos, a NFEDcp não estaria de
fato sendo financiada. Secundariamente, uma grande volatilidade da taxa de
juros de curto prazo acaba sendo descontada sobre os juros de longo prazo e a
rentabilidade média das ações, tornando o efeito-riqueza da movimentação dos
juros de curto prazo menores e os movimentos de capitais menos sensíveis à
política monetária. Portanto, enquanto a NFEDcp for positiva, os juros terão
que ser sempre aumentados.
Vimos que o diferencial tem um papel secundário. Porém, se ele for
realmente elevado sua importância será maior. O Brasil é hoje talvez o único
país que possui um diferencial de taxas de juros suficientemente comparável
com a perda potencial em caso de ocorrência do pior cenário esperado de
desvalorização. É comparável desde que esse cenário não seja esperado para
um momento muito próximo.
Em caso como esse, poderíamos dizer que o diferencial seja realmente
importante para o movimento de capitais de curto prazo. Entretanto, para esses
casos vale a teoria proposta por Tsiang (1975), o que importa para a atração
de capitais de longo prazo é o aumento do diferencial e não a manutenção. Se
o governo aumenta o diferencial, haverá um ajuste de estoques nas carteiras
no primeiro momento, mas logo o fluxo positivo cessará ou se tornará reduzido.
Assim, portanto, nem mantendo diferencias de taxas muito elevados, seria
possível manter o fluxo de entrada de divisas. Podemos concluir que esse é
mais um motivo para taxa de juros também precisa ser continuamente elevada
enquanto a NFEDcp positiva for financiada pelas FFEcp.
Há ainda outros dois motivos para sustentar essa proposição. Se a
NFEDcp e o déficit em conta corrente forem positivos, a NFEDcp tenderá a ser
crescente em diversos momentos. Nessa situação, para que a NFEDcp seja
crescente, bastaria que:
NFEDcp > Amcp
Onde:
Amcp = Saldo das amortizações pagas da dívida externa de curto prazo
178
Isso significa que bastaria que:
Amlp + DCC > IDE + Elp
ou que
DCC > IDE + estoq. Elp
Onde:
estoq. Elp = Elp – Amlp = crescimento do estoque de dívida externa de
longo prazo
Como o déficit em conta corrente aumenta o passivo externo líquido,
para que a NFEDcp não seja maior do que as amortizações de dívida de curto
prazo, é necessário que o financiamento externo de longo prazo seja
crescente.
Os investimentos externos diretos e os empréstimos de longo prazo são
relativamente instáveis, principalmente se o país não tem bons indicadores de
solvência externa. Supô-los sempre crescentes pode não ser razoável,
principalmente se o país tem um déficit permanente em conta corrente. Em
primeiro lugar, é preciso que a taxa de crescimento seja elevada para atrair os
IDE e induzir as empresas do país a fazer empréstimos de longo prazo no
exterior. Mas é preciso também que o país se mantenha solvente. Na próxima
seção, veremos que o IDE e os empréstimos de longo prazo são sensíveis aos
indicadores de solvência do país. Em situação de forte crise de liquidez
internacional, eles se contraem. Veremos também na próxima seção que o
reconhecimento geral dessa possibilidade faz com que superávit em conta
corrente seja um indicador de solvência ou de “bom crédito” em momentos de
crise de liquidez internacional ou quando o país está com uma situação de
liquidez muito frágil, devido a um passivo externo líquido muito elevado e com
alto risco de inadimplência ou crise cambial. O superávit em conta corrente
indica que o país não precisa de financiamento externo crescente para honrar
suas dívidas. Indica também que não necessita incorrer em grande recessão
ou desvalorização cambial em um futuro próximo para obter um superávit, ou
seja, ainda pode ser um destino de baixo risco para os IDE.
Dessa forma, a NFEDcp positiva acompanhada de déficit em conta
corrente muito provavelmente implica que o financiamento externo de longo
prazo não será sempre crescente. Nesse caso, mesmo se fossem válidas as
proposições tradicionais que diriam que o diferencial de juros poderia atrair um
179
fluxo estável de financiamento para a NFEDcp, os juros tenderiam a ser
crescentes, enquanto a NFEDcp e o déficit em conta corrente fossem positivos;
bastaria para isso que houvesse oscilações na entrada de financiamento
externo de longo prazo, o que implicaria na necessidade de induzir um
aumento na entrada de financiamentos externos de curto prazo, ou seja, que
se aumentasse os juros.
Nessa situação, o passivo externo líquido de curto prazo e a NFEDcp
aumentariam abruptamente, devido à redução do prazo médio da dívida
externa. Além disso, a NFEDcp seria crescente, devido ao déficit em conta
corrente e, portanto, haveria necessidade de aumentos recorrentes dos juros
para aumentar as FFEcp. A liquidez do país seria bastante reduzida, e assim
sua capacidade de resistir a ataques cambiais e se manter adimplente.
Os investidores externos são muito sensíveis a essas situações de risco
iminente e adiariam suas decisões. Os tomadores e os ofertantes de
empréstimos de longo prazo recuariam, devido ao alto risco percebido e ao
crescimento do custo de captação referido no spread de “risco-país”, que
cresce com o aumento dos juros internos e com o maior risco de inadimplência.
Dessa forma, enquanto o governo não gerar, no mínimo, um superávit
em conta corrente, a NFEDcp não pararia de crescer e os financiadores
externo e especuladores em geral permaneceriam intranqüilos.
É preciso ainda lembrar que, mesmo sem a iminência de uma crise,
financiar o balanço de pagamentos com um passivo externo líquido de curto
prazo crescente pode levar ainda a outros inconvenientes. O crescimento do
passivo externo de curto prazo torna o país mais sensível aos “humores” dos
especuladores, que podem sair ou deixar de financiar o país a qualquer
momento. Quanto maior o passivo líquido de curto prazo, maior é o impacto
que essa fuga teria sobre a desvalorização cambial e, portanto, maiores são os
riscos de perdas e, assim, mais assustados se tornam os investidores e mais
voláteis se tornam os capitais. Nessa situação, os juros precisam ser
aumentados com maior freqüência e um maior número de vezes.
Podemos assim, concluir que uma NFEDcp positiva tende a implicar em
juros crescentes. Essa conclusão é especialmente válida se o país conviver
com déficit em conta corrente.
180
Portanto, embora a elevação dos juros possa financiar a NFEDcp, esse
efeito é temporário, porque: (1) se o diferencial não for muito grande, o fluxo de
capital atraído será revertido depois de algum tempo; ou (2), se o diferencial for
realmente grande, o fluxo será, a princípio, alto para, logo depois, se reduzir
para patamares pouco significativos; ou (3) se a conta corrente for negativa, a
demanda por empréstimos de curto prazo tenderá a aumentar requerendo
novos aumentos da taxa de juros. Portanto, se a NFEDcp continuar positiva, a
pressão cambial retornará. A solução definitiva para a pressão cambial é
portanto reduzir a NFEDcp.
O gráfico abaixo busca ilustrar sob a perspectiva de um modelo
keynesiano simples a relação entre renda, juros e pressão cambial. Se a
entrada líquida de capital de longo prazo for pouco sensível às perspectivas de
crescimento, para níveis de atividade baixos, a pressão cambial será negativa
e a haverá tendência de queda de juros, valorização ou acumulação de
reservas. À medida em que se aumenta o nível de atividade, aumenta-se
também a NFEDcp. Haverá um ponto onde ela ser tornará positiva. Nesse
ponto, a pressão cambial também terá tendência a se tornar positiva e, assim,
ocorreria tendências à desvalorização, perda de reservas ou aumento da taxa
de juros. No próximo capítulo, buscaremos mostrar como o governo pode
reduzir a NFEDcp sem políticas recessivas.
y
j insolvente
solvente
NFEDcp 0 Pleno emprego
j = Exp%
Pressão Cambial positiva
Tendência à: desvalorização cambial perda de reservas
ou juros crescentes
Pressão Cambial negativa
Tendência à: valorização cambial acumulação de reservas
ou juros decrescentes
Hipótese de Baixa elasticidade do capital de longo prazo às perspectivas de crescimento
181
3.6. Investimento externo direto, empréstimos de longo prazo e política de financiamento externo
Um país que tem uma NFEDcp positiva e não é capaz de induzir um
aumento das exportações ou substituição de importações no curto prazo terá o
crescimento fortemente dependente de capital externo. Nessa situação, se não
há crédito internacional para o país, esse ver-se-á obrigado a adotar políticas
recessivas, aceitar taxas de inflação muito elevadas ou, se tiver sorte, adotar
uma política industrial suficientemente eficaz para garantir a médio ou longo
prazo uma taxa de crescimento das exportações que possa viabilizar no futuro
o crescimento com baixa inflação.
Todavia, o país pode crescer sem maiores concessões à inflação e sem
grandes alterações na política industrial, se o país tem acesso a financiamento
internacional de longo prazo.
Existem basicamente três tipos de financiamento de longo prazo.
Investimentos externos diretos e empréstimos de longo prazo tomados pelo
setor privado e pelo governo.
Os investimentos externos diretos podem ser separados em (1)
investimentos que visam principalmente atender o crescimento do mercado
interno e (2) que visam principalmente atender as exportações e substituição
de importações73. No primeiro caso, a rentabilidade geral estimada na
avaliação dos projetos de investimento é determinada principalmente pela taxa
de crescimento esperada, mas em parte também pela taxa de câmbio real, se o
investimento pertencer ao setor de importáveis, porque a falta de
competitividade externa da produção local, em geral, reduzirá a atratividade da
fabricação local. No segundo caso, a rentabilidade geral estimada é
determinada principalmente pela taxa de câmbio real, mas também em parte
pela taxa de crescimento esperada.
73 Os investimentos externos diretos não são necessariamente investimentos produtivos. Investimentos externos em aquisições de empresas e em compra de ações em bolsa com horizonte de longo prazo são também considerados investimentos externos. Mesmo esses podem ser divididos entre investimentos que visam atender o crescimento do mercado interno, ou exportações e substituição de importações.
182
Assim, se o governo desejar aumentar a entrada de investimento direto
externo, é necessário que ele mantenha o câmbio competitivo e que induza o
crescimento. Os investimentos em geral são mais elásticos em relação à renda
do que os gastos em consumo e insumos, porque pequenos aumentos de
renda costumam ser vistos como movimentos conjunturais e que podem ser
atendidos por capacidade ociosa, assim, taxas mais altas de crescimento
aumentam o risco esgotamento da capacidade ociosa e induzem o
investimento. Portanto, espera-se que o saldo líquido de investimento externo
direto seja bastante elástico em relação à renda e provavelmente mais elástico
do que o saldo comercial.
Os empréstimos externos de longo prazo tomados pelo setor privado
são quase sempre aplicados em investimentos também privados. Isso
acontece porque só é possível suportar o risco cambial de aplicações de longo
prazo financiadas por empréstimos, se o tomador possuir algum tipo de
proteção cambial, e eventualmente se a rentabilidade esperada da aplicação
for mais alta que a taxa de juros de ativos financeiros de baixo risco e
maturidade semelhante.
Muito dificilmente tomar-se-á empréstimos externos para adquirir títulos
de renda fixa. Primeiro porque o agente não consegue obter proteção cambial
a custos compensatórios. Sem proteção, a rentabilidade desse tipo de
operação raramente é suficientemente alta para tornar suportável o risco
cambial de um país de câmbio flutuante ou de câmbio fixo sujeito a ataques
cambiais. Essa conclusão decorre da altíssima probabilidade de que as
desvalorizações possam gerar perdas muitas vezes superiores ao diferencial
de taxa de juros de longo prazo no horizonte temporal da aplicação.
Essa conclusão é especialmente válida para as aplicações em títulos
públicos, pois os títulos públicos geram uma rentabilidade ainda menor do que
os títulos privados. Essa rentabilidade é menor do que o custo de proteção
cambial. Como vimos, o custo de proteção cambial é aproximadamente igual
ao diferencial internacional de taxas de juros. Dessa forma, o lucro de uma
operação de aquisição de títulos públicos com financiamento externo e
proteção cambial seria negativo. Se os títulos comprados forem privados e de
risco maior, essa operação pode ser lucrativa, mas os riscos de juros e de
inadimplência seriam significativos para uma rentabilidade muito reduzida.
183
Entretanto, o setor privado de muitos países toma no exterior um grande
volume de empréstimos de longo prazo, o que freqüentemente é uma forma
importante de financiamento do balanço de pagamentos. Pretendemos
defender que a partir de um certo ponto o crescimento dessas operações tem
uma forte correlação com o crescimento econômico e com a competitividade da
taxa de câmbio e que o diferencial de taxa de juros tenha mais um papel
estrutural do que conjuntural.
O objetivo é propor que, após ultrapassado determinado patamar,
elevações adicionais na taxa de juros possuem em geral um efeito ambíguo ou
mesmo negativo sobre a captação de empréstimos de longo prazo.
Mesmo se o aumento do diferencial for capaz de induzir a entrada de
empréstimos externos, aumentar tais taxas, após atingido um certo patamar
mínimo não é necessário, porque, em momentos de liquidez internacional e
solvência externa do país, o crescimento econômico já é capaz de induzir o
crescimento dos IDE e dos empréstimos de longo prazo. Ademais, se essas
fontes de financiamento não forem suficientes para tornar a NFEDcp menor ou
igual a zero, o governo pode ainda emitir dívida externa de longo prazo e
vender esse acréscimo de reservas, ao invés de aumentar a taxa de juros. Em
momentos de ocorrência de crises externas, os tomadores privados de dívida
externa estão retraídos e o aumento dos juros não é capaz de induzir a entrada
de maior volume de financiamento de longo prazo.
No entanto, a visão tradicional sugere que elevações no diferencial de
taxa de juros é uma política adequada para o aumento na captação de
empréstimos de longo prazo. De fato, dada as taxas de juros e condições de
pagamento, e tendo como opção se endividar em uma moeda fraca ou em uma
moeda forte74, é sempre preferível se endividar na primeira. Nesse sentido, se
o governo pretende que o setor privado capte grandes volumes de
empréstimos externos de longo prazo, é necessário que seja mantido um
diferencial positivo entre as taxas de juros de longo prazo nacionais e
estrangeiras.
Porém, não é de se esperar que a manipulação da taxa de juros seja
uma política adequada para ajustar os empréstimo de longo prazo à
74 Esses conceitos serão definidos com mais precisão no próximo capítulo.
184
necessidade de financiamento externo. Isso significa que o aumento dos juros
não é uma política normalmente adequada para aumentar a emissão de dívida
privada de longo prazo no exterior, principalmente nos momentos em que a
necessidade de financiamento externo é mais fundamental, como nas crises
cambiais.
Essa conclusão decorre de várias razões. Em primeiro lugar, a maioria
dos tomadores preferem se endividar em moeda nacional ou não possuem a
opção de emitir dívida externa. As empresas menores, em particular, não tem
alternativa além dos bancos nacionais. As grandes empresas com receitas
pouco indexadas ao câmbio só tomariam significativamente no exterior se
protegidas por derivativos cambiais ou se tiverem garantias de estabilidade da
taxa de câmbio. Mas, como o custo dessa proteção é igual ao diferencial
internacional de taxa de juro, elas só tomariam grandes volumes em um regime
flutuante, se não houvesse empréstimos de longo prazo em moeda nacional.
Em países subdesenvolvidos essa é uma situação comum. Porém, nessa
situação, os aumentos no diferencial de taxas de juros seriam inócuas ou, mais
provavelmente, teriam efeito negativo sobre o volume de empréstimos de longo
prazo tomados, ou porque não há financiamento alternativo no mercado
interno, ou porque em financiamentos com proteção cambial os aumentos dos
juros majoram no mesmo montante o custo dos financiamentos externos.
Portanto, nesse caso, a única variável que pode manipular o volume de
empréstimos de longo prazo tomados seria a taxa de crescimento.
Nas grandes empresas com receita indexada ao câmbio, a situação é
um pouco diferente. Essas empresas não precisam de proporção significativa
de proteção cambial com derivativos financeiros. Nessas empresas, o aumento
do diferencial pode induzir a tomada de mais empréstimos de longo prazo.
Porém, é preciso lembrar que o aumento do diferencial tem um efeito retardado
e em geral pequeno sobre esse volume a partir de certo ponto.
Além disso, o aumento da taxa de juros interna implica geralmente em
aumentos não proporcionais e não estáveis na taxa de captação dos
empréstimos externos de longo prazo. Isso pode acontecer por vários motivos
que já nos referimos sob outros aspectos. O aumento da taxa de juros interna
quando não tem seu efeito inteiramente absorvido pelo custo de proteção
cambial leva ao aumento do spread dos títulos da dívida externa e, portanto, o
185
aumento direto no risco-país. Isso acontece (1) quando o país busca subsidiar
o custo de proteção cambial emitindo no mercado nacional dívida pública em
moeda estrangeira com a intenção de manter uma rentabilidade para esses
títulos suficientemente alta para desestimular a fuga de capitais, mas
principalmente (2) quando os investidores percebem como alto o risco de
inadimplência da dívida externa ou de adoção de rígido controle de capitais.
Nessa situação, devido ao risco de controle de capitais, fazer operações
consideradas normalmente como arbitragem em que se compra dólares no
futuro e se vende no presente deixam de ser realmente sem risco. As
operações de especulação cambial com compra de dólares no futuro também
passam a ser não compensatórias. A especulação cambial se concentraria na
aquisição de dólar à vista. O que faz com que a diferença entre o dólar futuro e
presente se reduza substancialmente, podendo até ser negativo apesar do
grande diferencial de juros que prevalecem nessas situações. De fato, perde-se
a correspondência entre o custo de proteção cambial (diferença entre o dólar
futuro e presente) e o diferencial de taxas de juros, pois o princípio da
arbitragem dominante não mais funciona. Esse resultado é evidente devido à
incapacidade das operações de dólar futuro protegem os investidores contra a
centralização da taxa de câmbio.
Nesses casos, aumentos nos diferenciais de taxas de juros impactam
principalmente o spread de “risco-país”, aumentando as taxas de captação de
empréstimos de longo prazo. Esse efeito também pode ser direto, via aumento
do risco percebido de inadimplência da dívida externa.
Mas mesmo em situações de menor risco, há forte chance de que o
aumento dos juros impacte ao menos parcialmente o “risco-país”, porque o
aumento dos juros pode não a ser inteiramente absorvido no custo de proteção
cambial nos títulos de prazo maior. Nas relações entre moedas fortes e fracas,
os derivativos cambiais de longo prazo têm baixa liquidez, devido à grande
incerteza em relação a perdas não propriamente cambiais no futuro mais
distante, como de centralização do câmbio, e, portanto, não podem absorver
186
completamente o impacto do aumento dos juros75, que acaba recaindo ao
menos parcialmente sobre o risco-país.
Além disso, juros altos ou crescentes realmente conotam para o
mercado risco de juros, câmbio e de inadimplência elevados tanto para
empréstimos externos públicos e privados.
Supostamente, juros altos e crescentes não são desejáveis e
implicariam na necessidade de reduzi-los sempre que necessário, o que levaria
à expectativa de alta volatilidade da taxa de juros, ou seja, alto risco de juros.
Juros altos e crescentes estão associados a países que sofrem alta pressão
cambial e, portanto, mais fortemente sujeitos a crises externas e oscilações na
taxa de crescimento. Juros altos podem significar ainda dificuldades futuras no
balanço de pagamentos e, assim, alta probabilidade de crises externas e
inadimplência da dívida externa e centralização de câmbio no futuro76. Se tudo
isso não bastasse, juros altos significam também alto risco de inadimplência
dos tomadores desse tipo de empréstimos, que são basicamente do setor
privado. Além dos maiores risco de crises externas, recessão, de juros voláteis;
altas taxas de juros significam alto risco de crises de crédito internas e maior
dificuldade de pagamento dos compromissos. Os bancos internacionais
dificilmente não considerariam essas questões. Assim, quanto maior os juros
internos, maiores tendem a ser os custos de captação internacional descoberta
(risco-país + juros internacionais), reduzindo a elasticidade à taxa de juros
interna da captação líquida de empréstimos de longo prazo.
Ademais, a taxa de juros pode ter efeito sobre o nível de atividade, o que
reduz a demanda por empréstimos, reduzindo essa elasticidade. Se a política
fiscal não contrabalançar o efeito negativo dos juros sobre a demanda, o
impacto do aumento da taxa de juros sobre a redução da demanda total por
75 Mesmo porque os próprios contratos de juros futuros de longo prazo tem baixa liquidez nesses países, impedindo que os contratos de dólar futuro de longo prazo tenham liquidez adequada. 76 Juros altos significam também crescimento da dívida pública. Para um governo que adota finanças funcionais, isso não é motivo para aumento do risco de inadimplência, porém, a maioria dos especuladores e ministros da fazenda acreditam nisso e, de fato, há casos em que ocorrem calotes voluntários na dívida pública. Ainda que por motivos muito diferentes, o Brasil de Collor e a Argentina de De La Rua são exemplos de inadimplência da dívida pública devido à incompreensão dos mecanismos que em que se baseia as finanças funcionais.
187
financiamento de longo prazo77 pode ser maior do que o impacto sobre a
substituição de empréstimos internos por externos.
Na perspectiva das finanças funcionais, a política econômica
(principalmente a política fiscal) é suficientemente ativa para definir o nível de
atividade. Nesse caso, o possível efeito negativo do aumento dos juros sobre o
nível de atividade seria contrabalançado por uma política fiscal expansionista.
Portanto, não se espera que o aumento da taxa de juros impacte
negativamente os investimentos nos setores de não exportáveis e não
importáveis. Os outros setores podem ser impactados pela redução da
competitividade externa decorrente do aumento dos juros.
Ainda a elasticidade dos empréstimos externos de longo prazo aos
diferenciais de juros possa ser elevada em certas situações, em geral, ela é
muito menos importante do que o efeito da taxa de crescimento e da taxa de
câmbio real esperada sobre o volume de captações externas de longo prazo,
se for considerado o efeito negativo sobre os investimentos diretos, percebe-se
que o aumento do diferencial é ainda menos favorável.
Quando a taxa de juros de longo prazo do país é próxima das chamadas
taxas de juros internacionais, não haveria volumes significativos de
empréstimos de longo prazo tomados no exterior. Porém, à medida em essa
taxa interna se eleva, mais empresários estariam dispostos a trocar
financiamento interno por financiamento externo. A participação dos
empréstimos externos nos empréstimos totais é uma variável com
comportamento logístico. Portanto, a partir de certo ponto, os efeitos marginais
da taxa de juros sobre os empréstimos seriam cada vez menores.
Pode-se esperar inclusive que seja muito pequeno o intervalo de taxas
de juros em que a elasticidade dos empréstimos externos aos juros é
significativa. A maioria dos tomadores privados emite dívidas de longo prazo
no exterior em condições muito específicas. Eles têm dificuldade em ajustar a
proporção de dívida externa em seu passivo à medida que o governo manipula
a taxa de juros de acordo com as condições do balanço de pagamentos ou do
nível de atividade. Mesmo porque os bancos impõem condições de garantia e
solvência muito restritivas para esse tipo de empréstimo. Empréstimos de longo
77 Essa demanda é fortemente dependente do nível de investimento.
188
prazo estão associados a investimentos de alto prazo de maturação e são
decisões estratégicas que exigem muito cuidado. Investimentos de maior
maturação, como novas plantas, se beneficiam menos da complementaridade
com outros ativos e, portanto, raramente oferecem taxas de lucro “marginal”
esperadas tão altas78. Isso significa que as empresas preferem usar
principalmente recursos próprios, se a taxa de juros ultrapassa um determinado
nível. Os empréstimos externos implicam em risco cambial79, o que pode ter
um grande impacto sobre a viabilidade do empreendimento. Assim a taxa de
juros precisa ser significativamente maior do que a internacional para que
induza a um empréstimo no exterior. Some-se a isso o fato de que o valor de
juros acumulado em relação ao financiamento total é maior nos empréstimos
de longo prazo. Isso significa que a decisão sobre o tipo e volume de
financiamento tomado é crucial. Quando o diferencial de taxa de juros for
suficientemente grande para induzir os empresários a tomarem empréstimos
no exterior, a maioria dos investidores já estará estudando essa possibilidade e
com taxas não muito maiores quase todas as empresas que podem tomar no
exterior já estariam fazendo. Dessa forma, espera-se que seja reduzido o
intervalo de juros em que a elasticidade dos empréstimos externos de longo
prazo ao diferencial de juros é significativa.
Podemos assim defender que, em países com necessidade externa por
dívida NFED positiva, predomina de forma estável no tempo taxas de juros que
induzem as empresas a captarem no exterior. Portanto, dado que é pequeno o
intervalo de juros onde a elasticidade-juros dos empréstimos externos de longo
prazo é alta, é estrutural, para esses países, a condição de que os
empréstimos externos de longo prazo são pouco elásticos aos juros. Dessa
forma, a política monetária se manifesta entre patamares em que os
empréstimos externos são relativamente independentes da mesma, ou seja,
em patamares onde o efeito da taxa de juros sobre esses empréstimos é
ambíguo, pouco significativo, quando não negativo. Isso significa que não
deve-se esperar que oscilações conjunturais da política monetária possam ser
78 Esse motivo pode explicar como as empresas freqüentemente, nos últimos anos, chegaram a pagar, no Brasil, taxas de juros que já se aproximaram de 100% para financiamento de capital de giro, mas não se tem notícia de taxas similares em empréstimos de longo prazo. 79 Como vimos, para operações com total proteção cambial, a mudança no diferencial de taxas básicas de juros é irrelevante e, portanto, não é um incentivo à entrada de novos empréstimos desse tipo.
189
de grande valia para ajustar o volume de empréstimos externos de longo prazo
contraídos às necessidades de financiamento externo do país.
Os empréstimos de longo prazo se tornam ainda mais independentes
dos juros nos momentos onde o financiamento externo é mais importante, isto
é, nos momentos de ocorrência de crise cambial. Nessas circunstâncias, o
financiamento externo de longo prazo é muito raro, porque as empresas adiam
seus investimentos, o custo de capitação externa sobe significativamente e os
bancos internacionais se retraem.
É reconhecido que aumentos na taxa de juros tendem a reduzir a
demanda agregada e, portanto, o nível de investimento. Nesse sentido, nos
patamares em que a participação dos empréstimos externos nos empréstimos
totais é próxima do máximo aceito pelas empresas, o aumento da taxa de juros
tende a reduzir e não a aumentar o volume de empréstimos externo tomados.
Esse efeito só não seria válido, se o país adotasse uma política fiscal
expansionista muito ativa com o objetivo de neutralizar o efeito dos juros sobre
a demanda agregada. De qualquer forma, esse exemplo mostra qual é a
variável mais importante na manipulação do volume de empréstimos de longo
prazo tomados pelo país.
A taxa de crescimento é decisiva para a determinação do volume de
empréstimos externos de longo prazo emitido pelas empresas de um país que
precisa se financiar no exterior. Os empréstimos externos de longo prazo são
usados principalmente para financiar investimentos do setor privado.
Conjunturalmente seria de se esperar que essas duas variáveis tenderiam a ter
forte correlação temporal. Portanto, seria aconselhável que o governo induzisse
as expectativas de crescimento econômico, se pretende aumentar o volume de
empréstimos tomados no exterior.
Existe ainda outra variável muito importante para a determinação do
volume de empréstimos externos de longo prazo emitidos. Essa variável é o
câmbio real. Quanto mais competitivo é o câmbio real, maior é o volume de
empréstimos externos tomados. Primeiramente o câmbio real tem um efeito
positivo sobre os investimentos nos setores de importáveis, principalmente de
aumento de capacidade exportadora e de substituição de importações. Esse
efeito afeta todos os setores, porque o maior volume de exportações e de
investimentos nesses setores induz ao crescimento de toda a economia.
190
Secundariamente, mas não menos importante, é preciso lembrar o efeito do
câmbio real desvalorizado sobre as expectativas de desvalorização. Um
câmbio real competitivo (desvalorizado) significa menor expectativa de
ocorrência de pressão cambial no futuro e, portanto, menor possibilidade de
crises externas e desvalorização cambial acentuada. Menores expectativas de
desvalorização significam menor risco cambial nos empréstimos externos
tomados e, assim, maior disposição em tomá-los. Menor possibilidade de crises
externas significa ainda menor risco de recessão.
Dessa forma, podemos concluir o mesmo que concluímos para os
investimentos externos diretos. Ou seja, que quanto maior a taxa de
crescimento e mais competitivo é o câmbio real, maior a disposição de tomar
empréstimos de longo prazo no exterior.
3.6.1. A importância da solvência externa
Acabamos de concluir que o crescimento econômico atrai capital de
longo prazo, o que pode impedir que ocorra crescimento que isso implique em
uma NFEDcp positiva, portanto, sem pressão cambial persistente. Entretanto,
não se espera que o governo possa financiar indefinidamente o balanço de
pagamentos simplesmente aumentando a taxa de crescimento e mantendo o
câmbio real desvalorizado. Essa proposição implicaria na inexistência ou
irrelevância da restrição externa.
De fato, há motivos para achar que nem todos os países podem confiar
que terão sempre o financiamento necessário para viabilizar seu crescimento,
mesmo mantendo taxas de câmbio competitivas.
Deve-se levar em consideração a preocupação dos financiadores
estrangeiros de longo prazo com a solvência externa do país. Esses
financiadores, como é óbvio, não consideram apenas a rentabilidade em suas
análises, mas também o risco. A solvência externa do país é um dos principais
indicadores de risco sistêmico dos investimentos externos diretos e dos
financiamentos de longo prazo.
A solvência é um termo originário da avaliação de capacidade de
pagamento de débitos das empresas. Ela busca saber o risco de inadimplência
191
da dívida financiada. Assim, avaliação de solvência é sinônimo de avaliação de
crédito. Se um país é solvente, ele “tem um bom crédito”. Pela teoria das
finanças funcionais, em moeda nacional, a capacidade de pagamento das
dívidas e despesas em moeda nacional de um governo é total.
Em uma economia fechada, por exemplo, o governo poderá pagar seu
serviço da dívida qualquer que seja o grau de endividamento. Todavia,
governos e residentes também possuem dívidas e pagamentos realizados em
moeda estrangeira. Nesse caso, é óbvio que a capacidade de pagamento não
é ilimitada, pois divisas são realmente o recurso escasso por excelência para
a maioria das situações de uma economia que não emite a moeda
internacional.
Assim, se solvência em moeda nacional é um conceito vazio. Por outro
lado, a solvência em moeda estrangeira é um conceito importante. O
interessante é que a solvência em moeda estrangeira não depende apenas dos
pagamentos em moeda estrangeira realizados pelo governo, mas também e
exatamente com a mesma importância dos pagamentos realizados pelo setor
privado.
Essa não é uma conclusão muito intuitiva. Entretanto, é uma
decorrência imediata do que está por detrás de toda esta tese. As divisas
interessam à política econômica principalmente porque elas são as chaves
para o controle dos juros e da inflação. Assim, se o setor privado tem
dificuldade de encontrar moeda estrangeira para fazer seus pagamentos, seu
preço sobe e o governo não consegue cumprir suas metas de política
econômica. Assim, não faz muita diferença se falta dólares para o governo ou
para os residentes, o resultado será o mesmo. Mesmo porque o setor privado
residente sempre aceita vender os ativos que possui pelo preço de mercado
em troca de moeda nacional80, e assim o governo pode obter de seus
contribuintes moeda estrangeira que eles possuírem aos preços de mercado.
Mas se a demanda de divisas do governo somada à demanda do setor privado
for superior à oferta, poderá haver dificuldades de cumprimento dos objetivos
do governo e, portanto, restrições importantes à política econômica.
80 Cujo suprimento para o governo é ilimitado.
192
A solvência de um país é uma questão importante para avaliar a
capacidade de atração de financiamento estrangeiro. Para o financiamento por
dívida o que importa é a capacidade de pagamento de dívidas em moeda
estrangeira do país. Já para o financiamento em investimentos externos
diretos a solvência é uma questão mais complexa.
A solvência deveria medir a capacidade de retorno do capital investido.
Assim, para o investidor externo direto ou o investidor estrangeiro em ativos de
renda variável denominados em moeda nacional, o que importa não é
simplesmente a capacidade do país em pagar suas dívidas ou ser permitido
transformar seus ativos nacionais em moeda estrangeira (liberdade de
movimento de capitais). Se a taxa de câmbio se desvalorizar mais do que a
valorização de seus ativos de renda variável em moeda nacional ou se houver
uma depreciação do valor desses ativos em moeda nacional, o investidor
estrangeiro não poderá retornar todo capital investido.
