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TEMPO E ESPAÇO NA METRÓPOLE: BREVES REFLEXÕES SOBRE ASSINCRONIAS URBANAS

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TEMPO E ESPAÇO NA METRÓPOLEbreves reflexões sobre assincronias urbanas

MAURA PARDINI BICUDO VÉRAS

Socióloga, Professora do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUC-SP

Resumo: A metrópole só pode ser desvendada por aproximações sucessivas, iniciando-se por uma ligeira carac-terização de suas principais coordenadas socioeconômicas, tais como a desconcentração industrial, os ritmos decrescimento populacional, níveis de renda das famílias, auto-segregação das elites, formas precárias de moradiapara vastos contingentes de pobreza. Entre vários aspectos estão as assincronias urbanas, ou as diferenças deritmos entre usuários da cidade, abrangendo desde a velocidade conectada à globalização, até a história lenta quepode transformar fracos em fortes, recuperando um tempo perdido na vida das cidades: o da fruição.Palavras-chave: metrópole global; assincronias urbanas; desigualdades sociotemporais; velocidade.

Para o homem comum, o Mundo, o mundo concreto imediato,é a Cidade, sobretudo a Metrópole.

Milton Santos (1996)

como laboratórios de iniciativas, e novas sociabilidades,como ambientes cálidos que favorecem a democracia edefendem os cidadãos dos frios e impessoais mecanismosdo mercado (Borja, 1990; Ianni, 1994).

No Brasil, podem ser esquematizados quatro momen-tos históricos no que se refere ao papel das metrópoles:quando as cidades brasileiras formavam quase um arqui-pélago, a ausência de comunicação entre as metrópolesdava a estas uma zona de influência restrita onde apenascomandavam uma fração do território; quando se tentaformar um mercado único nacional, com integração terri-torial apenas no Sul e Sudeste; um terceiro momento érepresentado pela constituição de um mercado nacionalúnico; o momento atual, que “conhece um ajustamento àcrise desse mercado, que é um mercado único, mas seg-mentado, único e diferenciado, um mercado hierarquizadoe articulado pelas firmas hegemônicas, nacionais e estran-geiras, que comandam o território com apoio do Estado.Não é demais lembrar que mercado e espaço, mercado eterritório, são sinônimos. Um não se entende sem o ou-tro” (Santos, 1996:154).

Atualmente, pois, pode-se falar da onipresença da me-trópole, em todos os lugares e momentos. Através dasmetrópoles, todas as localizações tornam-se centrais, fun-cionalmente, porque são lugares centrais das metrópoles,e cada lugar está conectado à sociedade. Hoje há simulta-neidade e instantaneidade.

empre se inicia o conhecimento de algo, mesmoenigmático e indecifrável na sua complexidadecomo a metrópole, com uma visão panorâmica dos

aspectos considerados básicos, em aproximações suces-sivas. Nas cidades capitalistas, locus da mercadoria, hojeglobalizada, principalmente no novo milênio já iniciado,destacam-se questões recorrentes: a magnitude de sua po-pulação e seus ritmos de crescimento; o peso de produçãoindustrial no conjunto da economia (o que já foi conside-rado a saída local, regional e nacional para o desenvolvi-mento); o papel histórico de suas burguesias e de seu pro-letariado; as configurações espaciais e relações com ahinterlândia, as dimensões da desigualdade sociopolíticae cultural. As metrópoles foram as configurações socio-espaciais representativas do momento histórico da acu-mulação fordista, da industrialização e da construção doEstado do Bem-Estar Social, mas receberam avaliaçõespessimistas pelos graves problemas que apresentaram, es-pecialmente nas décadas de 70 e 80. Nos anos 90, entre-tanto, obtiveram novas interpretações, sendo ressig-nificadas como espaços onde podem surgir novas idéias,

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Tendo em vista um singelo roteiro de desvendamentodesse fascinante objeto de estudo, principia-se aqui comalgumas dimensões anatômicas da realidade urbana dametrópole de São Paulo. Posteriormente busca-se apro-fundar um dos aspectos cruciais de sua vida: o tempo me-tropolitano. O tempo que torna a simultaneidade possívelnão é mais físico, o do relógio, mas tempo social, que estáem todos os lugares, o tempo metropolitano. “Os momen-tos que, no mesmo tempo do relógio, são vividos por cadalugar, sofrem defasagens e se submetem à hierarquia (emrelação ao emissor e controlador dos fluxos diversos). Por-que há defasagens, cada qual desses lugares é hierarqui-camente subordinado. Porque as defasagens são diferen-tes para as diversas variáveis ou fatores, é que os lugaressão diversos” (Santos, 1996:156). A metrópole instantâ-nea é sincronicamente social, ela sofre verdadeira disso-lução, um fenômeno novo, o do espaço dos fluxosestruturadores.

APROXIMANDO-NOS DO OBJETO

A aglomeração metropolitana de São Paulo (RMSP),cujo reconhecimento legal se deu em 1973 (Lei Comple-mentar de 8 de junho de 1973), abrange 39 municípiosnos 8.051 km², tendo sua sede na cidade de São Paulo. Osdados preliminares do Censo Demográfico de 2000 (IBGE)apontam cerca de 17 milhões para a população metropo-litana e, para o Município de São Paulo, quase dez mi-lhões de habitantes.

Embora nas últimas décadas as taxas de crescimentopopulacional anual tenham diminuído (entre 1970 e 1980era de 4,46% a.a., passando na década seguinte para 1,88%a.a. e, entre 1991 e 1996, para 1,39% a.a.), ainda podem-se observar grandes disparidades socioeconômicas e es-paciais.

O Município de São Paulo, a maior capital da regiãoconsiderada a mais desenvolvida do país, também vemapresentando um decréscimo de sua taxa de crescimentopopulacional, que passou de 6,1% a.a. nos anos 50 e 60 ataxas de 1,2% a.a. na década de 80 e a 0,34% de 1991 a1996 (IBGE). Em processo de desconcentração metropo-litana, as cidades menores da periferia da região vêm re-velando expressão populacional crescente, aumentandopara cerca de 40% seu peso no conjunto da metrópole,enquanto o Município de São Paulo, que já representou72% em 1970, hoje concentra cerca de 60% dos habitan-tes da RMSP. Fluxos maciços de migrantes pobres diri-gem-se às periferias da metrópole, criando zonas densas

com alojamentos precários (favelas e loteamentos clan-destinos), e porções deterioradas e centrais abrigam for-mas de inquilinato social (cortiços, nas mais variadas mo-dalidades).

Igualmente, as indústrias de caráter tradicional estãosendo deslocadas para essas cidades, por diversas razõesbem conhecidas. Trata-se de uma nova configuração ur-bana, caracterizada pela ênfase e expansão das funçõesde controle, comando e administração de grandes empre-sas implantadas principalmente na sede metropolitana, emdetrimento das funções de produção, que hoje declinam.O setor terciário ganha importância, particularmente ossetores diretamente ligados ao capital e a sua gestão. SãoPaulo vem conhecendo transformações pelas quais o mun-do todo também tem passado, alterações que obedecemnão só aos determinantes do que se convencionou chamarde “globalização”,1 mas igualmente aos fatores que se pren-dem às especificidades da sociedade brasileira. As esco-lhas da política econômica e do modelo de desenvolvi-mento que foram adotados no Brasil, acompanhando astendências em vigor no capitalismo internacional, trans-formaram seu perfil de metrópole industrial do TerceiroMundo no de metrópole de “serviços” e “informacional”,característico das cidades – pólo das economias de fluxona rede mundializada contemporânea. O desemprego temaumentado ao longo dos últimos anos; assiste-se a umaqueda importante do emprego assalariado, e a “exclusão”social tem-se revelado em múltipla fenomenologia.2

Com desigualdade explícita do solo urbano e com me-canismos de mercado, a distribuição de favelas e lotea-mentos precários da periferia em torno da parte mais ricae consolidada da superfície urbana é testemunho apreciá-vel dos processos centrífugos da expulsão dos pobres. Umrápido olhar sobre o processo de urbanização da metró-pole permite constatar que a questão da terra e dos espa-ços urbanos foi comandada pelo capital imobiliário, e opoder público acabou por se restringir em facilitar as con-dições necessárias à sua reprodução e expansão. Desseprocesso resulta um quadro que dificultou o acesso eqüi-tativo aos recursos do “ambiente construído”. Tais políti-cas urbanas – em especial as de habitação, transportes eserviços de infra-estrutura – têm contribuído para acen-tuar os conhecidos processos de exclusão-segregação,como a distribuição territorial da pobreza.3

Merece destaque o desenvolvimento econômico da Re-gião Metropolitana de São Paulo a partir dos anos 90.Como visto, a atividade industrial, que foi o suporte prin-cipal da evolução econômica e urbana da região, come-

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çou a declinar entre os anos 70 e 85, e não só por causa daexpansão do parque industrial para outras cidades do Es-tado de São Paulo. Esse processo de “desconcentraçãoindustrial”, vigoroso naquela época, passa a diminuir noperíodo após 85 e 90, quando ocorre um novo movimentode reconcentração na metrópole.

Essa alternância de atração e espraiamento das indús-trias parece não significar “desindustrialização” como que-rem alguns autores. Ao contrário, trata-se do impacto dareestruturação produtiva associada a uma frágil atividadeeconômica dos anos 90. A indústria continua setor produ-tivo, dinâmico e complexo, em novas modalidades, em-pregando menor número de trabalhadores, mas mais qua-lificados, e gerando diversas atividades de apoio àprodução industrial, como serviços técnicos, financeiros,de telecomunicações e transporte.

Entretanto, apesar desse recrudescimento, a reestrutu-ração produtiva continua a trazer efeitos sobre a estruturaocupacional da metrópole paulistana; se o emprego indus-trial diminuiu, aumentaram o comércio e os serviços: em1989 a população empregada na indústria era de 33%; em1999 a proporção caiu para 19% e essa queda foi maisacentuada no setor metal-mecânico, que passa de 14% a7% nesse período. Os serviços representam cerca de 53%dos empregos em 1999, contra 41% em 1989. O aumentose concentra nos serviços especializados. Em 2000, parao Município de São Paulo, os serviços representavam cercade 60% dos empregos, particularmente nas zonas sudoes-te, sudeste e norte, e sempre referindo-se aos serviços maisespecializados. Na capital, a indústria representa 18,2%dos empregos e o comércio soma 16,7% (dados do Seade/Dieese 2000).

Pode-se inferir que o setor de serviços terminou poramenizar a intensidade do desemprego que marcou a re-gião metropolitana nos anos 90. De fato, enquanto 730mil postos de trabalho industriais aí se perderam, cercade 230 mil foram criados no comércio e mais de 200 milno setor de serviços domésticos (Pamplona, 2000). É bomsublinhar, entretanto, que a maioria dos empregos no se-tor terciário está nos serviços menos complexos e qualifi-cados, ligados ao consumo, à alimentação e aos serviçospessoais. Também o comércio ambulante significa partedestacada na absorção da mão-de-obra expulsa de setoresmais modernos, configurando uma forma de precarizaçãodo trabalho.

Os efeitos do processo de reestruturação produtiva nãosão homogêneos, penalizando alguns setores, mas permi-tindo que outros, mais técnicos, embora minoritários, pro-

gridam. Setores informais abrigam vários tipos de ocupa-ção (auto-emprego, na terminologia de Pamplona, 2000).Citando pesquisa do IBGE sobre o setor informal, o autorapontava que 75% das unidades produtivas da RMSP con-centravam-se em quatro grupos de atividades: comércio(23%), serviços de diversão e lazer (22%), serviços téc-nicos e auxiliares (15%) e 15% na construção civil(Pamplona, 2000).

Entre 1994 e 1998, ampliou-se o número de famíliasmais pobres por causa do aumento das taxas de desem-prego e das menores rendas provindas do trabalho: o de-semprego tem sido a grande causa da pobreza e da indi-gência, segundo os especialistas, ao lado da poucaescolaridade e da baixa qualidade dos postos de trabalho(Barros e Mendonça, 1997; Ramos, 1997, entre outros).

Nos anos 90, as taxas de desemprego marcaram o mer-cado metropolitano atingindo vivamente a força de tra-balho. Daí decorre o aumento das taxas de desigualda-des entre os grupos sociais e um perverso processo deconcentração de renda. As taxas de desemprego atingemmais mulheres que homens, e o setor de serviços – par-ticularmente o de serviços domésticos – vem absorven-do cada vez mais desempregados expulsos dos segmen-tos produtivos.

A tendência decrescente de renda atinge todas as posi-ções ocupacionais, dos assalariados do setor privado, comou sem carteira assinada, aos assalariados do setor públi-co, aos autônomos, ao setor de serviços domésticos (dia-ristas ou mensalistas). É o já citado mercado informal, quecresce com oscilação de rendimentos.

As estratégias familiares para a sobrevivência tambémacompanharam tais mudanças, pois cresceu a participa-ção das mulheres na sustentação do lar, bem como a dosfilhos menores, e tem aumentado a freqüência de mulhe-res chefes de família.

Como conseqüências desse imenso mercado informal dosúltimos anos estão a redução das receitas e o agravamentoda crise do Estado, a diminuição de equipamentos urba-nos, a precariedade de acesso a habitação, saúde, transpor-tes, cultura e lazer, com degradação da qualidade de vida.

As bruscas oscilações conjunturais da produção têm efei-to corrosivo sobre os salários, refletindo-se nos perfis derenda das famílias. Jannuzi (2000) mostra que, a partir de1996, novo período de crise provocou recrudescimento dodesemprego. Um conjunto de fatores passa a alterar a ren-da das famílias, muitas vezes acrescida de outras fontes,além do trabalho, como aposentadorias, aluguéis, etc. O ci-tado estudo informa que, entre as classes de mais alto po-

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der aquisitivo da RMSP, há um conjunto de característicasque podem explicar esse aumento da renda – entre elas adiminuição do tamanho das famílias, pois decaíram as ta-xas de fecundidade e surgem cada vez mais pessoas sós oucasais sem filhos, tendência que se acentuou nos últimosanos. Em 1990, 5% das famílias mais ricas detinham 21%das rendas familiares e essa taxa se eleva para 25% em 1998.No final de 1998, os 25% entre os mais ricos dispunham de63% de renda e, em 1990, os mais ricos dispunham de 55%da renda. Em contrapartida, os mais pobres perderam par-ticipação de 7% para 5,5% no mesmo ano.

O mercado de trabalho favorece principalmente aosmais escolarizados e qualificados, e esse é um dos princi-pais pontos de explicação do crescimento perverso dastaxas de empobrecimento e de indigência de numerosossegmentos da população.4

Januzzi aponta que em 1990 havia 6% de famílias consi-deradas indigentes e 33% em situação de vulnerabilidade.Em 1994, com as flutuações das rendas e o aumento do cus-to de vida, a proporção de famílias indigentes representava11% das famílias da RMSP. Já em 1998, reduzem-se à me-tade as taxas da indigência (6%) e as famílias em situação devulnerabilidade (para 13%). No entanto, apesar da diminui-ção do número de indigentes, pode-se visualizar que grandeparcela dos habitantes da região metropolitana mora precá-ria ou irregularmente: aumentou o número de favelados (sóno Município de São Paulo são quase dois milhões de pes-soas, cerca de 20% da população da cidade) para 16% naregião metropolitana (apesar de as fontes oficiais, como oIBGE, subestimarem a realidade das favelas conceituando-as como aglomerados com mais de 50 domicílios), dosencortiçados (inquilinato social e precário), dos loteamen-tos clandestinos, sem acesso aos benefícios urbanos comoágua, esgoto, energia elétrica e demais equipamentos sociais.

Se, de um lado, assiste-se a um transbordamento da ocu-pação da pobreza da periferia da sede metropolitana parademais municípios da região metropolitana, de outro ladoocorre a auto-segregação das elites, assumindo a formade condomínios fechados, alguns de alto luxo como GranjaViana e Alphaville. A desigualdade socioespacial presentena cidade de São Paulo reproduz-se por toda a regiãometropolitana.

No quadro crescente de exclusão e miséria sociais, asconfigurações espaciais desses processos são conhecidas:periferias desequipadas e crise de habitação popular (fa-velas, cortiços, sem domicílio).

Interesses das políticas urbanas voltados à realizaçãode grandes obras públicas e à produção imobiliária têm

sobressaído sobre as demandas de acesso mais eqüitativoaos recursos do “ambiente construído” da chamada “ci-dade global” (Véras, 1997).

Esse quadro de exclusão é confirmado pela segrega-ção como distribuição espacial da pobreza, uma certa to-pografia urbana da desigualdade (Véras, 2000). A ofertaoficial de habitações para os grupos de baixa renda apre-senta-se apenas como um conjunto singelo que dá priori-dade à aquisição segundo mecanismos seletivos e bancá-rios pouco sensíveis às características da demanda. A crisedo Sistema Financeiro da Habitação tornou mais aguda ainadequação entre esses traços das políticas de habitaçãopopular e as necessidades sociais.

Não há uma orquestração de gestão para a região me-tropolitana, deixando às políticas municipais a adminis-tração da massa de pobreza que se estende pelos 8.051km², e que demanda vários tipos de atenção e cuidados,como infra-estrutura, transporte, habitação, atendimentode saúde, educação, lazer e outros.

Como já visto, a metrópole de São Paulo apresentoudecréscimo de valor adicionado nos últimos 20 anos quantoa comércio e indústria, mas aumentou sua participação dosetor de serviços – setor que se distribui por toda a man-cha urbana.

A distribuição de empregos, contudo, é muito desigualna região, obedecendo a certa espacialização concêntrica,ou seja, as áreas centrais e mais consolidadas detêm altonível de empregos, de renda e de infra-estrutura, traço quevai diminuindo na direção das áreas intermediárias e rarean-do nas periferias. Ao mesmo tempo em que o congestiona-mento habitacional é maior nas periferias, observa-se queo chamado mercado informal de trabalho (comércio ambu-lante ou sem carteira assinada) prolifera em toda a metró-pole, sobretudo nas zonas e ruas de maior movimentação.

O próprio sistema viário implantado acaba por refor-çar o padrão de ocupação que sempre foi radial, partindodo Centro Histórico e seguindo setores de expansão a sul,leste e oeste. “É especialmente marcante a associação entreexpansão urbana e estradas importantes nos setores sul(BR-116 e Raposo Tavares) e sudeste (Anchieta e Imi-grantes) que afetam diretamente as áreas de proteção aosreservatórios Guarapiranga e Billings” (São Paulo, 2000).

OS TEMPOS DA METRÓPOLE:RITMOS URBANOS

A cidade contemporânea se explicita na metrópole. Seseus espaços são heterogêneos (zonas rurais, de habita-

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ção da pobreza, da indústria tradicional, da indústria mo-derna, de serviços sofisticados, de serviços de baixa qua-lificação, condomínios fechados de alta renda, shoppingcenters, zona de negócios, hotéis e parques de conven-ções, enfrentamento dos iguais e dos diferentes), o tempomaterializado nesses lugares é extremamente dinâmico,pois a co-presença ensina aos homens, territorializa e(des)territorializa e (re)territorializa, trata-se, assim, detempo humanizado, não-natural.

Na cidade da mercadoria, “tempo é dinheiro” e osmarcadores de tempo, como o relógio e cartão de freqüên-cia para medir as jornadas de trabalho, surgem como gran-des conquistas tecnológicas e acabam por dominar o es-paço – o ambiente construído –, pois o que importa é odinheiro. Há uma concatenação entre tempo, espaço e di-nheiro, e a metrópole não pode retardar a marcha da pro-dutividade (Harvey, 1992).

O sistema viário precisa permitir fluxos rápidos (da for-ça de trabalho, dos consumidores, das mercadorias), e ostransportes coletivos também deveriam funcionar comoverdadeira “máquina” (e essa foi uma das inspirações dourbanismo modernista). Assim, o espaço pôde dominar otempo, e a aglomeração fordista fez com que a metrópolefosse encarada como algo a ser domado, disciplinado,ordenado.

A terra urbana também é submetida a essa voragem dacidade veloz, mas a propriedade fundiária foi capaz dedominar o tempo. Por exemplo, especuladores imobiliá-rios conseguem reter glebas vazias por longos períodos,aguardando a valorização urbana. Nesse sentido, esse tem-po foi transformado em dinheiro, viabilizado pela proprie-dade privada da terra, como reserva de valor.

O capitalismo fez a razão transformar-se em razão ins-trumental, pragmática, buscando eficiência e produtivida-de. Isso ocorreu quando transformou as cidades – espa-ços qualitativos, onde o homem podia se reconhecer – emespaço quantitativo e abstrato, tornando-as “valor de uso”em metrópole, isto é, “valor de troca”, obedecendo aosmecanismos mesmos do processo de trabalho, que tam-bém se tornou trabalho abstrato-tempo materializado.

A temporalidade se faz presente nas sociedades que pre-cisam sempre produzir mais e nas quais o trabalho de cadaum, heterogêneo, qualitativo, transforma-se em quantida-de de tempo. Essa temporalidade, pois, domina o sujeito:“a temporalidade perdeu seu caráter qualitativo, cambiante,fluido, transforma-se em um continuum rígido, bem de-limitado, preenchido por coisas quantitativamentemensuráveis (que são as produções dos operários rei-

ficadas, objetivadas de maneira mecânica e destacadas dapersonalidade global do homem); o tempo se transformaem espaço” (Lukács apud Matos, 1982). Essas reflexõestomam o caráter abstrato da quantidade de tempo: nomundo espacializado do trabalho, o homem, indivíduopessoal, afetivo, pouco importa – só a engrenagem pro-dutiva é relevante.

É essa intenção produtivista da economia de mercadoque domina a metrópole. Simmel já dizia que a economiado dinheiro pretendia transformar o mundo em um pro-blema aritmético, dispor todas as partes por meio de fór-mulas matemáticas, “precisão que foi efetuada pela difu-são universal dos relógios de bolso” (Simmel, 1969).

Retomando a escola de Frankfurt, Matos (1982) traz ocotejo entre a cidade de outrora e a metrópole. “A cidadetinha um passado, uma história descentralizada, uma somade experiências próprias, de práticas cotidianas. O bairrotinha ele próprio seus microlugares, suas aventuras, suaidentidade. A cidade sabia igualmente marcar o tempo portiros, signos periódicos de pertença ao grupo. Festas reli-giosas, políticas privadas ou públicas se sucediam” (Barréapud Matos, 1982:47).

“A metrópole, ao contrário, se destitui de sua aura, dafruição do aqui e agora, de sua presença a si mesma. Ametrópole é a negação da cidade (ou da vida rural)” (Ma-tos, 1982:47). A metrópole estaria, assim, liquidando aspossibilidades dos indivíduos autônomos, pois mergulha-ria na multidão desindividualizada.

“O capital é um poder tanático que destrói o espaçofugidio da cidade, convertendo-a em metrópole impessoale sem memória. Por isso, os momentos revolucionáriosseriam desobediências à História. ‘Rompe-se o tempo dosrelógios’ ” (Romano apud Matos, 1982).

No mundo em que tecnologias tentam diminuir o espa-ço (telemática, telefonia, Internet), diferentes práticas so-ciais buscam melhores posições no mercado e aí se inserea luta por melhores localizações urbanas. Nesse afasta-mento do mundo natural, dos ritmos naturais, em que sole lua já não comandam as rotinas, a cidade do lucro(profitópolis) e as cidades “do gelo” também se transfor-mam em “Tiranópolis” (Véras, 1995; Virilio, 1993;Mumford, 1982).

O capitalismo trouxe aceleração dos ritmos econômi-cos, com o tempo da jornada de trabalho, o tempo de re-produção (lazer e viver), e os trabalhadores a aprenderama lição de que tempo é dinheiro. Na virada para a pós-modernidade, além da jornada combinada de trabalho (nalinha de montagem, no salário por peça), vem a robótica

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acelerar ritmos da produtividade. Na acumulação flexí-vel, com novas formas organizacionais e tecnologias pro-dutivas inovadoras, o poder global domina tempo e espa-ço. O mundo todo encolheu, pelo “telemarketing globali-zado” (Harvey, 1992), trazendo (des)territorialização. Naacumulação flexível, a terceirização e o controle eletrôni-co aperfeiçoam a velocidade da produção e da comunica-ção acelerando o mercado financeiro, a produção de bense de serviços e o consumo de massa, inaugurando uma so-ciedade do descarte (haja vista a volatilidade e efemeridadeda moda). E nessa transitoriedade podem incluir-se ima-gens, símbolos e idéias, como é o caso do marketing polí-tico.

Dessa forma, como a comunicação comprimiu espaço(anulação do espaço por meio do tempo), o mundo tor-nou-se a aldeia global, em uma nova geografia, como é ocaso das cidades globais (Ianni, 1994; Sassen, 1991; Véras,1997), onde as palavras de ordem são as da competitivi-dade (ou complementaridade), utilizando-se de estratégiasempresariais, pois tudo se tornou um grande mercado.

A metrópole global do Terceiro Mundo contém, no en-tanto, muitos lugares e igualmente muitos não-lugares (San-tos, 1990; Augé, 1994), pois reúne o local e o global.

Mas é preciso deter-se no significado do tempo, porquan-to, apesar de toda a tecnologia e da mundialização, o tem-po não é único. Embora todo o meio técnico, científico,informacional, do tempo hegemônico do Estado, do tempodo capital, os grupos, os indivíduos e as instituições nãopraticam o mesmo tempo (Santos, 1996). Pratica-se, pois,uma temporalidade com conflitos no cotidiano, no qual seexerce o tempo de cada lugar, não só geográfico, como so-cial. As técnicas imprimem uma dada velocidade e estabe-lecem-se duas direções: horizontal (relações entre pessoasda mesma localidade, entre conterrâneos) e vertical, repre-sentada pela globalização dominante (Santos, 1996).

Se a velocidade é a força da civilização planetária, aque-les que não partilham desses impulsos ficam fora do tem-po? O que ocorre com a imensa pobreza que habita a gran-de cidade? Como vive esse tempo?

A metrópole reúne muitas pessoas, diferentes estratosde renda e culturas, um grande laboratório de idéias, olugar do enfrentamento, do conflito e também da comu-nhão e solidariedade. É ainda um conjunto de lugares – eum conjunto de fluxos de passagem, no qual muitos mi-grantes e nativos vivem, sobrevivem, descobrem o mun-do, em tempos nem sempre sincronizados.

Na cidade capitalista fraturada, dividida por diferen-tes classes sociais, segmenta-se o espaço e segmenta-se o

tempo. Os processos de segregação vêm acompanhadosde fragmentação e polarização: grande heterogeneidadeentre os municípios (rurais, agrícolas, dormitórios, indus-triais). As periferias da sede metropolitana e dos municí-pios vizinhos são ocupadas por migrantes pobres. Áreasdo Município de São Paulo (notadamente a porção sudo-este com concentração de altas rendas) são ocupadas porestratos de altas e médias rendas. Contudo, a oposição bi-nária centro versus periferia não esgota a questão dadesigualdade socioespacial, associando-a ao tema das de-sigualdades sociotemporais.

Assim, na cidade de elite, com os condomínios fecha-dos onde classes dominantes se auto-segregam (enclavesfortificados) ou na cidade dos “muros” (Caldeira, 2000)predominam as viagens de automóvel (cada vez mais blin-dados) em vários eixos e com baixa capacidade; na au-sência de transporte coletivo de qualidade, como o metrô,por exemplo, e como opção individual, os deslocamentosem automóveis particulares acabam por exigir um siste-ma viário adaptado ao carro, já que a malha ferroviária éinsuficiente e desprestigiada, formando, de um lado, uma“viadutópolis” e, de outro, uma teia de aranha disforme econfusa (Santos, 1996). É digno de registro que já é gran-de a frota paulistana de helicópteros (a terceira do mun-do, após Nova York e Tóquio). O tempo é, portanto, o dodeslocamento rápido, seguro e protegido. O circuito cul-tural e comercial se dá em direção ao shopping, ambientesegregado, não só para fugir do mar de pobreza, como tam-bém da violência.

O espaço da rua, público, passa a ser visto como peri-goso, congestionado, passível de riscos e violência: esva-zia-se, é tolerado apenas como necessidade de circulação.Dessa forma, o semáforo e o congestionamento impedemfluxos rápidos. Um exemplo do ponto da cidade mundialde São Paulo, para onde se voltaram os interesses do ca-pital imobiliário, é a Avenida Luís Carlos Berrini, a NovaFaria Lima. Os pedestres são quase inexistentes em áreasonde prédios com tecnologia inteligente abrigam sedes debancos e empresas transnacionais. É o tempo dos execu-tivos, elite dirigente pública e privada, o setor de pontada economia globalizada. Vive-se aí o tempo dos fluxosinternacionalizados, das Bolsas de Valores, dos negóciosdas empresas e suas filiais situados em outros pontos doplaneta, em nova centralidade (Frugoli, 2000; Villaça,1999).

Outros são os espaços e os tempos da cidade da pobre-za, ou seja, da maioria da população residente nas fave-las, nos cortiços, nos loteamentos periféricos, nas ruas (os

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sem domicílio fixo). E, se há separação espacial, os tem-pos se cruzarão inevitavelmente nas vias de circulação,nos poucos momentos das zonas públicas. Essa cidade dapobreza mais parece um grande acampamento, contingen-te, sem direitos às raízes.

Na metrópole dos serviços, a indústria absorve cadavez menos trabalhadores, e cada vez mais os mais espe-cializados. Os serviços estão presentes em toda áreaurbanizada mais consolidada. Assim, os tempos de deslo-camento pendular “habitação e trabalho” são muito varia-dos. É o tempo lento: o do transporte coletivo, do conges-tionamento, dos riscos. A cidade transforma-se em muitospontos de deslocamento – de saída e de chegada e nãoapresenta espaços de fruição.

Embora o trabalho seja cada vez mais precário, a maio-ria no mercado informal, há a divisão: tempo do trabalhoe tempo do viver. O tempo do trabalho é acrescido do tem-po de transporte (apesar de que a maioria procura morarpróximo ao local de trabalho, para poder ir a pé, econo-mizando custos de transporte). Os trabalhadores, de fato,ao introjetarem o lema “tempo é dinheiro”, devem sub-meter-se ao sistema implantado pelos chamados meios deconsumo coletivo.

Aumenta dessa forma o fosso entre as cidades dos 30%mais ricos e aquelas dos 70% mais pobres. E esse fosso érepresentado também pelos diferentes tempos.

Mesmo a possibilidade de uma grande transformaçãonas configurações urbanas, como é o caso da concretizaçãode uma cidade virtual (com base nos processos de infor-mática, uma nova sociedade informacional), ainda nãoplenamente existente entre nós. Essa possibilidade altera-ria o tempo metropolitano, pois poderia trazer o não-em-prego, o não-deslocamento, num tempo sincronizado aosfluxos internacionalizados.

Já se faz presente o novo tempo social, não-natural (otempo dos sinais de trânsito, do horário das repartiçõespúblicas, dos bancos, dos programas de TV) (Véras, 1995).É possível pensar, também, em tempos de globalizaçãoque os binômios desindustrialização/desemprego, ou quea polarização social/fragmentação e ainda pós-indústria/pós-modernidade trarão novas concepções de tempo me-tropolitano. Esse panorama, contudo, ainda não se dese-nha inteiramente entre nós.

Em tempos da teleconferência (como a de Tóquio e Pa-ris, por exemplo) inaugura-se um “buraco” no espaço etambém um “buraco no tempo”, o tempo real da transmis-são instantânea de acontecimentos históricos (Virilio,1993), pois se trata da perplexidade diante da perturba-

ção da percepção de que nossas sociedades estão afeta-das pelo progresso das teletecnologias e do declínio daimportância da ótica geométrica. Ondas eletrônicas tra-zem nova velocidade e nova presença que suplantam a fí-sica: a teleexistência, a telepresença.

Os setores dinâmicos da metrópole de São Paulo estãoparticipando desses aspectos, mas a maioria se divide en-tre o tempo real, do congestionamento viário, do ônibus,metrô ou trens lotados, das rotinas urbanas, e vai mergu-lhar no “éter eletrônico” ao chegar em casa e assistir àtelevisão.

“A imperceptível parada do tempo na intersecção daslinhas de fuga da perspectiva cede agora lugar a uma in-terrupção do mundo, ou seja, a uma imperceptível reten-ção de sua extensão e de sua diversidade regional (...) como sedentário contemporâneo da grande metrópole, a con-tração imóvel não atinge somente a área de deslocamentoe de atividade produtora, como ontem ocorria com a bur-guesia urbana: ela atinge em primeiro lugar o corpo destehomem válido superequipado com próteses interativas,cujo modelo passou a ser o inválido equipado para con-trolar seu meio ambiente sem se deslocar fisicamente”(Virilio, 1993:114/115).

Virilio preocupa-se com uma nova necessidade – a deuma nova ecologia, que dê conta da natureza e tambémdessa artificialidade eletrônica comunicacional:

“Uma vez que a cidadania e civilidade dependem nãosomente, como é incansavelmente repetido, do sangue edo território, mas também e sobretudo da natureza da pro-ximidade entre os grupos humanos, não seria convenientepropor um outro tipo de ecologia? Uma disciplina menospreocupada com a natureza do que com os efeitos do meioartificial da cidade sobre a degradação desta proximida-de física entre os seres e as diferentes comunidades? Pro-ximidade da vizinhança imediata dos bairros. Proximida-de mecânica do elevador, do trem, ou dos carros e,finalmente, a recente proximidade eletromagnética das te-lecomunicações instantâneas. Rupturas de escala tanto emrelação ao território e à unidade de vizinhança quantoem relação ao outro, ao familiar, ao amigo, ao vizinho ime-diato. A separação ‘mediática’ não dizendo mais respeitoexclusivamente à questão da separação em grande escalaentre o centro urbano e seu subúrbio ou sua periferia, masigualmente à intercomunicação televisual, ao fax, àstelecompras ...” (Virilio, 1993:115).

Há uma urbanização do mundo, pois, no contexto deum espaço-tempo transformado pelas tecnologias de açãoa distância, surge a cidade-mundo, e esse tempo não é par-

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tilhado pelos diferentes grupos de pessoas. Assim comohá uma geografia social, poderíamos falar também de umacronologia social, ou, como denominamos, assincroniasurbanas.

Discorrendo sobre a urbanização brasileira, Santos(1996:144) mostra que a creditização do território nacio-nal e a dispersão de uma produção altamente produtivanão seriam possíveis sem a “informatização do espaço bra-sileiro (...) com a implantação de sistemas de cooperação,eventos simultâneos”.

Hoje se verificam as condições de simultaneidade ne-cessárias à sociedade informatizada. Entretanto, nem o tem-po se apaga nem o espaço se dissolve: “o que ocorre é umaverdadeira desmultiplicação do tempo, devida a uma hie-rarquização do tempo social, graças a uma seletividade aindamaior no uso das novas condições de realização da vidasocial (...) a simultaneidade entre os lugares não é maisapenas a do tempo físico, tempo do relógio, mas do temposocial, dos momentos da vida social. Mas o tempo que estáem todos os lugares é o tempo da metrópole, que transmitea todo o território o tempo do Estado e o tempo das multi-nacionais e das grandes empresas” (Santos, 1996:155).

Esse autor prossegue tratando do tema, enfatizando aimportância do tempo simultâneo: “em cada outro ponto,nodal ou não, da rede urbana ou do espaço, temos tempossubalternos e diferenciados marcados por dominâncias es-pecíficas. Com isso, uma nova hierarquia se impõe entrelugares, uma hierarquia com nova qualidade, a partir deuma diferenciação muitas vezes maior do que ontem, en-tre os diversos pontos do território” (Santos, 1996:155).

No quadro da metrópole transacional que é São Paulo,cuja grande força deriva do poder de controle sobre flu-xos econômicos e sobre o território, as atividades hege-mônicas que sedia são capazes de concatenar, organizar,manipular por meio da informação todas as etapas do pro-cesso produtivo, superando a fase da metrópole industrial.A metrópole informacional se assentou sobre a metrópoleindustrial, mas transformou-a. Está-se diante de uma me-trópole onipresente: “São Paulo hoje está presente em to-dos os pontos do território informatizado brasileiro, aomesmo tempo e imediatamente, o que traz como conse-qüência, entre outras coisas, uma espécie de segmentaçãovertical do mercado enquanto território e uma segmenta-ção vertical do território enquanto mercado, na medidaem que os diversos agentes sociais e econômicos não uti-lizam o território de forma igual” (Santos, 1996:157).

Como vimos, o tempo metropolitano, quer sincrônico,quer diacrônico, sucede-se em diferentes sociotempo-

ralidades, pois simultâneo, no mundo informacional, con-tém assincronias, arritmias nos diferentes espaços locais,condicionando-se, assim, reciprocamente, tempo e espa-ço. O tempo vivido é o tempo do homem concreto – dasdiferentes classes sociais, vivendo situações específicasno cotidiano.

A cidade é o lugar em que os homens se movem mais,e a co-presença lhes ensina a diferença. Quanto maior acidade, maior o movimento e mais intensa a co-presença,e aí maior oportunidade de aprendizado (educação e ree-ducação).

“Na cidade, hoje, a ‘naturalidade’ do objeto técnico –uma mecânica repetitiva, um sistema de gestos sem sur-presa –, essa historização da metafísica, crava, no orga-nismo urbano, áreas ‘luminosas’, constituídas ao sabor damodernidade e que se justapõem, superpõem e contrapõemao resto da cidade onde vivem os pobres, nas zonas urba-nas ‘opacas’: (...) são espaços da lentidão e não da verti-gem” (Santos, 1996:83).

Santos (1996) instiga nossa reflexão ao opor-se ao pontode vista dominante sobre o papel da velocidade como for-ça mágica e que permitiu à Europa civilizar-se e expandiressa “cultura” para o resto do mundo. Por essa visão, opobre, quase imóvel na grande cidade, seria o fraco, en-quanto ricos e classes médias velozes seriam os fortes. Paraesse autor, ocorre o contrário na grande cidade.

“A força é dos lentos (...). Quem na cidade tem mobi-lidade – e pode percorrê-la e esquadrinhá-la – acaba porver pouco da Cidade e do Mundo: sua comunhão com asimagens, freqüentemente pré-fabricadas, é sua perdição.Seu conforto, que não desejam perder, vem exatamentedo convívio com essas imagens. Os homens ‘lentos’, porseu termo, para quem essas imagens são ‘miragens’, nãopodem, por muito tempo, estar em fase com esse imagi-nário perverso e acabam descobrindo as fabulações (...)na descoberta do mundo, seu comércio com o prático-inerte[categoria Sartreana que significa totalização do passadoque cria configurações resistentes na vida socioespacial]não é pacífico, não pode sê-lo, inseridos que estão numprocesso intelectual contraditório e criativo” (Santos,1996:84-85).

Como imensa massa de migrantes, convivem com gran-de variedade de pessoas – de sujeitos comuns e de suasinterpretações próximas ao “real”. O repertório cultural(prático-inerte) que cada um traz é diferente do outro edaquele do ambiente urbano local. Em outros termos, atemporalidade que acompanha o migrante se contrapõeà temporalidade que o lugar novo quer introjetar nesse su-

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jeito. Instala-se, assim, um choque, um conflito nas orien-tações, o que obriga esse morador a buscar novas inter-pretações.

Desse ângulo, para os imigrantes e para os pobres, aluta pela vida material no espaço é um aliado para a ação,pois que os obriga a “pensar”, enquanto “a classe média eos ricos são envolvidos pelas próprias teias que, para seuconforto, ajudaram a tecer: as teias de uma racionalidadeinvasora de todos os arcanos da vida, essas regulamenta-ções, esses caminhos marcados que empobreceram e eli-minam a orientação ao futuro. Por isso, os espaços lumi-nosos da metrópole, espaços da racionalidade, é que são,de fato, os espaços opacos” (Santos, 1996:85).

O autor se pergunta, ainda, como seria possível enten-der os mecanismos que fundariam uma nova solidarieda-de, baseada nos tempos lentos da metrópole, a desafiar aperversidade difundida pelos tempos rápidos da competi-tividade.

Na mesma direção, foi pensado que a libertação viriade luta contra o tempo quantitativo e pragmático da pro-dutividade. A revolução de julho de 1830, em Paris, trou-xe um exemplo de que a consciência histórica poderiavoltar a ter seus direitos. Na primeira noite de combate,em vários locais, independentemente, mas, nos mesmosmomentos, os relógios públicos receberam tiros. Alguémentão escreveu: “Quem acreditaria? Dir-se-ia que, iradoscontra as horas, novos Josués ao fim de cada via atiravamnos quadrantes para passar o dia” (W. Benjamim apudMatos, 1982).

Como bem observou Matos (1982), os “ludistas do tem-po” buscavam desorientar o “cronômetro do frio cálcu-lo”, recuperar o tempo perdido, resgatar as possibilida-des de viver na cidade, dando força à história lenta, cadavez mais difícil de ser vivida nas metrópoles do mundo,conectadas na velocidade.

NOTAS

1. Numerosa bibliografia vem tratando desse tema e da inserção de São Paulo noparadigma das global cities. Ver, entre outros, Véras, 1997.

2. No Brasil não há uma sociedade salarial plena nos termos de Castel (1998)nem um Estado do Bem-Estar Social como a Europa apresentou e, dessa forma,fica difícil falar hoje de crise. Nesse sentido, o debatido conceito de exclusãosocial torna-se presente, resgatando a polêmica teórica desde os termos demarginalidade, passando pela crítica à razão dualista e recolocando a problemáti-ca da “apartação” e das rupturas (Véras, 1999).Segundo a Pesquisa Emprego e Desemprego na Grande São Paulo (PED) da Fun-dação Seade, a taxa de desemprego atingiu 12,1% em 1999, enquanto chegava a7,6% em 1985. A taxa de desemprego total era de 19,3% em 1999 e, na cidade deSão Paulo, era de 17,7%. Entre os ocupados na região metropolitana, em 1999,apenas 61,4% eram assalariados (enquanto representavam 72,1% em 1989). Emcontrapartida, os autônomos passaram de 15,6% em 1989 para 21,0% em 1999 e

estavam, em sua maioria, em empregos “não-declarados”, economia informal ou“bicos”. Mesmo entre os assalariados é preciso assinalar que cerca de 12% nãosão registrados, o que quer dizer que vêm engrossar as cifras da informalidade(PED-Seade-Dieese, 1999).

3. Segundo a PED-Seade-Dieese, a renda mínima real familiar baixou de R$1.889,00 em 1989 (em valor real de 1999) para R$ 1.456,00 em 1999; igualmen-te a renda per capita caiu ao longo dos dez últimos anos, passando de R$ 596,00para R$ 519,00. O tamanho médio da família era de 3,8 pessoas em 1989 e dimi-nuiu para 3,4 pessoas em 1999. O salário mínimo até abril de 2001 era deR$ 151,00, o que correspondia a US$ 68, a preços dessa data.

4. Para definir indigência, Jannuzzi utiliza os mesmos critérios de Cepal, pelosníveis de preços da “cesta básica”, adaptados aos valores e às quantidades utili-zadas pela pesquisa de índices de custo de vida Dieese/Seade. Os valores dosgêneros de primeira necessidade funcionam como termômetro para avaliar a varia-ção da situação de indigência e pobreza. Segundo tal critério, estariam na faixade indigência famílias que não têm meios para adquirir cesta básica (valor deR$ 71,38 em 1999). Em 1998 estavam nessa situação famílias cuja renda per ca-pita era inferior a R$ 62,26.

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METRÓPOLE E EXPANSÃO URBANAa persistência de processos “insustentáveis”

estágio atual do crescimento metropolitano temcomo característica marcante a importância assu-mida pela dimensão ambiental dos problemas ur-

inadequações no uso e ocupação do solo com forte impactoambiental.

Na década de 80, as periferias das nove regiões metro-politanas cresceram 3,1%, enquanto o município-sedeapresentou índices da ordem de 1,4% (Ipea, 1997:190).Este crescimento ocorreu apesar de o processo de metro-polização ter-se atenuado, com a taxa de crescimento po-pulacional passando de 3,8%, na década de 70, para 2%.Ainda assim, as metrópoles absorveram 30% do cresci-mento demográfico do país na década de 80, recebendo8,3 milhões de novos moradores (Ipea, 1997:190-191).Para o mesmo período, os dados do IBGE apontam índi-ces significativos de crescimento da população residenteem favelas (118,33%) e de domicílios situados em favela(133,19), destacando-se o aumento nas regiões de Belém,Recife, Curitiba e São Paulo. No município do Rio deJaneiro, 17,6% da população é favelada, ocupando osmorros que margeiam a cidade. Em Natal, 9,54% da po-pulação do município mora em favelas, ocupando áreasde preservação ambiental, como dunas (33,33%) mangues(17,39%) e encostas (5,79%). Também aglomerações ur-banas mais recentes, como a de Campinas, registram nomunicípio-sede 7,98% da população residindo em fave-las. Curitiba, cidade referência no que diz respeito à im-plantação de um sistema de planejamento e controle douso e ocupação do solo tem, em sua região metropolitana,8,53% da população em favelas (Ipea/Infurb, 1998:89-91).

banos, especialmente os associados ao parcelamento, usoe ocupação do solo, com relevante papel desempenhadopelos assentamentos habitacionais para população de bai-xa renda.

O processo de urbanização brasileiro, na segunda metadedo século XX, conduziu à formação de 12 regiões metropo-litanas e 37 aglomerações urbanas não-metropolitanas, queconcentram 47% da população do país. Nas 12 áreas metro-politanas, residem 33,6% da população brasileira (52,7 mi-lhões de habitantes), em extensos conglomerados que envol-vem 200 municípios (Ipea/Unicamp-IE-Nesur/IBGE, 1999).1Esses complexos metropolitanos compreendem municípioscom funções complementares, gestão independente2 e capa-cidade financeira desigual. Estas características dificultam econdicionam o atendimento das demandas sociais e de infra-estrutura urbana que, na maioria dos casos, surgem da rela-ção funcional entre municípios e dependem de soluções queextrapolam seus limites político-administrativos, equacio-nando-se na escala regional. As regiões metropolitanas, porcontingência ou natureza das relações estabelecidas entre mu-nicípios que a compõem, dependeriam de políticas integra-das de desenvolvimento urbano e de ações articuladas, queseriam próprias de uma gestão compartilhada. Pela ausênciahistórica de procedimentos desse tipo, agravaram-se as

Resumo: O padrão de urbanização brasileiro imprimiu às metrópoles pelo menos duas fortes característicasassociadas ao modo predominante de “fazer cidade”: apresentam componentes de “insustentabilidade” vincu-lados aos processos de expansão e transformação urbana e proporcionam baixa qualidade de vida a parcelassignificativas da população. Esse padrão cria um espaço dual: de um lado, a cidade formal, que concentra osinvestimentos públicos e, de outro, seu contraponto absoluto, a cidade informal, que cresce exponencialmentena ilegalidade urbana, sem atributos de urbanidade, exacerbando as diferenças socioambientais. A transfor-mação urbana desses espaços implica processos amplos que extrapolam as práticas correntes de regularizaçãode parcelamentos ou urbanização de favelas.Palavras-chave: transformação urbana; meio ambiente; cidades e políticas públicas.

MARTA DORA GROSTEIN

Arquiteta e Urbanista, Professora de Graduação e Pós-Graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e do Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental da USP

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No Município de São Paulo, 19,80% da população moraem favelas, na beira de córregos, encostas íngremes, mar-gens de avenidas e sob viadutos. No início dos anos 70,esse índice era de apenas 1%, comparação expressiva queconfirma a redução de alternativas de acesso à moradiapara as populações de baixa renda. O agravamento dainformalidade nas décadas recentes pode ser avaliado tantopela diminuição da oferta de loteamentos legais quantopelo seu contraponto: a oferta crescente de loteamentosirregulares e clandestinos na área de proteção aos manan-ciais. Entre 1988 e 1994, foram implantados 19,64 mi-lhões de m2 e 100 mil lotes nessa região, sendo que em1987 a população favelada já ultrapassava 120 mil pes-soas, que ocupavam principalmente as áreas livres de lo-teamentos populares (Ipea/Infurb, 1998:89-91). Entre 1980e 1995, a população na área protegida da Bacia do Guara-piranga praticamente dobrou, passando de 336.935 habi-tantes – inicialmente concentrados na região sul do Mu-nicípio de São Paulo (69,9%) – para 622.489 habitantes,com redução do índice mencionado (67,4%), o que con-firma o espraiamento da ocupação ilegal para outros mu-nicípios da bacia, como Itapecerica da Serra, Embu eEmbu-Guaçu, que também dobraram de população noperíodo mencionado (CNEC, 1997).

Verificam-se, nas metrópoles, um agravamento dascondições de moradia das populações pobres – um pro-cesso de “periferização” do crescimento metropolitano(Ipea, 1997:190-191), acompanhado de um aumento sig-nificativo nos índices de favelização – e um grau devasta-dor de degradação ambiental provocado por loteamentosilegais e ocupações sobre áreas protegidas e solos frágeis.Fenômenos originalmente circunscritos ao município-sedereproduzem-se em outros que compõem a região metro-politana, geralmente municípios-dormitório (Meyer et alii,1998).

A “INSUSTENTABILIDADE” DO PADRÃODE URBANIZAÇÃO METROPOLITANO

O padrão de urbanização imprimiu às metrópoles –apesar das especificidades regionais – ao menos duas for-tes características associadas ao modo predominante defazer “cidade”: apresentam componentes de “insustenta-bilidade” associados aos processos de expansão da áreaurbana e de transformação e modernização dos espaçosintra-urbanos; e proporcionam baixa qualidade de vidaurbana a parcelas significativas da população. Em apenasquatro décadas – entre 1950 e 1990 – formaram-se 13 ci-

dades com mais de um milhão de habitantes3 e em todaselas a expansão da área urbana assumiu característicassemelhantes, isto é, não resultou de determinações ou pro-jetos articulados visando a extensão da cidade, mas, aocontrário, prevaleceu a difusão do padrão periférico, con-dutor da urbanização do território metropolitano, perpe-tuando, assim, o loteamento ilegal, a casa autoconstruídae os distantes conjuntos habitacionais populares de pro-dução pública, como seus principais propulsores.

A significativa concentração da pobreza nas metrópo-les brasileiras tem como expressão um espaço dual: deum lado, a cidade formal, que concentra os investimentospúblicos e, de outro, o seu contraponto absoluto, a cidadeinformal relegada dos benefícios equivalentes e que cres-ce exponencialmente na ilegalidade urbana que a consti-tui, exacerbando as diferenças socioambientais. A preca-riedade e a ilegalidade são seus componentes genéticos econtribuem para a formação de espaços urbanos sem atri-butos de urbanidade.

O avanço da urbanização, sua escala e velocidade nãoconstituem problema em si, não fosse o modo como ocor-reu. Deve-se estar atento para esse processo, pois a sus-tentabilidade do aglomerado urbano/metropolitano, em suacomponente físico-urbanística, relaciona-se com as seguin-tes variáveis: a forma de ocupar o território; a disponibi-lidade de insumos para seu funcionamento (disponibili-dade de água); a descarga de resíduos (destino e tratamentode esgoto e lixo); o grau de mobilidade da população noespaço urbano (qualidade do transporte público de mas-sa); a oferta e o atendimento às necessidades da popula-ção por moradia, equipamentos sociais e serviços; e aqualidade dos espaços públicos. Dessa forma, as políti-cas que sustentam o parcelamento, uso e ocupação do soloe as práticas urbanísticas que viabilizam estas ações têmpapel efetivo na meta de conduzir as cidades no percursodo desenvolvimento sustentado.

O termo genérico “cidade” tornou-se pouco preciso paraexpressar o sentido do que se produziu socialmente comoespaço urbano ou expansão de “cidade” a partir dos anos40. Desde então, procura-se adjetivar o termo para desig-nar a resultante espacial do processo que deu forma àsperiferias metropolitanas. A expressão Cidade Clandes-tina ou Cidade Irregular define a forma abusiva do cres-cimento urbano sem controle, próprio da cidade industrialmetropolitana, compreendendo os bairros relegados pelaação pública, a cidade dos pobres e dos excluídos, a cida-de sem infra-estrutura e serviços suficientes, a cidade ile-gal, ainda que legítima. Já na década de 30, na metrópole

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de São Paulo, havia a menção à existência de uma “cida-de clandestina”, termo utilizado para designar os espaçosda cidade onde predominava o fenômeno da abertura deloteamentos sem licenças, registros ou alvarás fornecidospela prefeitura e que, eventualmente, também apresenta-vam problemas fundiários, isto é, de titulação da proprie-dade. Para os urbanistas e engenheiros municipais, a “ci-dade clandestina” também designava espaços precários esem qualidade urbanística e, para eles, a solução prescri-ta seria a aprovação de leis mais exigentes, como expres-sam em textos produzidos na década de 50 e 60 nas re-vistas especializadas. Nos anos 70, diante da escaladadessa prática abusiva e da expansão e consolidação dasperiferias, a municipalidade de São Paulo, na tentativade entender a natureza jurídica e administrativa dessesempreendimentos diante da tarefa de regularizá-los, bus-cou um refinamento do universo classificado generica-mente de “clandestino”, sendo que o termo irregularpassa a designar aqueles empreendimentos ilegais que,embora apresentados inicialmente aos órgãos competen-tes para aprovação, por alguma razão – administrativa,urbanística ou de registro – tornaram-se “irregulares”durante a implantação. A análise das práticas urbanísti-cas que consolidaram a cidade clandestina/irregular re-vela, como recorrente, a relação permissiva entre poderpúblico e loteador, permeada pela tolerância à irregula-ridade e à clandestinidade.4

A dualidade verificada nos processos socioespaciaisde construção da metrópole contemporânea manifesta-seno reconhecimento de uma cidade “formal” assumida pelopoder público, onde se concentram os investimentos ur-banos de todo tipo, e de outra construída à sua margem,que tem no conceito cidade informal a expressão maisabrangente para designá-la, pois associa o fenômeno daexpansão urbana ilegal ao da exclusão social. Nele estáimplícito o pressuposto de que o acesso à cidade se dá demodo diferenciado e que é sempre socialmente determi-nado, compreendendo o conjunto das formas assumidaspelos assentamentos ilegais: loteamentos clandestinos/ir-regulares; favelas; e cortiços. A “cidade informal” é umarealidade de longa data nas cidades brasileiras, especial-mente nas metrópoles que tiveram seu crescimento acele-rado, a partir dos anos 40 e 50, associado ao processo deindustrialização brasileira, como São Paulo e Rio de Ja-neiro. Entretanto, metrópoles com crescimento mais re-cente – como Belém, Brasília, Natal e Campinas – apre-sentam padrão semelhante. A reprodução e a permanênciadesse padrão de urbanização apontam para a incapacida-

de recorrente do Estado em controlar e fiscalizar o uso e aocupação do solo e atuar como controlador, financiadorou provedor de moradia para as populações com menosrecursos. No Município de São Paulo, esse processo tam-bém é a expressão da crise do modelo de instrumentosformulado na década de 70, dominado pelo conceito dezoneamento urbano,5 que, ao invés de ampliarem benefí-cios para o conjunto da população, funcionaram comolimitadores da oferta de moradias ou loteamentos no mer-cado regular. Mais do que difusores de padrões de quali-dade urbana e ambiental, como pretendia o legislador, estesinstrumentos contribuíram decisivamente para a escaladada ilegalidade urbana.

A evolução desse processo resultou no agravamento depráticas ambientais predatórias, gerando erosões do solo,enchentes, desabamentos, desmatamentos e poluição dosmananciais de abastecimento e do ar, que afetam o con-junto urbano e em especial as áreas ocupadas pela popu-lação de baixa renda, com perdas e deseconomias signifi-cativas para o funcionamento adequado do conjuntometropolitano. A força do padrão periférico de urbanizaçãoevidenciou: a negligência do Estado, em suas diferentes ins-tâncias, com a construção das cidades e a formulação de umapolítica de desenvolvimento urbano; a ilegalidade como fa-tor estrutural na dinâmica de expansão urbana das metró-poles brasileiras; o lote urbano precário, a casa na favelae o aluguel de um quarto em cortiços como as alternativaspredominantes para resolver o problema de moradia dospobres nas metrópoles; a ausência de uma política habita-cional metropolitana; a insuficiente produção pública demoradias sociais em face da demanda; e o descaso abso-luto da sociedade e do poder público com os problemassocioambientais decorrentes.

O RECONHECIMENTO DOS ASPECTOSSOCIOAMBIENTAIS ASSOCIADOS ÀCIDADE INFORMAL

Os problemas ambientais urbanos dizem respeito tan-to aos processos de construção da cidade e, portanto, àsdiferentes opções políticas e econômicas que influen-ciam as configurações do espaço, quanto às condiçõesde vida urbana e aos aspectos culturais que informamos modos de vida e as relações interclasses. Nas parce-las da cidade produzidas informalmente, onde predo-minam os assentamentos populares e a ocupação desor-denada, a combinação dos processos de construção doespaço com as condições precárias de vida urbana gera

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problemas socioambientais e situações de risco, que afe-tam tanto o espaço físico quanto a saúde pública: desas-tres provocados por erosão, enchentes, deslizamentos;destruição indiscriminada de florestas e áreas protegidas;contaminação do lençol freático ou das represas de abas-tecimento de água; epidemias e doenças provocadas porumidade e falta de ventilação nas moradias improvisadas,ou por esgoto e águas servidas que correm a céu aberto,entre outros. A escala e a freqüência com que estes fenô-menos se multiplicam nas cidades revelam a relação es-trutural entre os processos e padrões de expansão urbanada cidade informal e o agravamento dos problemas socio-ambientais.

