SÃO FERNANDO BEIRA-MAR

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SÃO FERNANDO BEIRA-MAR Poemas de Antonio Miranda “São Fernando Beira-Mar” foi escrito naquele período em que estourou o escândalo do Mensalão e aconteceu o episódio tenebroso da CPI dos Correios, seguido da tragicomédia da perseguição do caseiro no caso do Palocci.

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Antonio Miranda

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I

O ruído fervilhoso de mil celulares

como bocas cariadas blasfemando

orelhas aguçadas, sirenes soando

chamadas alucinadas no âmago

da noite interrompida, aquelas vozes

todas, aqueles anúncios espalhafatosos

imagens tortuosas nos painéis

eletrônicos, carros passando distraídos

com senhores circunspectos, calados

sinos de igrejas invisíveis, queixosos

parafusos obstinados, pregos, vozes

indignadas anunciando o fim dos tempos.

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Crianças com armas na mão.

Abandonados por Deus! Dilacerados,

pensamentos errantes, incredulidades.

Terroristas tramam sequestros

de celebridades, para o regozijo

do homem da mídia enquanto

traficantes violam containers

e médicos amputam sepultos

padres rezam missas solenes

leem homilias dominicais

saem bugigangas chinesas de caixas

voltam a crucificar Jesus, serram-no

ao meio, exibido na TV, para servir

de exemplo e admiração.

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Iras, arrependimentos, imprecações.

Assaltos, rezas, sobressaltos

ruas desertas, ferrolhos, grades

trancas, alarmes, circuitos

monitorados, escutas telefônicas.

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II

Aquela bala perdida tinha um sentido;

aqueles mortos calcinados riam de nós

policiais encapuzados sitiam quarteirões

abandonados, desovam cadáveres

torturam, atiram em qualquer direção.

Parece que é um vídeo-clip ou um game

coisa pelo estilo. Ninguém sabe ao certo.

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O ministro da justiça elabora plano

para a polícia federal – se possível –

atingir o nível das organizações

criminosas e pede outras providências:

armas tão poderosas quanto as

que ostentam os contrabandistas.

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Plano mirabolante mas verossímil

Hiper-realismo alucinante: fantasia

sangrenta, fútil, absurda, violenta

bela e terrível como no cinema.

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Dá-se então o toque de recolher.

Um bandido é morto

outro é empossado.

Fecha-se o comércio

metralha-se um posto policial

abre-se um túnel mas

o preso sai pela porta da frente.

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III

Oh náusea, oh nojo!

Sangue mais que sangue

vômito mais que vômito.

O senhor delegado reclama a sua parte.

Fezes mais que fezes!

O senhor deputado rende a sua

homenagem.

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As covas revelam os seus segredos

os lixos desbordam e as fossas abertas

mostram os seus mortos putrefactos.

O senhor vigário

o líder comunitário

o dirigente sindical.

As nuvens seguem indiferentes

as chuvas caem ácidas

os valões transbordam águas estagnadas

os pântanos poluídos pestilentes.

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Anjos raivosos estupram monjas

e drag-queens eufóricos comemoram

o carnaval fora de época.

Reivindicam-se terras públicas

enquanto deputados retóricos

aumentam os impostos e

os próprios salários.

Estandartes exibem São Fernando

de camiseta e bermuda

na procissão dos deserdados.

Por isso é feriado, dia santo.

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IV

Há luzes e gritos e algazarra

na cela dos condenados.

Chegam pizzas on delivery

Maconha on demand

mulheres, mulheres, mulheres

a escória em festa celebra.

Tem a lei vigente

mas que não cola

tem a lei do cão

que predomina

leis que derrogam leis

e leis que se auto-defenestram.

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São Fernando Beira-Mar

também dita suas leis,

com força de lei.

O bandido obedece

o comerciante obedece

o policial obedece

parece que o ministro

quer usar o modelo

numa medida-provisória.

O ministro quer saber

se a lei emana do povo

ou de alguma divindade.

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V

Desce do céu, vem da selva, sobe o morro

uma saraivada de balas, fogos de artifício

anuncia sua chegada.

Urubus velando vítimas anônimas

cadáveres insepultos

moleques aprendizes correm desenfreados

olheiros

meninas de seios rijos

celebram desejos no strip do baile funk

(quadris exultantes, febris).

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Que coreografia!

Como é belo o pavor dos inimigos!

São Fernando aparece entre batedores

festivos

rajadas de metralhadoras

barba de guerrilheiro, ícone vivo, poderoso

sem limites

desafiando a morte, justiceiro, vingador.

Viril.

Preso, é maior ainda o seu poder.

Celas sem paredes

celulares, advogados

além das grades, dos muros, das leis.

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Onipotente.

Um cérebro público, exposto, radiante

um gênio além do bem e do mal.