Portanto, solvência em moeda estrangeira não deve medir apenas a
capacidade de pagamento de dívidas em moeda estrangeira. Deve também
medir a possibilidade da escassez de divisas levar à desvalorização cambial, a
maior controle sobre os movimentos de repatriação de capital, à recessão,
estagnação econômica ou deflação de títulos de renda fixa (elevação dos juros)
ou de ativos de renda variável.
Em países que sofrem de restrição externa, essas situações estão em
geral relacionadas com crises internacionais de liquidez, com recessão a nível
mundial, ou com crises cambiais. Assim a solvência externa deve medir a
sensibilidade dos países a crises externas ou cambiais, ou seja, medir o grau
de vulnerabilidade externa. Nos termos propostos neste trabalho, a solvência
externa mediria o risco de pressão cambial implicar em fortes e duradouras
restrições à política econômica.
A solvência a curto prazo ou a liquidez externa mede a sensibilidade da
política econômica a crises externas em termos de elevação dos juros,
desvalorização cambial, recessão ou propensão a reduzir as facilidades para
movimento de capitais no curto prazo. Enquanto a solvência a longo prazo
mede a sensibilidade a crises externas em um futuro mais distante.
A solvência de títulos de dívida externa está relacionada principalmente
com o risco de inadimplência, porém não apenas ao risco real de
193
inadimplência, mas também o risco de elevação do chamado ‘prêmio de risco’
que o mercado paga para esses títulos. Se o ‘prêmio de risco’ exigido pelo
título sobe acentuadamente, o detentor pode incorrer num prejuízo tão grande
quanto o que teria em caso de inadimplência e necessidade de renegociação
da dívida.
A solvência externa para dívidas de curto, médio e longo prazo em
moeda estrangeira é máxima ou próxima a isso em países com necessidade de
financiamento externa – NFE negativa. Esses países não teriam a princípio
dificuldade em pagar dívidas e nem disposição em não pagar, já que podem
pagar e, como credores internacionais, tem interesse em dar o exemplo de
bons pagadores. Dessa forma, o risco de inadimplência seria muito pequeno,
assim, como a possibilidade de alterações significativas no prêmio de risco
cobrado pelos títulos do país.
A solvência do país ou potencial de prejuízo sistêmico para
investimentos externos em renda variável, como os investimentos diretos,
depende da possibilidade de forte desvalorização, instituição de controles de
capitais, recessão aguda ou elevação acentuada do diferencial de taxa de juros
causados por crise externa.
A crise externa decorre da escassez de divisas ou pressão cambial que
o governo não é capaz de conter ou que para conter necessita de adotar
políticas econômicas muito duras que acabam por gerar prejuízos importantes
à atividade econômica.
A pressão cambial persistente, como vimos, não pode ser causada por
pura especulação cambial, pois o governo tem à sua disposição instrumentos
para conter essa especulação quando ela é resultado de auto-referenciação ou
na crença em profecias auto-realizáveis. Raramente um governo precisaria
adotar políticas mais dolorosas para conter um ataque cambial baseado em
auto-referenciação. Bastaria apenas colocar em dúvida as expectativas e diluir
o consenso instituído para que o volume líquido de especulação cambial se
reduzisse e oscilasse, fazendo assim com que o fluxo estrutural de dólares
(NFEDcp) passasse a ser a força mais importante com relação à evolução da
taxa de câmbio e, portanto, da própria formação de expectativas.
O fluxo estrutural de dólares é igual à NFEDcp com sinal invertido. As
políticas econômicas e as expectativa cambiais tem pouca influência, no curto
194
prazo, sobre a NFEDcp, particularmente se o efeito desejado for de reduzi-la.
Assim, quando o fluxo estrutural é persistentemente negativo, o governo é
obrigado a aceitar desvalorizações acentuadas, elevar muito os juros ou reduzir
significativamente a taxa de crescimento.
Mas esses problemas são pouco prováveis em países com NFE
negativa81. Tais nações praticamente não estão sujeitas a escassez de divisas
persistentes ou crises externas. Isso decorre de três motivos: (1) eles
costumam ter a NFEDcp negativa, nula, levemente positiva ou apenas
temporariamente positiva; (2) eles não precisam de grandes modificações na
política econômica para tornar negativa uma NFEDcp previamente positiva; e
(3) eles não precisam de grandes modificações na política econômica para
tornar positivo o fluxo de entrada de capital especulativo e assim financiar a
NFEDcp enquanto ela estiver positiva.
Para que um país que possui uma NFE negativa tenha uma NFEDcp
positiva é necessário que a soma do fluxo de investimentos externos diretos
líquidos enviados para o exterior mais os empréstimos líquidos de longo prazo
concedidos a outros países seja significativamente maior do que zero. Ou seja,
precisa ser um importante exportador de capital de longo prazo. Nem sempre
um país com NFE negativa consegue ser um grande exportador de capital de
longo prazo. Para isso seria necessário ser a sede de um volume muito grande
de multinacionais em processo de expansão internacional e ou possuir muitos
bancos multinacionais com sede no país também em processo de expansão
internacional. Dessa forma, nem todo país com NFE negativa consegue
permanentemente um volume de exportação de capital de longo prazo grande
o suficiente para tornar a NFEDcp positiva.
A exportação de capital é volátil e sensível à possibilidade de crises
internacionais, e portanto, o país tende a atrair capital em caso de turbulências
internacionais, o que reduz ainda mais a sensibilidade do país a crises
externas.
Mas se a exportação de capital for muito grande e estável e, portanto, a
NFEDcp for persitentemente positiva, a pressão cambial decorrente poderá
81 Os EUA estão incluídos entre os países com NFE negativa, pois a NFE é medida em termos de pagamentos realizados em moeda estrangeira.
195
aumentar o risco de ultrapassagem da meta de inflação. Nessa situação, o
governo deverá reduzir a NFEDcp.
Se um país é credor internacional líquido, sua solvência é máxima ou
praticamente máxima. Um credor líquido quase certamente possui uma NFE
negativa. Se, além disso, ele também possui um saldo em conta corrente
positivo, o que também é comum nessas situações, sua solvência é máxima.
Assim, podemos dizer que o sinal da NFE pode ser um primeiro
indicador para a avaliação da solvência de um país. O sinal do saldo em conta
corrente é o segundo.
Se a NFE é positiva, o país precisa de crédito externo. Portanto, a
solvência a curto e a longo prazo dependeria de uma infinidade de outras
questões. Entre essas, estariam as condições de liquidez internacional.
Quando há abundância de liquidez internacional os parâmetros de solvência
para os investidores tornam-se muito mais flexíveis. Isso ocorre porque os
credores e investidores externos tem uma visão individual do risco do país.
Individualmente, um financiamento a mais concedido não implica em aumento
significativo da demanda futura de divisas daquele país. Os credores em
potencial estão observando os outros credores, se a maioria confia, o país tem
crédito e pode pagar suas dívidas, se não confiam, o país se torna insolvente
ou inadimplente.
Entretanto, os indicadores de solvência continuam importantes, mesmo
porque eles são uma importante fonte de evidências para avaliar a confiança
média dos credores em potencial. Os problemas, como esses, em que surgem
auto-referenciação de opiniões são difíceis de modelar. Nesse caso, é comum
serem adotados indicadores de solvência com variáveis auto-referenciadas.
Por exemplo, às vezes se considera como um indicador de solvência o que
chamamos de necessidade de financiamento externo por dívida – NFED ou o
saldo em conta corrente menos os investimentos direto externos. Essa solução
pode ser interessante para um investidor avaliar o risco de um país, mas não é
adequada para explicar as razões da condição vigente de solvência de um
país, pois os próprios investimentos diretos dependem da solvência externa.
Nesse caso, esse indicador não seria capaz de explicar as razões desse
volume de investimento externo, pois acabaria caindo em um problema de
regressão infinita.
196
Indicadores de solvência no mercado financeiro são instrumentos
reconhecidamente imperfeitos para avaliar se um país é um “bom crédito”. São
sempre arbitrários e dependentes de convenções. Nesse sentido, não é nosso
objetivo aqui se prender rigidamente a indicadores específicos, mas apenas
mostrar a lógica por detrás desses indicadores e como eles podem afetar a
economia. A suposição de que tais indicadores podem ser importantes na
decisão de financiamento e investimento externos é fundamental para a
construção da resposta a uma importante questão desta tese: quando os
países podem manter políticas expansionistas em situações de pressão
cambial? Acreditamos que essas políticas podem ser sustentáveis, nessa
situação, desde que respeitados os índices de solvência.
Antes de expor alguns indicadores de solvência, precisamos esclarecer
melhor o que entendemos por solvência. O significado de solvência aqui é
similar ao normalmente usado em avaliações financeiras de crédito.
Solvência seria a situação onde o crédito ou o investimento são
considerados seguros. Essa definição decorre de nosso objetivo de saber
quando o país terá financiamento externo de longo prazo.
A garantia de adimplência de um crédito – e, portanto, a solvência –
depende principalmente da sustentabilidade do passivo e da liquidez do
devedor. Dessa forma, os critérios de solvência que vamos propor aqui
deverão agregar essas duas dimensões.
Os indicadores de solvência não devem ser independentes do passivo
externo líquido e do seu prazo de maturação. Também não podem ser
independentes do horizonte temporal dos investimentos analisados. O efeito
desses indicadores sobre o volume de capital atraído para o país depende
entre outras coisas, da lucratividade média esperada no país, o que depende,
por exemplo, do câmbio real e da taxa de crescimento esperada. Além disso,
há uma forte auto-referenciação no volume de capital atraído, o que tornaria, a
princípio, os indicadores de solvência menos relevantes em comparação à
expectativa dos investidores sobre a opinião média do “mercado”. Todas essas
questões tornam o problema muito complexo.
Precisamos primeiramente adotar uma solução para esse problema de
auto-referenciação. Para isso vamos propor indicadores de solvência diferentes
197
para situações de normalidade, de euforia e de crise de liquidez nos mercados
financeiros internacionais.
É importante notar que um país só pode sofrer uma crise de liquidez, se
não houver crédito. A falta de crédito pode ser decorrente de crises nos
mercados internacionais, de um endividamento externo excessivo ou da falta
de reservas cambiais para cumprir compromissos de curto prazo.
O endividamento externo excessivo seria medido pela relação
NFE/exportação Não nos interessa especificar o valor exato da relação que
dividiria os níveis de endividamento considerados baixos e altos, porque é uma
escolha inevitavelmente arbitrária e que precisa de uma justificativa detalhada.
O objetivo aqui é outro, como se verá a seguir.
Para incorporar a questão do prazo de maturação do passivo externo
líquido, vamos utilizar os termos NFE e NFE estrutural. Dois países de dívida
externa idêntica podem ter necessidades de financiamento externo diferentes
em decorrência de diferenças no perfil de suas dívidas. Quanto maior a
proporção de dívidas de longo prazo, menor é a NFE.
NFE e NFE estrutural negativas indicariam que o país é solvente. A NFE
estrutural é a NFE que se espera que o país obtenha se precisar adotar
medidas leves e politicamente aceitáveis para redução da NFE, em uma
situação de grave crise internacional, quando não pudesse se financiar no
exterior. Essas medidas aceitáveis poderiam ser a redução da taxa de
crescimento, mas sem que a taxa de desemprego atingisse níveis não
considerados muito altos, e a desvalorização do câmbio, mas sem que a
inflação ultrapasse significativamente a meta.
Buscaremos contornar os outros problemas propondo três níveis de
solvência para cada situação. Essa é uma das principais soluções técnicas das
empresas especializadas em avaliação de solvência. Essas empresas, porém,
usam um número muito maior de níveis de classificação.
Os critérios de solvência propostos estão reunidos nas tabelas abaixo:
198
Países com NFE negativa ou com NFE estrutural negativa Solventes
Países com NFE estrutural positiva
Classificação de risco
Condições conjunturais e estoque de dívida
Euforia ou normalidade com dívida baixa
( NFE/Export < parâmetro )
Normalidade ou crise de liquidez com dívida baixa
( NFE/ Export < parâmetro )
crise de liquidez ou países com dívida muito alta ( NFE/Export > parâmetro )
Solvente
Taxa de crescimento das exportações ≥ que a taxa de crescimento das importações E Taxa de crescimento das exportações ≥ que a remuneração do passivo externo líquido Ou Conta corrente ≥ 0
Conta corrente ≥ 0 E Taxa de crescimento das exportações ≥ que a taxa de crescimento das importações E Taxa de crescimento das exportações ≥ que a remuneração do passivo externo líquido
conta corrente > 0 e significativamente altos níveis de reservas em relação à NFE e Taxa de crescimento das exportações ≥ que a taxa de crescimento das importações e Taxa de crescimento das exportações ≥ que a remuneração do passivo externo líquido
Solvência condicionada à disposição dos credores
ou à manutenção das condições de liquidez ou à
melhoria na taxa de crescimento das
exportações
Taxa de crescimento das exportações > 0
Conta corrente ≥ 0 ou Taxa de crescimento das exportações ≥ que a taxa de crescimento das importações E Taxa de crescimento das exportações ≥ que a remuneração do passivo externo líquido
conta corrente > 0 e significativamente altos níveis de reservas em relação à NFE
Insolvente Inadimplência
Conta corrente < 0 e Taxa de crescimento das exportações < que a remuneração do passivo externo líquido Ou Taxa de crescimento das exportações ≥ que a taxa de crescimento das importações
Conta corrente < 0
Esses indicadores foram definidos com certa arbitrariedade, o que é
inevitável neste tipo de problema82. No entanto, para nossos objetivos,
interessa apenas mostrar a importância do saldo em conta corrente e da taxa
de crescimento das exportações.
O saldo positivo em conta corrente indica que o país tem capacidade de
pagar os juros da dívida externa. Mostra ainda que o país não precisa tomar
novos financiamentos externos, basta apenas trocar os antigos empréstimos.
82 Além disso, eles não abrangem todas as possibilidades, o que seria evitado se no quadro “insolvente” de cada coluna escrevêssemos: “caso contrário”. Porém, seria uma proposição forte, pois as fronteiras entre os resultados dessas situações não são suficientemente precisas.
199
Em circunstâncias normais, essas condições mantêm os credores seguros e,
portanto, dispostos a adquirir títulos de dívida. Ademais, se o saldo em conta
corrente for positivo, os residentes desse país estão acumulando ativos em
moeda forte e, portanto, reduzindo continuamente a NFE.
A princípio, é racional considerar também a taxa de crescimento das
exportações, e compará-la com a taxa de crescimento das importações e
com a remuneração média do passivo externo líquido. Assim, a taxa de
crescimento das exportações estaria avaliando se as condições de solvência
são sustentáveis no longo prazo.
Porém, os investidores e financiadores geralmente não estão tão
preocupados com o longo prazo. O saldo em conta corrente indica boas
condições de solvência para o curto prazo e garante resistência à crise sem a
necessidade de recessão profunda, risco de hiperinflação ou inadimplência da
dívida externa. Se o país consegue manter o saldo em conta corrente positivo
sem perder o controle da taxa de câmbio e sem recessão profunda, não será
difícil garantir o refinanciamento de sua dívida externa, mesmo em condições
de crise externa, ainda que para isso seja necessário uma renegociação
coletiva. Caso contrário, esse resultado não é garantido e os credores e
investidores externos estarão sujeitos a grandes perdas. Por isso, a
capacidade de gerar superávit em conta corrente sem grandes dificuldades é
uma condição fundamental, ainda que não ideal para os credores, para garantir
a solvência, mesmo em condições de crise externa.
Dessa forma, a taxa de crescimento das exportações é um critério
subalterno ao critério do saldo em conta corrente. Mas a taxa de crescimento
das exportações confrontada com outras variáveis é um indicador importante
para as condições de solvência no longo prazo. Os investidores externos não
são alheios a esse ponto, mas sabem que o longo prazo é muito incerto e
qualquer indicador que vise prever o risco em um futuro muito distante não será
muito confiável. A taxa de crescimento das exportações obtida no presente
pode ser diferente da taxa obtida nos anos futuros, ela pode ser maior ou
menor. Além disso, o país pode reduzir sua taxa de crescimento no futuro
ajustando as importações à baixa taxa de crescimento das exportações.
Os investidores estão assim mais preocupados com as condições de
solvência de curto prazo, com o lucro esperado no negócio e com a opinião da
200
maioria. Para um analista de investimento, se um país está recebendo um
grande volume de empréstimos de longo prazo e investimentos externos seu
risco deve ser baixo.
Assim, podemos sugerir que o saldo em conta corrente seja o principal
critério de solvência avaliado pelos credores e o segundo seja a taxa de
crescimento das exportações. Quando o país obtém notas positivas em ambos
indicadores, ele estará em uma situação de solvência muito confortável. Se o
país tem apenas um desses indicadores positivos diríamos que a solvência é
condicionada. Se o país tem déficit em conta corrente, sua solvência é
condicionada à confiança dos mercados de que ele será capaz de gerar com
facilidade um superávit em conta corrente em momentos de crise externa. Uma
taxa elevada de crescimento das exportações indica que essa capacidade
existe e que as condições de solvência serão mantidas no futuro. Se o país tem
superávit em conta corrente, mas a taxa de crescimento das exportações muito
reduzida, sua solvência para aplicações de longo prazo de maturação é
condicionado à opinião majoritária sobre a capacidade futura de pagamento do
país. Se o país garante solvência a curto prazo e recebe grande volume de
capital de longo prazo, podemos concluir que “o mercado” confia que será
capaz de manter solvência no futuro. O investidor individual provavelmente
acha que a maioria dos seus colegas ou concorrentes confia que a taxa de
crescimento das exportações aumentará ou que o governo reduzirá a taxa de
crescimento para manter o saldo em conta corrente. Os analistas de
investimentos confiam na capacidade analítica da maioria dos seus pares ou,
no mínimo, prefere errar em comunidade do que errar sozinho.
Portanto, o saldo em conta corrente e a taxa de crescimento das
exportações (comparada com a taxa de crescimento das importações e com a
remuneração do passivo externo líquido) são os principais critérios para
avaliação da solvência dos países. Eles são muito importantes para a indicar
as condições de risco sistêmico dos países em situações normais de liquidez
internacional. E mais importante, indicam a capacidade do resistir a crises
externas no futuro sem maiores prejuízos para os investidores e financiadores
externos. O saldo em conta corrente indica capacidade de resistir a crises em
futuro próximo e a taxa de crescimento das exportações em um futuro distante.
201
Entretanto, esses indicadores podem não ser tão relevantes em
momentos de euforia nos mercados financeiros internacionais, quando um
determinado país é visto como um “maná” com grandes lucros prontos para
serem colhidos, ou ainda quando o endividamento externo do país for muito
reduzido em relação a suas exportações. Da mesma forma, uma boa
performance nesses critérios pode não ser a solução para viabilizar uma
grande entrada de capital externo em momentos de crise de liquidez. Como já
repetimos diversas vezes, os investidores tendem a se mover em bando,
principalmente, nesses casos.
Todavia, essa constatação não impede que os indicadores de solvência
externa não sejam fundamentais. Os governos bem sucedidos os adotam
informalmente por experiência ou são induzidos a adotá-los pelas condições de
evolução dos movimentos de capitais. De fato, eles devem ser considerados
como um critério fundamental para as decisões econômicas dos governos,
porque eles permitem que a política possa se fundamentar não apenas nas
condições conjunturais dos mercados cambiais.
Como vimos, pressão cambial sentida através desses mercados é a
fonte de constrangimento básica da política econômica. Como vimos, ela só se
torna persistente quando a NFEDcp é significativamente positiva. O governo
pode reduzir essa pressão aumentando as FFEcp ou vendendo reservas.
Porém, essas são soluções temporárias. O governo é obrigado a manter a
NFEDcp em valores menores ou próximos a zero, em algum momento, se
quiser ser capaz de manter controle sobre a taxa de câmbio e, portanto, sobre
a taxa de inflação. Entretanto, existem diversas maneiras de reduzir a NFEDcp,
umas mais dolorosas outras menos.
Uma forma eficaz de reduzi-la é diminuindo a taxa de crescimento da
economia. No entanto, é possível obter o mesmo resultado aumentando as
expectativas de crescimento da economia, quando isso é possível. Essa
solução é socialmente mais interessante.
As expectativas de crescimento para a economia aumentam as
perspectivas de lucro no país atraindo investimento externo direto. Essas
expectativas aumentam também o investimento e, portanto, a demanda por
empréstimos externos de longo prazo. O volume de capital que entra no país
nessas circunstâncias depende ainda da vigência de um câmbio competitivo.
202
Quanto mais competitivo é o câmbio, maior é a atratividade dos investimentos
em importáveis e menor é o risco de desvalorizações futuras, que aumentam o
custo e o risco dos financiamentos externos.
Dessa forma, o governo pode responder à pressão cambial decorrente
de uma NFEDcp positiva, induzindo o crescimento da economia. Porém, o
sucesso ou a sustentabilidade dessa solução é condicionada pelo não
comprometimento dos indicadores de solvência.
O crescimento econômico e o câmbio competitivo garantem boa
rentabilidade para os investidores externos e internos. Bons indicadores de
solvência garantiriam baixo risco. Assim, bastaria que os investimentos
externos diretos sejam atraídos em volume suficiente ou que a taxa de juros
esteja levemente acima da internacional ou ainda que o governo tomasse ele
próprio empréstimos no exterior para que a NFEDcp fosse mantida reduzida ou
fosse financiada por empréstimos de longo prazo tomados pelo governo.
Os IDE e os empréstimos a longo prazo são voláteis e, podem não ser
suficientes para manter a NFEDcp menor do que zero em todos os momentos.
Nessa situação, o governo pode simplesmente emitir dívida externa e vender
reservas para neutralizar a pressão cambial. Para o país, o volume de dívida
externa e para a contabilidade pública não faz grande diferença entre
endividamento externo é público ou privado. O endividamento externo, quando
internalizado gera um crescimento da dívida pública interna similar.
Assim, podemos concluir que o governo pode responder eficazmente à
pressão cambial com políticas expansivas, aumentando o emprego, sem a
necessidade de elevar os juros para atrair capital, desde que sejam respeitados
os indicadores de solvência.
É preciso ressaltar apenas que esses indicadores não são tão rígidos
como poderia parecer a partir dessa conclusão. Em momentos de pouca
liquidez internacional o indicador mínimo que precisa ser obtido é o saldo em
conta corrente. Em momentos onde o crédito internacional funciona
normalmente, bastaria uma taxa de crescimento elevada para as exportações
em comparação à taxa de crescimento do PIB e que seja respeitada a
condição de que a ela seja em média próxima à taxa de remuneração do
passivo externo líquido.
203
Dessa forma, como a pressão cambial pode se eliminada com soluções
expansivas, enquanto os indicadores de solvência forem respeitados; esses
indicadores estariam determinando, em situação de liquidez internacional, o
ponto de restrição externa, onde a política econômica passaria a ser
claramente condicionada. A consideração teórica desse ponto será
fundamental, no próximo capítulo, para a proposta de ampliação da teoria das
finanças funcionais.
No gráfico abaixo buscamos ilustrar as conclusões desta seção. À
esquerda do ponto de restrição externa, o país estaria solvente e poderia
expandir o nível de atividade, mesmo que eventualmente sofra pressão cambial
decorrente de uma NFEDcp positiva. Se isso acontecer o governo pode tentar
aumentar o incentivo à entrada de capital externo de longo prazo via melhoria
nas perspectivas de crescimento econômico, via, por exemplo, uma política
fiscal expansionista. Outra política que pode ser muito eficaz em atrair capital
de longo prazo é tornar o câmbio real mais competitivo via uma desvalorização.
Se os capital externo de longo prazo não responder bem a essas medidas o
governo poderá ele próprio captar financiamentos externos para aumentar as
reservas e assim intervir nos mercados de câmbio quando surgir tendências à
desvalorização. Dessa forma, o país poderá eliminar a NFEDcp positiva ou
financiá-la com emissão de dívida pública no exterior, sempre que o nível de
atividade estiver à esquerda no ponto de restrição externa.
No gráfico abaixo, a seta em curva tenta mostrar a capacidade do
governo em levar “deslocar” o nível de atividade que delimita as regiões onde a
NFEDcp passa a ser positiva para o ponto de restrição externa.
É importante notar que há no gráfico uma taxa de juros de longo prazo
estrutural mínima que deve ser respeitada para que o país possa manter a
NFEDcp não-positiva. A manutenção de taxas de juros menores do que essa
por muito tempo fariam com que o saldo de empréstimos de longo prazo se
tornar suficientemente negativo para dificultar o país manter a NFEDcp não-
positiva, mesmo se o país estiver solvente. No próximo capítulo, buscaremos
explicar o porquê da existência dessa taxa mínima estrutural de juros de longo
prazo e como ela seria determinada.
O ponto onde o nível de emprego e a taxa de crescimento seriam
maximizados no nível de atividade dado pelo ponto de restrição externa com a
204
taxa de juros mínima de longo prazo. Quanto menor a taxa de juros, maior é a
competitividade do país e maior é a taxa de crescimento das exportações,
portanto, mais rápido se desloca o ponto de restrição externa.
A definição desse ponto depende do critério de solvência que o país
precisa cumprir no momento (DCC ≤ 0 ou taxa de crescimento das exportações
é menor ou igual à taxa de crescimento das importações). O nível de atividade
pode ultrapassar esse ponto, mas nada garante que o país conseguirá atrair o
capital de longo prazo que permitirá uma suficiente imunidade a ataques
especulativos decorrentes de NFEDcp persistentemente positivas. Nesse
ponto, as metas de inflação e a estabilidade econômica geral estariam em
risco.
y
j insolvente
solvente
ponto de restrição externa
DCC 0 ou
%Exp % Imp
Pleno emprego
j = %Exp
insolvente
j mín. estrut
NFEDCP 0
SETA: Políticas de expansão econômica, emissão de
dívida pública no exterior, manutenção de um diferencial mínimo estrutural e utilização da política monetária e de reservas para impedir que o processo de deslocamento
da NFEDcp 0 para o ponto de restrição externa implique em pressão cambial suficiente para colocar em risco as metas de inflação ou câmbio
Ponto de maximização da taxa de crescimento
205
3.6.2. Política cambial e creditícia
“Um dos problemas mais vexatórios da teoria econômica é a explicação de como se forma a taxa de câmbio. Num mundo sem surpresa, em que todo o futuro fosse absolutamente transparente, em que todos os mercados fossem concorrenciais e instantaneamente equilibrados, em que o comércio de bens e serviços não sofresse qualquer restrição e a liberdade de movimento de capitais fosse absoluta, a taxa de câmbio se formaria como preço de uma mercadoria qualquer. (...) [Entretanto a]s nações não são espaços abertos que satisfazem a concepção dos economistas: são espaços fechados que freqüentemente se organizam em torno de projetos de poder interno e pretensão de poder externo, de acordo com sua capacidade de cooptar os nacionais e de impor sua presença ao não-residentes. As potências, na sua hierarquia, só aceitam a liberdade de comércio e de capitais quando já construíram um escudo defensivo que permite acomodá-la com a permanência e continuidade do seu poder político. É aqui que a ‘Teoria econômica’ tem de ser substituída pela ‘Economia Política’. Pois bem: o que a Teoria econômica não sabe sobre a taxa de câmbio, a ‘Economia Política sabe! Os países bem-sucedidos (a exemplo de Alemanha, Itália e Japão, depois da Segunda Guerra Mundial), a China e outros asiáticos mostraram que o desenvolvimento sustentado depende de um enorme esforço exportador com uma taxa de câmbio ligeiramente subvalorizada que permita rápida expansão das exportações e razoável acumulação de reservas capaz de blindar o país dos choques produzidos pelo comportamento de manada dos capitais internacionais” (Delfim Netto, 2004)
83.
Nesta seção, vamos discutir a importância da política cambial
para o tipo de inserção externa escolhido pelo país e sua taxa de crescimento.
A hipótese é que a escolha da política cambial acaba sendo determinante para
a taxa de juros de longo prazo obtida, a forma de financiamento do balanço de
pagamentos, a taxa de crescimento das exportações, e portanto, para a taxa
de crescimento econômico.
Essa hipótese é válida se o país adota liberdade de movimento de
capitais. Nesta seção, estaremos trabalhando com a premissa de liberdade de
movimento de capitais. Não faremos isso porque essa política seja mais
desejável do que o controle de capitais. De fato, o controle de capitais é o ideal
83 Carta Capital 1º de dezembro de 2004.
206
um país em processo de desenvolvimento, pois permite manter uma taxa de
juros muito baixa e estável e ter mais controle sobre o câmbio nominal e real.
Entretanto, pensamos que a liberdade de movimento de capitais é uma
opção de política tão difundida que é desejável utilizar o arcabouço das
finanças funcionais para compreender melhor a política econômica sob essa
condição, ainda que ela não seja a ideal.
3.6.2.1. Autonomia da política cambial
As perspectivas de valorização ou desvalorização do câmbio dependem
fortemente das políticas cambiais. A grande maioria dos governos é capaz de
escolher sua taxa de câmbio nominal dentro de uma grande faixa de variação
possível.
Qualquer país pode impedir que sua taxa de câmbio se valorize, assim
como pode desvalorizar sua moeda no montante que deseja. Os governo
emitem moeda. Dessa forma, podem comprar muito mais divisas do que o
volume que estiver à venda e, portanto, tem liberdade completa de impedir
valorizações e promover desvalorizações. Essa capacidade da política
econômica pode não ter respaldo suficiente em termos jurídicos ou políticos. A
Europa, por exemplo, tem encontrado dificuldades em impedir a valorização do
euro, porque seu Banco Central não tem como diretriz prioritária comprar
divisas de forma a manipular a taxa de câmbio. Por seu turno, o Japão tem
sofrido muita pressão dos EUA para que não impeça a valorização do iene.
Nos anos 80 os EUA pressionaram o Japão e a Europa a permitirem a
valorização de suas moedas.
Mas essas constatações, apenas confirmam a regra que queremos
ressaltar: a liberdade da política cambial é muito grande – principalmente na
direção da desvalorização.
Todavia, impedir desvalorizações ou promover valorizações pode ser
mais difícil, pois os governos não possuem uma oferta plenamente elástica de
moeda de outros países. Ainda assim, a grande maioria dos países é capaz de
impedir desvalorizações e até promover valorizações sustentáveis, pelo menos,
a curto ou médio prazo, mas muitas vezes também a longo prazo.
Essa capacidade decorre do grande poder dos Estados Nacionais sobre
as operações comerciais, financeiras e sobre as expectativas acerca das
207
variáveis macroeconômicas que envolvem moeda nacional. Comprando e
vendendo divisas, manipulando taxas de juros, gastos públicos, tributação geral
e impostos específicos, alterando tarifas alfandegárias, coordenando
expectativas, os governos geralmente se tornam capazes de fixar e mesmo
decidir a variação do câmbio.
Entretanto, com freqüência, para impedir desvalorizações, os governos
precisa fazer usos de políticas que também tem outras funções e, portanto,
modificar outras variáveis econômicas. Alguns governos não precisam de
grande esforço para impedir desvalorizações, já outros podem ser obrigados,
nessas circunstâncias, a tomar medidas politicamente tão difíceis que preferem
aceitar desvalorizações que comprometam suas metas de câmbio ou inflação.
As perspectivas de evolução do câmbio dependem assim
fundamentalmente do poder e da disposição do governo em definir os limites
para flutuação livre da taxa de câmbio sem ser obrigado a enfrentar dilemas
(trade-offs) políticos importantes.
Praticamente todos os governos na prática definem explícita ou
implicitamente tetos e pisos conjunturais para as taxas de câmbio. Os tetos são
definidos basicamente em decorrência do objetivo de controle da inflação.
Como vimos, taxas de inflação elevadas são decorrentes de desvalorizações
acentuadas ou cumulativas da taxa de câmbio. Dessa forma, o controle da taxa
de câmbio é fundamental para a manutenção inflação dentro das metas que o
governo define.
Os pisos para a taxa de câmbio são determinados basicamente pelo
objetivo de limitar o déficit em conta corrente ou para determinar um valor
mínimo para a taxa de crescimento das exportações. Essas variáveis são
fundamentais para a solvência externa do país e para determinação da sua
taxa de crescimento a longo prazo.