As questões ambientais urbanas adquiriram visibilida-de no decorrer das décadas de 80 e 90, impulsionadas pelosfóruns internacionais promovidos pelas Nações Unidas.Das mudanças verificadas na política dos assentamentoshumanos, entre a conferência de Vancouver 1976 (HabitatI) e a de Istambul 1996 (Habitat II), destaca-se a impor-tância reservada às cidades e metrópoles no contexto dasnações e na aplicação do conceito de sustentabilidade, bemcomo a revisão da crença de que o Estado, através da pro-dução em grande escala de moradias em conjuntos habi-tacionais, poderia produzir domicílios para os pobres nascidades na quantidade necessária. A conferência do Riode Janeiro, em 1992, ECO/92 (United Nations Conferenceon Environment and Development – UNCED – Rio 92),centrada nos problemas do meio ambiente e desenvolvi-mento, concluiu que ¾ do crescimento da população ur-bana mundial, na última década do século XX, será ab-sorvido por cidades do Terceiro Mundo, e colocou emevidência as questões da pobreza urbana e do custo eco-nômico e social da degradação ambiental urbana.

A Agenda 21, produto da conferência do Rio – ECO92, e a Agenda Habitat estão pautando as políticas públi-cas e as práticas urbanas de diversas cidades e metrópo-les. Entre as diretrizes aí formuladas, destacam-se: a idéiade desenvolvimento sustentado; a necessidade de coor-denação setorial; a descentralização de tomada de deci-sões; e a participação das comunidades interessadas eminstâncias específicas da gestão urbana. Estas diretrizesarticulam desenvolvimento econômico, desenvolvimentosocial, desenvolvimento urbano e proteção ao meio am-biente, indicando os componentes gerais para o entendi-mento da noção de desenvolvimento urbano sustentado.O balanço entre “liberdade de construir”, “dever de pro-teger” e “condições dignas de moradia para todos” é de-sejável e, para ser obtido, necessita-se de um governo ur-

bano representativo. O governo é a arena em que todas asdecisões sobre provisão precisam tomar lugar e, desta for-ma, ganha importância a montagem de estruturas eficien-tes para a tomada de decisões, apoiadas em políticas dedesenvolvimento urbano e instrumentos regulamentadospara o exercício dessa política.

O Habitat II identificou, como um dos principais obs-táculos para alcançar o objetivo de assentamentos adequa-dos para todos, a falha dos mercados e governos em colo-car terra e financiamento suficientes e adequados emtermos de preço, tempo e lugar. Os compromissos assu-midos pelos governos, entre os quais o governo brasilei-ro, com a implementação das agendas mencionadas apon-tam para a importância do papel sinalizador de uma políticaurbana federal que apóie as ações locais nos estados, me-trópoles e municípios da federação. As cidades são cen-trais para alcançar o desenvolvimento sustentado, uma vezque é onde se localiza a maior parte da atividade indus-trial, do transporte e da concentração de pessoas.

Se a “cidade informal”, por um lado, tem sido soluçãodo ponto de vista do assentamento dos pobres na cidade,por outro, gera problemas socioambientais que causam im-pactos ao ambiente com riscos significativos. A origemdos problemas ambientais urbanos deve ser diferenciadapara se evitar o escamoteamento de problemas e respon-sabilidades e mesmo a generalização de soluções. Duassituações se destacam: os problemas resultantes de opçõesde obras e projetos realizados pelo poder público para es-truturar o funcionamento das cidades; as questões associa-das às estratégias de sobrevivência das populações commenos recursos nas cidades. No primeiro caso, a falta deuma política de desenvolvimento urbano-ambiental é evi-dente e acarreta disfunções no crescimento urbano: per-mite expansões desnecessárias da malha urbana de acor-do com o interesse dos diferentes mercados imobiliários(o formal e o informal); dissocia expansão urbana da ofertade transporte público; e possibilita construção aleatória epor vezes inadequada de sistema viário, ocupando fundosde vale e impermeabilizando áreas de várzea. A expansãourbana sem transporte público metropolitano de massaeficiente é um caminho explosivo do ponto de vista daqualidade de vida nas metrópoles e aglomerações urba-nas, assim como a impermeabilização descontrolada dosolo com pavimentação, sem projetos de macrodrenagem.Por outro lado, a degradação ambiental associada às es-tratégias de sobrevivência das populações de menores re-cursos nas cidades tem origem nas condições socioeco-nômicas e na falta de opções de moradia acessíveis no

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mercado formal, conforme mencionado anteriormente,implicando a formulação de políticas sociais de inclusãourbana.

A opção de desenvolvimento predominante contribuiupara a consolidação de irracionalidades no uso e ocupa-ção do solo, transformando fundos de vale em avenidas,áreas protegidas em loteamentos, ocupando várzeas,desconsiderando o território e perpetuando as enchentes.A responsabilidade pública é evidente. Em um contextode escassez de recursos, os investimentos em todas as ins-tâncias de governo e o aval a financiamentos têm que sepautar em prioridades definidas no quadro de uma políti-ca de desenvolvimento urbano-ambiental. Noções abran-gentes e abstratas como o de “desenvolvimento urbanosustentável” são referências condutoras de políticas e prá-ticas, devendo ser flexíveis e socialmente construídas, istoé, resultantes da compreensão dos conflitos e embatespresentes nos processos de expansão e transformação ur-bana. Desse modo, poderão influenciar a formulação depolíticas públicas para a construção de um ambiente ur-bano equilibrado e justo. Diante de questões geradas emi-nentemente na esfera socioeconômica, as políticas públi-cas formuladas e assumidas têm um papel fundamental nadistribuição dos benefícios urbanos gerados por obraspúblicas e na justiça social definida pela democratizaçãodos acessos a todas as esferas da vida urbana, especial-mente a uma moradia digna.

O Processo de Transformação da Cidade Informal

A força que a questão ambiental adquiriu na últimadécada coloca novo referencial e responsabilidades paraa tarefa de regularização de loteamentos e urbanização defavelas em face dos conflitos socioambientais que provo-cam. A questão da incorporação da cidade informal e arequalificação de áreas degradadas passam a ser media-das e relativizadas pelos interesses difusos da populaçãometropolitana, como a necessidade de preservar a quali-dade da água dos mananciais de abastecimento, ou a dedefender as áreas de proteção ambiental, ou mesmo adefesa de parques urbanos ou espaços verdes. O conflitoentre a defesa desses interesses e o direito social de aces-so a uma moradia evidencia a urgência no contexto me-tropolitano de programas de reconstrução das periferias,que compreendam programas de inclusão social e econô-mica dessas populações e, evidentemente, de ações espe-cíficas que, por um lado, facilitem o acesso a financia-mentos desenhados para atender às características dessas

populações metropolitanas e, por outro, estimulem a pro-dução de moradias acessíveis no mercado formal.

A partir de fins da década de 70 e início dos anos 80,criaram-se condições políticas e sociais favoráveis paraprocessos de revisão das normas e formulação de instru-mentos urbanísticos que permitam atuar em contextos ur-banos de origem ilegal. O reconhecimento tardio da cida-de informal, bem como sua incorporação como questãode governo, ocorre paralelamente às novas dinâmicas queacompanham a abertura democrática e as discussões dosparâmetros da nova constituição brasileira e culmina comsua promulgação em 1988. Ganham novo respaldo jurídi-co instrumentos como as “zonas especiais de interessesocial”, o “usucapião urbano”, ou a “concessão do diretoreal de uso”, que ampliam as possibilidades de ação pú-blica e, combinados, permitem alterar o foco de atuaçãonas áreas informais, excessivamente centrado em medi-das de cunho jurídico administrativo – predominante naspolíticas de regularização de loteamentos – para o campodas políticas públicas mais amplas de inclusão social eeconômica e urbanística dos moradores dos assentamen-tos ilegais. De normas genéricas de parcelamento do solourbano, passa-se a um refinamento na abordagem dos ins-trumentos. Hoje, a incorporação da cidade produzida foradas normas é tarefa pública, processo em andamento commaior ou menor grau de eficiência nas diferentes cidadesdesde o final da década de 80, com resultados significati-vos em cidades como Recife e Diadema, ou mais recente-mente em programas como “Favela Bairro”, no Rio deJaneiro.

Para a incorporação da cidade informal, que tem iní-cio com a política de regularização em massa de lotea-mentos na década de 80, foi necessária a montagem denovas estruturas especiais, paralelas às existentes, bemcomo o desenvolvimento de uma cultura pública diferen-ciada, na busca de identificar caminhos para agir sobreespaços ilegais e complexos. Esta tarefa inverte o esque-ma tradicional de ação do poder público sobre o uso eocupação do solo – aquela que se inicia tradicionalmentecomo controlador na análise e aprovação de projetos –,passando a atuar sobre realidades construídas que não seenquadram nas normas de parcelamento do solo e exigemportanto novo respaldo jurídico e social. Os embates ocor-rem pelos conflitos que emergem entre as estruturas tra-dicionais e a mentalidade que as sustentam, com a insta-lação de novas práticas. No caso da regularização deloteamentos, a eficiência depende de análises integradase ações específicas de naturezas diferentes, mas conco-

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mitantes. Regularizar a titulação dos lotes depende da re-gularização urbanística do empreendimento que, por suavez, depende de negociações com o loteador omisso eassim por diante, em uma cadeia de situações que preci-sam ser identificadas caso a caso. A solução individual éfundamental para o encaminhamento da regularizaçãofundiária e administrativa, mas insuficiente para a solu-ção dos problemas urbanísticos do loteamento e suas áreasvizinhas, o que constitui um dilema a ser equacionado. Aregularização em favelas traz questões de integração ur-banística semelhantes, embora do ponto de vista da regu-larização fundiária envolva problemas de natureza diver-sa da mencionada para os loteamentos, pois trata-segeralmente da regularização de ocupações em áreas pú-blicas invadidas e o instrumento utilizado tem sido a con-cessão do direito real de uso.

Ao longo da década de 80, ocorreram transformaçõessignificativas no âmbito da ação do poder público sobreos espaços informais, quando se buscaram novos cami-nhos de atuação e tornou-se explícita a incorporação des-se tema como questão de governo a ser enfrentada por meioda formulação e implementação de políticas públicas es-pecíficas. São marcos significativos desse percurso o iní-cio da década, com a política precursora de regularizaçãoem massa de loteamentos formulada e institucionalizadana cidade de São Paulo em 1979/81, e o final dos anos 80,quando a cidade de Recife 6 inovou significativamente aointroduzir na legislação de uso e ocupação do solo de 1983o conceito de Zonas Especiais de Interesse Social (Zeis).Entretanto, sua aplicação de fato ocorreu em 1987, com apromulgação do Plano de Regularização de Zonas Espe-ciais de Interesse Social (Prezeis). Esse instrumento per-mite atuar de forma mais efetiva e integrada sobre osespaços produzidos informalmente, promovendo a regu-larização dessas áreas – urbanística, registrária e admi-nistrativa –, bem como garantir a reserva de novas áreascom localização adequada para futuro uso habitacional porpopulação de baixa renda. Instrumento semelhante foicriado, em 1994, na Região Metropolitana de São Paulo.Esses instrumentos reforçam a base legal para uma açãoregularizadora da ocupação de áreas públicas e particula-res (Ipea/Infurb, 1998).

Os problemas ambientais urbanos nas cidades brasilei-ras não são novos, entretanto, o que está mudando é aconsciência social de que muitos deles poderiam ser evi-tados e a importância que a solução desses problemas as-sume para a sociedade. Em um território urbanizado, ondeprevalecem a escassez de terra adequada e acessível para

o assentamento das populações de baixa renda e a preca-riedade nas periferias em um quadro de exclusão e pobre-za, dificilmente poderão ser equacionados os problemasambientais, sem uma política habitacional.

Construir “cidade” é tarefa social complexa, que re-quer investimentos públicos e privados, projetos e pro-gramas de intervenção e justiça na distribuição dos bene-fícios urbanos. Não basta abrir ruas e parcelar glebas emlotes, assim como para introduzir qualidade ambiental nacidade informal não basta regularizar loteamentos ouurbanizar as favelas.

Entretanto, a grande dificuldade nos processos de in-tegração da cidade informal na cidade propriamente ditaestá no fato de a regularização fundiária e urbanística nãoser suficiente para a integração social e econômica destasáreas. Os programas devem promover a possibilidade decombinação de ações econômicas, sociais, urbanísticas eambientais e, principalmente, deslocar a ótica da atuaçãopública: de um loteamento ou favela, para a reconstruçãode bairros precários; do proprietário do lote, para a co-munidade beneficiada. Enfim, atender aos interesses dosmoradores e à necessidade dos bairros, condicionadospelos interesses difusos da população e da cidade.

NOTAS

E-mail da autora: [email protected]

1. A rede urbana, de acordo com o estudo mencionado, está formada por: metró-poles globais, nacionais ou regionais; centros regionais; e centros sub-regionais,que comandam uma rede de municípios onde residem 78,4% da população brasi-leira. Esta diversificação formou-se em poucas décadas, pois, uma condição ba-sicamente rural verificada nos anos 50 – com 36% de população urbana – passou-se para outra predominantemente urbana.

2. São Paulo (39 municípios); Rio de Janeiro (21 municípios); Salvador (11 mu-nicípios); Belo Horizonte (25 municípios); Fortaleza (11 municípios); Brasília (10municípios); Curitiba (16 municípios); Recife (16 municípios); Porto Alegre (24municípios); Belém (4 municípios); Goiânia (6 municípios); e Campinas (17 mu-nicípios).

3. Em 1950, o Brasil tinha apenas duas cidades com mais de 1 milhão de habitan-tes: São Paulo e Rio de Janeiro.

4. Para maior aprofundamento da questão relacionada à clandestinidade e à irre-gularidade nos loteamentos na cidade de São Paulo, consultar (Grostein, 1987).5. O zoneamento urbano confere tratamento homogêneo, isto é, regras similarespara situações urbanas desiguais, e exigências genéricas como infra-estrutura com-pleta em todos os loteamentos com lote mínimo inicialmente fixado em 250m2,passando a seguir para 125m2. Estas determinações independem tanto do tipo deempreendimento quanto da capacidade de acesso das populações a eles.

6. No Recife, a lei de uso do solo de 1983 instituiu legalmente as Zonas Especiaisde Interesse Social definidas como “assentamentos habitacionais surgidos espon-taneamente, existentes e consolidados onde são estabelecidas normas urbanísti-cas especiais, no interesse social de promover a sua regularização jurídica e suaintegração na estrutura urbana”. O Plano de Regularização de Zonas Especiais deInteresse Social (Prezeis) foi instituído pela Lei no 14.947/87 que, “apesar dechamado de Plano representa uma política formulada com o objetivo de enfren-tar (...) a questão da habitação e do acesso à terra para a população de baixarenda” (Ipea/UFPE, 1997:84).

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA ETRANSFORMAÇÕES ECONÔMICAS

Região Metropolitana de São Paulo

Resumo: Este artigo aborda os impactos da reestruturação produtiva na Região Metropolitana de São Paulo nofinal do século XX. Derivadas de determinações econômicas, as transformações na base técnica de produção,ao longo da década de 90, acarretaram alterações estruturais na indústria e nos serviços, bem como na estrutu-ra ocupacional. A convergência entre a reestruturação produtiva e a concentração regional da produção indus-trial na RMSP, os processos inovadores e a ruptura entre as trajetórias da produção e do emprego na evoluçãoda economia metropolitana são enfatizados neste texto.Palavras-chave: reestruturação produtiva; Região Metropolitana de São Paulo; economia regional.

Este artigo apresenta aspectos contidos no referido es-tudo, tratando-se portanto, de uma abordagem geral dotema analisado detalhadamente nos capítulos que discu-tem os determinantes histórico-estruturais da metro-polização, a formação da RMSP, a reestruturação produ-tiva, a nova dinâmica da economia metropolitana nos anos90 – em que são identificadas as principais transforma-ções na estrutura produtiva metropolitana – e as transfor-mações da estrutura ocupacional, bem como em suas con-clusões, em que é feita uma síntese dos impactos dareestruturação produtiva sobre a RMSP, mostrando suaabrangência econômica/social/espacial, assim como algu-mas possíveis implicações desses processos para o desen-volvimento futuro da região.

A Região Metropolitana vem se inserindo de formaprivilegiada na cadeia dos fluxos internacionais, financei-ros, produtivos e culturais. Topo da rede urbana brasilei-ra,1 detentora de uma grande, concentrada, complexa ediversificada estrutura produtiva, a região passa por pro-cessos de terciarização de sua economia, com expressivocrescimento dos serviços especializados de apoio à pro-dução.

A RMSP, predominantemente industrial na década de70, constituiu a base e o cenário da crise dos anos 80 e dareestruturação tecnoprodutiva da década de 90 – quandoforam geradas intensas transformações estruturais. Mudan-ças inter e intra-setoriais nas estruturas de produção e

MARIA DE FÁTIMA INFANTE ARAUJO

Gerente de Base de Dados e Produção de Indicadores da Fundação Seade

om o propósito de tecer algumas consideraçõesacerca das implicações derivadas dos impac-tos da reestruturação produtiva sobre a Região

Metropolitana de São Paulo no final do século XX, oartigo procura relacionar dois desenvolvimentos distin-tos, mas profundamente inter-relacionados: as transfor-mações na estrutura produtiva e as mudanças na estru-tura ocupacional na RMSP, no transcurso da década de90. São apresentadas algumas implicações que se mos-traram cruciais para o desenvolvimento futuro da RMSPe que são derivadas dos impactos territoriais dessastransformações.

Amplamente discutido no estudo Impactos da reestru-turação produtiva sobre a Região Metropolitana de SãoPaulo no final do século XX (Araujo, 2001), o tema estádemonstrado empiricamente por meio da articulação ana-lítica inédita entre algumas bases de dados: são trabalha-das as informações de Contas Regionais do IBGE, na sé-rie 1985-97; da Pesquisa Industrial Anual – PIA de 1996e seu encadeamento metodológico com o Censo Industrialde 1985, também do IBGE; da série 1992-98 da PesquisaNacional de Domicílios – PNAD/IBGE, em tabulaçõesespeciais realizadas pelo Projeto Rurbano do Instituto deEconomia da Unicamp; da série 1988-99 da PesquisaEmprego Desemprego – PED/Seade-Dieese; e, finalmen-te, da Pesquisa da Atividade Econômica Paulista de 1996– Paep/Seade.

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ocupacional, associadas a alterações na base técnica daprodução industrial, colocaram em marcha um novo pro-cesso de reestruturação da região.

Retomando alguns aspectos da recente formação daRMSP, tratados amplamente na literatura referente aotema,2 pode-se dizer que a RMSP, herdeira e caudatáriado processo de industrialização brasileiro, realizou, emvinte anos de consolidação da industrialização (1960-1980), a principal transformação estrutural nos marcos doparadigma fordista da produção industrial capitalista. Al-terações profundas nos processos de trabalho e nas dinâ-micas socioculturais ocorreram no país e, em particular,na Região Metropolitana nesse período, o que assegurousua predominância industrial e aprofundou sua função depólo central da economia nacional. O alto grau de con-centração da produção industrial na RMSP potencializouprocessos históricos de convergência dos fluxos migrató-rios para esta região, transformando-a na mais importanteárea metropolitana da América Latina. Como resultado doaumento substancial do emprego industrial e dos altos ín-dices de crescimento econômico da década de 70, formou-se, nesta região, uma vasta classe média que desenvolveunovos padrões culturais e hábitos de consumo, difundin-do-se rapidamente para o restante do país.

O emprego industrial e a renda urbana gerada no perío-do criaram inúmeras atividades econômicas e novas ocu-pações de natureza urbana, fundamentais para a formaçãodo enorme mercado de consumo e de trabalho da RMSP.

Em meio à ditadura militar e diante das conseqüênciasda crise no padrão de financiamento internacional, no fi-nal dos anos 70, interrompeu-se esse ciclo de crescimen-to e teve início um longo período de estagnação da eco-nomia metropolitana. Abriu-se, então, durante a décadade 80, um período de sérias dificuldades para a economiabrasileira, quando alternaram-se conjunturas de recessãoe crise, com exceção dos poucos anos de crescimento soba influência do Plano Cruzado. O árduo processo deredemocratização da sociedade brasileira conviveu comuma penosa agenda econômica e social.

A RMSP, centro da produção industrial e também cen-tro político de organização dos diversos atores sociais –trabalhadores, empresários, intelectuais e políticos –, so-freu de forma mais aguda os efeitos da crise – de finan-ciamento do setor público e da produção industrial –, comgraves conseqüências ao seu desenvolvimento futuro.Contudo, durante esses anos, gestaram-se profundas trans-formações estruturais no aparato produtivo e no mercadode trabalho que se realizaram na década de 90.

No plano internacional, nos anos 70 e 80, as mudançasno sistema de produção fordista, principalmente nos Es-tados Unidos e na Europa, passaram a ter repercussõesprofundas no desenvolvimento das principais regiões me-tropolitanas. Segundo Scott (1992), transformações sig-nificativas ocorreram na estrutura interna das grandes ci-dades e uma vigorosa reestruturação da geografia globalda urbanização pôs-se em marcha, em resposta às novastendências econômicas. As grandes cidades do capitalis-mo moderno continuaram a crescer e a concentrar novasatividades, pois os elementos que levaram algumas ativi-dades à descentralização tenderam a intensificar a divi-são social do trabalho e a renovar as atividades econômi-cas das aglomerações metropolitanas em outros setores,como, por exemplo, no setor financeiro.

No Brasil, o surgimento e o florescimento dos setoresde produção flexível e a internacionalização maciça de-corrente do capitalismo moderno produziram impactos nareestruturação tecnológica da RMSP que foram sentidos,com maior intensidade, somente na década de 90.

A RMSP surge como ponta de lança das mudanças es-truturais da economia brasileira ao se transformar, nos anos90, no principal centro terciário do país. A concentraçãodo sistema bancário na região potencializou e induziu acriação e o desenvolvimento de novas atividades de ser-viços – principalmente ligadas às tecnologias de informa-ção e à gestão dos negócios empresariais e financeiros.

A reestruturação tecnológica e as transformações es-truturais aprofundaram-se no sentido da constituição deuma metrópole de serviços – e de serviços produtivos –que tenderão, em última instância, a definir o caráter quepoderá assumir o seu desenvolvimento regional, visto quetais transformações produziram impactos com inúmerasimplicações – essenciais para a definição de ações estra-tégicas de desenvolvimento de longo prazo para o con-junto da região.

Na verdade, a reestruturação produtiva em curso nopaís, acelerada a partir dos anos 90, longe de esvaziar aRegião Metropolitana como centro industrial, agregou-lheo papel de principal centro financeiro e de grande prestadorde serviços produtivos. Ou seja, além de manter níveis deconcentração industrial semelhantes aos de 1985, a RMSPse converteu nesse final de século no locus das sedes degrandes empresas industriais, financeiras e prestadoras deserviço do país exatamente porque é seu pólo industrial.

Pode-se afirmar, portanto, que a RMSP, na última déca-da passou não por um processo de “desconcentração”, massim de reestruturação industrial. Se algumas plantas (ou par-

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te delas) foram transferidas da região, outras ali se instala-ram, principalmente empresas inovadoras intensivas em ciên-cia e tecnologia e as sedes dos conglomerados financeiros.

De fato, o que (desconcentrou e) reduziu na RMSPnesse período foi o emprego, especialmente o industrial,que demanda baixo nível de qualificação.

Da apreensão da dinâmica de transformações econô-micas estruturais e seus impactos, constata-se, empiri-camente, uma ruptura na trajetória histórica de evoluçãoda economia metropolitana, mostrando pela primeira vezausência de convergência entre a trajetória de desenvol-vimento da produção e a do emprego na RMSP. Tal di-vergência, verificada em todas as atividades produtivas,embora com maior ênfase na atividade industrial, é visí-vel nos indicadores de evolução do valor da produção edo pessoal ocupado, sendo característica do período emanálise. Além disso, verifica-se a convergência entre a re-estruturação produtiva e a concentração regional da pro-dução industrial na RMSP, bem como seu impacto na trans-formação ocupacional.

Essa nova dinâmica econômica deriva da superposiçãode duas ordens de questões características do desenvolvi-mento recente da RMSP: a primeira, de natureza históri-ca, é fruto dos determinantes da heterogeneidade estrutu-ral da formação econômica da região; e a segunda,sobreposta a esta, provém da natureza também heterogê-nea do processo de transformação em curso, que inclui eexclui empresas e pessoas do processo de produção. Anatureza excludente das transformações em curso sinali-zam para a tendência, em formação, de uma estrutura ocu-pacional polarizada, caracterizada pelas altas taxas decrescimento, em termos relativos, das ocupações em ser-viços auxiliares e produtivos, que contêm parcela signifi-cativa das ocupações que exigem ensino médio e supe-rior, e, em termos absolutos, dos postos de trabalho emprestação de serviços pessoais, com baixas qualificação eremuneração.

Essa nova configuração vem se impondo à sociedade eprovocam fortes impactos que, para serem superados, re-querem a adoção de políticas econômicas e regionais ati-vas – para tentar “compensar” a fraca capacidade de ge-ração de postos de trabalho característica dessa novadinâmica econômica fortemente inibidora ao crescimentodo emprego na indústria de transformação.

Portanto, a reestruturação tecnológica e as transforma-ções estruturais aprofundaram-se, no decorrer da décadade 90, no sentido da constituição de uma metrópole deserviços – e de serviços produtivos.

RESULTANTES ESTRUTURAIS DASTRANSFORMAÇÕES PRODUTIVAS

A predominância do setor serviços em relação ao in-dustrial deriva, de um lado, da concentração das ativida-des de intermediação financeira, de comunicação e deserviços prestados às empresas – serviços estratégicos,diante dos novos paradigmas da produção na RMSP –,que contribuíram tanto para a sua consolidação nacional,3

ou seja, para o nítido predomínio da região como princi-pal centro de âmbito nacional, quanto para qualificá-la emsua inserção internacional e, de outro, da reestruturaçãotecnológica e das alterações nos processos de trabalho naindústria de transformação, que permanecem centrais nastrajetórias das grandes metrópoles – antigas e novas – daeconomia capitalista. A diversidade e o tamanho da eco-nomia e da estrutura industrial da RMSP constituíram-senos determinantes principais de sua transformação numgrande centro de serviços e negócios.

Com elevada participação em algumas das atividadesmais dinâmicas da indústria de transformação nacional, oprocesso de reestruturação técnico-gerencial e patrimonialmostrou-se altamente disseminado no corpo da indústria me-tropolitana, com impactos na criação ou ampliação de ser-viços altamente interligados à produção industrial. De acor-do com os dados da Paep (Fundação Seade, 1999), aestrutura industrial da RMSP caracteriza-se por ser:- extremamente diversificada, uma vez que a região pro-duz mercadorias de praticamente todas as atividades in-dustriais. As indústrias do complexo metalmecânico (au-tomobilística e máquinas e equipamentos), a química, ade alimentos e bebidas e a editorial, gráfica e de grava-ções são as cinco principais divisões (produtoras de va-lor) da indústria de transformação metropolitana;- altamente heterogênea, pois está presente na estruturaindustrial metropolitana uma gama multifacetada de ar-ranjos entre tamanhos de empresas, origens de capital,grande variação de produtividade, distribuída nas váriasdivisões, permitindo inúmeras sínteses que cobrem umlargo espectro, desde as pequenas empresas de capitalnacional, que são as mais numerosas e de baixa produti-vidade, até as grandes empresas, de capital estrangeiro,que produzem com alta produtividade bens de capital econsumo duráveis e são responsáveis por mais de 50% doVA regional;- muito concentrada, uma vez que na região localizam-se57% das unidades locais industriais, com cerca de 57%

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do pessoal ocupado, produzindo 60% do valor adiciona-do do Estado de São Paulo. Destacam-se as principaisdivisões da estrutura industrial, sendo que, para as em-presas das divisões intensivas em ciência, mais difusorasde inovação, os níveis de concentração são ainda maio-res: estão, na RMSP, cerca de 73% das unidades locaisdas empresas intensivas em ciência, 65% do pessoal ocu-pado e cerca de 68% do valor adicionado do Estado.

O destaque do período pós-1985 é o crescimento dosetor serviços, que representava 41% do VAB do Estadode São Paulo, em 1985, passando para cerca de 54%, em1997. A concentração da produção de serviços de infor-mática, comunicação e educação na RMSP distingue-a nocontexto nacional, capacitando-a a responder às novas ecomplexas demandas por informações, análises e inter-pretações, geradas em uma única cidade que concentramercados e conhecimento.

O processo de terciarização da estrutura produtiva daRMSP sinaliza para a tendência de formação de mecanis-mos de cooperação coordenados, geralmente, por gran-des empresas. Os nexos estratégicos dessas redes relacio-nam a estrutura industrial existente com os serviçosespecializados, formando arranjos horizontais entre em-presas. Nesses casos, a interação entre potencialidades denatureza econômica, social e institucional, de caráter co-letivo e cumulativo, é fundamental e provém da existên-cia de uma atmosfera industrial.4 Este fenômeno, aindaincipiente no Estado de São Paulo, apresenta-se com maiorintensidade na RMSP, onde a grande empresa tem fortepresença na produção industrial.

Para se ter idéia da potencialidade deste processo, ve-rifica-se que, em 1996, estavam operando na RMSP, 437sedes de empresas industriais de grande porte (com maisde 500 pessoas ocupadas, equivalente a 61,7% do Estadode São Paulo), de alta produtividade (R$55.660,00/pes-soa ocupada) e distribuídas majoritariamente entre as in-dústrias de bens intermediários e bens de capital e de con-sumo duráveis (Fundação Seade, 1999). Estas empresasapresentavam os maiores índices de inovação tecnológi-ca e de articulação da produção em redes informatizadas,indicando potenciais de integração produtiva da região.Além disso, as indústrias do complexo metalmecânico(27% do VA metropolitano) e aquelas intensivas em ciên-cia (cerca de 7% do VA da região) estavam concentradas,em mais de 65% do VA estadual, na RMSP.

O conjunto de mudanças estruturais da RMSP reflete,no fundo, o processo de reestruturação produtiva que trans-formou a grande empresa fordista desse final de século

em um complexo e emaranhado sistema de redes de rela-ções entre fornecedores e distribuidores, com um núcleocentral de tomada de decisões estratégicas.

Em suma, do ponto de vista produtivo, a RMSP trans-forma-se numa metrópole de serviços (produtivos e finan-ceiros) sem contudo perder a dimensão de principal póloindustrial do país, onde a grande empresa industrial temum papel central e espelha, de certa forma, as transforma-ções em curso na região:- ao terciarizar inúmeras atividades, criando novos ser-viços ligados à produção e/ou intensificando os já exis-tentes;- ao reduzir o pessoal ocupado, excluindo do processode produção industrial parcela significativa dos trabalha-dores que irão se deslocar, em certa medida, para ocupa-ções no setor de serviços – de menores qualificação e re-muneração e com vínculos mais precários de trabalho;- ao inovar os processos de produção e os produtos, agre-gando novos métodos e técnicas, bem como criando rela-ções mais intensas entre fornecedores e clientes, sinali-zando para possibilidades de integração intersetorial noprocesso de produção;- ao concentrar a produção de setores inovadores e maisdinâmicos da produção nacional e estadual – o complexometalmecânico e as indústrias intensivas em ciência.

O POTENCIAL INOVADOR DAINDÚSTRIA DE TRANSFORMAÇÃO

Mesmo sofrendo as conseqüências dos parcos estímu-los de natureza sistêmica e baixo dinamismo do início dadécada de 90, a economia metropolitana apresentou mo-vimentos de reestruturação que resultaram em atividadese iniciativas inovadoras,5 mesmo que, em grande parte,de natureza incremental.6

A presença de aproximadamente ¼ das empresas in-dustriais inovadoras – em sua maioria grandes empresas– requalifica, ao mesmo tempo em que sinaliza possibili-dades de transformação da RMSP no futuro.

A atividade inovadora apresentou-se concentrada naRMSP, sendo responsável pela produção de 68% do va-lor adicionado industrial da região, e foi realizada em 5.918empresas da indústria de transformação, o que representacerca de 75% do VA das empresas inovadoras do Estadode São Paulo.

Vários são os fatores que podem explicar o desempe-nho inovador das empresas industriais:7 – o porte das em-

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presas – existe forte correlação entre o tamanho da em-presa e sua propensão a inovar. Na RMSP, de acordo coma Paep, a proporção de empresas inovadoras cresce àmedida que aumenta o tamanho: nas pequenas (de 5 a 99pessoas ocupadas), cerca de 22% das empresas introduzi-ram inovações; nas médias (de 100 a 499 pessoas ocupa-das), a proporção sobe para 54%; e, nas grandes (com maisde 500 pessoas ocupadas), alcança 71%; – as característi-cas específicas dos setores industriais – empresas dos seg-mentos de bens de capital e de consumo duráveis (do com-plexo metalmecânico e das indústrias intensivas emciência) e da indústria química apresentam maior desem-penho inovador; – a origem do capital controlador dasempresas – as de capital estrangeiro e misto (nacional eestrangeiro) têm maior desempenho inovador do que aque-las de capital nacional; – a localização das empresas –verificou-se que aquelas que se encontram na RMSP apre-sentam maior desempenho inovador do que as do interiordo Estado de São Paulo.

A estrutura industrial das empresas inovadoras naRMSP diferencia-se daquela referente ao total das empre-sas: é maior a participação do valor adicionado das divi-sões mais complexas e intensivas em tecnologia e conhe-cimento, pertencentes ao grupo de indústrias de bens decapital e de consumo duráveis – o complexo metalmecâ-nico e as indústrias intensivas em ciência (33% do VA,para o total, e 41%, para a inovadora). O tamanho daempresa também é outra característica importante de di-

ferenciação: enquanto as grandes empresas da indústriade transformação eram responsáveis pela produção de 61%do VA da RMSP, as inovadoras com esse porte produ-ziam cerca de 70% do VA da estrutura industrial inova-dora da região.

Um novo papel para a RMSP deriva da importânciaque a região pode ter enquanto fonte geradora de estímu-los e de produção de inovações e na difusão de inovaçõese conhecimento para o restante da estrutura produtiva na-cional. Esta hipótese pôde ser aquilatada pelo fato de maisde 70% do valor adicionado das empresas inovadoras doEstado que se relacionam com as fontes de informaçãopara inovação estar concentrado na RMSP, num contextoem que, de acordo com dados da Paep, 25% das empresasmetropolitanas realizaram inovação de produto e/ou deprocesso no período 1994-96.

Porém, isto não significa esforço das empresas em ati-vidades relacionadas ao desenvolvimento de P&D, massim a agregação de vantagens competitivas no novo para-digma industrial. Existem fortes limitações que podem sersintetizadas através da baixa relação observada entre asempresas industriais e as agências de produção de conhe-cimento científico e tecnológico enquanto fontes de in-formação para a inovação. Esta fraca relação constitui-senum diferencial importante da RMSP em relação aos de-mais centros metropolitanos, onde a concentração dosfatores de produção interagem no sentido de gerarsinergias, induzindo a produção de inovações.

TABELA 1

Empresas Inovadoras (1) e sua Proporção no Valor Adicionado da RMSP e Participação no Estado,segundo Fontes de Informação Consideradas Muito Importantes ou Cruciais para Inovação

Região Metropolitana de São Paulo – 1996

Fontes de Informação para InovaçãoEmpresas Proporção no Participação do VA

(Nos Absolutos) VA da RMSP (%) da RMSP no ESP (%)

Clientes 3.965 75,1 73,7Departamento P&D 1.756 64,4 77,1Competidores 1.950 58,3 82,4Fornecedores de Materiais 2.625 49,6 75,6Outros Departamentos 1.004 40,2 81,0Outras Empresas do Grupo 363 38,6 85,7Feiras e Exibições 150 34,9 72,2Fornecedores de Bens de Capital 1.210 32,2 74,0Publicações 815 24,4 78,3Licenças e Patentes 639 23,1 74,7Outras Fontes de Informação 369 23,0 91,5Instituto de Pesquisa 700 21,3 74,4Universidades 539 17,5 76,7Consultorias 457 13,1 77,0

Fonte: Fundação Seade. Pesquisa da Atividade Econômica Paulista – Paep.(1) Com sede somente no Estado de São Paulo.

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O conhecimento aplicado em campos estratégicos da pro-dução industrial, gerado nos Centros Tecnológicos e de Pes-quisas das Universidades e nos Institutos de Pesquisa, é amatéria-prima essencial do processo de inovação nas princi-pais tecnopoles do mundo. O grau de interações da RMSP éainda limitado e a superação desse gargalo configura-se numgrande desafio para seu desenvolvimento futuro.

O caráter heterogêneo da indústria metropolitana fazcom que a estratégia de inovação das empresas apresenteum gradiente amplo de situações. Acrescenta-se a essacaracterística estrutural a circunstância conjuntural nega-tiva, pois a reestruturação das empresas industriais reali-zou-se em um ambiente recessivo, fazendo com que asestratégias adotadas fossem marcadas por um componen-te fortemente defensivo (Coutinho e Ferraz, 1994), queprivilegiou inovações nos processos de trabalho com mu-danças organizacionais e enxugamento do emprego deri-vado de ajustes nos fatores de produção.

Por outro lado, algumas empresas, principalmente as degrande porte, buscaram soluções mais flexíveis, integradorase de aumento de produtividade via introdução de novas tec-nologias, conformando soluções de caráter sistêmico.

Mesmo assim, a concentração, na região metropolita-na, das empresas industriais mais inovadoras e da maiorfatia da produção das indústrias intensivas em ciênciacontribui para a superação dos entraves existentes na re-gião, podendo vir a transformá-la num espaço onde se con-centram e interagem conhecimentos tecnológicos e cien-tíficos, instituições, empresas e mão-de-obra qualificada,diretamente no desenvolvimento da produção industrial edos principais serviços produtivos, gerando inovações eampliando a competitividade da região.

A dinâmica econômica derivada desta reestruturaçãotecnoprodutiva produz impactos com graves conseqüên-cias para a região. Transformada, a estrutura produtiva daRMSP recria os nexos das relações intra e intersetoriais,bem como as relações inter e intra-regionais – agora comnova e mais ampla abrangência espacial. Contraditoria-mente a essa perspectiva, as transformações no mercadode trabalho da RMSP acirraram as já históricas dificulda-des de inclusão dos trabalhadores na estrutura ocupacio-nal, com graves conseqüências sociais.

ESTRUTURA OCUPACIONAL E POLARIZAÇÃONO MERCADO DE TRABALHO

As principais alterações ocorridas no mercado de tra-balho da RMSP, no período 1988-99 compreendem:

- redução dos ocupados no setor industrial, que represen-tavam cerca de 32% da estrutura ocupacional da RMSP,em 1988, passando para cerca de 20%, em 1999;- ampliação de ocupações no setor serviços (com desta-que para os serviços relacionados à produção e os pes-soais/domésticos). As ocupações do setor terciário, querespondiam por cerca de 60% da estrutura ocupacionalmetropolitana, em 1988, passaram para cerca de 74%, em1999.- baixa capacidade de geração de ocupações assalariadascom carteira de trabalho assinada.

A resultante das transformações ocupacionais na RMSP,durante a década de 90, pode ser sintetizada nos movi-mentos de dois segmentos do setor de serviços: produti-vos/especializados, de um lado, e pessoais/domésticos, deoutro.

Nos serviços relacionados à produção (ou produtivos/especializados), expandiram-se as inserções mais flexíveis(ou não regulamentadas) no setor privado: tanto os ocu-pados sem carteira assinada quanto os autônomos mais queduplicaram nessa década (cerca de 250% em relação a1988) e os empresários e donos de pequenos negócios fa-miliares aumentaram em mais de 130%. Alguns desses ser-viços – estratégicos para a nova organização das empre-sas – agregam segmentos novos, provedores da informaçãoe dos meios essenciais para aumentar a produtividade dasempresas. Nestas atividades do setor serviços estão maisconcentradas as ocupações que exigem nível superior deescolaridade. Essa qualificação corresponde a apenas 7%dos ocupados em serviços na RMSP, 3% na indústria, 1%no comércio e 5% na construção civil. O desempenho dessegrupo de ocupações, aparentemente, decorre da terceiri-zação de parcela das atividades e/ou das novas demandasforjadas pelas mudanças tecnogerenciais da indústria detransformação metropolitana, que têm requerido novasatividades de serviços especializados, inclusive de nívelsuperior. Verificou-se a existência de vários serviços de-mandados pelas indústrias – realizados no interior dasempresas ou contratados fora – que envolvem ocupaçõesdesse nível de qualificação.

Nos serviços pessoais também aumentaram as inserçõesmais flexíveis (ou não regulamentadas) no setor privado:tanto os ocupados sem carteira assinada quanto os autôno-mos que trabalham para empresa mais que duplicaram nessadécada, muito embora apenas neste segmento tenha cres-cido o emprego assalariado com carteira assinada. Nosserviços pessoais, as ocupações requerem, em grande par-

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te, nível de escolaridade básico ou inferior. Destacam-seos serviços domésticos que, em 1999, representavam cer-ca de 9% da PEA metropolitana, encabeçando a lista dasocupações que mais cresceram nessa década – com incre-mento de aproximadamente 48% desde 1988.

Cabe salientar a predominância, na RMSP (como tam-bém na Região Metropolitana do Rio de Janeiro – as duasmaiores áreas metropolitanas do Brasil), de ocupações denível básico, sem qualificação, com as menores remune-rações e crescente precarização da posição na ocupação.Em termos absolutos, as ocupações que mais cresceramnessas duas regiões são: serviço doméstico, vigilância pri-vada, atendente de serviços, atendente balconista, moto-rista, entre outras. Por outro lado, as ocupações que maisdiminuíram na RMSP pertencem à indústria de transfor-mação e resultam do impacto da introdução das novas tec-nologias nos processos de trabalho dos diversos setoresindustriais.

Na RMSP, a exemplo do que aconteceu em outros paí-ses industrializados, as transformações na estrutura ocu-pacional ocorrem com a manutenção de uma estruturaprodutiva densamente industrial: a indústria continuava arepresentar, em 1999, ¼ dos empregos da região.

A relação entre a proporção de empregos em serviçose na indústria de transformação, na RMSP, cresceu abai-xo daquela verificada para a PEA urbana do Brasil e dasdemais regiões metropolitanas. Observou-se, para as ou-tras regiões metropolitanas brasileiras e para alguns paí-ses desenvolvidos, um movimento geral de terciarizaçãodas estruturas ocupacionais, com defasagens temporaisdeterminadas, entre outros aspectos, pelos períodos emque se processaram as reestruturações tecnológicas nasdiferentes regiões/países. No Brasil e nas suas regiões me-tropolitanas, os movimentos de terciarização surgiram commaior intensidade na década de 90.

IMPACTOS SOCIAIS DAREESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA

A dinâmica econômica derivada desta reestruturaçãotecnoprodutiva produz impactos sociais com graves im-plicações para a RMSP. Associada à péssima distribui-ção de renda do país, a deterioração das condições de aces-so ao mercado de trabalho mostrou-se mais desfavorávelaos mais pobres.

São inúmeros os determinantes da situação de carên-cia social na RMSP: desde as condições históricas de re-produção da pobreza e da exclusão social, até o descaso

das políticas públicas pela melhoria das condições de vidada população, assim como a restrita incorporação de pes-soas ao mercado de trabalho em condições não-precáriasde emprego e renda.

No final da década de 90, cresceram as dificuldadesdevido à queda do nível da atividade econômica, reper-cutindo diretamente nos estratos mais pobres da popula-ção, em especial daquela residente nas regiões metropoli-tanas. A proporção dos pobres na RMSP apresentoutrajetória acelerada de crescimento: evoluiu de aproxima-damente 27%, em 1995, para 30%, em 1997, chegandopróximo a 39%, em 1999, um aumento de 45% em apenasquatro anos.

Tem-se a formação, segundo Rocha (2000), de “umamplo contingente de pobres estruturais, dentre os quaisse incluem – em função dos baixos rendimentos na baseda distribuição – mesmo aqueles que participam normal-mente no mercado de trabalho”. A autora exemplifica estasituação com a RMSP, onde, com o salário mínimo deR$151,00 e a linha de pobreza per capita mensal estima-da para a região na ordem de R$167,00 (set. 1999), umindivíduo que receba dois salários mínimos e tenha umfilho estará situado abaixo da linha de pobreza.

Enquanto a proporção dos pobres metropolitanos crescenessa velocidade, no Nordeste rural, por exemplo, a po-breza apresenta leve redução e no total da população ru-ral brasileira mantém-se estabilizada em torno de 34%,nesse mesmo período (Rocha, 2000:anexo 2). Diferente-mente do passado recente, o crescimento do número depobres ocorre no coração econômico do país – na RMSP– e, como sempre, está associado à falta de emprego e deboas oportunidades de inserção no mercado de trabalho.Ou seja, o crescimento da pobreza na RMSP não é maisresultado da “urbanização da pobreza rural” a que se re-feria Rangel (2000), nos anos 70 e 80, mas sim uma con-seqüência da própria reestruturação produtiva ocorrida naregião nos anos 90.

Soma-se a essas condições a postura defensiva adota-da pelas empresas em suas decisões de investimentos, que,de acordo com Coutinho (1996:60), leva a dois riscos:- desagregação social das áreas metropolitanas, causadapela concentração de “efeitos perversos (...) com a crisedo velho padrão industrial; convivência restrita com no-vas funções e atividades de elevada qualificação e renda;rescaldo da mobilidade descendente, decorrente das ati-vidades industriais e funções obsoletizadas pela mudançatecnológica; e

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- exclusão de áreas periféricas, não dotadas de infra-es-trutura e de população com grau satisfatório de educação,tornando renitentes os bolsões de miséria em função dadificuldade de articular ‘externalidades’ positivas paraatração de investimentos”.

A RMSP apresenta características dessa ordem, pois,do ponto de vista urbano, é composta por espaços muitodiferenciados e conflituosos: reúne, no seu interior, mu-nicípios pobres ou mesmo miseráveis – dormitórios detrabalhadores pobres com famílias carentes e, pior, admi-nistrados por prefeituras igualmente pobres e carentes,sujeitas às condições de regressividade do sistema tribu-tário vigente no país – e municípios ricos, os mais indus-trializados do país, com rendas per capita que se asseme-lham aos padrões dos países desenvolvidos, administradospor prefeituras igualmente bem posicionadas em face dasdemais.

Em ambos os casos, as administrações encontram-seimpotentes para solucionar problemas da envergadura dosque se apresentam com as mutações em curso no aparatoprodutivo da região.

Como se observou, o desenvolvimento da RMSP, nasúltimas décadas, parece resultar dessa desarticulação dasrelações entre determinantes políticos, econômicos eterritoriais. As ações nessas esferas nem sempre são con-vergentes, o que imprime à região uma trajetória e umaresultante que parecem difusas, pois a complexidadeaprofunda-se e o grau de dispersão de possibilidades po-tencializa-se – com graves conseqüências para o futuro.

IMPACTOS ESPACIAIS DAREESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA

A dinâmica territorial derivada da reestruturação tec-nológica vem se caracterizando por um profundo movi-mento de reconcentração-desconcentração produtiva apartir da Região Metropolitana de São Paulo e está asso-ciada à indústria e aos serviços de suporte estratégico aoprocesso de produção e à gestão empresarial.

No Estado de São Paulo, os efeitos da reestruturaçãoprodutiva produziram dinâmicas espaciais realimentadorasde processos de concentração, aprofundando os nexoseconômicos entre a RMSP e seu entorno.

As principais regiões industrializadas do Estado de SãoPaulo (com exceção das agroindustriais e do couro) e asdensamente urbanizadas – formando áreas metropolitanas,como Campinas, ou grandes aglomerações urbanas, comoSão José dos Campos – intensificaram sua produção in-

dustrial nas duas últimas décadas e passaram a se relacio-nar com a RMSP através de intercâmbios rotineiros deprodução e trabalho.

Esta ampla região, interligada por redes de autopistase de cabos de fibra ótica (em quase toda sua extensão),possui o maior complexo de produção de ciência e tecno-logia do país, concentrando quase toda a produção dasempresas intensivas em ciência do Estado (96% do VA,segundo a Paep 1996).

Ao serem agregadas à RMSP as iniciativas de investi-mento das empresas em novas plantas industriais capta-das pela Paep nas regiões de Campinas, São José dosCampos, Sorocaba e Santos, fica evidente o caráterconcentrador das ações empresariais no espaço estadual.

As unidades locais novas, instaladas no período 1990-96, seja em número de unidades (78% das ULs), seja emvalor adicionado (90% do VA), encontram-se, em maiorproporção, nessas regiões.

Entre 1994 e 1996, cerca de 3.062 unidades locais si-tuadas no entorno metropolitano ampliaram a capacidadeprodutiva, representando cerca de 27% das unidades queafirmaram à Paep ter realizado tal investimento no Esta-do. Somadas às da RMSP, elas representam cerca de 80%desse universo.

A estrutura industrial do conjunto das regiões que con-figuram o entorno da RMSP apresenta elevado grau deintegração técnica e funcional com esta. Pode-se afirmarque, nessa porção do território paulista, encontra-se emcurso um extenso processo de metropolização, integran-do aglomerações urbanas metropolitanas (São Paulo, Cam-pinas e Santos) e não-metropolitanas (São José dos Cam-pos e Sorocaba) em uma grande área socioeconômica.

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IMPLICAÇÕES DERIVADAS DAREESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA

A transformação estrutural ocorrida na RMSP no finaldo século XX tem implicações contraditórias para a ges-tão metropolitana. A reestruturação tecnoprodutiva acar-retou mudanças no papel estratégico que a região passoua assumir.

A RMSP adquire – pelo alto grau de concentração dasatividades relacionadas à gestão e ao comando empresa-rial, financeiro e produtivo-tecnológico – condições paradifundir, para o restante dos centros urbanos e metrópo-les nacionais, os novos paradigmas produtivos e as deci-sões econômicas, financeiras e empresariais engendradasa partir dela. Além disso, adquire condições para articu-

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lar interesses internos e externos no sentido de galgarposições superiores em seu desenvolvimento econômicoe social.

Como decorrência dessas transformações, impõe-seuma nova agenda para a gestão pública e para o planeja-mento regional, tendo em vista o complexo desafio im-posto à RMSP: ter que ser, a um só tempo, competitiva eintegradora.8

As transformações estruturais em curso vêm agregan-do à RMSP melhores condições de competitividade.Nela, o novo paradigma da produção industrial parece,em alguma medida, estar se realizando, ao menos noâmbito das grandes empresas, onde se concentram asatividades inovadoras, a utilização de redes entre clien-tes e fornecedores e as tecnologias de informação e decomunicação.

A transformação estrutural da região metropolitana e areestruturação tecnoprodutiva convergem no sentido derequalificar a natureza da polarização exercida pela re-gião. A transformação estrutural direcionada ao setor ser-viços significou, por um lado, a concentração de ativida-des cada vez mais articuladas com os fluxos comerciais,financeiros, tecnológicos e de informação e, por outro, aruptura da dinâmica do mercado de trabalho.

A densidade de fluxos de decisão, de conhecimento ede informação faz com que, na RMSP, localizem-se asprincipais empresas do país. A possibilidade de seremdesenvolvidas redes complexas de relações produtivas ecomerciais determina, em última instância, a competitivi-dade da região, ao mesmo tempo em que amplia sua cen-tralidade neste novo estágio do desenvolvimento capita-lista. A RMSP passa a ser alvo do interesse nacional (einternacional) e, ao mesmo tempo, sua sustentabilidadedeve provir de articulações público-privada.

Outro grande desafio que as transformações estruturaiscolocam para a RMSP é o de ser integradora, ou seja, dese constituir no local onde os pontos-chave do processode produção e de comando realizam-se e onde os setoresintermediários da economia e a população urbana operamo seu cotidiano.

Esta é a grande questão a ser enfrentada pela gestãometropolitana. Se, por um lado, a RMSP transforma-seem local estratégico à gestão das atividades financeiras,comerciais e de produção industrial de âmbito nacional ede importância internacional – tal como as grandes aglo-merações urbanas mundiais, particularmente as de cará-ter metropolitano –, por outro, necessita ser capaz de in-tegrar a população no cotidiano da produção.

Traço fundamental de diferenciação entre a RMSP eas metrópoles das economias desenvolvidas encontra-se na trajetória contraditória e na ampliação da hetero-geneidade, com sinais que implicariam um processo depolarização da estrutura ocupacional regional qualita-tivamente diverso daquelas. Na RMSP, a trajetória deampliação das ocupações no setor serviços tende a sedar em duas extremidades (serviços ligados à produ-ção/especializados, em uma ponta, e serviços pessoaissem qualificação/emprego doméstico, na outra), assimcomo no crescimento relativo do assalariamento nasocupações mais tradicionais e na precarização das rela-ções de trabalho nos segmentos de serviços vinculadosao processo mais dinâmico de produção. A rapidez comque a desregulamentação das relações de trabalho nossegmentos mais dinâmicos do setor serviços tem acon-tecido na RMSP sinaliza para a necessidade, urgente,de novas formas de regulação, em substituição ao laissezfaire vigente, ou à predominância do livre jogo do mer-cado. Isto porque, se for considerada a hipótese de queesta mudança é derivada, em grande medida, do pro-cesso de reestruturação tecnológica e que sua transfor-mação tem caráter estrutural, estar-se-á diante de ques-tões de alto significado para o desenvolvimento futuroda sociabilidade e da natureza integradora da RMSP.

Essas questões remetem a impactos de natureza cultu-ral e antropológica acerca do significado do trabalho e dasua representação simbólica para o desenvolvimento dosindivíduos e das relações sociais, inclusive familiares. Asnoções de futuro, de segurança e de projeto de vida en-tram em uma zona cinzenta, em que a desintegração e adesarticulação de laços afetivos e sociais tendem a cres-cer e as certezas encontram-se abaladas, prevalecendo ainsegurança.

O impacto desta apreensão no cotidiano da popula-ção pode significar a fragilização de valores, até entãoessenciais nas estratégias de sobrevivência da maioriada população metropolitana – tais como a solidariedadee a cooperação.

A insegurança sobre o presente e o futuro tem outroscomponentes, como, por exemplo, a violência urbana, abaixa qualidade e o difícil acesso aos serviços sociais, afalta de garantia de inserção dos jovens e dos “excluídos”ao mundo do trabalho, etc., que possibilitam a poten-cialização de conflitos urbanos, sociais e entre indivíduose classes sociais na RMSP.

Enfim, a definição de novas regras para as relações en-tre os sujeitos do mundo do trabalho parece essencial para

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REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA E TRANSFORMAÇÕES ECONÔMICAS: REGIÃO...

se gerar nova sociabilidade com graus crescentes de soli-dariedade, participação e cidadania.

Da mesma forma, um tecido produtivo baseado emcooperação, conhecimento e inovação deve ser incenti-vado, visando ampliar a competitividade e a atratividadeda região.

Como contraposição às tendências assinaladas, tambémé indispensável a definição de novos formatos institucio-nais de gestão pública para a RMSP, construindo-se no-vos parâmetros para o desenvolvimento futuro da grandemetrópole brasileira – a RMSP.

Em síntese, o que é mais significativo e resultante dastransformações estruturais da RMSP corresponde ao seupapel polarizador na produção e na oferta dos serviçosprodutivos modernos do país, à situação enquanto centrodo sistema financeiro nacional e sede dos principais gru-pos e grandes empresas nacionais e estrangeiras, bem comoà sua permanência como principal pólo industrial do país.

Assim, está colocado o debate acerca das contradiçõese dos novos ingredientes que, a partir das transformaçõesestruturais e da reestruturação tecnoprodutiva, incorpo-raram-se de forma definitiva ao desenvolvimento daRMSP, conferindo-lhe uma nova centralidade.

Talvez uma metáfora ajude no entendimento do que sepode denominar “a nova centralidade” da Região Metro-politana de São Paulo.

Antes, a RMSP era conhecida como o “coração dopaís”, porque aqui se concentrava a maior parte da suaprodução industrial que, ao demandar matérias-primas efornecer insumos e produtos finais, irrigava as economiasde outras regiões através das estradas e ferrovias que par-tiam da metrópole paulista. Hoje, o coração permanecepulsante e irrigando economias das mais distantes regiõesdo país através dessas mesmas artérias cada vez maisentupidas, antecipando um colapso iminente.

Porém, agora são as decisões tomadas nas sedes dasgrandes empresas industriais e financeiras localizadas naRMSP que movimentam as demais economias regionais.É nas sedes dessas grandes empresas que se tomam asdecisões fundamentais de investir ou não, transferir plan-tas ou parte delas, desativar linhas de produção, inovar,etc. e que trafegam através de infovias que conectam re-des informatizadas de transmissão de dados.

Literalmente, e para concluir, pode-se dizer que a RMSPtornou-se a cabeça de um novo e complexo sistema derelações produtivas e financeiras assentado nas grandesempresas e suas redes de fornecedores e distribuidores,que aqui têm os seus centros “pensantes” de decisão.

NOTAS

E-mail da autora: [email protected]

Este artigo é um resumo do capítulo de conclusões da tese de doutoramento daautora (Araujo, 2001), defendida junto ao Instituto de Economia da Unicamp,sob a orientação do Prof. Dr. José Graziano da Silva. Agradeço a Vagner Bessa aleitura atenta da versão anterior deste texto.

1. Recente estudo realizado sobre a nova configuração da rede urbana brasileiralocaliza a RMSP no topo da hierarquia urbana brasileira, qualificando sua centra-lidade. Ver: Ipea/IBGE/Unicamp (1999).2. Para uma síntese histórica da formação da RMSP, ver: Araujo (1992a:17-51);Araujo e Pacheco (1992:55-92).