Um sorriso de triunfo, de escárnio.

Fé inútil na justiça

religiões subservientes

juízes de aluguel.

Preso, está em toda parte.

A Organização é o paradigma do novo

ministro.

São Fernando abre caminhos a fogo

sequestra, mata, vinga enquanto arrecada

e distribui riquezas.

Um herói, um santo

um ídolo.

Os jornalistas elegeram-no

os policiais o protegem

os políticos servem-no.

Há um São Fernando em cada igreja

Um Fernandinho em cada beco.

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Na mais remota prisão de segurança

máxima

está um sósia, um clone.

O ministro tem-no como assessor

especial

quer equiparar a polícia

à organização dele

equiparar seus efetivos (?!)

aos dele.

A isso chamamos joint-venture,

parceria.

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VI

É a gosma ulcerante, a saliva viscosa

é o escarro ácido, o catarro curtido.

O ministro compra novas viaturas

e há suspeita de super-faturamento.

É o caminho viciado, a norma paralisante

é a lei invocada para deter a própria lei.

O ministro forma um grupo de trabalho

para discutir matéria já decidida.

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É o subterfúgio, o sub-reptício, o simulacro,

é a procrastinação, o ato falho, arrepio da

lei.

Comissões de inquérito, auditorias surdas

e mudas, grupos-tarefa, consultorias.

O ministro pode ser substituído

está com prazo de validade vencido.

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VII

O ministro tem uma cauda de pavão,

o santo tem um falo grandiloquente.

Na audiência pública

o ministro manifestou indignação

chorou sobre os corpos de policiais mortos

beijou as viúvas com certo asco e enfado

e declarou medidas para

quer dizer, garantiu que

depois de asseverar

de ouvir os

de citar alíneas e verbetes de dicionário.

Garantiu uma trégua com os bandidos

para os dias de carnaval.

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A greve do sistema judiciário

não afeta o

muito menos o

a menos que.

Falta verba mas há vontade política.

Espírito de corpo

espírito de quê?

O ministro posou nu para o noticiário

e garantiu transparência nas investigações.

No mais, apenas confabulações.

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Ele continua ministro

e há estatísticas que provam

que os sequestros diminuíram

mas aumentaram a produtividade.

O sistema bancário saiu fortalecido

incorporando seguradoras

e sistemas de segurança.

Fernando está desaparecido do noticiário

está na masmorra, ou está em Miami

está dirigindo seus negócios na favela

na selva colombiana, pagando propinas

coletando contribuições para as eleições.

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(Um juiz escondeu as fitas daquele inquérito

e ameaça os figurões do governo).

Fernando perdeu a fé na democracia.

Eu perdi o respeito pela poesia.

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SAN FERNANDO BEIRA-MAR: RESENHA CRÍTICA

Por RONALDO CAGIANO*

Obra de cunho crítico, satírico e picaresco, San Fernando Beira-mar,

de Antonio Miranda, é a anti-celebração da insegurança que avilta a

sociedade brasileira e que tem na figura de Luiz Fernando da Costa (vulgo

"Fernandinho Beira-mar", um dos maiores traficantes de armas da América

Latina), um de seus ícones.

Épico às avessas, o poema tematiza a epopeia dos criminosos

invencíveis, que amedrontam a sociedade brasileira, desafiam as

autoridades e instauram o império do medo, construindo a grande tragédia

humana e urbana das sociedades contemporâneas, fruto das misérias e

injustiças sociais que vitimizam não apenas o povo brasileiro, mas os países

periféricos, submissos ao capitalismo espoliativo. Assim como a máfia

italiana, o crime organizado se instalou de forma avassaladora, colocando a

nu a fragilidade do sistema legal, judiciário e prisional, criando um poder

paralelo ao Estado e superando-o com vantagem.

Com ousadia, Antonio Miranda disseca, com dilacerante poesia

(onde não há espaço para o lirismo poético ou as expansões oníricas do

espírito), esse clima de tensão, essa atmosfera de medo e essa geografia de

violência que sustentam os obituários e tanto envergonham aos três

poderes da nação.

Na melhor tradição de poetas que refletiram sobre as mazelas do

poder, como Gregório de Mattos, o nosso "Boca do Inferno", Miranda

dispara sua metralhadora verbal para fazer um libelo contra uma realidade

pungente e desafiadora.

Nesse Brasil em que o bandido está armado, a polícia desarmada e

a população alarmada, os versos de Miranda ajudam-nos a compreender o

status quo político, econômico e social e refletir sobre o grande abismo que

nos cerca, pois toca nas feridas, nos dá um soco no estômago, provoca

indignação e não nos deixa indiferentes à banalidade da vida e da morte a

que tantos se acostumaram.

*ensaísta, poeta, antologista. Brasília, agosto 2006

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