O câmbio é, portanto, uma questão de decisão política e não mais um
preço determinado pelo mercado.
208
3.6.2.2. Política cambial e crédito de longo prazo
3.6.2.2.1. Moeda forte
O conceito de moeda forte é muito utilizado no jornalismo, nas finanças
internacionais em até em debates sobre relações internacionais. É um conceito
útil, se considerarmos que existe algum atributo teoricamente relevante que
diferencia o dólar, o euro e o iene de moedas como o peso mexicano e o real
brasileiro.
O conceito de moeda forte está ligado à propriedade dessa moeda como
ativo financeiro. Não há dúvidas de que é mais rentável guardar euros ou
dólares em um cofre por dez anos do que guardar reais ou outra moeda de um
país subdesenvolvido. Essa certeza decorre da crença generalizada de que
essas moedas se desvalorizarão a longo prazo em relação às primeiras.
Podemos concluir que, ao contrário do que, às vezes se pensa, uma
moeda não é forte quando está valorizada “em termos reais” em relação a
outras. Uma moeda é forte quando existe perspectiva de valorização
nominal a longo prazo dela em relação a outras. O que é muito diferente.
Geralmente uma moeda com perspectiva de valorização a longo prazo é uma
moeda desvalorizada “em termos reais”.
A força da moeda depende da expectativa de valorização nominal
esperada a longo prazo. Se houver um diferencial significativo de inflação
esperada entre os países, a força da moeda dependerá da capacidade e da
disposição do governo que possui taxas de inflação superiores em manter a
taxa de câmbio nominal estável, apesar da tendência a apreciação do câmbio
real.
3.6.2.2.2. Taxa de juros de longo prazo mínima
Vimos que a taxa de juros de curto prazo pode ser reduzida quando a
NFEDcp é não-positiva. Se essa variável for positiva haverá pressão para
aumento dos juros. Dessa forma, a taxa média mínima de juros de curto prazo
é resultado da freqüência e da intensidade das ocorrências de NFEDcp
positivas.
209
A taxa de juros de longo prazo é uma expectativa média para as taxas
de juros de curto prazo dos períodos futuros mais um spread de risco. Essa
expectativa média é ponderada pela taxa de desconto, de forma a tornar o
futuro mais próximo mais relevante do que o futuro mais distante. Portanto, a
taxa de longo é muito dependente taxas básicas vigentes.
Assim, se a taxa de juros média mínima de curto prazo é resultado da
freqüência e da intensidade das ocorrências de NFEDcp positivas, a taxa de
juros média mínima de longo prazo também muito dependente desses fatores.
Essa explicação para a taxa de juros média mínima de longo prazo
poderia ser aperfeiçoada, se pudéssemos explicar a relação entre a taxa de
juros de longo prazo e essa freqüência de ocorrências de NFEDcp positivas.
Vimos que os empréstimos de longo prazo são relativamente sensíveis
ao diferencial de taxas finais de juros de longo prazo, apesar de não reagirem
tão rapidamente às mudanças nesse diferencial.
Na ausência de intervenção do governo nos mercados cambiais, a
relação entre a taxa de juros mínima de longo prazo e a freqüência em que
seria gerada a NFEDcp positiva dependeria da NFED. Uma NFED negativa
implica que o país não depende de empréstimos de longo prazo. Assim, a
princípio, enquanto a NFED for negativa, raramente ocorreriam episódios em
que a NFEDcp fosse positiva, se o saldo dos empréstimos de longo prazo
forem próximos a zero. Portanto, nesse caso, desde que não existam grandes
expectativas de desvalorização no longo prazo, a taxa de juros nominal de
longo prazo pode ser reduzida até se tornar inferior à taxa americana. O quão
inferior dependerá, além da já citada NFED, da internacionalização e da
competitividade do sistema financeiro nacional em conceder empréstimos
externos a longo prazo.
Essas conclusões seriam válidas se a moeda do país fosse forte. Se a
moeda for fraca, haveria um empecilho que dificultaria manter a taxa de juros
nominal de longo prazo abaixo ou mesmo iguail à taxa americana, mesmo se a
NFED puder ser mantida negativa.
Moedas fracas são aquelas que o mercado considera que a
probabilidade de desvalorização no longo prazo em relação à moeda central é
altíssima. Eventualmente poderiam ser caracterizadas como moedas que
precisam manter taxas de juros permanente e sensivelmente mais elevadas do
210
que a taxa do país central. Essa proposição possui duas implicações.
Primeiramente, a expectativa de desvalorização significativa da moeda fraca a
longo prazo é muito confiável, pelo menos a taxas de juros similares. E mais
importante, aplicações de longo prazo na moeda mais forte a taxas de juros
equivalentes são mais rentáveis e menos arriscadas.
Dessa forma, à mesma taxa de juros nominal de longo prazo, o setor
privado em geral e principalmente os bancos tenderão a comprar grandes
quantidades de títulos de longo prazo no exterior.
Essa atitude, muito provavelmente implicaria em tendência à NFEDcp
positiva, mesmo quando a NFED for negativa. A taxa de juros de curto prazo
precisaria ser elevada com freqüência e não seria possível sustentar por muito
tempo uma taxa de longo igual ou menor do que a NFEDcp. Poderíamos assim
concluir que, na média, essa taxa precisará ser superior à americana, para que
a exportação de capital na forma de empréstimos de longo prazo fosse
ajustada às condições do balanço de pagamentos.
Porém, a taxa de juros nominal de longo prazo não precisa ser muito
superior à americana, mesmo se a moeda for fraca. Se a inflação for moderada
e esse diferencial for ligeiramente positivo, o volume de exportação de capital
na forma de empréstimos tende a ser moderado. Primariamente porque para
financiamentos de longo prazo o diferencial tem alguma relevância. Além disso,
o risco de curto prazo dessa operação pode ser alto, portanto, para boa parte
dos agentes só seria compensador, se não houvesse diferencial de juros de
longo prazo.
Se a moeda for fraca a taxa de juros nominal de longo prazo só
precisaria ser significativamente superior à americana, se a taxa de inflação
esperada para o futuro for significativamente maior do que a inflação nos EUA.
Porque esse diferencial de taxas de inflação é um importante critério para
formular as expectativas mínimas de desvalorização a longo prazo. Uma
grande diferença esperada entre as expectativas mínimas de desvalorização
esperadas que não é minimamente compensada com um diferencial de juros
nominais, implicará que as aplicações em títulos de longo prazo em dólares
serão significativamente mais rentáveis e menos arriscados do que a aplicação
em títulos nacionais. Portanto, haveria uma demanda muito grande e uma
grande exportação de capital.
211
Entre moedas fortes, esse diferencial positivo seria desnecessário e um
diferencial negativo seria sustentável. Porque não há uma posição tão
majoritária sobre qual seria a tendência a longo prazo de variação do câmbio
entre essas moedas.
Dessa forma, se o país é solvente, a taxa média mínima de juros
nominal de longo prazo é basicamente uma conseqüência da necessidade de
impedir a exportação de capital na forma de empréstimos externos de longo
prazo e não da necessidade de atrair financiamentos. Porque, sempre que o
país for solvente, é possível manter:
NFED – EEG 0
Onde:
EEG = empréstimos externos tomados pelo governo
Portanto, torna-se desnecessário sustentar um diferencial de juros de
longo prazo para induzir financiamento externo.
Se a moeda for fraca a taxa nominal de juros de longo prazo precisa ser
em média superior à taxa internacional para que a exportação de capital de
longo prazo não acabe tornando a NFEDcp maior do que zero84. Se a moeda
for forte, a taxa de juros mínima pode ser inferior à taxa de juros internacional,
desde que a NFED negativa, pois não faz sentido para o país tomar
empréstimos governamentais no exterior para depois o setor privado nacional
emprestar no exterior a taxas inferiores. O quão menor depende de diversos
fatores, como a internacionalização e a competitividade internacional do seu
sistema bancário.
3.6.2.2.3. Construção de uma moeda forte e de uma baixa taxa de juros
de longo prazo
84 Esses pisos se referem à moeda que utilizada como reservas cambiais. Caso o país não tenha uma política de reservas tradicional, a referência deverá ser o dólar. Essa referência é importante porque os tomadores privados de longo prazo desejam correr o menor nível de risco cambial possível. Se seu país adota uma determinada moeda como referência, essa é a moeda internacional que tem maior correlação com seus preços internos.
212
A força da moeda pode ser construída. Se o governo desvaloriza o
câmbio para torná-lo competitivo e posteriormente fixa ou garante sua
estabilidade, poderá obter altas taxas de crescimento das exportações. Se
busca minimizar a taxa de juros também estará aumentando a competitividade
e a taxa de crescimento das exportações.
Nessas condições, atrairá uma grande quantidade de capital externo de
longo prazo e acumulará um volume crescente de reservas. Se a taxa de
crescimento das exportações for suficientemente elevada para permitir que o
país atinja um taxa satisfatória de crescimento econômico, não haverá qualquer
necessidade de desvalorização. Nessa situação, não haveria significativa
expectativa de desvalorização da moeda nacional. Pelo contrário, se o país
adotasse um regime de câmbio flutuante a tendência seria de valorização
cambial, devido principalmente à grande entrada de capital de longo prazo.
Essa conclusão é válida, mesmo se a taxa de inflação do setor de não-
importáveis no país for maior do que a taxa de inflação do setor de não-
importáveis da moeda central.
Dessa forma, o país pode construir a situação em que permitiria no
futuro ter uma moeda forte e, portanto, uma taxa de juros mínima de longo
prazo menor do que as taxas internacionais.
Entretanto, independentemente da moeda ser forte ou não, para que as
taxas de juros sejam efetivamente baixas, é necessário que o governo adote
políticas específicas que permitam que a taxa de juros de longo prazo atinja
esse mínimo. Essas políticas são, em primeiro lugar, manter o país solvente e,
em segundo lugar, garantir que não será necessário utilizar a taxa de juros
para atrair financiamento de longo prazo. Para isso é necessário manter:
NFED – EEG 0
As políticas de aumento da competitividade externa acima citadas, não
necessariamente serão capazes de tornar a moeda do país forte. Porém, elas
ainda assim permitem que a taxa de juros mínima de longo prazo possa se
reduzir. Porque aumentam a taxa de crescimento das exportações, melhoram a
solvência, tornam os IDE e os empréstimos de longo prazo mais seguros e
rentáveis em moeda estrangeira, permitem a acumulação de reservas e
reduzem o risco de pressão cambial em decorrência de uma NFEDcp > 0.
213
3.6.2.2.4. Política cambial, competitividade e crescimento
Kaldor (1971) propõe a relevância da definição de dois tipos de modelos
de crescimento: liderado pelo consumo e liderado pelas exportações. O autor
aparentemente é inspirado nas diferenças entre os processos históricos de
crescimento da Inglaterra e Alemanha do pós-guerra.
Kaldor (1971) sugere que o crescimento liderado pelo consumo seria
menor do que o crescimento liderado pelas exportações. Esse resultado seria
decorrência de um maior crescimento da produtividade no segundo caso,
devido, entre outros motivos, a um maior nível de investimento e participação
na renda do setor industrial.
O autor diagnóstica que uma das principais causas desse resultado seria
o baixo incentivo à exportação em economias com crescimento liderado pelo
consumo. Ele propõe como remédio, que os países usem a taxa de câmbio
y
j insolvente
solvente
ponto de restrição externa
“Pleno emprego”
j = Exp%
insolvente
j dólar LP
j mín LP moeda fraca
j mín LP moeda forte
Políticas de competitividade
externa (principalmente
câmbio competitivo)
NFED – EEG 0
NFED 0 e moeda forte
214
competitiva como ferramenta para aumentar esse incentivo às exportações e
conseqüentemente aumentar a rentabilidade do setor industrial no curto prazo,
seus investimentos, sua participação na renda e sua taxa de crescimento da
produtividade.
O modelo que Kaldor (1971) propõe é baseado em uma situação de
pleno emprego permanente garantido por políticas que, poderíamos dizer, são
muito similares às finanças funcionais de Abba Lerner.
Entretanto, o principal objeto deste trabalho são os países onde o pleno
emprego não pode ser atingido com tais tipos de política. Nesses países, os
incentivos à competitividade externa não precisam induzir o crescimento da
produtividade para que gerem uma taxa de crescimento maior no longo prazo.
A moeda do país desvalorizada em termos reais e os juros de longo
prazo reduzidos são incentivos fundamentais para a competitividade externa, e,
portanto, afetam diretamente a taxa de crescimento das exportações e da
economia. Se incluirmos o efeito que Kaldor levanta, essas variáveis se tornam
ainda mais importantes. Kaldor propõe que quanto maior o crescimento das
exportações, maior é o crescimento da produtividade e, portanto, mais
rapidamente cresce a competitividade externa do país. O mesmo poderia ser
dito com relação à taxa de crescimento econômico. Quanto maior é tamanho
futuro esperado de uma economia, maiores são as perspectivas de ganhos de
escala que aumentam a competitividade das exportações e viabilizam a escala
mínima para diversas atividades. Portanto, quanto maior a taxa de crescimento
esperada maiores são os investimentos que destinam parte da produção para
exportação e maiores são os investimentos em substituição de importações.
Vimos acima que as baixas taxas de juros de longo prazo dependem da
manutenção da solvência externa e da força da moeda. Vimos também que
esses atributos podem ser em grande parte construídos com um câmbio real
competitivo e estável.
As baixas taxas de juros também aumentam a competitividade externa
do país, via redução dos preços de oferta das empresas nacionais, aumento na
capacidade de investimento em atividades não relacionadas a atendimento da
demanda interna como P&D e exportações e aumento da capacidade de
financiar aos clientes em comparação a concorrentes externos.
215
O foco da política de deslocamento da restrição externa será elevar a
taxa de investimento em novos setores industriais ao máximo. Quanto maior é
essa taxa de investimento nesses setores, mais rápida é a taxa de crescimento
das exportações e de substituição de importações.
As políticas cambial e creditícia estão relacionadas com essa a política
industrial de inclusão de novos setores industriais. Se o país mantém o câmbio
suficientemente competitivo, a instalação de novos setores é viável, porque o
país terá custos trabalhistas inferiores aos das nações que dominam tais
setores. A partir desse ponto, poderá ser mais importante para o país garantir a
estabilidade do financiamento externo ao crescimento econômico
acompanhada da instalação desses setores do que buscar ganhos adicionais
de competitividade que possam colocar em risco a estabilidade da taxa de
juros, seu baixo custo e a taxa de investimento em novos setores85. Porque a
taxa de investimentos nesses setores será o principal determinante da taxa de
crescimento das exportações86.
Dessa forma, poderíamos concluir que uma política cambial que vise
manter o câmbio competitivo induzirá um processo de “causação circular
cumulativa” entre a taxa de juros de longo prazo, a taxa de investimento em
novos setores, a taxa de crescimento das exportações e o crescimento
econômico geral.
85 Nessa situação, pode ocorrer o seguinte dilema: (1) Manter uma política de desvalorização sucessiva para garantir o câmbio real relativamente constante, mesmo se a inflação não estiver comprometendo os níveis mínimos desejados de competitividade ou (2) manter o câmbio nominal estável e só alterar, quando for sentida a necessidade de melhorar a competitividade. É provável que o câmbio real seja em média mais competitivo no primeiro caso. No segundo caso, os juros de longo prazo serão menores em média. É provável que, no segundo caso, taxas de juros de longo prazo e de inflação menores impliquem em prazos de financiamentos maiores e, portanto, o haveria um incentivo adicional ao crescimento dos investimentos em exportação. No primeiro caso, a indexação dos salários seria maior e o câmbio real não seria tão mais competitivo em média. Ademais, no segundo caso, a distribuição de renda seria melhor e, provavelmente, crescente. 86 Para manter esse tipo de investimento elevado, é aceitável inclusive que o governo desrespeite temporariamente os indicadores de solvência, quando as importações de bens de capital para as indústrias de exportáveis forem a causa do déficit. Nessa situação, se necessário, o país não teria dificuldade de melhorar esses indicadores, bastaria reduzir levemente a taxa de crescimento ou fazer uma desvalorização do câmbio.
216
Capítulo 4: finanças funcionais sob restrição externa
A primeira lição de Lerner que Forstater (1999) ressalta é: “Pleno
emprego, estabilidade de preços e um padrão de vida decente para todos são
metas macroeconômicas fundamentais e é responsabilidade do Estado
promover sua obtenção”.
Partindo desses princípios, buscaremos construir um arcabouço de
finanças funcionais que seja compatível com a situação de restrição externa.
Em restrição externa o pleno emprego pode não ser alcançável apenas com as
políticas originalmente propostas por Lerner. Dessa forma, as finanças
funcionais deveriam sugerir a maximização da taxa de crescimento do
emprego.
Para isso, nessas condições, são necessárias políticas industriais, de
crédito e de manutenção de câmbio competitivo para deslocar a restrição
externa; políticas para gerir o movimento especulativo de capitais e a atração
de financiamento de longo prazo para administrar a pressão cambial; políticas
para ampliar a infra-estrutura; e políticas sociais para garantir “um padrão de
vida decente para todos”.
Dessa forma, na medida do possível, vamos utilizar o arcabouço
desenvolvido até então para explicar como cada uma dessas políticas pode ser
incorporada coerentemente dentro de uma visão de finanças funcionais para
maximizar a taxa de crescimento do emprego sob condições de restrição
externa.
Entretanto, precisamos fazer uma importante ressalva. O foco principal
desta tese é sugerir soluções para as deficiências das finanças funcionais em
condições de restrição externa, portanto, procuramos concentrar os esforços
propositivos deste trabalho sobre as questões da inflação, câmbio e juros.
Assim, as políticas de administração da pressão cambial, de controle da
inflação, de crédito e de câmbio real receberam maior atenção.
As políticas industrial, de infra-estrutura e social também são
fundamentais para ao conjunto, mas elas, particularmente as duas últimas, não
fazem parte das contribuições desta tese. As conclusões tiradas nas seções
217
específicas sobre essas políticas são mais corolários das propostas gerais do
que discussões aprofundadas sobre os temas. Não há qualquer pretensão aqui
de esgotar ou aprofundar o debate nesses assuntos. Pretendemos apenas
interpretar essas políticas a partir do arcabouço de finanças funcionais
desenvolvido. Mas nada sugere que outras propostas de políticas industriais,
de infra-estrutura ou sociais não possam ser compatíveis com as finanças
funcionais.
4.1. Por uma proposta de ampliação das finanças funcionais
A primeira coisa que precisa estar claro sobre a versão das finanças
funcionais que vamos propor aqui é que ela é muito coerente com as metas de
política econômica de modelos históricos bem-sucedidos de desenvolvimento.
Kaldor (1971: 155-6), utilizando o exemplo da Inglaterra, sugere que as
principais democracias européias no pós-guerra definiram e perseguiram metas
macroeconômicas de: (1) pleno emprego, (2) saldo em conta corrente, (3)
crescimento econômico e (4) crescimento dos salários.
Kaldor não cita nesse ponto uma meta de inflação. Porém, isso não
significa que controlar a inflação não fosse uma meta prioritária, mas, muito
provavelmente, porque a meta de inflação é desnecessária quando se tem uma
meta de câmbio nominal muito bem definida, como naquela época. Em outro
ponto do mesmo artigo, Kaldor (idem: 157) ressalta que foi também objetivo
assegurar uma “razoável estabilidade de salários e preços” e que “increases in
the general level of wages must be related to increased productivity.
Segundo Kaldor (1971: 156), naquela época, os líderes dos principais
partidos e o público consideravam “that Governments can, and should, assume
responsibility for the ‘management of economy’; and that ‘successful
management’ comprises the simultaneous attainment of at least the four major
objectives”.
Partindo da proposta de Finanças Funcionais, algumas questões
emergem imediatamente dessas proposições de Kaldor: porque seria
necessária uma meta de conta corrente? Como atuar nas metas de
crescimento e nas metas de crescimento de salários?
218
Lerner (1951) sugere duas metas para o governo: (baixo) pleno emprego
e estabilidade de preços. Lerner não tem maiores preocupações com o saldo
em conta corrente. Para ele, bastaria o câmbio flutuante para que o balanço de
pagamento se mantenha equilibrado.
O câmbio flutuante não era uma opção plena disposição no período em
que Kaldor estava analisando, portanto, uma meta de conta corrente poderia
ser necessária para condicionar a política de demanda doméstica. Essa meta é
importantes para garantir que o país se mantenha relativamente imune a crises
cambiais e suas conseqüências negativas.
No entanto, apesar do câmbio fixo, as políticas de manipulação da
demanda doméstica (monetária e fiscal) que Lerner recomenda foram por si só
capazes de gerar os níveis de emprego e estabilidade de preços visados pelas
finanças funcionais.
As políticas sugeridas pelas finanças funcionais foram, em geral,
capazes tornar o baixo pleno emprego uma realidade nos países
desenvolvidos. Porém, Kaldor (1971) considera que as metas de crescimento
obtiveram resultados muito díspares nesses países. A Inglaterra em particular
obteve resultados dinâmicos muito inferiores a seus principais vizinhos
continentais. Para Kaldor, essa constatação implicaria que essas metas teriam
sido insatisfatoriamente atendidas na Inglaterra da época.
De acordo com o autor, esse resultado seria conseqüência da utilização
de um número de instrumentos de política econômica muito pequeno para
tantas metas.
A finanças funcionais, a princípio, sugere três instrumentos: política
fiscal, política monetária e política cambial (câmbio flutuante). Desses, os
países europeus do pós-guerra utilizaram continuamente de forma ativa
apenas os dois primeiros. A política de câmbio fixo (ou quase) foi um
instrumento importante para o controle da inflação, mas não teve flexibilidade
suficiente para buscar a atender também a outras metas.
Segundo Tinbergen (1952, apud Kaldor, 1971: 158), para atingir um
determinado número de objetivos, o governo precisa operar pelo menos um
conjunto igual de instrumentos. Somente em circunstâncias excepcionais um
instrumento poderia atingir mais de uma meta simultaneamente.
219
Supondo que a política de câmbio fixo foi suficiente para manter a
inflação sob controle, mas não possuía outros objetivos, as políticas de
demanda agregada ficaram sobrecarregadas pelas outras 4 metas. Kaldor
(1971: 160) sugere que a meta de crescimento ficou comprometida.
“My basic contention (...) is that by choosing the control of the pressure of demand through fiscal management as the centerpiece of an economic structure which has involved a slower rate of growth in our productive potential than was both possible and desirable. (…) My main criticism (…) of the post-war policies of economic management [inglesas] is that it treated the problem of full employment and (implicitly) of growth as one of internal demand management, and not one of exports and of international competitiveness”.
Kaldor parece estar querendo dizer que as políticas de crescimento da
demanda doméstica não são as mais eficazes para induzir o crescimento.
Como o país tem uma meta de saldo em conta corrente, o crescimento
econômico depende do crescimento das exportações. Portanto, basear-se
apenas nas políticas de estímulo à demanda doméstica não é a melhor solução
para atender à meta de crescimento.
Kaldor (1971) diferencia entre dois tipos de políticas de crescimento:
liderada pelo consumo e liderada pelas exportações. No primeiro caso, o
governo utiliza como instrumento basicamente as políticas de demanda
doméstica. No segundo caso, o governo utilizaria, se necessário, também
políticas de incentivo às exportações. Kaldor (1971) sugere principalmente
utilizar a política cambial para manter as exportações competitivas e uma alta
taxa de crescimento da produtividade. Mas poderíamos dizer que a política
industrial pode também ter um importante papel em aumentar a
competitividade.
No momento, o que mais nos interessa nessa tipologia são seus
resultados propostos. Kaldor sugere que o crescimento baseado no consumo
implica em menor crescimento da produtividade (competitividade externa) e,
portanto, menor taxa de crescimento das exportações e menor taxa de
crescimento da economia, dada a meta de saldo em conta corrente87.
Seguindo a terminologia de Kaldor, em contraposição à classificação da
Inglaterra do pós-guerra de crescimento liderado pelo consumo, poderíamos
dizer que a Alemanha e o Japão poderiam ser tidos como economias com
87 Essa conclusão seria válida especialmente para uma situação de pleno emprego permanente induzido pelas políticas fiscal e monetárias. Se não há pleno emprego, um câmbio competitivo pode induzir uma maior taxa de crescimento no longo prazo, mesmo se não houver nenhum crescimento da produtividade.
220
crescimento liderado pelas exportações88. O mesmo poderia ser dito para os
tigres asiáticos em um período posterior e a China hoje.
Objetivamos aqui, propor uma releitura das finanças funcionais que
possa incorporar os aspectos comuns positivos dessas experiências. Como
Kaldor, em comparação a política econômica que se concentra basicamente
nos instrumentos típicos das finanças funcionais original, consideramos que
essas experiências onde as exportações lideram enfrentam de forma mais
adequada a restrição externa e, por essa razão, permitem alcançar taxas de
crescimento superiores. Essa conclusão é especialmente importante para
países não desenvolvidos, onde nem mesmo as metas de pleno emprego com
estabilidade de preços podem ser alcançadas e, portanto, a meta de
crescimento é muito mais urgente do que na Inglaterra do início dos anos 70. A
meta de crescimento, nesse caso, pode ser corolário simplesmente do objetivo
de alcançar o pleno emprego o mais rápido possível.
Certamente essas experiências de crescimento liderado pelas
exportações são muito diversas tanto em resultado alcançado, quanto em nível
de democracia, distribuição de renda, inserção externa e modelo de
desenvolvimento. Porém, tem em comum duas coisas que são fundamentais à
nossa proposta. Em primeiro lugar a disposição de adotar políticas
expansionistas para reduzir as taxas de desemprego e aumentar a renda
nacional e em segundo lugar a consciência da importância de utilização,
quando necessário, das políticas comerciais, industriais e manter o câmbio
desvalorizado (quando possível) para deslocar a restrição externa, e assim
possibilitar o crescimento com o mínimo de pressão cambial.
As diferenças, por outro lado, são muitas, o que não é incoerente com a
proposta de Abba Lerner para as finanças funcionais. As finanças funcionais
foram criadas apenas para tornar as políticas governamentais mais racionais e
coerentes com a hipótese levantada por Keynes, entre outros, de que o
desemprego crônico seria uma situação possível.
Se um país pode atingir o pleno emprego apenas com políticas de
demanda doméstica e câmbio flutuante, as finanças funcionais alcançam seus
88 Convém lembrar que em alguns países, como a Alemanha e Japão, podemos considerar que a meta de baixo pleno emprego foi ultrapassado sem implicar em inflação aceleracionista. No terceiro capítulo, buscamos explicar que esse resultado pode ser possível em situações de câmbio fixo ou estável.
221
objetivos. Porém, como vimos no terceiro capítulo, os países subdesenvolvidos
são exemplos de situações onde o pleno emprego não pode ser atingido
somente com essas políticas. Nesse caso, elevar a taxa de crescimento passa
também a ser um objetivo e as finanças funcionais precisam incluir novos
instrumentos. Novos instrumentos também, poderiam ser buscados em países
que já atingiram o pleno emprego, ainda que apenas para manter essa
conquista. Vimos que Kaldor (1971) sugere que a Inglaterra deveria ter adotado
mais instrumentos para alcançar metas mais ambiciosas de crescimento.
Políticas funcionais se viabilizam quando o governo é capaz de
transformar seus objetivos-fins em objetivos-meio instrumentais que são os
critérios que permitem a comparação e avaliação dos resultados.
As propostas de Lerner são funcionais para os objetivos de pleno
emprego e estabilidade de preços. Lerner sugere que elas seriam também
coerentes e funcionais para qualquer regime de distribuição de renda
imaginado. Lerner utiliza essa hipótese para não se envolver com essa
questão89.
As Finanças Funcionais partem dos “desejos sociais” considerados
consensuais: pleno emprego e estabilidade de preços90. A proposta de Lerner
visa apenas dar coerência à política econômica, liberando para outros
economistas ou para os políticos a decisão sobre temas que ele consideraria
mais particulares, polêmicos ou dependentes de juízos de valor não
consensuais. Ele queria que as finanças funcionais não fosse estigmatizada
como posição política específica e se tornasse um critério racional de decisão
para os governantes independentemente de seu posicionamento91.
Lerner (1951) não defende nenhuma composição específica entre
gastos públicos ou privado, ou nível de taxa de juros ou de câmbio real. O autor
quase certamente era consciente do impacto que as essas variáveis têm sobre
a distribuição de renda. Por mais que ele desejasse manter a teoria das
finanças funcionais “neutra” em relação à distribuição de renda, a distribuição
89 Lerner se dizia socialista e defendia mais igualdade de renda, porém suas finanças funcionais não se posicionam quanto a isso (Scitovsky, 1984: 1547; 1549-54; 1559-61 ). 90 Economistas ortodoxos não-keynesianos muitas vezes não assumem o pleno emprego como meta. Mas não porque ele não seja desejável. Fazem isso simplesmente porque consideram que o nível máximo de emprego pode ser alcançado independentemente da ação do governo. 91 Aparentemente esse resultado deveria ser alcançável, entre os keynesianos e qualquer um que considerasse que o desemprego crônico fosse possível.
222
não era neutra às diferentes composições da demanda agregada e à taxa de
juros.
Lerner (1951; 1972), porém, não pôde se manter completamente alheio
à questão da distribuição de renda. A teoria da inflação que sustenta as
finanças funcionais se baseia na idéia de que o aumento do poder de barganha
dos trabalhadores, quando ultrapassado o nível de baixo pleno emprego, não
pode alterar a distribuição de renda. Esse resultado é obtido, porque Lerner
supõe que os trabalhadores não aceitariam reduções em seus salários reais,
se ultrapassado o nível de baixo pleno emprego. Nesse caso, uma vez que
parte dos trabalhadores tem o poder de barganha aumentado devido à
“escassez” localizada de mão-de-obra, a inflação teria, para o autor, um
comportamento acelerativo, nesse ponto.
Como proposta de generalização das finanças funcionais para a
situação de restrição externa, este trabalho buscará fazer como Lerner e evitar
discutir diretamente metas de distribuição de renda. As políticas aqui
apresentadas terão como fim último de longo prazo unicamente as mesmas
duas conhecidas metas levantadas por Lerner em sua Finanças Funcionais.
Entretanto, não possível negar que as propostas desta tese sejam
neutras à distribuição de renda. Em primeiro lugar, procuramos mostrar que
ultrapassar o nível de baixo pleno emprego em uma situação de estabilidade
cambial pode implicar em melhoria na distribuição de renda, devido a um
provável crescimento dos salários acima da inflação nesse ponto.
Sugerimos que o governo deve expandir o nível de atividade para atingir
o nível de alto pleno emprego, se for possível. Se a aproximação do pleno
emprego não implicar em uma fragilidade externa que acabe causando uma
inflação acima do desejável, ele deve ser buscado. A estabilidade cambial é a
principal política sugerida nesta tese para o controle da inflação. Portanto, a
ultrapassagem do nível de baixo pleno emprego com a inflação controlada pela
taxa de câmbio tende a levar à melhoria na distribuição de renda.
Além disso, sugerimos a minimização da taxa de juros para aumentar a
competitividade externa e, assim, a taxa de crescimento. Essa política também
implica em melhoria na distribuição de renda.
Voltando ao Lerner, devemos ressaltar que o tipo de arcabouço de
política sugerido pelas finanças funcionais só pode ser adotado por inteiro. Em
223
qualquer conjunto de políticas que se pretende funcional, devem prevalecer os
objetivos finais e os instrumentos não se confundem com os fins, portanto, uns
não podem ser incoerentes com os outros.
Nos países onde foram adotadas políticas similares, não existiam
compromissos rígidos com os meios, mas sim com as metas mais elevadas. O
que difere muito com certas experiências contemporâneas onde os meios se
tornam fins e justificativas enganosas para políticas de cunho invariavelmente
neoliberal, e, porque não dizer, conservador. Enquanto nos anos 50 e 60 se
buscava de forma flexível e oportuna objetivos de claro conteúdo e interesse
social como as melhorias de qualidade de vida, e o pleno emprego com
estabilidade de preços, hoje os governos fetichizam certos meios e os
perseguem sem qualquer questionamento, como metas rígidas de déficit
público, inflação, “credibilidade”, ser market friendly, ser um país “competitivo”
para atração de investimentos externos, ter as finanças “saudáveis”, realizar
certas reformas padrão etc.
A escolha entre essas políticas não pode ser feita de forma parcial, pois
assim a funcionalidade seria abandonada. Ela é antes de tudo uma escolha de
padrões de desenvolvimento, de projeto de nação e de inserção internacional.