3. Segundo Sassen (1998 e 1999), a expressão “consolidação nacional” significao processo em que um centro urbano ou metropolitano passa a prevalecer sobreoutros do mesmo país de forma inequívoca. A autora utiliza essa expressão paraqualificar a supremacia de um centro financeiro sobre outros em um determinadopaís, ex: Londres, Nova Iorque, São Paulo, entre outros.

4. Segundo Benko e Lipietz (1992) “(...) para estar em el centro de la informaciónno es suficiente consultar un terminal de ordenador, es necesario estar allí dondeestan los demás, es preciso comer juntos, intercambiar o sonsocar confidencias,es decir, bañarse en una atmósfera, la palavra clave de la concepción marshallianadel distrito. La telemática no há suplantado aún el cara a cara.” Ver também, aesse respeito, Diniz e Gonçalves (2000).

5. O conceito de empresa inovadora aqui utilizado, tal como na Paep, acompanhaa metodologia de estudo sobre inovação tecnológica adotada pela Organizaçãopara Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). A Paep considerouinovadora a empresa que, no período de 1994 a 1996, desenvolveu algum tipo detransformação tecnológica, seja nos produtos, seja nos processos de produção. Ainovação de produto pode estar relacionada à elaboração de um produto com ca-racterísticas inteiramente novas (inovação significativa) ou a ligeiras modifica-ções realizadas em produto já existente (inovação incremental). Por sua vez, ainovação de processos corresponde à adoção de uma nova forma de produzir que,efetivamente, promova mudanças no desenvolvimento do processo produtivo,através da introdução e uso de máquinas e equipamentos mais automatizados e/ou de novos métodos de organização do trabalho.

6. Entende-se por inovação de natureza incremental o substancial aperfeiçoamentotecnológico de produto previamente existente. Um produto tecnologicamente aper-feiçoado é um produto preexistente, cuja performance tenha sido substancialmentemelhorada ou avançada. Um produto simples pode ser aperfeiçoado (em termosde melhor desempenho ou custo menor) através do uso de componentes ou maté-rias-primas de melhor desempenho, enquanto um produto complexo, que consistena integração de um número de subsistemas técnicos, pode ser aperfeiçoado atra-vés de mudanças parciais em um dos subsistemas.

7. Ver análise sobre o “Desempenho Inovador da Indústria Paulista” em Quadroset alii (2001).8. A respeito da necessidade de superação da contradição entre competitividadeeconômica e integração social como requisito para melhorar a qualidade de vidanas cidades globais, ver Borja e Castells (1996).

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SÃO PAULO: O CALEIDOSCÓPIO URBANO

S

SÃO PAULOo caleidoscópio urbano

SUZANA P. TASCHNER

Professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USPLUCIA M. M. BÓGUS

Professora do Departamento de Sociologia e do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP

Resumo: As contradições no desenvolvimento urbano pós-industrial, sobretudo em metrópoles do chamadoTerceiro Mundo numa economia globalizada, acentuam velhas desigualdades sociais e abrem as portas paranovas especializações, tanto entre as camadas ricas como entre as pobres. O presente trabalho apresenta umaprimeira visão da segregação socioespacial. A estrutura intra-urbana do Município de São Paulo concentrasuas camadas mais ricas nos anéis mais centrais, deixando que a pobreza domine a periferia. É o retrato deuma metrópole excludente, sem urbanidade, um tecido urbano em que se percebem enclaves de riqueza e depobreza, no meio de uma malha indistinta, tecido fragmentado, verdadeira colcha de retalhos.Palavras-chave: metropolização; segregação socioespacial; dinâmica intra-urbana.

ão Paulo é uma cidade profundamente marcada peladesigualdade social. Vivem hoje na sede da RegiãoMetropolitana Paulista aproximadamente dez mi-

ços têm sido, entretanto, objeto de discussão, pois as em-presas que “migraram” continuaram mantendo com a re-gião metropolitana os mais íntimos nexos em termos degestão, uma vez que nessa área permaneceram seus cen-tros de decisão e de planejamento (Seade, 1999). Quandoemigravam, eram apenas as plantas produtoras que se des-locavam. Tinha-se a impressão de que a atividade indus-trial passava por extenso e profundo esvaziamento, acom-panhada de altos índices de desemprego e de precarizaçãodas condições de trabalho. Observou-se, no entanto, quenem todo desemprego industrial verificado na década eradecorrente de uma diminuição dessa atividade na região,mas de sua modernização e de seu fortalecimento.

Assim, enquanto o interior e outras regiões recebiamnovos investimentos, a região metropolitana reciclava asua competitividade, com a reestruturação das plantas jáinstaladas e a introdução de novos métodos de gestão.

Segundo dados de 1996 da Paep – Pesquisa da Ativi-dade Econômica Paulista da Fundação Seade (1999), a re-gião metropolitana responde por 60,4% do valor adicio-nado industrial do Estado, 56,8% do pessoal ocupado e56,9% das unidades locais de natureza industrial. Indica-dores semelhantes atestam igual comportamento para ocomércio: 51,6% do valor adicionado, 50,5% do pessoalocupado, correspondendo a 40,5% das unidades locais.

Ao longo desse conjunto de transformações, proces-sos múltiplos de reengenharia, reestruturação organizacio-

lhões de pessoas, que se somam a cerca de outras setemilhões nos demais 38 municípios de sua Região Metro-politana. Grande parte de seus habitantes vive segregadanas periferias e regiões deterioradas, evidenciando umageografia de exclusão.

A evolução do crescimento populacional na RegiãoMetropolitana de São Paulo acompanhou, historicamen-te, seu desempenho econômico. Desde o final do séculoXIX com o auge da produção cafeeira, passando pela dé-cada de 50 com a implantação da indústria automobilísti-ca, até os anos 70, quando a região concentrou grande parteda atividade econômica nacional: em 1970 a RMSP res-pondia por 42,2% do valor da transformação industrialnacional e 74,6% do total estadual, de acordo com dadosdo Censo Econômico da Fundação IBGE.

A partir da década de 80, com a redemocratização polí-tica do país, expansão dos meios de comunicação e fortale-cimento das instituições, acentua-se um processo de des-centralização regional já iniciado na década anterior, queatinge todo seu apogeu nos anos 90 com a abertura e a des-regulamentação da economia, impulsionando os processosde globalização e reestruturação produtiva das empresas.

A desconcentração da atividade industrial, rumo aointerior do Estado e outras regiões, o comércio e os servi-

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nal e da produção foram desenvolvidos pela grande maioriadas empresas, o que implicou grandes cortes de pessoal.Quanto aos processos de reestruturação organizacional eda produção, a estratégia mais adotada, alcançando 64,2%das empresas, foi a introdução de novos métodos de or-ganização do trabalho. Grande parte do contingente de tra-balhadores foi terceirizada e, assim sendo, o emprego in-dustrial sofreu queda acentuada. A redução dos empregosnão foi acompanhada por redução efetiva da atividadeindustrial em escala equivalente. Houve ganhos de pro-dutividade e competitividade, mas a perda de meio mi-lhão de empregos no setor em curtíssimo prazo ocasio-nou grave seqüela social.

Nesse contexto, avançou a internacionalização do con-trole patrimonial da indústria paulista, bem como suasdiversidade e complexidade. Alargou-se a base industriale modernizaram-se as empresas dos ramos e gêneros emque o Estado já contava com vantagens competitivas im-portantes.

A Região Metropolitana reaparece, então, com toda suaforça econômica e em pleno processo de reestruturaçãodos principais segmentos produtivos. Concentra o esfor-ço inovador da indústria e do comércio estadual, assimcomo amplia a heterogeneidade técnica e funcional de suaestrutura de produção. São Paulo ainda permanece na dian-teira da economia, apesar da descentralização de investi-mentos: dos 311 maiores conglomerados brasileiros, 90estão em solo paulista (Gazeta Mercantil, 2000).

Se, por um lado, a região reage com maior agilidade àsmudanças econômicas, modernizando-se rapidamente esendo o alvo dos investimentos externos, por outro, sofreos efeitos perversos do processo em vigor com o aumentodo desemprego, da exclusão social e da violência urbana.Mantém-se uma estrutura dual na metrópole: regiões comcompleta infra-estrutura pública convivem com áreas des-providas de serviços básicos; salários altíssimos se con-trapõem a uma imensa massa de desempregados de baixaqualificação; prédios luxuosos convivem com favelas.

As transformações urbanas observadas em anos recen-tes, na Região Metropolitana de São Paulo, podem serconsideradas uma decorrência de políticas econômicasglobais, as quais, afetando o desempenho da economia eas condições socioeconômicas da população, têm interfe-rido, direta ou indiretamente, na conformação física e nopapel das cidades.

Como um dos principais impactos físicos na estruturaurbana, registra-se um aumento no “fosso” existente en-tre áreas onde as atividades denominadas “globais” têm

se instalado e as áreas periféricas. Outra característica deSão Paulo é o deslocamento do “centro” de atividades mo-dernas para novas áreas, associado a um processo degentrification, que vem ocorrendo nos últimos 30 anos.Esses processos que ocorrem nas áreas modernizadas sãoresultado da intervenção do capital privado associada aosinvestimentos públicos em infra-estrutura.

A DIVISÃO ESPACIAL DE UMA METRÓPOLEPÓS-INDUSTRIAL DE PERIFERIA

Divisões espaciais na cidade não são fato novo. Histo-ricamente, tanto as cidades do mundo antigo clássico,quanto as cidades medievais e as do mercantilismo sãosegmentadas espacialmente. Engels descreveu com apuroas condições de vida da burguesia e da classe operária emManchester. Quais seriam as mudanças atuais?

A hipótese da global city (Sassen, 1991; Mollenkopf eCastells, 1992; entre outros) indica que as transformaçõesdo papel das cidades no mundo atual, que mudam a ativi-dade econômica de industrial para serviços, levariam a umaestrutura social bimodal, tanto na estrutura de empregoscomo na renda. O mercado de trabalho seria caracteriza-do por uma mistura de empregos com remuneração alta ebem qualificados, ao lado de empregos muito mal-remu-nerados e de baixa qualificação. A essas mudanças na es-trutura de emprego corresponderia uma “nova ordem es-pacial”, também dual.

Essa hipótese tem sido contestada por estudos recen-tes (Preteceille, 1994) que afirmam estar crescendo a de-sigualdade de renda na cidade, mas sem a tão famosabipolarização exposta pelos autores citados. Preteceille(1994, apud Véras, 2000:18) coloca que “o conceito deglobalização, indispensável para a compreensão das trans-formações nas grandes metrópoles, não é capaz de expli-car tudo, podendo ser um fracasso como paradigma teóri-co”. Esse autor indica duas visões das tendências atuaisda economia: uma que focaliza a produção industrial eoutra, a pós-industrial, a da chamada “revolução infor-macional”. A primeira resultou em crise do fordismo, in-dustrialização de algumas regiões e desindustrialização deoutras na nova organização global da produção com no-vas técnicas produtivas. A segunda, com ênfase no terciá-rio superior, sublinha o conjunto capital financeiro/servi-ços/tecnologia ligado à circulação e ao trabalho.

De acordo com o paradigma da cidade global, algunsatributos seriam comuns em distintos países: desempregocrescente, polarização social, violência, de um lado; base

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de operações do capital financeiro, indústrias sofistica-das tecnologicamente, empresas transnacionais, rede detelecomunicações eficiente, de outro.

No modelo da global city a estrutura socioespacial dacidade industrial estaria sendo substituída pela polariza-ção entre segmentos pobres e ricos. Como coloca QueirozRibeiro (2000:16), “o ovo é substituído pela ampulhetacom metáfora da nova estrutura espacial, o que se expres-sa na existência de um grande contingente de trabalhado-res dos serviços de pouca qualificação e baixa remunera-ção e de desempregados vivendo de “viração”, e de umpequeno segmento constituído pelos novos profissionaisda economia de serviços e da financeira (corretores, ad-vogados, analistas de sistemas, especialistas em marketing,etc.), altamente qualificados e muito bem remunerados”.Isso resultaria no desaparecimento da antiga classe ope-rária e na reconfiguração das classes médias, dualizandoa estrutura social e aumentando a distância entre seus pó-los superiores e inferiores. Desenha-se uma nova geogra-fia de centralidade e marginalidade. Segundo Sassen(1998), “centros urbanos de cidades globais e centros denegócios metropolitanos recebem aportes maciços em in-vestimentos imobiliários e telecomunicações, enquantooutras áreas da cidade estão famintas por recursos; traba-lhadores altamente qualificados empregados em setoresde ponta vêem seus salários subirem para níveis nuncaantes alcançados, enquanto operários com qualificação me-diana ou baixa nos mesmos setores percebem seus ganhosafundarem. Serviços financeiros produzem sobrelucros,enquanto serviços industriais apenas sobrevivem. Essastendências são evidentes, com distintos graus de intensi-dade, em grande número das cidades mais importantes nomundo desenvolvido e em número crescente de cidadesnos países em desenvolvimento que integram a economiaglobal”.

Gilbert (1998) admite sua incerteza no uso de concei-tos como cidade mundial e megacidade analisando aAmérica Latina. “O que é globalização e que implicaçõesteria para a vida nas maiores cidades da América Lati-na?”. Segundo esse autor, “a única generalização que podeser feita é que a globalização levaria a maior desigualda-de e instabilidade. As cidades latino-americanas estão fi-cando mais desiguais e mais instáveis. Ambos os proces-sos estão ocorrendo porque essas cidades estão agorafirmemente ligadas a uma economia mundial desigual evolátil” (Gilbert, 1998:174). Para Gilbert (1998:193), aidéia de polarização de Sassen, compartilhada porFriedmann (1986), em que “o fato social primário da ci-

dade mundial é a polarização das suas divisões de clas-se”, pode ser discutida para as cidades do mundo desen-volvido, onde essa polarização não parece ser inevitável.“Mas, nas cidades da América Latina, parece não restardúvida: o novo modelo econômico está acentuando osníveis preexistentes de desigualdade”.

No âmbito desse debate, Marcuse (1996), baseado emseus estudos sobre Nova York, propõe o conceito de “ci-dade fragmentada” (quartered cities), destacando nas áreasresidenciais espaços correspondentes a moradias de alto-padrão, à cidade renovada e remodelada (local dosyuppies), à cidade suburbana (reduto tradicional da clas-se média), à cidade de aluguel (locus dos cortiços e daspequenas unidades de locação) e à cidade abandonada (lo-cal dos excluídos, dos sem-teto, da pobreza mais aguda).

No âmbito das discussões apontadas e tendo em vista acompreensão dos processos de distribuição socioespacialda população ao longo das duas últimas décadas, a pes-quisa “Metrópole, Desigualdades Socioespaciais eGovernança Urbana: Rio de Janeiro, São Paulo e BeloHorizonte”,1 dentro da qual esse trabalho se inscreve, pro-pôs-se a analisar, de forma comparativa, o “comportamentoocupacional” da população nas regiões mencionadas, apartir das categorias socioocupacionais, construídas combase nos Censos Demográficos de 1980, 1991 e nos da-dos das PNADs de 1985, 1995 e 1997.

Embora flutuações dos dados das PNADs devam serconsideradas, focando-se nas informações dos Censos de1980 e 1991, destaca-se a diminuição relativa do proleta-riado industrial, acompanhando o fenômeno de moderni-zação e exportação das plantas industriais. O chamadosubproletariado tem aumento grande e constante (58%),chegando, pelos dados de 1997, a representar 14% dopessoal ocupado. Foi a categoria que acusou maior au-mento nos 17 anos estudados (1980 a 1997).

O proletariado terciário aumentou 21%, confirmandoo senso comum que coloca a metrópole como centro ter-ciário por excelência.

A hipótese da dualização da estrutura não é amparadana análise dos dados sobre a elite dirigente intelectual:ela chega a aumentar entre 1980 e 1991 (30%), mas asinformações de 1995 e 1997 desmentem esse aumento;em 1997 teria havido uma perda relativa de quase 20% nacategoria. De outro lado, a elite dirigente se mostra está-vel entre 1980 e 1991 e cresce 20% entre 1980 e 1997.Não se pode falar em grande crescimento das elites noperíodo. Um trabalho de Queiroz Ribeiro indica dadosmuito distintos para o Grande Rio, onde a elite intelectual

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apresentou forte crescimento e a dirigente teve reduçãorelativa e absoluta (Queiroz Ribeiro, 2000:75).

Pode-se falar, entretanto, em crescimento da pequenaburguesia, que teve aumento relativo de 34% no período1980-97. Esse crescimento atesta a presença do pequenocomércio e dos pequenos empreendimentos como ocupa-ção-refúgio perante o desemprego dos últimos anos.

A chamada classe média – empregados de escritório,supervisão, técnicos, artistas, de educação e justiça, cor-reios e segurança – manteve-se relativamente estável en-tre 1980 e 1991, mas decresceu fortemente até 1997(-27% entre 1980 e 1997). Assim, os dados parecem con-firmar o aumento do subproletariado e a diminuição doproletariado industrial e sua substituição pelo terciário,além de aumento da chamada pequena burguesia. Nãoparece ter acontecido forte aumento das camadas su-periores.

A quais espaços corresponderiam essas mudançassocioocupacionais?

OBJETIVOS

O presente texto é resultante de uma análise específicapara o Município de São Paulo. É intenção do trabalhoanalisar as transformações da estrutura social espacializadanas duas últimas décadas. Como material de investigação,foram usados dados dos chefes de família do Censo De-mográfico de 1991 relativos a sexo, grupo etário, cor,educação, renda e categoria socioocupacional (QueirozRibeiro, 2000) e dados da população total por sexo e ida-de dos Censos de 1960, 1970, 1980, 1991 e da ContagemPopulacional de 1996. Em relação à qualidade do hábitat,analisaram-se variáveis de domicílio e condições de infra-estrutura sanitária, por tabulações especiais do boletim daamostra do Censo 1991. São espacializadas algumas va-riáveis sociodemográficas, visando mostrar ainda que, demaneira preliminar, certas características da estruturasocioespacial e da sua dinâmica temporal.

A análise se dará por anéis do tecido urbano. Foram se-lecionados cinco anéis – central, interior, intermediário,exterior e periférico. Esses anéis são resultado do agrupa-mento de distritos da capital, seguindo uma metodologiaproposta por Taschner, em 1997, primeiramente para aEmurb e retomada em publicação de 1990 (Taschner, 1990).Na construção desses anéis a variável privilegiada foi ademográfica. A utilização deste recorte espacial parodian-do os anéis de Burgess (1929) mostrou-se eficaz como re-curso explicativo. Mesmo análises mais sofisticadas feitas

no decorrer dessa pesquisa, pela construção de clusters poranálise fatorial em base georreferenciada, mostraram umalógica de ocupação da metrópole e da cidade de São Paulocom padrão em círculos concêntricos, em que a pobrezaespalha-se por uma periferia cinzenta e sem serviços, e ascamadas mais altas ocupam espaços mais bem servidos emais próximos do centro.

CRESCIMENTO DEMOGRÁFICO:MANUTENÇÃO DO PADRÃO PERIFÉRICODE CRESCIMENTO

O Município de São Paulo contém quase 60% da po-pulação da RMSP. Suas taxas de crescimento populacio-nal são ainda mais declinantes que as da Região Me-tropolitana: o ritmo de crescimento populacional domunicípio caiu de 3,76% na década de 70 para 0,40% noperíodo 1991-96 (Tabela 1). Seu saldo migratório é nega-tivo desde os anos 80, quando uma média de 69 mil pes-soas deixavam o município por ano. Na primeira metadeda década de 90 a saída populacional é estimada em 103mil moradores por ano (segundo dados da Fundação Seade,publicados no jornal Folha de S.Paulo, 08/03/1997: 3.1).

O deslocamento de moradores para o entorno da capi-tal é nítido. A região do Estado que mais cresceu nos últi-mos anos foi o cinturão de municípios da Grande SãoPaulo, com saldo migratório positivo de 440 mil morado-res. Guarulhos foi a cidade paulista que mais cresceu nosanos 90, com taxa anual de 4,31% e crescimento absolutode 185 mil pessoas, das quais 100 mil por crescimentomigratório. Aliado à periferização do crescimento popu-lacional na metrópole, o seu município central, apesar docrescimento mais reduzido, deve seu aumento de popula-ção também ao crescimento periférico.

O padrão de crescimento do Município de São Paulotem sido, a partir dos anos 40, de contínua expansão damancha urbana para a periferia. A essa periferia associa-se todo um quadro de carências, o lote próprio em lotea-mento irregular e a casa autoconstruída. Se, de um lado,há indícios que a autoconstrução não está aumentando emlotes próprios, ela aumenta fortemente em lotes invadi-dos. As favelas urbanas estão se periferizando, e o cresci-mento da cidade nos anos 90, embora pequeno, ocorrefundamentalmente na periferia. Mesmo a populaçãofavelada só apresenta taxas positivas entre 1991 e 1996para o anel periférico, onde a taxa anual de crescimentodos domicílios favelados nesse intervalo atingiu 3,06%(para todo o anel periférico, a taxa era de 2,48% anuais).

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SÃO PAULO: O CALEIDOSCÓPIO URBANO

A Tabela 1 mostra que as taxas geométricas anuais decrescimento populacional têm sido maiores no chamadoanel periférico, e embora menores em cada década, sãosempre maiores que as dos outros anéis. Na década de 70,um aumento da taxa do anel central levantou a hipótesede retorno da população pobre para o centro da cidade,por meio da moradia em cortiço. Na década de 80, entre-tanto, o retorno ao centro não aconteceu: as taxas de cres-cimento populacional dos três anéis mais próximos docentro histórico – central, interior e intermediário – mos-traram-se negativas. As taxas dos anéis exterior e perifé-rico, embora menores que nas décadas precedentes, sãopositivas. Nos anos 90 acentuou-se a periferização: entre1991 e 1996 todos os anéis, com exceção do periférico,apresentaram taxas negativas. Assim, a totalidade do cres-cimento municipal, de quase 200 mil pessoas entre 1991e 1996, foi devida ao aumento populacional na periferia.

O anel periférico foi responsável por 43% do incremen-to populacional nos anos 60, por 55% nos anos 70, por94% entre 1980 e 1991 e por 262% entre 1991 e 96. Oaumento de mais de 500 mil pessoas no anel periféricocompensou a perda de cerca de 312 mil nos outros anéis.A região entre as avenidas marginais perdeu quase 130mil residentes nos anos 80 e 230 mil nos seis primeirosanos da década de 90. De outro lado, a periferia ganhoucerca de 1,3 milhão entre 1980 e 1991 e quase 505 milentre 1991 e 1996. O número absoluto de novos morado-res de São Paulo tem diminuído: o aumento de populaçãoera de 2,5 milhões entre 1970 e 1980, reduzindo-se para1,13 milhão nos anos 80, cerca de 105 mil pessoas porano, e no início dos anos 90 diminui ainda mais, para 32,6mil pessoas por ano entre 1991-96. Mas esse incrementodeu-se exclusivamente na periferia.

ASPECTOS DA DEMOGRAFIA INTRA-URBANA

A população paulistana está envelhecendo: o percen-tual de jovens (0-14 anos) em 1970 representava 32,40%do total populacional; em 1980, 29,95%; em 1991, 28,58%e em 1996, 25,96% A outra face do mesmo fenômeno, apopulação idosa (60 anos e mais), aumentou o percentualentre 1970 e 1991, de 6,08% para 8,08%. Esse percentualsobe ainda em 1996, atingindo 8,63% da população total.

Percebe-se que tanto em 1970 como em 1980, 1991 eem 1996 a população jovem aumenta em direção à perife-ria: em 1970 o percentual de jovens no anel periférico eraquase três vezes maior que no anel central; em 1980, em-bora a porcentagem de jovens se mantenha elevada no anelperiférico, o diferencial entre os anéis central e periféricodiminui (2,4 vezes), diferença que ainda é menor em 1991(1,9 vezes). Em 1996 a diferença foi de 2,02 vezes. Atémesmo a periferia está envelhecendo: 4,60% da sua po-pulação em 1991 e 4,99% em 1996 tinha 60 anos e mais,enquanto nas décadas anteriores era apenas superior a 3%.

Em síntese, a distribuição das faixas etárias pelo teci-do urbano manteve-se semelhante nos três anos estuda-dos (1980, 1991 e 1996): anéis central e interior com pro-porção maior de população mais velha, anéis exterior eperiférico com percentuais maiores de população jovem.Esse é um padrão locacional de muitas cidades grandes,onde o preço da terra e da moradia obriga os casais emfase de expansão a morarem nas franjas urbanas.

A chefia feminina é mais presente nos anéis central einterior, e talvez pelo percentual mais elevado de idosos,e, portanto, maior presença de mulheres sós.

Ainda com referência à chefia do domicílio, 20,26%dos domicílios, em 1991, eram chefiados por mulheres,porcentagem maior que a da região metropolitana, de18,3% e só no anel central respondem por 35,7% das che-fias domiciliares.

No Município de São Paulo a proporção de chefesmulheres declina nitidamente do centro para a periferia.No anel interior, onde residem as famílias de renda maiselevada, a proporção de chefia feminina atinge 28,51%,maior que no anel periférico, onde se concentram as fa-mílias pobres. Não há, entretanto, a possibilidade de seestabelecer uma relação direta entre pobreza e chefia fe-minina.

A população de chefes é majoritariamente branca nomunicípio, 70,72% dos chefes (nos outros municípios daRMSP a proporção de brancos é de 65,68%). No anel in-terior, 87% dos chefes são brancos e 42,97% deles per-

TABELA 1

Taxas de Crescimento Populacional, segundo AnelMunicípio de São Paulo – 1960-1996

Anel 1960-70 1970-80 1980-91 1991-96

Total 4,79 3,67 1,16 0,40

Central 0,72 2,23 -0,91 -2,79

Interior 0,08 1,26 -1,14 -2,43

Intermediário 2,79 1,28 -0,68 -1,44

Exterior 5,52 3,13 0,86 -0,51

Periférico 12,90 7,42 3,09 2,48

Fonte: Fundação IBGE. Censos Demográficos de 1960,1970,1980, 1991 e Contagem Popula-cional de 1996.

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tencem a categorias socioocupacionais superiores (elitedirigente + pequena burguesia + nível superior). É tam-bém a parcela do tecido urbano que agrega o maior per-centual de chefes com alta escolaridade e renda com maisde 20 salários mínimos, e permite estabelecer uma rela-ção entre renda, raça, escolarização e local de residênciano espaço urbano.

O anel periférico é o que apresenta porcentagem maiorde chefes não-brancos (41,38%), muito superior às pro-porções dos outros anéis e à média do município. Nos anéisinterior e intermediário essas proporções eram de 12,64%e 16,90% em 1991.

Para a população total, o percentual de negros e par-dos em 1991 atingia quase 30% no Município de São Pau-lo, e crescia em direção à periferia, onde alcançava41,38%. A associação cor-pobreza-periferia afirma-se deforma clara, ainda mais quando é verificada a proporçãode negros e pardos nas favelas paulistanas em 1991 (53%da população favelada). Há fortes indícios da estigma-tização de contingentes populacionais que, ao residir emdeterminados locais, são discriminados por uma combi-nação de fatores de classe e etnorraciais (Wacquant, 1995).

“Toda grande cidade tem suas colônias raciais (...). Sãocidades dentro de cidades, cuja característica mais inte-ressante é a de serem compostas por pessoas da mesmaraça ou da mesma classe social” (Park apud Eufrásio,1995:53). Burgess (1929) estudou a expansão de gruposraciais e de imigrantes em Chicago por vetores, observandoque o deslocamento residencial de negros, italianos, ir-landeses, poloneses e escandinavos tinha especificidadeespacial. Willian Julius Wilson (1987), com seu livro se-minal The truly disadvantaged, estimulou um grande es-forço de pesquisa nos Estados Unidos para a investigaçãode extensão, causas e conseqüências da “guetificação” decertas minorias. Uma capa da revista Times em 1987 cu-nhou a expressão The america underclass, referindo-se àpopulação moradora dos distritos urbanos centrais, geral-mente negra e de baixa renda, apontada pela mídia comoselvagem, sem-lei e dependente do Welfare State.

No caso de São Paulo, a associação cor-pobreza-peri-feria parece nítida. Mesmo no anel interior, que concen-tra famílias com maior renda e escolaridade, os distritosmais pobres são os que apresentam maior proporção denão-brancos (Pari e Brás). Não se percebe no Municípiode São Paulo áreas segregadas como existiam (e aindaexistem) nos Estados Unidos. Mas os distritos com pre-sença significativa de não-brancos apresentam escolari-dade e renda mais baixas.

Quanto ao sexo, a cidade tinha mais mulheres que ho-mens, tanto em 1991 como em 1996. A proporção de ho-mens no total populacional diminuiu de 48,25% para47,97% entre 1991 e 1996. Essa preponderância do sexofeminino pode ser explicada tanto pela sobremortalidademasculina como por fluxos migratórios. Uma pesquisarecente que comparou migrantes com não-migrantes noEstado de São Paulo em 1993 (Patarra et alii, 1997) ob-servou que a razão de sexo entre os dois segmentos eraligeiramente distinta, com predomínio do sexo masculinoentre os migrantes (50,5% de homens) e do feminino en-tre os não-migrantes (51,4% de mulheres). Como o Mu-nicípio de São Paulo está com migração reduzida, tendoinclusive saldo migratório negativo desde a década de 90,o esperado seria que a proporção de mulheres estivesseaumentando, como de fato ocorreu.

O percentual de homens sobe em direção à periferia –locus de migrantes recentes. Em todos os anéis a propor-ção de homens supera a de mulheres, mas a diferença empontos percentuais entre os anéis central e periférico semantém nas duas datas estudadas. A maior proporção demulheres aparece, em 1991 e em 1996, no anel interior (ode maior renda), seguido pelo anel central.

A migração para o município decresce nos anos 90. Aproporção total de não-naturais de São Paulo no municí-pio é alta, 59,84% da população residente em 1991. Maso percentual de pessoas há menos de cinco anos no muni-cípio diminuiu muito entre 1991, quando alcançava26,60% dos migrantes, e 1996, em que houve uma redu-ção para 5,08%. As favelas surgem como local preferen-cial dos migrantes recentes: 27% dos migrantes faveladosestão em São Paulo há menos de cinco anos. O anel peri-férico, antes residência da migração interna, já não apre-senta essa característica: a proporção da população mi-grante recente no anel periférico em 1996 é menor que ade São Paulo.

ESPAÇO E CLASSES SOCIAIS

A literatura especializada aponta mudanças nas confi-gurações espaciais urbanas nas últimas décadas. O padrãode aglomeração em torno da concentração industrial (acu-mulação fordista) vem sendo afetado pelas grandes trans-formações econômicas. O impacto da reestruturação pro-dutiva, da financeirização global e da formação dosmegamercados se tem feito sentir sobre as cidades.

Segundo Sassen (1991), as grandes cidades do mundotêm se reestruturado como “cidades globais” em função

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da nova divisão internacional do trabalho, ou seja, sofrendoo impacto da chamada globalização – combinação de no-vas tecnologias, aumento do comércio e da mobilidade,concentração do poder econômico e financeiro e reduçãodo estado do bem-estar social. A hipótese central de Sassené a “existência de vínculo estrutural entre o tipo de trans-formação econômica característica dessa cidade e a in-tensificação de sua dualização social e urbana. (...) A re-estruturação econômica característica da cidade globaltambém contribui para a dualização – desta vez espacial– pelos mecanismos do mercado fundiário e imobiliário,uma vez que a concorrência entre os diversos usos possí-veis do espaço leva à apropriação cada vez mais exclusi-va dos espaços mais valorizados, procurados e bem-aten-didos, etc., pelas funções que forneçam o maior lucro ouque correspondam ao consumo de luxo.” (Preteceille,1994:66 e 78).

Dentro desse quadro, qual seria a dinâmica urbana dasgrandes cidades dos países em vias de desenvolvimento?Nos pólos urbanos do chamado Terceiro Mundo sempreexistiram contrastes fortes entre as elites locais e os po-bres marginalizados. São Paulo assiste a uma perda deemprego industrial, a uma redução do incremento demo-gráfico e a um menor crescimento do PIB por habitante.A pobreza visível aumentou com o crescimento de fave-lados e sem-teto.

De outro lado, os espaços socialmente mais polarizadoscorrespondem a 19,49% dos chefes (soma das categoriaselite + pequena burguesia + profissionais liberais) e a24,58% dos trabalhadores manuais e de sobrevivência. Es-sas categorias residem em áreas diferenciadas, numa paró-dia dos círculos de Burgess, Escola de Chicago às avessas,onde os ricos estão no centro e os pobres na periferia (Bettin,1982). São espaços que marcam profundamente a estruturaurbana. Mas cerca de 52% dos chefes residem sobretudonos interstícios do tecido urbano, de forma indistinta.

A distribuição de renda dos chefes no Município deSão Paulo mostra 6,32% na faixa superior (mais de 20salários mínimos) e pouco mais de 20% com renda atédois salários mínimos. Esses dados mostram uma polari-zação que resulta num espaço social específico: por exem-plo, embora a zona oeste do Município compreenda ape-nas 10,52% do total de chefes da capital, possui 29,35%dos chefes com renda superior a 20 salários mínimos,mostrando uma concentração da riqueza nessa área. O anelinterior, que compreende distritos como Jardim Paulista,Perdizes, Pinheiros e Vila Mariana, apresenta percentualde chefes com renda superior a 20 salários mínimos maior

que a de outros anéis (23,65% dos chefes), indicando umaacentuada tendência à segregação.

O percentual de chefes de domicílio com renda infe-rior a dois salários mínimos é menor no Município que naRMSP (20,06% versus 25,40%). A concentração da po-breza está na periferia: 40,57% dos chefes com renda deaté um salário mínimo moram no anel periférico, assimcomo 34% dos que se declararam sem renda.

No anel interior está concentrada a população mais rica,tanto a mediana como a média, e a moda da renda do che-fe foram as mais altas. Chama a atenção um anel em que arenda modal situa-se num patamar superior a 20 saláriosmínimos e mais de 50% dos chefes ganham mais de dezsalários. Estão nesse anel alguns dos distritos com pro-porção de chefes ricos bastante alta, como o Jardim Pau-lista, onde 42,19% dos chefes ganham mais de 20 salá-rios mínimos; Pinheiros, com 32,12%; e Vila Mariana, com27,59%. A pobreza aparece sobretudo nos distritos do Parie de Belém, com 9,22% e 7,49% dos chefes respectiva-mente ganhando até um salário mínimo. Nesses distritoso número de cortiços é elevado, o que constitui outro in-dicador de pobreza.

A periferia é o local da pobreza onde a renda médiadesce para 6,38 salários mínimos, a proporção de chefescom até um salário mínimo de renda mensal é de quase6%, e a de chefes com até dois salários mínimos alcança24%. Entre os 12 distritos com maior proporção de che-fes pobres no município, 9 estão na periferia leste (ItaimPaulista, com 34,03% de chefes pobres; Jardim Helena,33,93%, Lageado, 33,00%, Guaianazes, 28,72%, SãoMiguel, 28,70%, Vila Curuçá, 27,87%, Vila Jacuí, 27,78%,Iguatemi, 26,39% e Ermelino Matarazzo, 26,10%), doisestão no sul (Marsilac, 32,96% e Parelheiros, 29,39%) eum distrito é central – o Pari, com 26,60% de chefes ga-nhando até dois salários mínimos.

Agregando-se a classificação dos chefes de domicí-lio por categorias socioocupacionais e sua distribuiçãona cidade às informações sobre a renda, observa-se queos trabalhadores da sobrevivência (empregados domés-ticos, ambulantes e biscateiros) – menos qualificados,mais pobres e em situação mais precária em inserçãono mercado de trabalho – representam apenas 5,37%do total dos chefes residentes no Município, concen-trando-se especialmente nos anéis exterior e periféri-co. Depreende-se daí que embora a pobreza esteja pre-sente no município, seus níveis mais acentuadosencontram-se na periferia metropolitana 6,32% do to-tal de chefes ocupados.2

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Analisando-se a distribuição espacial por anéis, a se-gregação manifesta-se de modo também marcante na lo-calização das elites empresarial e intelectual em áreas maiscentrais do Município. Assim, os chefes pertencentes àelite dirigente, à burguesia e os profissionais de nível su-perior representam 31% dos residentes no anel central,43% dos residentes do anel interior e 31% dos que resi-dem no anel intermediário. Vale apontar que, apesar dospercentuais desses chefes serem iguais para os anéis cen-tral e intermediário, essas áreas possuem característicasdistintas quanto aos níveis de renda. Acredita-se que osníveis mais elevados de renda observados para o anel cen-tral possam ser atribuídos ao maior percentual de traba-lhadores não-manuais de nível médio ali residentes (4,3%do total) e de trabalhadores do comércio e serviços (26,6%do total), que estariam “empurrando para cima” o pata-mar de rendimentos médios desse anel.

Cabe mencionar que, do conjunto de chefes ocupados,o maior percentual no Município é de trabalhadores docomércio e serviços (31,7%), o que confirma seu perfilde cidade terciária, onde os setores de comércio e servi-ços, inclusive informais, crescem exponencialmente.

Entre a população acima de dez anos desocupada em1991 (critério censitário, ou seja, sem trabalho remune-rado nos últimos 12 meses), que atingia mais de 3,6 mi-lhões de pessoas, grande parte dedicava-se aos afazeresdomésticos: 36,22% dos “desocupados”. Existe pouca di-ferença entre as proporções de afazeres domésticos nosdistintos anéis, embora seja nítido um aumento em dire-ção ao anel periférico, que deve estar ligado à maior pre-sença de crianças no anel, tornando o trabalho femininoexterno mais difícil. A estrutura etária mostra-se evidentetambém no percentual de aposentados por anel, com tra-jetória inversa: atinge 21% dos desocupados no anelcentral, proporção que desce para 17% no intermediá-rio, 12% no exterior e 8% no periférico, mostrando no-vamente o maior percentual de idosos nas partes centraisdo município.

A informação relativa ao desemprego (pessoas commais de dez anos procurando trabalho) mostra uma dasfaces mais cruéis da estrutura de empregos do mercadoglobalizado, ou seja, a dificuldade dos mais jovens e commenor qualificação em encontrar trabalho remunerado. Éjustamente no anel periférico, onde residem esses segmen-tos populacionais, que o percentual de pessoas procuran-do trabalho é maior: 9,32% dos desocupados com maisde dez anos. No anel interior esse percentual era de 6,33%e no anel intermediário, de 6,18%.

Em relação à escolaridade expressa em anos de estu-do, o grupo modal do Município é o de um a quatro anosde estudo (38,22% dos chefes), tal como na RMSP. Aescolaridade é maior na capital que nos outros municípiosda Grande São Paulo, onde 44,92% dos chefes têm de uma quatro anos de escolaridade. Com mais de 12 anos deestudo têm-se 16,72% dos chefes paulistanos e apenas7,94% de chefes residentes em outros municípios da Re-gião Metropolitana. Mas chama a atenção o percentual dequase 9% de chefes sem nenhum ano de escolaridade for-mal. No total, a proporção de analfabetos para o Municí-pio atingia, em 1991, 10,55% da população acima de cin-co anos, sendo maior no anel periférico (13,53%) que nosanéis central (5,55%) e interior (5,23%).

A escolaridade modal é distinta por anel: nos anéiscentral e interior, ela se encontra na categoria mais alta –12 anos e mais. Já nos anéis intermediário, exterior e pe-riférico, a moda estatística desce para um a quatro anosde estudo. Os três anéis mais distantes do centro históri-co, embora com igual categoria modal, apresentam dis-tribuição muito diferente: no anel exterior o valor logoabaixo da moda é o de chefes com alta escolaridade(27,51% de chefes com 12 anos de estudo e mais); nosoutros dois anéis esse valor imediatamente abaixo da modaé bem menor, de cinco a oito anos de estudo.

No anel interior do município concentram-se os che-fes com maior escolaridade – 41,98% dos chefes resi-dentes nesse anel têm 12 anos e mais de estudo. Na peri-feria há a maior concentração de chefes sem nenhumaescolaridade (12,14%). A diferença de escolaridade,medida em anos de estudo formal, entre os dois anéismais centrais do tecido urbano e o periférico é enorme –no anel interior há sete vezes mais chefes com alta esco-laridade que no periférico; há quatro vezes menos che-fes sem nenhuma escolaridade nos anéis central e inte-rior quando comparados com o periférico; e três vezesmenos quando comparados com o exterior. Há um gra-diente de menor para maior nos percentuais de chefesiletrados à medida que nos afastamos do centro histórico.

A associação escolaridade-renda reafirma-se quando aproporção de chefes com renda superior a 20 saláriosmínimos é alta no anel interior (23,65% dos chefes do anel)e extremamente baixa no periférico (3,02% dos chefes).A renda modal dos chefes paulistanos, em 1991, era dedois a cinco salários mínimos (27,09% dos chefes).

Em relação às centralidades, conceituadas tanto comolocal com densidades de empregos terciários quanto comoespaço simbólico, São Paulo assiste a uma mudança, em-

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bora falar em gentrification em grande escala ainda sejaprematuro. Nada se assemelha às Docklands londrinas, aoBattery Park americano, a Puerto Madero argentino oumesmo ao baiano Pelourinho. O centro de negócios emesmo o simbólico migraram do centro histórico, deterio-rado e com processos pontuais de renovação urbana, paraa Avenida Paulista, símbolo do capital financeiro dos anos70, em seguida para a Avenida Faria Lima, centro de co-mércio e serviços que agora começa a abrigar bancos efinanceiras (Nova Faria Lima) e recentemente para a Ave-nida Engenheiro Luiz Carlos Berrini, sede de empresasterciárias, hotéis e comércio sofisticado desde meados dosanos 80 e 90 (Frúgoli Jr., 2000).

ASPECTOS FÍSICOS DA SEGREGAÇÃO

Domicílios: aspectos gerais

Na cidade de São Paulo predominam as casas isoladas– 50,55% do parque domiciliar de 2,4 milhões de mora-dias. O percentual de apartamentos atingiu 17,70% do es-toque, enquanto aglomerados subnormais, pelo Censo de1991, representavam 6,03% das moradias e 4,77% de con-juntos populares.

A verticalização concentra-se no anel central, com 84,31%de moradias em apartamentos, e no anel interior, com 57,63%do total. No anel periférico, apenas 3% das moradias foramclassificadas como apartamentos, porque aí se concentramos conjuntos populares, representando 9,52% de casas clas-sificadas como conjuntos de um total de 4,77%.

A estatística da Fundação IBGE em 1991 apresentou,para o Município de São Paulo, o total de 146,89 mil do-micílios em “aglomerados subnormais”, ou seja, locali-zados em aglomerados urbanos com pelo menos 50 do-micílios em terrenos invadidos. Percebe-se que foramcomputadas apenas casas em favelas – terrenos públicose/ou privados invadidos – com mais de 50 unidades habi-tacionais. A distribuição territorial desses domicílios fa-velados mostra sua forte periferização: 55,6% deles en-contram-se no anel periférico, 32% no anel exterior, istoé, mais de 80% das unidades domiciliares faveladas, me-didas pelo Censo de 1991, localizam-se nos anéis exter-nos do município.

Cabe ressaltar que a Fundação IBGE separou, a partirde 1991, os domicílios onde apenas a construção é pró-pria. Como o aluguel ou cessão de lote para construçãohabitacional não é prática comum em São Paulo, o totalde casas em que somente a construção é própria deveria

ser igual ao de casas faveladas. Essas estatísticas, entre-tanto, não coincidem: o total de casas onde só a constru-ção é própria era de 177 mil em 1991. Segundo a Funda-ção IBGE, o total de domicílios favelados na época doCenso foi de 146,8 mil. O cadastro de favelas da Sehab(Secretaria de Habitação e Desenvolvimento Urbano doMunicípio de São Paulo) computou, para 1993, mais de378 mil unidades domiciliares faveladas. Três estatísti-cas para o mesmo fenômeno. Tanto a definição de aglo-merado subnormal (invasão com mais de 50 unidades)como a forma de coleta da Fundação IBGE tornam essamedida imprecisa. É provável que muitos domicílios fa-velados estejam sendo recenseados como próprios.

Outras pesquisas indicam forte crescimento de favelasno município (Taschner, 1995 e 1997). Nestes trabalhos,Taschner mostra o assombroso crescimento da populaçãofavelada paulistana nas décadas de 80 e 90: de 1% da po-pulação morando em invasões para quase 20% na maiormetrópole industrial do país.

A taxa de crescimento domiciliar entre 1980 e 1991 émaior que a taxa de crescimento populacional: para todoo município, o quadro domiciliar aumentou em 1,51% aoano, enquanto a população cresceu a 1,16% anuais. Em-bora essa taxa de crescimento domiciliar seja maior que apopulacional em todos os anéis, é no anel periférico queatinge seu maior valor, de 10,68% ao ano, contra um cres-cimento populacional de 3,09%. A proliferação de unida-des domiciliares novas na periferia foi grande nos anos80, fato que, juntamente com a existência de 200 mil uni-dades ilegais construídas no município entre 1980 e 1991,indica uma provável precariedade das casas, associada aopercentual de pobreza da periferia da cidade. Concluin-do, o que se observa no tecido urbano metropolitano é averticalização no anel central e conjuntos populares, lo-teamentos precários e favelas na periferia.

Essas características domiciliares não são novas. Tal-vez a grande novidade seja a intensidade desse incremen-to de invasões e a quase exclusividade da construção demoradias populares públicas nas franjas urbanas. A con-tinuação, na década de 90, do padrão periférico de cresci-mento e a presença mais intensa da pobreza nessa perife-ria retratam uma cidade com núcleos de bonança, rodeadapor grandes camadas de domicílios pobres, com infra-es-trutura deficiente, em parcelamentos sem área verde ououtras benfeitorias urbanas.

As condições de confinamento na moradia tambémapontam diferenças no tecido urbano. Para o estudo dadensidade habitacional, alguns indicadores têm sido tra-

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dicionalmente utilizados: número de cômodos no domicí-lio, pessoas por cômodo, número de cômodos usados comodormitório, pessoas por dormitório. Entretanto, normas demoradia são, em grande parte, ligadas a fatores culturaise historicamente determinadas. Por exemplo, qual o nívelque o indicador pessoas por cômodo deve apresentar paracaracterizar uma casa inacreditavelmente congestionada?Quais os efeitos adversos desse congestionamento, se éque existem? (Van Vliet, 1990). A melhor resposta paraessa questão é: depende. Depende do contexto cultural, edentro dele, do tempo. Muitas vezes indivíduos aceitammomentaneamente densidades extremamente altas durantecerto tempo, esperando por melhorias na moradia. Outrasvezes, as densidades habitacionais tendem a declinar comaumento do rendimento familiar.

Observou-se que as moradias interioranas têm maiorespaço interno. As residências com mais de cinco cômo-dos respondiam, em 1994, por 45,7% das casas no inte-rior do Estado de São Paulo, 31,8% da Região Metropoli-tana e 36,8% das casas no Município em 1991 (dados daPCV de 1994, Seade). Considerou-se que um domicíliocom três cômodos ou menos oferece espaço interno insu-ficiente, partindo-se do princípio racionalista que as qua-tro funções básicas a qualquer moradia – repouso, estar,preparação de alimentos e higiene – devam ser exercidasem locais apropriados e exclusivos. Dessa forma, um do-micílio com espaço indispensável deve ter, no mínimo,sala, quarto, cozinha e banheiro. Concluindo, por essecritério, 21% das moradias estaduais eram insuficientesem 1994, assim como 9% das casas no interior, 26% dametrópole e 24% do município.

No tecido municipal, a proporção de imóveis com es-paço insuficiente é grande nos dois extremos: nos anéiscentral e periférico, com 26% e 31% de imóveis com trêscômodos e menos, respectivamente. Associam-se ao com-portamento dessa variável prováveis imóveis encortiçadosno anel central e a precariedade e pobreza que caracteri-zam o anel periférico. No anel exterior o valor asseme-lha-se ao periférico (24%), enquanto nos anéis interior eintermediário as casas são bem maiores (8% e 13% demoradias com três cômodos e menos). Além disso, o ta-manho dos domicílios varia com a condição de proprie-dade: a média de cômodos por domicílio apresenta-se altaem todos os anéis para as casas totalmente próprias (mé-dia geral de 5,98), diminuindo para os alugados (médiageral 4,37) e para os cedidos, tanto pelo empregador comopor particular (4,16 e 4,14 como média geral, respectiva-mente). A diferença entre próprios e alugados é mais visí-

vel nos anéis exterior e periférico, mostrando a precarie-dade do aluguel na periferia.

Higienistas chamam a variável pessoas por cômodo deíndice de confinamento e estabelecem os seus limites em1,5 pessoas por cômodo, ou 2,0 pessoas por cômodo ha-bitável (exclusive banheiro e cozinha). Não há, entretan-to, “evidências convincentes de que o superpovoamentoda unidade contribui materialmente para desordens men-tais ou instabilidade emocional” (Wilnek e Baek, 1970,apud Mitchell, 1971). Os dados censitários permitem ocálculo de pessoas por cômodo e pessoas por dormitório.A equipe de Chombart de Lauwe (1967) aponta a cifra de2,5 habitantes por peça como limiar patológico e 2,0 comolimiar crítico. No Canadá, para o Escritório Federal deEstatística, a unidade superpovoada seria simplesmenteaquela em que o número de pessoas supera o de cômodos.No Município de São Paulo, a situação de congestiona-mento domiciliar vai existir sobretudo nos anéis exteriore periférico, onde a média de pessoas por dormitório em1991 era de 2,13 e 2,41, respectivamente.

Usando-se o limiar pessoas por cômodo acima de 1,5,quase 10% das casas em São Paulo precisam ser amplia-das, sobretudo nos dois anéis externos. Já a utilização maisrefinada do limiar duas pessoas por cômodo utilizado paradormir mostra que 39% das moradias paulistanas estãocongestionadas. No anel periférico a situação é crítica, commais de 50% dos domicílios com superlotação.

A proporção de casas alugadas era de 40% em 1980 edesceu para 28,42% em 1991, uma queda de 12 pontospercentuais, menor que a de 14 pontos percentuais do alu-guel na Grande São Paulo. Como já foi dito para a RegiãoMetropolitana (Taschner e Bógus, 1999), o aumento deproporção das casas próprias não deve ser relacionado amelhores condições financeiras. Em 1980, havia no Mu-nicípio de São Paulo cerca de 800 mil casas alugadas; em1991, essa cifra caiu para 685 mil, com uma diferença de120 mil unidades a menos entre 1980 e 1991, 15% de de-créscimo.

Até meados da década de 70, grande parte dos traba-lhadores de São Paulo, com distintas estratégias, viabi-lizava o seu desejo de propriedade domiciliar. Num paíscomo o Brasil, com a insegurança do emprego e dasecuridade social, a casa própria representa mais que asegurança de não perder o abrigo. Representa também apropriedade de um bem de grande valor, que pode ser dadocomo garantia hipotecária. Significa a possibilidade demoldar a casa segundo desejos e necessidades da famíliaproprietária, inclusive sublocando parte dela e transfor-

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mando-a em gerador de renda. O que se percebe na déca-da de 90 é que, aliada à redução de cerca de 120 mil do-micílios alugados (responsável pela diminuição de 24%do diferencial entre domicílios de 1991 e 1980), houveum aumento de 74 mil domicílios cedidos (15% da dife-rença 1991-1980). É interessante que entre os 179 mildomicílios cedidos em 1991, 82% sejam cedidos por par-ticulares e apenas 18% por empregador. Forte contradi-ção pois, num momento em que as relações capitalistasdominam, formas de obtenção de moradia próprias de re-lações não mercantis aumentam.

Associada à crise da “década perdida” e ao crescentedesemprego, a redução de imóveis alugados mostra que adificuldade em pagar o aluguel vai existir em todas ascamadas de renda e em todos os anéis paulistanos. Dadosdos Censos de 1980 e 1991, que fornecem valores de alu-guel em salários mínimos, mostram que o aumento médiode aluguel no período foi de 69% para domicílios de ape-nas um cômodo – provavelmente encortiçados –, de 36,6%para os de dois cômodos e de 22,4% para os de cinco cô-modos. Apesar de os salários mínimos não possuírem, nasduas datas, o mesmo poder de compra, a comparaçãomostra um maior aumento justamente nos domicílios me-nores, geralmente ocupados pela camada mais pobre.

No anel central, o valor do aluguel de uma casa comcômodo único era 2,13 vezes o aluguel de casa semelhan-te na periferia em 1980; em 1991 essa diferença se redu-ziu para 1,60 vezes, fruto do aumento maior do aluguelno anel periférico. De outro lado, nas casas de cinco cô-modos o aluguel em 1980 era 1,46 vezes maior no centroque na periferia. Em 1991 o diferencial reduziu-se para1,36 vezes. Nas casas maiores a diferença entre centro eperiferia era menor em 1980 e continua menor em 1991.O aluguel de casas pequenas subiu mais na periferia queno centro. Além disso, não apenas as casas menores tive-ram aumento maior, mas as unidades menores na perife-ria tiveram aumento maior que no centro. Ou seja, quantomenor e mais longe, maior o aumento.

O aumento de 524,5 mil domicílios próprios no Municí-pio é devido ao incremento de casas próprias nos anéisperiférico e exterior – quase 86% dos novos domicíliospróprios em São Paulo, mais de 300 mil no anel periférico.A associação pobreza-periferia-casa própria impõe-se.

Além da favela, o loteamento clandestino tem sido for-ma de obtenção da casa própria pela autoconstrução. Em1981, órgãos oficiais levantaram 3.567 loteamentos irre-gulares, correspondentes a 23% da área municipal e a umterço da área urbanizada. Perante esse quadro, foi criada

uma categoria de lotes com menores exigências para re-duzir os custos e permitir maior produção de lotes popu-lares. O incentivo, entretanto, não foi suficiente: entre 1981e maio de 1990, apenas 4.200 lotes foram submetidos àaprovação, mesmo nessa categoria especial (Barreto Sil-va e Castro, 1997:39).

A relação inversa entre renda e propriedade domici-liar, rara nos países desenvolvidos, é freqüente no Brasil.Em São Paulo, por exemplo, justamente no anel periféri-co, onde a concentração de pobres e a renda média sãomenores, o percentual de casas próprias é maior, quase70% do total de domicílios do anel. E é nos vetores maisricos que a proporção de unidades alugadas é maior – 51%das moradias no anel central e 36% no anel interior. Noanel periférico encontram-se as maiores porcentagens decasas em que apenas a construção é própria, com grandeprobabilidade de serem faveladas. Esse fato vem ao en-contro de invasões nas franjas periféricas em áreas de pre-servação dos mananciais ao sul (represa de Guarapiranga)e ao norte (serra da Cantareira).

Infra-Estrutura e Serviços Públicos

As condições de saneamento do município central sãomelhores que as da Região Metropolitana. Mesmo assim,quase 7% dos domicílios da capital têm instalações sani-tárias coletivas (6,31%) ou não as têm (0,57%). A situa-ção dos domicílios no anel periférico é mais precária, pois7,7% das casas têm instalação sanitária coletiva.

Em relação ao destino dos dejetos, as condições sani-tárias pioram visivelmente do centro para a periferia. Noanel periférico 8% das casas utilizavam fossa negra e 7,5%jogavam os dejetos diretamente em valas e vias hídricas.Esse percentual é reduzido nos anéis central, interior eintermediário, atingindo 2% e, no anel exterior, 4,3%. Emtodo o município existiam cerca de 200 mil casas (8,14%)com destino dos esgotos domésticos inadequado, além de14 mil que não têm nenhum sistema de esgoto (0,57%).

A situação de abastecimento de água na capital é boa,97,4% das casas contam com abastecimento de água ade-quado. A água oriunda de rede pública e com canalizaçãointerna abastece 91% das moradias do município. Nosanéis central e interior a cobertura é maior que 99%, de-crescendo em direção à periferia, onde 16% dos domicí-lios não são atendidos plenamente. Cerca de 25 mil casasusufruem de água potável, mas sem canalização interna(pouco mais de 1% do total de domicílios). Dessas 25 mil,9 mil situam-se no anel periférico e 6 mil no exterior. O

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uso de poços, com canalização interna ou sem, atinge 20mil casas, das quais 17 mil no anel periférico.

A energia elétrica é o elemento de infra-estrutura maisbem difundido: 99,92% dos domicílios a possuem, comou sem medidor (90,70% e 9,22%, respectivamente).Quase não existe diferencial por anel. O serviço de coletade lixo é também abrangente, cobrindo 98,37% dos do-micílios municipais. A cobertura é quase total nos anéiscentral, interior e intermediário, diminuindo levemente nosanéis exterior (98,96%) e periférico (96,81%).

Gás de rua e telefone são serviços públicos mais raros.Apenas 9,25% das residências de São Paulo usufruem degás de rua, com porcentagem mais elevada no anel inte-rior (38%) e no anel central (35%). A rede de distribuiçãonão atinge os anéis exterior e periférico, onde os percen-tuais de casas abastecidas são mínimos (3,46% e 3,05%,respectivamente). O botijão de gás está presente em todoo tecido urbano – 90,14% dos domicílios do município outilizam como combustível, variando de um mínimo de61% no anel interior a 96% no anel periférico.

Com 65% das moradias sem telefone fixo, São Paulomostra-se despreparada para novos tempos em que a ra-pidez de comunicação e o uso de serviços on-line sãoimprescindíveis. Mesmo no anel interior, onde a escassezé um pouco menor, 27,10% dos domicílios não têm nemmesmo uma linha de telefone fixo. Esses percentuais au-mentam para 38,19% no anel central, 43,07% no interme-diário, 66,81% no exterior e 85,14% no anel periférico.Novamente os segmentos populacionais mais pobres sãoos mais prejudicados. Durante a década de 90, moradoresda periferia começaram a utilizar intensamente a telefo-nia celular, bem mais cara. Novamente o contra-senso:quanto pior a condição socioeconômica do indivíduo, maiscaro ele paga pelos serviços: mais horas de transporte,piores condições sanitárias, aluguel relativamente maior,uso de gás liquefeito de petróleo em vez de gás natural,falta de telefonia fixa que obriga a usar o celular.