Se o governo se compromete a perseguir os objetivos elevados de pleno
emprego e estabilidade de preços sem confundi-los com os instrumentos, ele
invariavelmente estará adotando em alguma medida as finanças funcionais.
Nesse caso, se o país sofre restrição externa, adotará um arcabouço de
políticas que é muito similar a este que vamos propor aqui. As diferenças entre
as políticas decorrerão basicamente dos condicionantes próprios de cada país.
Em particular, do posicionamento geoestratégico dependerá as condições do
balanço de pagamentos. A restrição externa é o mais forte condicionante dos
governos, mas ela impacta os países de forma muito diversa, gerando, em
países que adotam princípios mais objetivos, diferentes padrões de inserção
externa. Esses padrões determinarão o regime cambial e por conseqüência
toda estrutura de política econômica. Assim, as finanças funcionais sob
restrição externa precisam dar grande atenção a esse ponto. Dados os
condicionantes externos, as Finanças Funcionais estão completamente ligadas
à escolha do modelo de desenvolvimento e portanto de inserção externa.
224
Lerner não se preocupou com isso porque não tinha em vista os
problemas do desenvolvimento. Seu objeto era a economia desenvolvida, os
EUA em particular. Por isso também não deu atenção à possibilidade do pleno
emprego não ser alcançável só com políticas de demanda. Pelo mesmo motivo
só deu no fim da vida maior importância ao fato de que a meta de inflação
poderia também não ser alcançada apenas com políticas de demanda
doméstica. E mesmo assim manteve-se completamente focado à situação
norte-americana.
Sob restrição externa, as políticas de demanda92 não são capazes de
alcançar o pleno emprego, portanto, as conclusões de Lerner não se aplicam.
Porém, seu método continua válido. É preciso propor políticas funcionais para
essa realidade diversa da focada por Lerner.
A dificuldade em acabar com o pleno emprego rapidamente com
políticas de demanda e outras questões típicas de países subdesenvolvidos
levantam outra questão muito importante e não tratada por Lerner.
O pleno emprego é desejável em grande parte porque ele pode garantir
renda e, portanto, condições mínimas de vida para todos. Se ele não pode ser
alcançado rapidamente, a necessidade de políticas de assistência social
compensatórias se torna muito maior. Isso é particularmente válido em países
subdesenvolvidos onde as condições mínimas de cidadania são mais
dificilmente alcançáveis para os desempregados, subempregados e
assalariados de baixa remuneração. Assim, para ser coerente com o desejo de
pleno emprego e para se adaptar à demanda por maior urgência na melhoria
das condições de vida em países subdesenvolvidos, as finanças funcionais
devem incorporar objetivos de assistência social.
Dessa forma, para que possam ser generalizadas para países
subdesenvolvidos e países que sofrem com restrição externa em geral, as
finanças funcionais precisam incorporar como objetivo-fim garantir condições
mínimas de vida para todos. Precisam também incorporar as premissas
teóricas de que o pleno emprego não pode ser alcançável apenas com políticas
de demanda e que para ser alcançado um conjunto de políticas muito mais
amplo do que o imaginado por Lerner precisa ser mobilizado. Esse conjunto de
92 Neste trabalho, quando nos referirmos a políticas de demanda, estamos querendo dizer: políticas de demanda doméstica.
225
políticas precisa ser coerente entre si e funcional aos fins visados. Dessa
forma, o método das finanças funcionais implicaria necessariamente na
definição das políticas de inserção externa.
4.2. A proposta
“O preço pago [pela] despolitização da economia é a despolitização da própria política” (Zizek, 2003; citado na revista primeira leitura)
A versão original das finanças funcionais possui apenas dois objetivos:
pleno emprego e estabilidade de preços. A presente versão teria seis, que
serão desenvolvidos no texto abaixo:
1) Maximizar o emprego até os pontos de restrição de políticas. Os
pontos de restrição são níveis de atividade econômica potencialmente
alcançáveis cuja ultrapassagem implica em taxas de inflação superiores à
aceitável. Existem quatro pontos de dilemas de políticas: (a) pleno emprego, (b)
ponto de NFEDcp positiva, (c) ponto de limite da solvência externa e (d) ponto
de gargalo da infra-estrutura. O objetivos 2 a 4 que visam deslocar os pontos
de restrição ao mais rápido possível.
2) Deslocar o mais rápido possível o ponto de limite de solvência
externa.
3) Evitar a necessidade de redução do crescimento, impedir a
desvalorização acima da meta conjuntural, deslocar o mais rápido possível e
com os menores custos o ponto de pressão cambial positiva. Essa meta indica
quando e como agir, caso o país esteja sofrendo pressão para desvalorização
cambial superior ao desejado. Esse objetivo também pode ser expresso como
administrar a pressão cambial para tornar as desvalorizações acima do
aceitável menos prováveis, intensas e ou dolorosas.
4) deslocar o mais rápido possível o ponto de gargalo da infra-estrutura.
A princípio, esse objetivo poderia ser parcialmente tratado em termos dos
objetivos de deslocar a restrição externa e melhorar o padrão de vida da
população. De fato, a deficiência de infra-estrutura aumenta os custos
produtivos, impacta a competitividade externa, o custo de vida dos
trabalhadores e a oferta de infra-estrutura social. Porém, convém lembrar que
226
gargalos de infra-estrutura podem também implicar em restrições físicas de
curto prazo. O caso mais evidente é a energia elétrica. Esse é um dos motivos
pelo qual é necessária a explicitação desse objetivo. Outro motivo é que as
políticas de infra-estrutura utilizam instrumentos bem específicos, que
influenciam o resultado de mais de uma das outras metas, e, portanto, seria
aconselhável que fosse especificado um objetivo-instrumental que sirva de
critério-síntese para avaliar sem grandes ambigüidades os resultados desses
instrumentos.
5) Impedir que a taxa de inflação se torne alta ou adquira inércia acima
do aceitável via definição dos pontos de restrição e das políticas adicionais
anti-indexação. Os outros objetivos também fazem parte da política anti-
inflacionária, pois ultrapassá-los significaria aceitar maiores taxas de inflação
do que as definidas por esse objetivo.
6) garantir condições mínimas de cidadania e melhoria contínua da
mesma para toda população. Atingir o pleno emprego pode ser uma forma de
generalizar condições mínimas de cidadania, se o salário mínimo garante
essas condições mínimas. Ficaria faltando talvez apenas certa infra-estrutura
social que só o governo pode prover. Lerner provavelmente não se preocupou
com essas questões porque o pleno emprego seria facilmente alcançável para
a realidade em que ele estava preocupado e porque a infra-estrutura social já
fosse adequada. Essa certamente não é a realidade em todos os lugares.
Em muitas situações, o pleno emprego não pode ser alcançado devido à
restrição externa. Nessas situações, manter os objetivos e o método das
finanças funcionais, tal como sugeridos por Lerner, implica em submeter um
grande número de políticas capazes de deslocar a restrição externa até que o
pleno emprego possa ser obtido.
Quando o pleno emprego não pode ser atingido, as finanças funcionais
precisam definir como meta maximizar a taxa de crescimento do emprego, para
que o objetivo final (pleno emprego com estabilidade de preços) possa ser
atingido no prazo mais curto possível.
Entretanto, esse objetivo não pode ser instrumentalizado com a mesma
facilidade proposta pelas finanças funcionais na sua forma original. Lerner
propõe a utilização apenas de políticas de demanda. Mas vimos que elas não
são suficientes para os problemas que propomos trabalhar.
227
As finanças funcionais partem de dois objetivos muito precisos e que
podem ser atendidos ao mesmo tempo com um único instrumento. Um único
instrumento só pode atender a dois objetivos se ambos podem ser alcançados
ao mesmo tempo. Por sinal, a versão original das finanças funcionais supõe
que existe um ponto onde a meta de estabilidade de preços coincide com a
meta de desemprego. Esse é o ponto de baixo pleno emprego. Em trabalhos
posteriores, Lerner (1972; 1977a; 1977b; 1978; 1982) propõe que esses pontos
nem sempre coincidem.
Entretanto, em uma economia aberta essa coincidência pode não existir
no curto prazo. Ainda que possa ser uma meta a ser buscada para o longo
prazo. Nessa situação, visando seus fins no longo prazo, o governo precisa
definir metas de curto prazo para poder colocar em prática e avaliar
instrumentos operáveis no tempo presente.
Maximizar a taxa de crescimento do emprego é um meio para atingir no
futuro o pleno emprego. Porém, não é o que vamos chamar de um objetivo
instrumental. Objetivos instrumentais deveriam ser capazes de definir todos os
instrumentos que precisam ser usados e todas as situações onde os
instrumentos devem ser usados e onde não devem ser usados para o fim
proposto.
Apenas propor maximizar a taxa de crescimento não define quais
instrumentos e como usar. Sabemos que os instrumentos não podem ser
apenas as políticas de demanda, pois usá-las para aumentar a renda, sem a
preocupação com outras questões, pode levar o país a experimentar pressão
cambial significativa e, portanto, alto risco de crise cambial e inflação. Como
ficou evidente, é preciso que existam outros critérios determinando as políticas
de demanda.
O fim último da versão original das finanças funcionais é atingir o pleno
emprego com estabilidade de preços. Mas, no curto prazo, esse fim não é
alcançável, implicando que devem ser tomadas medidas para torná-lo viável.
Dessa forma, é preciso definir objetivos-meio instrumentais. Esse tipo de
objetivo seria o critério necessário para tornar essas medidas funcionais.
Antes disso, é preciso solucionar um problema. Baixas taxas de inflação
podem ser alcançadas em qualquer país. Porém, metas de inflação muito
228
rígidas e exigentes podem ser um sério empecilho ao alcance do pleno
emprego com rapidez.
Essa conclusão decorre de duas coisas. Em primeiro lugar, os países
que sentem os efeitos da restrição externa estão sujeitos a crises cambiais,
que, muitas vezes, requerem desvalorizações cambiais mais fortes para serem
solucionadas. Se a meta de inflação for muito rígida, não será permitido
desvalorizações muito fortes e, portanto, as crises cambiais implicarão em
contenção de renda mais intensas do que seria necessário. Essa solução, além
de mais prejudicial para a população por elevar o desemprego, retarda o
processo de desenvolvimento.
Em segundo lugar, metas de inflação muito exigentes podem significar
estancamento do ajuste de preços relativos necessário à continuidade do
processo de desenvolvimento. O desenvolvimento não é um processo neutro,
sempre alguns extratos sociais ganham mais do que outros.
Salários e mesmo preços nominais são muito rígidos à queda. Dessa
forma, aumentos na participação de alguma parcela da sociedade na renda,
implica em algum aumento de nível geral de preços. Mas, se os salários reais e
preços relativos também forem rígidos à queda, tentativas de aumento na
participação de alguma parcela da sociedade na renda pode gerar dificuldades
em manter baixas taxas de inflação93.
Assim, quando o crescimento gera o aumento mais do que proporcional
da participação de algum segmento no produto – por exemplo, da renda
fundiária urbana – a tentativa do governo em manter metas de inflação muito
rígidas e exigentes poderá impedir mudanças nos preços relativos e implicar na
redução da taxa de crescimento e, portanto, em adiamento do momento em
que o pleno emprego poderá ser atingido.
Um fator que pode ter seus preços elevados no processo de
desenvolvimento é o trabalho. Altas taxas de crescimento implicam em
crescimento acelerado da demanda por mão-de-obra. Considerando que
alguns setores crescem muito mais rapidamente do que a média, alguns anos
de alta taxa de crescimento podem levar a esgotamento temporário dos
excedentes de trabalhadores de certas especialidades em certas regiões. Esse
93 As políticas de renda podem ser uma solução muito eficaz para conter a inflação, mesmo em situações onde esteja ocorrendo alterações na distribuição de renda.
229
processo pode levar aumentos dos salários médios de forma a incentivar a
imigração de trabalhadores especializados e a alteração da estrutura de
formação profissional da força de trabalho local.
Se for ultrapassado o nível de baixo pleno emprego, e crescer o poder
de barganha dos trabalhadores, esses aumentos implicarão quase certamente
em aumentos reais de salários e melhorias na qualidade de vida no curto
prazo, enquanto a taxa de câmbio for estável. Esses aumentos poderão
implicar até mesmo em melhorias na distribuição de renda.
No longo prazo, a manutenção desse resultado depende de outros
fatores, como os juros reais, a taxa de crescimento da produtividade, da
estrutura de impostos, da sensibilidade da competitividade dos exportadores às
variações dos custos em dólar da unidade de trabalho, das diferenças de
competitividade externa entre os diversos setores exportadores94, de políticas
salariais, velocidade e tendência de ajuste dos investimentos às diferenças de
rentabilidade entre os diversos setores e empresas, da legislação trabalhista,
da organização dos trabalhadores etc.
É importante ressaltar a diferença entre essas proposições e o
pensamento tradicional. Esse último repete que a inflação é sempre associada
à piora na distribuição de renda em decorrência de “imposto inflacionário” e
que, portanto, menos inflação é sempre melhor. Porém, essa posição é um
equívoco. É possível que uma inflação um pouco maior possa ser
conseqüência de ajustes de curto prazo ou mesmo de longo prazo nos salários
reais acima da produtividade. Esse tipo de ajuste pode ser possível durante o
processo de desenvolvimento devido ao crescimento superior dos preços no
setor de não-importáveis, em decorrência do aumento dos salários nominais.
Esse caso seria possível quando (1) o crescimento da produtividade do
setor de importáveis fosse maior do que do setor de não importáveis. Essa é
uma situação empiricamente muito provável, porque em geral os setores mais
modernos, que mais sofrem pressão competitiva, que tem menor poder de
94 Setores exportadores mais competitivos podem suportar crescimento do custo unitário do trabalho em dólar, sem perder mercado. Se esses setores estiverem crescendo rapidamente, o aumento do custo unitário do trabalho em dólar não necessariamente dependerá do crescimento da produtividade das diversas indústrias, mas da alteração da estrutura industrial. A perda de saldo comercial decorrente dos setores que perderam competitividade com o aumento do custo do trabalho em dólar, pode estar sendo compensada pelo crescimento autônomo das exportações dos setores mais competitivos.
230
impor preços (individual e setorialmente) e de maior conteúdo tecnológico são
os setores de importáveis.
É possível também quando (2) alguns setores exportadores tivessem
uma competitividade e uma taxa de crescimento de sua demanda externa
muito elevadas, ou se tivesse implantando para substituição de importações e
exportação setores com essas características. Nesse caso, a estabilidade
cambial permitiria que a taxa de crescimento do custo da unidade de trabalho
em dólar fosse relativamente alto e provavelmente maior do que o crescimento
da produtividade média dos setores de importáveis. É provável também que o
aumento do salário nominal seja maior do que a inflação.
O crescimento das exportações dos setores de alta competitividade e
alto crescimento da demanda externa permitiria que a solvência do país fosse
mantida apesar do crescimento dos salários em dólar e possivelmente também
do crescimento do salário real. Nessa situação, os setores pouco competitivos
aos poucos deixariam de ser produzidas, o que não comprometeria a solvência
se a taxa de crescimento das exportações de alguns setores for
suficientemente elevada. Isso aconteceria mesmo se o crescimento da
produtividade desses setores fosse reduzido95.
95 Dependendo de como se mede a taxa média de crescimento da produtividade, poder-se-ia dizer que na verdade a produtividade média estaria crescendo. Porém, esse pode ser mais um problema decorrente de definição pela descrição e não pela causa. Essa interpretação pode ser inadequada, porque poderia confundir as reais causas do processo. O salário real estaria crescendo porque os setores mais competitivos estão com altas taxas de crescimento das exportações e não necessariamente porque a produtividade desses ou de quaisquer outros esteja crescendo muito. Esse é o tipo de processo que explica o grande crescimento asiático nos anos 80 e 90. A mão-de-obra era barata e qualificada e implantaram-se indústrias com o mesmo maquinário europeu, japonês e americano. Como seria esperado, a produção nesses países seria muito mais competitiva. Dessa forma, o crescimento das exportações desses países dependia da taxa de crescimento dos investimentos nesses maquinários e não do crescimento de produtividade desses setores ou de outros setores. Por isso que talvez alguns autores ortodoxos chegaram a considerar, nos anos 90, paradoxal o crescimento asiático, por não ser decorrente de “aumento de produtividade”, mas de simples aumento de utilização de recursos, capital e trabalho. Em uma visão keynesiana ciente da restrição externa e das finanças funcionais não é nada paradoxal. Aliás, esse é o processo mais usual de desenvolvimento econômico. É muito importante deixar claro essas diferenças de definição, pois se for considerado que o crescimento dos salários reais só é possível em razão do crescimento da produtividade, uma das políticas prioritárias de um país subdesenvolvido seria o investimento em aumento de produtividade (como investimentos em P&D ou transferências tecnológicas para os setores que já dominam), enquanto a política prioritária deve ser instalação de novos setores. Investimento em pesquisa e desenvolvimento tem impactos mais lentos e deve ser prioridade principalmente para os países desenvolvidos que não tem outra solução para induzir o crescimento dos salários reais. Nos subdesenvolvidos é muito mais rápido, barato e viável instalar os setores já existentes nos desenvolvidos, aproveitando assim a grande competitividade decorrente de seus inicialmente baixos salários nominais em dólar. Imagina-se que ninguém acha que o grande
231
Nessa situação, altas taxas de crescimento com estabilidade cambial
implicarão em algum momento em aumentos de salários. Esses aumentos não
implicarão em grandes mudanças de preços nos setores de importáveis, mas
serão facilmente repassados nos setores de importáveis. Dessa forma, o
aumento dos salários acima do crescimento dos preços é uma conseqüência
natural e desejável de altas taxas de crescimento e inevitavelmente pressiona
as taxas de inflação. Isso significa que processos de desenvolvimento
acelerado estão associados a taxas de inflação maiores do que as que podem
ser obtidas pelos países desenvolvidos maduros.
Como vimos, em casos como esse, as tentativas de manter metas de
inflação muito baixas e rígidas implicarão em redução da velocidade de alcance
do pleno emprego, da taxa de crescimento econômico, da taxa de crescimento
dos salários, da taxa de melhoria da qualidade de vida e talvez até da melhoria
da distribuição de renda.
Essas proposições não significam de modo algum que estejamos
dizendo que a inflação seja um bem ou que inflações muito altas não sejam um
problema que deve ser evitado. Consideramos que a fixação de tetos máximos
de inflação seja uma política absolutamente fundamental. Significam apenas
que metas muito rígidas e muito ambiciosas podem reduzir a velocidade do
processo de desenvolvimento e de melhoria das condições de vida, quando os
salários estão crescendo mais rapidamente do que os preços.
A adoção das finanças funcionais significa a adoção de um modelo de
desenvolvimento. Um modelo de desenvolvimento é um arcabouço de metas e
instrumentos que funciona como critério para escolha e avaliação de políticas
que serão implantadas em um processo que demanda um longo período de
tempo. Esse processo requer progresso contínuo sem retrocesso ou
paralisações muito extensas. Tais eventualidades podem significar perda de
legitimidade do esforço de desenvolvimento, acirramentos dos conflitos
políticos por pura questão eleitoral, queda de governantes comprometidos e
atrasos desnecessários ao alcance da situação de pleno emprego.
crescimento dos salários nominais em dólar e dos salários reais chineses decorre de um enorme investimento em pesquisa e desenvolvimento.
232
Levar esses pontos em consideração significa que será critério
fundamental dos executores de qualquer plano de desenvolvimento garantir a
sustentabilidade político-institucional do projeto de desenvolvimento.
Isso significa manter baixo o risco de crises cambiais que possam levar
o país a ser obrigado a aceitar inflações muito acima do desejável ou que
possam levar a economia à recessão ou a baixas taxas de crescimento.
A recessão, além de atrasar o alcance do pleno emprego, também
sinaliza que as políticas adotadas não estão sendo eficazes e que poderiam e
deveriam ser questionadas. Ademais, reduz ou atrasa o volume de
investimento privado e, se decorrente de contração fiscal, atrasa os
investimentos públicos necessários ao bom andamento do projeto de
desenvolvimento.
A inflação envolve um problema político muito complicado. Partes
importantes da sociedade colocam a inflação como um grande mal. Realmente
quando essa atinge determinado ponto, torna-se inercial e só pode ser
reduzida com políticas heterodoxas, como a adotada no plano real. Altas
inflações criam grandes oposições políticas e indicam para a sociedade que o
projeto do governo está sendo mal-sucedido. As políticas usadas para baixá-la
quando essa atinge elevados patamares podem ter efeitos colaterais ainda
mais deletérios.
Controlar a inflação é o principal foco do objetivo 5. Mais
especificamente ele é definido como: impedir que a taxa de inflação se torne
muito alta ou adquira inércia acima do aceitável. Os instrumentos são: definição
da meta de inflação, definição de metas conjunturais para a taxa de câmbio,
definição dos pontos de restrição e políticas adicionais anti-indexação.
Os pontos de restrição são definidos a partir da taxa de inflação máxima
aceitável. As políticas anti-indexação são importantes porque a redução da
indexação na economia permite que pontos de restrição possam ser definidos
com taxas de crescimento mais elevadas. Essa conclusão decorre
basicamente do fato de que parte da inflação é apenas indexação. Se essa
parte é menor, as outras partes podem ser maiores mantido o mesmo nível de
inflação. A taxa de crescimento pode ser maior principalmente porque os
aumentos de custos em um setor se difundem mais lentamente.
233
A principal causa de altas inflações são desvalorizações cumulativas
associadas à indexação da taxa de câmbio e dos salários. Elas acontecem
quando o governo tem pouco controle sobre a pressão cambial e é obrigado a
permitir taxas de desvalorizações maiores do que o desejável como forma de
reduzir tal pressão. O efeito da desvalorização sobre a pressão cambial
depende ainda de quão indexados estão os preços ao câmbio e os salários aos
preços.
A pressão cambial é mais intensa e de mais difícil controle nos
momentos de ataque especulativo. Esses momentos devem ser evitados para
que se reduza o risco do país ser obrigado a aceitar desvalorizações maiores
do que o desejável ou ter que adotar políticas recessivas para impedi-las.
Esses eventos só podem ser completamente prevenidos com controle de
capitais. Sob liberdade de movimento de capitais, o governo tem que atuar
para que as corridas cambiais tenham o menor custo possível em termos de
inflação e crescimento.
Assim o objetivo 3 é: evitar a necessidade de redução do crescimento,
impedir a desvalorização acima da meta conjuntural, deslocar o mais rápido
possível e com os menores custos o ponto de pressão cambial positiva. Essa
meta indica quando e como agir, caso o país esteja sofrendo pressão para
desvalorização cambial superior ao desejado. Os instrumentos principais são
oscilação da taxa de juros, oscilação da taxa de câmbio (se o câmbio for
flutuante), mudanças no regime cambial, venda de reservas, emissão de dívida
externa pública, ajustes nas normas e impostos sobre movimento de capitais,
outras normas de política monetária. Eventualmente podem ser necessários
ajustes na política de atração de capitais de longo prazo, como elevação do
diferencial médio de juros de longo prazo, no câmbio real ou nas expectativas
de crescimento econômico ou outras políticas que possam aumentar a atração
de capital de longo prazo.
No terceiro capítulo, vimos que a pressão cambial positiva persistente
decorreria de uma NFEDcp positiva. A NFEDcp é constituída de NFE e
financiamentos externos de longo prazo. Um maior crescimento econômico
aumenta a NFE, o que tende a aumentar também a NFEDcp. Porém, pode
aumentar os financiamentos concedidos ao país, porque a rentabilidade dos
investimentos externos diretos e dos investimentos em geral que tomam
234
financiamento no exterior aumenta. Se esse segundo efeito for mais
importante, o crescimento reduzirá a NFEDcp e, portanto, a pressão cambial.
Entretanto, como vimos no capítulo anterior, os financiadores externos
não focam apenas a rentabilidade esperada. Eles também se preocupam com
o risco. O risco de um país depende de diversos fatores. Mas eles em geral são
sintetizados nos chamados indicadores de solvência. A solvência a longo prazo
de um país devedor poderia se comprometer se a taxa de juros do passivo
externo líquido ou se a taxa de crescimento das importações forem
consistentemente superiores à taxa de crescimento das exportações. Se o país
for um credor externo ou tiver uma NFE baixa em relação às exportações, pode
adotar uma taxa de crescimento maior do que a permitida por esses
indicadores por algum tempo sem risco de insolvência. Por outro lado, em
momentos de pouca liquidez internacional, esses indicadores podem não ser
condição suficiente para manter condições mínimas de crédito externo ou de
refinanciamento negociado.
O objetivo 2 visa incorporar essas questões. Assim, deslocar o mais
rápido possível esses pontos limites de solvência externa significa dizer que o
governo deverá induzir o crescimento das exportações e a substituição de
importações de forma permitir o crescimento mais rápido possível.
Como vimos, inflações altas podem ser evitadas simplesmente
mantendo taxa de câmbio estável. Entretanto, essa proposição não implica que
o governo não deva se preocupar com a elevação dos preços nos setores de
não-importáveis.
Se a meta de inflação for muito ambiciosa, a inflação no setor de não
importáveis poderia comprometê-la em determinadas circunstâncias96. Mas,
mesmo se não for tão ambiciosa, haverá situações onde possa ser necessário
adotar políticas de controle dos preços do setor de não-importáveis. Um
aumento dos custos nesse setor pode resultar em perda de competitividade
externa. Se essa perda for significativa, o país poderá ser obrigado a
desvalorizar a taxa de câmbio o que pode implicar em uma alta taxa de
inflação.
96 Não vamos dar maior atenção a esse ponto, porque metas de inflação muito ambiciosas podem comprometer o ajuste de preços relativos decorrente do crescimento e implicar em aceitação de taxas de crescimento inferiores ao desejável.
235
Essas perdas de competitividade são mais prováveis em decorrência de
aumentos salariais. Aumentos de salários trazem melhorias nas condições de
vida, por isso, a princípio, deve-se vê-los com bons olhos.
Mas se forem decorrentes simplesmente de recuperação de perdas
decorrentes de aumentos do custo de vida, podem estar sinalizando a
necessidade de combater as fontes primárias de tal aumento de preços. O
aumento dos preços ou a piora na qualidade da oferta no setor de não-
importáveis pode ter impacto sobre o custo de vida dos trabalhadores. Esses
aumentos no custos de reprodução da força de trabalho podem ser
conseqüência, por exemplo, de aumentos na renda fundiária urbana ou nas
tarifas de serviços públicos.
Certamente a renda fundiária urbana tem um impacto direto sobre a
inflação muito menor que os salários, pois ela corresponde a uma fração da
cesta de consumo, e é muito menos importante do que o trabalho para os
custos de produção. Porém, em certas situações de alto crescimento pode
resultar em perda de competitividade, se o câmbio permanecer estável. O
impacto sobre a cesta de consumo pode induzir maiores demandas sobre
aumentos de salários. Além disso, pode ter também algum impacto direto sobre
o custo de alguns setores, particularmente serviços, comércio e transporte
urbano.
A renda fundiária urbana e outros custos decorrentes da aglomeração
produtiva e populacional podem ser reduzida com maiores investimentos em
infra-estrutura urbana.
Educação também é infra-estrutura econômica. O crescimento acelerado
pode fazer os salários nominais de algumas categorias subirem muito
rapidamente no curto prazo, aumentando a inflação ou reduzindo a
competitividade externa, mesmo se grande parte da população ainda estiver
desempregada ou subempregada e miserável. Essa situação pode ser
esperada quando a fração da população educada e qualificada for
relativamente pequena.
Os custos dos serviços públicos também podem impactar a cesta de
consumo dos trabalhadores e a competitividade externa. Esse impacto pode
ser direto, via tarifas, ou indireto por má qualidade do serviço. Se a taxa de
crescimento for muito acelerada, esses fatores podem ser importantes.
236
Nesses casos, melhorias na infra-estrutura podem ser importantes para
manter o padrão de vida dos trabalhadores em um nível desejado e a
competitividade externa adequada.
Por último, convém lembrar que o investimento em infra-estrutura pode
ainda ser importante para se evitar restrições físicas ao crescimento. Falta de
energia elétrica é uma restrição desse tipo que pode emergir de forma mais
óbvia.
A partir dessas proposições, definimos o objetivo 4: deslocar o ponto de
gargalo de infra-estrutura. Esse ponto, se ultrapassado, resultaria em
deficiências de infra-estrutura que poderiam gerar crises de racionamento,
perda de competitividade externa e eventualmente elevações acima do
desejável na cesta de consumo dos trabalhadores.
Os pontos de restrição são todos definidos a partir da meta de inflação
definida pelo objetivo 5. O ponto de restrição que corresponde ao mais baixo
nível de atividade econômica potencial indicará a renda máxima alcançável por
período. Cabe assim, ao governo usar políticas de demanda para alcançar o
objetivo 1: maximizar o emprego até os pontos de restrição.
Por último, o objetivo 6 é definido como garantir condições mínimas de
vida e melhoria contínua da mesma para todos os cidadãos. A inclusão desse
objetivo é especialmente importante para países menos desenvolvidos onde o
pleno emprego só poderia ser alcançado após um longo processo de
desenvolvimento. É consenso que a sociedade não deve esperar muitos anos
para a construção de toda uma estrutura econômica, que gere um nível de
exportação e um coeficiente de importações que permitem o alcance do pleno
emprego, para então poder oferecer condições mínimas de cidadania a seus
membros menos favorecidos. Lerner (1951) não precisou se preocupar com
isso, pois no pleno emprego, supostamente as condições mínimas de
cidadania e renda seriam cumpridas com maior facilidade.
Esses seis objetivos instrumentais fundamentam uma proposta de
generalização das finanças funcionais. Essa proposta pretende tornar as
finanças funcionais válidas também para países em desenvolvimento e outros
países sensíveis à restrição externa. Esta seção e a proposta estão resumidas
no quadro a seguir. Nas próximas seções, detalharemos como esses objetivos
podem ser atingidos com os instrumentos de política econômica disponíveis.
237
1 Maximizar o emprego até os pontos de dilema de políticas (a, b, c, d, e)
Instrumentos: política fiscal e monetária
6 Garantir condições mínimas de vida e melhora-las continuamente. Instrumentos: política de serviços públicos, de assistência social e complementação de renda para manter as condições mínimas de vida e de cidadania para aqueles que não puderam se beneficiar das políticas de emprego.
5 Impedir que a taxa de inflação se torne aceleracionista ou que adquira inércia em níveis elevados. Instrumentos: definição de tetos para a taxa de inflação e para a taxa de câmbio, utilização de instrumentos
anti-indexação
Pleno emprego efetivo
Baixa inflação
Garantir a sustentabilidade do
processo de desenvolvimento
a) Maximizar a taxa de crescimento no curto prazo, mantendo a inflação como prioridade secundária no curto prazo.
f) Em caso de crise cambial ela dever ser resolvida o mais rápido e com os
menores custos possíveis
e) Manter a inflação em
patamares controlados
d) Manter baixo o risco de crise cambial grave
b) Manter baixo o risco de crises por deficiência de infra-estrutura
Garantir um processo contínuo de melhoria das condições mínimas de vida para todos, sem retrocessos ou paralisações
significativas
4 Deslocar o mais rápido possível o ponto de gargalo da infra-estrutura (a, b, e) Instrumentos: política de infra-estrutura
3 Administrar a pressão cambial (a, d, e, f) Instrumentos: política de juros (conjuntural e tetos estruturais), política bancária (conjuntural), política cambial (conjuntural), política de reservas, política de endividamento externo público e privado.
c) Não comprometer os indicadores de
solvência
Objetivos fins de curto prazo: 2 Deslocar o mais rápido possível o ponto de limite de solvência externa (a, c, e) Instrumentos: política industrial, tecnológica, cambial (pisos) e creditícia (testos estruturais)
Objetivos-meio não-instrumentais de curto prazo: Objetivos-fins de longo prazo:
Objetivos-meio instrumentais de curto prazo: Finanças Funcionais generalizada
238
No gráfico abaixo, buscamos ilustrar o impacto da esperado dessas
políticas sobre a economia. As políticas de administração da pressão cambial
buscam manter a taxa de câmbio dentro dos patamares desejados. A
estabilidade cambial decorrente de tal política é importante para manter a
inflação controlada e o capital externo de longo prazo seguro. Essa política visa
ainda induzir a capitação de financiamento externo de longo prazo para evitar
que o crescimento econômico torne o fluxo estrutural de divisas negativo (i.e., a
NFEDcp > 0), enquanto o país ainda está solvente. Essa política está
representada pela seta à esquerda abaixo do gráfico.
As políticas que visam ampliar as exportações e substituir importações
estão representadas pela seta branca. Elas visam impedir que o crescimento
econômico comprometa os indicadores de solvência do país. A manutenção da
taxa de juros de longo prazo em seu patamar mínimo é uma das mais
importantes políticas desse tipo. Essa política está representada no gráfico pela
reta pontilhada paralela horizontal. O objetivo, no longo prazo, desse tipo de
política é tornar o país solvente ao nível de demanda agregada de pleno
emprego.
As políticas de infra-estrutura estão representadas pela seta à direita
abaixo do gráfico. Elas visam evitar riscos de que gargalos de infra-estrutura
causem perdas de competitividade, impacto sobre os salários e restrições
físicas ao crescimento. No longo prazo, objetivam construir uma infra-estrutura
compatível com o nível de atividade de pleno emprego.
239
4.3. Política anti-inflacionária
O pensamento tradicional propõe políticas de contração de demanda
doméstica como solução contra a inflação. As versões mais radicais desse
pensamento sugerem, por vias um tanto tortuosas, que políticas de demanda
doméstica nem mesmo afetam o nível de atividade, mas apenas os preços.
Essa idéia certamente não é coerente com a perspectiva keynesiana que
adotamos em todo o trabalho.
Políticas contracionistas, de fato, podem ter algum impacto na redução
da inflação. Mas esse impacto em geral não é direto. Em economias abertas,
esse papel nunca é independente da taxa de câmbio. Grandes manipulações
da demanda agregada podem ter impacto direto de apenas alguns pontos
percentuais na taxa de inflação por período. Entretanto, o câmbio pode ter
impactos muito maiores. Ele é inevitavelmente uma âncora para os outros
preços. Nesse sentido, é de se esperar que o controle da taxa de câmbio seja a
política anti-inflacionária por excelência.
O controle da taxa de câmbio não é apenas mais eficaz, é
também menos custosa para a sociedade, portanto, mais eficiente. Políticas
fiscais contracionistas reduzem o nível de atividade, mas impõem diversos
danos. Elas aumentam o desemprego, podem reduzir os investimentos
y
j insolvente
solvente
ponto de restrição externa
“Pleno emprego”
j = Exp% insolvente
j mín. estrut
NFEDCP 0
Ponto de maximização da taxa de crescimento
Ponto de risco de gargalos na infra-estrutura Política de
administração da pressão cambial e financiamento a
longo prazo
Política de infra-estrutura
Política de deslocamento da restrição externa
240
privados e ser efetivadas por via da redução da oferta de serviços públicos ou
de investimento governamentais.
As políticas monetárias contracionistas, além dos custos
elevados, têm a eficácia, na melhor das hipóteses, duvidosa. Em geral, a
demanda agregada é pouco elástica aos juros, sendo necessário grandes
movimentos nessa taxa para que possa surtir os efeitos desejados. De
qualquer forma, o efeito direto a médio e longo prazos é de aumento dos
preços, pois aumentam os custos financeiros e de oportunidade das empresas.
Novos investimentos são avaliados a taxas de desconto superiores e muitos só
serão viabilizados, se os preços usados nas projeções de receita forem
superiores.
Mas há um outro grande efeito negativo. O aumento dos juros reduz a
competitividade dos setores de importáveis e exportáveis do país. Esse
resultado se dá por diversos canais: (1) o aumento dos custos financeiros e de
oportunidade reduz a capacidade de baixar preços das empresas nacionais; (2)
reduz também os investimentos em atividades que não dependem do
crescimento da demanda da empresa ou que concorram com empresas
estrangeiras, como investimentos em inovação, diversificação, substituição de
importações, exportação e, portanto, reduz a capacidade de exportar e de
substituir importações; (3) reduz a capacidade das empresas nacionais
competirem com as estrangeiras no oferecimento de crédito aos clientes
internos e externos. Essa perda de competitividade significa piores níveis de
solvência externa no futuro para os mesmos níveis de renda e câmbio. Dessa
forma, implica em menos crescimento ou mais inflação.
As políticas de demanda não são um instrumento adequado contra a
inflação. Porém, essas políticas não podem ser alheias à política anti-
inflacionária. É necessário reconhecer que há efeitos potenciais indiretos das
políticas de demanda sobre a taxa de inflação. O nível de atividade pode ser
importante para o controle da taxa de câmbio.
No mundo moderno a inflação é um fenômeno onipresente. Todos
os países sofrem em todos ou quase todos os anos. O que é indesejável de
fato não é a inflação, mas uma inflação considerada alta. O nível de atividade
pode variar muito sem que a inflação se torne inaceitável. Em geral, ela atinge
essa situação, quando os preços, câmbio e salários se tornam amplamente
241
indexados e mudanças de preços relativos podem aumentar os patamares da
inflação.
Dessa forma, torna-se fundamental definir tetos para a taxa de
inflação. A princípio, esses tetos já seriam justificáveis a partir das metas
originais das finanças funcionais. Porém, nos países onde essas metas só
podem ser alcançadas depois de um longo e difícil processo de
desenvolvimento, o teto para a taxa de inflação precisa ser relativizado. Tetos
muito baixos podem atrasar o processo de desenvolvimento. O objetivo
prioritário é atingir as metas das finanças funcionais (o pleno emprego com
baixa inflação) no menor tempo possível, mesmo que isso implique em aceitar
taxas maiores de inflação no decorrer da trajetória.
Entretanto, taxas muito altas também podem atravancar o
desenvolvimento. Quanto mais alta a taxa de inflação, mais reativos precisam
ser os diversos segmentos da sociedade para evitar perdas severas de poder
de compra. Nesse sentido, é fácil entender porque quanto mais alta a taxa de
inflação, mais indexada tende a ser a economia. A forte indexação da
economia causa diversos problemas. Ela dificulta acomodação da mudança de
preços relativos e da distribuição de renda. O crescimento acelerado implica
em mudanças de preços relativos. Portanto, nessas circunstâncias, pode levar
a taxas inflacionárias mais altas. Além disso, a indexação tende a tornar as
políticas de redução da inflação mais custosas em termos de perda de produto
para a sociedade.
Assim, definir tetos para a taxa de inflação é também uma política
anti-indexação. A política anti-inflacionária que propomos aqui, baseada no
método das finanças funcionais, é parcialmente uma política que visa impedir a
indexação de preços e salários e parcialmente uma política que visa impedir
aumentos generalizados de custos. Os aumentos generalizados de custos
devem ser evitados em primeiro lugar porque podem precipitar um processo
geral de indexação.
Na ausência de pleno emprego, os aumentos generalizados de
custos são causados principalmente por desvalorizações acentuadas, mas
também podem ser resultantes de deficiências de infra-estrutura. Existem dois
tipos básicos de deficiências de infra-estrutura que podem resultar em aumento
242
de inflação: os gargalos de infra-estrutura física e a escassez de mão-de-obra
especializada nas regiões de maior crescimento.
Assim, como o aumento da indexação da economia, os aumentos
generalizados desses tipos de custos podem ser prevenidos no curto prazo a
partir da definição de um teto de inflação. A partir da previsão do impacto que
os gargalos possam ter sobre a inflação, a meta de inflação determinaria um
teto de renda aceitável por período.
Há limites para a taxa de crescimento das exportações e da substituição
de importações, assim como há limites para a taxa de crescimento da infra-
estrutura97. Dessa forma, taxas de crescimento muito altas podem significar
elevado risco de pressão cambial e de gargalos de infra-estrutura, e, portanto,
risco de aumento de inflação.
A definição do teto para a inflação determina os limites potenciais para o
nível de renda de duas formas diferentes. A primeira delas, indireta, passa pela
definição do teto da taxa de câmbio. A meta de inflação determina, de maneira
flexível, níveis máximos de desvalorização cambial aceitáveis por período. A
inflação só pode ser controlada se o câmbio é controlado. O câmbio é a
principal referência para todos os custos e preços e a arma mais potente contra
a indexação. Assim sustentar esses tetos cambiais são a principal arma anti-
inflacionária.
Entretanto, sustentar o câmbio pode não ser tarefa trivial. Se a pressão
cambial for muito alta, essa sustentação pode significar restrições ao
crescimento econômico. A desvalorização cambial reduz a pressão, mas pode
não ser suficiente para extingui-la, ou porque o teto de câmbio determinado
pelo governo não permite ou porque a indexação de preços e salários impede
que a desvalorização seja tão grande quanto necessário em termos reais.
97 A opção chinesa contemporânea de tentar, em termos, limitar a taxa de crescimento do investimento e do crescimento em geral é justificada em parte pela grande pressão que tal crescimento tem exercido sobre a infra-estrutura do país, que às vezes não cresce na mesma velocidade. Algumas regiões da China têm sofrido com dificuldades de oferta de energia elétrica. Nas grandes cidades a especulação imobiliária tem sido muito intensa, apesar das tentativas de combate por parte do governo. As maiores cidades chinesas já estão com custos de vida próximos às das grandes cidades do planeta. A demanda por engenheiros e executivos alterou completamente a distribuição de renda entre assalariados, e esses profissionais já estão recebendo remunerações próximas aos níveis internacionais, apesar do ainda baixo salário dos trabalhadores não-qualificados e das grandes reservas de mão-de-obra nas regiões rurais. Ainda assim, é preciso ressaltar, a inflação chinesa permanece reduzida, graças ao câmbio fixo.
243
A desvalorização reduz a pressão cambial e permite que níveis de renda
mais altos sejam alcançados com níveis de pressão cambial reduzidos. Porém,
ela não impede a existência de limites ao nível de renda por período. Quando o
crédito internacional é escasso e o governo não pretende perder mais reservas
e desvalorizar mais o câmbio, esse limite é definido pelo ponto em que a
NFEDcp torna-se positiva. Quando o crédito internacional é normal, esse limite
é definido pelo indicador de solvência usado pelo governo e seus credores.
Assim a política anti-inflacionária é constituída basicamente na
definição de tetos de inflação, câmbio e nível de atividade. Além desses tetos,
a política anti-inflacionária dispõe de instrumentos de combate direto à
indexação. Esses instrumentos de combate à indexação podem ser
preventivos ou curativos. Como exemplos de instrumentos curativos temos o
congelamento de preços e salários, a desindexação de contratos e as reformas
monetárias baseadas em “trocas de moedas”. Essas trocas, em geral, são
feitas tendo como base uma referência de valor que era estável no período
inflacionário. Pode ser a moeda de outro país, uma mercadoria, indexadores de
preços ou formas mistas.
Instrumentos de combate à indexação preventivos podem ser
tabelamentos parciais de preços, políticas de renda e formas diversas de
desincentivo à elevação dos salários de certas categorias acima do aumento
médio das outras98. Lerner (1951; 1977a; 1977b; 1978; 1982) dá especial
importância a esses mecanismos.
Lerner e Colander (1980; 1982) propõem o plano MAP, no qual o
governo imputa uma penalidade sobre os agentes que aumentarem seus
preços. Para os agentes que reduzirem seus preços o governo concede títulos
que podem ser vendidos para os agentes que aumentaram seus preços
usarem como pagamentos de suas penalidades ao governo. A intenção é que
tal plano acabe tornando os preços relativos flexíveis e o índice geral de preços
estabilizado.
98 As políticas de renda são especialmente importantes. Porém, essas podem estar associadas a metas específicas de distribuição de renda. Vamos adotar a posição das finanças funcionais, tais como originalmente formuladas por Lerner, e buscar não aprofundar em políticas que envolvem metas de distribuição de renda. Todavia, essa é uma questão relevante e que pode ser avançada futuramente utilizando, em parte esse arcabouço.
244
4.4. Administração da pressão cambial
[A discussão sobre a política cambial] é hoje muito pertinente, porque nenhuma "escola" sabe qual deveria ser o nível da taxa de câmbio nominal para atender ao presente e, mais importante, ao futuro do nosso desenvolvimento”
99
(Delfim, 2004).
Uma pressão cambial persistente acaba levando à inflação, a menos
que o governo tenha disponível um volume de reservas muito grande. Nesse
sentido a administração da pressão cambial é prioritária. Normalmente a
inflação é considerada um problema muito grave. Dessa forma, todos os
instrumentos de política econômica são normalmente considerados válidos
para a gestão da pressão cambial, incluindo as políticas fiscais e monetárias.
A administração da pressão cambial é muito complexa, pois essa é
formada por um conjunto de partes determinadas de maneira diversa e
relativamente independente.
Pressão cambial = NFEDcp – FFEcp = EEG – R–
Onde:
EEG = empréstimos externos tomados pelo governo
R– = compras líquidas de reservas cambiais pelo governo subtraídas
das compras mínimas planejadas.
NFEDcp = AmE + DCC – IDE – EElp + Rmín
Onde:
AmE = saldo das amortizações dívidas de externas pagas
DCC = déficit em conta corrente
IDE = investimentos externos diretos líquidos
EELP = saldo de empréstimos externos de longo prazo tomados pelo
setor privado
Rmín = compras mínimas de reservas cambiais planejadas pelo governo
para recompor reservas.
99 Delfim, Valor 15/02/2004.
245
Os componentes da NFEDcp agregados por partes geram as seguintes
variáveis: necessidade de financiamento externa – NFE, necessidade de
financiamento externa por dívidas – NFED e por último a NFEDcp.
NFE = AmE + DCC + Rmín
NFED = NFE – IDE
A NFE indica o quanto de financiamento externo o país precisa para
pagar os bens, serviços e compromissos que tem com o exterior e para
acumular o volume mínimo de reservas desejado.
Esse indicador mostra a dependência do país de capital estrangeiro. Os
financiamentos externos dependem da liquidez internacional e da possibilidade
de crises cambiais. Assim, a NFE é um indicador apropriado da capacidade do
país resistir a crises e de honrar seus compromissos externos. Uma NFE
positiva indica que o país não pode prescindir de financiamento em moeda
estrangeira. Se há uma crise internacional que reduza as fontes de
financiamento externo, o país sofrerá mais fortemente as conseqüências,
podendo até se ver inadimplente. Por outro lado, se o país possui uma NFE
negativa, ele se torna independente de financiamentos estrangeiros e poderá
nem sentir os efeitos de crises internacionais, se o governo tem uma política de
emprego ativa.
A NFED indica o quanto de financiamento por empréstimos de longo
prazo e passivos de curto prazo em geral o país precisa atrair para honrar seus
compromissos com o exterior. Uma NFED não-positiva indica que o país não
precisa obter empréstimos externos e outros tipos de passivos de curto prazo
para financiar seu balanço de pagamentos. Por sua vez, uma NFED positiva
indica o contrário.
Na ausência de intervenção do governo nos mercados cambiais e nos
movimentos de capitais, uma NFED positiva indica que o país precisa manter
estruturalmente taxas de juros de longo prazo para títulos privados
suficientemente superiores à taxa de juros equivalente na moeda que usa
como reserva, para que possa atrair mais empréstimos externos do que
concede ao exterior. Assim, a NFED positiva normalmente indica uma
necessidade de juros superiores aos externos. Essa questão será melhor
desenvolvida na próxima seção.
246
Mas podem existir situações onde seja necessário juros mais do que
simplesmente superiores aos juros internacionais de referência. Para entender
o porque é necessário ir além da análise da NFED. Assim, se somarmos à
NFED os empréstimos líquidos de longo prazo (acima de 1 ano) teremos uma
indicação da necessidade de financiamento de curto prazo (até um ano).
A necessidade de financiamento por empréstimos de curto prazo –
NFEDcp mostra o volume de empréstimos líquidos de curto prazo que o país
precisa tomar no exterior ou a venda de reservas cambiais que precisa fazer
para honrar seus compromissos com o estrangeiro, pois já considerou os
investimentos externos diretos e os empréstimos de longo prazo.
Se o país tem uma NFEDcp positiva, estará muito provavelmente em
uma situação financeira delicada, porque os empréstimos de curto prazo são
muito voláteis e dependentes das expectativas de desvalorização cambial.
Mesmo se o país capta um volume de empréstimos de curto prazo superior à
NFEDcp, sua situação poderá não estar muito melhor, porque, o país terá o
balanço de pagamentos financiado, mas muito possivelmente à custa de um
crescimento da dívida de curto prazo. Os especuladores cambiais vêem esse
processo com muita clareza. Para eles, manter o balanço de pagamentos
financiado à custa de aumento da dívida de curto prazo não faz o país melhorar
seu grau de risco cambial no curto prazo, pois o passivo acumulado se
transformará integralmente em obrigações e, conseqüentemente, NFEDcp
maiores no futuro próximo.
Pode ser que a NFEDcp seja tão pequena que uma simples
desvalorização cambial dentro de patamares que não comprometem as metas
de câmbio e inflação pode torná-la negativa. Nesse caso, dizemos que a
necessidade estrutural de financiamento externo com dívida de curto prazo
pós-desvalorização é negativa.
Como vimos no segundo capítulo, Lerner (1951) propõe que o câmbio
flutuante permitiria o alcance do pleno emprego com estabilidade de preços.
Poderíamos agora afirmar que essa proposição teria validade, se o país tivesse
uma NFEDcp pós-desvalorização negativa em situação próxima ao pleno
emprego.
Entretanto, se a NFEDcp pós-desvalorização for positiva, uma
desvalorização dentro dos patamares considerados aceitáveis não resolveria o
247
problema da falta de divisas. Nessa situação, haveria a necessidade de
políticas fiscais contracionistas ou de juros ainda maiores. Quão maiores? Não
é possível saber antecipadamente com precisão, tudo dependerá das
expectativas de desvalorização, da liquidez internacional e da atuação do
Banco Central no sentido de manipular as expectativas de desvalorização e de
juros futuros.
Uma NFEDcp positiva mostra dependência do país em relação aos
voláteis empréstimos de curto prazo, geralmente associados a operações
especulativas com câmbio e juros ou operações de arbitragem viabilizadas por
taxas de lucro superiores à taxa de juros em empréstimos bancários com risco
de inadimplência ou investimentos em giro ou capital fixo.
Propomos, no capítulo anterior, que os passivos de curto prazo não
podem financiar por muito tempo uma NFEDcp positiva. Se é esperada uma
NFEDcp positiva mesmo após uma desvalorização dentro de patamares
aceitáveis, haverá pressão para elevação de juros no curto prazo e utilização
de políticas para reduzir a NFEDcp ou para emissão de dívida pública no
exterior.
4.4.1. NFEDcp, pressão cambial, juros e inflação: uma retrospectiva
Em um país com câmbio flutuante, a demanda líquida especulativa de
dólares dificilmente fica muitos dias positiva, porque o próprio movimento das
taxas de câmbio altera as hipóteses em que se baseiam os especuladores. Por
exemplo, se parte dos especuladores acha que os dólar vai subir até 2,90 no
prazo de uma semana e o câmbio, de fato, atingir esse valor, os especuladores
deverão supor novas hipóteses. Nesse processo de avaliar novas hipóteses a
maioria dos especuladores em potencial poderá não estar ofertando nem
demandando dólares. De fato, há momentos em que a especulação líquida em
determinada direção possui um valor muito baixo. Nesses momentos, os
especuladores estarão criando e testando hipóteses tanto de desvalorização
quanto de valorização.
Em uma situação de dúvida como essa, onde os especuladores, de uma
forma geral, não possuem uma opinião hegemônica sobre o movimento futuro
248
do câmbio, o que determina a evolução da cotação do câmbio são contas
estruturais do balanço de pagamentos. Essas contas agrupadas na NFEDcp
são o saldo em conta corrente, os investimentos diretos externos e os
empréstimos de longo prazo.
Parte significativa dos empréstimos de curto prazo depende muito
fortemente das expectativas de desvalorização cambial, portanto, estamos
considerando-os aqui como parte dos movimentos especulativos de capitais.
Suponhamos um empréstimo externo de curto prazo tomado em dólar com
prazo de maturação de 3 meses, o rendimento anual desse título é de
aproximadamente 10% e o rendimento do tomador que aplicará o dinheiro será
de aproximadamente 20% anuais no Brasil100. O rendimento líquido do tomador
do empréstimo no período de três meses será de 2,2%. Ora, sabemos que
nossa taxa de câmbio pode variar muito mais do que isso no prazo de uma
semana, no prazo de 3 meses pode variar substancialmente mais.
Imediatamente percebemos que o risco dificilmente compensa tal
operação, a não ser se esse tomador estiver seguro de que o dólar se
valorizará ou no mínimo ficará com seu valor constante no período. Nesse
caso, podemos dizer que a operação descrita seja uma operação de altíssimo
risco cambial. Quem estiver disposto a realizá-la estará fazendo um grande
aposta sobre a taxa de câmbio, podendo ser considerado um especulador
cambial.
Entretanto, alguém poderia imaginar que esse tomador de empréstimos
externos poderia comprar um derivativo cambial e assim se proteger da queda
do dólar. A princípio poderíamos achar que essa seja uma operação viável,
mas isso não corresponderia à verdade, pois o custo de proteção cambial mais
o custo de captação em dólar para aplicações em moeda nacional é maior do
que o lucro esperado em uma operação desse tipo.
Não é viável proteger em dólar um investimento de aquisição de títulos
nacionais que rendem juros básicos. Essa proposição pode ser compreendida
a partir dos motivos pelo qual alguém oferece proteção cambial. Obviamente
quem oferece proteção cambial está se beneficiando dessa operação. Existem
100 Em praticamente qualquer outro país do mundo esses valores seriam significativamente menores.
249
agentes econômicos que oferecem proteção cambial porque possuem ativos
em dólar de baixa liquidez e que não podem se desfazer deles. Entretanto, a
grande maioria dos ofertantes de proteção cambial são o que se chama
convencionalmente de arbitradores.
Quando o custo de proteção cambial está muito elevado, os arbitradores
enxergam uma boa oportunidade de lucro. Nessa situação, eles tomam
emprestado em reais e compram ativos em dólar de baixo risco que tenham um
bom rendimento ao mesmo tempo que vendem dólar no futuro para quem está
comprando proteção cambial.
Mantendo a mesma situação econômica de nosso exemplo anterior,
podemos dizer que o arbitrador conseguirá pegar emprestado à taxa mínima de
20% e poderá aplicar em títulos em dólar que rendem no máximo uns 10%. Se
ao mesmo tempo venderem dólar no mercado futuro com um rendimento acima
de 10% poderão obter lucro em uma operação sem risco.
Quem comprar dólar futuro desse arbitrador estará conseguindo
proteção cambial. Entretanto, o custo de proteção cambial nesse exemplo será
de mais de 10%. Ora, com um custo de proteção cambial de 10% não é
possível lucrar em operações de arbitragem de juros onde se toma emprestado
no exterior a 10% e aplica-se no país a 20%.
Assim não existem operações com arbitragem internacional de juros de
curto prazo, onde ambas as partes que viabilizam a operação tenha posições
não arriscadas ou não especulativas. As únicas operações viáveis de
especulação com diferencial de juros são: (1) as operações onde quem está
tomando recursos no exterior está pelo menos parcialmente desprotegido na
aplicação no mercado interno, ou seja, está especulando que o câmbio ficará
constante101 ou valorizará; ou (2) quando os especuladores, também
apostando na valorização, aplicam grandes volumes na venda de dólar futuro;
essas decisões podem reduzir o valor desse ativo futuro e assim viabilizar uma
operação de arbitragem pelos bancos que se baseia em ficar vendido em
títulos em dólar e comprado em títulos públicos e dólar futuro; ou (3) quando
quem está tomando emprestado no exterior está aplicando a taxas superiores
ao que os arbitradores podem tomar emprestado. Esse terceiro caso só é
101 Quando o câmbio é fixo essa é uma operação comum.
250
possível se o operador for um banco que pode emprestar a taxas superiores à
dos outros agentes econômicos, ou uma empresa que está utilizando os
recursos para investir. Entretanto, os bancos só podem fazer isso emprestando
ao setor privado, ou seja, assumindo operações com risco de inadimplência.
Nesse sentido, podemos sugerir que, com exceção dos especuladores
que apostam diretamente na valorização ou estabilidade cambial e dos
tomadores que assumem diretamente pelo menos algum risco cambial, os
empréstimos internacionais existem mais devido à diferença internacional entre
os spreads de taxas de juros de longo prazo do setor privado do que pela
diferença entre as taxas de juros básicas.
Dessa forma, se mudarmos nossa premissa inicial de que os
especuladores cambiais não chegaram a uma opinião dominante sobre as
expectativas de desvalorização; mais precisamente, se supusermos que as
expectativas hegemônicas sejam de valorização cambial, os especuladores
fariam aumentar significativamente o passivo de curto prazo assumido pelo
país. Isso acontece de duas formas: (1) diretamente, os especuladores tomam
emprestado em dólar e aplicam no Brasil, ou (2) via compra de dólar futuro. O
crescimento da demanda por dólar futuro reduz seu preço viabilizando,
operações de arbitragem pelos bancos que podem vender dólar futuro
enquanto tomam emprestado em dólar e aplicam em títulos públicos ou outras
aplicações em reais.
Como vimos, a entrada de capital externo de curto prazo depende das
expectativas de desvalorização. Na verdade, para sermos mais precisos, o que
mais importa para o volume de especulação cambial é mais a expectativa
sobre a pressão cambial, pois essa sintetiza as expectativas de desvalorização
e de variação dos juros. Mesmo quando o mercado acredita que o governo seja
capaz de manter a taxa de câmbio fixa; e, portanto, não haja expectativa de
desvalorização; haverá possibilidade de lucros extraordinário ou de evitar
prejuízos extraordinários com operações que significam saída de capitais, se
houver expectativa de aumento significativo da pressão cambial.
Sabe-se que na situação de pressão cambial o governo tem três
respostas imediatas: permitir a desvalorização, aumentar os juros e vender
reservas. Considerando que a última possa ser uma solução não disponível por
muito tempo, o mercado geralmente esperará nessa situação pelo menos
251
alguma das duas primeiras. Assim, em caso de expectativa de pressão cambial
significativa, (1) valerá à pena para o detentores de títulos prefixados de longo
prazo e ações venderem tais ativos e comprarem outros com menor
possibilidade de perda em maior rentabilidade esperada no curto prazo. Em
geral esses ativos serão denominados em moeda estrangeira, pois esses são
imunes à elevação da taxa de juros e dão bons rendimentos em caso de
desvalorização. A outra operação (2) que seria induzida pela expectativa de
pressão cambial é a compra de dólar futuro. Se há pressão cambial, os
detentores de dólar futuro ganham com a desvalorização, mas ganham
também se o governo mantiver o câmbio fixo e aumentar a taxa de juros.
Há momentos em que os especuladores cambiais acreditam
hegemonicamente na desvalorização, há momentos em que acreditam
hegemonicamente na valorização, e há momentos em que não há posição
majoritária. Assim há momentos em que existe uma demanda especulativa
líquida positiva, negativa e próxima de zero.
Assim, sempre existirão momentos onde o valor da NFEDcp será maior
do que o movimento especulativo de capitais e os empréstimos de curto prazo
tomados pelo país. Portanto, sempre ocorrerá situações onde o movimento da
taxa de câmbio será determinado pela NFEDcp. Ou seja, na ausência de
intervenção do governo, uma NFEDcp positiva leva à desvalorização do
câmbio, e uma NFEDcp negativa leva à valorização do câmbio.
Ainda que uma NFEDcp positiva possa levar diretamente a uma
desvalorização, esse é um processo suave, se comparado a um ataque
especulativo gerado pela concentração das expectativas de desvalorização em
um determinado momento. Entretanto, uma NFEDcp positiva pode gerar um
ataque especulativo. Suponhamos inicialmente que não haja expectativas de
desvalorização dominantes e que a NFEDcp seja maior do que os empréstimos
líquidos de curto prazo tomados no exterior. Nessa situação, o sinal da
NFEDcp vai determinar se a demanda líquida por dólares é positiva ou
negativa e, portanto, vai determinar a evolução da taxa de câmbio.
Dessa forma, as expectativas de desvalorização, que estavam bem
divididas, se desbalancearão, pois os especuladores que suspeitavam que o
câmbio se desvalorizaria terão suas expectativas confirmadas e investirão
pesadamente na compra de dólares. Os especuladores que acreditavam que o
252
câmbio se valorizaria passariam a ter maiores dúvidas quanto a suas
expectativas. E os especuladores que não tinham opinião formada, cada vez
mais, passarão a formular expectativas de desvalorização.
Assim, aceitando que sempre existem momentos em que a especulação
líquida e os empréstimos de curto prazo tomados sejam inferiores à NFEDcp,
se a NFEDcp manter o mesmo sinal por algum tempo, ela acabará
determinando a evolução da taxa de câmbio. Uma NFEDcp negativa levaria à
valorização do câmbio, enquanto uma NFEDcp positiva levaria à
desvalorização do câmbio, e até mesmo a um ataque especulativo.
Se o câmbio flutuante, como sugeriu Lerner (1951), fosse capaz de
resolver as dificuldades do balanço de pagamentos sem que se perdesse o
controle da taxa de inflação e sem que fosse necessário impor restrições às
políticas monetária ou fiscal; poderíamos dizer que as proposições de Lerner
implicariam em uma NFEDcp sempre negativa após as desvalorizações.
Em oposição, pode-se dizer que uma NFEDcp pós-desvalorização
positiva leva a uma taxa de juros elevada ou a uma necessidade de políticas
fiscais recessivas. Definimos anteriormente uma NFEDcp pós-desvalorização
como sendo a expectativa para a NFEDcp para o caso onde a taxa de câmbio
se desvalorize ao máximo que o governo considera aceitável para suas metas
de câmbio ou inflação. Se ela é negativa, seria esperado que desvalorizações
aceitáveis no câmbio tornassem negativa uma NFEDcp inicialmente positiva,
mas se a NFEDcp pós-desvalorização for positiva, desvalorizações aceitáveis
não tornariam a NFEDcp negativa.
O conceito de NFEDcp pós-desvalorização pode ser útil, porque ajuda a
diferenciar os casos onde valeria o otimismo de Lerner em relação ao câmbio
flutuante dos casos onde esse otimismo não é justificável. Esse otimismo é
válido quando um país que possui uma NFEDcp pós-desvalorização negativa,
pois não precisa se preocupar em elevar suas taxas de juros ou adotar políticas
recessivas ou buscar capital externo em caso de sofrer pressão cambial, basta
apenas permitir que o câmbio flutue.
Se isso não acontece, ou seja, se a NFEDcp pós-desvalorização for
positiva, há o risco do câmbio se desvalorizar além das metas do governo, ou
iniciar um processo retro-alimentável com a inflação de preços e salários.
Nessa circunstância o governo será obrigado a agir para impedir essa
253
possibilidade. Adotando políticas fiscais ou monetárias recessivas ou buscando
atrair capital externo.
Nessa situação, torna-se necessário a utilização de políticas ativas de
administração da pressão cambial. Há três formas de administração da pressão
cambial:
i) financiamento de curto prazo da NFEDcp
ii) financiamento da NFE Dcp com dívida externa pública
iii) redução da NFEDcp
Nas próximas seções, mostraremos como funcionariam essas políticas
de administração da pressão cambial.
4.4.2. Financiamento de curto prazo da NFEDcp: solução ágil mas temporária
Como vimos, a NFEDcp determina a tendência da pressão cambial e,
portanto, a necessidade de perda de reservas ou de desvalorização cambial.
Manter a NFEDcp reduzida é, portanto, tarefa de todos os governos.
Financiar a NFEDcp por tempo razoável com dívidas de curto prazo ou
perda de reservas tende a ser inviável. Por mais que se eleve a taxa de juros,
as FFEcp serão sempre fortemente dependentes das expectativas de
valorização cambial. Como vimos, a elevação dos juros atrai capital
principalmente porque cria a expectativa que eles reduzirão no futuro. Assim,
se o governo reduzir a taxa, os especuladores realizam lucros e saem. Se a
pressão cambial não se arrefecer e, consequentemente, as expectativas de
queda dos juros ou elevação do câmbio não reduzirem; os especuladores
também acabariam fugindo dos ativos nacionais, porque não haverá
expectativa de lucros extraordinários e será muito arriscado manter uma
posição com grande risco cambial e eventualmente risco de juros. O governo
tem poder para manipular as FFEcp no curto prazo, mas esse controle funciona
por um período curto, pois não é possível evitar a tendência à realização de
lucros ou de fuga de risco cambial e de juros.