CONCLUSÕES

A análise da cidade por anéis – inspirados nos anéis deBurgess para Chicago – desvenda meandros do tecidourbano, verdadeira colcha de retalhos, e aponta a existên-cia de uma estrutura social fragmentada, que tende à cres-cente segregação.

A origem histórica da segregação na cidade ocidentalliga-se à Revolução Industrial, quando o grau de urbani-zação cresceu, trabalho e residência se separaram no es-

paço físico, e burguesia e operariado passaram a morarem locais distintos no espaço intra-urbano. Uma questãoimportante seria o porquê de uma cidade “escolher” o cres-cimento de forma tradicional, com os ricos na área cen-tral e a pobreza cada vez mais empurrada para a periferia,ou a classe média usando seus recursos para lotear a terravirgem das áreas limítrofes, indo residir na franja subur-bana, em casas individuais isoladas, formando aquilo queFishman (1996) chamou de “utopia burguesa”, forçandoa classe trabalhadora a ocupar uma zona “ensanduichada”entre o CBD (Central Business District) e os subúrbiosricos. Como coloca Fishman, pode-se resumir de formagrosseira que as cidades da Europa continental e as lati-no-americanas optaram pela estrutura tradicional, enquantoas britânicas e norte-americanas tomaram o rumo dasuburbanização. Fishman aponta que, embora a cidadeindustrial seja descrita por um diagrama claro e “objeti-vo” pelos estudiosos da Escola de Chicago, sua forma liga-se no fundo às escolhas e valores de grupos poderososdentro da cidade. “A decisão da burguesia de Manchestere de outras cidades industriais pioneiras em 1840 de sesuburbanizar criou a estrutura básica da cidade anglo-ame-ricana, enquanto a decisão de grupo comparável em Parisnos anos 1850 e 1860 (auxiliada por considerável ajuda eintervenção governamental), de viver em apartamentoscentrais, criou a cidade moderna estilo continental”(Fishman, 1996:30).

Nas cidades brasileiras, o modelo tradicional – pobre-za na periferia – acentuou-se no século XX. Apenas de-pois dos anos 70 algo semelhante ao modelo americanosurge em algumas cidades, com a edificação de condomí-nios ricos em terrenos afastados (do tipo Alphaville).Caldeira (2000:211) coloca que, “sobrepondo-se ao pa-drão centro-periferia, as transformações recentes estãogerando espaços nos quais os diferentes grupos sociaisestão muitas vezes próximos. Mas estão separados pormuros e tecnologias de segurança, e tendem a não circu-lar ou interagir em áreas comuns”. Tal como Marcuse, estaautora denomina a estes espaços “enclaves fortificados”.“Trata-se de espaços privatizados, fechados e monitoradospara residência, consumo, lazer e trabalho” (Caldeira,2000:211). Caldeira coloca que o modelo centro-perife-ria não é mais suficiente para descrever o padrão de se-gregação e desigualdade social em São Paulo. “Assim, osenclaves fortificados – prédios de apartamentos, condo-mínios fechados, conjuntos de escritórios ou shoppingcenters – constituem o cerne de uma nova maneira de or-

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ganizar a segregação, a discriminação social e a reestru-turação econômica em São Paulo” (Caldeira, 2000:255).

O processo de segregação tem se aprofundado no qua-dro de uma metrópole complexa, internacionalizada ouglobalizada, onde ao lado de enormes mudanças tecnoló-gicas – a serviço de alguns – podem-se observar a con-centração da propriedade privada e a polarização crescentedo ponto de vista social. A polarização se expressa nosníveis muito desiguais de renda, educação formal e quali-ficação profissional e se reflete de várias formas nos es-paços da cidade.

Neles, observa-se cada vez de forma mais acentuada apresença de espaços residenciais e comerciais exclusivos,a privatização de espaços públicos, com o “fechamento”de ruas e praças para garantir a segurança de setores da po-pulação ameaçados pelas “classes perigosas”. Tal privati-zação pode ocorrer tanto em áreas centrais, onde residemos maiores percentuais de famílias de alta renda, como emáreas menos segregadas e menos centrais, onde a presençaacentuada da pobreza constitui uma ameaça às famílias de“renda média” que, muitas vezes, “expulsas” das áreas cen-trais, devido a valores imobiliários incompatíveis com seussalários, reproduzem nos novos locais de residência os pro-cessos vigentes nas áreas mais valorizadas.

Esse processo também pode ser inserido no contextoque Marcuse (1997) denomina de “cidadela”, para desig-nar os grandes condomínios cercados, de casas e aparta-mentos, em que guardas particulares e sistemas high-techde segurança buscam garantir que os mais pobres e me-nos poderosos fiquem “de fora” da vizinhança.

Dentre as “cidadelas” detectadas hoje em grandes me-trópoles, pode-se perceber, segundo aquele autor, algu-mas habitadas por aqueles que estão no “topo” em termosde poder econômico e político. Outras, no entanto, sãoocupadas por famílias “bem-sucedidas” que, embora nãoestejam no topo da escala social, sentem-se vulneráveisem relação aos mais pobres, residem próximo a eles masquerem manter-se longe deles. A esse segundo tipo,Marcuse (1997:247) denomina exclusionary enclaves.

Considerando-se o quadro mais amplo dos debates teó-ricos recentes que colocam a necessidade de rever o mo-delo de dualização da estrutura socioespacial para o casodas metrópoles brasileiras (Lago, 1998), cabem aqui al-gumas observações a partir da análise ainda muito preli-minar dos dados.

De fato, essa primeira aproximação aponta para a pre-sença da pobreza em todo o espaço municipal, a exemplodo que ocorre no conjunto da Região Metropolitana

(Taschner e Bógus, 1999), indicando uma estrutura espa-cial não-dual, com o aumento relativo das camadas mé-dias nas áreas periféricas. Entretanto, nossos dados parao MSP apontam, também, e com força relativa considerá-vel, para a existência de espaços fortemente segregados,onde a presença da população de alta renda e alta qualifi-cação profissional, ou da população de baixa renda e pre-cária qualificação para o trabalho é pouco permeada porelementos de outras camadas sociais.

É nesse contexto que, segundo Lago (1998:3), “emer-gem novas modalidades de segregação socioespacial ba-seadas na exclusividade residencial e comercial, tanto nasáreas centrais como nas periféricas”.

Se de um lado, entretanto, pode-se falar da existênciade espaços quase exclusivos para as categorias superio-res/inferiores na escala social, por outro detecta-se a di-versificação da estrutura social e redistribuição no espa-ço urbano, particularmente das camadas de renda média.

Tais camadas buscam, em geral, localizar-se em áreaspróximas às habitadas por população de alta renda, estan-do também dispersas – como já foi apontado – por toda aRegião Metropolitana, criando espaços sociais mistos oude estruturação social mais complexa, tecido indistinto,retalhado e remendado, um complicado mosaico urbano,um verdadeiro caleidoscópio.

NOTAS

E-mail das autoras: [email protected]

1. Pesquisa desenvolvida como parte do projeto Pronex (Programa de Núcleos deExcelência do CNPQ) 1998-2001. Convênio com IPPUR-UFRJ (Instituto de Pes-quisa e Planejamento Urbano e Regional - Universidade Federal do Rio de Janei-ro); IUPERJ (Instituto Universitário de Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro);PUC-SP; FAUUSP; UFMG; Ceurb (Centro de Estudos Urbanos).

2. O total de chefes ocupados na Região Metropolitana era de 2,78 milhões em1991, dos quais 1,79 milhão residiam no município central e 1,01 milhão nos mu-nicípios periféricos.

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DO PLANEJAMENTO TRADICIONAL DE TRANSPORTE AO MODERNO PLANO...

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DO PLANEJAMENTO TRADICIONAL DETRANSPORTE AO MODERNO PLANO

INTEGRADO DE TRANSPORTES URBANOS

Resumo: Reflexões sobre os planos de transporte elaborados para a cidade e a Região Metropolitana de SãoPaulo; a peculiaridade dos planos tradicionais de transportes; análise crítica dos planos e das implantações delinhas metroviárias; a inserção da ferrovia na malha de trilhos da região; análise dos planos e das ações emtransporte urbano no Governo Mário Covas; o Pitu 2020 e seu diferencial na história dos planos de transporte;as formas antigas e novas de financiamento do transporte público.Palavras-chave: plano de transporte; metrô; trem; ônibus; metropolitano; financiamento público.

m dezembro de 1968, foram publicados, pelo go-verno do prefeito Faria Lima, os resultados finaisdo estudo econômico-financeiro e pré-projeto de

estrutura, inclusive para transportes, com crescimentopopulacional vertiginoso, conseqüência de volumosasmigrações populacionais.

Até que a visão integrada existe nesse plano. Os eixosprincipais das linhas de metrô procuram ao máximo inter-ceptar as linhas ferroviárias existentes, mas, no final, écomo se aquela ferrovia fosse uma entidade independentee estática, a ser respeitada e considerada, mas não incor-porada ao sistema. Por certo, o modal “escolhido” foi ometrô e isso significou o abandono dos demais.

PLANEJAMENTO TRADICIONAL DETRANSPORTES: CORRENDO ATRÁS DO RABO

Um Bom Exemplo: a Rede Básicado Metrô de São Paulo

As condições existentes em 1968 parecem persistir. Écurioso observar que o arrazoado inicial preconizando anecessidade do metrô poderia ser repetido até hoje, justi-ficando qualquer intervenção na área de transportes urba-nos em São Paulo. Todos os itens estão ainda presentes,exceto um, muito importante: “o crescimento (...) demo-gráfico da cidade superou o da maioria das grandes me-trópoles mundiais”. Ao contrário, a Região Metropolita-na de São Paulo e, em particular, o Município da capitalreduziram seu crescimento populacional a níveis muito

CLAUDIO DE SENNA FREDERICO

Secretário dos Transportes Metropolitanos do Governo do Estado de São Paulo

engenharia da rede de metrô para São Paulo (Prefeiturado Município de São Paulo, 1968). Já nas primeiras pági-nas, quando trata dos objetivos do trabalho, há a declara-ção de ser um estudo “baseado na análise da situação atualdos transportes urbanos na cidade de São Paulo e naprognose de seu desenvolvimento”, definição sucinta doque foi e ainda é o planejamento tradicional de transpor-te. Ou seja, o presente e suas demandas foram as basespara as projeções. Não vai, nessa afirmação, nenhumacrítica a um trabalho pioneiro à época que utilizou técni-cas avançadas – como a apropriação dos dados da pes-quisa Origem-Destino e sua modelagem matemática paraprojeções – que, até hoje, ainda não são usadas consisten-temente na maioria das cidades do mundo. Mas, de fato,o plano tratou de enxertar um novo modo de transporte –o metrô – a uma malha preexistente de viagens, sem esta-belecer uma solução completa e sem procurar modelar,inicialmente, uma cidade e, dentro dela, o tipo de vida deseus habitantes.

A concepção tradicional dirige o olhar para aceitar (per-cepção ainda presente hoje) a situação de deslocamentoslevantada e prevista como fatos naturais, escolher deter-minado modal como solução e correr atrás do prejuízo. Eisso em uma cidade reconhecidamente carente de infra-

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baixos. O crescimento que continua explosivo é o dosveículos, mas, também, tende a se reduzir, uma vez queforam alcançadas taxas de motorização superiores às dasgrandes metrópoles do Primeiro Mundo. No entanto, no-vas áreas urbanizadas continuam se incorporando à jáimensa mancha urbana, rapidamente, pela nova migraçãointerna de regiões centrais dirigida a invasões e loteamen-tos clandestinos periféricos.

Essa nova ordem, entranhada de situações anterioresainda presentes e não-resolvidas e de novas dinâmicas depovoamento, está a exigir outro tipo de planejamento.

Pontos Básicos

Os pontos principais da única rede básica oficial do Metrôde São Paulo eram resultado do atendimento às carênciasde transporte identificadas pela pesquisa Origem-Destinode 1967, mais tarde atualizada e a cada dez anos. Soma-vam-se a isso, as previsões para os primeiros dez anos dealterações na mobilidade e o entendimento de que a exten-sa malha ferroviária existente na região teria sua capacida-de e qualidade recuperadas, além da prioridade dada à ul-trapassagem do Rio Tietê em diversos pontos.

O resultado era apresentado como uma malha de qua-tro linhas e dois ramais totalizando 66 km, com as seguin-tes características:- linha Norte-Sul, com 20,98 km, de Jabaquara a Santana,incluindo um ramal de Paraíso a Moema pelo traçado da

antiga linha de bondes de Santo Amaro. Esta linha criariauma passagem ao norte do Rio Tietê e uma integração fer-roviária na Luz. Sua construção foi iniciada em 1968 econcluída em 1976, sem o ramal de Moema;- linha Leste-Oeste, com 13,33 km, em forma de U, iriade Casa Verde a Vila Maria, criando duas passagens aonorte do rio Tietê e uma integração com as ferrovias a oesteem Barra Funda e outra a leste em Brás-Roosevelt;- linha Sudoeste-Sudeste, com 23,83 km, em forma de Uinvertido, do Jóquei Clube, em Pinheiros, à estação da Luze depois até o Sacomã, no início da rodovia Anchieta, comum ramal do Parque D. Pedro II até Vila Bertioga, logoapós o Alto da Mooca. Esta linha criaria uma passagemsobre o rio Pinheiros e uma integração ferroviária na Luz;- linha Paulista, com 8,08 km, de Vila Madalena ao Pa-raíso, apenas integrando outras linhas da rede.

Desvios e Diferenças

As principais diferenças entre a rede básica planejadae a executada foram:- abandono da idéia inicial de ramais pelas dificuldadesde operação e pela previsível saturação das linhas mesmosem os ramais, exemplificado pela não-construção do ra-mal de Moema na linha Norte-Sul;- desistência de dar prioridade às passagens sobre o RioTietê em benefício de atender ao crescimento urbano aleste. Nessa decisão está incluída, ainda, a desistência daespera por melhoria do sistema ferroviário. O maior exem-plo foi a linha Leste-Oeste que passou a iniciar-se, a oes-te, na Barra Funda e não na Casa Verde e, a leste, esten-deu-se até Itaquera, em vez de terminar em Vila Maria.Esta linha passou a ser o “calcanhar de Aquiles” do Me-trô, com seu imediato saturamento em uma operação decaracterísticas pendulares de carregamento, com picosmuito acentuados, mais similar a uma linha de trem desubúrbio a que, de fato, estava substituindo;- a linha Paulista, prevista para ser a última, começou aser construída em segundo lugar, tendo sido interrompidae depois reiniciada, com a intenção de continuar depoisde Paraíso e Ana Rosa na direção de Ipiranga e Vila Pru-dente, substituindo parte do ramal D. Pedro-Vila Bertioga,abandonado;- principalmente por motivos político-eleitoreiros, surgi-ram as extensões de linhas existentes, mais fáceis e rápi-das de ser construídas: da linha Norte-Sul, de Santana ao

MAPA 1

Rede Básica do MetrôRegião Metropolitana de São Paulo – 1968

Fonte: Prefeitura do Município de São Paulo, 1968.

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Tucuruvi, e da Leste-Oeste, de Itaquera a Guaianases.Apesar de sua aparente facilidade, as extensões foram ini-ciadas no início dos anos 90, tiveram suas obras interrom-pidas e só foram concluídas no final da década, neste go-verno.

Faltaram Sucessores

Um dos grandes méritos do estudo citado – que passoua ser conhecido pela corporação dos transportes como “Olivrão”, ou “O livro azul” – foi deixar claro um objetivodo plano: estabelecer quatro linhas e dois ramais do me-trô, num total de 66 km. A clareza do que se pretendia fezcom que, após o início da construção da linha Norte-Sul,os potenciais beneficiários e os estudiosos do assuntopassassem a cobrar novas linhas com o traçado conheci-do, como estava no plano. Esse conjunto, denominado redebásica do metrô, passou a ser um ente político e uma fitamétrica para medir a eficiência ou não das administraçõesmunicipais que se sucederam.

Infelizmente, a rede nunca foi implantada em sua tota-lidade e, mesmo a segunda linha completada (a Leste-Oeste, hoje chamada linha 3 – Vermelha), já não tinhamuito a ver com seu projeto original. Independentementede acerto ou erro da decisão sobre a seqüência de linhas aconstruir, nunca mais foi publicado um plano tão com-preensivo quanto o original, que apresentasse claramenteà “torcida” por que linhas ela deveria “torcer”. Faltaramplanos sucessores.

Usando e Abusando:Utilidade, Mentiras e Manipulação

A ausência de planos sucessores oficiais, com a abran-gência do plano do prefeito Faria Lima, fez com que quais-quer estudos, principalmente os gerados pela própria Com-panhia do Metrô de São Paulo, fossem – e sejam ainda –utilizados para medir o que falta. O foco é sempre o quefalta, esquecendo-se, os planejadores e interessados, dasconquistas reais que esse sistema de transporte represen-tou não só para São Paulo, mas para o transporte públicoe, mesmo, para o serviço público no Brasil.

Até hoje, são comuns falas sobre redes de 150, 180 eaté 400 km de metrô como indispensáveis à cidade. Onúmero de 400 km aparece em comparação com cidadescomo Paris, apesar de não representar a realidade daque-la cidade onde o metrô, além disso, é resultado de 100anos de implantação. O número em torno de 180 km é

oriundo, geralmente, da comparação com a Cidade doMéxico que iniciou a construção de seu sistema poucosanos antes de São Paulo. Mas, os que comparam não lem-bram que o sistema de transporte público daquela cidadeé pior que o da capital paulista, o trânsito é caótico e asituação de poluição, muito pior.

A pior manipulação das informações parece ser a atri-buição exclusiva ao Estado da responsabilidade por in-vestir na rede de metrô. No entanto, até 1994, o projetode linhas de metrô obedecia exclusivamente a uma lógicade atendimento da demanda municipal, com tímidasintegrações tarifárias com linhas de ônibus do município.Os traçados das linhas de metrô pareciam “evitar” sair doslimites municipais. Os preconizadores da responsabilida-de do Estado parecem se esquecer de que, desde a Cons-tituição de 1988, a responsabilidade pelo transporte pú-blico é atribuição municipal. Parece ter-se estabelecido,entre nós, uma divisão de responsabilidades por modal enão pelas viagens. Enquanto o ônibus pode ser utilizadopor todas as esferas de governo para cumprir suas obriga-ções, somente o Estado pode e tem de expandir a rede demetrô.

O PROGRAMA INTEGRADO

Ao assumir o governo de São Paulo, em 1995, o go-vernador Mário Covas instituiu o Programa Integrado deTransportes Urbanos – Pitu. Esse é um programa um pou-co mais avançado no planejamento tradicional, pois não éresultado, simplesmente, de uma avaliação da situaçãopresente e prognose. Duas idéias-força estão presentes noprograma de ação do governo e são a base para sua for-mulação, a partir de 1995: a integração dos transportesque existiam, de responsabilidade do Estado, e a busca deformas novas de financiamento dos investimentos que fos-sem sugeridos.

A integração estudada significou, a princípio, acomplementação de gestão do transporte metropolitano,centralizada sob a mesma autoridade: a Secretaria dosTransportes Metropolitanos – STM. Dessa maneira, o pla-nejamento, a administração, fiscalização e operação detodos os modais de transporte metropolitano passaram aser exercidos pela STM, diretamente ou por meio dasempresas vinculadas (Cia. Paulista de Trens Metropolita-nos – CPTM, Cia. do Metropolitano de São Paulo – Me-trô e Empresa Metropolitana de Transportes Urbanos –EMTU). A esse conjunto, vieram se agregar as funçõesde execução, organização e coordenação das políticas para

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as regiões metropolitanas no Estado de São Paulo, umavez que a Secretaria abrigou, em sua estrutura, o FundoMetropolitano de Financiamento e Investimento – Fumefie a Empresa Metropolitana de Planejamento da GrandeSão Paulo – Emplasa. Portanto, as condições para a exe-cução de um programa integrado estavam dadas.

O conjunto de projetos em obras ou já finalizados – amaioria já nessa última condição – do Pitu envolve a in-clusão do poder público em:- empreendimentos de infra-estrutura, basicamente cons-tituídos pelas conclusões de diversas obras paralisadas,envolvendo linhas de metrô, corredores e centros de con-trole;- recuperação das ferrovias e sua transformação em no-vos serviços de metrô, que abrangem ainda a integraçãode linhas ferroviárias e a ampliação da frota de trens;- expansão do transporte metropolitano de alta e médiacapacidades, destacando-se as novas linhas de metrô, aconcessão e eletrificação de corredores e sua troncalização;- ações de gestão, envolvendo pesquisas, política tarifária,comunicação visual e a efetiva participação do usuário finalno controle de qualidade dos serviços prestados;- processo contínuo de planejamento, resultando no Pla-no Integrado dos Transportes Urbanos para 2020 – Pitu2020, um plano para resolver o futuro dos transportespúblicos de São Paulo.

A Recuperação das Ferrovias

Em 1995, no primeiro ano do primeiro mandato do atualgoverno estadual, as ferrovias tinham acabado de serunificadas em uma nova empresa estadual, a CompanhiaPaulista de Trens Metropolitanos – CPTM. Todas as li-nhas se encontravam defasadas e muitas com material ob-soleto e em péssima conservação.

Os serviços, principalmente na parte transferida daCBTU pelo Governo Federal, eram julgados como o piorserviço de transporte público urbano por seus usuários,nas pesquisas realizadas pela Associação Nacional deTrânsito e Transportes Públicos – ANTP. Seus dois gran-des sistemas, leste e oeste, nem mesmo permitiam a inte-gração com passagem livre entre eles, como as linhas doMetrô, e não incentivavam a integração com este serviçode melhor qualidade.

Ao longo dos anos vem sendo realizado um programade melhorias em todas as linhas com investimentos na casade bilhões de reais que já trouxeram as seguintes:

Novos e Modernos Trens

Foram adquiridos 30 Trens Unidade Elétrico (TUEs) emodernizados outros 48, de origem espanhola, todos elesdotados de um sistema de climatização, incluindo peças,componentes e módulos de reposição para manutenção,

MAPA 2

Rede de MetrôRegião Metropolitana de São Paulo – 1995

Fonte: Metrô.

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equipamentos de teste e diagnóstico, dispositivos e ferra-mentas especiais. Esses estão, hoje, circulando no ExpressoLeste e na linha C, que ladeia a marginal do Rio Pinhei-ros, e na linha D, de Brás até Guaianases. Outros trens,alemães, vão se juntar aos espanhóis e circularão na linhaC da CPTM, futura linha 6 – Celeste do Metrô.

Prioridade à Periferia Leste e Sul

Desde a pesquisa OD de 1987, as regiões sul (CapãoRedondo/Campo Limpo/Grajaú) e leste (Itaquera/Guaia-nases/Itaquaquecetuba) aparecem como as mais carentesde transporte público de massa. Em benefício dessas re-giões foram iniciadas as seguintes obras:- Projeto Leste: não adiantava apenas estender a linhaLeste do Metrô que já se encontrava saturada. Assim, onovo trecho, cujas obras ficaram por muito tempo para-das e foram retomadas e terminadas na atual gestão, foiincorporado à linha ferroviária existente que recebeu vá-rias ações de melhoria. As principais intervenções no tre-cho foram: três novas estações (Dom Bosco, JoséBonifácio e Guaianases); incorporação da estaçãoCorinthians-Itaquera servindo ao metrô e ao trem; esta-belecimento de 8 km de via permanente e rede aérea (ex-tensão Leste) entre as estações Artur Alvim e Guaianases;construção de três terminais de integração em Itaquera,José Bonifácio e Guaianases; desativação das estaçõesGuaianases (antiga), Patriarca, Vila Matilde, Carlos deCampos, Artur Alvim, Itaquera (antiga), XV de Novem-bro e Sebastião Gualberto; desativação de trecho de viacompreendido entre as estações Artur Alvim e Guaianases(antiga); modernização da via permanente e rede aérea notrecho Sebastião Gualberto-Brás; modernização e comple-mentação do sistema de alimentação e radiocomunicações.

Após as obras, um novo serviço foi entregue à popula-ção: o Expresso Leste, um serviço expresso do Brás aGuaianases com integração livre entre trem e metrô noBrás. Esse serviço é o embrião da futura linha 6 do Metrôem 2002.- Dinamização da linha Sul do trem metropolitano: aprincipal deficiência da antiga linha da Fepasa ao longodo Rio Pinheiros, que vai de Osasco a Jurubatuba, era afalta de estações entre Pinheiros e Santo Amaro, além desua capacidade e material rodante deficientes. Foi inicia-do e está em conclusão o projeto de dinamização dessalinha com a construção de sete novas estações, novos trens,vias, sistema elétrico e sinalização, tornando a linha com-patível com uma linha de metrô.

- Linha 5 do Metrô: está em construção, para inaugura-ção em 2002, a primeira linha totalmente nova de metrôem 23 anos, com 9,4 quilômetros de extensão, em seu pri-meiro trecho, entre Capão Redondo e Largo 13 de Maioem Santo Amaro.

Integração Livre

O pressuposto da integração ganhou nova dimensão,com a introdução de passagens livres de diversos tiposentre metrô e trem metropolitano, inclusive com a utiliza-ção de outros modos de transporte. Nessa direção é quese lê a incorporação do fenômeno de transportes clandes-tinos por vans ao sistema regular de transporte. Tratou-se, não de repelir o novo modo de transporte, aceito e in-centivado pelos usuários, mas de utilizá-lo a favor dotransporte regular. Foram instituídas, então, as PontesOrca, sistema de interligação gratuita entre estações detrem e de metrô, operado pelo que se designou Operado-res Regulares Coletivos Autônomos – os Orcas. Esse novoserviço foi instaurado entre as estações Barra Funda (queserve ao metrô e ao trem) e Vila Madalena (do metrô) eentre esta e a estação Cidade Universitária (do trem, namarginal do Pinheiros).

Além desse novo modo de integração, outro foiousadamente estabelecido, a despeito do receio dos parti-dários do tradicional planejamento de transporte, porquenão estava embasado em experiências anteriores ou nãohavia como fazer prognoses a partir da “situação atual”: apassagem livre entre estações de trem e metrô, nas esta-ções Brás e Barra Funda e, mais recentemente, entre asestações Luz da CPTM e Luz do Metrô.

A Integração se Torna Tarifária

Em 2002, será lançado o Metropass, o smart card dostransportes metropolitanos, possibilitando que as experiên-cias de passagens livres, hoje restritas ao descrito anterior-mente, ocorram em todo o sistema. Inicialmente restritoao transporte, esse sistema pode se ampliar e o mesmocartão ser utilizado em outros serviços, como pagamentode pedágio, passagens em ônibus intermunicipal, etc. OMetropass pode gerar, ainda, uma série de promoções notransporte coletivo (como o sistema de milhagem), valo-rizando esse setor e conferindo status ao seu usuário.

Muitas outras ações desencadeadas pelo Pitu foram eestão sendo adotadas nos transportes metropolitanos, comoa reorganização dos sistemas de linhas de ônibus metro-

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politanos, as licitações para as concessões desse transportenas Regiões Metropolitanas de São Paulo e BaixadaSantista, a utilização, pela primeira vez no mundo, de téc-nicas de pesquisa de opinião para fiscalização direta dasconcessões, o tratamento padronizado dos chamados ca-minhos metropolitanos (as vias de uso e interesse de maisde um município nas regiões metropolitanas de São Pau-lo). Esses temas podem ser retomados em outra ocasião,outro artigo, uma vez que o espaço é limitado e devemosabordar, ainda, o novo modelo de planejamento dos trans-portes desenvolvido, o Plano Integrado dos TransportesUrbanos para 2020, o Pitu 2020.

O NOVO HERDEIRO: O PITU 2020

Em 1998, após a realização da nova pesquisa Origem-Destino realizada em 1997 que trouxe dados atualizadossobre os fluxos de deslocamento na Região Metropolita-na de São Paulo, começou a fase final do que seria o su-cessor moderno do estudo da rede básica de metrô de 1968.

Pela primeira vez, o transporte era planejado em fun-ção do seu impacto sobre a metrópole e o tipo de vidadesejado por seus habitantes. Também pela primeira vez,partia-se para a elaboração de um plano com a participa-

ção das prefeituras da região, principalmente da capital.Em vez de apenas um resultado estático, o plano preten-deu deixar uma metodologia dinâmica, um processo deplanejamento retroalimentado, que poderia ser reutiliza-do quantas vezes fosse desejado para restaurar o mesmoexercício no futuro.

Ao mesmo tempo que a utilidade inicial de “publicar”uma rede definitiva de metrô seria atingida, também asoutras providências na área de transporte, em suas esfe-ras estaduais e municipais, estariam contempladas. O re-sultado final foi apresentado no Mosteiro de São Bentoem julho de 2000. O local escolhido para lançamento temum caráter simbólico em um plano como este: nesse mes-mo mosteiro se encontra a primeira construção de alvena-ria da cidade e é nesses arredores que está o ponto de par-tida do aldeamento inicial da metrópole. Dessa forma,simbolizava-se a volta às origens para repensar e domaras forças espontâneas de formação urbana dando-lhes umdestino construtivo.

Pitu e Pitu 2020 são a mesma coisa?

É importante salientar as diferenças do novo instrumen-to – Pitu 2020 – do que já vinha sendo utilizado pela Se-

MAPA 3

Rede de MetrôRegião Metropolitana de São Paulo – 2002

Fonte: Secretaria dos Transportes Metropolitanos (2000).

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cretaria de Transportes Metropolitanos desde 1995, o Pitu.Este continua sendo um programa, instrumento de traba-lho e coordenação, que declara o conjunto de ações jádeflagradas. Isto significa que um projeto, que deve serparte do Pitu 2020, já com recursos, obras, contratos emandamento ou em negociação, passa a fazer parte do Pitucom seus objetivos, custos, fontes e responsáveis indica-dos claramente.

Enquanto isso, o Pitu 2020 é o plano que identifica,para dado momento, a visão de conjunto não só do queestá no Pitu (programa) mas daquilo que deve se tornarviável para o início de sua implantação. O Pitu 2020 é umcenário a ser perseguido por todos e apropriado ao mun-do real da forma oportunista que for surgindo.

Princípios do Pitu 2020: a cidade que desejamos

O Pitu 2020 teve um início diferente: em vez de prog-nósticos frios sobre o futuro, partiu da formulação de umdesejo. Uma reflexão sobre como queremos estar viven-do em 2020, qual será a cara de nossa metrópole. O so-nho, construído coletivamente por diversos agentes quedecidem os rumos da cidade – prefeitos municipais, se-cretários municipais de transporte, técnicos de empresasoperadoras, urbanistas e estudiosos do transporte público –,é estruturar uma metrópole competitiva, saudável, equili-brada, responsável e cidadã. As estratégias específicas paraos transportes metropolitanos partem dessa estação.

Metodologia do PITU 2020:participação e flexibilidade

Mais que um plano, o Pitu 2020 pretende ser um pro-cesso: contínuo de planejamento dinâmico, que possa in-corporar as mudanças sociais e econômicas; democráti-co, que envolva os agentes responsáveis pela gestão eoperação do transporte; completo, que examine não só osinvestimentos, mas as medidas de gestão do sistema; rea-lista, que proponha medidas de financiamento regular.

Planejamento Estratégico

No dicionário, estratégia é a “arte de explorar condi-ções favoráveis com o fim de alcançar objetivos específi-cos”. Por extensão, essa é a definição do planejamentoestratégico usado no Pitu 2020. O plano começa com avisão futura da metrópole. A cidade que sonhamos nosdiz qual o rumo a seguir. A partir dela, a seqüência é téc-

nica: visão futura da metrópole; objetivos da política detransporte; indicadores de desempenho; cenários futurossocioeconômicos e urbanos; estratégias nos cenários fu-turos; melhor estratégia para a metrópole sonhada; e pro-postas do Pitu 2020.

Modelagem de Apoio

Foi usado o simulador Strategic and Regional Model –Start, desenvolvido pela MVA Consultancy e adaptado pelaSetepla Tecnometal Engenharia Ltda. às condições de SãoPaulo. O Start tem, como diferencial, o modo como simulacom maior riqueza de detalhes o processo de escolha do usuá-rio de transporte. O modelo vai mais longe, calculando osimpactos das políticas propostas para o futuro e avaliandoos benefícios para todos os segmentos da sociedade.

Resultados do Plano: solução e não melhoria

Uma das características marcantes do Pitu 2020 é queseu objetivo é a solução e não a melhoria apenas. Soluçãoque, tanto quanto possa ser prevista em determinado mo-mento, uma vez “construída” resultará na obtenção dametrópole utópica que foi imaginada como sua premissa.

É uma pena que no Brasil existam tão poucos planosque identifiquem para uma determinada visão a “solução”de qualquer problema com seus custos e prováveis prazosidentificados objetivamente. O Pitu 2020 se propõe comoescola para esse exercício político de planejar dinamica-mente e em conjunto a realidade futura a ser construídapor todos.

Principais Propostas

Um exercício mostra os prejuízos pela não-execuçãode um plano de transportes como o preconizado pelo Pitu2020 e os ganhos com sua aplicação. Caso não seja exe-cutado, ou somente sejam finalizados os investimentos jáiniciados, a situação da mobilidade urbana na Região Me-tropolitana de São Paulo seria a seguinte:- as viagens de automóvel crescem 80%;- cai de 50% para 43% a participação do transporte pú-blico nas viagens urbanas;- cresce o tempo gasto em viagens: 45% para o transpor-te público e 60% para o automóvel;- a velocidade no centro expandido na hora de pico dimi-nui 25%;

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- aumenta o monóxido de carbono no centro expandido.Com a implantação do Pitu, esse quadro se reverte e osganhos seriam:- a mobilidade recupera as condições existentes em 1977,mesmo com o aumento populacional;- aumenta para 60% a participação do transporte público;- aumenta a velocidade média das viagens em 20% (35%na velocidade das viagens coletivas, 30% na velocidadedas viagens da população de baixa renda e 16% no centroexpandido);- reduz-se o monóxido de carbono no centro expandido.

O resultado dessa primeira construção da metrópoledesejada será uma metrópole totalmente acessível portransporte público. Serão 284 km de novas linhasmetroviárias, um trem especial ligando os aeroportos, amodernização das linhas ferroviárias “de aproximação”entre a periferia distante e os pólos da metrópole, a refor-mulação nas ligações ferroviárias regionais da RegiãoMetropolitana de São Paulo com Sorocaba, Campinas e

São José dos Campos, corredores de ônibus, “bondes”modernos, linhas circulares de microônibus no centro ex-pandido, um plano viário metropolitano – os caminhosmetropolitanos –, obras de melhorias nas rodovias, orodoanel, o plano municipal de tráfego e sistema viáriodo município de São Paulo, melhorias operacionais noviário da capital, estacionamentos centrais (em garagenssubterrâneas) e periféricos (próximos ao sistema de tri-lhos). E, ainda, uma medida polêmica: a proposta, pelomunicípio, do pedágio urbano.

Fontes de Recursos

O investimento total necessário para instituir, ao lon-go dos próximos 20 anos, o Pitu 2020, é de R$ 30,3 mi-lhões. Nesse valor estão inclusos investimentos que já estãosendo feitos pelo governo do Estado e investimentos pro-gramados pelos municípios, como as melhorias viáriaspropostas pela Prefeitura de São Paulo na ocasião da ela-boração do Pitu 2020. Hoje, com novos prefeitos, os mu-

MAPA 4

Rede de MetrôRegião Metropolitana de São Paulo – 2020

Fonte: Secretaria dos Transportes Metropolitanos (2000).

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nicípios estão revendo prioridades, prazos e isso pode serincorporado ao Pitu 2020, conforme já explicado, pelaflexibilidade de sua metodologia.

Impasse do Investimento Tradicional

No modo tradicional, previsto o montante de investi-mento, o Tesouro arcaria com os custos, por meio de re-cursos diretos da arrecadação ou de empréstimos internose externos apropriados em seu orçamento. Simplesmenteessa era a única forma de financiar o transporte públicogerando um impasse cada vez maior, em vista da reduçãode recursos públicos disponíveis para demandas tambémmaiores em todas as áreas, especialmente na social.

Algumas iniciativas tentaram “quebrar” esse impasse,apropriando, para o planejamento urbano, recursos an-tes inexistentes no orçamento e criados por planejadores

interessados na solução dos problemas da cidade. Ape-nas como exemplo, citam-se as operações urbanas, me-canismo de obter recursos adicionais pelos benefíciosque os construtores urbanos obtêm da proximidade desuas obras da infra-estrutura urbana já consolidada,como transporte coletivo (no caso, o metrô é conside-rado “benefício”), redes de água, luz, viário, telecomu-nicações, etc.

Recentemente, busca-se, na iniciativa privada, a par-ceria para o financiamento. Nos transportes públicos, es-pecialmente no transporte sobre trilhos, essas parceriasestão sendo tentadas na construção da linha 4 – Amarelado metrô, uma engenharia financeira que o Metrô de SãoPaulo vem montando com as agências internas e externasde financiamento.

São tentativas que, em alguns casos, foram bem-suce-didas. Mas permanece, na base, o uso predominante dos

QUADRO 1

Resumo das Proposições do PituRegião Metropolitana de São Paulo – 2020

Infra-Estrutura Intervenção CaracterísticaInvestimento

Total(R$ milhões)

Total 30.312

TrilhosRede metroviária Estabelecimento de novas linhas 284 km de metrô 21.820

metroviáriasTrem especial dos aeroportos Ligação dos aeroportos urbanos 44 km em trem especial 880Trem aproximador Modernização das linhas 88 km de melhorias 440Trem regional Ligação a Campinhas, Sorocaba e 177 km em trem reformulado 874

São José dos CamposPneus

Sistema metropolitano Corredores de ônibus e troncalização 300 km de corredores exclusivos 223Sistema municipal Veículo leve sobre pneus – 260 km de corredores segregados 1.596

VLP e de corredoresSistema complementar Linhas circulares de microônibus 200 km de itinerário em pista simples 33

no centro expandidoViário

Plano viário metropolitano Novas ligações, maior capacidade, 262 km de melhorias 226cruzamentos em desnível

Concessão das rodovias Obras de melhorias nas rodovias 123 km de melhorias 519Rodoanel Construção integral, 121 km em pista dupla 2.562

complementando o trecho oestePlano municipal de tráfego Continuidade das obras 149 km de melhorias viárias 283e sistema viário – PMSP que estão previstasIncremento operacional do viário – PMSP Instalação de anéis de tráfego prioritário 15 km de melhorias em vias 527

Gestão do TrânsitoPedágio urbano Introdução no centro expandido 233 km2 de área com pedágios 15Estacionamentos centrais Garagens subterrâneas no 30 locais com 11.440 vagas 223

centro expandidoEstacionamentos periféricos Construção de estacionamentos 40 locais com 26.300 vagas 91

junto ao sistema de trilhos

Fonte: Secretaria dos Transportes Metropolitanos (2000).

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recursos públicos que continuam escassos e têm de sercompartilhados com vários outros setores.

Opções a Serem Trabalhadas – Uma opção que vem sen-do estudada para o financiamento dos transportes é a vin-culação, pela Lei Orçamentária de recursos públicos oriun-dos do uso da infra-estrutura de transportes, no caso, dosrecursos arrecadados com o Imposto sobre a Propriedadede Veículos Automotores – IPVA na região. Esse impos-to é, em sua essência, similar a um Imposto de Renda, poisonera quem tem bens, e quanto mais caros os bens, maisimposto se paga. Trata-se, pois, de tornar público que orecurso arrecadado pelo bem que mais onera o sistemaviário e a circulação urbana será usado para... a circula-ção urbana. Além disso, a arrecadação desse imposto podeser “regionalizada”. Do total arrecadado no Estado de SãoPaulo, 61% é oriundo do Município de São Paulo, 12%do restante da Região Metropolitana de São Paulo e 27%,do restante do Estado de São Paulo. Isto significa que 73%do recurso é arrecadado nessa metrópole e poderia, emtese, ser destinado a essa região.

Não se trata de vinculação de receita, proibida consti-tucionalmente, mas uma vinculação contábil pública, parademonstrar, aos pagadores de impostos, que o valor arre-cadado com o IPVA é o mesmo aplicado nos investimen-tos com o transporte público e a acessibilidade. O plano é

visível e pode ser cobrado. O imposto é pago e sua “apli-cação” pode ser “visualizada”. De qualquer forma, essadestinação já existe da parte do Estado, uma vez que osinvestimentos em transporte nesta gestão, para a RegiãoMetropolitana de São Paulo, equivalem a mais do que aarrecadação de IPVA na região.

Esses são exercícios que um plano que parte da visãoda metrópole do futuro e da determinação de resolver osproblemas do transporte urbano na Região Metropolitanade São Paulo incentiva. Pois o plano instiga atitudes polí-ticas com "P" maiúsculo, que buscam o entendimento en-tre os decisores, sejam eles do governo municipal, esta-dual ou federal, e o entendimento político para a soluçãodefinitiva dos problemas, em vez de soluções de uma sógestão. O mérito de um plano como o Pitu 2020 é servircomo referência para o futuro. É oferecer um leque de pos-sibilidades suficientemente amplo e abrangente que, emvez de restringir opções, estimule sua constante adapta-ção e expansão.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

PREFEITURA DO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO. Estudo econômico-financeiroe pré-projeto de engenharia da rede de metrô de São Paulo. São Paulo, 1968.

SÃO PAULO (Estado). Secretaria dos Transportes Metropolitanos. Plano Inte-grado dos Transportes Urbanos para 2020 – Pitu 2020. São Paulo, 2000.

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A CRISE DA MOBILIDADE URBANA EM SÃO PAULO

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A CRISE DA MOBILIDADE URBANAEM SÃO PAULO

melhor entendimento da crise de mobilidade ur-bana paulistana passa por uma análise mais deta-lhada das diversas relações entre: o uso e a ocu-

no sistema viário principal da cidade passou de 40 km, nahora de pico da tarde, para 120 km. Hoje há congestiona-mentos significativos em corredores da mais longínquaperiferia e em todos os quadrantes. O grau de “viscosida-de” urbana aumenta, e a crise de mobilidade se agrava.Os deslocamentos ficam mais lentos, e as áreas conges-tionadas crescem.

Outro aspecto importante a ser considerado é a existên-cia de duas realidades urbanas bem distintas. Como se fos-sem duas cidades, temos a São Paulo oficial e a clandesti-na, irregular, completamente fora da lei e de controle.

As ocupações irregulares – favelas de alvenaria – sur-gem em velocidade e extensão assustadoras, gerandomobilidade clandestina sem planejamento e sem contro-le. Aliás, o planejamento urbano é um processo pratica-mente inexistente. O que se propõe é sempre atrasado evai a reboque da realidade incontrolada que se implantaapesar do e ao arrepio da lei.

São Paulo tem 14 mil km de vias, sendo 11,7 mil pavi-mentados e 2,3 mil de vias de terra. O sistema viário prin-cipal, onde a maior parte dos deslocamentos ocorrem, podeser considerado com 2,5 mil km de extensão.

Uma reflexão, ainda que breve e superficial, já mostra,comparando-se alguns parâmetros, que a solução ou mes-mo a melhor abordagem da questão da mobilidade urbananão está em atitudes tópicas, empreendimentos pontuaisou ações episódicas.

pação do solo urbano, os sistemas de transporte e a infra-estrutura viária e a interação entre fator humano, veículo,via pública e meio ambiente.

A maior cidade brasileira tem 25% da frota nacional, oque hoje representa perto de cinco milhões de veículos.Praticamente temos um carro para cada dois habitantes.A pesquisa Origem-Destino, realizada a cada dez anosdesde 1967, abrangendo a área mais fortemente urbaniza-da da Região Metropolitana de São Paulo – que registraperto de seis milhões de veículos –, identificou em suaúltima versão 30 milhões de deslocamentos diários, sen-do 10 milhões em transporte coletivo, 10 milhões em trans-porte individual e os restantes 10 milhões a pé.

Nos últimos 40 anos tem surgido sempre o questiona-mento sobre o possível futuro colapso ou travamento to-tal do trânsito. A hipótese de caos generalizado baseia-seem premissa falsa. Seria necessário que a cidade se verti-calizasse indefinidamente ou que a taxa de motorizaçãochegasse a níveis estratosféricos, o que nunca irá ocorrer.Entretanto, o que se verifica é o aumento do grau e daextensão da área de deterioração do trânsito na cidade,que acaba contribuindo para a degradação urbana.

Num período de cinco anos (entre 1992 e 1997), a médiade quilômetros de congestionamento medidos pela CET

Resumo: A crise da mobilidade urbana requer a orquestração e a continuidade de uma série de iniciativas queintegram os diversos agentes públicos e privados. São traçadas diretrizes que envolvem a combinação daspolíticas de uso do solo, transporte e trânsito que devem compor a proposta de um modelo sistêmico em umaabordagem profunda que inclua as questões de oferta de infra-estrutura, distribuição nacional de viagens emonitoramento eletrônico do trânsito. E aí a cultura preventiva deve prevalecer em relação à corretiva. Asquestões de fluidez devem ter importância secundária em relação às de segurança no trânsito. Esta se resumena identificação e no gerenciamento de riscos envolvendo o fator humano, o meio ambiente, a via pública e oveículo.Palavras-chave: mobilidade urbana; transporte; trânsito e política pública.

ROBERTO SALVADOR SCARINGELLA

Engenheiro Civil e Jornalista, Diretor Superintendente do Instituto Nacional de Segurança no Trânsito

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É preciso sair da escala do semáforo, do viaduto, dotalão de multa ou da placa de sinalização. A extensão e agravidade do problema do trânsito paulistano requeremuma abordagem sistêmica, uma intervenção profunda comvisão de longo prazo. É um desafio tecnológico, políticoe administrativo que exige um tratamento mais holístico emenos setorizado e um amplo debate com todos os seg-mentos representativos.

A raiz da crise passa pela disfunção que representa odivórcio entre as políticas de uso do solo, transporte e trân-sito. Mesmo que não estejam escritas ou explícitas, elas aca-bam sendo a sucessão de ações e omissões que a máquinapública permite. Um plano diretor contendo uma política deuso e ocupação do solo pode ajudar muito na racionalizaçãodas necessidades de deslocamentos. Sabe-se até pela sim-ples observação visual que a habitação cresce em direçãodo extremo leste da cidade e o trabalho avança no qua-drante sudoeste. O resultado? Mais viagens, maiores dis-tâncias percorridas e, portanto, mais congestionamentos.

A verticalização da “cidade legal” tem ignorado o im-pacto no déficit de áreas de estacionamento e, como con-seqüência, em São Paulo é praticada uma das tarifas maisaltas do planeta.

A administração municipal deve abrir e conduzir odebate a fim de se encontrar esse modelo sistêmico paraenfrentar o problema da mobilidade urbana. O esquemaclássico de dimensionamento de meios de transportes ede infra-estrutura viária, em função das projeções do cres-cimento do número de viagens, não mais se aplica, poislevaria a uma inviabilidade.

O novo acordo social deve transcender uma visão se-torial e envolve a questão comportamental do público usuá-rio e de metodologias e recursos tecnológicos ainda pou-co utilizados no Brasil. Na sua essência, o modelo a serproposto, debatido, aprovado e implementado deve con-ter como diretriz básica tecnologia atualizada, variável po-lítica bem conduzida e uma saudável ação administrativa.

A complexidade do problema, os fatores limitantes, oobrigatório envolvimento e o comprometimento da comu-nidade é que darão respaldo a sua intervenção ampla eprofunda. Não será um plano ou modelo que sairá de umaúnica prancheta, por melhor que seja o projetista.

O referido modelo deve ter, em primeiro lugar, dadose informações consistentes. Só se conseguirá transformaradequadamente qualquer realidade se houver um adequa-do conhecimento da mesma. As pesquisas decenais de ori-gem-destino a partir de 1967 serão muito úteis, mas insu-ficientes.

Juntar urbanistas, técnicos de transporte urbano e osde trânsito não constituirá tarefa muito fácil, porém seráessencial para acabar com o já tradicional divórcio dastrês “falanges”.

Muito se pode racionalizar, sintonizando as três políti-cas. Além de dados e da aproximação do uso de solo-trans-porte-trânsito, é preciso desenvolver ações de aumento daoferta de infra-estrutura, racionalização da demanda deviagens e monitoramento eletrônico do trânsito.

O crescimento da oferta de capacidade do sistema viá-rio e do transporte coletivo de grande capacidade, que sem-pre envolve capital intensivo, tem sido uma solução absolu-tizada pelo poder público e pelas comunidades científicae tecnológica, sem deixar de citar a iniciativa privada. É aescola do “hardware urbano”. O erro não está em valori-zar a grande obra, e sim absolutizá-la, como se ela fosse aúnica e completa solução. Essa é uma visão limitada darealidade e característica de países menos desenvolvidos.

A supervalorização da “cirurgia” urbana não é corren-te nos países de Primeiro Mundo, onde há o primado do“software urbano” em relação ao “hardware urbano”. Ra-cionalizar o uso da infra-estrutura já existente tem priori-dade em relação a novas soluções de capital intensivo.

Foi um marco, na década de 60, a contratação de consul-toria estrangeira pela administração municipal. Isso ocorreudurante as primeiras pesquisas, e o estudo da viabilidadetécnica econômica e financeira do metrô de São Paulo foiimportante, principalmente pelas ferramentas de análisee projeção de viagens utilizadas, que proporcionaram umentendimento adequado às questões de mobilidade. Con-cluído na época em que se acreditava no “milagre brasi-leiro”, esse estudo animou técnicos e administradores pú-blicos a propor um sistema estrutural de vias expressasque acabaram se transformando em vias apenas “impres-sas” em coloridos relatórios técnicos.

Buscava-se na época o que se acreditava um modelotécnico-clássico para o futuro final do milênio, ou seja:malha de 400 km de vias expressas, rede metroviária dequase 200 km e modernização da ferrovia suburbana, que,na rede metropolitana, soma 270 km.

Nem a crise do petróleo do início da década de 70 foisuficiente para mostrar a limitação do modelo. De lá paracá as dificuldades só aumentaram.

Os defensores do modelo clássico não conseguiram verque em primeiro lugar não existiriam recursos financei-ros e, mesmo que existissem, não haveria tempo (a frotadobra a cada dez anos). Caso houvesse tempo e dinheiro,não existiria espaço para ampliar o complexo viário se-

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gundo as projeções. Tudo isso frustrou muita gente queinsistiu na sangria dos cofres públicos para privilegiarobras em relação aos serviços, resultando em uma cidadeainda desequilibrada sob vários aspectos.

Há de se ressaltar que, numa cidade com dez milhõesde habitantes e cinco milhões de veículos, não há obraviária ociosa, qualquer que seja. Entretanto, é preciso umavisão menos setorial e mais social do problema.

Hoje fala-se muito do rodoanel, que, em 35 km de obra,vai sorver perto de 800 milhões de reais, e a Prefeitura deSão Paulo diz que não vai colocar os prometidos 200 mi-lhões acordados pela antiga administração.

A pergunta que se faz é: quando a obra completa, quedeverá custar perto de seis bilhões de reais, ficará pron-ta? Nessa data qual será a frota circulante? O recurso viráde onde? Que outros projetos, metas e serviços serãopreteridos?

Os técnicos têm afirmado que só com a cobrança dopedágio o rodoanel não se viabiliza. O sistema metroviário,de grande eficiência, hoje soma 50 km de rede e deveriaser no mínimo dez vezes maior pela escala da cidade. Essaperspectiva já indica que perdemos o bonde da históriapelo prazo e pelos custos inviáveis. Infelizmente. O siste-ma de metrô está saturado e já pede a desintegração entreônibus e metrô (vide Estação Tatuapé), que foi grande metahá 25 anos, quando a primeira integração ocorreu.

Tem enorme importância a modernização do sistemaferroviário de passagens de subúrbio. O uso de uma tec-nologia de nível metroviário garantiria enorme benefícioa toda a região metropolitana. Apesar dos esforços paraisso, é preciso buscar solução na escala de 270 km e nãomenos.

A questão do estacionamento tem sido pouco conside-rada no debate das soluções de mobilidade. Historicamentenos últimos 30 anos pouca importância foi dada ao tema.Tudo se passou como se o estacionamento não fosse par-te essencial do trânsito urbano.

RACIONALIZAÇÃO DA DEMANDADE VIAGENS

A já mencionada concentração urbana, a distribuiçãoirracional de horários de atividades – gerando desloca-mentos pendulares simultâneos –, a precariedade do trans-porte coletivo e o sistema viário insuficiente são um con-vite ao desenvolvimento de soluções de “software urbano”,procurando racionalizar os deslocamentos e as atividadesdentro da infra-estrutura já existente.

A maioria dos deslocamentos inevitavelmente deveocorrer em determinado momento nas condições perma-nentes, entretanto pouca gente conjectura se há ou nãoalternativa.

A partir da informação obtida para enfrentar um deslo-camento com o trânsito muito lento, deve-se, quando pos-sível:- Alterar o horário, o percurso, o modo de transporte e/ou o destino da viagem.

- Não executar a viagem.

- Enfrentar com consciência a dificuldade e ir em frente.

De toda forma é melhor se ter várias opções do queapenas uma. Uma questão da qual muito se fala – maspouco se faz – é a implantação concreta de medidas quediminuam o tamanho e o número de deslocamentos, como,por exemplo, uma legislação que beneficie assentamen-tos de áreas-dormitório próximas a postos de trabalho.Mesmo que em escala relativamente pequena, o impactono trânsito seria significativo.

O escalonamento dos horários de trabalho ou das dife-rentes atividades até certo ponto já existe, porém sua am-pliação costuma atrapalhar a vida de quem tem mais deuma atividade (geralmente escola e trabalho).

Há poucos dados e estudos consistentes a esse respei-to. Infelizmente o debate tem sido muito baseado em“achismos”. Note-se, entretanto, que as facilidades da in-formática, do geoprocessamento, dos bancos de dados edas simulações eletrônicas poderiam iluminar muito essadiscussão. Melhores soluções apareceriam.

O transporte de cargas com caminhões grandes, mé-dios e pequenos ajuda a complicar a situação. Não falta-ram tentativas nos últimos anos em usar horas ociosas depouco movimento para se fazer o transporte e a operaçãode carga e descarga. O transportador gosta da idéia, apopulação que enfrenta o trânsito aplaude, entretanto osresponsáveis pelos pontos de recebimento não concordamem ter em seu estabelecimento equipes de pessoal e segu-rança para receber a carga em horários não-comerciais. Oacordo nunca foi possível.

É de se notar que propostas alternativas de uma distri-buição mais inteligente de viagens ou deslocamentos sãouma forma de melhorar o trânsito sem grandes investimen-tos, porém é necessária muita vontade política para con-vencer as pessoas, físicas ou jurídicas, inclusive políticos,a mudarem de comportamento.

Muitos preferem a liberdade de perder tempo e dinhei-ro no congestionamento a alterar hábitos. Não se pode dis-

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cutir medidas de racionalização de deslocamentos sem quese considere o rodízio municipal. Se não é uma solução pro-funda, inegavelmente hoje diminui o número de quilôme-tros de congestionamento no centro expandido da cidade.

Se pudéssemos ter uma foto aérea de todo o sistemaviário da cidade na hora de pico da tarde, por exemplo,não teríamos certamente toda a frota de veículos circu-lando ao mesmo tempo, pois isso não é mais possível hádécadas. Se cada munícipe motorizado, usando seu direi-to constitucional de ir e vir, tivesse a idéia de sair na mes-ma hora com seu veículo, isso seria fisicamente impossí-vel. A cidade já se “afoga” em congestionamentos com25% da frota circulando ao mesmo tempo. Portanto, asolução do rodízio guarda dentro de si uma dinâmica queanula com o tempo o benefício pretendido, não somentepela aquisição de um segundo veículo (geralmente maispoluidor), como também a reserva de carros viáveis norodízio vai sendo mobilizada.

Outra limitação do rodízio, que é uma regulamentaçãoque pretende ser sistêmica, é a fiscalização manual, por-tanto parcial e precária. Mesmo assim, cada dia pertode três mil condutores são multados por desrespeitar orodízio.

A prefeitura tem um desafio ainda não suficientementeabordado: como administrar a escassez crescente de es-paço para circular. A solução tem de ser tecnicamenteviável e socialmente o mais justa possível. Hoje quem nãotem veículo próprio e é usuário cativo de ônibus é penali-zado pelo congestionamento provocado pelo carro parti-cular. É injusto!

Quando existe uma escassez de um bem público, deveser administrada a cobrança pelo uso. É o caminho demaior justiça e viabilidade. A cidade adotou esse cami-nho, quando criou, há mais de 20 anos, a Zona Azul. Fal-tava espaço para todos estacionarem livremente junto aomeio fio e decidiu-se cobrar pelo uso. É bom lembrar quedepois de grande celeuma foi o próprio comércio, que antesreclamava, que passou a solicitar a ampliação do sistema.Isso porque eram os próprios comerciantes que deixavamseus carros estacionados, impedindo o uso de vagas paraseus clientes. Foi fácil mostrar que cada vaga passou a serusada em média por quatro ou cinco carros cada dia. Hou-ve, portanto, aumento de capacidade. Hoje São Paulo tem29 mil vagas de Zona Azul.