Porém, como veremos na próxima seção, é muito difícil reduzir a
NFEDcp em prazos muito curtos. Mesmo quando essa seja uma política
254
necessária, ela pode não ser viável a curto prazo. Por isso as políticas de
financiamento da NFEDcp via manipulação das FFEcp ou via venda de
reservas podem ser importantes no curto prazo.
As principais políticas para financiar a curto prazo a NFEDcp são:
1) desvalorização cambial102,
2) elevação da taxa de juros,
3) venda de reservas
Com efeitos parciais e pouco eficientes, há ainda as seguintes políticas,
que podem ser complementares às três primeiras em situações críticas:
4) a manutenção de elevados diferenciais de taxas de juros e
5) o oferecimento de subsídios à proteção cambial
4.4.2.1. Políticas mais adequadas para financiamento de curto
prazo da NFEDcp
“A desvalorização tem, em geral, antes de tudo, esse efeito imediato:
voltam os capitais que emigraram anteriormente, receosos ante a possibilidade
de seus lucros serem eliminados” (Kalecki, 1936: 70-1). Se o governo se
mostra capaz de impedir a continuidade da perda de valor da moeda nacional
depois que ocorre uma desvalorização significativa, as expectativas de
desvalorização serão menos majoritárias do que as expectativas de
valorização.
Na verdade, esse efeito pode ocorrer independentemente de
expectativas de desvalorização serem substituídas por expectativas de
valorização, ou seja, mesmo que a desvalorização seja vista como uma
mudança definitiva de patamar da taxa de câmbio. Uma vez conscientes do
estancamento do processo de desvalorização, os especuladores residentes –
que possuem boa parte de suas despesas e obrigações financeiras, comerciais
e fiscais em moeda nacionais –buscarão realizar seus lucros.
102 A função mais importante da desvalorização cambial é aumentar a competitividade do país e assim reduzir a NFEDcp. Porém, ela também pode ser usada para financiar no curto prazo a NFEDcp. Se o governo permite uma desvalorização e indica que essa desvalorização não será sucedida por outras, o país tende a trazer de volta em busca de realização de lucros, os capitais recém emigrados pelo temor da desvalorização. Pode também atrair capitais para aplicações em renda variável de atividades cuja renda é parcialmente indexada ao câmbio e cujos custos de aquisição não acompanharam a desvalorização da moeda.
255
Outros especuladores buscarão ganhar com a menor pressão cambial
sobre a taxa de juros decorrente da desvalorização. A aceitação de uma
desvalorização “once for all” pelo governo tem um efeito parecido com a
elevação da taxa de juros sobre as expectativas de rentabilidade de títulos
prefixados e ações. Ambas políticas geram perdas sobre os investidores com
aplicações em moeda nacional, particularmente em títulos prefixados e ações
no caso da elevação dos juros. Porém, uma vez realizadas e disseminadas as
expectativas de que tais políticas não são mais necessárias, os especuladores
passarão a esperar que o câmbio volte a se valorizar ou que a taxa de juros
volte a cair. Nessas situações, surge a oportunidade de lucros extraordinários
com a aplicação em moeda nacional, particularmente em ações e títulos
prefixados de longo prazo.
Assim, a desvalorização cambial e a elevação dos juros, se conduzidas
de forma a coordenar as expectativas, são políticas eficazes para financiar a
NFEDcp. Mas por pouco tempo. [A atração de capitais de curto prazo
decorrente da desvalorização] é, evidentemente, um efeito de uma só vez”
(Kalecki, 1936: 70-1). Os capitais atraídos por essas políticas de coordenação
de expectativas tem horizonte de investimento de curto prazo; uma vez
confirmada suas expectativas, realizam seus lucros, invertendo o fluxo de
capital. Se não forem confirmadas suas expectativas, eles realizam o que
obtiveram (prejuízo ou lucro nulo), pois essas operações são muito arriscadas.
Outra política de financiamento da NFEDcp é a venda de reservas
cambiais. Se o país dispõe de um volume de reservas significativo, ele pode
financiar por algum tempo seu balanço de pagamentos dessa forma. Porém,
essa situação não pode ser indefinida, mesmo porque quando as reservas vão
se reduzindo os temores de desvalorização aumentam, podendo levar a um
ataque cambial e, assim, perda acelerada de reservas.
A alternativa é o governo tomar empréstimos no exterior para financiar
essa perda de reservas. Se esses empréstimos forem de curto prazo haverá
também uma limitação a curto prazo, pois o aumento do endividamento líquido
de curto prazo do país também acaba levando ao ataque especulativo. Se
forem empréstimos de longo prazo, a situação seria mais confortável. Essa
solução será discutida na próxima seção.
256
É preciso sublinhar o seguinte ponto. A taxa de juros só deve reagir à
pressão cambial. Se houver uma expectativa de que ela reaja a outros
fenômenos, haverá crescimento da especulação cambial e muito
provavelmente da pressão cambial, toda vez que surgirem sinais que indiquem
a possibilidade de ocorrência desses outros fenômenos.
Uma regra tradicional de política monetária é reagir às possibilidades de
ultrapassagem de uma determinada meta de inflação. A taxa de câmbio é a
principal responsável por inflações elevadas. Mesmo quando não há indexação
do câmbio, desvalorizações geram aumentos de custos que têm impacto sobre
a inflação. Mas existem outros fatores que podem afetar os índices de preços.
Normalmente acredita-se que alguns desses fatores possuem uma importância
muito maior do que a real. Se o governo promete reagir ao aumento da
inflação, mesmo quando esse não for causado por aumentos da pressão
cambial, será obrigado a aumentar a taxa de juros toda vez que o mercado
imaginar ou especular que determinado fenômeno pode levar a aumento da
inflação, mesmo se os técnicos do banco central considerem que a inflação
está controlada.
Toda vez que o mercado imaginar que a meta de inflação corre o risco
de não ser cumprida surgirá a possibilidade de que as taxas de juros
aumentem. Se as taxas de juros aumentarem, ganha quem apostou em dólar
futuro e deixa de perder quem vender títulos prefixados de longo prazo ou
ações e comprarem, por exemplo, títulos ou ações estrangeiros. Os
investidores estrangeiros quando fogem de uma perda geralmente fogem para
a moeda de origem, que é sua referência de segurança. Portanto, a expectativa
de aumento dos juros tende a implicar em saída de capitais. Esse processo
pode acabar resultando em pressão cambial. Se a pressão cambial for
realmente significativa, aumentará o risco de ultrapassagem da meta e o
governo acabará sendo obrigado a elevar a taxa de juros. Assim, a
expectativas dos especuladores funcionarão, devido aos defeitos do sistema de
metas de inflação, como profecias auto-realizáveis.
Dessa forma, a política monetária estará tão mais sujeita aos humores
dos mercados quanto mais ambiciosa ou mais rígida for um meta de inflação.
Essa regra de política monetária estará assim induzindo o país a conviver com
taxas de juros médias mais elevadas desnecessariamente.
257
Essas conclusões são válidas quando existe risco de desvalorização, ou
seja, para todos os casos de câmbio flutuante ou câmbio fixo com possibilidade
de desvalorização. Nesses casos, se houver expectativa de elevação de juros
e o governo não reagir rapidamente, aumenta a saída de capitais. Dessa
forma, se o governo divulga para o mercado uma função de reação que o
obriga a aumentar taxa de juros toda vez que houver sinais de ultrapassagem
da meta de inflação e, além disso, cria uma meta de inflação muito apertada e
rígida, sempre que houver sinais de inflação, o governo será induzido a elevar
a taxa de juros, pois caso contrário haverá saída de capitais e desvalorização
cambial. O interessante é que nas aparências parece que o mercado está
muito preocupado com o não cumprimento da meta e busca moedas com
maior “credibilidade”, quando há risco de descumprimento da meta, mas na
verdade os especuladores não estão preocupados com o descumprimento da
meta em si, eles estão preocupados em não perder e se possível ganhar
dinheiro com as sinalizações de modificações nos juros. Essa possibilidade de
perda e oportunidades de ganho são criadas pela própria função de reação do
banco central e não por um suposto risco de perda de credibilidade103.
O governo perde assim muito da sua capacidade discricionária de fazer
política monetária e acaba obrigado a manter taxas de juros médias superiores
103 Esse sistema é uma armadilha que o governo cria para si próprio. Em países com alta vulnerabilidade externa, isto é, sujeitos com muita freqüência à pressão cambial intensa, as necessidades de elevação de juros são muito maiores. Se acrescentar a isso outras funções para as taxas de juros ou uma meta de inflação muito apertada, a todo momento, haverá necessidade de elevação de juros para impedir a pressão cambial. Nesse sistema, crenças do mercado podem influenciar as “funções” que o banco central dá à política monetária. Se os especuladores majoritariamente imaginam que determinado evento implique em aumento da inflação, esse evento poderá resultar em aumento dos juros. Porque, se os especuladores supõem que a inflação tende a ultrapassar a meta e essa informação é difundida, esperarão que o banco central precisará aumentar a taxa de juros. Se anteciparem a esse evento, especularão contra a moeda nacional, tornando a pressão cambial positiva. A forma usual de resposta contra a pressão cambial é o aumento dos juros. Nessa situação, o banco central acabará tendo que responder com aumento de juros, quando essa possível “causa” for sinalizada. Se o Banco Central for dirigido com a mesma visão desses especuladores financeiros, poderá absorver essas crenças, incorporando novas “funções” para a política monetária. Assim podem ser criadas pelas convenções dos especuladores outras “funções” para a taxa de juros. Essa conclusão seria tão mais válida, quanto mais apertada é a meta de inflação. Certamente, essas novas “funções” podem ser facilmente eliminadas pelo governo, se ele faz uma política de administração cambial objetiva (funcional, no sentido de Lerner) e indica para o mercado quais são suas verdadeiras funções, não se deixando perturbar por qualquer movimento especulativo.
258
ao que seria necessário para simplesmente manter a taxa de câmbio
estável104.
Podemos assim concluir que, sob liberdade de movimento de capitais,
deve-se evitar utilizar a política monetária como política de manipulação de
demanda doméstica105.
Assumindo como válida a hipótese de que, quanto mais baixos os juros
de longo prazo, maior a competitividade do país, essa escolha significaria
reduzir a taxa de crescimento do país a longo prazo106, e reduzir a própria
capacidade de gasto público no futuro.
Assim, a política de monetária deve ser basicamente usada contra a
pressão cambial e para favorecer a competitividade do país. O nível de
atividade deve ser controlado primordialmente com políticas fiscais. É
interessante notar que, ainda que por razões diversas, essa última conclusão
não é muito diferente da encontrada pelos velhos keynesianos, cujas teorias
serviram como fundamento para as políticas econômicas européias e
americanas na época de ouro do capitalismo107.
104 Apenas como ilustração, poderíamos sugerir que, para o caso brasileiro, há um complicador adicional. A dívida pública e mesmo a privada, em termos gerais, tem baixo risco de juros e o valor da dívida privada prefixada e do mercado acionário são relativamente pequenos. Assim, os efeitos-riqueza das variações da taxa de juros são muito menores. Como conseqüência, em caso de pressão cambial, o governo precisa realizar aumentos de juros muito superiores ao que seria necessário em outros países. Lagrota (2002) chega à mesma conclusão com uma argumentação um pouco diferente. Dessa forma, dado esse perfil da dívida, uma adequada gestão da política monetária implicaria que o governo deveria variar os juros com uma intensidade maior do que em outros países, para que possa gerar ganhos de riqueza suficientemente significativos para induzir a entrada de capitais. Particularmente, o governo precisa reduzir as taxas de juros com maior agilidade quando houver uma janela de oportunidade, pois a pressão cambial e as outras sinalizações de aumento da inflação são muito freqüentes. Como a necessidade de variação dos juros é muito maior aqui, se a taxa de juros for reduzida em velocidade similar à realizada pelos bancos centrais dos países desenvolvidos, o efeito riqueza será reduzido serão necessários muito mais meses ou anos para que seja alcançada uma taxa de juros adequada para momentos sem pressão cambial. Porém, dificilmente é possível manter, no país, muitos meses sem pressão cambial. Dessa forma, os juros se manteriam sempre com uma média muito alta. Esses efeitos apenas reforçam a conclusão de que as manipulações das taxas de juros devem ser reduzidas ao mínimo. 105 Essa proposição seria válida ainda que manipulações da taxa de juros fossem muito eficazes para controle do nível de atividade e que os juros mais elevados não tivessem impactos negativos sobre a distribuição de renda e sobre a competitividade do país. Uma exceção a essa proposição seria possível quando há uma razão muito boa para deslocar gastos privados e o aumento da tributação não pode ser utilizado. 106 Kaldor (1971) mostra que o crescimento das exportações é fundamental para o crescimento econômico. 107 Nesse período, havia controles de capitais e a política monetária não era necessária diretamente para administrar a pressão cambial. Esses autores consideravam que as manipulações da taxa de juros não
259
4.4.2.2. Não existe diferencial mínimo para as taxas de juros no
curto prazo
Nessa altura, é necessário tecer algumas considerações adicionais
sobre a taxa de juros. Não demos até agora grande importância à possibilidade
de diferenciais mínimos para a taxa de juros de curto prazo, e apenas nos
referimos à necessidade de um diferencial mínimo estrutural para a taxa de
juros de longo prazo.
Buscaremos mostrar nesta seção que não existe diferencial mínimo de
taxas de juros de curto prazo. Geralmente há pisos conjunturais para a taxa de
juros nominal, o que difere de diferenciais mínimos, pois não é referido
diretamente a uma taxa de juros externa.
Não existe mínimo para o diferencial de juros de curto prazo porque o
que poderia limitar a queda dos juros, a pressão cambial, pode ser reduzida
com a manipulação dos juros, independentemente do patamar do diferencial.
De qualquer forma, os juros são uma solução apenas temporária contra
a pressão cambial, a solução definitiva é manter a NFEDcp menor ou igual a
zero ou emitir dívida pública no exterior.
Em geral, o fluxo de capitais que pode ser induzido apenas por
diferenciais entre as taxas de juros de curto prazo seria muito pequeno em
regimes de câmbio flutuante ou de câmbio fixo com sensível risco cambial.
Em oposição a essas proposições, alguém poderia sugerir que esse
volume poderia ser muito maior, se o diferencial induzisse à formação de
expectativas cambiais. No entanto, poderíamos sugerir duas críticas a essa
conclusão. Em primeiro lugar, a alteração das taxas também induzem à
formação de expectativas cambiais, mesmo se os diferenciais forem muito
baixos. E, muitas vezes, de forma mais eficiente. Em segundo lugar,
poderíamos dizer que a alteração das expectativas cambiais, não importando
sua causa, pode induzir à entrada de capitais por pouco tempo. Não sendo
assim uma solução definitiva, mesmo se o diferencial for mantido alto por muito
tempo.
eram tão eficientes quanto a política fiscal para manipulação da demanda, além disso, taxas elevadas implicariam em pioras na distribuição de renda.
260
Se a NFEDcp for não-positiva ou se o país tiver uma situação de
solvência internacional muito confortável, será fácil para o governo liquidar a
especulação ou pelo menos suas conseqüências negativas. Porque (1) o
volume envolvido na especulação é limitado, (2) são investimentos de curta
duração e (3) são muito sensíveis a dúvidas com relação à aposta realizada.
Se o governo investir contra a especulação e tiver sustentação com uma
NFEDcp negativa ou com reservas abundantes e eventualmente abastecidas
com financiamento internacional direto ao governo, os especuladores
rapidamente perceberão que perderão mais dinheiro se sustentarem a aposta.
O governo não pode adotar, no curto prazo, a taxa de juros que quiser.
Portanto, existiriam taxas de juros mínimas conjunturais. A variação na taxa de
juros é um dos mais importantes instrumentos para controle da pressão
cambial. Quando essa pressão é alta, e o governo não deseja ou não pode
utilizar outros instrumentos, a taxa de juros tem que ser elevada, portanto, o
governo não é completamente livre para decidi-la. Mas essa necessidade de
elevação é pouco dependente do patamar inicial, portanto, podemos dizer que
ainda assim não haveria um diferencial mínimo que precise ser respeitado no
curto prazo.
Quando ocorre pressão cambial, o governo pode se ver obrigado a
elevar suas taxas de juros. Para que esse instrumento surta o efeito desejado,
é necessário que os juros de longo prazo subam e ou as ações caiam de valor.
Os especuladores imaginam que o governo prefira taxas de juros mais baixas a
taxas mais altas. Quando o motivo da elevação dos juros não mais existir,
esperará que eles caiam. Assim, surgirão expectativas de rentabilidade
extraordinária com a compra de títulos de longo prazo e ações, tão logo a
pressão cambial der sinais de arrefecimento.
Porém, todo esse processo leva tempo. Os aumentos iniciais dos juros
podem não se mostrar suficientes; a pressão cambial pode se sustentar por
algum tempo; pode voltar; a taxa de longo e as ações podem reagir com
lentidão ou de forma parcial em relação à taxa de curto, se essa for muito
volátil; os capitais externos podem reagir lentamente, desconfiados da
capacidade do governo manter a taxa reduzida; o governo pode ser obrigado a
reduzir a taxa de juros lentamente para que o efeito do aumento dos títulos e
ações não ocorra de uma vez só e dê tempo para que mais capitais externos
261
invistam nessa aposta. Dessa forma, esse processo pode ser tão lento que o
governo pode ser obrigado a aumentar a taxa de juros novamente antes que
essa atinja um patamar reduzido.
Assim, se o país sofre continuamente pressão cambial, ou seja, quando
a NFEDcp é persistentemente positiva, o governo será obrigado a aumentar as
taxas de juros mais vezes e com intensidade maior do que quando a NFEDcp é
negativa ou próxima a zero. Portanto, a taxa média de juros de curto prazo será
maior. Será maior também a taxa média de juros de longo prazo. Quanto mais
baixa é essa taxa normal em relação à taxa vigente, maiores são as
perspectivas de ganho de capital no país. Assim, podemos dizer que a
tendência da NFEDcp determinaria as taxas médias de juros, se o país tenta
minimizar a taxa de juros de curto prazo, ou seja, o patamar médio mínimo da
taxa de juros.
Dessa forma, não haveria um diferencial mínimo de taxa de juros
básicas no curto ou médio prazo, mas valores médios mínimos que seriam
determinados pela freqüência com que precisam ser aumentados e pela
velocidade em que podem ser reduzidos.
A capacidade de o governo reduzir a taxa de juros no curto prazo
depende de:
1) NFEDcp não positiva
2) efeito-riqueza esperado
3) taxa de juros de longo prazo que o mercado em média considera
normal
4) expectativas de valorização cambial
5) expectativas de crescimento econômico e da sensibilidade dessas
expectativas à redução dos juros
6) liquidez internacional
Os pontos 2 a 6 acima são conjunturais e em parte dependente do seu
própria evolução histórica recente. A taxas de juros médias mínimas seriam,
assim, determinadas basicamente pela NFEDcp. A NFEDcp média e a
facilidade que o governo tem de manipula-la são os principais fatores para
determinação da taxas de juros média mínimas no curto e médio prazo.
262
No entanto, há duas situações em que se pode dizer que o diferencial de
juros tem alguma relevância. A mais importante é com relação às taxas de
juros de longo prazo.
A manutenção de um diferencial mínimo estrutural de juros de longo
prazo pode ser necessária, porque os empréstimos de longo prazo são mais
sensíveis aos diferenciais de juros do que os de curto prazo. Portanto, a taxa
de curto prazo também deveria tendencialmente a longo prazo respeitar esse
diferencial mínimo estrutural. Porém, os empréstimos de longo prazo – que o
diferencial de juros de longo prazo busca manipular – são também muito
dependentes de outros fatores, como crescimento, câmbio real, solvência
externa, internacionalização do sistema bancário e por isso reagem muito lenta
e moderadamente aos diferenciais. Portanto, esses só precisam ser
respeitados de forma tendencial e no longo prazo. Além disso, a necessidade
do governo atrair empréstimos de longo prazo precisa ser considerada. Os
diferenciais positivos podem não ser necessários por causa de uma NFED
negativa e por causa das possibilidades de emissão de dívida externa pública.
Ademais, existem claros limites à capacidade e disposição dos bancos de um
país em conceder empréstimos de longo prazo ao exterior. Essa questão será
desenvolvida adiante na seção que trata de política de crédito e de câmbio.
A outra situação onde o diferencial pode ter relevância não seria
suficientemente forte para determinar um diferencial mínimo. Essa situação
ocorreria quando eficácia da política de variação de taxa de juros é muito
menor, sendo necessárias variações muito maiores dos juros para gerar o
mesmo efeito sobre a valorização dos ativos. Se o governo não deseja uma
taxa de juros muito volátil, será obrigado a manter taxas de juros médias
superiores para gerar um diferencial de juros elevado como um ganho adicional
para os investidores externos. Mas essa política não elimina a necessidade de
utilizar a manipulação de juros contra a especulação cambial.
Essa situação seria possível quando os títulos de dívida do país
possuem baixo risco de juros e o mercado acionário é relativamente pouco
desenvolvido ou menos sensível aos juros108. Poderíamos dizer, com diversas
ressalvas, que o Brasil tem características que o tornam não muito distante
108 Quanto mais alta a taxa de juros, menos sensível é o mercado acionário as variações de pontos porcentuais nos juros.
263
dessa situação. Mas isso não significa que manter altos diferenciais seja uma
política mais adequada no Brasil do que usar a variação dos juros como outros
países. Em primeiro lugar porque, como propõe Tsiang (1975), mesmo quando
o diferencial pode ter efeito sobre o movimento de capitais (i.e., quando o
diferencial é realmente muito elevado), ele tem efeito temporário.
Um país na situação estilizada como essa, onde o efeito-riqueza é muito
menor, precisa utilizar mais a variação dos juros e talvez até a variação dos
diferencial, porém ambas as medidas são temporárias. A política para atacar
definitivamente a pressão cambial é manter a NFEDcp sempre não-positiva ou
financiada por emissão de dívida pública no exterior.
4.4.2.3. Políticas ineficientes, mas potencialmente complementares
em períodos críticos
Em nenhuma situação, a política de manutenção de diferenciais de juros
é adequada para manter a pressão controlada por muito tempo. Se os
diferenciais não forem muito grandes não atrairão volumes significativos de
empréstimos de curto prazo, porque oferecem uma rentabilidade muito
pequena em comparação ao risco cambial, de inadimplência ou de juros, que
podem ser realmente muito elevados. Se o diferencial for suficientemente
elevado para compensar esses riscos, seu efeito ainda é temporário.
Mas ainda assim haveria vários custos e riscos envolvidos. Juros muito
altos podem reduzir a taxa de crescimento da economia e reduzir a entrada de
investimento direto e financiamentos de longo prazo, que estão em geral
associados a investimentos em ativos fixos ou capital de giro109. A princípio, o
governo poderia adotar uma política fiscal expansionista para compensar a
redução dos investimentos e consumo privados decorrentes dos juros altos.
Mas ainda assim a taxa de crescimento de longo prazo seria menor do que na
situação em que o governo adota juros baixos. Juros altos reduzem a
competitividade externa e a taxa de crescimento das exportações e, portanto, o
potencial de crescimento de longo prazo. Os juros altos causam ainda outro
109 O capital de giro é usualmente financiado por capital próprio ou empréstimos de longo prazo. Em empresas multinacionais que podem obter capital de giro na matriz ou empresas que se financiam no exterior, a demanda por aumento de capital de giro, decorrente do crescimento econômico, pode implicar em crescimento do IDE e dos EElp.
264
inconveniente. Eles podem reduzir a pressão cambial em determinado
momento, mas, a menos que impliquem em significativa redução da renda, não
reduzem a NFE e, portanto, o país continua dependente de financiamento
externo e, conseqüentemente, bastante sujeito a pressão cambial. Ainda que a
solvência do país não se deteriore com os juros muito altos, quando ocorrer
pressão cambial novamente o governo será obrigado a aumentar os juros,
mesmo estando eles já muito altos.
Assim a política de variação da taxa de juros básica ou a flutuação de
câmbio combinada com a venda de reservas são eficazes e muito mais
eficientes contra pressão cambial do que a manutenção de diferenciais de juros
elevados. Essa proposição é perfeitamente válida, quando a NFEDcp for
negativa, nula ou apenas temporariamente positiva. Quando a NFEDcp for não
positiva ou temporariamente positiva, essas políticas podem ser necessárias
para extinguir um movimento especulativo ou para manter uma NFEDcp
positiva financiada temporariamente por capital de curto prazo, enquanto se
espera o crescimento da entrada de capitais de longo prazo.
Se a maior parte da dívida pública for de títulos pré-fixados de médio e
longo prazo em moeda nacional, a política monetária é muito eficaz contra
ataques cambiais com relativamente pequenas modificações na taxa de juros.
Se a dívida pública for composta basicamente por títulos de curto prazo, ou
pós-fixados ou dolarizados, seriam necessárias grandes modificações na taxa
de juros para surtir o mesmo efeito. Mas ainda assim seria eficaz.
Todavia, a pressão cambial pode ser causada ou acompanhada de uma
NFEDcp significativamente positiva. Essa variável em geral é pouco sensível à
política de juros básica. Nessas situações, as modificações nas taxas de juros
não podem segurar a pressão cambial por longos períodos, pois seu efeito
sobre a especulação cambial e sobre a compra de especulativa de títulos dura
pouco tempo. Nesse caso, a política monetária não é suficiente extinguir a
pressão cambial, fazendo-se necessário a utilização de outras políticas para
viabilizar tais metas. Essas políticas serão desenvolvidas nas duas próximas
seções.
A política mais óbvia de controle da taxa de câmbio é a venda de
divisas. No entanto, a efetividade dessa política depende muito do volume total
265
de reservas. Se esse estiver relativamente baixo, a venda de reservas vai
apenas incentivar a especulação cambial.
Nessa circunstâncias, os governos podem ainda lançar no mercado
interno títulos dolarizados. Nesse caso, ele não estará reforçando suas
reservas, mas estará reduzindo o custo de captação externo do setor privado.
Os juros dos títulos dolarizados vendidos no mercado internos são uma
espécie de subsídio à proteção cambial. Dessa forma, ao vender títulos em
dólar em volume suficiente para manter elevada a taxa de juros paga por esses
títulos, o governo estará reduzindo o custo de proteção cambial e, portanto,
tornando mais barato a captação no exterior com proteção cambial. O
inconveniente dessa política é que pode aumentar o risco-país. Operações de
arbitragem entre os títulos em dólar no mercado interno e externo podem tornar
os juros dos títulos brasileiros no mercado internacional ligados aos juros dos
títulos dolarizados no mercado nacional. Portanto, o efeito da redução do custo
de proteção cambial pode ser compensando negativamente com o aumento do
spread pago pelos títulos brasileiros no mercado internacional, sendo assim um
instrumento pouco eficaz para aumentar o volume de financiamento externo
para o país.
Todavia, nos momentos de ataque especulativo, quando tomar
empréstimos no exterior torna-se muito difícil, a emissão de títulos em dólar no
mercado interno é uma instrumento eficaz para diminuir a intensidade do
ataque. Esse instrumento pode oferecer uma opção de investimento mais
interessante para os especuladores cambiais que assim não desembocariam
sobre os mercados de câmbio.
A venda de títulos públicos dolarizados no mercado interno é eficaz
contra a pressão cambial em momentos de forte expectativa de desvalorização.
Entretanto, não se pode dizer o mesmo para períodos de tranquilidade cambial
e para períodos de crise mais séria, quando a solvência do país está
comprometida.
Em caso de tranqüilidade cambial, a emissão de grande quantidade de
títulos públicos dolarizados, mesmo quando associada a uma elevada taxa de
juros para esses títulos110, tem pouca eficiência em aumentar o volume de
110 Essa taxa é chamada de cupom cambial.
266
empréstimos tomados pelo país. Porque, apesar de reduzir o custo de proteção
cambial, um elevado cupom cambial tende a criar, por arbitragem, um elevado
spread para os títulos nacionais negociados no mercado externo, chamado de
risco-país; compensando, assim, em grande parte, a redução do custo de
proteção cambial decorrente do aumento do cupom cambial.
Quando o país está com a solvência comprometida, a emissão de um
grande volume de títulos públicos dolarizados não é capaz de conter de
maneira suficiente a especulação cambial, pois existe um grande risco de
inadimplência da dívida pública externa, de centralização do câmbio ou de
controle sobre os movimentos de capitais. Nessas situações, só moeda ou
títulos de outros países podem ser, entre os ativos financeiros, um porto
seguro. Dessa forma, a emissão de títulos em dólar no mercado interno com
taxas de juros elevadas não é capaz reduzir significativamente a pressão
cambial.
Além das limitações quanto à eficácia, a política de venda de títulos
dolarizados ainda causa problemas em outras políticas públicas. O maior deles
é a perda de eficiência da política monetária para reprimir os ataques
especulativos.
Se a dívida interna é dolarizada, quando ocorre pressão cambial e,
consequentemente, aumento dos juros, ela não cai de valor em reais, portanto,
a expectativa de redução dos juros também não cria a expectativa que esses
títulos aumentarão de valor. Dessa forma, a política de juros torna-se pouco
eficaz sobre o movimento de capitais.
4.4.3. Políticas de financiamento da NFEDcp com emissão de dívida pública externa
A venda de reservas é uma política muito eficaz para controlar a taxa de
câmbio. Porém, a menos que as reservas sejam realmente muito grandes, não
se espera que se possa financiar uma NFEDcp positiva por muito tempo
apenas com a venda de reservas.
Mas o governo pode emitir dívida no exterior enquanto houver liquidez
internacional e solvência externa. E assim, pode usar as divisas obtidas para
financiar a NFEDcp.
267
A princípio, essa política não tem qualquer efeito negativo sobre o
endividamento público total, pois se o setor privado toma emprestado no
exterior e internaliza o dinheiro a dívida pública se eleva em montante similar.
Na verdade, para as contas públicas ou para a solvência externa faz pouca
diferença se o endividamento externo é público ou privado.
O volume total de empréstimos externos que um país, incluindo
empresas privadas e governo, podem tomar é muito próximo ao volume total
de empréstimos que esse governo pode tomar sozinho. O volume de
empréstimos que o governo do país pode tomar no exterior depende da
solvência do país.
Se os indicadores de solvência estiverem bons e houver liquidez
internacional, o governo poderá tomar empréstimos no exterior a custos
razoáveis. É razoável que o governo se endivide para manter as reservas
elevadas e assim não ser obrigado a ter que tomar crédito quando houver crise
de liquidez internacional. Uma NFEDcp positiva pode resultar em risco de
inflação ou necessidade de recessão para reduzi-la. Mas como acabamos de
ver, esses problemas podem ser evitados com uma política de emissão de
dívida pública no exterior, desde que o país esteja solvente. Porém essa não é
a única maneira de evitar esses problemas. A solvência externa permite que o
país possa anular uma NFEDcp positiva sem políticas recessivas. Para isso
bastaria induzir a entrada de capital externo de longo prazo com medidas pró-
crescimento econômico e manter o câmbio competitivo.
4.4.4. Políticas de redução da NFEDcp
Como vimos, não é possível financiar a NFEDcp por muito tempo com
financiamento de curto prazo, capital especulativo ou perda de reservas.
Assim, o governo tem que atuar para manter essa variável próxima ou menor
do que zero. Em alguns casos, essa tarefa pode ser cumprida com certa
eficácia com políticas recessivas. Porém, interessa ao governo e à sociedade
saber como financiar a longo prazo ou eliminar uma NFEDcp positiva com as
políticas menos recessivas possíveis. Na seção anterior, vimos como a
NFEDcp positiva pode ser financiada a longo prazo. Nesta seção, veremos
como poderia ser eliminada.
268
A solução proposta por Lerner (1951, cap. 21) e que parece realmente
menos dolorosa é permitir a desvalorização do câmbio. A desvalorização do
câmbio pode ser uma política muito eficiente em países que possuem dívidas
externas reduzidas, uma elasticidade câmbio do saldo comercial elevada e que
não convivam com grande indexação de preços ao câmbio e de salários aos
preços. Nesses países a NFE é negativa ou muito reduzida. Se a NFE for
negativa, para que a NFEDcp seja também negativa, bastaria que as
exportações de capital não sejam muito elevadas. Se elas forem elevadas, o
país pode reduzi-las com facilidade, se aumentar a taxa de crescimento ou
aumentar levemente os juros. Essa conclusão decorre da suposição de que os
investidores e bancos, ceteris paribus, prefirem investir e emprestar localmente.