Em qualquer sistema viário saturado a retirada efetivade 20% dos veículos que circulam principalmente noshorários críticos representa um efeito de fluidificação dotrânsito. Resta discutir como retirá-los. É oportuno lem-

brar que, ao contrário de países como o Japão, aqui, mes-mo sem provar que se tem onde guardar o veículo, o cida-dão pode comprá-lo sem qualquer impedimento. A expe-riência internacional (como a do México) não recomendao rodízio “dia par com par” como eficaz o suficiente. Ine-vitavelmente a cidade deverá debater a solução do trânsi-to tarifado ou o pedágio urbano.

O agravamento da dificuldade de circular e o cresci-mento do número de quilômetros de congestionamento,fazendo aumentar ainda mais a escassez de espaço viário,leva a se considerar o deslocamento em automóvel parti-cular, em vias saturadas e nas horas de pico, um verdadei-ro privilégio.

O espaço é insuficiente para atender a toda a demanda.A tarifação das vias saturadas nos horários mais críticospor meio de controle eletrônico – que possibilita a identi-ficação do veículo em movimento – deve garantir a reti-rada de circulação nas vias tarifadas de 20% da frota, oque possibilita fluidificar o trânsito.

O sistema não tarifa áreas, e sim vias, o que resulta defato em melhor distribuição de deslocamento do veículoparticular no uso do sistema viário público.

O pedágio urbano é uma tese debatida há muito tempo.Um dos motivos de sua não-utilização era a falta de tec-nologia para identificar o veículo em movimento, dificul-dade hoje superada no Brasil. A tarifação do trânsito ur-bano já é aplicada em algumas partes, e a comunidadetécnica mundial transformou-a em assunto de grande atua-lidade. O pagamento direto pelo exercício de privilégiodo uso de um bem cuja oferta é escassa permite reinjetaros recursos arrecadados na ampliação do sistema de trans-porte coletivo de qualidade, o que, por sua vez, facilitaráainda mais a retirada de carros particulares de circulação.

É importante alocar custos de modo mais eqüitativo,associando-o ao uso, em vez de socializá-lo por via tribu-tária. Uma das formas, talvez a melhor, de se associar opedágio urbano à implantação de projetos definidos –como, por exemplo, o metrô, o rodoanel e o monitoramentoeletrônico do trânsito – é transferir a tarefa para a inicia-tiva privada.

O poder concedente não investe, apenas controla, re-gulamenta e garante a aplicação dos recursos para as fi-nalidades previstas e visíveis ao público usuário.

Tecnicamente o problema já está resolvido; entretantoo ponto crucial encontra-se na decisão política da cobrançado pedágio. Muitas vezes o político quer buscar saídas apartir de ações simpáticas e indolores. Não raramente fixa-se no poder das grandes obras, vive a frustração da falta

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de recursos para realizá-las e ignora o certo potencial ad-ministrativo, técnico e político das medidas operacionaise de racionalizar o uso do espaço e da infra-estrutura exis-tentes.

A resistência em se arbitrar uma tese mais ousada emoderna resultará no agravamento e na degradação daqualidade de vida urbana. Até quantos quilômetros decongestionamento a cidade suporta?

Há seis anos realizamos, juntamente com um grupo deengenheiros, um estudo apresentado em congresso da Anipno qual se simulava a tarifação de 212 km do sistema viá-rio principal saturado, cobrada por meio de pedágio ele-trônico, o que geraria uma receita anual de aproximada-mente 700 milhões de reais.

MONITORAMENTO ELETRÔNICODO TRÂNSITO

Há muito administrador público que reduz a questãodo controle de trânsito a talões de multa, semáforos, pla-cas e alguma “pintura” de solo. Tudo se passa como se otrânsito se auto gerisse.

O agente ativo do processo seria o condutor, geralmenteindisciplinado e culpado de tudo o que de inconvenienteacontece na via pública. É preciso lembrar que trânsitonão é mais matéria de tratamento intuitivo ou de repres-são policial apenas. O problema é complexo e pede tec-nologia.

A informática, a engenharia de tráfego, a eletrônica, atecnologia comportamental e a democratização da infor-mação são ferramentas essenciais e que modernamentecompõem o que se chama de trânsito inteligente. A infor-mática está cada vez mais potente, barata e amigável aousuário. É inadmissível que São Paulo tenha apenas 25%de semáforos inteligentes. A eletrônica está aí para serimplantada. Painéis de mensagens variáveis e circuito detelevisão são essenciais.

O monitoramento eletrônico do trânsito em São Paulodeu os primeiros passos no pioneirismo dos semáforoscoordenados e eletronicamente controlados a partir de1982. O que falta é escala e atualização tecnológica. Afi-nal, em informática, um equipamento de 20 anos é quasepré-histórico.

O sistema de trânsito não depende apenas do poderpúblico. O desempenho do trânsito depende também daatuação do condutor e do pedestre. Esta por sua vez de-pende do grau de informação que se disponibiliza ao uso

público. A informação pode fazer com que o cidadão au-mente o número de alternativas para enfrentar o proble-ma de seu deslocamento, tanto na cidade como na rodo-via. A identificação eletrônica do veículo – que deve serentendido como parte do trânsito inteligente – é fator es-sencial na solução do pedágio urbano e já constitui reali-dade em algumas rodovias. O sistema é útil para todo omonitoramento do trânsito e beneficia inclusive a segu-rança pública.

Durante aprovação do já nem tão novo Código de Trân-sito Brasileiro, sancionado em 23/09/1997, houve um re-trocesso lamentável, pois o Senado havia aprovado a obri-gatoriedade da identificação eletrônica de veículos, cujatecnologia já é dominada por muitas empresas no Brasil.Foi reprovada quando o projeto de lei voltou à Câmarados Deputados, usando-se a justificativa incoerente de li-mitação tecnológica e a existência de hipotético e incor-reto risco de monopólio tecnológico.

O resultado foi o atraso. O argumento de invasão deprivacidade não é válido, pois no sistema bancário infor-matizado esse assunto tem solução quase trivial, bem comono caso da telefonia. A fiscalização de pagamento do IPVAjá seria uma justificativa mais do que suficiente. Mais de20% da frota em todos os Estados, inclusive na cidade deSão Paulo, não paga e não é fiscalizada, e o Estado e aprefeitura perdem muito dinheiro. O número de carrosfurtados ou roubados é grande, e o recurso eletrônico se-ria eficaz no combate a esse tipo de crime.

Na questão do trânsito, ou mesmo nessa questão maisampla da mobilidade urbana ou interurbana; não existeum único remédio que resolva tudo. É com o somatório ea orquestração inteligente de ações (continuadas) que te-remos resultados saudáveis para toda a população.

A cultura brasileira não tem sido generosa com atitu-des preventivas. No trânsito não é diferente. Além disso,quando se fala em problemas no trânsito, geralmente re-duz-se o tema às questões de fluidez, quando o maior de-safio é a segurança, ou seja, buscar reduzir o número e agravidade dos acidentes.

A metodologia mais eficaz para o desenvolvimento desegurança no trânsito está na prevenção. Em primeiro lu-gar busca-se saber identificar riscos e, logo a seguir, fa-zer o gerenciamento dos mesmos riscos envolvendo o fa-tor humano, o meio ambiente, a via pública e o veículo. Éimportante defender o primado da segurança em detrimentoda fluidez a partir da importância que deve ser dada à pre-servação da vida.

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PADRÕES DE INVESTIMENTOS ESTATAISEM INFRA-ESTRUTURA VIÁRIA

EDUARDO CESAR MARQUES

Cientista Político, Pesquisador da Fapesp no CebrapRENATA MIRANDOLA BICHIR

Bolsista da Fapesp no Cebrap

Resumo: Este artigo apresenta os resultados preliminares de uma pesquisa em andamento sobre os investi-mentos realizados pela Prefeitura de São Paulo em infra-estrutura urbana, por meio de sua Secretaria de ViasPúblicas, entre 1978 e 1998. A partir de um extenso levantamento de informações primárias acerca desseperíodo, abrangendo todos os contratos assinados pela secretaria com empreiteiras, investigou-se a distribui-ção dos investimentos e suas características ao longo das administrações municipais, assim como os padrõesde vitória das principais empreiteiras beneficiadas por essa política.Palavras-chave: investimento público; infra-estrutura viária; políticas públicas.

presente texto traz os primeiros resultados de umapesquisa em andamento sobre políticas públicase intermediação de interesses em São Paulo. Ana-

taria de Vias Públicas – SVP, pertencente à administra-ção direta; no Rio de Janeiro, a responsável é a Compa-nhia Estadual de Águas e Esgotos – Cedae, organizadacomo empresa pública. As diferenças de estrutura e esta-tuto jurídico têm como conseqüência, muito provavelmen-te, a constituição de graus diversos de autonomia decisóriadas agências com relação aos ambientes políticos mais am-plos nos quais operam, assim como padrões de carreira einsulamento burocrático muito distintos.

A Secretaria de Vias Públicas é uma das mais im-portantes unidades administrativas da prefeiturapaulistana. Sua relevância se expressa, em primeirolugar, por sua histórica influência na estruturação doespaço paulistano (e ainda presente, nos dias atuais),como será discutido rapidamente na primeira seção.Além disso, as intervenções da secretaria apresentamgrande importância política, chegando a consumir 13%do orçamento municipal, em média, no período estuda-do. Essa proporção alcançou 27% do gasto total da Pre-feitura em 1993, o que correspondeu a mais de 2,5 bi-lhões de reais (em valores de dezembro de 1999). Essaimportância se mede também pela centralidade de suasatividades nos projetos políticos de boa parte dos pre-feitos do período estudado, tanto pela realização deobras de enorme visibilidade, quanto pelo porte eleva-do dos valores contratados, que, como tem sido farta-mente documentado pela imprensa, significam impor-

lisou-se a política de investimentos da Secretaria de ViasPúblicas da Prefeitura Municipal de São Paulo, do finalda década de 70 até o ano de 1998. A pesquisa toma comobase um amplo levantamento de dados sobre os contratosassinados entre a secretaria e empresas privadas para aimplementação de obras e serviços de engenharia. Comofonte desses dados, foram colhidas informações sobrecontratações da prefeitura publicadas no Diário Oficialdo Município de São Paulo, tendo sido pesquisados to-dos os extratos de contratos da secretaria, dia a dia, entre1978 e 1999. A partir do material coletado, a pesquisaanalisou as dimensões de espaço, poder e intermediaçãoda política de infra-estrutura na cidade de São Paulo.

A investigação representa, até certo ponto, uma conti-nuação de pesquisa similar sobre políticas de infra-estru-tura de saneamento no Rio de Janeiro consubstanciada emMarques (2000). Considerando que se trata de duas polí-ticas altamente espacializadas, executadas diretamente porempreiteiras de obras públicas e inseridas em comunida-des de engenheiros das duas mais importantes cidadesbrasileiras, são inúmeros os possíveis pontos de contato.A comparação se apresenta ainda mais rica quando seconsidera que os órgãos estatais responsáveis pelas polí-ticas são bastante distintos: em São Paulo tem-se a Secre-

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PADRÕES DE INVESTIMENTOS ESTATAIS EM INFRA-ESTRUTURA VIÁRIA

tante moeda de negociação com financiadores de cam-panha e esquemas de corrupção.

A pesquisa tem indicado, na verdade, que a secretariaconstitui um dos mais importantes nós do funcionamentoda política paulistana, ou ao menos do grupo político quecontrolou a prefeitura paulistana pela maior parte do pe-ríodo.1 Os resultados aqui apresentados abrangem a dinâ-mica temporal da política e suas características em cadaadministração municipal, além das relações entre os in-vestimentos e o ciclo eleitoral, as finanças municipais eos repasses orçamentários para a secretaria.2

A SECRETARIA DE VIAS PÚBLICASE O MUNICÍPIO

A Secretaria de Vias Públicas é talvez o mais importan-te órgão estatal do Município de São Paulo. Apesar disso,nunca foi objeto de estudos sistemáticos como organiza-ção do Estado. As únicas pesquisas sobre a secretaria ana-lisam-na sob o ponto de vista da obra urbanística de algunsdos seus mais importantes dirigentes, principalmente Pres-tes Maia e Victor da Silva Freire, ou a partir das ações daDiretoria de Obras, sua antecessora no organograma daprefeitura (Simões Jr., 1991; Leme, 1991 e 1999). Na rea-lidade, a ausência de análises políticas sobre esse impor-tante órgão paulistano reflete dois processos convergentesinternos às comunidades acadêmicas brasileiras: a escas-sez de estudos empiricamente embasados de ciência políti-ca sobre as ações estatais, especialmente locais, e o peque-no conhecimento da dinâmica do poder na secretaria trazidopelos trabalhos de estudos urbanos que a têm enfocado, pre-ocupados com outras questões e dinâmicas. A pesquisa queserve de base a este artigo pretende contribuir para preen-cher tal lacuna.

A secretaria tem sua origem mais remota na Diretoriade Obras da prefeitura da capital. A história desta unida-de administrativa está ligada de forma indissolúvel às ati-vidades de Victor da Silva Freire, chefe e diretor da Se-ção de Obras Públicas por mais de 20 anos, desde 1898,quando o conselheiro Antônio Prado tornou-se o primei-ro prefeito paulistano. Em 1926, Freire deixou o setorpúblico, mas continuou seu trabalho em urbanismo atuandocomo professor da Escola Politécnica (Simões Jr., 1991;Leme, 1999). O período de influência de Freire foi suce-dido, na história institucional do órgão, pela presença deFrancisco Prestes Maia, ingressado na Diretoria de ObrasPúblicas em 1918. Entre 1924 e 1926, Prestes Maia, emassociação com Ulhôa Cintra, elaborou uma série de es-

tudos sobre a estrutura urbana paulistana e, em 1930, pu-blicou o seu Plano de Avenidas, que incluía uma propostapara o sistema viário que viria a influenciar as principaisintervenções que estruturaram a cidade nas décadas pos-teriores. A diretoria existiu até 1936, quando foi transfor-mada em Departamento de Obras e Serviços Municipaispelo Ato no 1.146/36.

Vale dizer que a organização territorial da cidade de SãoPaulo ocorreu, por um lado, pela ação atomizada de em-preendedores privados, e, por outro, pela realização de obraspúblicas, especialmente viárias e de drenagem, direcionadastão somente a solucionar, no curto prazo, os problemas viá-rios e de circulação rodoviária, apesar da existência de pro-postas mais abrangentes. A realização direta de interven-ções viárias, portanto, representou a forma predominantede organização territorial, destacando importantes figurasde técnico-políticos3 realizadores como Silva Freire e PrestesMaia. Esse processo colocou o Departamento de Obras –e posteriormente a secretaria – no centro das atividadesestruturadoras do espaço paulistano.

No caso de Prestes Maia, mais destacado personagemda história do setor de obras públicas paulista, a influênciaprolongou-se por muitos anos. Embora tenha se envolvidocom o lado perdedor da Revolução de 1930 e tenha se afas-tado das atividades públicas por um breve período, voltouao centro da política e da gestão territorial paulistana em1938, quando assumiu a cadeira de prefeito, por indicaçãodo interventor Adhemar de Barros. Prestes Maia permane-ceu como prefeito de Barros até 1941 e foi novamente in-dicado pelo novo interventor, Fernando da Silva Costa. Em1945 Maia deixou o Departamento de Obras, que, ao finaldo mesmo ano, foi transformado em Secretaria de Obras eServiços pelo Decreto-Lei no 333/45.

A estrutura do novo órgão passou a incorporar, a partirde 1947, com o Decreto-Lei no 431/47, os departamentosde obras públicas, serviços municipais, cadastro munici-pal,4 manutenção de prédios públicos e serviço funerário,além das comissões orientadoras do “Plano da Cidade” ede “Estética”.

Durante a década de 50, Maia atuou por meio de seuescritório de projetos, além de se lançar a cargos eletivospela UDN, sendo seguidamente derrotado em 1950 e 1954para o governo do Estado. Em 1957, Jânio Quadros, pri-meiro prefeito eleito desde o retorno dos pleitos diretospara a prefeitura (instituído pela Lei no 1.720/52), apoiouMaia para a prefeitura da capital, mas este foi novamentederrotado, dessa vez por Adhemar de Barros. Em 1961,com o apoio do governador Carvalho Pinto e do presi-

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dente recentemente eleito (e que ainda não havia renuncia-do) Jânio Quadros, Prestes Maia elegeu-se para a prefei-tura, onde permaneceu até 1965.5

Em 1966, o prefeito seguinte a Prestes Maia – JoséVicente Faria Lima – criou as administrações regionaispor meio da Lei no 6.882/66. Essas instâncias tornaram-sede fundamental importância para o funcionamento da ad-ministração pública e para a dinâmica do processo políti-co paulistano até os dias de hoje. Naquele mesmo momen-to, a secretaria foi dividida em duas: de Serviços Municipaise de Obras. Em abril de 1975, no início da administraçãode Olavo Setúbal, as duas secretarias foram transforma-das respectivamente em Secretaria de Serviços e Obras(SSO) e em Secretaria de Vias Públicas (SVP). A estrutu-ra interna da nova Secretaria de Vias Públicas tomou, nessemomento, a feição que a caracteriza até os dias de hoje,com dois departamentos – Controle do Uso de Vias Pú-blicas (Convias) e Iluminação Pública (Ilume) –, além deduas superintendências – Obras e Projetos. A Superinten-dência de Obras foi dividida internamente em: Obras 1– Pluviais; Obras 2 – Obras de arte especiais, o que in-clui pontes, viadutos e grandes estruturas; e Obras 3 –Pavimentação. A de Projetos foi estruturada em quatrodivisões: Proj 1 – Pavimentação; Proj 2 – Estruturas; Proj3 – Vias; e Proj 4 – Águas pluviais. Em 1987 foi opera-da a última transformação institucional importante na se-cretaria, com a criação, pelo Decreto no 23.440/87, doGrupo Executivo do Programa de Canalização deCórregos e Implantação de Vias de Fundo de Vale(Geprocav), que passou a ser um importante imple-mentador da política, assim como uma destacada fontede poder institucional.

Uma outra organização estatal fundamental na defini-ção dos destinos da política urbana em São Paulo não estásubordinada formalmente à SVP. Trata-se da EmpresaMunicipal de Urbanização (Emurb), criada na adminis-tração Figueiredo Ferraz, no início dos anos 70, com afinalidade de gerenciar as obras e os serviços de engenha-ria implementados pela Prefeitura de São Paulo. Na prá-tica da administração, entretanto, a empresa constituiu umimportante braço operacional da política urbana de gran-des projetos e intervenções, recebendo vultosos repassesda secretaria, contratando empresas privadas para a exe-cução de obras e acompanhando a sua execução. A Emurbtem sido usada como implementadora de grandes obraspela sua maior agilidade administrativa, por se tratar deuma empresa pública, em relação às unidades da admi-nistração direta da prefeitura, além de apresentar menor

transparência, pois não necessita de aprovação de seu or-çamento anual ou balanço pela Câmara Municipal, entreoutras vantagens. A empresa está formalmente vinculadaao gabinete do secretário de vias públicas, embora tenharespondido, na prática, diretamente aos prefeitos durantegrande parte do período estudado. Os únicos momentosde subordinação da empresa à secretaria dizem respeitoàs épocas de acúmulo, pelo secretário, do cargo de presi-dente da Emurb, o que aconteceu entre 1993 e 1998, comReynaldo de Barros, secretário e Paulo Maluf e Celso Pitta,prefeitos.

O Orçamento Municipal

Como órgão da administração direta sem receitas pró-prias, a Secretaria de Vias Públicas depende do orçamen-to municipal para realizar seus investimentos. Assim, an-tes de se analisarem detalhadamente os investimentos daSVP, deve-se observar a dinâmica do orçamento munici-pal. Nesta seção, será descrita a sua dinâmica temporalgeral para discutir a influência sobre os investimentos daSVP mais adiante.

O Gráfico 1 apresenta os orçamentos municipais e osvalores relativos à SVP, além dos investimentos da secre-taria. As duas primeiras informações se referem aos valo-res executados e não aos orçados,6 enquanto a terceira éproduto da pesquisa primária realizada nos Diários Ofi-ciais do município e será analisada na próxima seção.Como se verifica no gráfico, o orçamento global da pre-feitura se mantém em um patamar relativamente constan-te entre 1978 e 1987 – em torno de 6 bilhões de reais, anúmeros de dezembro de 1999. A partir de 1987 observa-se uma significativa variação, com duas quedas abruptas(entre 1989 e 1990 e entre 1993 e 1994), duas recupera-ções (entre 1990 e 1992 e entre 1994 e 1996) e uma que-da lenta a partir de 1996.

Os valores gastos na SVP também apresentam um com-portamento relativamente constante de 1978 a 1987, en-tre 550 e 750 milhões anuais, e uma significativa varia-ção a partir de então, com picos em 1988, 1993, 1995 e1996. De uma forma geral, os períodos de elevação e quedados repasses para a secretaria coincidem com os picos eas reduções da receita municipal. A proporção do valorrepassado para a SVP também varia significativamente,tendo uma média de 0,12 do orçamento municipal:Reynaldo – 0,14; Curiati – 0,17; Covas – 0,09; Jânio –0,18; Erundina – 0,09; Maluf – 0,18 e Pitta – 0,05. Gene-ralizando, as administrações de prefeitos de partidos de

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direita – Maluf, Jânio, Curiati e Reynaldo de Barros –apresentam um patamar superior de gastos aos das admi-nistrações Covas e Erundina. Como veremos, esses repas-ses influenciam bastante o conjunto de investimentos dasecretaria.7

A Política de Investimentos

O conjunto de investimentos analisado aqui inclui in-formações relativas a contratos, aditamentos de valor, re-tificações e aprovações de preços extracontratuais. Noperíodo, foram assinados 4.939 documentos, sendo 3.350contratos e 1.558 aditamentos. Esses contratos foram ven-cidos por 355 empreiteiras, somando um valor global con-tratado de aproximadamente 8,2 bilhões de reais.

A primeira dimensão importante a observar diz respei-to ao papel da Emurb. O conjunto de extratos de contratoindica valores extremamente elevados de repasses para aEmurb, que a partir do momento da contratação gerenciariaas obras, incluindo, com destaque, a contratação deempreiteiras e projetistas. Os valores dos repasses sãoextremamente elevados, alcançando em seu conjuntoR$ 3.454.181.015 em números de dezembro de 1999, oucerca de 42% do conjunto de investimentos. Os repassessão bastante concentrados no tempo, alcançando patama-

res superiores a um milhão de reais em 1980 e 1981 (801e 135 milhões), 1987 (945 milhões), 1990 (111 milhões),1992 (1 milhão) e no intervalo de 1995 a 1999 (com 265,991, 163, 23 e 17 milhões, respectivamente). Os repassesdizem respeito a grande parte das obras de porte muitoelevado realizadas no período. Infelizmente, não houveacesso a informações que permitissem, no momento, ca-racterizar o conteúdo das intervenções contratadas a par-tir desses recursos, assim como determinar quais empre-sas as executaram. Por essa razão, dos investimentos dasecretaria analisados, foram excluídos os repasses para aEmurb, concentrando-se na discussão e análise dos 58%restantes dos investimentos.

O perfil dos investimentos da secretaria, excetuados osrepasses para a Emurb, segue a trajetória apresentada noGráfico 1. Os investimentos totalizam cerca de 4,8 bilhõesde reais, em valores de dezembro de 1999, distribuídospor 4.924 documentos, vencidos por 355 empresas dife-rentes. O valor médio do documento é de cerca de972 mil reais, embora estejam presentes contratos de 120reais a até mais de 110 milhões de reais. A concentraçãodos contratos em determinadas empresas também é muitoelevada, como será observado mais adiante.

Nota-se que o ciclo de investimentos segue um perfilde alternâncias, tendo valores mais altos de 1978 a 1982

GRÁFICO 1

Orçamentos Municipais, Gastos e Investimentos na SVPMunicípio de São Paulo – 1978-99

Fonte: Diários Oficiais do Município.Nota: Valores em reais de dez./99.

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e de 1986 a 1988 (entre 200 e 400 milhões de reais), e em1995 e 1996 (entre 300 e 600 milhões de reais). Ao con-trário do que afirma uma parte significativa das literatu-ras de estudos urbanos e de ciência política, não existeuma associação entre o perfil de investimentos e o cicloeleitoral. A hipótese de associação entre essas duas di-mensões parte do suposto da predominância do imperati-vo, em regimes democráticos, da tentativa de reeleição dosgovernantes ou, quando essa não estiver prevista insti-tucionalmente, da tentativa de influenciar o processo deescolha do seu sucessor, mantendo força política sobre aadministração. Conseqüentemente, haveria uma coincidên-cia (ou pelo menos forte relação) entre os ciclos eleito-rais e de investimento, especialmente das políticas comgrande visibilidade e impacto eleitoral (Ames, 1995a e b;Fizson, 1990). Esse mecanismo teria predominância so-bre outras lógicas, por exemplo institucionais, históricas,da própria política pública e mesmo do processo políticomais amplo, não deixando praticamente nenhum espaçopara a escolha dos decisores públicos.

A política aqui analisada constitui um caso particular-mente importante para testar tal hipótese, já que apresen-ta grande visibilidade e apelo eleitoral e, no caso especí-fico de São Paulo, carrega uma importante carga simbólicaligada historicamente à “cidade que não pode parar”. Con-firmando estudos como o de Marques (2000), que mos-traram a relativa independência entre as políticas locais,os ciclos eleitorais e as políticas nacionais, o perfil de in-vestimentos sugere a importância central dos processospolíticos locais e das escolhas políticas realizadas no in-terior do governo municipal, em flagrante desacordo como que afirma a literatura.

No caso da SVP, não há relação estatística entre o perfilanual de investimentos, ou a proporção de gastos na SVPsobre o total do orçamento, e a ocorrência de eleições emum dado ano, nem mesmo se forem discriminados os anosde eleições municipais dos de pleitos não-municipais.8 Poroutro lado, quando se analisa o perfil de investimentos anuaiscontra a ocupação da administração municipal por parti-dos de direita e de não-direita,9 obtêm-se resultados signi-ficativos.10 O mesmo ocorre com a proporção dos repassespara a SVP e com o volume geral do orçamento municipalnaquele ano. Nos dois primeiros casos, as relações são po-sitivas, mas, no terceiro, é negativa, isto é: os investimen-tos da SVP tendem a crescer quando o prefeito é de direita,aumentando a proporção da SVP no orçamento, mas ten-dem ser menores nos anos de maior gasto global da prefei-tura, o que é bastante contra-intuitivo.

Esses resultados são consistentes, tanto considerando-se o efeito de cada fenômeno de maneira independente,quanto levando em conta todos ao mesmo tempo. Ummodelo com os investimentos da SVP como variável de-pendente explicou cerca de 66% do comportamento esta-tístico dos investimentos da SPV pelas variáveis indepen-dentes – governos de direita/não-direita, proporção dogasto da SVP no orçamento e o volume do orçamentomunicipal.11 Dois dos fenômenos tomados como indepen-dentes apresentam, na verdade, uma razoável correlaçãoentre si: a proporção da SVP no orçamento é corre-lacionada com o fato de o partido do prefeito ser de direi-ta (0,42 de correlação). Entretanto, se analisarmos a rela-ção dos investimentos com cada uma das variáveisseparadamente, controlando pela outra, as correlaçõescontinuam altas.12

Assim, pode-se afirmar com razoável segurança que onível anual de investimento da SVP é função, principalmen-te, do nível da receita total da prefeitura, da proporção re-passada para a SVP e do fato de o partido do prefeito serde direita. Embora em administrações de direita a propor-ção para a SVP tenda a ser mais alta do que quando o par-tido do prefeito não é de direita, ambos os fenômenos ex-plicam os investimentos da secretaria, sendo cada qualresponsável por uma parcela diferente da sua variação.

Passando da análise quantitativa para a política, pode-mos dizer que o nível geral dos investimentos da secreta-ria mais importante da prefeitura paulistana não dependedo ciclo eleitoral, nem local nem de outros níveis de go-verno. Ele é principalmente função do volume geral derecursos na prefeitura e de duas variáveis políticas. Cadafenômeno deve ser observado separadamente.

Primeiro será analisada a relação contra-intuitiva en-tre o volume de investimentos e o orçamento municipal.Encontra-se uma correlação negativa, o que indica que,quanto maiores os volumes de recursos disponíveis parao conjunto da prefeitura, menores são os investimentosda SVP em obras e serviços. Em primeiro lugar, vale des-tacar que o sentido dessa relação mostra que explicaçõespara os investimentos baseadas na disponibilidade de re-cursos não encontram nenhum fundamento empírico. Emsegundo, sugere que não se trata de uma relação causal,mas de uma associação que expressa, na verdade, a rela-ção entre o restante dos gastos municipais e o volume to-tal do orçamento. A secretaria apresentaria grande impor-tância no conjunto dos gastos, tanto porque durante umaparte significativa do período estudado os prefeitos con-sideraram estrategicamente as suas políticas, quanto por-

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que a importância de sua burocracia conseguiu imprimirum caráter inercial a seus gastos. Assim, a secretaria rea-lizaria gastos segundo uma lógica que combina elemen-tos políticos e burocráticos e conhece poucas restrições,ao contrário do restante da prefeitura, que conseguiriagastar mais quando os volumes de recursos fossem maiselevados.13 Segundo essa hipótese, os únicos elementoslimitadores do volume de investimentos da secretaria se-riam as escolhas políticas dos dirigentes e as dinâmicasinternas ao processo de decisão, analisadas a seguir.

São duas as variáveis políticas encontradas: a inclina-ção político-ideológica do prefeito e a proporção do or-çamento que este e seus secretários, consultados seusapoios no ambiente político mais amplo, repassam para asecretaria. Ambas as variáveis indicam escolhas ou se re-lacionam com elas. A primeira é o eleitorado, que, ao vo-tar em candidatos de direita ou esquerda, pode prever oconjunto de políticas que eles implementarão, uma vez nopoder.14 Restaria comprovar se os padrões de votação se-guem preferências de políticas compatíveis com as políti-cas implementadas. Apesar de a intuição afirmar que sim,analisar essa dinâmica foge ao escopo deste trabalho.15 Dequalquer forma, está comprovada a presença de alta pre-visibilidade dos eleitores sobre o conteúdo das políticas apartir de posicionamentos políticos mais amplos na arenaeleitoral, contrariamente a uma parte significativa da lite-ratura e ao senso comum predominante na sociedade e naimprensa. A segunda relação encontrada demonstra a im-portância dos processos políticos ocorridos no interior doexecutivo (e apenas parcialmente previsíveis a partir deposicionamentos ideológicos mais amplos), indicando aimportância de estudos empiricamente embasados dos

processos decisórios ocorridos no interior do Estado quelevam à alocação dos recursos públicos. Por hora não sepode fazer mais que levantar a questão, mas a continuida-de da presente pesquisa enfocará de maneira central taldimensão. Pela importância desses processos na defini-ção do volume geral de investimentos, serão tomadas comounidade de análise, na próxima seção, as administraçõesmunicipais, embora se retorne às informações por ano,quando relevante. Como se verá, a clivagem direita/não-direita não explica apenas o volume geral investido, masinúmeros indicadores relacionados de maneira direta àimplementação da política.

AS ADMINISTRAÇÕES E OS INVESTIMENTOS

Na Tabela 1 pode-se observar as principais característi-cas dos investimentos por administração municipal orde-nados no tempo. Como se vê, os dados confirmam a im-pressão do senso comum com relação à ênfase dos governosem obras públicas: as administrações de maiores investi-mentos médios por mês de administração (que descontaeventuais diferenças de duração nos mandatos) são os go-vernos Reynaldo de Barros, Setúbal, Jânio Quadros, Malufe Salim Curiati (de curta duração, razão pela qual o total deinvestimentos não é tão elevado em termos relativos quan-to o valor médio mensal).16 Os governos Erundina, Covas ePitta apresentam os menores volumes de investimento, tantoabsolutos, quanto relativos, em um patamar de um sétimo aum terço da média mensal. Como se verá a seguir, há umasubstancial diferença entre os três governos de mais baixosvalores: o cruzamento com as demais informações indicaque os números inferiores de Covas e Erundina dizem res-

TABELA 1

Valores Totais e Médios Gastos, segundo Administração (Licitado e Aditado)Município de São Paulo – 1978-99

Administração Partidos Total Gasto (1) Valor Gasto/Mês (1)Valor Médio Número

do Documento (1) de Documentos (2)

Total 4.788.449.940,58 17.349,456,31 972.471,56 4.924

Setúbal ARENA 616.791.614,61 32.462.716,56 1.352.613,19 456Reynaldo ARENA 1.176.242.286,63 34.595.361,37 1.227.810,32 958Curiati PDS 223.549.677,54 18.629.139,80 1.039.765,94 215Covas PMDB 239.722.839,34 7.732.994,82 228.525,11 1.049Jânio PTB 1.086.356.125,97 22.632.419,29 1.159.398,21 937Erundina PT 153.277.278,67 3.193.276,64 363.216,30 422Maluf PPB 1.058.354.808,97 22.049.058,52 1.383.470,34 765Pitta PPB/PTN 234.155.308,84 6.504.314,13 1.919.305,81 122

Fonte: Diários Oficiais do Município.(1) Valores em reais de dez./99.(2) Inclui contratos, aditamentos e retificações.

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peito a prioridades de governo, enquanto os de Pitta se de-vem à grave situação financeira da prefeitura, que impediuo prefeito do PPB (depois PTN) de manter os volumes ele-vados de investimento do governo de seu padrinho políti-co, imediatamente anterior.

Outra informação importante diz respeito aos valoresmédios por documento. Nesse particular, a administraçãoCovas17 se aproxima da de Erundina com os mais baixosvalores, enquanto as administrações Pitta, Maluf, OlavoSetúbal, Reynaldo de Barros, Jânio Quadros e SalimCuriati apresentam valores em patamares muito mais ele-vados (de cinco a treze vezes o patamar das administra-ções do PMDB e do PT). Vale destacar que os valoresmédios das administrações Maluf, mais de duas vezes amédia geral, e Pitta apresentam um valor médio decontratações bastante elevado.

A Tabela 2 complementa as informações anteriores,apresentando os índices por administração relativos a adi-tamentos de valor. Os maiores volumes de recursos emaditamentos estão nas administrações Maluf, Jânio Quadros,Reynaldo de Barros e Pitta. Setúbal apresenta um patamarintermediário, e Covas, Curiati e Erundina têm os menoresvalores totais, sendo ainda muito mais baixos na adminis-tração do PT. No tocante à relação aditamentos/investimen-tos, que desconta o efeito dos volumes de gastos por go-verno, têm-se em ordem decrescente, os governos Pitta,Maluf, Jânio Quadros e Reynaldo de Barros. Com as rela-ções mais baixas vêm Olavo Setúbal, Covas e Erundina.Vale destacar que a relação aditado/licitado no governo Pitta(0,5) indica não apenas a presença de grande quantidadede aditamentos, mas especifica o seu governo como umgestor (com muitos aditamentos) de contratos firmados na

administração anterior do PPB, também caracterizada poruma alta proporção de aditamentos.18

As relações aditamento/documento refletem grandesquantidades relativas de aditamentos nos governos Pitta eErundina e relações mais baixas nos governos Curiati eCovas. Os valores médios, por outro lado, permitem ca-racterizar os governos Maluf, Reynaldo, Jânio, Pitta eSetúbal como de grandes volumes de aditamentos de va-lores altos, e as administrações Covas e Erundina comode pequenos volumes dispersos em muitos aditamentos debaixo valor. Vale destacar novamente o elevadíssimo va-lor médio do governo Pitta, confirmando sua “especiali-zação” na gestão de contratos celebrados na administra-ção anterior.

A legislação de licitações limita os aditamentos a 25%do valor contratado. A existência de valores superiores aessa proporção, portanto, representa uma decisão políticado administrador público, seja ele indicado ou de carrei-ra, que preferiu correr os riscos de possíveis sanções admi-nistrativas e jurídicas, embutindo novos serviços no con-trato com a empreiteira atual, em vez de realizar uma novalicitação. Ao contrário do que seria de considerar, umaparcela significativa do valor aditado pelas administraçõesenvolve aditamentos em valores superiores ao limites le-gais – do total aditado no período, 78% envolveu adita-mentos superando o limite legal por contrato.19 A partici-pação desses aditamentos, entretanto, varia muito entreas administrações, de 92%, 78%, 72%, 67% e 64% nosgovernos Maluf, Setúbal, Jânio, Reynaldo de Barros ePitta, respectivamente, até 6% no governo Curiati e 16%no governo Erundina. A administração Covas apresentauma participação intermediária desses aditamentos (31%).

TABELA 2

Valores Totais e Médios Aditados, segundo AdministraçãoMunicípio de São Paulo – 1978-99

AdministraçãoNúmero

Total Aditado (1) Aditado/GastoAditamentos/

Valor Aditado/Mês (1)Valor Aditado

de Aditamentos Documentos Médio (1)

Total 1.558 724.454.505,48 0,15 0,32 2.624.835,16 464.990,05

Setúbal 108 54.948.892,89 0,09 0,24 2.892.046,99 508.786,05Reynaldo 338 147.658.915,08 0,13 0,35 4.342.909,27 436.860,70Curiati 45 17.945.595,29 0,08 0,21 1.495.466,27 398.791,01Covas 207 18.591.122,87 0,08 0,20 599.713,64 89.812,19Jânio 312 148.730.317,88 0,14 0,33 3.098.548,29 476.699,74Erundina 197 6.399.902,65 0,04 0,47 133.331,31 32.486,82Maluf 272 213.009.019,32 0,20 0,36 4.437.687,90 783.121,39Pitta 79 117.170.739,50 0,50 0,65 3.254.742,76 1.483.173,92

Fonte: Diários Oficiais do Município.(1) Valores em reais de dez./99.

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PADRÕES DE INVESTIMENTOS ESTATAIS EM INFRA-ESTRUTURA VIÁRIA

Os governos de maiores valores médios mensais deaditamentos superiores a 26% do valor dos contratos ori-ginais são as administrações Maluf, Reynaldo de Barros,Olavo Setúbal, Jânio Quadros e Pitta, com 4,1, 2,9, 2,3,2,3 e 2,1 milhões de reais por mês, respectivamente. Astrês administrações restantes apresentam valores médiosmensais praticamente iguais a zero: Covas, 185 mil reais;Curiati, 89,3 mil, e Erundina, 21,7 mil reais por mês. Es-sas informações indicam que os governos de inclinaçãopolítico-partidária de direita tendem a aditar os contratossistematicamente em valores superiores ao limite da lei,chegando a valores superiores, em média, a 4 milhões dereais e à quase totalidade do valor aditado no governoMaluf. Até onde é possível observar, essa prática não écoibida pelo poder judiciário ou pelo Tribunal de Contas,provavelmente pelos fortes vínculos entre estas organiza-ções e o mesmo grupo que controlou a administraçãomunicipal durante a maior parte do período.20

Por fim, vale a pena considerar a distribuição dos va-lores contratados pelos tipos de certames licitatórios. Alegislação que rege as contratações do poder público es-pecifica tipos diferentes de certames licitatórios (cada qualcom graus de exigência específica), dependendo do valora ser contratado e do tipo de obra ou serviço a ser realiza-do. No caso da SVP, a distribuição dos tipos de licitaçãopredominantes em cada administração segue os valoresmédios dos contratos, sendo maior a presença relativa decertames característicos de valores mais elevados – as con-corrências públicas – nas administrações de maiores va-lores médios – Maluf, Reynaldo, Setúbal e Jânio. Entre-tanto, vale destacar os valores médios das dispensas delicitação por administração, tipo de certame em que o poderpúblico escolhe a empresa a contratar, inexistindo qual-quer competição. A comparação dos valores médios dasdispensas confirma a distribuição das demais informaçõesobservada até o momento, com as administrações Malufe Pitta apresentando médias de dispensas de licitação su-periores a 2,5 milhões de reais, seguidas da administra-ção Jânio Quadros, com cerca de 800 mil reais, em valo-res de dezembro de 1999. As demais administraçõesapresentam aditamentos médios em patamar inferior a 500mil reais. A maioria das dispensas foi realizada sob a ale-gação de emergência.

Sumarizando, podemos dizer que as informações per-mitem caracterizar, de uma forma geral, os governosMaluf, Reynaldo, Jânio e Setúbal como de grandes volu-mes de investimentos concentrados em contratos de gran-de porte, que tenderam a ser aditados de maneira intensa,

com valores elevados de aditamentos individuais, na suamaioria excedendo os limites legais e acompanhados dedispensas de licitação de altíssimas somas. Os governosCuriati e Pitta apresentam características próximas àque-les quatro governos, mas com algumas particularidadesque se originam do caráter efêmero do primeiro e da in-tensa crise financeira vivida pelo segundo, advinda emgrande parte do perfil de gastos da administração ante-rior. No outro extremo temos os governos Covas eErundina, ambos com grandes volumes de obras peque-nas e médias pouco aditadas.

Concentração de Vitórias

No total, 355 empresas venceram contratos, o que sig-nifica um valor médio por empresa de cerca de 13,5 mi-lhões de reais. A concentração de vitórias em um númeropequeno de empresas, entretanto, é muito elevada. A maisimportante vencedora abocanhou 6,5% do valor contrata-do, as dez maiores ficaram com 34,6% e as 50 mais desta-cadas absorveram 80,5% do total contratado. Essa concen-tração nas principais empresas é um pouco menor que aencontrada por Marques (2000) para a política da Cedae,na qual a principal empresa ganhou 8,5% do total contrata-do, as dez primeiras somaram 46,6% e as 50 empresas maisbem colocadas ficaram com cerca de 86,7% do total. En-tretanto, o conjunto da política carioca apresentou um me-nor número de empresas vencedoras (212), e, portanto, aobservação apenas do número de empresas não permiteanalisar completamente o fenômeno. Quando se descontaesse efeito, comparando as proporções vencidas por parce-las iguais do universo de empresas, a concentraçãopaulistana é levemente superior: os 5% maiores vencedo-res ganharam 49% em São Paulo e 47% no Rio de Janeiro,os primeiros 10% venceram pouco mais de 70% no primei-ro caso e 69% no segundo. No caso de São Paulo e do Riode Janeiro, a primeira metade de empresas mais bem colo-cadas venceu, respectivamente, 98,8% e 96%.

A dinâmica geral da concentração, entretanto, escondea dinâmica temporal (e por governos) da concentração.De que forma variou a concentração ao longo do tempo?Esse fenômeno é observável no Gráfico 2, que mostra aproporção do valor total anual recebido por cada grupode vencedores (5%, 10% e 35% maiores, assim como os50% menores vencedores em cada ano). Como se podever, há uma nítida tendência de aumento da fatia dos 5%maiores vencedores (e uma redução dos 85% menores)entre 1978 e 1983. Os anos de 1984 e 1985 representam

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uma redução dessa tendência, inclusive com uma eleva-ção da proporção ganha pelos 50% menores, mas tal ten-dência volta a ser dominante entre 1986 e 1989. Entre 1989e 1991, a proporção dos menores vencedores torna a cres-cer, tanto pela fatia de contratos dos 50% menores comodos próximos 45%, em detrimento dos 5% das mais im-portantes empresas. A partir de 1992, as vitórias se con-centram mais uma vez, para alcançar em 1994 um dos seuspontos extremos, quando os 5% de empresas do topo ven-cem mais de 75% do valor licitado, e os 50% menoresalcançam a sua pior proporção. O ano de 1995 representaum momento de redução da concentração, embora ela voltea aumentar nos três anos seguintes, para se reduzir no úl-timo ano da série. De uma forma geral, podemos notaruma tendência ao crescimento da concentração entre 1978e 1993, com a exceção de dois períodos, nos quais o go-verno municipal esteve nas mãos de partidos de não-di-reita. Entre 1994 e 1998, a tendência geral é de reduçãoda concentração nas 5% maiores empresas, assim comoda parcela ganha pelas 50% menores, indicando uma con-centração nas empresa médias, especialmente na segundamaior faixa de 10%.

Mas as informações do Gráfico 2 são influenciadaspelos diferentes volumes anuais de investimento. De ma-neira a descontar tal efeito, o Gráfico 3 detalha a infor-mação tentando compreender o padrão temporal geral de

concentração. Nesse gráfico, a área mais escura indica osvalores vencidos pelos 15% maiores vencedores em cadaano, e a área mais clara, entre a primeira e a curva do totalinvestido, representa os volumes de recursos anuais ven-cidos pelos 85% menores vencedores. Fica evidenciada apresença, também no caso da SVP, de um fenômeno ob-servado por Marques (2000) para o caso da Cedae: a fatiaganha pelas empresas menos importantes, além de muitopequena, só aumenta em termos relativos nos momentosem que os recursos gerais investidos crescem, indicandoa existência de uma parcela “reservada” dos recursosanuais para os maiores vencedores.

Uma outra forma de descrever a concentração diz res-peito à quantidade de empresas efetivas presentes em cadaadministração. Essa medida se origina da utilização dafórmula desenvolvida por Laakso e Taagepera para o cál-culo do número de partidos efetivos, muito utilizada paraa descrição sintética de sistemas partidários, na distribui-ção dos valores dos contratos.21 O número efetivo consi-dera qual seria o total de entidades existentes se a disper-são entre elas fosse igualmente distribuída. Os númerospor administração são os seguintes: Setúbal – 34,2;Reynaldo – 16,5; Curiati – 14,1; Covas – 50,2; Jânio –30,2; Erundina – 24,9; Maluf – 22,9; Pitta – 14,6.

O número geral de empresas efetivas do período é de49,7, bastante superior ao total dos diversos governos e

GRÁFICO 2

Proporção de Valor Investido, por Grupo de EmpresasMunicípio de São Paulo – 1978-98

Fonte: Diários Oficiais do Município.

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do número de empresas efetivas encontrado por Marques(2000) para a política de saneamento no Rio de Janeiro –33,1. Como já se viu que o padrão paulistano é levementemais concentrado que o carioca, pode-se concluir que oprimeiro apresenta uma maior fatia do total licitado con-centrado nas mãos de empresas do meio da distribuição,com uma maior presença de empresas médias.

O governo Covas totaliza o maior número de empresasefetivas de todo o período; as administrações Setúbal,Jânio, Erundina e Maluf apresentam números médios, eas gestões Curiati e Pitta têm os menores valores. Valeregistrar que o fato de o número de empresas para todo operíodo ser tão elevado, quando comparado com os nú-meros de empresas de cada administração indica que cadagoverno, mais ou menos concentrado, apresentou empre-sas diferentes no topo de suas contratações, o que fez comque a lista geral de vencedores fosse caracterizada por umtotal significativo de empresas com valores altos.

Também podemos utilizar o número de partidos efe-tivos (Nicolau, 1997) como artifício para comparar o ca-pital dos principais vencedores da política, calculando ocapital médio desses vencedores e tomando como parâ-metro de corte para cada administração o número deempresas efetivas. Os capitais médios são: Setúbal – cercade 63,4 milhões de reais; Reynaldo – 56,3 milhões;Curiati – 37,6 milhões; Covas – 43,1 milhões; Jânio –45,1 milhões; Erundina – 43,7 milhões; Maluf – 113,3milhões; Pitta – 83,7 milhões. Os capitais das empresas

efetivas dos governos Maluf e Pitta surgem como muitomais elevados que os dos demais governos, acrescentandoà caracterização anterior – de uma administração envol-vida com grandes obras, altamente aditadas, extremamen-te concentradas em poucas empresas contratadas – a in-formação de que se trata de empresas de grande porte.Em um segundo patamar se situam as AdministraçõesOlavo Setúbal e Reynaldo de Barros, ficando as demaisgestões em perfil mais baixo, em torno de 40 milhões dereais.

Por fim, vale observar o comportamento da concen-tração de vitórias por empresas diferentes ao longo dotempo. O Gráfico 4 apresenta uma comparação dos ca-sos da Cedae e da SVP utilizando o índice de concen-tração de contratos desenvolvido por Marques (2000).Esse índice divide o número de licitações em um dadoano pelo número de empresas diferentes vencedoras na-quele ano, apontando para a maior ou menor concen-tração dos contratos assinados nas mãos de um grupomais ou menos restrito de empresas a cada ano. Comoé possível perceber, a tendência geral do período nosdois casos foi de redução da concentração, embora in-cluam-se dois momentos visivelmente distintos. O pri-meiro, entre 1978 e 1986, apresenta altos e baixos, ape-sar de existir uma leve tendência decrescente. A partirde 1987, o índice cai vertiginosamente para um pata-mar muito inferior, conquanto cresça levemente entre1993 e 1996.

GRÁFICO 3

Investimentos e Valores Ganhos pelos Maiores VencedoresMunicípio de São Paulo – 1978-98

Fonte: Diários Oficiais do Município.(1) Valores em reais de dez./99.

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É notável a semelhança dos dois perfis, embora haja sig-nificativa diferença entre os valores absolutos dos dois ca-sos. O índice do caso de São Paulo se coloca em um patamarmais alto e apresenta maior queda absoluta (para facilitar avisualização, foram criados dois eixos diferentes para as duasséries).22 Essas semelhanças – em duas políticas distintasimplementadas por burocracias também distintas em doisespaços urbanos muito diferenciados – confirmam a hipóte-se institucional de explicação levantada sobre o caso cario-ca. Naquele estudo, as grandes mudanças do perfil foramexplicadas pela influência de dois arcabouços legais implan-tados nacionalmente em 1986 e em 1993. A primeira lei, oDecreto-Lei no 2.300/86, que constituiu o primeiro marco

legal exclusivamente dedicado a licitações e contratações dopoder público, democratizando as vitórias em licitações e,conseqüentemente, reduzindo a concentração de vitórias. Asegunda, a Lei no 8.666/93, aumentou muito as exigênciasrequeridas das empresas e, segundo representantes do setorde obras públicas no Congresso afirmaram naquele mesmomomento, produziria uma elitização do mercado. Aparente-mente esse efeito se fez sentir nos dois casos, e as mudançasde patamar geral nas concentrações dos contratos se devemàs alterações nacionais das regras da competição em licita-ções. A queda verificada no caso paulista em 1997 e 1998não pode ser comparada com o caso da Cedae, já que o pe-ríodo daquele estudo terminava em 1996.

GRÁFICO 4

Comparação dos Índices de Concentração de Vitórias em LicitaçõesMunicípio de São Paulo e Região Metropolitana do Rio de Janeiro – 1978-98

Fonte: Diários Oficiais do Município de São Paulo; Marques (2000).

Secretaria de Vias Públicas – MSP

Companhia Estadual de Águas e Esgotos – RMRJ

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CONCLUSÃO

Como se pôde ver a partir dos resultados preliminares,o volume geral de investimentos variou bastante ao longodo tempo. Os investimentos totais parecem estar relacio-nados positivamente com a proporção do orçamento mu-nicipal que é repassado para a Secretaria de Vias Públi-cas e com o fato de o partido do prefeito ser ou não dedireita, assim como negativamente correlacionado com ovolume geral do orçamento municipal. Os principais ele-mentos para a explicação do perfil estão, portanto, emescolhas políticas do eleitorado (elegendo ou não prefei-tos de direita), em dinâmicas internas ao processo decisório(que levam a uma determinada proporção do gasto muni-cipal na secretaria) e no volume geral do orçamento mu-nicipal. Não há dúvidas quanto ao funcionamento do pri-meiro elemento político, mas o segundo e o terceiro serãoobjetos de estudo detalhado no decorrer do restante destainvestigação, quando houver maior aproximação dos pro-cessos de decisão e das dinâmicas no interior da burocra-cia.

Considerando que o perfil político-ideológico do pre-feito é um dos condicionantes do volume de recursos in-vestido em obras viárias, de drenagem e pavimentação,as informações foram agregadas segundo as administra-ções municipais. Os dados caminharam na mesma dire-ção do perfil geral de investimentos: prefeitos de direitatenderam a produzir muitas obras de grande porte, a aditarmais os seus contratos, inclusive acima dos limites legais,e contratar por dispensa de licitação em valores muito ele-vados. Além disso, boa parte de suas licitações foram, demaneira significativa, vencidas por empresas de capitalmais elevado.

Existem obviamente diferenças entre os prefeitos dedireita, mas essas características, em geral, são comun-gadas por todos. Merece destaque, pela intensidade dapresença desses conteúdos, a administração Maluf, seguidade perto da gestão de Celso Pitta. Os governos de Reynaldode Barros, Jânio Quadros e Olavo Setúbal têm caracterís-ticas praticamente idênticas e próximas às dos anteriores,enquanto a administração Curiati é a que apresenta me-nores semelhanças no interior do grupo (como já foi dito,trata-se de um governo atípico, de curtíssima duração –apenas 12 meses). Do outro lado do espectro, encontra-mos os dois prefeitos de não-direita do período – Covas eErundina – que tenderam a construir muitas obras de pe-queno e médio valor, pouco aditadas e contratadas comempresas de capital mais modesto. Nas suas característi-

cas gerais, portanto, pouca diferença foi encontrada entreesses dois governos. A continuidade dessa pesquisa ten-tará a qualificar a possível existência de diversidades nadistribuição espacial dos investimentos, em seus aspectosredistributivos e no desenrolar dos processos de decisão.

A concentração das vitórias mostrou um padrão muitofechado de vencedores, mais restrito que o encontrado noRio de Janeiro. Entre 1978 e 1993, a concentração nasmaiores empresas vencedoras foi sempre muito grande,exceto pelos dois momentos em que a prefeitura foi ocu-pada por prefeitos que não eram de direita. A partir de1994, a concentração dos 5% maiores vencedores caiu,mas a fatia dos 50% menos vencedores a acompanhou,apontando para uma concentração em empresas médias egrandes. Esse padrão tendeu a se atenuar apenas nos mo-mentos de grande oferta de recursos, indicando que, so-mente quando os ganhos das maiores estão garantidos, asempresas da periferia do mercado de obras públicas con-seguem aumentar a sua proporção de vitórias.

Por fim, a concentração geral tendeu a ser fortementeinfluenciada pelos arcabouços legais que regem as licita-ções. A análise da concentração ano a ano indicou queseus níveis costumaram ficar estáveis entre 1978 e 1986,sendo nítida a tendência de queda a partir desse ano, quan-do se promulga a primeira legislação federal de licitações.O efeito voltou a se fazer sentir em 1993, dessa vez au-mentando a concentração, pelo caráter muito restritivo dalegislação então promulgada. O impressionante parale-lismo dessa desconcentração com a observada por Mar-ques (2000) não deixa dúvidas de que o fenômeno inter-veniente é de natureza nacional e muito provavelmenteinstitucional.

NOTAS

E-mail dos autores: [email protected] e [email protected]

1. A apresentação da operação do processo político, entretanto, ficará para umartigo futuro, quando as características mais gerais dos investimentos da SVP játenham sido tratadas, objeto específico do presente trabalho.

2. Sempre que for analiticamente relevante, serão comparados os resultados obti-dos com os encontrados por Marques (2000) para o caso carioca.3. Conforme conceito elaborado por Schneider (1991).

4. O cadastro seria importante por incluir a unidade administrativa responsávelpor avaliações e pela taxa de melhora. A cobrança dessa contribuição, entretanto,nunca chegou a ser implementada.

5. Alguns técnicos importantes da comunidade dos engenheiros paulistas, duran-te a década de 80, foram formados por Maia em sua última passagem pelo setorpúblico, como é o caso de José Celestino Bourroul, presidente da Cohab e secre-tário de habitação no final dos anos 1970 e no início da década de 80.

6. No caso de São Paulo, o fato de os orçamentos públicos não serem mandatóriosadquire contornos dramáticos. Uma legislação aprovada no início da administra-

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ção Maluf aumentou a proporção do orçamento passível de remanejamento semautorização legislativa de 2% para 15%. As administrações Maluf e Pitta usaramessa lei municipal para enviar para a Câmara e aprovar orçamentos com elevadosgastos em áreas sociais e remanejar, na execução, uma proporção significativa doprevisto para políticas intensivas em obras e contratos, em especial as implemen-tadas pela Secretaria de Vias Públicas. No orçamento de 2000, por exemplo, cer-ca de 22% do total orçado foi remanejado na direção da SVP, apenas nos seisprimeiros meses (O Estado de S.Paulo, 28/08/2000). Por essa razão, são usadasaqui apenas informações relativas às proporções e aos valores executados.

Para dar idéia da importância administrativa desse procedimento, basta lembrarque, no momento atual e diante da derrota eleitoral no pleito de 1999, a maioriaconservadora na Câmara Municipal vem ameaçando retornar o remanejamentosem autorização para 1% para o ano de 2001, de forma a atar as mãos da prefeitaeleita Marta Suplicy.

7. Vale ressaltar que a comparação entre as duas informações é realizada apenasno que diz respeito a suas distribuições ao longo dos anos. Essa advertência éimportante pois, considerando que se trata de informações atualizadas financei-ramente de duas formas muito diferentes, os dois conjuntos de valores não sãocomparáveis entre si valor a valor, não sendo possível misturá-los ou combiná-los, por exemplo, na produção de um indicador qualquer.

8. Se forem comparadas as médias de investimentos em anos com e sem eleições,não existem evidências que permitam sustentar que haja uma diferença significa-tiva entre as médias. O mesmo acontece se for considerada a informação sobre ociclo eleitoral escalar, construindo variáveis dummy para os anos com eleiçõesem geral, no primeiro caso, e com eleições municipais e com outras eleições, nosegundo: não há significância nem mesmo a 90% de confiabilidade.

9. Considera-se de direita a Arena, o PDS, o PTB, o PPB e o PTN, e de não-direita o PMDB e o PT.

10. Testes de médias (direita/não-direita) indicam que há diferença, a 95% deconfiança, entre os governos de direita e de não-direita nos investimentos da SVP,nos volumes aditados e nos gastos da SVP como proporção do orçamento. Emtodos os casos, governos de direita apresentam valores mais altos.

11. Tomando o coeficiente de determinação R2 como indicativo da proporção davariância explicada. A regressão respectiva apresentou uma estatística F = a 10,96,significativa a 99% e estatísticas t dos coeficientes beta todas superiores a 2,4.

12. A correlação entre investimentos e prefeitos de direita/não-direita cai de 0,51para 0,38; e a entre os investimentos e a proporção de recursos do orçamento paraa SVP cai de 0,56 para 0,44, controlando alternadamente pela variável correlacionadarestante. Esse resultado já era esperado, pois é por essa razão que as três variáveissobrevivem com significância quando incluídas juntas na regressão.

13. Essa hipótese encontra paralelo no comportamento dos volumes de contratosobtidos pelas empreiteiras mais bem-sucedidas apresentado no Gráfico 3, que seráanalisado na última seção.

14. E, ao contrário do que afirma uma parcela significativa da literatura urbana deinspiração marxista baseada na idéia das contradições urbanas, os condicionan-tes estruturais das ações do Estado devem ser entendidos como constrangimentose não como definidores do conjunto de políticas. Se considerar-se que a políticaimporta e destacarem-se novos sujeitos urbanos como os movimentos sociais (hojenem mais tão novos), também se tem de incorporar como sujeitos as burocraciase a classe política, o que significa aceitar que tenham interesses próprios e quenão ajam (sempre, que seja) como representantes de outros. Vale destacar expli-citamente esse elemento, aparentemente já ultrapassado, para ajudar a redirecionarconceitualmente uma parte significativa das análises que não explicitam os seusparadigmas inspiradores, mas se inscrevem difusamente na tradição das determi-nações estruturais. Só assim esse conjunto de análises retomará o seu caráter ver-dadeiramente crítico.

15. Seria necessário, para isso, realizar um estudo como o de Soares (2000), par-tindo de pesquisas eleitorais e de aprovação de políticas, o que está fora do al-cance do presente trabalho.

16. Vale destacar que a administração Salim Curiati constitui quase um mandato-tampão, tendo o prefeito ocupado o cargo apenas durante o período imediata-mente anterior às eleições para governador de 1982, quando o então prefeitoReynaldo de Barros saiu como candidato.17. Segundo Ostrowsky (1989), a prioridade da administração Covas na SVP seconcentrou na realização de obras de pequeno porte dispersas pela cidade, o queexplicaria os pequenos valores médios e o elevadíssimo número de contratos da-

quele governo. Na próxima etapa da presente pesquisa serão analisados os pa-drões espaciais e o escopo das políticas em cada administração.

18 Vê-se aqui também um efeito da metodologia adotada, que considerou os con-tratos ou aditamentos no momento em que foram realizados, optando por não tra-zer todos os valores aditados para a data do contrato original. Acredita-se queesse procedimento dê conta de maneira mais fidedigna do processo de decisãocom relação a aditar os contratos originais. A idéia de assim proceder deve emgrande parte a observações dos colegas Fernando Limongi, José Antônio Cheibube Argelina Figueiredo a dados preliminares desta pesquisa, a quem agradecemos.19. Optou-se por utilizar como ponto de corte 0,26 e não 0,25 para descontar oefeito do arredondamento de casas decimais, assim como de atualização financei-ra dos contratos e aditamentos.20. A independência política e institucional do Ministério Público, em contraste,tem levado à denúncia de uma grande quantidade de administradores públicos.No caso de São Paulo, a maior parte (70%) das 519 denúncias apresentadas àjustiça entre 1994 e 1999 tinha relação com crimes contra a administração públi-ca (Arantes, 2000).

21. O número de empresas efetivas é igual a 1/S (prop2), sendo que S representao somatório e prop indica a proporção do valor total contratado com cada empre-sa (Nicolau, 1997).22. O coeficiente de correlação entre os dois perfis é de 0,53, significativo a 5%de confiabilidade, sendo idênticos os momentos de queda na segunda metade dadécada de 80 e de elevação a partir de 1993.

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CARÊNCIA HABITACIONAL E DÉFICIT DE MORADIAS: QUESTÕES METODOLÓGICAS

S

CARÊNCIA HABITACIONALE DÉFICIT DE MORADIAS

questões metodológicas

egundo dados oficiais, mais da metade dos paulis-tanos (52%) vive em favelas, cortiços e loteamen-tos clandestinos (O Estado de S.Paulo, 10/12/00).

ridades é preciso identificar as situações em que pro-gramas alternativos à construção de novas moradiaspodem garantir um abrigo digno.

Nesse sentido, o debate metodológico é fundamentalpara o aprimoramento dos estudos e pesquisas sobre ca-rência habitacional no Brasil, até pela diversidade demetodologias, que resulta em estimativas desencontradassobre o déficit de moradias no país. De fato, os dados es-tatísticos disponíveis sobre o tema, divulgados por fontesdiversas, são discrepantes, o que impossibilita a compa-ração entre diferentes momentos em uma mesma regiãoou entre diferentes regiões. Exemplo dos mais eloqüentesé a projeção da população que mora em cortiços no muni-cípio de São Paulo, cuja proporção, dependendo da fonteconsultada, varia entre 8% e 39% da população total(CDHU, 1988:5).

O simples registro das discrepâncias entre as estimati-vas oficiais é insuficiente para aprimorar o diagnósticosobre a situação habitacional no Brasil – sobretudo para adefinição de políticas públicas para o setor. Não bastareconhecer que os conceitos e os procedimentos adota-dos nos diferentes levantamentos de campo determinamos resultados obtidos pelas pesquisas em habitação – quais-quer que sejam elas. É preciso explicitar e aprimorar taisconceitos, bem como seus respectivos indicadores, paracaptar as várias modalidades de carência habitacional nopaís – difíceis de serem identificadas, quando se conside-

MARIE LOUISE BULHÕES PEDREIRA GENEVOIS

Assistente Social, Analista da Fundação SeadeOLAVO VIANA COSTA

Sociólogo, Analista da Fundação Seade

Os dois primeiros tipos de moradia são tradicionalmenteconsiderados precários. A ocupação desordenada do solourbano, nos chamados loteamentos clandestinos, resultaem áreas sem infra-estrutura adequada, com falta de áreasverdes e grande concentração de moradias, que transfor-mam bairros inteiros em locais impróprios para morar.Outras situações também demandam políticas habitacio-nais: algumas são facilmente observáveis, como a dos cha-mados “moradores de rua”; outras são menos visíveis,como casas e apartamentos congestionados ou sem con-dições de conservação para garantir a saúde de seus ocu-pantes.

Para enfrentar as carências é indispensável uma abor-dagem coletiva da questão habitacional urbana – não épossível simplesmente atribuir aos cidadãos que ocu-pam a “cidade irregular” a responsabilidade por estasituação, uma vez que, sem acesso ao mercado imobiliá-rio formal, buscam alternativas para garantir um abri-go nem sempre em conformidade com as normas legais.É preciso levar em conta tanto as condições da unidadehabitacional quanto do conjunto urbano, sabendo que,muitas vezes, as situações irregulares de alguns domi-cílios são camufladas pelos próprios moradores, com ointuito de preservar seu abrigo. E para estabelecer prio-

Resumo: Com o objetivo de aprimorar as estimativas sobre o déficit habitacional no país, este artigo comparaa metodologia adotada pela Fundação Seade, em 2000, para atender uma demanda da Assembléia Legislativado Estado de São Paulo, com aquela desenvolvida originariamente pela Fundação João Pinheiro, órgão oficialde estatística do Governo do Estado de Minas Gerais, que deu origem ao livro Déficit habitacional no Brasil,publicado em 1995.Palavras-chave: política habitacional; déficit habitacional; pesquisas de domicílios.

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ra a cidade real e não a legal – e possibilitar ações capa-zes de suprimi-las. Reciprocamente, tal aprimoramento sópode acontecer com a explicitação dos procedimentos depesquisa e suas justificativas, sem receio de se declararos limites das diferentes metodologias adotadas.

Visando contribuir para o aprimoramento das estima-tivas sobre o déficit habitacional no Brasil, este artigo com-para a metodologia utilizada pela Fundação Seade, em2000, para atender a uma demanda da AssembléiaLegislativa do Estado de São Paulo, com aquela divulga-da pela Fundação João Pinheiro,1 em 1995, no livro Défi-cit habitacional no Brasil. Não se busca uma definiçãode qual metodologia é a melhor, pois as duas se baseiamem fontes de dados diferentes e, portanto, adotam concei-tos, definições operacionais e indicadores diversos paraos vários componentes do déficit habitacional. Assim, épossível, fundamentalmente, tornar claras suas diferençase a avaliação de seu potencial e de suas limitações comoestratégias de pesquisa que permitem subsidiar o planeja-mento e a tomada de decisões governamentais na área dahabitação.

FONTE DE DADOS

A Fundação Seade calculou o déficit habitacional noEstado de São Paulo para subsidiar o Fórum São Paulo –Século XXI, recentemente instituído pela AssembléiaLegislativa com a finalidade de mobilizar a sociedadepaulista para a discussão de temas e problemas relevantespara o seu futuro. Tal demanda somente pôde ser atendi-da em razão da disponibilidade de informações estatísti-cas apropriadas para esse fim, provenientes da Pesquisade Condições de Vida – PCV. Trata-se de um levantamentopor amostragem de domicílios, realizado de quatro emquatro anos, que propicia uma acurada análise das condi-ções de vida da população, tomando por base caracterís-ticas de moradia, instrução, emprego, renda e utilizaçãode serviços de saúde.

Ainda que o levantamento da PCV sobre moradia nãoesteja voltado exclusivamente para a mensuração do dé-ficit habitacional, presta-se a essa finalidade específicaporque o questionário adotado permite a definição opera-cional de um padrão mínimo de habitabilidade, a partirdo qual torna-se possível a classificação de toda e qual-quer unidade habitacional conforme características deedificação, de espaço interno e de sua utilização pelosocupantes. Por essa classificação, que se baseia na verifi-cação de um conjunto de atributos ordenados hierarqui-

camente, consideram-se precárias as moradias construí-das com material impróprio (barracos), as que estão loca-lizadas em loteamento não-planejado (favelas) e as queobrigam seus ocupantes a dividir equipamentos e instala-ções sanitárias indispensáveis, como cozinha, banheiro etanque de lavar roupas (cortiços). Uma vez que não satis-fazem requisitos mínimos de habitabilidade, tais unida-des habitacionais não são estudadas quanto ao espaço in-terno e à densidade, atributos considerados para diferenciaros demais tipos de moradia: as construídas com materialapropriado para garantir solidez e segurança a seus ocu-pantes, que estão inseridas em áreas onde as vias de aces-so e a separação entre os domicílios foram planejadasconforme as normas urbanas de ocupação e que dispõemde equipamentos e instalações sanitárias de uso privativode seus ocupantes.

Para avaliar a relação entre o espaço interno da mora-dia e sua utilização pelos ocupantes, a PCV utilizou doisindicadores: “número e tipos de cômodos existentes” e“cômodos utilizados para dormir”. O primeiro estabelececomo adequada a composição mínima de quarto, sala, co-zinha e banheiro, o que se justifica pelo princípio de quea execução das funções básicas de toda e qualquer mora-dia – repouso, estar, preparação de alimentos e higiene –exige os quatro compartimentos para evitar superposiçãode funções, independente do número de ocupantes.2 Osegundo estabelece como adequada a utilização exclusi-va dos quartos como dormitórios, e se justifica pelo prin-cípio de que falta espaço numa moradia onde a sala ou acozinha também servem para um ou mais moradores dor-mirem regularmente.

Assim, a PCV considera que dispor dos quatro cômo-dos básicos e de quartos em quantidade suficiente para orepouso de todos os moradores corresponde ao espaçomínimo adequado. As casas e os apartamentos que nãoapresentam tais requisitos foram classificados como insa-tisfatórios na escala de condições habitacionais. Os de-mais domicílios, que dispõem das características indispen-sáveis de adequação, foram divididos em satisfatórios –quando só os quartos são usados como dormitórios – emais que satisfatórios – quando sobram quartos.

Importa lembrar que a PCV levantou outras informa-ções sobre condições habitacionais, além daquelas queentraram na escala classificatória. O levantamento sobrea infra-estrutura urbana disponível, por exemplo, incluios equipamentos na rua de acesso (iluminação pública,pavimentação, guias e sarjetas) e os serviços internos aodomicílio (ligações com as redes públicas de abastecimento

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de energia elétrica e de água, bem como de coleta de lixoe de esgotamento sanitário e, na ausência dessas ligações,as alternativas adotadas).

No vínculo da família com sua habitação, a PCV iden-tificou quatro situações: propriedade, aluguel, cessão einvasão. Note-se que a moradia invadida corresponde àcondição das famílias que moram em situação irregular,incluindo as que invadiram o domicílio e aquelas que ocu-param o terreno e construíram suas casas. Sabendo-se, porpesquisas anteriores, que metade da população vive emmoradia própria – incluindo nessa categoria todo e qual-quer tipo de habitação, independentemente de já estarquitada ou não e da sua adequação física –, parte das ques-tões dirigiu-se aos moradores proprietários, a fim de pro-duzir indicadores sobre as formas de aquisição e sobre osarranjos adotados por essas famílias para garantir o seuabrigo.

CÁLCULO DO DÉFICIT HABITACIONAL

A referência básica da Fundação Seade para o cál-culo do déficit habitacional no Estado de São Paulo foia metodologia proposta originalmente pela FundaçãoJoão Pinheiro, no âmbito do convênio de assistênciatécnica para habitação e saneamento, celebrado com oPrograma das Nações Unidas para o Desenvolvimento– PNUD,3 em 1993, que resultou na publicação, em1995, do livro Déficit habitacional no Brasil, com es-timativas baseadas na Pesquisa Nacional por Amostrade Domicílios – PNAD, de 1990, e no Censo Demo-gráfico, de 1991. Nesse livro, depois de tratar da polê-mica questão sobre o sentido habitualmente empresta-do ao déficit habitacional, os técnicos da Fundação JoãoPinheiro lembram que o termo é freqüentemente utili-zado com sentidos diferentes, dependendo do autor con-siderado. Salientam, contudo, que, para o leigo ou lei-tor menos atento, sua quantificação em um único númeroé imediatamente associada à interpretação do déficit ha-bitacional como medida da necessidade de construçãode novas moradias ou unidades habitacionais.4 Em facedessa controvérsia, decidiram agrupar, sob a denomi-nação genérica de necessidades habitacionais, dois ti-pos de carência definidos conforme as ações exigidaspara o seu equacionamento: déficit (que exige constru-ção de moradias) e inadequação (que implica reformas).5

O Quadro 1 reproduz, de forma esquemática, a defini-ção operacional do conceito de necessidades habitacio-nais, tal como concebido pela Fundação João Pinheiro.

Ao redefinir operacionalmente esse conceito, tomando porbase as informações levantadas pela PCV, houve preocu-pação, por parte da Fundação Seade, em não superesti-mar o déficit habitacional. Assim, quando determinadacategoria ou componente englobava variações nas carên-cias detectadas (com possíveis soluções por meio de re-formas e/ou melhorias), essas situações foram engloba-das na inadequação, e não no déficit, evitando-se queintegrassem o contingente de domicílios a serem substi-tuídos (com previsão de novas construções), conformepode ser visto no Quadro 2.

QUADRO 1

Procedimentos Adotados pela Fundação João Pinheiro para a DefiniçãoOperacional do Conceito de Necessidades Habitacionais

Família secundária? Sim → Déficit

Não

↓Família única ou principal em domicílio rústico? Sim → Déficit

Não

↓Família única ou principal em domicílio improvisado? Sim → Déficit

Não

↓Família única ou principal em cômodo alugado

ou cedido? Sim → Déficit

Não

Excluídas as anteriores:

mais de 3 pessoas por dormitório (1)? Sim → Inadequação

Não

↓Excluídas as anteriores:

gasto de aluguel superior a 30% da renda familiar (1)? Sim → Inadequação

Não

↓Excluídas as anteriores:

moradia com carência de infra-estrutura (1)? Sim → Inadequação

Não

↓Excluídas as anteriores:

moradia com estrutura física inadequada (1)? Sim → Inadequação

Não

↓Famílias não-incluídas nas necessidades habitacionais

Fonte: Elaboração dos autores.(1) A classificação depende da renda familiar.

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Componentes do Déficit Habitacional

O déficit habitacional refere-se às moradias que devemser construídas seja para substituir os domicílios existen-tes que não apresentam as condições de segurança indis-pensáveis a seus ocupantes, seja para garantir habitaçãoadequada às famílias que não têm um domicílio de usoprivativo.

A Fundação João Pinheiro agrupou, como componen-tes do déficit habitacional, a coabitação, os domicíliosrústicos e os improvisados. Já a Fundação Seade reuniuos barracos e os domicílios que abrigavam mais de umafamília. Se a variação, em termos de categorias, é a au-sência dos domicílios improvisados no cálculo baseadona PCV, há diferenças conceituais a serem salientadas.

Coabitação Familiar – O primeiro procedimento foi de-finir a categoria coabitação familiar. Para a Fundação JoãoPinheiro, ela agrupa as famílias classificadas pelo IBGEcomo secundárias, ou seja, famílias que residem num mes-mo domicílio com outra família, denominada principal. Suainclusão como componente do déficit habitacional deveu-se “à expectativa, em todos os setores da sociedade, de quenão é apenas desejável, mas possível e esperado que todafamília nuclear possa ter acesso a um lar exclusivo”.

Para quantificar as famílias secundárias, os técnicos daFundação João Pinheiro calcularam a diferença entre onúmero total de famílias em domicílios particulares e onúmero de domicílios particulares, obtendo, desta forma,o número de famílias que dividem com outras uma mes-ma moradia.6 A esse grupo somaram, posteriormente, onúmero de famílias que vivem em cômodos alugados ecedidos, sob a justificativa de que tais famílias tambémnão contam com moradia de uso exclusivo e, assim, de-mandariam a construção de unidades habitacionais. “Cô-modo”, aqui, refere-se a um dos tipos de domicílio daFundação IBGE e corresponde a “domicílio que ocupa umou mais cômodos de uma casa de cômodos, cortiço, cabe-ça-de-porco, etc.”.

O cálculo da Fundação Seade baseou-se em procedi-mento diferente do adotado pela Fundação João Pinheiro,pois a premissa segundo a qual a convivência de mais deuma família na mesma moradia impõe a necessidade deuma nova unidade habitacional – um domicílio para cadafamília – foi considerada discutível, do ponto de vista teó-rico, uma vez que é possível ocorrer a coabitação volun-tária. Assim, a operação visou identificar os domicíliosonde havia mais de uma família, não chegando, portanto,ao número de famílias que não têm uma moradia de usoexclusivo (total de famílias secundárias), mas sim ao nú-mero de domicílios onde havia coabitação. Com tal pro-cedimento, considera-se o total de domicílios (e não o totalde famílias) onde existe coabitação, em vez de adicionaro número de famílias secundárias ao conjunto de mora-dias estudadas. Assim, supondo que parcela da coabita-ção é voluntária, evita-se superestimar o déficit e, conse-qüentemente, a suposta necessidade de construção de novasunidades habitacionais.7

A Fundação Seade não incluiu os cômodos alugadosou cedidos como integrante do déficit, e o cortiço entrouna inadequação, com justificativa apresentada adiante.

Domicílios Rústicos – Depois da coabitação, a FundaçãoJoão Pinheiro identificou os domicílios rústicos, catego-

QUADRO 2

Procedimentos Adotados pela Fundação Seade para a RedefiniçãoOperacional do Conceito de Necessidades Habitacionais

Domicílio com mais de uma família? Sim → DéficitNão↓Barraco isolado ou em favela com família única? Sim → DéficitNão↓

Casa de alvenaria ou apartamento em favelacom família única? Sim → InadequaçãoNão↓Cortiço com família única? Sim → InadequaçãoNão↓Casa de alvenaria ou apartamento, com família única,que tem rendimentos de até R$1.800,00 mensais e pagaaluguel superior a 30% da renda? Sim → InadequaçãoNão↓Casa de alvenaria ou apartamento sem espaço internosuficiente, com família única? Sim → InadequaçãoNão↓Casa de alvenaria ou apartamento onde o espaço é suficientemas há mais de uma pessoa por cômodo e mais de duaspessoas por quarto e onde sala ou cozinha são usadas paradormir, com família única? Sim → InadequaçãoNão↓Casa de alvenaria ou apartamento onde falta uma ouvárias ligações com as quatro redes de infra-estrutura urbana,com família única? Sim → InadequaçãoNão↓Domicílios não-incluídos nas necessidades habitacionais

Fonte: Elaboração dos autores.

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ria que reúne, na definição da Fundação IBGE, domicíliospermanentes em edificações cuja “construção é predomi-nantemente feita por material improvisado, ou seja, pare-des de taipa não-revestida, madeira aproveitada ou mate-rial de vasilhame; piso de terra, madeira aproveitada, tijolode barro cozido ou adobe; cobertura de madeira aprovei-tada, palha, sapé ou material de vasilhame”. Além do des-conforto para seus moradores, em decorrência das péssi-mas condições de salubridade, o domicílio rústicorepresenta risco de contaminação por doenças e risco de des-moronamento – o que justifica a necessidade de ser substi-tuído, mediante construção de unidade habitacional adequa-da. Como o primeiro componente do déficit reuniu apenasas famílias secundárias, não havia risco de dupla contagem –uma vez que foram incluídas nesta categoria apenas as famí-lias principais que viviam em domicílios rústicos.

No cálculo da Fundação Seade, excluídos os domicí-lios com mais de uma família (para evitar a dupla conta-gem, uma vez que pode haver mais de uma família em qual-quer tipo de edificação), foram identificados os barracos. NaPCV, o barraco é “moradia construída inteira ou parcialmentecom material adaptado, ou seja, não-apropriado a umahabitação. (...) quando o material utilizado na construçãoda moradia é todo ou em parte adaptado, ou seja, é mate-rial reutilizado, de qualquer tipo: alvenaria, madeira, pla-ca, zinco, papelão, plástico, etc., as portas e janelas sãoaberturas precárias e não há acabamento na casa”.

Considerou-se que as famílias moradoras de barraco,isolado ou em favela, demandam a construção de um novodomicílio. As demais moradias de favela (casas de alve-naria ou apartamentos) não entraram como componentesdo déficit habitacional, com justificativa apresentadaadiante.

Domicílios Improvisados – A Fundação João Pinheiroidentificou a categoria de domicílios improvisados, queagrupa, conforme definição da Fundação IBGE, os domi-cílios “localizados em unidades que não têm dependênciadestinada exclusivamente à moradia, tais como: loja, salacomercial, etc.”. Inclui ainda “prédio em construção, em-barcação, carroça, vagão, tenda, barraca, gruta, etc., queestava servindo de moradia” por ocasião do levantamen-to de campo. Reúne domicílios que, com certeza, devemser substituídos e só podem ser identificados por uma pes-quisa censitária.

O cálculo da Fundação Seade, por se basear em levan-tamento por amostragem, não considerou os domicíliosimprovisados.

Componentes da Inadequação Habitacional

A inadequação habitacional agrupa os domicílios comuma ou mais carências, mas sem a mesma gravidade dosproblemas detectados no déficit. Podem, portanto, asse-gurar condições mínimas de habitabilidade mediante pro-gramas alternativos à construção de novas moradias: re-formas, ampliações das unidades habitacionais e/ou dasredes de abastecimento e coleta de serviços públicos.

A Fundação João Pinheiro reuniu, nessa categoria, osdomicílios com adensamento excessivo, com infra-estru-tura inadequada ou com elevado comprometimento darenda familiar com aluguel. No cálculo da Fundação Seade,a inadequação habitacional agrupa domicílios congestio-nados, casas de alvenaria e apartamentos localizados emfavelas, cortiços, moradias onde há comprometimentoexcessivo da renda com aluguel e domicílios com infra-estrutura inadequada. Para evitar a dupla contagem, o cál-culo de cada componente foi precedido da exclusão dosdomicílios identificados no componente anterior, confor-me se vê no Quadro 2.

Vale ressaltar que a Fundação Seade utilizou maiornúmero de componentes para identificar a inadequaçãohabitacional. Além disso, há diferenças nos conceitos ado-tados pelas duas instituições de pesquisa.

Com o intuito de permitir a definição de prioridadesdas ações públicas na área da habitação, os técnicos daFundação João Pinheiro adotaram, como procedimentometodológico geral, o tratamento de todos os componen-tes da inadequação habitacional de forma diferenciadasegundo três faixas de rendimento domiciliar: até doissalários mínimos, de dois a cinco salários mínimos e maisde cinco salários mínimos.8

Adensamento Excessivo – A identificação dos domicílioscom adensamento excessivo pela Fundação João Pinheironecessitou da definição do limite aceitável de pessoas pordomicílio. Para tanto, os autores utilizaram o indicador “mo-radores por dormitório” e definiram como “congestionado”todo domicílio com presença de mais de três pessoas por dor-mitório, com a justificativa de que, no Brasil, os domicíliosparticulares permanentes possuem, em média, de três a qua-tro moradores. Além de diferenciar a densidade excessivapor classes de renda familiar, separaram os domicílios emduas categorias – casas e apartamentos –, pois é possível es-tabelecer programas de ampliação para as casas, enquantoos apartamentos congestionados demandam a mudança dosmoradores para um domicílio maior.

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No cálculo desse primeiro componente da inadequa-ção habitacional, a Fundação Seade partiu da considera-ção de que o adensamento excessivo existe quando o es-paço não é suficiente para os seus ocupantes e/ou seencontra congestionado. O cálculo do adensamento ex-cessivo foi feito por dois procedimentos diferentes daque-les adotados pela Fundação João Pinheiro.

O primeiro procedimento implicou a classificação dosdomicílios pelo espaço interno disponível. Como já ex-posto, o indicador da PCV para medir o espaço conside-ra, simultaneamente, o número e os tipos de cômodos, alémde identificar o uso (privativo ou coletivo) da cozinha, dobanheiro e do tanque de lavar roupas. Assim, para o do-micílio ter espaço interno adequado, além de dispor detanque de lavar roupas de uso exclusivo dos moradores,deve possuir a composição mínima de quarto, sala, cozi-nha e banheiro.9 As moradias onde não há o espaço míni-mo indispensável são classificadas como impróprias, por-que sua exigüidade exige sobreposição de funções e, aqui,integram a inadequação.

O segundo procedimento (adotado especificamente parao cálculo do déficit habitacional, porque não-incorpora-do à classificação usual da PCV) foi a identificação, en-tre os domicílios com espaço interno adequado, daquelesonde há, simultaneamente, mais de uma pessoa por cô-modo e mais de duas pessoas por quarto. Assim, é consi-derada adequada a situação de uma casa com quarto, sala,cozinha e banheiro onde moram um casal e um filho; ape-sar de haver mais de duas pessoas por quarto, há menosde uma pessoa por cômodo. Da mesma forma, é adequadaa condição de um apartamento com quatro quartos, sala,cozinha e banheiro onde vivem oito pessoas; apesar dehaver mais de um morador por cômodo, há duas pessoaspor dormitório. Os domicílios onde há espaço interno su-ficiente, mas que foram classificados como congestiona-dos, entram na inadequação.

Nesse componente da inadequação – adensamento ex-cessivo –, a classificação da Fundação Seade apresentavantagens em relação à da Fundação João Pinheiro. Emprimeiro lugar, porque avalia os cômodos disponíveis,comparando-os a um padrão mínimo aceitável. Em segun-do lugar, porque identifica, para os domicílios que dis-põem desse espaço interno indispensável, situações decongestionamento por um duplo indicador, o que resultaem uma classificação mais apurada. Por fim, porque aFundação João Pinheiro baseou-se nos dados da PNAD,a qual, como lembraram os próprios autores, define dor-mitório como “qualquer cômodo que estivesse, em cará-

ter permanente, servindo de dormitório para membros dodomicílio”. Com esse conceito, as famílias em que umaou mais pessoas dormem regularmente na sala ou na cozi-nha não foram identificadas como demandantes de am-pliações.

Comprometimento Excessivo da Renda com Aluguel – AFundação João Pinheiro contabilizou, em seguida, os ca-sos de comprometimento excessivo da renda familiar como aluguel da moradia. Na definição operacional da ques-tão, os técnicos da Fundação João Pinheiro identificaramo comprometimento excessivo quando as famílias despen-dem mais de 30% da renda com o aluguel. O argumentocentral admitia que, nesses casos, as famílias carentesnecessitariam de programa alternativo à construção denovas unidades habitacionais, pois o problema poderia serresolvido, ao menos em parte, com o estoque de domicí-lios vagos identificado pela Fundação IBGE.

O limite de 30% foi adotado por analogia ao procedi-mento usado pela Caixa Econômica Federal e por outrasagências de financiamento habitacional, que consideramessa porcentagem o máximo tolerável de gasto direto comhabitação para os mutuários que pagam prestações da casaprópria. No entanto, os técnicos da Fundação João Pinheiroressaltaram a possibilidade de que o índice adotado su-bestimasse o problema, uma vez que “para as famílias demenor renda mensal – até um salário mínimo, por exem-plo – mesmo gastos de 10% a 30% podem pesar excessi-vamente sobre seu orçamento”. Apesar dessa ressalva(comprometimento da renda familiar com aluguel ser maiorexatamente para as famílias de mais baixa renda), consi-deram ser esse o limite máximo aceitável no comprometi-mento da renda, independentemente da faixa de rendimen-tos. Além de indicar as parcelas mais carentes (até doissalários mínimos e de dois a cinco salários mínimos), fa-zem distinção entre dois grupos de famílias: as que com-prometem de 30% a 50% da renda com o aluguel e as quedesembolsam mais de 50%.

O cálculo da Fundação Seade sobre comprometimen-to excessivo da renda com aluguel foi feito de forma di-ferente. Em vez de identificar os domicílios carentes,foram excluídos da análise o subconjunto formado pe-los 25% das famílias de mais alta renda. Quanto à defi-nição do índice máximo de comprometimento da rendafamiliar com aluguel, foi mantido aquele proposto pelaFundação João Pinheiro, mesmo concordando com asuposição que, para famílias com renda mais baixa (umsalário mínimo, por exemplo), a despesa com aluguel em

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CARÊNCIA HABITACIONAL E DÉFICIT DE MORADIAS: QUESTÕES METODOLÓGICAS

porcentagem inferior a 30% já compromete as demaisnecessidades básicas.

Casas de Alvenaria e Apartamentos Localizados emFavela – No cálculo da Fundação Seade foram identifi-cados, em seguida, as casas de alvenaria e apartamentoslocalizados em favela. Não entraram no déficit em razãodas grandes variações observadas, atualmente, nos domi-cílios favelados – tanto pela ocupação do solo quanto pelahabitabilidade das moradias –, o que levaria a umasuperestimação da necessidade de novas construções. Noentanto, pressupõem programas específicos conforme asituação particular de cada favela e de cada moradia; quan-do uma reforma não é suficiente e as condições exigem adesocupação de toda uma área, com a remoção das famí-lias, devem integrar o déficit.

Cortiços – Para a Fundação Seade, o componente seguintefoi formado pelos cortiços. Na PCV, esses domicílios nãoduplicam a contagem com eventuais cortiços em favelapois, neste caso, eles são classificados como moradia emfavela. Da mesma forma que para a categoria anterior (ca-sas de alvenaria e apartamentos localizados em favela),os cortiços não entram no déficit devido à variedade desituações encontradas atualmente: há casos em que pro-gramas especiais de reforma podem garantir a habitabili-dade dos domicílios e outros em que a precariedade dascondições exige a desocupação, com a remoção das famí-lias – estes, sem dúvida alguma, devem fazer parte dodéficit.

Infra-Estrutura Urbana Inadequada – A infra-estrutu-ra urbana inadequada também é tratada pela Fundação JoãoPinheiro de forma diferenciada para as três faixas de ren-da domiciliar mencionadas. Buscando “levar em conta areal situação econômica dos moradores dos domicílios”,os técnicos da Fundação João Pinheiro definiram, paracada faixa de renda, um padrão mínimo de aceitabilidadedos serviços de infra-estrutura básica (energia elétrica,abastecimento de água, esgotamento sanitário e coleta delixo), abaixo do qual o domicílio foi considerado inade-quado. Mesmo “correndo o risco de sofrer críticas doutri-nárias”, justificaram tal procedimento com a “suposiçãode que, dependendo dos setores sociais, maiores ou me-nores seriam os níveis de exigência dos moradores comos serviços oferecidos”. Além da infra-estrutura, classifi-caram como de estrutura física inadequada os domicíliosque não apresentavam instalações sanitárias internas e de

uso exclusivo, independentemente da faixa de renda deseus moradores.

A Fundação Seade tratou esse componente da inade-quação habitacional – infra-estrutura inadequada – de for-ma radicalmente diferente. Para a PCV, o padrão de ade-quação desse componente corresponde ao acesso às quatroredes públicas de abastecimento e de coleta; como únicaexceção, aceita-se fossa séptica como alternativa à redede esgoto, pois impede a contaminação do solo.

É fundamental, aqui, uma explicação mais detalhadasobre o tema. A proposta da PCV é considerar a infra-estrutura domiciliar urbana10 na sua dimensão coletiva –ou seja, baseia-se na percepção de que as formas de abas-tecimento de água e de luz, bem como as alternativas paraa coleta do lixo e do esgoto domésticos adotadas nas re-sidências urbanas podem ter conseqüências tanto para amoradia em questão, como para o conjunto de habita-ções do qual faz parte.11 Assim, não é qualquer alternati-va às redes públicas que garante a manutenção da saúdecoletiva.

A luz elétrica, quando não existe, é substituída por lam-pião a querosene, velas, etc., que não garantem a segu-rança dos moradores contra incêndios.

O lixo doméstico, quando não é coletado, favorece acontaminação dos reservatórios de água – particulares(poços) ou coletivos (represas). Quando é jogado em rio,riacho ou represa, a poluição é direta; quando jogado emterreno baldio ou enterrado, a contaminação se dá com aschuvas e com a infiltração do solo até os lençóis de água.Queimar o lixo – alternativa à coleta considerada adequa-da em alguns estudos baseados em pesquisas domicilia-res – também não resolve satisfatoriamente a necessidadede um destino adequado para os dejetos dentro da cida-de.12

O abastecimento de água, dentro da cidade, feito porbica, nascente ou poço de uso coletivo – sem o controledos órgãos públicos competentes não tem garantia de sa-lubridade. Quando a água é recolhida de poço individual,os eventuais cuidados da família moradora que o utilizanão são suficientes para garantir que, com a densidadepopulacional urbana, não haja contaminação sub-terrânea da água obtida.

Muitos dos destinos alternativos dados ao esgoto do-méstico também comprometem a salubridade dos reser-vatórios de água. Quando ele é jogado a céu aberto a con-taminação se dá com as chuvas, que o carregam para osrios ou diretamente para as represas. Quando é uma fossanegra ou rudimentar, a falta de revestimento das paredes

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favorece a contaminação do solo, atingindo os poços dasmoradias vizinhas e os lençóis d’água que vão desembo-car nos reservatórios coletivos. Somente a fossa sépticapode ser considerada uma alternativa adequada à redepública de esgotamento sanitário pois ela tem as paredesrevestidas – isolando os dejetos da possível contamina-ção subterrânea do solo – e o devido tratamento dosresíduos.

Portanto, em relação ao componente da infra-estruturaurbana, os procedimentos da Fundação Seade foram bemdiferentes daqueles adotados pela Fundação João Pinhei-ro. Nem se chega a discutir a pertinência de diferenciar ainadequação conforme as faixas de renda familiares, umavez que a consideração da infra-estrutura sob uma pers-pectiva coletiva elimina a necessidade de diferenciar mo-radias situadas em áreas urbanas. Pode-se até apontar umargumento contrário a tal procedimento, lembrando queos graus de adensamento habitacional não são homogê-neos, mesmo em centros urbanos com mais de 50 mil ha-bitantes, como aqueles investigados pela PCV. No entan-to, em razão dos graves problemas que podem ocorrer coma contaminação dos reservatórios de água das cidades, épreferível garantir a devida proteção, mesmo correndo orisco de superestimar a inadequação habitacional.

A avaliação da estrutura física do domicílio, incorpo-rada pela Fundação João Pinheiro neste componente dainadequação habitacional, já havia sido considerada nocálculo da Fundação Seade, quando se procedeu à classi-ficação das moradias conforme o espaço interno.

DIFERENÇAS ENTRE AS METODOLOGIAS

Como já foi dito, não se trata de comparar a metodolo-gia proposta pela Fundação João Pinheiro com aquela uti-lizada pela Fundação Seade para ver qual seria a melhor.O que interessa, com o objetivo de aprimorar os procedi-mentos para a avaliação das necessidades habitacionais,é apontar os avanços obtidos e identificar o que restaempreender. Qualquer que tenha sido o déficit habitacio-nal calculado por ambas, o essencial é reafirmar a impor-tância dos conceitos e procedimentos utilizados.13

Na estimativa da Fundação Seade, os dados da PCVpermitiram a identificação de novos componentes para ainadequação, que aprimoram os resultados. Essa identifi-cação mais apurada das carências é fundamental, pois asfamílias que não moram em condições consideradas asmais precárias, se não contarem com programas alternati-vos para garantir condições habitacionais adequadas, po-

dem ser compelidas a mudanças de domicílio e, eventual-mente, passar a integrar o déficit – com necessidade deconstrução de casas para substituir as atuais. Portanto, atépor uma questão de economia de investimentos públicos,programas alternativos à construção devem ser adotadospara as famílias que moram em domicílios inadequados,antes que eles passem a integrar o déficit.

Aqui é preciso lembrar a dificuldade, freqüente entreusuários de informações, de dispor dos dados necessáriospara os objetivos propostos. No momento da publicaçãode Déficit habitacional no Brasil, a Fundação João Pi-nheiro não contava com todos os resultados do Censo De-mográfico de 1991. Assim, apesar da vantagem de contarcom informações nacionais, com possibilidades de desa-gregação por Estados e municípios, a análise ficou limi-tada aos dados disponíveis, bem como aos conceitos ado-tados pela instituição federal, os quais nem sempre são osmais apropriados para o objetivo proposto. No cálculo feitopela Fundação Seade, por sua vez, houve a vantagem dedispor de informações mais detalhadas sobre as condiçõeshabitacionais das famílias entrevistadas. No entanto, comoa PCV não é um levantamento específico sobre moradias,deixaram de ser levantadas informações importantes, quepossibilitariam uma classificação mais precisa das carên-cias habitacionais.

Não obstante, são fundamentais algumas consideraçõesa respeito da metodologia empregada pela FundaçãoSeade. A primeira refere-se ao princípio adotado de nãosuperestimar o cálculo do déficit, que implica a constru-ção de moradias. Tal cuidado levou a incluir na categoriade inadequação (e não na do déficit) as casas de alvenarialocalizadas em favelas e os cortiços. Como foi dito, essa opçãodeveu-se à variedade de situações encontradas nesses doistipos de moradias: como em um e em outro desses conjuntosde domicílios precários não se encontram condições homo-gêneas de carências existentes, é possível, conforme as par-ticularidades de cada caso, que reformas sejam capazesde garantir condições adequadas de habitabilidade a seusocupantes. Em uma parcela desses casos será necessárioincluir famílias – faveladas ou encortiçadas – no cálculodo déficit, pela impossibilidade de reformas nas suasmoradias atuais. No entanto, supõe-se que tal necessida-de só será definida após se buscar uma solução alternati-va, antes de se optar pela construção de novas moradias.Sendo assim, os dois tipos de moradias precárias perma-necem no item de inadequação habitacional.

Outra consideração sobre a metodologia adotada pelaFundação Seade diz respeito à renda familiar. De acordo

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com a premissa teórica básica da PCV, de que a pobrezanão se resume à falta de renda, foi evitada a diferenciaçãodas necessidades habitacionais a partir dos rendimentosfamiliares.14 Além da dificuldade em se estabelecer umcorte para separar famílias mais ou menos carentes (é ex-tremamente difícil arbitrar a faixa de renda a partir da qualas famílias têm, de fato, condições de escolha para morarcom uma determinada limitação), parece mais oportuno,na classificação das necessidades habitacionais, ater-se aindicadores relacionados diretamente à moradia. Os do-micílios classificados na inadequação habitacional devem,como no caso dos cortiços e das moradias em favelas,passar por uma avaliação que permita definir prioridades,eventualmente incluindo corte por renda.

A introdução de componentes na classificação da ina-dequação habitacional, feita pela Fundação Seade, tornaseu cálculo mais preciso. Com efeito, a Fundação JoãoPinheiro utilizou a fonte de dados disponível mais com-pleta para a análise da situação nacional. Se, por um lado,essa alternativa permitiu estudar as regiões e os Estados ecomparar os resultados obtidos nas diferentes áreas, poroutro, a escolha dos indicadores e as conclusões foramdeterminadas pelos procedimentos adotados pela Funda-ção IBGE, que implica limitações. É o caso da definiçãode um padrão mínimo de adequação habitacional: se épreciso conhecer as condições habitacionais a fim de in-formar as políticas públicas e possibilitar o tratamentodiferenciado conforme as carências encontradas, faz-senecessário estudar o conjunto de moradias, relacionando-as a um padrão mínimo de adequação. Ou seja, não se tra-ta unicamente de identificar os domicílios precários, maspartir de um padrão mínimo e classificar todas as habita-ções. A Fundação Seade pôde incluir componentes – do-micílio construído em alvenaria e localizado em favela,cortiço, triplo indicador para medir densidade e espaçointerno – que a Fundação João Pinheiro não dispunha.

Alguns conceitos utilizados pela Fundação João Pinhei-ro não correspondem aos adotados pela PCV; nesses ca-sos, quando a proposta da Fundação João Pinheiro nãoera contrária à da PCV aplicaram-se os conceitos da Fun-dação João Pinheiro, eventualmente com adaptações con-sideradas indispensáveis; foi o caso, por exemplo, de le-var em conta a coabitação como componente do déficit(pressupondo construção de novas moradias) e diminuiro risco de superestimação considerando domicílios commais de uma família. Quando a proposta da Fundação JoãoPinheiro mostrou-se inviável, pela concepção PCV, elafoi modificada; por exemplo: considerar infra-estrutura

conforme faixa de renda familiar se contrapõe à concep-ção da PCV, uma vez que a abordagem coletiva não per-mite diferenciações, devido aos riscos de contaminaçãoque acarreta para o conjunto da população.

Registre-se, ainda, que, nas duas metodologias, é pre-ciso incluir os procedimentos para evitar a dupla conta-gem. Quando se pretende quantificar o total de moradiasa serem construídas e, por outro lado, o total de domicí-lios que necessitam de reformas ou outros programas al-ternativos à construção, tais procedimentos são fundamen-tais para não se obter uma superestimação das carências,uma vez que é possível encontrar várias carências em ummesmo domicílio. Quando, no entanto, busca-se implan-tar programas específicos, cada componente deverá serconsiderado isoladamente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao publicar o livro Déficit habitacional no Brasil, em1995, a Fundação João Pinheiro deu um passo decisivopara o aprimoramento dos estudos e pesquisas sobre ca-rência habitacional no país. Além dos resultados em for-ma de estimativas – que são uma referência objetiva parao planejamento de ações públicas no setor –, a grandecontribuição do estudo é a explicitação dos conceitos eprocedimentos adotados para a mensuração do déficit ha-bitacional.

A análise desses conceitos e procedimentos, sobretu-do de suas justificativas teóricas e definições operacio-nais, é fundamental para a avaliação do potencial e daslimitações dos estudos sobre habitação que se baseiam noslevantamentos domiciliares de abrangência nacional rea-lizados periodicamente pela Fundação IBGE, como oCenso Demográfico e a Pesquisa Nacional por Amostrade Domicílios – PNAD. A busca de aprimoramento nadefinição de conceitos e indicadores e, portanto, de infor-mações a serem coletadas, deve ser empreendida pelosvários setores e técnicos que se dedicam ao estudo dascondições habitacionais ou que trabalham com as parce-las mais carentes da população, para garantir que os da-dos colhidos possam, de fato, subsidiar o planejamentodas ações governamentais.

Alguns conceitos inovadores foram introduzidos pelaFundação Seade a partir do primeiro levantamento da PCV,em 1990. Para tipos de edificação foi acrescentada, nolevantamento de 1994, uma subclassificação aos tipos tra-dicionalmente adotados – barraco isolado, moradia emfavela, cortiço, apartamento e casa de alvenaria. Essa úl-

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tima categoria foi subdividida em casa isolada (única nolote) e casa frente-fundos (quando a casa divide com umou mais domicílios o terreno onde está construída). Esseprocedimento foi adotado devido ao grande número demoradias classificadas como casa (cerca de 80%), cate-goria que agrupa uma grande variedade de domicíliosquanto a padrão arquitetônico, condições de conservaçãoe salubridade, etc., e na hipótese de que uma família quedeve compartilhar com outra(s) o lote onde mora – mes-mo se os equipamentos hidráulicos são de uso privativo acada uma delas, garantindo cozinha e banheiro de uso ex-clusivo – se submete a limitações de privacidade que en-volvem condições de vida menos adequadas do que teriase vivesse em casa isolada.

É, ainda, o caso da avaliação do estado de conserva-ção do imóvel, que determina as condições de salubri-dade em que vivem as famílias ocupantes. Mesmo apar-tamentos e casas de alvenaria aparentemente confortáveis,com inúmeros cômodos e sem congestionamento não ofe-recerão condições habitacionais adequadas se forem mal-construídos ou mal-conservados – com problemas de ven-tilação, iluminação, umidade, etc., que prejudicam asaúde dos moradores. A PCV introduziu, no levantamentode 1994, questões para determinar o grau de conserva-ção e salubridade dos imóveis. No entanto, falta elabo-rar indicadores objetivos mais completos, para que esselevantamento não se proceda unicamente com base nasrespostas dos entrevistados, como foi feito, até o momen-to, pela PCV.

A busca de aprimoramento nos indicadores de carên-cia habitacional deve incluir a identificação dos domicí-lios tanto nas suas características de construção e de es-paço, como nas formas de ocupação desse espaço,lembrando, como já foi feito anteriormente, que as váriasmodalidades de carência habitacional são difíceis de seridentificadas, quando se trata da cidade real e não da le-gal. As inúmeras carências a serem identificadas incluemos domicílios localizados em áreas vizinhas a fontes derisco (como gasodutos, linhas de alta tensão, encostas, etc.)ou a reservatórios coletivos de água que não garantemsegurança aos moradores; as situações de contratos ver-bais de locação, onde o proprietário define o valor do alu-guel sem o controle legal e o locatário não reclama te-mendo perder sua moradia; as ocupações ilegais dehabitações inacabadas, dos chamados “invasores”, moran-do em permanente risco de acidentes (desabamentos, in-cêndios, etc.), uma vez que os imóveis não têm a supervi-são técnica devida e indispensável; as ocupações de

terrenos, por “invasores” que constroem suas casas emáreas nem sempre seguras (próximas a encostas ou repre-sas, por exemplo), situações que, muitas vezes, só se tor-nam conhecidas quando ocorrem acidentes sérios. E tan-tas outras situações camufladas, que devem ser conhecidaspara avaliar as condições habitacionais da população maiscarente.

Devem ser lembradas, por último, duas carências deinformações ligadas a limitações de qualquer pesquisaamostral. Uma delas refere-se aos chamados "moradoresde rua" que, obviamente, são uma parcela a integrar odéficit habitacional. Outra limitação é a falta de espacia-lização das informações dentro da malha urbana pois, emcidades, as condições habitacionais são distintas confor-me o distrito e o bairro em que se localizam.

Vale a pena chamar a atenção para uma característicasetorial, já referida anteriormente: os estudos sobre con-dições habitacionais geralmente identificam as moradiasmais precárias de um lado, contrapostas às demais, ouaprofundam o conhecimento de um determinado tipo decarência. Mesmo prestando informações importantes, essetipo de abordagem não permite ações diferenciadas dosórgãos públicos, pois não possibilita estabelecer priori-dades. E, tratando-se de moradias, os recursos a sereminvestidos supõem altos investimentos – se a solução pro-posta é a construção de unidades habitacionais para a po-pulação mais carente. Assim, as informações serão maiseficazes se diferenciarem a necessidade de construção deprogramas alternativos a ela.

Foi exatamente a partir dessa premissa que a Funda-ção Seade, ao calcular as necessidades habitacionais, cui-dou para não superestimar o déficit, mesmo com a even-tual superestimativa da parcela de moradias inadequadas.Esse procedimento supõe programas imediatos para sa-nar as carências dos domicílios classificados como inade-quados pois, como já foi dito, as moradias que não se en-contram em condições mais precárias, mas não dispõemdas condições mínimas de habitabilidade abrigam famí-lias que, se não tiverem acesso a melhorias nos seus do-micílios, correm o risco de ver se deteriorar suas condi-ções e passarem a compor o agrupamento das moradiasmais precárias, saindo da inadequação para o contingentedo déficit.

Em suma, é de extrema importância incentivar os ór-gãos especializados na área de habitação e os técnicos quetrabalham com moradia para buscarem aprofundar a defi-nição dos indicadores que traduzam as diferenças a seremobservadas e a conseqüente classificação mais apurada das

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carências existentes. Estaremos, assim, todos – quem buscaconhecer a realidade e quem atua para modificá-la – tra-balhando na mesma direção, de melhorar as condições demoradia e de vida da população mais carente.

NOTAS

E-mail dos autores: [email protected] e [email protected]

1. A Fundação João Pinheiro é o órgão oficial do Governo do Estado de MinasGerais, responsável pela articulação do sistema estadual de estatística, que pro-duz e divulga estatísticas e indicadores econômico-financeiros, demográficos,sociais, etc. Volta-se também para a realização de projetos de pesquisa aplicada,consultorias, desenvolvimento de recursos humanos e ações de apoio técnico aosistema estadual de planejamento e demais sistemas operacionais do Governo doEstado de Minas Gerais, nas áreas da administração, economia, estudos históri-cos, culturais, sociais e políticos. Para mais informações, consultar o portal daFundação João Pinheiro na internet (www.fjp.gov.br).

2. Em exercícios realizados com os dados da PCV, constatou-se que são sobretu-do as moradias classificadas como adequadas as que dispõem de cômodos desti-nados a outras atividades, além das quatro essenciais (complementares às tarefasdomésticas – área de serviço, por exemplo – ou destinadas a atividades lucrativas– consultório, por exemplo), o que valida o indicador que totaliza os cômodosdestinados às quatro funções básicas.3. Projeto PNUD – Sepurb/BRA/93/013 Assistência Técnica para Habitação eSaneamento.

4. Para salientar a complexidade que envolve a discussão sobre déficit habitacio-nal no Brasil, os técnicos da Fundação João Pinheiro alertam: “Nos últimos anos,dependendo dos métodos e parâmetros utilizados, as estimativas variaram de 6,5a 15,4 milhões de unidades, o que na prática, gera a difusão de números míticos,de 10 a 12 milhões repetidos pelas autoridades, estudiosos e empresários ligadosao setor imobiliário”.

5. Segundo os autores, as necessidades habitacionais englobam “o déficit habita-cional e a inadequação de moradias em determinado momento no tempo, ou seja,problemas sociais de toda ordem direta ou indiretamente relacionados à habita-ção”. Para garantir o sentido da terminologia empregada, a Fundação João Pi-nheiro lembra que demanda demográfica “não é déficit habitacional. Apenasdimensiona quantas moradias adicionais devem ser acrescentadas ao estoque paraacomodar condignamente o crescimento populacional em determinado intervalode tempo. Não se preocupa nem deve se preocupar com nenhum aspecto socialprévio ou considerações sobre a qualidade das moradias ou sua inadequação, quetranscendem sua competência técnica de elaboração de números”.6. Importa salientar que, com tal procedimento, a parcela de famílias secundáriasfoi acrescentada ao total de domicílios – o que exige cuidado na aplicação dametodologia proposta, pois muitos dados referem-se ao número de domicílios enão de famílias.7. Vale notar que, de acordo com a PCV, na RMSP, os domicílios com mais deuma família correspondem a cerca de 2,5% e, nestes, a grande maioria abrigaapenas uma família secundária.8. Apesar de introduzir, como procedimento metodológico, a diferenciação con-forme a renda familiar, os técnicos da Fundação João Pinheiro julgaram aconse-lhável não estimar cada componente das necessidades habitacionais com tal dife-renciação pois, no caso do déficit, a situação implica necessariamente novasmoradias (independentemente dos rendimentos) e, no caso da inadequação, por-que esse procedimento implicaria projetar a distribuição de renda domiciliar de-tectada em 1991 para 1995, o que foi considerado temerário.9. As famílias com mais alta renda que podem, em tese, escolher morar em umdomicílio que tenha condições de habitabilidade adequadas, apesar de conter apenastrês cômodos (por exemplo, sala/quarto, mais cozinha, mais banheiro), são rela-tivamente pouco numerosas: em 1994, de acordo com a PCV, as famílias comrenda total superior a 20 salários mínimos e, simultaneamente, com renda per capitasuperior a seis salários mínimos coorrespondiam a 4,4% na RMSP.

10. Em Déficit habitacional no Brasil, a Fundação João Pinheiro privilegia a análisedas necessidades habitacionais urbanas, “pois nas cidades concentram-se atual-mente mais de 75% da população do país, onde são maiores os problemas dohabitat”. Quanto à PCV, o levantamento de 1998 incluiu os municípios paulistascom população urbana superior a 50 mil habitantes.

11. Devido à impossibilidade de espacialização, dentro da cidade, dos dados naPCV (o que representa sério limite para o aprofundamento da análise sobre asalternativas às redes públicas de infra-estrutura urbana), algumas premissas fo-ram adotadas para o estudo sobre a infra-estrutura urbana:

- como o levantamento da PCV abrange centros urbanos com mais de 50 mil ha-bitantes, considera-se o grau de adensamento habitacional homogêneo e suficien-temente alto para que certas alternativas às redes públicas interfiram nos domicí-lios vizinhos – somente a fossa séptica foi considerada alternativa adequada àrede de esgoto, pois garante a devida proteção contra a contaminação dos reser-vatórios de água;

- quanto ao solo, considera-se, em vista da alta densidade habitacional referidana premissa anterior, que é permeável a ponto de possibilitar a contaminação dosreservatórios de água (individuais e coletivos) pela infiltração de dejetos ou lixo,e homogêneo nessa permeabilidade;- consideram-se verdadeiras as informações obtidas dos próprios moradores,mesmo levando em conta que, eventualmente, não correspondem à realidade; é ocaso, por exemplo, do locatário que acredita que sua casa tem ligação com a redede esgoto, quando, na verdade, a canalização subterrânea termina em um córrego.

12. Cabe uma explicação mais detalhada sobre esta alternativa. Entre as diferen-tes substâncias que compõem o lixo, somente as orgânicas, que são putrefativas,provocam mau cheiro e favorecem a proliferação de animais indesejáveis (mos-cas, mosquitos, baratas, ratos), responsáveis pela transmissão de várias doençasao homem. Os moradores de centros urbanos que habitualmente queimam o lixodoméstico, nem sempre conhecem as implicações da queima de detritos. Buscam,de imediato, eliminar o mau cheiro e a presença de bichos. No entanto, mesmoquando alcançam esse objetivo (ou seja, não deixar resíduos que continuem in-festando o ar e alimentando insetos), as demais substâncias muitas vezes perma-necem acumuladas. São materiais combustíveis (panos, papéis, couros, plásticos,madeiras, etc.) ou incombustíveis (metais, vidros, pedras, etc.) que mantêm oamontoado de detritos queimando durante longo tempo (poluindo o ar, muitasvezes com a emissão de gases tóxicos) ou se deterioram, espalhando substânciasnocivas à saúde. É o caso, por exemplo, das pilhas que, quando se rompem, dei-xam vazar os metais que as compõem; com as chuvas esses metais atingem rios eriachos ou se infiltram no solo. Se as pilhas são de dimensões reduzidas e nãoestão diariamente no lixo doméstico, com outros materiais também ocorre o mes-mo processo e, em centros urbanos, o acúmulo de ocorrências transforma casosisolados em problema coletivo. Assim, somente o serviço de coleta regular – feitadiretamente por caminhões ou por caçamba (recipiente apropriado para o reco-lhimento do lixo, esvaziado periodicamente) – é considerado adequado para agarantia da saúde pública.

13. Apenas como ilustração, o déficit habitacional na Região Metropolitana deSão Paulo, tal como calculado pela Fundação João Pinheiro, a partir de projeçõesbaseadas nos dados do Censo Demográfico de 1991, foi de cerca de 9,5%. Para aFundação Seade, tomando por base os dados da PCV-1998, a estimativa foi de7,7%.Quanto à inadequação habitacional, a estimativa da Fundação Seade agrupa 41,9%das moradias e a Fundação João Pinheiro não apresentou parcela única neste com-ponente das necessidades habitacionais (por não dispor, naquele momento, dosdados indispensáveis a este cálculo).

14. A PCV partiu da hipótese que a pobreza não deve ser medida com um únicoindicador, por mais sensível que seja, e elaborou uma metodologia que classificaas famílias por várias características socioeconômicas. Foram criadas quatro es-calas setoriais – moradia, instrução, emprego e renda –, a partir da definição dopadrão mínimo de adequação e da hierarquização dos atributos indispensáveis aosetor. Cada setor pode ser abordado em sua escala mais completa, com as váriascategorias hierárquicas, ou em sua escala dicotômica, que divide as famílias emcarentes e não-carentes, dependendo de sua posição com relação ao padrão míni-mo de adequação. A classificação simultânea dos quatro setores, por meio desuas escalas resumidas, permite a ordenação e o agrupamento das famílias con-forme seu perfil socioeconômico.