Se a NFE for levemente positiva e o saldo comercial oferece uma boa resposta
às desvalorizações da moeda nacional, o país não terá dificuldade em obter
uma NFE negativa.
Essas condições, em geral, estão presentes em países credores, em
países com indústria competitiva integrada em mercados comuns poderosos e
em países com indústria relativamente completa e competitiva e que possuem
taxas de inflação reduzidas. Porém, essas não são situações comuns em
países subdesenvolvidos. Esses costumam possuir a NFE significativamente
positiva. Assim, as desvalorizações não são capazes de anular a NFE sem
implicar em uma inflação acima do aceitável. Esses países precisam assim
atrair financiamentos de longo prazo para manter a NFEDcp não-positiva. Para
se obter um fluxo positivo relativamente estável desse tipo de investimento, é
necessário que o país se mantenha solvente. Garantir a solvência implica em
manter o saldo em conta corrente não negativo ou manter a taxa de
crescimento das importações inferior à taxa de crescimento das exportações.
Se a indústria do país não for capaz de aumentar significativamente suas
parcelas de mercado, após uma desvalorização que não prejudique a meta de
inflação, o saldo comercial é pouco elástico às desvalorizações cambiais.
Nesse caso, dificilmente o governo poderá fazer com que a taxa de
crescimento das exportações supere a taxa de crescimento das importações ou
o saldo em conta corrente seja não-negativo sem que seja necessário reduzir a
taxa de crescimento da economia.
269
Se a desvalorização não é suficiente para eliminar a NFEDcp positiva e
o governo não deseja tomar emprestado no exterior; poderia, a princípio, com
já afirmamos, adotar políticas recessivas. Essas, porém, podem ter uma
eficiência no curto prazo menor do que imaginada. As políticas recessivas têm
como efeito positivo o aumento do saldo comercial e de serviços. Porém, a
menos que seja adotada uma política de redução realmente muito profunda do
PIB, esse efeito é lento e em geral insuficiente para reduzir uma NFEDcp
positiva, principalmente se o país for um devedor externo líquido.
Além disso, a redução do crescimento ou a recessão possuem efeitos
ambíguos sobre a NFEDcp. Os investimentos externos diretos e mesmos o
volume de empréstimos de longo prazo tomados dependem das expectativas
de crescimento e da demanda por investimento em geral. A recessão
certamente reduz o potencial de crescimento dessas variáveis. Entretanto,
essas variáveis têm em geral uma elasticidade à renda muito superior ao saldo
comercial, tornando a solução recessiva, além de naturalmente dolorosa,
menos eficaz, sob essa hipótese, do que uma solução expansiva.
De fato, é mais razoável pensar que a recessão só seja uma solução
interessante para redução da NFEDcp em situações onde não há liquidez
internacional, o país está insolvente ou não tem acesso a financiamento
externo de longo prazo a custos razoáveis. Mais especificamente poderíamos
dizer que esses custos seriam razoáveis quando forem menores ou iguais à
taxa de crescimento das exportações.
Entretanto, podemos considerar que esses casos não sejam os mais
comuns. Portanto, geralmente, as políticas recessivas de redução da NFEDcp
não são as mais adequadas.
Dessa forma, a melhor solução para reduzir uma NFEDcp nula ou
negativa é manter a taxa de crescimento elevada para atrair capitais de longo
prazo. Outras políticas podem ser necessárias. Entre elas a manutenção de
taxas de câmbio reais competitiva e a manutenção estrutural da taxa de juros
de longo prazo acima de um determinado patamar mínimo, que será discutido
na próxima seção.
A manutenção da taxa de câmbio competitiva reduz o risco cambial para
os investidores estrangeiros e tomadores de empréstimos externos. Além
270
disso, aumenta a rentabilidade do setor de importáveis atraindo investimentos e
financiamentos eventualmente externos para essas atividades.
A manutenção sistemática da taxa de juros de longo prazo acima de um
determinado patamar mínimo pode ser necessário para aumentar o volume de
empréstimos de longo prazo tomados pelo país ou para reduzir o volume de
financiamentos de longo prazo que o país concede ao exterior.
Não vamos alongar aqui sobre essas três políticas, induzir o
crescimento, manter o câmbio real competitivo e manter a taxa de juros de
longo prazo estruturalmente acima de um patamar mínimo. Porque essas
políticas são determinadas e avaliadas principalmente por outros objetivos
instrumentais. Mais especificamente o objetivo de manutenção do emprego no
nível máximo permitido pelos pontos de restrição e o objetivo de deslocamento
da restrição externa.
4.5. Políticas para deslocamento da restrição externa
O crescimento econômico pode ser inviabilizado por uma pressão
cambial causada por uma NFEDcp persistentemente positiva. Entretanto, se os
indicadores de solvência do país forem bons, o governo poderá manter uma
boa taxa de crescimento, se induzir o aumento da entrada de capital externo de
longo prazo.
Existem basicamente três tipos de financiamento externo de longo
prazo. Dois deles, o investimento externo direto e os empréstimos ao setor
privado podem reduzir a NFEDcp. O outro são os empréstimos tomados
diretamente pelo governo.
Entretanto, só existem garantias de que o fluxo de capital externo será
suficiente para manter a pressão cambial reduzida, se a liquidez dos mercados
financeiros internacionais estiver normal e os indicadores de solvência do país
estiverem bons.
Se não houver liquidez internacional, o país é obrigado a atingir uma
NFE negativa ou próxima a zero, ou, se isso não for possível, manter um saldo
em conta corrente positivo e tentar refinanciar de forma negociada seus débitos
vincendos.
271
Em condições normais de liquidez internacional, o país está solvente
quando o saldo em conta corrente é positivo ou quando a taxa de crescimento
das exportações é superior à taxa de crescimento das importações e que a
remuneração do passivo externo líquido.
O crescimento econômico tende a deteriorar esses indicadores no curto
prazo. O mesmo pode não acontecer no longo prazo. Em uma nação que
dispõe em seu território dos setores industriais mais importantes, um dos
principais determinantes da taxa de crescimento das exportações no longo
prazo é a própria taxa de crescimento da economia. Essa proposição está
relacionada ao que Kaldor (1971) chama de ‘crescimento liderado pelo
consumo’. Mas nada garante que a taxa de crescimento das exportações será
maior ou igual à taxa de crescimento da economia no curto prazo ou que a taxa
de crescimento das exportações será suficientemente alta para atingir as metas
de crescimento desejadas, se não forem adotadas políticas específicas para
esse fim.
Portanto, para que a taxa de crescimento da economia não deteriore os
indicadores de solvência no curto ou no longo prazo, o país precisa garantir
pelo menos a condição Kaldor-Thirlwall, que diz que a taxa de crescimento das
exportações seja aproximadamente maior ou igual à taxa de crescimento das
importações. Diríamos assim que o governo precisa deslocar continuamente a
restrição externa para manter o crescimento econômico sustentável.
As políticas que mais obviamente tem essa função são as políticas
industriais e comerciais, pois elas visam basicamente aumentar as exportações
e substituir importações.
Entretanto, a coerência geral desse tipo de política está associada à
inserção externa do país. As políticas industriais e comerciais não são
independentes da política cambial, creditícia e fiscal. A política cambial e
creditícia de longo prazo são a própria escolha de um modelo de
desenvolvimento. A política fiscal depende do empenho desse modelo em
promover o deslocamento da restrição externa e das prioridades da política
tributária e de incentivos fiscais que também são associadas a esse modelo e
são os principais instrumentos práticos da política industrial.
272
4.5.1. Políticas industriais e comerciais
Neste arcabouço, a política comercial tem como objetivo promover
exportações e proteger o país de importações. Portanto, é certamente uma
política de deslocamento da restrição externa. A política industrial e tecnológica
também cumprirem esse papel, porém, o pensamento tradicional costuma
confundir as principais funções dessas políticas.
Tradicionalmente se atribui à política industrial a função de corrigir as
falhas de mercado. Entretanto, historicamente esse tipo de política está
geralmente associado a projetos de substituição de importações, defesa do
mercado nacional e promoção de exportações.
A política industrial muitas vezes se confunde com políticas tecnológicas
pró-inovação e aumento da produtividade. Tradicionalmente também se atribui
a esse tipo de política industrial a função de corrigir falhas de mercado
relacionadas ao processo de inovação, um vez que as inovações dependem
muito de externalidades e criam outras. Nesse caso, as falhas de mercado
deveriam ser compensadas pelo governo, pois a inovação é um bem, aumenta
a produtividade e o bem-estar da sociedade. Da sociedade mundial no caso,
pois esse tipo de benefícios das inovações é em geral difundido mundialmente,
senão como melhoria da produtividade, pelo menos como inovações de
produto. Isso é verdade, mas a partir de uma visão de finanças funcionais,
dificilmente a esses benefícios difusos seriam mais importantes do que o
deslocamento da restrição externa.
Possuir altos níveis de inovação pode ser extremamente benéfico para o
deslocamento da restrição externa. As inovações aumentam a competitividade
da indústria nacional tanto na competição com importados quanto em
mercados externos. A inovação é particularmente benéfica porque pode
permitir que as empresas do país criem novos mercados, entrem em setores
de alto crescimento da demanda externa ou que desloquem concorrentes
internacionais. Esses possíveis resultados podem permitir que a taxa de
crescimento das exportações se torne sensivelmente superior ao crescimento
do comércio mundial, sem a necessidade de redução de nenhum componente
273
de renda do país em termos de moeda estrangeira, como salários nominais
medidos em dólar.
Na verdade, as principais funções da política tecnológica, como as
outras partes da política industrial, estão associadas a questões geopolíticas.
Deslocar a restrição externa pode ser considerado uma questão geopolítica,
porque a restrição externa é uma contenção de potencial imposto pela
dependência do país das relações econômicas que tem com o sistema
internacional. A questão política torna-se mais evidente, quando percebemos
que deslocar a restrição externa pode implicar em perda de mercados de
parceiros comerciais e conflito diplomático. Mas o maior indício desse
entrelaçamento decorre da importância do deslocamento da restrição externa
para o desenvolvimento de um país. O desenvolvimento acelerado altera a
relação de forças no sistema regional e mundial e pode gerar conflitos.
O desenvolvimento acelerado de uma grande nação como a China pode
significar redução no potencial de crescimento econômico e dos salários reais
das nações mais desenvolvidas. Porque a nação ascendente está se
especializando em indústrias antes dominadas pelos países mais ricos, ela, em
geral, faz isso com maior competitividade devido aos salários inicialmente mais
baixos. Rouba assim mercados desses países, aumentando suas importações
e reduzindo seu potencial de exportador. Além disso, seu crescimento leva ao
aumento de seus salários reais e aumento dos preços das manufaturas e bens
agrícolas intensivos em trabalho barato que exportava. A ascensão de novas
potências aumenta ainda a pressão sobre os recursos naturais. Assim, as
tradicionais potências perdem potencial de crescimento e tem que amargar
quedas na taxa de crescimento de seus salários reais. O desenvolvimento é
inevitavelmente um projeto de poder e, portanto, sujeito a conflito
internacional111.
111 Mas o aspecto geopolítico da política industrial e tecnológica não está associado apenas às questões econômicas. Países que possuem clara intenção de melhorar ou garantir seu posicionamento internacional utilizam a política industrial e tecnológica para diminuir a dependência econômica e tecnológica, visando não se fragilizarem em caso de conflito. Assim buscam ter acesso a conhecimento de novas tecnologias essenciais e buscam ter suprimento interno de certos insumos que consideram estratégico, como energia, alimentos, insumos industriais essenciais e insumos gerais para indústria armamentista. Mas essas questões não nos interessam neste trabalho.
274
Nos países subdesenvolvidos o foco da política industrial deve ser a
instalação de novos setores. É muito mais rápido, barato e viável a um país em
desenvolvimento investir pesadamente na instalação de setores industriais de
alto crescimento de demanda ou setores quaisquer dominados pelos países
desenvolvidos do que investir em pesquisa e desenvolvimento.
Se seu crescimento dependesse do investimento em pesquisa e
desenvolvimento em setores que já domina, dependerá de um lento e incerto
processo de inovação tecnológica, que pode ser ainda mais lento que o normal,
tendo em vista que esses são geralmente setores maduros. Ademais, se a
inovação aumentar a produtividade, esse investimento em P&D pode
eventualmente ser prejudicial para o país, se o setor for muito competitivo ou
se outros países concorrentes conseguirem imitar a nova tecnologia. Nessa
situação, os preços de exportação cairão e muito provavelmente também o
valor total exportado, pois a grande maioria dos setores, incluindo
principalmente os setores maduros, tem baixa elasticidade preço da demanda.
Portanto, as inovações que geram melhoria da produtividade, nos setores já
tradicionalmente dominados, podem gerar redução do crescimento do país (se
esse depender desse tipo de exportação), ainda que gere um pequeno do
aumento do crescimento e dos salários reais médios a nível mundial, mas
provavelmente não no país.
Por outro lado, se seu crescimento depender do investimento em
pesquisa e desenvolvimento em setores dominados pelos países
desenvolvidos, o investimento poderá ser praticamente inócuo. Porque sem ter
esses setores presentes, o país não poderia se beneficiar com o novo
conhecimento. Beneficiariam as grandes empresas dos países desenvolvidos
que possuem uma posição competitiva suficientemente forte para se
apropriarem das possibilidades de comercialização de novos conhecimentos
tecnológicos.
De forma alguma, essas conclusões implicariam que os países
subdesenvolvidos não devem investir em P&D. Só estamos querendo dizer que
esses países não devem esperar obter altas taxas de crescimento em
decorrência puramente desses investimentos. Na medida em que esses países
passem a competir, de fato, nos setores de ponta com as nações
desenvolvidas, o P&D passará a ser cada vez mais fundamental. A princípio, o
275
P&D deveria ser focado principalmente em imitação e transferência de
tecnologia.
Assim, o foco da política industrial dos países sudesenvolvidos deve ser
a instalação de setores dominados pelos países desenvolvidos112. A questão
menos importante nem é a substituição de importações, mas a competição nos
mercados externos. A instalação de uma indústria nova com o mesmo
maquinário usado no país desenvolvido permite a um país em desenvolvimento
uma competitividade potencial superior, ainda que a indústria seja muito
intensiva em capital, porque todas as indústrias usam trabalho. Mesmo em uma
indústria onde a participação da mão de obra nos custos seja muito reduzida,
custos salariais muito inferiores podem significar uma margem de lucro muito
superior ou preços ligeiramente menores.
Se um setor é dominado pelos países desenvolvidos, o custo salarial,
que é referência para a determinação de seus preços médios internacionais, é
relativamente alto. Assim, desde que a escala produtiva seja similar, tendem a
ser bem-sucedidas políticas industriais de instalação de novos setores, pois os
custos de produção serão menores nos países subdesenvolvidos. No limite, se
um país em desenvolvimento não investir nada em inovação113, mas instalar
com o mesmo maquinário os principais setores industriais dos países
desenvolvidos com a mesma proporção de trabalhadores que esses setores
operam nos países desenvolvidos, ele será imediatamente um país
desenvolvido e seus salários reais poderão ser imediatamente próximos aos
dos países desenvolvidos114. Essa só não é uma política viável, porque o país
não tem crédito externo suficiente para importar todo esse maquinário e porque
uma indústria para ser competitiva não precisa só de maquinário, mas também
112 Isso não significa que os países em desenvolvimento não devam investir em pesquisa e desenvolvimento. Mas apenas que, enquanto parte significativa de sua PEA ainda não está nos setores dominados pelos países desenvolvidos, a política de instalação de novos setores deve ser prioritária. O investimento de pesquisa e desenvolvimento é muito útil para sustentar a competitividade dos setores industriais já instalados. 113 Essa é uma hipótese extrema, porque para adquirir tecnologia externa é necessário conhecimento especializado, e para adaptá-la às condições locais há sempre algum grau de inovação. Entretanto, estamos separando hipoteticamente os investimentos em conhecimento e inovação para comprar e imitar tecnologia externa, dos investimentos para criar algo realmente novo. 114 A produção local dos bens de capital não seria uma solução, pois, na maioria dos setores, é muito difícil obter capacidade de produzir bens de capital, se o próprio setor consumidor desses bens não existe. Além disso, para produzir bens de capital é preciso bens de capital e insumos que normalmente seriam importados.
276
de capacidade administrativa, funcionários treinados, condições institucionais e
infra-estrutura econômica adequada. Esses fatores demandam tempo.
O crédito externo é obtido com a manutenção da solvência externa.
Assim, ele cresce acompanhando o crescimento das exportações. Esse
crescimento das exportações é viabilizado pela própria política de instalação de
novos setores.
Se o país garantir uma união política nacional forte o suficiente para
manter o processo, essa é uma política que funciona muito bem. Essa política
de instalação de setores antes dominados pelas principais potências foi o
principal mecanismo pelo qual se deu o desenvolvimento inicial de todos os
países, pelo menos desde o século XIX.
Mas essa não é uma política onde todos necessariamente ganham. Os
países que antes dominavam os setores, agora, invadidos pelos países em
processo de desenvolvimento acelerado perdem exportações e inclusive
mercado interno. Podem assim, perder empregos e ter a taxa de crescimento
dos salários nominais em dólares reduzida. Essa segunda possibilidade existe
inclusive, se adotar uma política contra-cíclica ativa. Porque o crescimento
acelerado de grandes nações em desenvolvimento, aumenta seus salários
nominais em dólar e pode implicar em aumento do custo de bens
tradicionalmente exportados por esse, cujos preços se baseavam nos
inicialmente baixos custos de mão de obra. Além disso, haveria maior pressão
de demanda sobre os recursos naturais.
Se os países desenvolvidos não reagirem a isso perderão posição
relativa na hierarquia internacional e poderão ter o crescimento de seus
salários reais relativamente reduzido.
Uma reação tradicional é o protecionismo localizado onde suas perdas
são maiores. Mas, se o protecionismo for generalizado, os países
desenvolvidos tendem a perder mais do que ganhar. Principalmente aqueles
que possuem déficit comercial.
Dessa forma, a solução mais interessante para os desenvolvidos é
investir em pesquisa e desenvolvimento. Assim, podem manter o diferencial
competitivo em relação aos países em desenvolvimento e manter seus salários
superiores e crescentes.
277
Portanto, não é possível analisar as funções e operacionalização dessas
políticas de deslocamento da restrição externa isoladas do modelo de
desenvolvimento. Mesmo porque questões como acordos internacionais,
câmbio real, política de crédito e capacidade de gasto público condicionam
fortemente as oportunidades e recursos para as políticas comerciais, industriais
e tecnológicas.
As questões mais decisivas para a formatação de um modelo de
desenvolvimento passam pelas políticas cambial e creditícia de longo prazo,
que definem complementarmente o câmbio real, a taxa mínima estrutural de
juros de longo prazo e a taxa de crescimento que o país pode obter, se as
políticas fiscal, de infra-estrutura e industrial se ajustarem com agilidade.
4.5.2. Política cambial e creditícia
“Um dos problemas mais vexatórios da teoria econômica é a explicação de como se forma a taxa de câmbio. Num mundo sem surpresa, em que todo o futuro fosse absolutamente transparente, em que todos os mercados fossem concorrenciais e instantaneamente equilibrados, em que o comércio de bens e serviços não sofresse qualquer restrição e a liberdade de movimento de capitais fosse absoluta, a taxa de câmbio se formaria como preço de uma mercadoria qualquer. (...) [Entretanto a]s nações não são espaços abertos que satisfazem a concepção dos economistas: são espaços fechados que freqüentemente se organizam em torno de projetos de poder interno e pretensão de poder externo, de acordo com sua capacidade de cooptar os nacionais e de impor sua presença ao não-residentes. As potências, na sua hierarquia, só aceitam a liberdade de comércio e de capitais quando já construíram um escudo defensivo que permite acomodá-la com a permanência e continuidade do seu poder político. É aqui que a ‘Teoria econômica’ tem de ser substituída pela ‘Economia Política’. Pois bem: o que a Teoria econômica não sabe sobre a taxa de câmbio, a ‘Economia Política sabe! Os países bem-sucedidos (a exemplo de Alemanha, Itália e Japão, depois da Segunda Guerra Mundial), a China e outros asiáticos mostraram que o desenvolvimento sustentado depende de um enorme esforço exportador com uma taxa de câmbio ligeiramente subvalorizada que permita rápida expansão das exportações e razoável acumulação de reservas capaz de blindar o país dos choques produzidos pelo comportamento de manada dos capitais internacionais” (Delfim Netto, 2004)
115.
115 Carta Capital 1º de dezembro de 2004.
278
Nesta seção, vamos discutir a importância da política cambial
para o tipo de inserção externa escolhido pelo país e sua taxa de crescimento.
A hipótese é que a escolha da política cambial acaba sendo determinante para
a taxa de juros de longo prazo obtida, a forma de financiamento do balanço de
pagamentos, a taxa de crescimento das exportações, e portanto, para a taxa
de crescimento econômico.
Essa hipótese é válida se o país adota liberdade de movimento de
capitais. Nesta seção, estaremos trabalhando com a premissa de liberdade de
movimento de capitais. Não faremos isso porque essa política seja mais
desejável do que o controle de capitais. De fato, o controle de capitais é o ideal
um país em processo de desenvolvimento, pois permite manter uma taxa de
juros muito baixa e estável e ter mais controle sobre o câmbio nominal e real.
Entretanto, pensamos que a liberdade de movimento de capitais é uma
opção de política tão difundida que é desejável utilizar o arcabouço das
finanças funcionais para compreender melhor a política econômica sob essa
condição, ainda que ela não seja a ideal.
4.5.2.1. Autonomia da política cambial
As perspectivas de valorização ou desvalorização do câmbio dependem
fortemente das políticas cambiais. A grande maioria dos governos é capaz de
escolher sua taxa de câmbio nominal dentro de uma grande faixa de variação
possível.
Qualquer país pode impedir que sua taxa de câmbio se valorize, assim
como pode desvalorizar sua moeda no montante que deseja. Os governo
emitem moeda. Dessa forma, podem comprar muito mais divisas do que o
volume que estiver à venda e, portanto, tem liberdade completa de impedir
valorizações e promover desvalorizações. Essa capacidade da política
econômica pode não ter respaldo suficiente em termos jurídicos ou políticos. A
Europa, por exemplo, tem encontrado dificuldades em impedir a valorização do
euro, porque seu Banco Central não tem como diretriz prioritária comprar
divisas de forma a manipular a taxa de câmbio. Por seu turno, o Japão tem
sofrido muita pressão dos EUA para que não impeça a valorização do iene.
Nos anos 80 os EUA pressionaram o Japão e a Europa a permitirem a
valorização de suas moedas.
279
Mas essas constatações, apenas confirmam a regra que queremos
ressaltar: a liberdade da política cambial é muito grande – principalmente na
direção da desvalorização.
Todavia, impedir desvalorizações ou promover valorizações pode ser
mais difícil, pois os governos não possuem uma oferta plenamente elástica de
moeda de outros países. Ainda assim, a grande maioria dos países é capaz de
impedir desvalorizações e até promover valorizações sustentáveis, pelo menos,
a curto ou médio prazo, mas muitas vezes também a longo prazo.
Essa capacidade decorre do grande poder dos Estados Nacionais sobre
as operações comerciais, financeiras e sobre as expectativas acerca das
variáveis macroeconômicas que envolvem moeda nacional. Comprando e
vendendo divisas, manipulando taxas de juros, gastos públicos, tributação geral
e impostos específicos, alterando tarifas alfandegárias, coordenando
expectativas, os governos geralmente se tornam capazes de fixar e mesmo
decidir a variação do câmbio.
Entretanto, com freqüência, para impedir desvalorizações, os governos
precisa fazer usos de políticas que também tem outras funções e, portanto,
modificar outras variáveis econômicas. Alguns governos não precisam de
grande esforço para impedir desvalorizações, já outros podem ser obrigados,
nessas circunstâncias, a tomar medidas politicamente tão difíceis que preferem
aceitar desvalorizações que comprometam suas metas de câmbio ou inflação.
As perspectivas de evolução do câmbio dependem assim
fundamentalmente do poder e da disposição do governo em definir os limites
para flutuação livre da taxa de câmbio sem ser obrigado a enfrentar dilemas
(trade-offs) políticos importantes.
Praticamente todos os governos na prática definem explícita ou
implicitamente tetos e pisos conjunturais para as taxas de câmbio. Os tetos são
definidos basicamente em decorrência do objetivo de controle da inflação.
Como vimos, taxas de inflação elevadas são decorrentes de desvalorizações
acentuadas ou cumulativas da taxa de câmbio. Dessa forma, o controle da taxa
de câmbio é fundamental para a manutenção inflação dentro das metas que o
governo define.
Os pisos para a taxa de câmbio são determinados basicamente pelo
objetivo de limitar o déficit em conta corrente ou para determinar um valor
280
mínimo para a taxa de crescimento das exportações. Essas variáveis são
fundamentais para a solvência externa do país e para determinação da sua
taxa de crescimento a longo prazo.
O câmbio é, portanto, uma questão de decisão política e não mais um
preço determinado pelo mercado.
4.5.2.2. Política cambial e crédito de longo prazo
4.5.2.2.1. Moeda forte
O conceito de moeda forte é muito utilizado no jornalismo, nas finanças
internacionais em até em debates sobre relações internacionais. É um conceito
útil, se considerarmos que existe algum atributo teoricamente relevante que
diferencia o dólar, o euro e o iene de moedas como o peso mexicano e o real
brasileiro.
O conceito de moeda forte está ligado à propriedade dessa moeda como
ativo financeiro. Não há dúvidas de que é mais rentável guardar euros ou
dólares em um cofre por dez anos do que guardar reais ou outra moeda de um
país subdesenvolvido. Essa certeza decorre da crença generalizada de que
essas moedas se desvalorizarão a longo prazo em relação às primeiras.
Podemos concluir que, ao contrário do que, às vezes se pensa, uma
moeda não é forte quando está valorizada “em termos reais” em relação a
outras. Uma moeda é forte quando existe perspectiva de valorização
nominal a longo prazo dela em relação a outras. O que é muito diferente.
Geralmente uma moeda com perspectiva de valorização a longo prazo é uma
moeda desvalorizada “em termos reais”.
A força da moeda depende da expectativa de valorização nominal
esperada a longo prazo. Se houver um diferencial significativo de inflação
esperada entre os países, a força da moeda dependerá da capacidade e da
disposição do governo que possui taxas de inflação superiores em manter a
taxa de câmbio nominal estável, apesar da tendência a apreciação do câmbio
real.
281
4.5.2.2.2. Taxa de juros de longo prazo mínima
Vimos que a taxa de juros de curto prazo pode ser reduzida quando a
NFEDcp é não-positiva. Se essa variável for positiva haverá pressão para
aumento dos juros. Dessa forma, a taxa média mínima de juros de curto prazo
é resultado da freqüência e da intensidade das ocorrências de NFEDcp
positivas.
A taxa de juros de longo prazo é uma expectativa média para as taxas
de juros de curto prazo dos períodos futuros mais um spread de risco. Essa
expectativa média é ponderada pela taxa de desconto, de forma a tornar o
futuro mais próximo mais relevante do que o futuro mais distante. Portanto, a
taxa de longo é muito dependente taxas básicas vigentes.
Assim, se a taxa de juros média mínima de curto prazo é resultado da
freqüência e da intensidade das ocorrências de NFEDcp positivas, a taxa de
juros média mínima de longo prazo também muito dependente desses fatores.
Essa explicação para a taxa de juros média mínima de longo prazo
poderia ser aperfeiçoada, se pudéssemos explicar a relação entre a taxa de
juros de longo prazo e essa freqüência de ocorrências de NFEDcp positivas.
Vimos que os empréstimos de longo prazo são relativamente sensíveis
ao diferencial de taxas finais de juros de longo prazo, apesar de não reagirem
tão rapidamente às mudanças nesse diferencial.
Na ausência de intervenção do governo nos mercados cambiais, a
relação entre a taxa de juros mínima de longo prazo e a freqüência em que
seria gerada a NFEDcp positiva dependeria da NFED. Uma NFED negativa
implica que o país não depende de empréstimos de longo prazo. Assim, a
princípio, enquanto a NFED for negativa, raramente ocorreriam episódios em
que a NFEDcp fosse positiva, se o saldo dos empréstimos de longo prazo
forem próximos a zero. Portanto, nesse caso, desde que não existam grandes
expectativas de desvalorização no longo prazo, a taxa de juros nominal de
longo prazo pode ser reduzida até se tornar inferior à taxa americana. O quão
inferior dependerá, além da já citada NFED, da internacionalização e da
competitividade do sistema financeiro nacional em conceder empréstimos
externos a longo prazo.
282
Essas conclusões seriam válidas se a moeda do país fosse forte. Se a
moeda for fraca, haveria um empecilho que dificultaria manter a taxa de juros
nominal de longo prazo abaixo ou mesmo iguail à taxa americana, mesmo se a
NFED puder ser mantida negativa.
Moedas fracas são aquelas que o mercado considera que a
probabilidade de desvalorização no longo prazo em relação à moeda central é
altíssima. Eventualmente poderiam ser caracterizadas como moedas que
precisam manter taxas de juros permanente e sensivelmente mais elevadas do
que a taxa do país central. Essa proposição possui duas implicações.
Primeiramente, a expectativa de desvalorização significativa da moeda fraca a
longo prazo é muito confiável, pelo menos a taxas de juros similares. E mais
importante, aplicações de longo prazo na moeda mais forte a taxas de juros
equivalentes são mais rentáveis e menos arriscadas.
Dessa forma, à mesma taxa de juros nominal de longo prazo, o setor
privado em geral e principalmente os bancos tenderão a comprar grandes
quantidades de títulos de longo prazo no exterior.
Essa atitude, muito provavelmente implicaria em tendência à NFEDcp
positiva, mesmo quando a NFED for negativa. A taxa de juros de curto prazo
precisaria ser elevada com freqüência e não seria possível sustentar por muito
tempo uma taxa de longo igual ou menor do que a NFEDcp. Poderíamos assim
concluir que, na média, essa taxa precisará ser superior à americana, para que
a exportação de capital na forma de empréstimos de longo prazo fosse
ajustada às condições do balanço de pagamentos.
Porém, a taxa de juros nominal de longo prazo não precisa ser muito
superior à americana, mesmo se a moeda for fraca. Se a inflação for moderada
e esse diferencial for ligeiramente positivo, o volume de exportação de capital
na forma de empréstimos tende a ser moderado. Primariamente porque para
financiamentos de longo prazo o diferencial tem alguma relevância. Além disso,
o risco de curto prazo dessa operação pode ser alto, portanto, para boa parte
dos agentes só seria compensador, se não houvesse diferencial de juros de
longo prazo.
Se a moeda for fraca a taxa de juros nominal de longo prazo só
precisaria ser significativamente superior à americana, se a taxa de inflação
esperada para o futuro for significativamente maior do que a inflação nos EUA.
283
Porque esse diferencial de taxas de inflação é um importante critério para
formular as expectativas mínimas de desvalorização a longo prazo. Uma
grande diferença esperada entre as expectativas mínimas de desvalorização
esperadas que não é minimamente compensada com um diferencial de juros
nominais, implicará que as aplicações em títulos de longo prazo em dólares
serão significativamente mais rentáveis e menos arriscados do que a aplicação
em títulos nacionais. Portanto, haveria uma demanda muito grande e uma
grande exportação de capital.
Entre moedas fortes, esse diferencial positivo seria desnecessário e um
diferencial negativo seria sustentável. Porque não há uma posição tão
majoritária sobre qual seria a tendência a longo prazo de variação do câmbio
entre essas moedas.
Dessa forma, se o país é solvente, a taxa média mínima de juros
nominal de longo prazo é basicamente uma conseqüência da necessidade de
impedir a exportação de capital na forma de empréstimos externos de longo
prazo e não da necessidade de atrair financiamentos. Porque, sempre que o
país for solvente, é possível manter:
NFED – EEG 0
Onde:
EEG = empréstimos externos tomados pelo governo
Portanto, torna-se desnecessário sustentar um diferencial de juros de
longo prazo para induzir financiamento externo.
Se a moeda for fraca a taxa nominal de juros de longo prazo precisa ser
em média superior à taxa internacional para que a exportação de capital de
longo prazo não acabe tornando a NFEDcp maior do que zero116. Se a moeda
for forte, a taxa de juros mínima pode ser inferior à taxa de juros internacional,
desde que a NFED negativa, pois não faz sentido para o país tomar
empréstimos governamentais no exterior para depois o setor privado nacional
emprestar no exterior a taxas inferiores. O quão menor depende de diversos
116 Esses pisos se referem à moeda que utilizada como reservas cambiais. Caso o país não tenha uma política de reservas tradicional, a referência deverá ser o dólar. Essa referência é importante porque os tomadores privados de longo prazo desejam correr o menor nível de risco cambial possível. Se seu país adota uma determinada moeda como referência, essa é a moeda internacional que tem maior correlação com seus preços internos.
284
fatores, como a internacionalização e a competitividade internacional do seu
sistema bancário.
4.5.2.2.3. Construção de uma moeda forte e de uma baixa taxa de juros
de longo prazo
A força da moeda pode ser construída. Se o governo desvaloriza o
câmbio para torná-lo competitivo e posteriormente fixa ou garante sua
estabilidade, poderá obter altas taxas de crescimento das exportações. Se
busca minimizar a taxa de juros também estará aumentando a competitividade
e a taxa de crescimento das exportações.
Nessas condições, atrairá uma grande quantidade de capital externo de
longo prazo e acumulará um volume crescente de reservas. Se a taxa de
crescimento das exportações for suficientemente elevada para permitir que o
país atinja um taxa satisfatória de crescimento econômico, não haverá qualquer
necessidade de desvalorização. Nessa situação, não haveria significativa
expectativa de desvalorização da moeda nacional. Pelo contrário, se o país
adotasse um regime de câmbio flutuante a tendência seria de valorização
cambial, devido principalmente à grande entrada de capital de longo prazo.
Essa conclusão é válida, mesmo se a taxa de inflação do setor de não-
importáveis no país for maior do que a taxa de inflação do setor de não-
importáveis da moeda central.
Dessa forma, o país pode construir a situação em que permitiria no
futuro ter uma moeda forte e, portanto, uma taxa de juros mínima de longo
prazo menor do que as taxas internacionais.
Entretanto, independentemente da moeda ser forte ou não, para que as
taxas de juros sejam efetivamente baixas, é necessário que o governo adote
políticas específicas que permitam que a taxa de juros de longo prazo atinja
esse mínimo. Essas políticas são, em primeiro lugar, manter o país solvente e,
em segundo lugar, garantir que não será necessário utilizar a taxa de juros
para atrair financiamento de longo prazo. Para isso é necessário manter:
NFED – EEG 0
285
As políticas de aumento da competitividade externa acima citadas, não
necessariamente serão capazes de tornar a moeda do país forte. Porém, elas
ainda assim permitem que a taxa de juros mínima de longo prazo possa se
reduzir. Porque aumentam a taxa de crescimento das exportações, melhoram a
solvência, tornam os IDE e os empréstimos de longo prazo mais seguros e
rentáveis em moeda estrangeira, permitem a acumulação de reservas e
reduzem o risco de pressão cambial em decorrência de uma NFEDcp > 0.
4.5.2.2.4. Política cambial, competitividade e crescimento
Kaldor (1971) propõe a relevância da definição de dois tipos de modelos
de crescimento: liderado pelo consumo e liderado pelas exportações. O autor
aparentemente é inspirado nas diferenças entre os processos históricos de
crescimento da Inglaterra e Alemanha do pós-guerra.
Kaldor (1971) sugere que o crescimento liderado pelo consumo seria
menor do que o crescimento liderado pelas exportações. Esse resultado seria
decorrência de um maior crescimento da produtividade no segundo caso,
devido, entre outros motivos, a um maior nível de investimento e participação
na renda do setor industrial.
O autor diagnóstica que uma das principais causas desse resultado seria
o baixo incentivo à exportação em economias com crescimento liderado pelo
consumo. Ele propõe como remédio, que os países usem a taxa de câmbio
competitiva como ferramenta para aumentar esse incentivo às exportações e
conseqüentemente aumentar a rentabilidade do setor industrial no curto prazo,
seus investimentos, sua participação na renda e sua taxa de crescimento da
produtividade.
O modelo que Kaldor (1971) propõe é baseado em uma situação de
pleno emprego permanente garantido por políticas que, poderíamos dizer, são
muito similares às finanças funcionais de Abba Lerner.
Entretanto, o principal objeto deste trabalho são os países onde o pleno
emprego não pode ser atingido com tais tipos de política. Nesses países, os
incentivos à competitividade externa não precisam induzir o crescimento da
produtividade para que gerem uma taxa de crescimento maior no longo prazo.
286
A moeda do país desvalorizada em termos reais e os juros de longo
prazo reduzidos são incentivos fundamentais para a competitividade externa, e,
portanto, afetam diretamente a taxa de crescimento das exportações e da
economia. Se incluirmos o efeito que Kaldor levanta, essas variáveis se tornam
ainda mais importantes. Kaldor propõe que quanto maior o crescimento das
exportações, maior é o crescimento da produtividade e, portanto, mais
rapidamente cresce a competitividade externa do país. O mesmo poderia ser
dito com relação à taxa de crescimento econômico. Quanto maior é tamanho
futuro esperado de uma economia, maiores são as perspectivas de ganhos de
escala que aumentam a competitividade das exportações e viabilizam a escala
mínima para diversas atividades. Portanto, quanto maior a taxa de crescimento
esperada maiores são os investimentos que destinam parte da produção para
exportação e maiores são os investimentos em substituição de importações.
Vimos acima que as baixas taxas de juros de longo prazo dependem da
manutenção da solvência externa e da força da moeda. Vimos também que
esses atributos podem ser em grande parte construídos com um câmbio real
competitivo e estável.
As baixas taxas de juros também aumentam a competitividade externa
do país, via redução dos preços de oferta das empresas nacionais, aumento na
capacidade de investimento em atividades não relacionadas a atendimento da
demanda interna como P&D e exportações e aumento da capacidade de
financiar aos clientes em comparação a concorrentes externos.
O foco da política de deslocamento da restrição externa será elevar a
taxa de investimento em novos setores industriais ao máximo. Quanto maior é
essa taxa de investimento nesses setores, mais rápida é a taxa de crescimento
das exportações e de substituição de importações.
As políticas cambial e creditícia estão relacionadas com essa a política
industrial de inclusão de novos setores industriais. Se o país mantém o câmbio
suficientemente competitivo, a instalação de novos setores é viável, porque o
país terá custos trabalhistas inferiores aos das nações que dominam tais
setores. A partir desse ponto, poderá ser mais importante para o país garantir a
estabilidade do financiamento externo ao crescimento econômico
acompanhada da instalação desses setores do que buscar ganhos adicionais
de competitividade que possam colocar em risco a estabilidade da taxa de
287
juros, seu baixo custo e a taxa de investimento em novos setores117. Porque a
taxa de investimentos nesses setores será o principal determinante da taxa de
crescimento das exportações118.
Dessa forma, poderíamos concluir que uma política cambial que vise
manter o câmbio competitivo induzirá um processo de “causação circular
cumulativa” entre a taxa de juros de longo prazo, a taxa de investimento em
novos setores, a taxa de crescimento das exportações e o crescimento
econômico geral.
117 Nessa situação, pode ocorrer o seguinte dilema: (1) Manter uma política de desvalorização sucessiva para garantir o câmbio real relativamente constante, mesmo se a inflação não estiver comprometendo os níveis mínimos desejados de competitividade ou (2) manter o câmbio nominal estável e só alterar, quando for sentida a necessidade de melhorar a competitividade. É provável que o câmbio real seja em média mais competitivo no primeiro caso. No segundo caso, os juros de longo prazo serão menores em média. É provável que, no segundo caso, taxas de juros de longo prazo e de inflação menores impliquem em prazos de financiamentos maiores e, portanto, o haveria um incentivo adicional ao crescimento dos investimentos em exportação. No primeiro caso, a indexação dos salários seria maior e o câmbio real não seria tão mais competitivo em média. Ademais, no segundo caso, a distribuição de renda seria melhor e, provavelmente, crescente. 118 Para manter esse tipo de investimento elevado, é aceitável inclusive que o governo desrespeite temporariamente os indicadores de solvência, quando as importações de bens de capital para as indústrias de exportáveis forem a causa do déficit. Nessa situação, se necessário, o país não teria dificuldade de melhorar esses indicadores, bastaria reduzir levemente a taxa de crescimento ou fazer uma desvalorização do câmbio.
y
j insolvente
solvente
ponto de restrição
externa
“Pleno emprego”
j = Exp%
insolvente
j dólar LP
j mín LP moeda fraca
j mín LP moeda forte
Políticas de competitividade
externa (principalmente
câmbio competitivo)
NFED – EEG 0
NFED 0 e moeda forte
288
4.6. Política de infra-estrutura
Em primeiro lugar, serviços de infra-estrutura são essenciais para um
grande número de atividades, não podem ser importados e não podem ser
estocados. Em segundo lugar, são serviços cuja responsabilidade de
suprimento se deve ao governo, ou porque (1) o setor privado não supre com a
segurança, qualidade ou custos adequados, devido a externalidades ou outro
tipo das chamadas “falhas de mercado”; ou porque (2) são atividades que são
monopólios naturais; ou (3) porque seu investimento é tão arriscado que o
custo adequado, qualidade, segurança de suprimento, condições de
fornecimento e universalização não podem ser todas garantidas ao mesmo
tempo pelo setor privado.
O suprimento de serviços de infra-estrutura com qualidade, segurança
de suprimento, custos socialmente adequados e internacionamente
competitivos é fundamental para o desenvolvimento econômico. Porém, o setor
privado não pode garantir todas as condições e ainda fazer os investimentos
necessários, se a taxa de crescimento da economia for muito elevada. Isso
acontece ou porque tem dificuldade de se apropriar dos benefícios, ou porque
o prazo de maturação e a relação capital-produto imposta pelos custos
máximos politicamente aceitáveis são muito altas. Quanto maior o prazo de
maturação de um investimento, com mais antecedência tem que ser feito o
investimento para que não haja risco de falta de suprimento. Se um empresário
faz, com cinco anos de antecedência119, um investimento em capacidade
instalada suficiente para superar o pico esperado da demanda cinco anos
depois, o risco de excesso de capacidade será muito elevado. Principalmente
se as taxas de crescimento do país forem muito grandes e incertas. O setor
privado faria investimentos nessas condições, se tivesse garantira de que
poderia cobrar o preço que achasse suficiente, ou se o governo pré-acordasse
uma tarifa suficientemente alta para quando o investimento maturasse. Em
países subdesenvolvidos as condições de risco financeiro desse tipo de
119 Que é o prazo de maturação que pode chegar, por exemplo, os investimentos em grandes hidroelétricas.
289
investimentos são ainda maiores, além da maior chance de erro de previsão de
demanda, há um maior risco de juros e de câmbio, uma vez que normalmente
não há financiamento privado de longo prazo em moeda nacional120.
Se os serviços de infra-estrutura forem fornecidos pelo setor privado, os
custos necessários para cobrir todos esses riscos implicariam em tarifas de
fornecimentos muito superiores às que poderiam ser fornecidas pelo governo.
Essa diferença seria tanto maior quanto menos desenvolvido for o país e
quanto maiores as taxas de crescimento.
Dessa forma, se o governo não assumir a responsabilidade de oferecer
ele próprio a infra-estrutura, ele deve regular, fiscalizar, financiar e talvez até
subsidiar o setor privado para esse ofereça os serviços nas condições
adequadas.
Gargalos na infra-estrutura podem significar restrições físicas ao
crescimento. O caso paradigmático é a energia elétrica. Mas os gargalos
podem ter outros tipos de conseqüência negativas.
O fornecimento privado pode significar maiores custos, além do maior
risco de desabastecimento. A deficiência em alguns serviços de infra-estrutura
como transporte não trazem risco de racionamento, mas trazem gargalos que
podem reduzir a eficiência da economia, diminuindo, como no caso do
fornecimento puramente privado, a competitividade externa e aumentando os
custos de vida dos trabalhadores. Esse aumento do custo de vida dos
trabalhadores pode resultar em perda de qualidade de vida ou em aumentos
dos salários reduzindo a competitividade.
Altas taxas de crescimento estão normalmente associadas a
crescimento da renda fundiária urbana superior ao crescimento médio. Esse
processo pode também implicar na piora da distribuição de renda, da qualidade
de vida e redução da competitividade internacional. Para evitar ou minorar
essas conseqüências, a política de infra-estrutura urbana deve ser muito ativa.
A infra-estrutura urbana pode ser melhorada principalmente a partir de
investimentos em transporte público, transporte em geral e desconcentração
industrial.
120 A existência de financiamento público barato em moeda nacional não é suficiente para resolver o problema de risco de demanda.
290
Uma política educacional universalista e gratuita poderia também reduzir
o possível impacto negativo das altas taxas de crescimento sobre a
competitividade externa. O salário é definido por tipo de ocupação e por
instituição em que o trabalhador está empregado. Normalmente as ocupações
que exigem qualificações mais especializadas e possuem uma menor oferta de
trabalhadores permitem maior poder de barganha a eles, que, assim, obtêm
maiores salários. As ocupações mais genéricas que exigem menor qualificação
podem ser acessadas pela maior parte dos trabalhadores, assim, o poder de
barganha é reduzido e os salários são menores.
Essa estrutura pode sofrer uma maior dispersão em momentos de altas
taxas de crescimento. Como os excedentes de mão de obra são normalmente
menores nas ocupações mais especializadas, quando a taxa de crescimento é
alta, esses trabalhadores tem seu poder de barganha aumentado mais do que
proporcionalmente aos trabalhadores das ocupações menos especializadas.
Esse fenômeno pode ter impacto direto sobre a competitividade do país e
indireto via aumento do custo da cesta de consumo média. Se os salários dos
trabalhadores menos qualificados não acompanharem esse aumento de custo,
esses perderiam em qualidade de vida.
Enquanto o pleno emprego não é alcançado, os aumentos salariais
estão concentrados principalmente em qualificações mais especializadas.
Políticas educacionais e de treinamento de mão-de-obra mais universais
permitem que mais trabalhadores tenham acesso às ocupações mais
especializadas e por um menor custo. Dessa forma, os excedentes de
trabalhadores seriam melhor distribuídos, e conseqüentemente o poder de
barganha.
Essas políticas podem assim viabilizar aumentos de salários mais
igualitários entre as categorias e menores em média, enquanto houver
desemprego.
Dessa forma, o governo precisa ter uma política de infra-estrutura ativa
para impedir que o crescimento econômico gere piora na distribuição de renda,
na qualidade de vida, redução da competitividade externa ou risco de
racionamento121.
121 E eventualmente em maior taxa de inflação se o câmbio estiver indexado à inflação.
291
4.7. Políticas de demanda e emprego
Segundo Lerner (1951), existe um nível de atividade que, se
ultrapassado, resultaria em de inflação aceleracionista. A localização desse
ponto dependeria da existência de políticas salariais que impedissem que os
salários subissem acima da inflação antes de se extinguir todo o desemprego
não-friccional. Lerner (1951) chama essa situação de ausência de desemprego
não friccional de alto pleno emprego. Sem essas políticas, a inflação se tornaria
aceleracionista em um ponto com maior nível de desemprego, onde a escassez
de trabalhadores qualificados em algumas categorias ou regiões geraria
aumento geral de preços, apesar da existência de desemprego em outros
lugares.
O governo não deveria tentar alcançar um nível de atividade superior à
do ponto onde a inflação se torna alta, pois, além de não reduzir
significativamente o nível de emprego, causaria uma inflação crescente e
acabaria desorganizando a produção e reduzindo o próprio nível de emprego.
Assim a teoria das finanças funcionais diz que o governo deve manter a
economia no ponto de pleno emprego, nem menos onde causaria desemprego
desnecessariamente, nem mais onde a inflação se tornaria incontrolável.
Nesse ponto, a adoção das finanças funcionais obrigaria o governo a aceitar o
dilema entre as políticas de gasto, tributação e manipulação dos juros. Mais
gastos implicariam em menos tributação ou em mais juros. Menos juros
implicariam em mais tributação ou menos gastos. E mais tributação em menos
gastos ou mais juros.
A teoria das finanças funcionais não sugere qualquer combinação
específica para essas políticas, desde que se mantenha a economia no pleno
emprego. Parar Lerner (1951), as diferentes combinações deveriam ser
escolhidas pelo governo a partir de seus próprios juízos de valor. Por exemplo,
o grau ideal de distribuição de renda ou a relação entre gastos públicos e
privados não são objetos das finanças funcionais.
292
No entanto, como vimos, para economias abertas, as finanças funcionais
podem não ser indiferentes a quaisquer combinações de juros e inflação. Pelo
menos enquanto o pleno emprego ainda não tiver sido alcançado.
A taxa de juros influencia a competitividade externa do país. Por isso,
deve ser usada muito comedidamente. Essa política poderia comprometer as
taxas de crescimento futuras, porque maiores taxas de juros reduzem a
competitividade do país pelo aumento dos custos de financiamento das
operações de exportação e pelo aumento dos custos gerais da economia.
O efeito negativo sobre a taxa de crescimento das exportações faz com
que a taxa de crescimento do país seja reduzida. Isso acontece mesmo se
adotada as finanças funcionais.
Além disso, como vimos, a utilização de política de juros para conter a
demanda causa distúrbios nos mercados cambiais e tendem a induzir taxas
médias de juros superiores.
A teoria original das finanças funcionais considera que o pleno emprego
pode ser alcançado de forma relativamente rápida somente com políticas de
demanda. Esse resultado pode não ser possível por causa da restrição externa
ou por escassez de infra-estrutura. Se o governo não investir o suficiente em
infra-estrutura, se não tentar induzir a taxa de crescimento das exportações ou
se faltar crédito externo ao país, as tentativas de usar a demanda para
ultrapassar determinados níveis de atividade poderá causar inflação por conflito
distributivo originada por desvalorizações cambiais. Dessa forma, pode não ser
possível alcançar o pleno emprego.
Dessa forma, existem outros pontos de restrição de demanda além do
ponto de pleno emprego. Se o país não tem acesso a financiamento externo
suficiente, por estar insolvente ou por falta de liquidez internacional, esse ponto
será determinado pelo momento em que a NFEDcp for significativamente
positiva.
Como vimos, essa situação tende a gerar pressão cambial, que, se não
for extinta, acabará levando à desvalorização da taxa de câmbio. Se o governo
não tem acesso a financiamento externo de longo prazo, será obrigado a elevar
o saldo em conta corrente para tentar reduzir a NFEDcp. Ele pode fazer isso
desvalorizando o câmbio. Mas se a NFEDcp após a desvalorização
293
permanecer positiva, o governo será obrigado a adotar políticas recessivas
para reduzi-la. Nesse ponto, a restrição externa será imposta ao governo.
O governo pode ainda restringir as taxas de crescimento da economia
mesmo se a NFEDcp for conjunturalmente negativa. Isso pode acontecer, se o
crescimento econômico implicar em uma taxa de crescimento das importações
superior à taxa de crescimento das exportações. Essa política é necessária
para garantir os indicadores de solvência. Se o país não for mais considerado
solvente, ele poderá ter dificuldade de obter crédito internacional, mesmo em
condições de normalidade dos mercados financeiros internacionais.
O quarto e último ponto de restrição ao crescimento é definido pelo
ponto em que podem surgir riscos de deficiências de infra-estrutura. Como
vimos, gargalos de infra-estrutura física são possíveis. Mas as situações mais
decorrem de redução da competitividade externa ou redução da qualidade de
vida dos trabalhadores.
O objetivo final das finanças funcionais, mesmo nesta versão, é atingir o
pleno emprego com baixos níveis de inflação. Porém, em uma nação que sofre
com a restrição externa e ou gargalos de infra-estrutura o pleno emprego pode
não ser atingível apenas com políticas de demanda.
As políticas de demanda devem ser usadas para induzir o crescimento
da economia sempre que essa não for alcançado nenhum dos pontos de
restrição. Da mesma forma, devem se utilizadas para reduzir a taxa de
crescimento quando a economia tiver ultrapassado algum dos pontos de
restrição.
Nesse sentido, o ponto de restrição que corresponder ao nível de
atividade mais baixo será a verdadeira restrição ao crescimento. As políticas de
demanda devem ser usadas para manter a economia nesse ponto de maneira
parecida com que Lerner sugere. A diferença é que, se a economia for aberta e
esse ponto de restrição não for o próprio nível de pleno emprego, as políticas
monetárias não devem ser usadas como políticas de demanda. Porque, se a
taxa de juros de longo prazo não estiver em seu patamar mínimo, a economia
estaria desperdiçando potencial de crescimento e, portanto, estaria atrasando o
momento de alcance dos objetivos finais das finanças funcionais.
Dessa forma, no ponto de restrição que corresponde ao mais baixo nível
de atividade potencial, é imposto ao governo o dilema entre gastos públicos e
294
tributação. Mais gastos implicariam em menos tributação e vice-versa.
Dependendo da disposição e capacidade do governo em aumentar a
tributação, em algum ponto, nesse nível de atividade, seria definido o limite ao
gasto público.
Se esse ponto de restrição for o pleno emprego, as necessidades de
maximização da taxa de crescimento se tornam menores e assim seriam
menores os inconvenientes da utilização da política monetária para ajuste de
gasto privado, valendo assim, condições similares às propostas por Lerner.
4.8. Política social
Lerner (1951) não se preocupou em fazer considerações sobre políticas
sociais em sua teoria das finanças funcionais. Essa posição talvez fosse
decorrente da aparente pouca dificuldade que ele via de se atingir o pleno
emprego. Em uma situação de pleno emprego as questões sociais estão em
geral associadas a questões específicas ou questões de grande polêmica
ideológica. Dessa forma, talvez ele considerasse pouco relevante e produtiva a
inclusão dessas questões em suas propostas.
Entretanto, em países subdesenvolvidos, o pleno emprego só pode ser
atingido depois de um processo longo, conflituoso e sujeito a todo tipo de
interrupções e retrocessos. Nesse caso, a mesma razão que torna o pleno
emprego desejável faz com que seja também desejável outros mecanismos
para garantir renda e condições mínimas de vida, enquanto o pleno emprego
não é possível.
A princípio alguém poderia pensar que oferecer pleno emprego seja
mais “barato” do que oferecer renda e serviços públicos mínimos. Entretanto,
no curto prazo, pode ser mais “barato” em termos de importações oferecer aos
desempregados renda ou emprego no governo do que emprego no setor
privado. O ideal é oferecer um emprego no setor privado em setores de alto
valor agregado. Entretanto, essa opção pode ser muito cara. É necessário um
volume grande de investimento para gerar empregos nesses setores,
investimento esse que demanda um grande volume de insumos e maquinário
importado e um grande volume de crescimento da renda (e portanto, das
295
importações) para que uma parte seja destinada ao salário do novo
empregado.
Dessa forma, as políticas de renda ou emprego público complementares
ou emergenciais e de fornecimento de serviços públicos gratuitos permitem que
o país possa oferecer renda mínima e serviços públicos para uma quantidade
maior de pessoas do que seria possível se simplesmente com políticas
tradicionais de demanda, para um mesmo patamar de exportações e
coeficiente de importações. Assim, políticas de assistência social universais
são fundamentais.
296
Considerações finais
“Objetividade [em economia] não resulta em desconsiderar o que deve ser para se focar apenas no que é, mas simplesmente evitar manter por debaixo dos panos a defesa dos objetivos desejados sem deixar claro que isso está sendo feito, ou sem deixar claro de quem são os interesses envolvidos” [Tradução livre, grifos no original] (Lerner, 1969: 131; apud Forstater, 1999: 1)
Apesar dos problemas práticos encontrados, devemos dizer que as
políticas de perfil keynesiano adotadas nos 25 anos seguintes à segunda
guerra foram, em geral, muito bem-sucedidas. Certamente lograram seus
principais intentos. Naqueles anos, demonstrou-se na prática, pela primeira vez
na historia da civilização ocidental, que a miséria não era uma inevitabilidade.
Aliás, demonstrou-se que a miséria não era um problema de difícil solução.
A Europa, o Japão, a América do Norte e as ilhas Anglo-Saxônicas do
Pacífico sempre conviveram com desemprego considerável e mesmo pobreza
antes da segunda guerra mundial. Nesses países, mesmo a classe
trabalhadora empregada vivia normalmente em condições que em apenas 15
anos depois da guerra poderiam ser consideradas muito precárias por eles
próprios ou seus filhos.
Em todos esses países, que adotaram decisivamente os princípios
keynesianos coerentes com as finanças funcionais, o nível de emprego atingiu
permanentemente níveis raramente alcançados. As condições de assistência
social, saúde e educação permitiram um grau de cidadania que tornou as
velhas utopias de democracia política e social realmente palpáveis. Em alguns
países, como a Suécia, os níveis de distribuição de renda alcançaram níveis
considerados impossíveis sob o capitalismo.
Apesar de todos os problemas e conflitos da época, a humanidade
sentiu a possibilidade do progresso em todas as áreas. E assistiu o progresso.
Os direitos políticos e sociais atingiram níveis muito elevados. As minorias
começaram a obter conquistas cada vez maiores.
No chamado terceiro mundo, as esperanças eram as mesmas. A
descolonização da África e da Ásia e o progresso econômico em certos países
da América Latina indicava que um dia os níveis de desenvolvimento
297
alcançado nos países industrializados pudessem ser atingidos. Chegou a ser
dominante a máxima de que o desenvolvimento era apenas uma questão de
etapas necessariamente transponíveis. Todos um dia chegariam lá.
Hoje vivemos em um mundo muito diferente. Entre os anos 70 e 90, os
princípios que sustentaram a revolução keynesiana foram duramente
combatidos e suas propostas foram, em grande parte, substituídas pelas
políticas do liberalismo econômico típicas do período anterior à primeira guerra
mundial e que fora, por acaso, marcado pelo chamado imperialismo.
A distribuição de renda piora e a pobreza cresce nas nações centrais. As
regiões outrora periféricas estão divididas em duas realidades completamente
diversas. De um lado temos o leste asiático utilizando políticas muito ativas
para conduzir um processo de desenvolvimento econômico numa velocidade
comparável e, às vezes, superior à obtida na era de ouro do capitalismo.
Por outro lado, temos a África e a América Latina, onde as sociedades
perderam completamente as esperanças e deixaram de acreditar em sua
própria capacidade de construir um futuro. Nesses países, as políticas
econômicas formuladas sob as bases da ortodoxia econômica dominam. Essas
políticas criam amarras que impedem a sociedade de agir coletivamente por
meio do Estado. A ortodoxia econômica insiste que a sociedade não deve
utilizar os instrumentos disponíveis para alcançar suas potencialidades. Os
economistas ortodoxos defendem o uso dessas amarras com os mesmo
argumentos e propostas criticados por Lerner no início dos anos 40 do século
passado. As Finanças Saudáveis foram rejuvenecidas e voltaram a ser
seguidas com afinco na América Latina, África e em boa parte da Europa.
Nesse ambiente, é muito preocupante a quase completa descrença com
relação aos princípios das finanças funcionais. A desconsideração apriorística
das finanças funcionais não é apenas uma atitude anti-científica. É antes de
tudo uma opção explícita pela mediocridade e pelo status quo. Suas
promessas são muito boas para serem desconsideradas. Seus mecanismos
são muito simples para não serem compreendidos. Suas políticas não têm
custo significativo, não sendo aceitável que não sejam cogitadas. Suas
realizações já foram demonstradas, não é justificável que sejam
desacreditadas.
298
No entanto, a evolução da teoria econômica e a experiência histórica
podem ter contribuído para tornar mais claras as insuficiências da teoria das
finanças funcionais de Abba Lerner para países subdesenvolvidos.
Sugerimos que as limitações encontradas nas teorias das finanças
funcionais decorrem da desconsideração, por parte de Lerner, da importante
relação entre câmbio e inflação. Essa posição resulta na dificuldade em
perceber: (1) as limitações do câmbio flutuante em deslocar a restrição externa
e (2) a necessidade de utilizar o câmbio como instrumento de combate à
inflação.
Essas limitações impedem que a teoria das finanças funcionais possa
alcançar sua meta de pleno emprego com estabilidade de preços em países
subdesenvolvidos.
De forma simplificada, poderíamos dizer que esses países
freqüentemente precisariam alcançar níveis de exportação por habitante
superiores para que possam viabilizar o pleno emprego com estabilidade de
preços.
Foi proposto nesse trabalho repensar a teorias das finanças funcionais
de forma que ela possa ser aplicada em países que sofrem de restrição
externa. Nessa situação, em particular, se há liberdade de movimento de
capitais, o governo enfrenta maiores dilemas. Para enfrentá-los é necessário
definir diversas metas intermediárias. Dessa forma, nessas condições, as
finanças funcionais precisam incorporar novos instrumentos.
O primeiro instrumento adicional é a utilização de tetos para a taxa de
câmbio como forma de combate à inflação. A manutenção desses tetos
depende da capacidade do governo em manter controlada a pressão cambial.
A pressão cambial é o excesso de demanda por moeda estrangeira decorrente
de um fluxo estrutural de dividas negativo (NFEDcp > 0). Os instrumentos
próprios para administrar a pressão cambial são principalmente a política
monetária, de reservas cambiais e de endividamento público externo. A
variação da taxa de juros e a venda de reservas são as políticas adequadas
para controlar a pressão cambial no curto prazo. A expansão econômica, a
manutenção de câmbio competitivo e o endividamento público no exterior são
as políticas adequadas para administrar a pressão cambial para prazos
299
maiores por serem formas de aumentar o volume de financiamento de longo
prazo e de diminuir a necessidade de financiamento externo.
As políticas originais sugeridas pelas finanças funcionais para expansão
do emprego mantêm-se com o mesmo fim. Porém, é esperado que elas não
sejam capazes de alcançar sozinhas o pleno emprego. O crescimento do nível
de atividade tende a deteriorar no curto prazo os indicadores de solvência
externa do país, o que pode levar as políticas de administração da pressão
cambial à inoperância e, conseqüentemente, ao descontrole da taxa de câmbio
e, assim, da taxa de inflação.
Para que o crescimento econômico não implique na deterioração dos
indicadores de solvência, é necessário que o crescimento das exportações se
mantenha acima do crescimento das importações e, eventualmente, que o país
obtenha um saldo em conta corrente positivo. Os instrumentos que visam esse
fim são a política industrial, de minimização do custo do crédito de longo prazo
e a manutenção de uma taxa de câmbio competitiva.
Em especial nos países subdesenvolvidos com alta taxa de crescimento,
é necessário que o governo invista recursos suficientes na política de infra-
estrutura, para que o crescimento econômico não implique em gargalos na
infra-estrutura. Esses gargalos poderiam causar restrições físicas ao
crescimento, redução da competitividade externa ou na qualidade de vida da
população.
Sugere-se ainda que as finanças funcionais incorporem como meta uma
política de garantias mínimas e de melhorias contínuas no padrão de vida, para
que a população tenha acesso à infra-estrutura social básica e para que não
fique desamparada enquanto o pleno emprego ainda não é uma realidade.
Neste trabalho, foi dada especial atenção à taxa de juros. Buscou-se
mostrar que mesmo sob liberdade de movimento de capitais, a autonomia da
política monetária é muito grande e não há justificativas para manter taxas de
juros de curto ou longo prazo permanentemente superiores à média
internacional e mesmo sensivelmente superiores às taxas americanas. Se essa
proposição estiver realmente correta, o controle de capitais não seria
imprescindível à redução dos juros. O controle de capitais é uma política
eficaz e, muito provavelmente, é a melhor solução para uma política de
300
“gestão” dos fluxos de capital especulativo. Mas pode ser desnecessária para a
retomada do processo de crescimento acelerado.
Não temos a pretensão de que essas propostas sejam a melhor solução
para a adaptação da teoria das finanças funcionais para os problemas da
restrição externa, em particular com relação às breves exposições sobre
política industrial, de infra-estrutura e social. Buscamos apenas sugerir
soluções para as insuficiências da versão original que fossem coerentes com
seus objetivos e método. Esperamos que essas propostas possam contribuir
para reacender o debate sobre a validade das finanças funcionais nas
condições contemporâneas. Em particular, desejamos que a viabilidade das
promessas contidas na teoria de Abba Lerner possa novamente ser colocada
como centro das discussões sobre política econômica e de desenvolvimento.
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