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IMPLANTAÇÃO DE MINIVILAS OLÍMPICAS EM BAIRROS DA PERIFERIA

N

IMPLANTAÇÃO DE MINIVILAS OLÍMPICASEM BAIRROS DA PERIFERIA

AZIZ AB’SÁBER

Geógrafo, Professor da USP. Foi presidente da SBPC e do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico eArqueológico do Estado de São Paulo

Resumo: Face as condições socioeconômicas que aguçam a carência e a pobreza, torna-se necessário e urgentea implantação de projetos para atender a população excluída. Nesse sentido, este artigo expõe um pequeno(para ser imediatamente viável) projeto social baseado em “minivilas olímpicas”, para compor clubes e espa-ços comunitários.Palavras-chave: urbanismo e exclusão; intervenção social; espaços comunitários.

unca foi tão necessário e urgente trabalhar no ter-reno das idéias para atender aos que permanecemexcluídos da sociedade autodenominada moder-

e cientistas, ao lado de pessoas esclarecidas e religiososdiferenciados, ponham mãos à obra, para pensar com se-riedade centenas ou milhares de estratégias para modifi-car essa conjuntura de desigualdades somadas, a partir depropostas bem meditadas por mais simples que sejam,desde que viáveis e úteis e, sobretudo, provocadoras deacréscimos e efeitos multiplicadores.

Dentro desse espírito, no presente caso, expõe-se umpequeno projeto social que deve ser entendido como umentre milhares, que outros têm a obrigação de elaborar.Não faz mal algum que nos sejam endereçadas opiniõescontrárias, críticas inconsistentes ou contrapropostas mal-aperfeiçoadas. Mesmo porque, das críticas raivosas ouciumentas, ainda se pode tirar acréscimos complementa-res aproveitáveis. Não é necessário também preservar onome original que se deu aos projetos. Não é pelo nomeque um projeto pode ter valor, mas sobretudo por seusobjetivos, sua significância social ou psicossocial, e suacapacidade de reprodução e atendimento múltiplo e de-mocrático. Nosso projeto de “minivilas olímpicas” pode-ria ser chamado de “clubes da comunidade”, “centro cul-tural de apoio”, “espaço cultural de lazer”. O que maisinteressa nele é a vinculação e a capacidade de despertara auto-estima da comunidade, opondo-se ao permanentedistanciamento e lerdeza da burocracia onipotente.

As oportunidades de lazer que as populações das peri-ferias possuem são tão exíguas e deploráveis que nos obri-

na. Para as elites insensíveis à carência e à pobreza, nãoexiste interesse em pensar no destino e nos problemas dospobres e carentes. Não aprenderam ainda – ao fim do se-gundo milênio – aquela lição profundamente humana ecristã que diz: “ninguém pode escolher o lugar, o ventre ea condição socioeconômica que garanta a sua trajetóriana sociedade”. A realidade biológica irreversível conduzas crianças e os adolescentes aos mais variados roteirosde vida: uns são filhos privilegiados de poderosos de to-dos os naipes ou de famílias ceudaliformes; outros, nas-ceram e cresceram no meio de comunidades rurais e ur-banas e selváticas marginalizadas e desentendidas.

Em face desta conjuntura dramática, governantes edemagogos tradicionais alegam sempre a falta de recur-sos e a ausência de parceiros, quando o problema não re-side só nisso, mas diz respeito também à míngua deconhecimentos, idéias e vontade política. Fazem-se refe-rências à pobreza em uma atmosfera de descompromissoe ocasionalidade. Repetem-se generalidades. Elabora-seo mapa da pobreza. E, por fim, fica-se no beco da impo-tência e do esquecimento. É certo e claro que se trata domaior problema de um país de grande volume de popula-ção, projetado por diferentes espaços de um território deescala continental. Mais uma razão para que governantes

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garam a uma incursão demorada sobre o seu mundo real.Na realidade, a idéia de realizar uma campanha pública afavor de Minivilas Olímpicas consolidou-se em função deuma (re)visita meditada sobre o cotidiano do homem e dasfamílias, nas margens esquecidas de uma região metropo-litana submetida a um perverso subdesenvolvimento. Osresultados dessas observações deixaram alguns flashes aserem considerados por todo um conjunto de cidadãos.

Sem emprego e sem dinheiro, a maior parte da popula-ção periférica não tem condições de participar dos espaçosabertos da metrópole central, sendo que a metrópole inter-mediária — em diversos sentidos tão dinâmica — não pos-sui infra-estrutura minimamente adaptáveis às expectativasdos jovens e adultos moradores de periferias carentes. Nessaconjuntura, plena de limitações, as comunidades pobres sesentem enclausuradas e impotentes. Aos sábados e domin-gos — os dias mais importantes para os jovens desterradosda periferia urbana —, utilizam-se pequenas glebas, oca-sionalmente vazias, para treinos e jogos, limitados ao maispopular dos esportes praticados no Brasil.

Os espaços dessas práticas, na maior parte dos casos,são os terrenos de fundo de vales, ainda não ocupados,pertencentes ao(s) município(s), ou a particulares ansio-sos por mercadejar seus terrenos periféricos, indiferentesàs restrições de uso no eixo desarranjado dos pequeninoscursos d’água. Agora, o antigo riacho meandroso ficouna categoria popular de águas espraiadas, perdendo flu-xos por meses devido à urbanização caótica. Nesses fun-dos de vales ou em terraços artificiais talhados nas coli-nas e vendidos a preços aviltados por prefeitos bisonhos,existem os únicos espaços factíveis para o esporte prefe-rido dos jovens. Espaços de disponibilidade temporária,a qualquer hora sujeitos à construção de fábricas ou gal-pões, ou loteados para a obtenção de lucros fáceis e ga-rantidos.

Em alguns casos, formam-se grupos de espectadorescuriosos em observar o desempenho de alguns jogadoresque cedo se destacam. Quando começam aparecer barra-quinhas de petiscos baratos e venda de refrigerantes, asautoridades deveriam se alertar sobre o fato de que aliexiste um Embrião de Minivila Olímpica.

Conviria logo comprar, readquirir ou desapropriar oaludido terreno, com vistas à implantação progressiva, sobprojetos em módulos de um espaço público polivalente,de elevado interesse comunitário. É possível pensar queMinivilas Olímpicas, que venham a ser implantadas — emrepiquete — nos mais diferentes e fatíveis terrenos pré-identificados pelos jovens, possam se constituir em com-

ponente da transformação social e cultural de importan-tes setores das imensas periferias de São Paulo, represen-tando um exemplo a ser seguido por outras grandes cida-des do país. Não se pode pensar, entretanto, apenas noprojeto construtivo caro e limitador. O principal — a es-sência mesma do projeto — deve estar voltado para o cul-tural e a conquista da cidadania. Pensamos em umaMinivila Olímpica que se desdobra em uma festa semanaldas comunidades do entorno. Um ponto de encontro emque as mães estejam mais próximas de seus filhos, prote-gendo-os em relação ao manhoso aliciamento por narco-traficantes. Um espaço preferencial dos sábados e domin-gos, que seja capaz de retirar os pais adultos das margensdos balcões dos bares e restaurantes, onde apenas existe apossibilidade de tomar a sua cervejinha tradicional.

Um lugar de desdobramento de práticas esportivas, in-teressando às diversas preferências da comunidade, sobre-tudo dos jovens. Uma área de maior abrangência esporti-va, voltada para o futebol, voleibol, basquete, incluindoespaços para corridas, passeios em trilhas. Talvez um dia,a piscina; mais de imediato, a “Escola de Capoeira”, o corale o Teatrinho Comunitário. E a oportunidade de algunsiniciarem a discussão dos problemas de seu bairro, exigi-rem a atenção dos poderes públicos e implantarem cen-tros de alfabetização de adultos. Acrescentando inovaçõeseducativas informais, paralelas ao ensino público informal,tão degenerado e insuficiente culturalmente falando, ain-da que com muitas e raras exceções, num processo cres-cente e desdobrativo em que se dê respaldo e melhor cate-goria às rádios comunitárias; em que se faça um efetivocombate à violência e aos valores negativos da condiçãohumana. Enfim, um feixe de objetivos que realizem a pas-sagem de uma Minivila Olímpica em um rústico, porémfuncional, Clube da Comunidade periférica e, sobretudo,em um Centro de Defesa da Democracia.

Para tornar possível a implantação de uma MinivilaOlímpica, é necessário começar pela identificação dos dife-rentes tipos de terrenos vazios onde crianças e, principal-mente, os adolescentes praticam futebol nos feriados ou fins-de-semana. Cada terreno observado possui uma conformaçãodiferente ou similar, obrigando a ligeiras adaptações dosprojetos. Para que sejam viáveis, estes projetos precisam sermodulares e de implantação progressiva. Pelo menos em suafase inicial, independentemente de melhorias futuras, pres-supõem-se pequenos projetos, simbólicos e de baixo custo,para não dizer de baixíssimo custo.

Tratando-se de terrenos vazios, de meio a dois ou trêshectares, pensa-se em uma seqüência de implantações.

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IMPLANTAÇÃO DE MINIVILAS OLÍMPICAS EM BAIRROS DA PERIFERIA

Primeiramente, um tratamento linear do entorno, marca-do por três a seis palmeiras imperiais, nos quadrantes ex-tremos do terreno, sob espaçamento de oito metros. Nocanto mais próximo das moradias dos pais, deve-se esta-belecer um pequeno Rancho das Crianças – “Ranchinhoda Cultura” –, incluindo bancos laterais e mesas para exer-cícios de desenhos, concurso de redações, por mais sin-gelas que sejam, além de um “Baú de Livros” infantis, pré-selecionados e atraentes. Alguém da comunidade seencarregará de distribuir pranchetinhas e papel para osexercícios de desenhos e modestos concursos de redações,ou listagem dos problemas de seu bairro, segundo a óticade cada um. Os recursos necessários para construir o“Ranchinho da Cultura” correspondem a apenas algumascentenas de reais ou por um esforço costumeiro da auto-gestão comunitária (Mutirão da Cidadania).

Os outros componentes do embrião de uma MinivilaOlímpica constituem-se em dois ranchos mais amplos, aserem implantados em sítios ligeiramente mais elevados,para que se possa ter uma visão mais abrangente do espa-ço total. Um desses ranchos deve ser dedicado à presençadas mães, a fim de que elas possam ficar mais próximasde seus filhos em uma área de lazer organizado. O outrocompreende um espaço destinado a adolescentes, para serutilizado em dias de chuva, ou para descanso entre as prá-ticas esportivas. Próximo dos edifícios rústicos, devem serinstalados sanitários femininos e masculinos, de uma apri-morada qualidade e asseio, sob uma certa vigilância co-munitária. Dois anexos devem funcionar como vestiáriosdecentes para os esportistas.

Nessa idealização para a fase inicial das Minivilas Olím-picas, pode-se pressupor doações de pessoas esclarecidase sensíveis: fogões, pratos e talheres para a cozinha co-munitária semanal ou quinzenal no pequeno pavilhão dasmães; refrigeradores usados; livros e cartilhas para o cha-mado “Baú de Livros” para crianças e adolescentes; ma-teriais para as diferentes atividades esportivas (bolas, ra-quetes, redes, faixas demarcadoras coloridas); banquetaspara os principais edifícios das Minivilas Olímpicas; en-tre outros equipamentos funcionais, indispensáveis e prio-ritários. Daí porque um compartimento fechado, relativa-mente pequeno, no rancho das mães e outro no rancho dosadolescentes. O tempo se encarregará de implantar o pa-lanque do teatrinho popular, enquanto a Escola de Capoeirapermaneça no rancho dos adolescentes, segundo dias ehorários preestabelecidos. E assim, um dia, chegará a vezde uma piscina, no momento em que as Minivilas Olímpi-cas, dirigidas por comunidades de moradores (Associa-

ções Comunitárias), venham a se transformar em ativosClubes das Comunidades da Periferia. Nenhuma objeçãoa modificações e acréscimos de funções e atividades natrajetória de cada Minivila Olímpica. O que está acima detudo é a constituição de um novo e atraente patrimônio dacomunidade, capaz de dignificar crianças, adolescentes eadultos na utilização de valores culturais mais nobres deuma rica cultura popular.

Deve-se esclarecer, nesse sentido, que nos inspiramosmuito nas atividades desenvolvidas em alguns pátios es-colares, incluindo-se nisso a força de que é dotada a me-renda em termos de uma alimentação mínima para as crian-ças carentes. Nossa proposta, porém, procura atender aoimenso volume da população pobre periférica, assim comomelhorar e incentivar as iniciativas que partiram dos pró-prios adolescentes que elegeram as práticas esportivascomo uma de suas preferências essenciais.

No que se refere à educação, o problema é mais amploe complexo. Os pátios das escolas, por menor que fossem(e alguns são relativamente grandes) deveriam receberoficinas de diversas naturezas, na condição de treinamen-to para conhecimentos técnicos modernizantes, capazesde facilitar e qualificar os menores na sua futura inserçãoprofissional e socioeconômica. Mesmo porque, o melhortratamento que se possa dar à educação, em um país deescala continental e de sociedade extremamente desigual,será aquele que se apóie em três blocos potencializadorese indutores: a recuperação seletiva do conhecimento acu-mulado; o esforço permanente para abranger a regiona-lidade física, ecológica, social e cultural da área de vivênciado alunado; e um conjunto de “oficinas” para treinamen-to e identificação de vocações.

Uma escolha variável caso a caso e, sobretudo, de re-gião para região. Computação, quase sempre. Na beira-mar, oficinas para feitura de um barco, rede de pesca, umaquário significativo, culminando com ensinamentos so-bre a engrenagem e o funcionamento de um motor de popa.Uma oficina para culinária nutritiva, através de gastos mí-nimos. Outra, para o bom uso das águas e precauções paraevitar a poluição hídrica. Uma oficina para que as enfer-meiras residentes na região expliquem e realizem medi-das de pressão, índices de glicemia, importância diferen-cial dos alimentos. Em muitos casos, uma oficina do tipoda Caixa Econômica, para que os meninos premiados porsuas notas e educação tenham um dinheirinho quando ter-minarem seus cursos. No mesmo local, um rol de peque-nos equipamentos escolares, a preço de custo: canetas,lápis de cores, cadernos e papéis brancos, réguas, cola,

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borrachas ou corretores, pranchetinhas para desenhos eexercícios. Oficinas para o desenvolvimento da arte defazer maquete: a maquete da escola, a maquete ideal deuma Minivila Olímpica, a planta de uma casa “dos meussonhos”. A oficina do recorte e classificação de artigos enotícias de jornais, com a (re)leitura crítica semanal paraos interessados.

Enfim, oficinas selecionadas, entre muitas e muitasidéias, para um aprendizado que paralise e diminua a for-malidade da escola tradicional. Tudo com a ajuda volun-tária e graciosa de alguns missionários da nacionalidade.Estratégias simples para a verdadeira construção da cida-dania.

A viabilidade da proposição de um novo tipo de par-que distrital, adaptada às áreas metropolitanas periféricas,é um fato absolutamente incontestável, desde que se ado-tem estratégias factíveis, como algumas detalhadas nopresente artigo. Às vésperas de eleições municipais, épossível comprometer partidos e candidatos com a idéiamestra de uma campanha por Minivilas Olímpicas, já que

a Região Metropolitana de São Paulo comporta mais detrês dezenas de municípios, alguns dos quais dotados deamplas, densas e violentas periferias. Seria ideal que oMaster Plan (Plano Mestre) das Minivilas Olímpicas fos-se realizado por uma instituição pública de abrangênciametropolitana, ativa, antiburocrática e disposta a discutiridéias. Na lamentável ausência de um órgão metropolita-no dotado de inteligência e poder, a campanha por umarede de Minivilas Olímpicas tem de seguir outras trajetó-rias, bem mais lentas e frágeis.

O detalhamento aqui realizado, na categoria de pré-projeto e tendo por base uma área piloto em teste, cons-titui um apelo aos cidadãos sensíveis e de bom senso vol-tados para o social, no contexto do desenvolvimentodesigual.

Talvez outros tenham idéias e projetos diferentes e deimplantação mais rápida e menos sofrida. Tanto melhor!Alegarão outros – com evidente superficialidade – queseria melhor abrir o pátio das escolas municipais e esta-duais para uma clientela mais diversificada.

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A PRIVATIZAÇÃO DO SANEAMENTO

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A PRIVATIZAÇÃO DO SANEAMENTO

objetivo do artigo é analisar as tentativas de pri-vatização de sistemas de saneamento básico emmunicípios do Estado de São Paulo, desde a pro-

periências internacionais, países que adotaram políticaseconômicas similares à adotada no Brasil, como Argenti-na, Chile, México, Peru e outros países latino-america-nos e do leste europeu, privatizaram grande parte dos seusserviços de saneamento.

No Brasil, no entanto, e até o final de 1998, não haviaum marco regulatório que permitisse privatizar as compa-nhias estaduais concessionárias de serviços de saneamen-to (as Cesbs). Apesar de alguns governos de Estado tereminteresse em seguir esse caminho, como os do Rio de Ja-neiro, Espírito Santo, Tocantins e Bahia, entre outros, dis-putas entre governadores e prefeitos envolvendo contro-vérsias legais sobre quem era de fato o verdadeiro detentorda titularidade do poder concedente, principalmente nasregiões metropolitanas, provocaram, por longo tempo, umimpasse nas privatizações. Pode-se, ainda, observar queos esforços do Governo Federal nesse período se dirigi-ram para criar os marcos regulatórios apropriados que tor-nassem viável a privatização de empresas estatais de ou-tros setores da infra-estrutura, menos conflituosos, deixandoo de saneamento básico para último termo. De qualquerforma, esse impasse não afetou os mais de mil municípiosdo país não-operados pelas Cesbs, para os quais, depoisda promulgação da Lei de Concessões, não havia mais im-pedimentos legais para privatizar seus serviços de sanea-mento. Bastava que o prefeito aprovasse um Projeto de Lei(PL) na Câmara Municipal para esse fim.

mulgação da Lei de Concessões de Serviços Públicos (no

8.987), em 1995, até o ano de 1998, evidenciando princi-palmente a atuação, as estratégias e os constrangimentosinstitucionais enfrentados pelos atores envolvidos.

O setor de saneamento, estatal desde o primeiro go-verno Vargas, com a promulgação da referida lei – queestabeleceu diretrizes para a concessão de serviços públi-cos e solucionou em grande parte o marco legal requeridopara a privatização de sistemas municipais de saneamen-to – passou a ser o alvo de empresas nacionais e multina-cionais, que se empenharam em abrir o novo e expressivomercado paulista, formado por uma grande empresa esta-dual, a Saneamento Básico de São Paulo (Sabesp), e qua-se três centenas de serviços municipais autônomos.

A opção privada na gestão de sistemas de saneamentoparecia um caminho inevitável. Ela fazia parte de um pro-cesso amplo de reforma do Estado em que temas como adesestatização, a modernização do setor público e a des-regulamentação passaram a fazer parte da ordem do dia.Nesse contexto, não existiam muitos motivos para se acre-ditar que especificamente esse setor seguiria um caminhodiferente ao de outros setores da infra-estrutura geridospelo Estado, que passaram para a iniciativa privada empoucos anos. Da mesma forma, observando algumas ex-

Resumo: O texto analisa as tentativas de privatização de sistemas municipais de saneamento básico no Estadode São Paulo entre 1995 e 1998, salientando a atuação, estratégias e constrangimentos enfrentados pelos prin-cipais atores envolvidos, isto é, as empresas multinacionais interessadas em expandir seus mercados ante aresistência dos setores que defendem o status quo.Palavras-chave: saneamento básico; privatizações; municípios.

OSCAR ADOLFO SANCHEZ

Doutorando do Departamento de Ciência Política da USP

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Dentro desse universo de municípios, o Estado de SãoPaulo apresentava o conjunto potencialmente mais pro-missor de serviços municipais candidatos a serem pri-vatizados, não apenas pelo grande número de populaçãoatendida (mais de 14 milhões de habitantes), mas tambémpela qualidade do desenvolvimento econômico dos muni-cípios onde estavam instalados. Foi assim que em abril de1995 a empresa multinacional francesa Suez-Lyonaise desEaux, em consórcio com a brasileira CBPO, obteve a con-cessão para operar os serviços de saneamento da cidadede Limeira, próspero município da região de Campinasque parecia ser o primeiro de uma nova era de saneamen-to privado no Estado.

Ao analisar, porém, os resultados desse processo, pas-sados quatro anos da promulgação da referida lei, observa-se que as privatizações completas de serviços não avan-çaram, mesmo com o empenho de muitos atores interessa-dos, principalmente diversos prefeitos. Esse fato é intrigante,porque vários estudos demonstram os fortes recursos depoder dos Executivos, dentro do sistema político-partidá-rio vigente (Limongi e Figueiredo, 1995). Eles possuemmecanismos institucionais e de barganha que lhes permi-tem, em geral, controlar as decisões dos legislativos e dequase todas as instâncias que poderiam ter algum tipo depoder de veto dentro do município. Mesmo assim, os pre-feitos que tentaram uma privatização completa de suas re-des de saneamento não conseguiram ultrapassar as instân-cias que se interpuseram na consecução dos seus objetivos.A privatização em Limeira passou a ser, em São Paulo, umaexceção e não a regra. O presente artigo evidenciará essaquestão e tentará analisar quais as forças que se interpuse-ram ao poder dos prefeitos e como se organizaram para de-fender a gestão estatal do saneamento.

A primeira parte explica a composição do setor de sa-neamento dentro do marco político-institucional brasi-leiro, observando a predominância dos atores integradosou ligados ao aparelho do Estado. Na segunda, as condi-ções que propiciaram a entrada de um novo ator em bus-ca de mercados: as empresas multinacionais. Na tercei-ra parte, o campo da disputa, isto é, os municípiospaulistas que tentaram privatizar seus serviços de sanea-mento e os argumentos utilizados para esse fim. Na quartae última parte, o jogo entre os atores nas arenas institu-cionais, de influência e coercitivas em processos de pri-vatização nos municípios de Limeira, Guarulhos e Jacareí,no Estado de São Paulo.

Por ser um estudo de caso, não será possível generali-zar os resultados obtidos mas o trabalho pode contribuir

para o entendimento, dentro de um estudo mais abrangente,das diversas modalidades de relacionamentos e conflitosentre o setor estatal da economia e o setor privado nosprocessos de privatizações.

OS SETORES E O SETOR SANEAMENTO

Quem se opõe à privatização de um serviço público?Quais são seus interesses? Como se mobiliza? Trabalhandocom categorias olsonianas, Licínio Velasco Jr. (1997: 40-41) nos oferece uma resposta bastante convincente a es-sas questões: “Os grupos de interesse, defensores do statusquo – administradores e associações dos funcionários dasempresas, sindicatos de classe, ou companhias consumi-doras ou fornecedoras –, se enquadram como as coalizõesdistributivas descritas por Olson (1982, cap. 1 a 3). Osbeneficiários das empresas estatais são poucos e os bene-fícios percebidos são concentrados e significativos. Já osbeneficiários mais imediatos da privatização são difíceisaté de ser identificados. A sociedade aparece como abeneficiária, mas de forma difusa. Nesse sentido, a mobi-lização contra as privatizações, por parte dos grupos inte-ressados na manutenção do status quo, tende a ser auto-mática e com alto grau de coesão, o que se contrapõe àmobilização dos que apóiam ou que se beneficiam destapolítica”.

A primeira impressão que fica do texto acima é a ime-diata força de mobilização dos atores contrários à privati-zação contra um adversário difuso. No entanto, os pro-gramas de privatização dos governos federal e estaduaisforam levados muito adiante na década de 90, o que sig-nifica que os beneficiários difusos tinham recursos depoder superiores, ou pelo menos souberam jogar com maiseficiência. Assim, o caso que veremos a seguir talvez sejauma exceção, ou talvez temporalmente não se sustente sehouver mudanças nas correlações de forças, mas pode nosdar melhor compreensão de como se desenvolve esse jogoe como cada lado utiliza os recursos a seu alcance. Poroutro lado, também levanta a questão das especificidadesde cada setor, que não podem ser ignoradas nem desliga-das do seu desenvolvimento histórico. Começaremos en-tão definindo os atores ligados ao aparelho do Estado e aestruturação do setor de saneamento dentro do marco po-lítico-institucional brasileiro.

Segundo Pierre Muller, a intervenção pública se orga-niza sob duas lógicas: a territorial e a setorial, cada umacom racionalidade própria. No primeiro caso o sistemasocial a ser regulado compreende um entorno geográfico.

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No segundo, a intervenção pública procura regular a re-produção de uma entidade mais abstrata, constituída porum domínio de atividade construída verticalmente: ossetores (Muller,1986:72), que podem ser entendidoscomo um conjunto de papéis sociais estruturados emuma lógica vertical e autônoma de atuação dentro dasociedade. É assim que vão se formar progressivamen-te novos espaços de reprodução (como os setores in-dustriais, agrícolas, de saúde, de transportes e outros) decaráter a-territorial, conferindo aos indivíduos identida-des profissionais. Nessa perspectiva, os setores aparecemcomo totalidades sociais que se organizam em objetivosespecíficos do ramo e tendem a transformar seus objeti-vos setoriais em fins últimos, ou seja, em interesse geralda sociedade. Por exemplo, “a lógica do setor da saúdevai no sentido de acrescentar indefinidamente as despe-sas com a saúde, ‘porque a vida humana não tem preço’”;ou “a lógica das instituições militares vai no sentido deacrescentar sem limites as despesas com armamento, por-que ‘a segurança não tem preço’” (Muller, 1986:73).Em síntese, os setores representam a cristalização deuma identidade profissional, e não territorial, de gru-pos sociais.

Embora a setorialização das sociedades como modode organização dominante seja um fenômeno típico do Es-tado moderno, ela se organiza dentro de marcos concre-tos de relações, que respondem aos particulares proces-sos político-institucionais de formação e evolução dosEstados. Portanto, é importante entender brevemente comose insere o setor de saneamento dentro da sociedade bra-sileira. A intenção é mostrar o predomínio histórico dosatores que operam dentro do aparelho do Estado.

Segundo Eli Diniz (1995:34), o governo Vargas (1930-45), durante a construção do Estado moderno brasileiro,conferiu alta capacidade às elites estatais para contro-lar os recursos públicos. Concedeu à burocracia estatalnão só um alto grau de autonomia na definição dos rumosdo desenvolvimento, mas na delimitação dos próprios ob-jetivos dos setores. Da mesma forma, Campelo de Souza(1976:86) mostra que essa autonomia burocrática não sedeu por uma eficiência racional/formal segundo o para-digma weberiano das organizações burocráticas. A cen-tralização burocrática varguista deveu-se a uma tática deabsorção e cooptação dos agrupamentos de interesses,regionais e setoriais. Esse mecanismo permitiu a partici-pação subordinada das elites empresariais na estrutura depoder, institucionalizando uma forma de negociaçãobipartite, que Diniz denomina “corporativismo setorial”

(1995:36), envolvendo empresários e burocratas (comexclusão dos trabalhadores) em políticas setoriais.

O saneamento não existiu como um verdadeiro “setor”até o final da década de 50 porque não possuía estruturanem burocracia capacitada para desenvolver as funçõesde mediador setorial1 que possibilitasse absorver seu cor-respondente meio empresarial dentro do aparelho do Es-tado. Estruturou-se como tal no começo da década de 60,quando, decorrido algum tempo do processo de industri-alização e urbanização, foi gerada a escala adequada paraa realização de grandes investimentos e planejamento noabastecimento de água, que originou as grandes empresasestaduais de saneamento (as Cesbs), dentro das quais seintegrou o componente privado.

Para a estruturação do setor, foi importante o adventodo governo militar. Para a tecnocracia do regime, a faltade saneamento comprometia o objetivo de desenvolvimen-to econômico. Na ausência de capitais privados dispostosa investir na área, os investimentos públicos, com a cria-ção de empresas estatais, foram considerados um requisi-to para promover a eficiência econômica e oferecer con-dições de infra-estrutura para o setor industrial. Buscou-se,no entanto, uma coerência global com os pressupostostecnocráticos e centralizadores do regime, ou seja, foi ela-borado um projeto para o saneamento, no qual se tentoualcançar uma racionalidade técnica na aplicação das ver-bas, baseado em um planejamento prévio e centralizadoque se pretendia único e homogêneo para o território na-cional.

Implementado de forma gradual, o projeto criou, em1969, o Plano Nacional de Saneamento (Planasa), coman-dado pelo BNH e operado regionalmente pelas Cesbs,quase todas criadas com o plano. Embora de propriedadedos governos estaduais, as Cesbs eram subordinadas àsdiretrizes federais e deveriam obter a concessão dos ser-viços de saneamento dos municípios do seu Estado e ope-rar em forma de monopólio. Esse fato gerou resistênciasde administrações municipais das cidades de médio e gran-de portes, principalmente nos Estados de Minas Gerais,Rio Grande do Sul e São Paulo, muitas das quais não ade-riram ao Plano Federal e continuaram operando seus sis-temas de saneamento de forma autônoma, mesmo abrin-do mão dos recursos federais.

Com o modelo em referência, o saneamento se colo-cou entre os denominados “sistemas fechados”, cuja prin-cipal característica era uma combinação de dominânciado planejamento setorial da União e um arranjo tarifário-financeiro com funções redistributivas inter-regionais, e

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começou a se formar uma burocracia de elite dentro dasempresas e a se consolidar uma capacitação nacional emengenharia e projetos. Também abriu um nicho para queas empreiteiras nacionais assumissem um papel de desta-que nos grandes empreendimentos do setor.

Durante esse período, e para representar o conjunto dosinteresses do setor, foi criada a Associação Brasileira deEngenharia Sanitária e Ambiental (Abes), integrada porfuncionários técnicos das agências federais e das Cesbs,por fabricantes de materiais e equipamentos, por empre-sas de consultoria e empreiteiras de obras públicas. A Abesexerceu o monopólio de representação do setor até meta-de da década de 80 (Jorge, 1987:138).2

Enquanto existiu o regime militar, a simbiose Abes/Cesbs em “anéis burocráticos” foi quase completa. Porém,nos últimos anos do regime, mudanças na ordem político-econômica conduziram ao aparecimento de diversas for-mas de participação à margem dessa estrutura corporativasetorial, esvaziando-a em sua capacidade de exercer omonopólio da representação de interesses (Diniz, 1995:38).Nessa linha, surgiram na década de 80 dois novos com-ponentes organizados no setor: a Associação Nacional dosServiços Municipais de Saneamento (Assemae) – forma-da principalmente pela alta burocracia dos serviços desaneamento dos municípios que não havia aderido às Cesbs– e sindicatos, em especial a Federação dos Trabalhado-res Urbanitários (FNU).3 Embora os novos atores repre-sentassem interesses diferentes aos da Abes/Cesbs, diver-gindo em muitos aspectos, o consenso básico era que aprestação dos serviços de saneamento deveria ser opera-da diretamente por órgãos do Estado, inclusive dos fabri-cantes nacionais de equipamentos, materiais e empresasde engenharia que com o tempo aprenderam a lidar comos agentes públicos responsáveis pelos serviços. As prin-cipais divergências eram quanto ao nível apropriado degestão, estadual ou municipal, e quanto à distribuição dosrecursos federais.

Assim, o setor de saneamento entrou na década de 90estruturado em uma conformação híbrida, ou seja, a coe-xistência da organização setorial tradicional da Abes/Cesbs(em São Paulo Abes/Sabesp) e os grupos mais vinculadosaos municípios, principalmente a Assemae e a FNU. Apartir de 1995, porém, com a ascensão de FernandoHenrique Cardoso à presidência e a promulgação da Leide Concessões, um novo ator entra em cena para disputaro mercado de água com os atores ligados ao aparelho doEstado: as operadoras privadas, isto é, grandes empreiteirase principalmente empresas multinacionais.

A ENTRADA DE UM NOVO ATOR

O desenvolvimento e a propriedade dos serviços desaneamento em quase todos os países do mundo estive-ram historicamente nas mãos dos Estados, inclusive nosEstados Unidos, onde dos mais de 50 mil operadores exis-tentes em 1995, apenas 15% eram privados. No fim dadécada de 80, principalmente desde a privatização dosserviços de saneamento na Inglaterra, esse mercado co-meçou a sofrer mudanças com a entrada de capitais priva-dos na operação dos serviços. A abertura das barreirasnacionais no negócio da água colocou as empresas fran-cesas Suez Lyonnaise des Eaux e Vivendi (ex-Généraledes Eaux) como líderes mundiais. Elas dominaram o mer-cado porque aprenderam a lidar com suas característicasparticulares: um mercado extremamente fragmentado edirigido pelo poder público.

Embora a França seja um país com ampla tradição emserviços estatais, o abastecimento de água é uma daspoucas exceções. Desde o começo, no século XIX, essaatividade esteve nas mãos da iniciativa privada. AVivendi, por exemplo, obteve seu primeiro contrato mu-nicipal no começo do governo de Napoleón III, em 1853.A Lyonnaise, nessa época, também já existia. No modelodesenvolvido na França, os governos locais conservavama propriedade da infra-estrutura enquanto as empresasprivadas concorriam pelos contratos de gestão para ofe-recer o serviço. Esse modelo permitiu o aparecimento deempresas fortes e especializadas para lidar com um mer-cado fragmentado e público. Com o passar do tempo es-sas empresas aprenderam que uma das principais ferra-mentas para obter sucessos comerciais era cultivar relaçõesestreitas com funcionários eleitos, e com eles criaram umforte lobby que ajudou a aventar as constantes ameaçasde estatização dos serviços de água. Com essa grandeexperiência, as empresas francesas estavam em excelen-tes condições para oferecer seus serviços quando o mer-cado mundial se abriu no final década de 80 (Owen,Iskandar e Taylor, 1999).

Pouco depois, começaram a atuar na América Latina,obtendo concessões para operar em grandes cidades, comoBuenos Aires, Santa Fé, Córdoba e Tucumán (Argenti-na), Valdivia (Chile), Bogotá (Colômbia) e na cidade doMéxico, entre outras. Mas as francesas não foram as úni-cas. Entre as empresas multinacionais interessadas nomercado latino-americano estavam também as inglesas,North West Water e Thames Water, e a espanhola, Águasde Barcelona. A partir de 1995 essas empresas começam

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A PRIVATIZAÇÃO DO SANEAMENTO

a operar no mercado brasileiro e em quase todas as tenta-tivas de privatização de serviços de saneamento aparecemcomo as principais interessadas.4 Essas empresas, no en-tanto, não se limitam à operação de serviços de saneamentobásico, mas atuam em vários ramos de serviços ambientais,incluindo as áreas de limpeza de ruas e disposição de re-síduos industriais, entre outras.5 Também controlam, pormeio de subsidiárias, fábricas de materiais e equipamen-tos. O interesse não se limita em obter concessões paraoperar serviços, mas visa criar um mercado cativo parasuas próprias fábricas, verticalizando assim todo o cicloprodutivo. Isso explica a resistência dos empresários na-cionais à privatização dos serviços.

A chegada das operadoras multinacionais teve o incen-tivo de setores do governo federal. Os operadores finan-ceiros (BNDES e CEF) eram favoráveis a programas dereestruturação que implicassem a privatização tanto dasCesbs como de autarquias municipais. O BNDES, princi-palmente, atuou como um catalizador entre os agentespúblicos dispostos a privatizar e os agentes privados dis-postos a investir no saneamento mas, erroneamente, nãoassociou esse processo com a adoção do marco regulató-rio, o que resultou, pelo menos até o ano 2000, um entra-ve para a privatização de empresas estaduais6 (Arretche,1999:34), mas não dificultou a privatização pelas autar-quias municipais, para as quais a Lei de Concessões erasuficiente. Na realidade, a primeira experiência de gestãoprivada de serviços de saneamento no novo contexto foiem Limeira, nos primeiros meses de 1995, logo acompa-nhada por várias outras tentativas. A seguir, vejamos oque aconteceu em São Paulo.

O CAMPO DA DISPUTA

Embora existissem em 1995, no Estado de São Paulo,625 municípios, a privatização dos serviços de saneamentoestava limitada por dois condicionantes. O primeiro deve-se à existência, no Estado, da Sabesp. O prefeito de ummunicípio concedente dessa empresa, para poder privati-zar, deve primeiro rescindir o contrato de concessão, oque é legalmente muito complexo (Sanchez, 2000:35). Essefato limitou os prováveis candidatos a 295 municípios, dos625 existentes no Estado, pois a Sabesp operava em 330.O segundo condicionante é o fator “escala econômica”.Realmente, os serviços de saneamento básico são mono-pólios naturais, serviços de utilidade pública em que aexistência de mais de um produtor mostra-se anti-econô-mica. A lógica é a redução dos custos pelo aumento da

escala de produção permitindo a prestação do serviço comtarifas mais baixas que em regime de concorrência. O pro-blema, quando o monopólio é privado, é atingir uma pro-dução em escala necessária para equilibrar as tarifas aces-síveis, o retorno dos investimentos e a geração de lucros,sem considerar os subsídios estatais. E essa condição nãotornaria viável a privatização completa de serviços de sa-neamento em municípios com população abaixo de 50 milhabitantes.7 Mesmo assim, de 295 municípios em condi-ções legais de privatizar seus serviços de saneamento, ain-da teríamos 54 com a escala econômica apropriada. E énesses que nos deteremos.

O processo de privatização normalmente começa coma chegada ao município de representantes das operado-ras privadas, que a partir de 1995 adotaram uma agres-siva política de assédio às autoridades locais tentandomostrar as vantagens de privatizar o saneamento dassuas cidades. Essas empresas, a pedido ou não do pre-feito, procuram informações técnicas nos DAAEs ouSAAEs,8 elaboram um estudo de viabilidade para a con-cessão (total ou parcial) dos serviços e o apresentamao prefeito, formal ou informalmente, que avalia se éconveniente a concessão. Em caso positivo, contratauma empresa de consultoria para elaborar o edital e aseguir envia um PL à Câmara Municipal. Se aprovadoo PL (o que nem sempre acontece), o prefeito publicao edital e mais tarde é feita a licitação pública. Mesmodepois de realizada a licitação, a qual normalmenteenfrenta contestações judiciais de sindicatos, associa-ções ou de empresas que se sentiram prejudicadas, estapode ser cancelada (mais adiante veremos por quê). Esseprocesso se repetiu, em suas diferentes formas, em to-dos os municípios onde se tentou privatizar.

Ao serem examinadas as “tentativas” de privatização,isto é, a vontade política de um prefeito em privatizar osaneamento de sua cidade – considera-se vontade efetivaapenas quando é enviado um PL à Câmara Municipal pe-dindo autorização –, devem-se observar quais foram osmunicípios que tentaram privatizar, o resultado da vota-ção do PL e se a concessão foi efetivada.

Nove prefeitos enviaram PLs às Câmaras Municipaispara privatizar seus serviços de saneamento mas apenasquatro foram aprovados e os cinco restantes, rejeitados(ou retirados pelo prefeito antes da votação).9 Mesmo as-sim, apenas um processo foi concretizado, o de Limeira.

Um dos principais argumentos de defesa da entrada dainiciativa privada na operação de serviços municipais desaneamento era que a empresa faria os investimentos ne-

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IBGE de 1991. Na verdade, e dentro dessa lógica, esseseria um argumento válido para privatizar apenas no mu-nicípio de Guarulhos, onde as coberturas eram de 86% e52%, porém nesse município o edital de privatização nãoprevia coberturas a alcançar.

Por outro lado, salvo exceções, como o município deMatão, as autarquias de São Paulo são superavitárias ouse auto-sustentam sem recorrer a recursos orçamentários,mesmo considerando em alguns casos o excesso de fun-cionários11 e as tarifas subsidiadas para moradores na fai-xa de consumo de até 10 metros cúbicos, praticadas porquase todos os sistemas municipais. Isso significa que osserviços de água, como regra, são rentáveis.

Pode-se supor que o principal interesse dos prefeitosem privatizar os serviços seria a remuneração que as em-presas privadas pagariam ao município pela concessão. Énecessário, porém, observar que a concessão em sanea-mento é do tipo “não-onerosa”, ou seja, a empresa ganha-dora não paga ao município pela concessão, apenas secompromete a investir na melhoria dos serviços. Não há,praticamente no mundo inteiro, concessões onerosas por-que o objetivo básico de uma mudança de gestão nessesetor é a universalização dos serviços não apenas para oconforto da população, mas, e principalmente, como ins-trumento preventivo de saúde pública.12

Por fim, não existiam serviços altamente endividados,porque as autarquias municipais não têm grande capaci-dade de endividamento. Os recursos para investimentose/ou capacitação técnica são da própria autarquia ou or-çamentários do município. Eventualmente obtêm recur-sos na CEF ou de programas estaduais, como o Sanebasee o Fehidro.13 Nessas condições, torna-se evidente o legí-timo interesse das empresas privadas: altas coberturas jáinstaladas, serviços rentáveis, concessões não-onerosas,recursos para investimentos do BNDES. Mas, vistos deoutro ângulo, quais foram os argumentos utilizados pelosprefeitos? Se um prefeito realmente quiser privatizar, umaboa empresa de consultoria pode elaborar argumentos quejustifiquem tal alternativa, como por exemplo em Jacareí,onde se argumentou que existiria uma forte demanda deágua para consumo industrial. Ademais, como nenhumserviço possui um funcionamento perfeito, determinadosaspectos técnicos, operacionais e a previsão de objetivosempresariais a serem alcançados podem ser elementosimportantes para uma razoável justificativa. Dessa forma,o prefeito tendo decidido privatizar os serviços, começao jogo na arena institucional, na qual vai tentar se valerdos recursos de poder que seu papel lhe confere.

TABELA 1

Municípios que Tentaram a Privatização Completa de seusSistemas de Saneamento

Estado de São Paulo – 1995/98

MunicípiosPartido do Projeto de Lei na Privatização

Prefeito Câmara Municipal Efetivada

Limeira PMDB Aprovado Sim

Jacareí PMDB Aprovado Não

Guarulhos PMDB Aprovado Não

Leme PFL Aprovado Não

Catanduva PMDB Rejeitado Não

Indaiatuba PMDB Rejeitado Não

Valinhos PMDB Rejeitado Não

Matão PT Rejeitado Não

Rio Claro PPB Rejeitado Não

Fonte: Jornal da Assemae; TRE.

cessários para permitir o aumento dos índices de cobertu-ras das redes de água e esgotos existentes, porque haviafalta de recursos dos órgãos públicos gestores dos sistemas(Moreira, 1996 e 1998; BNDES, 1998). Esse argumento,porém, não é generalizável. Dos 54 municípios do Estadocom sistemas municipais e mais de 50 mil habitantes, 47apresentavam um índice de cobertura de abastecimento deágua superior a 90%, e em 43 a cobertura de esgotos cana-lizados era superior a 75% já em 1991. Os índices de co-bertura de 90% e 75% para água e esgoto são respectiva-mente os mínimos recomendados pela ONU para atenderàs populações urbanas.10 Dos sete sistemas municipais comcobertura deficientes, cinco deles – Campo Limpo Paulis-ta, Várzea Paulista, Itararé, Hortolândia e Mogi das Cruzes– outorgaram a concessão dos seus serviços à Sabesp nosanos de 1997/98, o de Mogi das Cruzes de forma parcial.Ou seja, com exceção de Guarulhos e Atibaia, os sistemasmunicipais autônomos restantes de São Paulo possuem bons(ou muito bons) índices de cobertura de redes de água eesgoto. Esse não foi, portanto, um motivo relevante quejustificasse as tentativas de privatização.

Por exemplo, no edital de privatização no municípiode Jacareí se estipulava que as coberturas deveriam che-gar, nos primeiros cinco anos de concessão, a 98% as deágua, e a 91% as de esgoto, mas já existiam coberturas de95% e 90%. Em Limeira, Catanduva e Leme os editaispreviam a universalização em cinco anos, e as coberturasjá eram de 98% e 93% em Limeira; 99% e 96% emCatanduva, e 99% e 95% em Leme, segundo dados do

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A PRIVATIZAÇÃO DO SANEAMENTO

O JOGO

Quando um prefeito tenta dar a concessão de seus ser-viços de saneamento, são duas as alternativas: ou opta porempresas privadas ou pela Sabesp. Como a empresa esta-dual não participa de concorrências públicas,14 a opçãodo prefeito deve ser feita antes de enviar o PL à CâmaraMunicipal. Não há disputa direta nas concorrências entrea Sabesp e as empresas privadas. A opção entre uma eoutra deve ser do prefeito. Qualquer que seja a opção, aresistência à concessão começa na Câmara Municipal –embora em menor medida quando a escolhida é a Sabesp– no momento do envio do PL pelo prefeito, que precisaser aprovado por maioria qualificada.

Para a aprovação do projeto, o prefeito conta semprecom o apoio “fechado” de seu “grupo”, que não necessa-riamente se confunde com sua base de sustentação naCâmara Municipal, da qual é apenas uma parte. Como énecessário um amplo número de votos para aprovar o PL,a capacidade e os meios disponíveis de ambas as partes(por um lado, o “grupo” do prefeito, e por outro, a oposi-ção) para convencer os vereadores do grupo intermediá-rio – que normalmente votam com o prefeito mas que nãosão de seu “grupo” – decidirão o resultado. Se o prefeitonão consegue convencer um número suficiente de verea-dores, retira o projeto.

A principal resistência ao PL surge dos vereadores quefazem oposição sistemática ao prefeito, mas essa resis-tência não pode ser interpretada em função da condiçãoideológico-partidária dos vereadores sobre o papel doEstado na provisão de bens e serviços. Em Indaiatuba, porexemplo, a oposição ao projeto de privatização do prefei-to do PMDB, Flavio Tonin, foi liderada pelo vereadoreleito pelo PFL, Tadao Toyama. Em Matão, a principaloposição ao projeto do prefeito do PT, Adauto Scardoelli,foi do vereador do PMDB, Edson Correia. Em Limeira, aoposição ao projeto do prefeito do PMDB, Jurandir Pai-xão, foi de Luiz Carlos Pierre, do PT, junto com DaviPoleti, do PFL. No entanto, a disputa na Câmara Munici-pal pela aprovação do PL não fica circunscrita a esse es-paço. Existem fontes de pressão externa sobre os verea-dores do grupo intermediário para votar contra: a primeirase dá pelos sindicatos dos trabalhadores do DAAE/SAAEem questão; a segunda, promovida pela ação da Assemaee, em algumas situações, também da Sabesp. Nesse mo-mento não há divergências entre os atores do setor. Pelosfortes recursos de poder do prefeito, o interesse comum édominar principalmente a arena de influência, isto é, o

espaço em que os grupos e indivíduos disputam o domí-nio sobre a opinião pública e no qual cada um busca mol-dar as concepções sociais sobre os assuntos em pauta.

O grupo de vereadores de oposição normalmente nãotem os conhecimentos técnicos necessários para questio-nar as necessidades que o prefeito, amparado por umaconsultoria prévia, justifica para privatizar os serviços.Nesse sentido, a ação desses vereadores poderia pareceruma pura oposição destrutiva ao projeto do prefeito. Tam-pouco o conhecimento vem dos sindicatos, que possuemalguma capacidade (de acordo com o município) paramobilizar determinados grupos sociais, principalmente osligados à igreja católica e outros sindicatos, a pressionaros vereadores. Em geral não possuem propostas concre-tas, a não ser as de cunho ideológico (o saneamento deveser uma “função do Estado”), mas que pode ser confundi-da apenas com interesse corporativo. A ação técnica e oconhecimento que vão fundamentar a oposição e refinar aposição dos atores locais dando-lhes as bases para conso-lidar um movimento coerente de opinião pública, contrá-rio à privatização, são da Assemae.

Nas audiências públicas que precedem a votação doprojeto (em geral presentes os formadores de opinião dacidade: jornalistas, engenheiros, padres, professores, eoutros – lembrando que não se está lidando com megaci-dades, como Rio de Janeiro ou São Paulo e a ação dessaspessoas é extremamente capilar), a Assemae manda sua“tropa de choque”, formada por um pequeno grupo deassessores técnicos e jurídicos capacitados para enfrentaro prefeito e as empresas de consultoria em que ele se apóiano campo do conhecimento.

Depois de expor um diagnóstico da situação do SAAE/DAAE em questão, a Assemae invariavelmente apresentaprojetos concretos para solucionar os eventuais proble-mas, tanto de questões técnicas como administrativas e/ou financeiras. A capacidade de seus representantes paratornar compreensível uma questão de natureza complexa,inclusive discutir os aspectos obscuros (para os leigos) doseditais de concessão, dificulta a defesa dos argumentosem favor das privatizações. Por outro lado, expõe, porexemplos internacionais e principalmente com o caso“Limeira”, que uma privatização é seguida de um aumen-to de tarifas. E esse é um elemento de influência muitoimportante, porque quando os serviços de saneamento sãodeficientes, principalmente quando falta água nos domi-cílios, qualquer solução proposta para o problema, inclu-sive um aumento de tarifas ou até a privatização dos ser-viços, pode ser aceitável para a população. No entanto,

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como os problemas de abastecimento de água e coleta deesgotos no Estado de São Paulo não são graves, ao con-trário, os sistemas municipais possuem em geral boas co-berturas, a ameaça de “aumento tarifário” (real ou imagi-nário) torna-se um elemento de pressão muito forte, depoisde eficientemente divulgado.

A seguir, e convencidos desses argumentos, jornais,emissoras de rádio do município, movimentos popularese, em alguns lugares, a igreja católica,15 entram na cam-panha de pressão sobre os vereadores já em posse de ele-mentos concretos para sustentar uma discussão fundamen-tada. Ou seja, o papel da Assemae não é apenas um trabalhode reflexão técnica e de elaboração de propostas de no-vas medidas de intervenção. Seu principal papel no muni-cípio é transformar uma realidade relativamente obscuraem um programa de ação política coerente, fornecendo asferramentas necessárias para superar a assimetria de in-formação. Essa pressão sobre os vereadores, facilitada pelanecessidade de se obter maioria qualificada para aprovaro projeto de lei, fez os prefeitos desistirem da privatiza-ção em cinco dos nove municípios em questão, emboraem alguns, como Rio Claro, nem foi necessária a ação “ins-titucional” da Assemae, mas apenas dos membros dessaorganização atuantes no próprio município. Em síntese,dominar a arena de influência como fator de pressão so-bre os vereadores tornou-se a primeira e grande instânciade veto às privatizações.

Em quatro municípios, no entanto, os recursos de po-der dos prefeitos mostraram-se superiores às pressõesexternas e conseguiram aprovar o PL: Limeira, Jacareí,Guarulhos e Leme. Assim, a luta do setor continua forada Câmara Municipal, na arena institucional, principal-mente com ações na justiça. Aqui a oposição foi em certamedida facilitada por suspeitas de concorrências dirigi-das com a manipulação dos editais. A experiência adqui-rida pela privatização em Limeira possibilitou à Assemaemunir os sindicatos e outras organizações com os meiosnecessários para a batalha judicial. Por outro lado, houvea intervenção da Sabesp atuando também na arena coer-citiva, que pelo seu impacto foi capaz, na sua área de in-fluência, de constranger os agentes da privatização. Ve-jamos o que aconteceu nos municípios de Limeira,Guarulhos e Jacareí.

Limeira

Em 1994, o prefeito de Limeira, Jurandir Paixão(PMDB), contratou a empresa de consultoria Socienco,

sob o critério de notória especialização, para fazer umestudo de viabilidade a fim de outorgar a concessão dosistema de saneamento da cidade ao setor privado.

O processo de concessão começou na quarta-feira, 27de abril de 1994, quando o prefeito enviou um PL à Câ-mara Municipal em regime de “urgência especial”. Comoa Câmara se reunia apenas às segundas-feiras, foi convo-cada uma reunião extraordinária para sexta-feira, dia 29.O projeto, sem passar por nenhuma comissão temática,foi direto para o relator que, em poucas horas, deu pare-cer favorável. Convocada uma nova reunião extraordiná-ria para o domingo, foram apresentadas 30 emendas, masa bancada ligada ao prefeito rejeitou todas e aprovou oprojeto original por 15 votos a 6. Poucos dias depois (emmaio desse ano) foi lançado o edital. Uma das exigênciasera as empresas concorrentes já terem operado sistemasde saneamento em cidades com pelo menos 10 mil domi-cílios (aproximadamente 40 mil habitantes). Como nãoexistiam no Brasil empresas privadas que cumprissem talrequisito, a vencedora deveria estar assim obrigatoriamentecoligada a uma operadora estrangeira. Porém, uma em-presa nacional interessada, a Buzolin, entrou na justiça econseguiu suspender a concessão questionando as exigên-cias do edital.

No ano seguinte, em 1995, já na vigência da Lei deConcessões, foi feito um novo edital e a licitação realiza-da no mês de abril, quando a classificação final das em-presas participantes e suas propostas não foram apresen-tadas, apenas foi declarado vencedor, como já se esperavana cidade, o consórcio formado pelas empresas CBPO (doGrupo Odebrecht) e a francesa Suez Lyonnaise des Eaux,que assumiu a operação dos serviços dois meses depoiscom o nome de Águas de Limeira. A concessão foi não-onerosa, pelo prazo de 30 anos, e a nova empresa se com-prometeu a investir R$ 98 milhões, dos quais 40% noscinco primeiros anos.

Nos primeiros meses de concessão, as tarifas aumenta-ram em parte pelo repasse do ISS que não era cobradoanteriormente. Também a cota mínima de consumo sub-sidiado baixou de 10 para 5 metros cúbicos. Seguiram-seinúmeras denúncias sobre a queda da qualidade do servi-ço, noticiadas quase diariamente na imprensa local e re-gional. A Câmara Municipal instaurou pouco depois umaCPI para investigar a privatização. As suspeitas eram deirregularidades no edital, indícios de enriquecimento ilí-cito do prefeito e o fato de a empresa de consultoria con-tratada antes da privatização ter vínculos empresariais como Grupo Odebrecht, uma das ganhadoras da concessão.

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A PRIVATIZAÇÃO DO SANEAMENTO

Depois de três meses de investigações, a CPI apresentoucomo resultado dois relatórios, um do grupo de oposiçãoao prefeito e outro do grupo que o apoiava. Este últimofoi considerado oficial e não apontou irregularidades.

No ano seguinte, o Ministério Público (MP) impetrouuma ação civil solicitando a anulação da concessão. A açãofoi deferida na 4a Vara de Justiça da cidade. Também oMP solicitou uma ação cautelar requerendo o seqüestrodos bens do prefeito, acusado de fraude e enriquecimentoilícito, porém indeferida porque o juiz considerou as pro-vas inconsistentes. Nesse mesmo ano, o Tribunal de Con-tas do Estado (TCE) apontou “graves” irregularidades noprocesso.16 Essa foi, até dezembro de 1998, a única con-cessão total efetivada em municípios com população su-perior a 50 mil habitantes no Estado de São Paulo.17

Em Limeira houve mobilização política, principalmentede partidos opositores ao prefeito, mas Jurandir Paixãoconseguiu ultrapassar todas as instâncias adversas e le-vou adiante a privatização. Deve-se observar, no entanto,que ela começou formalmente em 1994 e concretizou-senos primeiros meses de 1995. Tanto a Sabesp, que estavase reestruturando e definindo sua política nesse período,como a Assemae ainda não estavam preparadas para agircontra adversários desse porte.

O processo vitorioso em Limeira foi um forte impulsopara as empresas privadas, principalmente as francesas,tentarem entrar no Estado de São Paulo. Mas por outrolado proporcionou ao “setor” saneamento um aprendiza-do que utilizaria com muita competência nas posteriorestentativas de concessão, principalmente em sua funçãoestratégica para influir nos municípios, além de capaci-dade para enfrentar suspeitas de manipulação de licita-ções. Limeira foi na realidade uma “vitória de Pirro” paraa Lyonnaise des Eaux em São Paulo. Ficou com má-famano Estado.

Guarulhos

Observando a forma de atuação da Lyonnaise em Li-meira, assim como nos processos de concessão nos quais aempresa esteve envolvida nas cidades de Mendoza e Córdo-ba, na Argentina, ela parece seguir, pelo menos na América-Latina, um determinado padrão. Dificilmente a empresaentra em uma concorrência sem ter algum tipo de acordoprévio com as autoridades que comandam o processo.18

Vejamos o que aconteceu no município de Guarulhos.Depois de obter a concessão em Limeira, a empresa

francesa apostou na concessão do maior município do

Estado de São Paulo (com exceção da capital). EmGuarulhos, localizado na Região Metropolitana, o prefei-to Vicentino Papotto (PMDB) enviou, em maio de 1996,um PL à Câmara Municipal pedindo autorização para con-ceder à iniciativa privada a gestão completa dos serviçosde água e esgotos.

Um parecer feito por uma empresa de consultoria con-tratada pelo prefeito apontava a concessão como uma res-posta à falta de água em alguns bairros, uma vez que omunicípio comprava água por atacado da Sabesp e nãoera suficientemente abastecido por ela. A provável con-cessionária, ademais, deveria buscar fontes alternativas decaptação para diminuir essa dependência. Outra soluçãoapontada era a resolução de deficiência de cobertura dasredes de esgoto, que nesse ano alcançava pouco mais de50% dos domicílios, a pior da RMSP.

O PL foi aprovado na Câmara Municipal em 13 de ju-nho de 1996 por 18 votos a 3. No entanto, a votação foianulada pela justiça porque não foi permitida a apresen-tação de emendas ao projeto, contrariando o regimentointerno da casa. A segunda votação aconteceu no dia 16de agosto e o projeto voltou a ser aprovado pelo mesmoplacar (18 a 3). Assim como em Limeira, todas as emen-das apresentadas foram indeferidas. No dia 3 de setem-bro, o SAAE publicou um aviso para que as empresas in-teressadas retirassem o edital e marcou-se para o dia 23de outubro a data de abertura dos envelopes. Os princi-pais concorrentes à concessão eram as francesas Lyonnaisedes Eaux e Vivendi. Também como em Limeira, a imprensalocal noticiava antecipadamente que a Lyonnaise seria avencedora da concorrência.

Durante o período de tramitação do projeto de lei acon-teceram audiências públicas na Câmara Municipal e emuma universidade da região, e foram chamadas a partici-par a Sabesp e a Assemae. As complexidades da opera-ção do SAAE e das regras técnicas do edital demandarama presença de pessoas do setor.19 Os representantes daAssemae, fazendo um diagnóstico sobre a situação doSAAE, mostraram que o principal problema era operacio-nal. Existiam deficiências na cobertura de esgotos, masos investimentos necessários reduziam-se a redes coleto-ras domiciliares. Segundo a Assemae, o município nãoprecisava investir no tratamento nem na disposição finalporque Guarulhos era um sistema complementar ao ope-rado pela Sabesp em toda a RMSP. Quanto à falta de água,o SAAE tinha perdas (físicas e principalmente de fraudesna leitura de hidrômetros) de mais de 40%. O fato de maiorimpacto sobre a população e a mídia local, no entanto, foi

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mostrar os aumentos de tarifas e a suposta queda de qua-lidade dos serviços que ocorreu no município de Limeiradepois de a Lyonnaise ter assumido os serviços.

Por outro lado, a Sabesp, interessada em operar nomunicípio, se propôs a assumir a concessão, comprome-tendo-se a alcançar, em cinco anos, 100% de coberturadas redes de água e 85% das de esgotos, que nesse mo-mento eram de 86% e apenas 52%, respectivamente. Parachegar a esse resultado, a empresa calculava investir R$180milhões, mas o prefeito alegou que pelo estudo da empre-sa de consultoria por ele contratada seriam necessáriosinvestimentos da ordem de R$780 milhões e que outrasempresas estavam dispostas a investir esse valor. Consi-derando a licitação de cartas marcadas, o vice-presidenteda Sabesp, Antônio Marsiglia Neto, declarou em audiên-cia pública que a água fornecida pela Sabesp ao municí-pio era subsidiada e ameaçou cortar o subsídio caso oSAAE fosse transferido a uma operadora privada, o quecausaria um brusco aumento de tarifas. Além disso, aempresa não se comprometeria em abastecer de água su-ficiente esse município, porque daria prioridade a outrosmunicípios da região, de gestão pública (Jornal daAssemae, jun. 1996:11).

Com o material debatido nessas audiências – e princi-palmente com as ameaças da Sabesp – os jornais e asemissoras de rádio do município começaram a fazer umacampanha contrária à privatização, enfatizando principal-mente um inevitável aumento de tarifas numa gestão pri-vada e as suspeitas de que a concorrência era manipula-da. Em pleno período eleitoral, o prefeito VicentinoPapotto percebeu que esse movimento estava prejudican-do seu candidato, Pascoal Thomeu. Para não sofrer pre-juízos eleitorais, acabou enviando um novo PL à Câmarano dia 23 de outubro, cancelando a concessão.

No entanto, pouco antes de o prefeito cancelar a con-cessão, dirigentes da Lyonnaise procuraram a Sabesp paranegociar regras claras para uma futura compra de águapor atacado. Não é possível provar a resposta dos diri-gentes da Sabesp mas é possível inferir que, por ter tam-bém interesse na concessão, sua resposta fosse negativa.Alguns dias depois, ao cancelar a concessão, o prefeitojustificou sua atitude alegando que o processo de priva-tização “está sendo explorado politicamente e poderá tra-zer prejuízos irreversíveis ao município na medida emque afasta licitantes em potencial” (grifos meus) (Jor-nal da Assemae, out. 1996:10). As empresas se retira-ram da disputa pela falta de garantias da Sabesp no for-necimento de água.

Concluindo, na tentativa de privatização em Guarulhos,embora o papel da Assemae na assessoria aos vereadorese aos sindicatos tenha sido importante para dar bases con-cretas à mobilização contrária à privatização, o poder decoerção da Sabesp teve também um papel relevante. Nocálculo da empresa, o importante era não deixar as fran-cesas ganharem. Mantendo a gestão com a prefeitura,poderia obter a concessão com os próximos prefeitos.

Jacareí

A participação do setor também pode ser constatadana tentativa de privatização no município de Jacareí. Nessemunicípio, em janeiro de 1996, o prefeito Thelmo Cruz(PMDB) enviou um PL à Câmara Municipal pedindo au-torização para outorgar a concessão total dos serviços desaneamento do município prestado pelo SAAE. O prefei-to justificou o pedido alegando falta de condições finan-ceiras para ampliar o consumo industrial e construir esta-ções de tratamento de esgotos. O município possui 173mil habitantes e está situado na região de São José dosCampos. O SAAE nesse ano abastecia de água 95% dosdomicílios e 90% possuíam rede de esgotos, mas não exis-tia tratamento. A consultoria prévia e a preparação do editalforam realizadas por pessoas ligadas à Fundação Escolade Sociologia e Política de São Paulo.20 Os próprios re-presentantes dessa Fundação foram os encarregados dedefender a privatização nas audiências públicas.

Nos primeiros dias de março desse ano, o PL foi apro-vado na Câmara Municipal, mas (novamente) por proble-mas regimentais houve uma segunda votação, quando oprefeito obteve outra vitória. Entretanto, apenas em outu-bro o edital foi lançado, marcando para o dia 5 de dezem-bro a abertura dos envelopes, menos de um mês antes damudança de prefeito.

O movimento de oposição no município apresentoucaracterísticas similares às de Guarulhos. Começou coma mobilização de alguns vereadores de oposição e o sin-dicato dos trabalhadores do SAAE/Jacareí, recebendo aju-da da Assemae e da Sabesp para a luta travada na arenade influência.

Além de participar das audiências públicas, nas quaismuniciou a imprensa local com elementos concretos so-bre os problemas de privatizar os serviços, a Assemaeprestou assessoria jurídica ao sindicato para que ele en-trasse com uma ação popular na justiça contra a privati-zação. Já a Sabesp – que nesse município não tinha podercoercitivo como em Guarulhos – novamente se apresen-

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A PRIVATIZAÇÃO DO SANEAMENTO

tou como “alternativa”, recusada pelo prefeito com a ale-gação de que a Lei de Concessões exigia uma licitaçãopública. A empresa entrou então com um mandado de se-gurança na justiça alegando que o edital feria a Lei deLicitações. Ao mesmo tempo, a empresa Estacon Enge-nharia entrou com um pedido de impugnação do edital noTribunal de Contas do Estado.21

Nos primeiros dias de dezembro, o juiz da primeira varado Fórum de Jacareí, concedeu liminar suspendendo aconcessão com base na ação popular promovida pelo Sin-dicato dos Trabalhadores do SAAE (e elaborada pelaAssemae). O juiz acatou a tese de que o edital de conces-são feria a Lei de Licitações “ao restringir a participaçãode empresas”. Em janeiro do ano seguinte o novo prefei-to, Benedicto Lencini (PSDB), enviou um PL à CâmaraMunicipal cancelando a privatização.

A partir de 1997, com a ascensão dos novos prefeitos,as tentativas de privatização praticamente cessaram, comexceção de Matão, que foi abortada pela atuação conjun-ta da Assemae e dos sindicatos. Nesse município, a pro-posta da Assemae de tornar viáveis os serviços de sanea-mento (que eram deficitários) acabou sendo adotada eimplementada pelo prefeito.

CONCLUSÃO

A opção por privatizar serviços de saneamento muni-cipais no Estado de São Paulo foi limitada por alguns fa-tores condicionantes. No primeiro, de ordem legal, osmunicípios concedentes da Sabesp eram ligados à empre-sa por contratos assinados nas décadas de 70 e 80, peloperíodo de 30 anos, com cláusulas que dificultavam a res-cisão e privilegiavam a própria Sabesp na hora da sua re-novação. No segundo, de ordem estrutural, a operaçãoprivada era potencialmente viável em municípios que apre-sentavam escala econômica de produção. Isso limitou a54 os que cumpriam esses requisitos. Observa-se, no en-tanto, dentro desse universo, que quando se tentou umaprivatização total dos serviços existiu um terceiro con-dicionante, um fator político, isto é, uma forte e organiza-da resistência de diversos atores sociais agrupados nochamado “setor” saneamento. Formado no Estado basi-camente pela Sabesp, pela Assemae e por sindicatos, essesetor, embora representasse interesses muitas vezes diver-gentes, reuniu o que cada um tinha de mais forte para de-fender seu mercado.

O número de 54 municípios é expressivo em um paísonde predominam as Cesbs. Esse fato em grande parte foi

produto das políticas prévias ao Planasa em São Paulo,que criaram as condições para que eles resistissem em seincorporar à Sabesp durante o período autoritário(Sanchez, 2000:25-28). Como resultado, formou-se umaburocracia municipal que aprendeu com o tempo a lidarcom carências administrativas e de recursos. No períododa re-democratização criou-se a Assemae, que tem em SãoPaulo sua principal base.

Durante as tentativas de privatização, a Assemaeaportou o conhecimento técnico que ajudou a combater aassimetria de informação, possibilitando ao setor políticodas cidades, à mídia, aos movimentos sociais e, princi-palmente, aos sindicatos, meios para organizar movimen-tos de resistência coerentes na luta para dominar, sobre-tudo, a arena de influência. Já os sindicatos mostraramum poder de mobilização expressivo quando municiadosde meios efetivos para agir.

A existência no Estado de uma Cesb, como a Sabesp,não é um impedimento per se à entrada do setor privado.O fato significativo é que a Sabesp implementou duranteo período em questão uma política empresarial com oobjetivo de tornar a empresa mais eficiente e expandir suaárea de atuação dentro do Estado. Assim, atuou, por umlado, como força intimidatória. Se houve apenas nove pre-feitos que tentaram formalmente uma privatização com-pleta de seus serviços de saneamento, em grande parte foiresultado da política expansiva da empresa no Estado. Ouseja, qualquer prefeito que tenta uma concessão dos ser-viços deve antes construir fortes argumentos para respon-der à pergunta: por que outorgar a empresas privadas enão à Sabesp? Por outro lado, obstruída de participar deconcorrências, criou regras informais no jogo ao ameaçarcortar subsídios em Guarulhos. Dentro de sua principalárea de influência, a RMSP, a Sabesp, um ator interessa-do em condições privilegiadas, tornou as regras formaismenos decisivas, em virtude de seu alto poder coercitivo.

A resistência foi facilitada por aspectos institucionais/legais como, por exemplo, a necessidade de maioria qua-lificada nas Câmaras Municipais para aprovar os projetosde privatização. No entanto, a experiência de Limeiramostrou que os impedimentos poderiam ser ultrapassados– com os fortes recursos de poder dos prefeitos – se nãoencontrassem pela frente uma resistência coesa. Por ou-tro lado, as ações das agências federais no período, prin-cipalmente do BNDES – indutor da privatização dos ser-viços – pecaram por não considerar as especificidadesqualitativas e institucionais de cada Estado. Ou melhor, oque pode ser bom para um Estado não será necessaria-

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mente para todos os outros. Em São Paulo, o cruzamentodessas condições e a indução à privatização de um servi-ço público razoavelmente eficiente tornaram necessáriocriar “incentivos” que extrapolaram uma legítima e ho-nesta busca por mercados.

NOTAS

E-mail do autor: [email protected]

Agradeço a colaboração e comentários da professora Maria Herminia Tavares deAlmeida e a ajuda da Fapesp.

1. Os mediadores setoriais são os agentes do setor com capacidade e visão deconjunto para elaborar políticas públicas (Pierre Muller, 1986).

2. Antes da criação da Abes, os engenheiros sanitários se reuniam na AssociaçãoInteramericana de Engenharia Sanitária (Aidis), criada em 1946. A seção brasi-leira da Aidis foi fundada no Rio de Janeiro em 1948 e a de São Paulo, em 1949.Durante esse período, além dos prestadores de serviços municipais e estaduais,existiam 13 agências federais que lidavam com saneamento básico, embora deforma não-exclusiva, como a Sudene, o DNOS e o DNOCS, e tinham modelos degestão e interesses diferentes. A partir do Planasa, as Cesbs praticamente mono-polizaram a prestação dos serviços.3. A Assemae congrega advogados, administradores de empresa e principalmen-te engenheiros sanitários. Foi fundada em 1984 por iniciativa de sanitaristas daFundação Nacional de Saúde (Funasa), autarquia do Governo Federal, para de-fender os interesses dos municípios não-concedentes das Cesbs. Embora contecom associados em todo o país, a principal base da Assemae está no Estado deSão Paulo. Já a FNU tem base nacional, congrega 62 sindicatos, reúne trabalha-dores dos setores de energia elétrica, gás e saneamento e nesses setores atua pormeio de sua Secretaria de Saneamento.

4. Por exemplo, a Vivendi controla, desde 1997, 38% da Cesb do Paraná, a Sanepar.Ademais, na tentativa de privatização (não-concretizada) da Cesb do Rio de Ja-neiro, a Cedae, o provável consórcio vencedor seria formado pela Vivendi, com40%, Lyonnaise des Eaux, também com 40%, e Thames Water, com 20%. A pri-meira capital de Estado a privatizar os serviços de água foi Manaus, em março doano 2000. A empresa vencedora foi a Lyonnaise.

5. A empresa Vega Engenharia, por exemplo, que presta serviços de recolhimen-to de lixo e limpeza de rua para a Prefeitura de São Paulo, pertence à Lyonnaisedes Eaux. No ano de 1998, a empresa convidou o prefeito Celso Pitta para visitarsua sede na França, pagando todas as despesas (segundo denúncia da jornalistaRosely Forganes, da Rádio Eldorado). Pouco depois de sua volta da França, oprefeito denunciou a falta de contrato de concessão do Município com a Sabesp ese propôs a entrar na justiça para recuperar a concessão dos serviços para poste-riormente privatizá-los. Quem comandaria o processo seria o ex-senador pelo Ama-zonas Gilberto Miranda, que tem ligações comerciais com a Lyonnaise, mas ainiciativa não avançou. De qualquer forma, o Ministério da Fazenda aceitou osrecursos de uma futura privatização dos serviços para completar a “conta gráfi-ca” (os 20% que são pagos à vista) da renegociação da dívida da prefeitura, novalor de R$1,9 bilhão. Por outro lado, pouco mais tarde, os serviços de sanea-mento da cidade de Manaus – base dos negócios de Miranda – foram concedidosà Lyonnaise.6. O principal entrave para a privatização das Cesbs é que essas empresas sãoconcessionárias dos municípios e para privatizar deveriam receber autorizaçãode todas as Câmaras Municipais dos municípios concedentes. Por esse motivo,os governadores dos Estados do Rio de Janeiro e Espírito Santo, entre outros,não conseguiram privatizar suas empresas. Uma alternativa tentada foi dividir aempresa e privatizar apenas nos municípios onde as Câmaras Municipais autori-zaram, mas este caminho só deu certo no Amazonas. De fato, existem situaçõesmuito diferentes. No Município de São Paulo, por exemplo, o governo do Estadoé responsável pelos serviços desde 1893 e a Sabesp (de propriedade do governo)aí obtém mais de 70% do seu faturamento e não tem contrato formal com a em-presa. Rescindir um “contrato informal” de mais de 100 anos demandará, no fu-turo, um longo processo judicial.7. Este número, 50 mil habitantes, é bastante arbitrário porque o interesse priva-do também depende da qualidade dos sistemas de saneamento existentes; masserve para nossos propósitos pois alguma variação de população, para mais oupara menos, não mudaria a lógica da análise.

8. Os serviços municipais de saneamento são oferecidos por algum órgão da ad-ministração direta ou por uma autarquia municipal, que responde pelo nome ge-nérico de Serviços Autônomos de Água e Esgoto (SAAEs) ou DepartamentosAutônomos de Água e Esgotos (DAAEs). Quando se menciona algum desses ser-viços municipais, faz-se com o nome de DAAE/SAAE, embora alguns não sejamautarquias.

9. Vários outros prefeitos também tentaram privatizar os serviços de saneamentode suas cidades, como o de Campinas, por exemplo, mas não chegaram a enviar oPL à Câmara Municipal porque, em consultas prévias, perceberam que havia poucaspossibilidades do projeto ser aprovado.

10. Estes dados são do censo realizado pela Fundação IBGE em 1991. Desse anoem diante as coberturas melhoram em muitos municípios. Porém, ante a falta deinformações completas e confiáveis, optou-se por utilizar as do IBGE.11. Por exemplo, dois anos após obter a concessão, a “Águas de Limeira” haviadiminuído o número de funcionários de 440 para 220.

12. O BNDES apenas se convenceu de que esse modelo é o adequado para osetor de saneamento somente no ano 2000. (O Estado de S.Paulo, 10/10/2000).

13. O Programa Estadual de Financiamentos para obras de Saneamento (Sanebase)foi criado em 1991. É um programa de crédito para os sistemas municipais, finan-ciado com recursos do orçamento do Estado e intermediado pela Sabesp. O Fun-do Estadual de Recursos Hídricos (Fehidro) foi instituído pela Lei Estadual no

7.663/91 para financiar, também com recursos orçamentários, programas esta-duais e municipais de conservação de recursos hídricos.

14. O problema das Cesbs em participar de concorrência pública é que elas nãose sujeitam às normas das empresas privadas, quanto às obrigações trabalhistas etributárias, exigidas na Lei de Concessões.

15. No município de Leme, por exemplo, alguns padres faziam campanha contraa privatização nas missas.

16. O parecer no 00925/010/96 do conselheiro Fúlvio Biazzi apontou quatro irre-gularidades: 1) que o contrato de concessão tinha sido homologado no mesmo diaem que se adjudicou a sentença; 2) que o edital de concorrência não indicou osbens reversíveis; 3) que a classificação final das empresas participantes da licita-ção e suas propostas não foram tornadas públicas; e 4) que o contrato de conces-são não tinha referências sobre o valor total da concessão.17. Em dezembro de 1999, depois de quatro anos de processo, a Justiça cancelouo contrato de concessão apontando inúmeras irregularidades. A empresa “Águasde Limeira” apelou da decisão.

18. Nessas duas cidades argentinas, os processos de privatização dos serviços deágua foram cancelados na justiça por denúncias de acordo prévio e manipulaçãodo edital entre essa empresa e as autoridades que comandavam o processo(Assemae, 1996:13).

19. Um ex-deputado estadual que participou do movimento, em depoimento aoautor desse trabalho, disse: “Nós fizemos uma audiência pública e outros debatesna Câmara Municipal, em que convidamos pessoas do setor. Nesse sentido foiextremamente importante a ajuda de Rodolfo Costa e Silva, João Batista Peixotoe a assessora jurídica Tânia Nahum [todos da Assemae]. Eles nos passaram mui-tas informações, imprescindíveis para enfrentar com sucesso a privatização, por-que tínhamos dificuldades para enfrentar os aspectos técnicos do processo”.

20. Tratava-se de pessoas que ocuparam cargos de direção na Sabesp durante ogoverno Fleury. No município de Catanduva a consultoria prévia também foirealizada por pessoas da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo.

21. Entre a Lei Municipal no 3.763/96, que autorizou a concessão, e o edital existiamcritérios de julgamentos diferentes para decidir qual seria a empresa vencedora.

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SERVIÇOS URBANOS EM REDE ECONTROLE PÚBLICO DO SUBSOLO

novos desafios à gestão urbana

RICARDO TOLEDO SILVA

Arquiteto e Urbanista, Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP,Coordenador Científico do Núcleo de Pesquisa em Informações Urbanas da USP

LENIRA MACHADO

Socióloga, Analista da Fundação Seade

Resumo: O artigo trata das principais atribuições de competências estabelecidas pela Constituição federal emostra que, embora exista o apoio de princípios constitucionais para um papel pró-ativo dos municípios e dasentidades supramunicipais – regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões –, essa ação nãoocorre na prática.Palavras-chave: gestão urbana; rede; subsolo.

iscutem-se aqui os aspectos da oferta de servi-ços públicos em rede e do controle público dosubsolo à luz da importância crucial que o aces-

veis de acesso e indicadores sociais, inclusive emprego. Noentanto, alcance efetivo dos serviços – como mostram evi-dências trabalhadas para a RMSP – não é detectável ape-nas a partir da cobertura, mas sim de uma função maiscomplexa de conectividade, associada às capacidades trans-mitidas em cada segmento da rede. Surge, então, a necessi-dade de um controle público mais estrito sobre a rede, quepassa pelo uso do subsolo urbano.

Ao se considerarem, porém, os instrumentos legais apli-cados nesse controle para o caso do Município de São Pau-lo, observa-se que de fato o poder público municipal estálonge de exercer suas prerrogativas e mesmo de conhecero que existe em sua jurisdição. No caso da capital, exis-tem normas que isoladamente estabelecem o controle, mas,em seu conjunto e ligadas aos instrumentos de sua aplica-ção, acabam por resultar em um mero expediente buro-crático, sem eficácia sobre a gestão do espaço urbano. Ogrande desafio que se afigura hoje, à gestão urbana de-mocrática, é a incorporação efetiva de suas competênciasno processo de regulação dos serviços em rede, de ma-neira que os enormes potenciais de localização de opor-tunidades e de condições de acesso a direitos sociais alia-dos à estrutura de oferta desses serviços possam serincorporados às estratégias urbanas de planejamento egestão.

As entrevistas realizadas na Telefonica e no Departa-mento de Controle e Uso de Vias Públicas – Convias trou-

so a esses serviços tem hoje para a inserção social doscidadãos, o que transforma o controle do subsolo em com-ponente central da gestão urbana democrática. Contribuempara a importância renovada desses serviços, por um lado,a sofisticação e a diversidade das redes, que emergem comoelementos definidores de espaços privilegiados na cida-de, e, por outro, a crescente necessidade de conexão aserviços públicos como pré-condição de obter a alternati-vas de emprego e renda para um número cada vez maiorde atividades urbanas.

A seguir, a partir de uma análise de características deoferta dos serviços na Região Metropolitana de São Pauloe de instrumentos legais de controle do subsolo no Municí-pio de São Paulo, demonstra-se que existe um grande des-compasso entre a estrutura de regulação da oferta – aindaassociada a um padrão fordista de demanda – e as necessi-dades de um processo de inserção econômica e social maiscomplexo da população urbana. Nessa perspectiva, o con-trole público do subsolo não se afigura mais como simplescomponente auxiliar de gestão do espaço físico da cidade,mas como elemento necessário à promoção da justiça so-cial no espaço urbano. Mais adiante, em uma análise sobreestrutura de oferta de serviços e segregação urbana, estetexto mostra a existência de uma correlação forte entre ní-

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SERVIÇOS URBANOS EM REDE E CONTROLE PÚBLICO DO SUBSOLO: NOVOS...

xeram à baila as alternativas de gestão para o setor. Aprimeira pressupõe o fortalecimento do Convias dentroda estrutura da administração municipal; a segunda aven-ta a possibilidade de ter-se um organismo privado que seresponsabilize por manter atualizada uma base geor-referenciada do subsolo da cidade e de suas redes confor-me modelo já utilizado em cidades dos Estados Unidos.A questão que se coloca é quem participará dessa discus-são e, em decorrência, da decisão.

O QUADRO URBANO ATUAL E ASCOMPETÊNCIAS SOBRE OS SERVIÇOS EM REDE

A intensa transformação pela qual têm passado as so-ciedades contemporâneas – ocasionada pela maiorinterdependência entre os países, a crise fiscal e financei-ra dos Estados nacionais, a maior preocupação com a ques-tão ambiental – e a crescente demanda social trouxeramnovos desafios às cidades.

No Brasil, o quadro urbano é caracterizado pela baixaqualidade de vida e pela falta de sustentabilidade das ci-dades. Os instrumentos impróprios de gestão urbana, alia-dos à insuficiência de investimentos, potencializaram osefeitos do rápido crescimento das cidades traduzidos naexpressiva quantidade de moradias inadequadas, na ine-ficiência do sistema de transporte e na crescente agressãoao meio ambiente.

Dentre os fatores que contribuíram para tal situação,destacam-se a dificuldade de acesso ao solo urbano e ainexistência de uma política urbana voltada às necessida-des da população. Um único dado comprova a amplitudedo problema: cerca de 70% dos domicílios favelados nopaís estão localizados em áreas ocupadas informalmente.Estudo recente do Ipea mostra uma nova configuração danossa rede urbana comandada por 111 centros urbanos,que congregam 441 municípios e abrigam mais da meta-de da população brasileira. Se pensarmos na extensão ter-ritorial do Brasil e no número de municípios existentes,podemos ter uma idéia precisa da concentração dos pro-blemas que daí advêm para as administrações municipais.

Compete aos municípios – nos termos do artigo 30 daConstituição federal – organizar e prestar os serviços deinteresse local, de forma direta ou indireta, por meio deconcessão ou permissão, permanecendo sob sua respon-sabilidade as atividades de regulação e controle, própriase indelegáveis do poder público, além de promover o ade-quado ordenamento territorial, mediante o controle do uso,do parcelamento e da ocupação do solo urbano. Persis-

tem, no entanto, conflitos e indefinições com relação àscompetências, principalmente devido à falta de regulamen-tação dos preceitos constitucionais e à inexistência de leisfederais que disponham sobre o desenvolvimento urba-no.1 De modo geral, os instrumentos de planejamento ede gestão das cidades são insuficientes, especialmente pornão acompanharem as transformações da realidade urba-na brasileira.

Os serviços públicos em rede cada vez mais são articu-lados em estruturas que abrangem vários municípios, essen-cialmente no caso das regiões metropolitanas e aglomera-ções urbanas em que a integração se impõe como requisitobásico de operação dos sistemas. É o caso dos sistemasmetropolitanos de produção de água e de esgotamento sa-nitário, dos sistemas regionais de transmissão de energiaelétrica e das grandes áreas de operação de telefonia fixa emóvel. Toda a organização desses serviços – desde o mo-delo das grandes entidades estatais de infra-estrutura dosanos 60 e 70 – tem-se pautado por modelos de gestão seto-rial pouco sensíveis às prioridades regionais e urbanas deordenação do território. No processo de reestruturação ins-titucional ora em curso, que privilegia a prestação privadadesses serviços, mantém-se, no sistema regulador que emer-ge, a mesma lógica setorial do modelo precedente, semquaisquer inovações no que respeita à relação com o terri-tório e aos instrumentos de sua ordenação.

Vale ressaltar que, em todos os níveis de governo, aabordagem das questões urbanas é freqüentementesetorizada, sem que haja integração e articulação (verti-cal e horizontal) das intervenções públicas. Mas, no nívelmunicipal, a desarticulação das redes de serviços públi-cos mostra-se mais marcante, especialmente nos casos emque poderes concedentes e concessionárias são regidos porinstrumentos de regulação supramunicipais.

RELAÇÕES BÁSICAS ENTRE INFRA-ESTRUTURAE NECESSIDADES SOCIAIS2

De um ponto de vista histórico, as relações entre a infra-estrutura (urbana e regional) e as necessidades sociais sãorelativamente recentes e pouco exploradas. Os própriossistemas de serviços públicos em rede, associados à infra-estrutura, apenas passaram a ser considerados objeto deum processo de generalização de acesso a partir do iníciodo século XX, nas principais cidades do mundo. As redesde infra-estrutura e serviços, tal como conhecidas hoje emsistemas de funções hierarquizadas, começaram a ser im-plantadas em meados do século XIX, mas seu alcance era

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– tanto nas cidades mais ricas da Europa e dos EstadosUnidos, quanto nas capitais das ex-colônias, como o Riode Janeiro – limitado às áreas centrais e sua oferta não eracontínua. A evolução desses sistemas em direção à gene-ralização é abordada em profundidade, dentre outros au-tores, por Foreman-Peck e Millward (1994) e por Rose(1995), respectivamente para os casos do Reino Unido edos Estados Unidos.

A construção, segundo Foreman-Peck e Millward(1994), de uma perspectiva econômica fortemente relacio-nada à lógica da oferta mostra que a estruturação dessesserviços na forma de monopólios integrados e coordena-dos foi a mais coerente e eficiente desde a sua formaçãoaté o final da década de 70, em função de suas tecnolo-gias, em geral avessas à duplicação ou segmentação asso-ciada a uma oferta competitiva. Demonstra também queos setores de infra-estrutura – incluindo transporte, co-municações, energia e água – foram absolutamente essen-ciais para garantir o desempenho da economia britânicaem seu conjunto. Os ativos totais desses setores sempresuperaram aqueles da indústria de transformação, e, demaneira geral, as redes de infra-estrutura e sua operaçãocaracterizam uma indústria de capital intensivo. Apesardisso, os serviços em rede podem, em diferentes situações,ser ofertados a custo marginal bastante baixo, o que cer-tamente facilita sua generalização pelo lado da demandapara reprodução social. De certa forma, a grande procurapara produção tornou viável a oferta de serviços a custosmarginais mais baixos para a reprodução social – em quepese os elevados custos médios decorrentes das necessi-dades iniciais de grandes investimentos –, contribuindopara o processo de generalização do acesso.

A concepção de Rose (1995), a partir de uma perspec-tiva mais urbana e social da evolução da infra-estrutura edos serviços em rede, mostra que, do impulso predomi-nantemente voltado à base econômica que caracterizou suaimplantação nos Estados Unidos no século XIX, a dispo-nibilidade dos serviços em rede passou a criar valores cul-turais específicos de uma sociedade urbana que – de acordocom o autor – passaram a ser determinantes dos movimen-tos da oferta. Para ele, a difusão da tecnologia de redesconsumida nas cozinhas, nos escritórios e nas ruas dascidades teve influência marcante sobre os padrões de ofertae estruturação geográfica dos macrossistemas, mais que alocalização dos grandes complexos industriais para osquais esses serviços constituíam insumos básicos.

Em ambas as teses, apesar da diferença de enfoque, estápresente o duplo caráter dos serviços em rede com res-

peito à produção econômica e à reprodução social, e, nosdois casos, a oferta prioritariamente dedicada à primeiraresultou em um acesso generalizado em benefício da se-gunda.

No caso dos países periféricos, a expansão da infra-estrutura e dos serviços em rede também foi determinadaprimordialmente pelas necessidades da produção econô-mica, com a diferença de que os excedentes ofertados nãoforam – na maior parte dos casos – suficientes para aten-der à procura para consumo. Tanto faz, nesse contexto bus-car a explicação na lógica econômica da construção deForeman-Peck e Millward (1994), fortemente associadaà perspectiva da oferta, ou na lógica cultural de Rose(1995), que privilegia o lado da demanda. Provavelmenteambas explicariam, parcialmente, o limitado alcance queos serviços sempre tiveram para a maioria das populaçõesurbanas desses países. Os custos marginais dos exceden-tes da demanda econômica nunca chegaram a ser tão bai-xos a ponto de permitir a plena generalização do acesso,e a expressão social da procura urbana nunca foi tão im-portante, em seu conjunto, para que determinasse umdirecionamento específico da oferta no sentido de atendê-la de forma generalizada. De qualquer modo, essas expli-cações são parciais, e o que parece ser determinante des-sa baixa generalização de distribuição é o limite absolutode capacidade de investimento na expansão da oferta. Asconstruções britânica e americana procuram explicar oporquê da generalização, e a nossa, o porquê da não-ge-neralização.

Qualquer que seja a explicação de fundo, o fato é queo processo de desenvolvimento da oferta de infra-estrutu-ra e dos serviços em rede no Brasil e nos demais paíseslatino-americanos nunca atingiu o estágio de expansão dasofertas nos países capitalistas avançados, e isso cria umacondição de base muito distinta para o estabelecimentode uma agenda de necessidades para os novos modelos deorganização da oferta que lá e cá se afirmam.

Em trabalhos anteriores recentes (Silva 2000a e b), fo-ram comentadas análises de pesquisadores britânicos acer-ca dos novos padrões de oferta dos serviços em rede na-quele país (Guy e Marvin, 1996), segundo as quais a gestãoprivada havia conduzido o processo decisório para umaorientação predominante de gestão de demanda, em con-traste com o modelo anterior, baseado estritamente noplanejamento de oferta. Uma leitura apressada dessa ten-dência – que é real também nos países capitalistas perifé-ricos – poderia levar à conclusão de que a maior sensibi-lidade relativamente às aspirações da demanda seria

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SERVIÇOS URBANOS EM REDE E CONTROLE PÚBLICO DO SUBSOLO: NOVOS...

traduzida em maior democratização nos critérios dedestinação de capacidades. Essa conclusão – eventualmen-te admissível no contexto de países capitalistas avança-dos, nos quais a oferta básica de serviços já estava satis-feita e universalizada antes da privatização – de nenhumamaneira poderia ser transposta para o contexto dos paísesperiféricos, nos quais o lado da demanda, conserva, emseu interior, os desequilíbrios estruturais que marcam nos-sas sociedades como profundamente desiguais.

A visualização dessa desigualdade no espaço urbano,entretanto, não é tarefa trivial. Para isso é preciso lançarmão de instrumentos mais refinados de análise, tanto dolado das novas formas de inserção econômica e social dossegmentos populares na cidade cuja estrutura produtivase transforma, quanto do lado da distribuição territorialde capacidades dos serviços em rede.

OFERTA DE SERVIÇOS EM REDE ESEGREGAÇÃO SOCIAL

A distribuição dos serviços em rede tem como um deseus principais indicadores a cobertura, medida em pro-porção dos domicílios ligados a cada serviço sobre o to-tal de domicílios na área considerada. No entanto, esseindicador não dá conta das condições de acesso efetivo,

se consideradas as quantidades e qualidades destinadas acada segmento.

Por mais que haja defasagens de cobertura com relaçãoaos países capitalistas avançados, abordadas na seção pre-cedente, existe uma tendência lógica à generalização decobertura que se verifica em muitas concentrações urba-nas de países de menor renda, e a Região Metropolitanade São Paulo é exemplo nítido dessa tendência.

As redes de abastecimento público de água e de distri-buição de energia elétrica estão de alguma forma presen-tes em praticamente todos os domicílios da Região Me-tropolitana de São Paulo. Isso não quer dizer, porém, quetodos os domicílios obtenham qualidades e quantidadesequivalentes de serviços. Em que pese a generalização doacesso básico, é notório que algumas áreas têm condiçõesde serviço melhores que outras, seja por limitações técni-cas de difícil superação – como no caso das extremidadesde redes de distribuição de água, onde as pressões de ser-viço não atingem os mínimos necessários à garantia decontinuidade de abastecimento ao longo do dia –, seja poração deliberada de manejo operacional, que, no gerencia-mento de capacidades totais insuficientes, determina prio-ridades de despacho.

Já em outros sistemas, cujo horizonte de generaliza-ção de cobertura é mais distante, a leitura direta das dife-

MAPA 1

Cobertura do Sistema de Abastecimento Público de Água, por Percentual de Domicílios Ligados à RedeRegião Metropolitana de São Paulo – 1991

Fonte: Fundação IBGE. Censo Demográfico, 1991.

Abastecimento água 1991% de domicílios ligados

95 a 99,885 a 9570 a 8560 a 7050 a 602,7 a 50

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renças relativas a domicílios ligados sobre o total em cadaárea proporciona uma boa aproximação das respectivascapacidades de distribuição final. É o caso, dentre outros,dos sistemas de esgotamento sanitário e de telefonia fixa,que apresentam ainda grandes desequilíbrios de abrangên-cia entre diferentes áreas da mancha urbana. Do ponto devista metodológico, essa constatação conduz à hipótesede que a cobertura seja uma representação aceitável denível de acesso quando as redes e os serviços considera-dos estão em seus estágios ainda iniciais de expansão bá-sica; à medida que os sistemas vão amadurecendo, essarepresentação já não satisfaz (Silva, 2000a).

Nos Mapas 1 e 2 são representados respectivamenteos esquemas de cobertura metropolitana de rede de abas-tecimento de água, para 1991, e de telefonia fixa para 1997.No primeiro caso, o sistema mais maduro (água) – embo-ra ainda mantivesse em 1991 algum desequilíbrio de al-cance entre os distritos metropolitanos – apresenta umaquase homogeneidade de acesso aparente no território me-tropolitano.

O sistema menos maduro – que ainda não atingiu co-bertura básica – de telefonia fixa deixa clara a lógica desegregação espacial e a relação nítida entre maior cober-tura e renda. O Gráfico 1 representa a correlação entreacesso à telefonia fixa e à renda do chefe de família dos

132 distritos metropolitanos, em que o alto coeficiente dedeterminação obtido confirma enfaticamente o represen-tado no Mapa 2.

A maior homogeneidade de abrangência dos sistemasmais maduros não significa, porém, que tenham sido su-perados os desequilíbrios distributivos evidenciados pelabaixa cobertura dos menos maduros. Significa apenas quea cobertura já não é um indicador satisfatório de acesso e,portanto, de nível relativo de universalização. Por isso sãoimportantes as informações complementares relativas àscapacidades das redes e de seus segmentos, em uma polí-tica pró-ativa de controle do subsolo da parte das autori-dades urbanas (municipais, metropolitanas e outras).

O Mapa 3 mostra esquematicamente a estrutura do sis-tema adutor metropolitano, que permite identificar, nasperiferias do sistema, os pontos de maior vulnerabilidadepotencial, a escassez e as variações de pressão, devido aomenor grau de redundância (conexão simultânea a maisde um sistema produtor).

Mesmo sem se aprofundar na análise dessa rede, é pos-sível logo verificar que o simples fato de existir seu dese-nho e de este ser publicado pela concessionária metropo-litana de saneamento básico já é um grande passo paratornar mais transparente a relação entre condições opera-cionais e qualidade do serviço prestado. O mapa da rede

MAPA 2

Cobertura da Rede de Telefonia Fixa, em Número de Linhas por 100 HabitantesRegião Metropolitana de São Paulo – 1997

Fonte: Secretaria de Transportes Metropolitanos. Pesquisa Origem/Destino, 1997.

Telefone fixo - 1997Linhas por 100 habitantes

Mais de 3015 a 3010 a 1505 a 10Menos de 05

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GRÁFICO 1

Relação entre Cobertura de Telefonia Fixa e Percentual de Domicílios com Renda do Chefe até 2,5 Salários Mínimos MensaisRegião Metropolitana de São Paulo – 1997

GRÁFICO 2

Relação entre Cobertura de Telefonia Fixa e Número de Empregos Totais por 100 HabitantesRegião Metropolitana de São Paulo(1) – 1997

Estatística de regressão

R múltiplo 0,776423R-quadrado 0,602833R-quadrado ajustado 0,599801Erro padrão 6,718854Observações 133

Fonte: Núcleo de Pesquisa em Informações Urbanas da Universidade de São Paulo (a partir de combinação de dados da Pesquisa O/D, 1997).

Estatística de regressão

R múltiplo 0,70973R-quadrado 0,503717R-quadrado ajustado 0,499899Erro padrão 41,80046Observações 132

Fonte: Núcleo de Pesquisa em Informações Urbanas da Universidade de São Paulo (a partir de combinação de dados da Pesquisa O/D, 1997).(1) Exclui o Distrito Sé.

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permite entender diferenças de acesso que não são abso-lutamente vislumbradas mediante observação do mapa decobertura. Ocorrências como rodízio de abastecimento efalta de pressão não atingem igualmente os vários distri-tos da metrópole, e a maior disponibilidade de informa-ções permite que a sociedade se posicione com mais cla-reza sobre suas prioridades no planejamento estratégico ena gestão dos serviços que por direito lhe pertencem, adespeito de concedidos a terceiros para fins de operação.

A relação entre acesso a serviços urbanos e condiçõessociais sempre foi reconhecida por diferentes correntes deanálise e formulação de política urbana. Não é novidadeque as áreas menos servidas por infra-estrutura de sanea-mento básico são as que sofrem de mais problemas de saú-de pública e as que abrigam os maiores contingentes depopulação de baixa renda. No entanto, há toda uma dimen-são de inclusão social relacionada às oportunidades de ge-ração de emprego e renda em grande parte ignorada, quetambém se relaciona com o acesso aos serviços em rede .

A hipótese de que os serviços públicos desempenhamhoje – mais que no passado recente – um novo papel so-cial ela passa a ser determinante na geração de oportuni-dades diferenciadas às suas redes, proporcionando espa-ços privilegiados nas cidades. O estudo sistemático dasrelações entre a localização das categorias socioo-

cupacionais3 e dos nichos urbanos mais privilegiados quan-to à conectividade dos serviços em rede tem um potencialenorme como apoio às políticas públicas urbanas. Essepotencial corresponde à importância cada vez mais reco-nhecida de que a eficácia das políticas sociais apenas sepode medir se considerados seus impactos em microescala.Os modelos de avaliação da eficácia de investimentos pú-blicos em agregação macrorregional ou nacional (Battene Carlsson, 1996) são válidos para detectar a conformida-de a grandes objetivos de crescimento econômico, mas aavaliação de seus resultados sociais não prescinde de ve-rificações em microescala.

A correlação entre cobertura de telefonia fixa e em-prego para 132 distritos da RMSP (eliminado o distritoSé por situação atípica quanto ao número de habitantesfixos) mostra coeficiente de determinação quase tão ele-vado quanto o anterior, deixando clara a interdependênciaentre as duas variáveis.

É evidente que apenas essas correlações brevementecomentadas neste artigo não são suficientes para compro-var a hipótese de novos padrões de demanda e, menos ain-da, de possíveis relações de causalidade. Por exemplo, notocante à interdependência verificada entre telefonia fixae emprego terciário, pode-se argumentar que a oferta doserviço segue a concentração de demanda, e não o opos-

MAPA 3

Esquema do Sistema Adutor MetropolitanoRegião Metropolitana de São Paulo – 1996

Fonte: SABESP.

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to, o que certamente é verdade do ponto de vista do pla-nejamento estratégico setorial. No entanto, a observaçãosobre o conjunto das condições de inserção urbana dasdiferentes atividades econômicas e dos grupos sociais aela ligados sugere que existe também um forte poderindutor pelo lado da oferta dos serviços, embora ainda nãoplenamente conhecido em sua magnitude.

O entendimento desse processo e o domínio sobre va-riáveis-chave de indução à atividade econômica e da lo-calização de oportunidades de emprego e renda na cidadedependem de um controle social efetivo sobre o subsolourbano. A regulação pública sobre os serviços em redenão pode se limitar ao âmbito das disputas isoladas entreprovedores e usuários nem à observância genérica dosprincípios de generalidade, continuidade e modicidade detarifas. O objetivo de universalização de acesso – reco-nhecido como prioritário em todo o aparato institucionalque se forma em torno da infra-estrutura e serviços emrede – apenas será efetivo se associado a políticas e estra-tégias pró-ativas de ordenação democrática do territóriourbano e regional. E isso só se tornará possível se as esfe-ras investidas de poder sobre essa ordenação forem reco-nhecidas como interlocutores de peso no processo regu-lador dos serviços.

A GESTÃO DO SUBSOLO URBANO:ENTRE A LEI E A AÇÃO

Se a gestão urbana é, como citado anteriormente,setorizada e caótica, os problemas se potencializam quandoo foco passa a ser o subsolo das grandes cidades.

Tomando a cidade de São Paulo como estudo de casopor sua própria complexidade, podemos constatar que:- a preocupação com a gestão do subsolo é recente, e osmecanismos existentes mostram-se conflitantes e insufi-cientes;- nem o Município nem o Estado souberam ou pretende-ram utilizar as redes de serviços públicos, já existentesou em suas expansões, como mais um instrumento de in-serção da parcela da população de baixo poder aquisitivona dinâmica social e econômica da cidade.

A partir de 1970, com a Lei Municipal no 7.513, manifes-ta-se a preocupação em normatizar a execução de obras eserviços nas vias e nos logradouros públicos do município.Explicita-se a necessidade de aprovação prévia dos projetose planos de trabalho para a execução de obras e serviços,porém não se determina o órgão municipal responsável poressa aprovação, e essa lei não toca nas questões referentes às

formas de uso e gestão do subsolo – ela representa oformalismo burocrático da nossa administração.

Outras leis e diversos decretos são promulgados nadécada de 70. No entanto, não transparece a vontade po-lítica de efetivamente estabelecer regras claras para asconcessionárias dos serviços públicos atuarem no manu-seio do sistema viário da cidade. É ilustrativo o que ocor-re com a Lei no 8.658, promulgada em 1977, que leva noveanos para ter seus artigos regulamentados pelo Decreto no

23.404/87. Ao serem regulamentados os artigos 6o e 7o

dessa lei, a cidade passa a contar com normas para a apro-vação de projetos que interferem nas vias públicas e, aomesmo tempo, são definidas as competências do Depar-tamento de Controle e Uso de Vias Públicas – Convias –vinculado à Secretaria de Vias Públicas, que passa a serresponsável pela “autorização dos equipamentos e utili-zação das vias e logradouros públicos explicitando queos serviços de infra-estrutura urbana, prestados por enti-dades de direito público e privado, obrigatoriamente aten-derão aos dispositivos deste decreto e demais atos nor-mativos” (Decreto no 23.404/87).

Além disso, cabe ao Convias aprovar o planejamentodas obras e organizar o cadastro de instalações e equipa-mentos existentes e os que vierem a ser instalados. Aomesmo tempo, o decreto possibilita a descentralização dasações ao permitir que outros órgãos da administraçãomunicipal autorizem a execução das obras, desde que:- o interessado apresente a aprovação técnica ou libera-ção da obra emitida pelo Convias;- o órgão fiscalizador da execução da obra ou do serviçose obrigue a comunicar ao Convias o início e o fim dostrabalhos, atestando se a implantação das obras respeitouo previsto no projeto em relação ao posicionamento darede em toda sua extensão.

Tendo em vista a alimentação permanente e a atualiza-ção do cadastro, organizado em banco de dados de aces-so comum a todos os interessados, é também prevista nodecreto a celebração de convênios entre o Convias e asentidades de direito público e privado que tenham equi-pamentos já implantados.

As Portarias 24 e 107 de 1988 emitidas pelo secretáriode Vias Públicas, consoante o decreto acima analisado,buscam disciplinar a reserva de espaços nos subleitos dasvias públicas e a utilização de viadutos, pontes e pontilhõespelos equipamentos dos serviços de infra-estrutura urba-na de responsabilidade das diversas concessionárias. Al-gumas questões relevantes são tratadas nessas portarias.A primeira refere-se à tentativa de disciplinar a extensão

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de redes no processo de expansão urbana, e a segundabusca o controle da utilização das obras de arte (pontes,viadutos e pontilhões) numa tentativa de disciplinar tam-bém o uso do espaço aéreo urbano. Dessa forma, amplia-se a área de atuação do Convias, que passa a ser respon-sável pela gestão do uso do solo, do subsolo e do espaçoaéreo da cidade. No entanto, as portarias, em seu conjun-to, na prática diluem o poder do Convias ao transferir paraas administrações regionais a responsabilidade de rece-ber as solicitações das concessionárias para autorizaçãomunicipal, no que concerne à implementação de projetosde suas redes. Cabe aqui uma indagação: o circuito buro-crático criado pelas portarias favorece ou não o processode planejamento urbano?

Fica claro o esvaziamento do Convias e o Decreto no

27.335 de 1985 – que em seus 28 artigos enfoca a garan-tia do trânsito na malha viária da cidade – explicita essadecisão política. Há um aumento das atribuições da Se-cretaria das Administrações Regionais nesse âmbito deatuação e surge um novo ator, o Departamento de Opera-ção do Sistema Viário – DSV –, que passa a ser o órgãoresponsável pela autorização de execução das grandesobras e/ou dos serviços de grande porte das redes de água,esgoto, gás, linhas de dutos e caixas subterrâneas para te-lefonia, canalizações de energia elétrica e obras metro-viárias. O Departamento de Controle e Uso de Vias Pú-blicas – Convias – não é citado uma única vez no corpodo extenso decreto.

A questão da ocupação e do uso das vias públicas(subsolo, solo e espaço aéreo) pelas concessionárias éadministrada de forma cíclica e avança ou retrocede con-forme a dinâmica própria da burocracia. Uma análise com-parativa da legislação municipal sobre o assunto poderátrazer à tona o contraditório e os conflitos existentes.

O Convias surge, é fortalecido, praticamente desapa-rece e, como fênix, ressurge num decreto ou numa porta-ria do administrador de plantão. Acompanhar esse pro-cesso permite uma visão da ausência de planejamento eda descontinuidade administrativa.

As portarias da Secretaria de Vias Públicas, a partir de1989, estão mais voltadas aos problemas emergentes dacidade. Elas tratam de disciplinar a extensão de redes deinfra-estrutura no Fundo de Vales e Cadastro do Sistemade Drenagem da cidade.

No ano de 1992 são tomadas algumas medidas visan-do à recuperação do planejamento na área. É constituídaa Comissão de Entendimento das Concessionárias e sãoaprovadas as Especificações Técnicas para a execução de

Cadastro de Drenagem, o que recoloca a questão do pla-nejamento e da autorização de uso do espaço urbano pe-las redes de infra-estrutura e recupera para o Convias opapel de órgão normativo.

No entanto, a partir do Decreto no 37.553 de 1998,novamente o Convias perde espaço na administração mu-nicipal, e as autorizações para execução de obras das con-cessionárias passam a ser expedidas pelas administraçõesregionais, ouvido o Departamento de Operação do Siste-ma Viário – DSV.

Finalmente em 1999 o executivo municipal toma cons-ciência de que o uso das vias públicas, inclusive do espa-ço aéreo, do subsolo e de obras de arte de domínio muni-cipal pode se transformar em mais uma fonte de renda paraos cofres públicos. O Decreto no 38.139/99 estipula que autilização desses bens públicos do município deverá serfeita pelas concessionárias a título precário e oneroso. Paraque isso ocorra, são necessárias outras medidas que, emtese, garantam a eficiência da administração municipal.O decreto recupera a capacidade técnica do Convias paraanálise e aprovação dos projetos, para a lavratura do Ter-mo de Permissão de Uso e para o recebimento da cauçãoda entidade pública ou privada interessada, além daque-las atribuições referentes ao cadastramento das redes deinfra-estrutura. As atividades de fiscalização da execuçãodas obras passam a ser descentralizadas. O Valor Mensal(Vm) da contribuição pecuniária pela utilização das viaspúblicas, inclusive espaço aéreo, subsolo, e obras de arteserá calculado conforme expressão detalhada no artigo 9o

do decreto em pauta. A Portaria no 007/2000 da Secreta-ria de Vias Públicas estabelece as Normas para Apresen-tação dos Elementos de Cadastro de Equipamentos Insta-lados.

No processo de aproximação com o tema foram feitasduas reuniões. A primeira deu-se com a Diretoria de Pla-nejamento da Telefonica quando tomou-se conhecimentoda magnitude da utilização do subsolo da cidade, uma vezque somente essa concessionária tem mais de 90 estaçõesde distribuição com uma rede de aproximadamente 10 milquilômetros de extensão. Há uma indagação a ser feita,não se sabe a quem: qual é a malha de dutos e qual a faixade ocupação do subsolo da capital, das regiões metropo-litanas e das grandes cidades paulistas? Ao que tudo indi-ca essas informações não existem. Ao mesmo tempo cons-tata-se que há um corpo técnico nas concessionárias e naadministração pública sensibilizado pela magnitude doproblema e que busca, em parceria, caminhos para superá-lo. O Estudo de Zoneamento do Subsolo, elaborado no

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SERVIÇOS URBANOS EM REDE E CONTROLE PÚBLICO DO SUBSOLO: NOVOS...

final da década de 80, é um marco dessa preocupaçãocomum, e hoje, após o decreto que prevê a cobrança deutilização por faixa de ocupação, pela prefeitura, foi cons-tituída a Comissão de Entendimento entre as Concessio-nárias na busca de formas de equacionamento dos confli-tos existentes.

Em reunião no Convias estava, de um lado, a equipetécnica preparada e capaz de responder às questões levan-tadas, e, de outro, a precariedade das condições de traba-lho disponibilizadas pela administração municipal para queesse corpo técnico pudesse atuar. Algumas questões bási-cas foram abordadas nessa reunião:- o subsolo da cidade deve ser visto como um bem públi-co e sua utilização é limitada e repleta de condicionantes;- são as agências nacionais, criadas pelo governo fede-ral, que determinam as normas de atuação das grandesconcessionárias;- o município deve estar voltado ao controle de qualida-de das formas de utilização das vias, do subsolo e do es-paço aéreo da cidade. Trata-se de um controle do espaçofísico gerenciando a implicação de uma rede com outrasredes e suas interfaces com as obras viárias;- as primeiras permissões só ocorreram após o Decretono 38.139, ou seja, setembro de 2000, e em quatro mesesgerarem uma receita significativa (em torno de sete mi-lhões de reais). Vale lembrar que o setor de saneamentobásico é isento de pagamento da taxa de utilização dosubsolo para sua rede;- o Convias não dispõe de base cartográfica georrefe-renciada para o cadastro das redes de infra-estrutura;- o desenvolvimento tecnológico, principalmente na áreade informação, faz com que aflorem novas situações paraserem gerenciadas. É o caso das redes corporativas:como qualificá-las? Podem ser consideradas um servi-ço público?

- outros órgãos municipais atuam no gerenciamento dosubsolo urbano e não há quem tenha a visão global de seuuso e ocupação. Alguns equipamentos envolvem, inclusi-ve, questões de segurança, como, por exemplo, a autori-zação de instalação de postos de gasolina e garagens sub-terrâneas;

- os processos desapropriatórios para alargamento de viaspodem ser outra fonte de risco para a cidade. O caso daAvenida Paulista é emblemático, e o Contru, para contor-nar o problema, solicitou ao Corpo de Bombeiros vistoriasemanal dos chamados “vazios” do subsolo da Paulista.

Diante da complexidade e da magnitude do problema,mal se tangenciou o cerne da questão do gerenciamentodas redes. O desafio está colocado, na esperança de con-tribuir para que outros técnicos se interessem pelo tema.

NOTAS

1. Quando o artigo foi escrito, o Estatuto da Cidade não havia sido aprovado.

2. O texto desta seção é parte de revisão bibliográfica realizada no processo depesquisa do Infurb/USP em cooperação com o Ippur/UFRJ, no projeto Metrópo-les: desigualdades e governança urbana. Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Hori-zonte e Porto Alegre, integrante do Pronex.

3. As categorias socioocupacionais consideradas nos estudos do Infurb sobre essalinha são as definidas por Ribeiro (2000) no âmbito da pesquisa Metrópoles: de-sigualdades e governança urbana. Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte ePorto Alegre, citada anteriormente.

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A

A METRÓPOLE PAULISTA E A SAÚDE

Região Metropolitana de São Paulo ainda povoao imaginário das pessoas como a metrópole in-dustrial brasileira por excelência, um verdadeiro

mar que o espaço se torna fluido – com uma intensa mo-bilidade de fatores de produção, trabalho, mercado, produ-tos, capital, serviços, entre outros (Santos, 1993a e b). O queinevitavelmente imprime sérias dificuldades ao acessouniversal e equânime à saúde, quando pautados pela lógi-ca municipal de gestão do sistema de atenção à saúde.

Os objetivos deste artigo consistem, portanto, em iden-tificar essa tensão a partir de duas perspectivas. A primei-ra, pelas novas características de São Paulo, que a configu-ram como uma metrópole global, tendo como pano de fundoo fluxo da população em busca de serviços de saúde. Asegunda, pela dinâmica intermunicipal de utilização de ser-viços de saúde da sub-região metropolitana sudeste, maisconhecida como a Região do Grande ABC. Desenha-se as-sim um painel onde são delineados dois aspectos: o muni-cipal e o metropolitano, no interior de um mesmo contextosocioespacial. Considerando-se essas perspectivas de aná-lise, agregam-se ao processo de atendimento das necessi-dades sociais novos elementos a serem incorporados nospossíveis arranjos organizacionais do modelo de atenção àsaúde na Região Metropolitana de São Paulo.

SÃO PAULO, UMA METRÓPOLE GLOBAL

A incorporação de novas tecnologias, com ênfase nacirculação de informações; o fenômeno da “involuçãometropolitana”, no qual a metrópole cresce menos que a

“gigante industrial”. Essa imagem, entretanto, não é maiscapaz de expressar a atual complexidade da metrópolepaulista. As décadas de 80 e 90 assistiram a uma modifi-cação radical da essência dessa região. Sem dúvida, umnovo perfil passou a caracterizá-la, agora não mais comoa metrópole industrial e sim como uma verdadeira metró-pole global, transacional.

Esse fato traz implicações profundas à constituição dosdireitos sociais, inclusive à garantia da saúde, quando seidentifica a existência de um rápido processo de transiçãodos territórios urbanos, em que cada vez mais os espaçosadquirem fluidez não respeitando os limites administrati-vos municipais, limites claramente definidos no atual pro-cesso de reorganização do modelo de atenção à saúdedurante as décadas de 80 e 90, pautados pela prioridadedada à esfera municipal.

Configura-se assim uma tensão, ao considerar que, porum lado, as atuais diretrizes políticas do setor saúde, emconsonância com a redefinição do poder político-institu-cional no país, encontram-se favoráveis aos interessesdescentralizadores e democráticos pela ênfase atribuídaao poder local e à universalização do direito à saúde. Epor outro, ao configurar-se como uma metrópole global,São Paulo ganha novos atributos, podendo mesmo se afir-

Resumo: O presente artigo procura abordar as características da Região Metropolitana de São Paulo em facedo atual processo de reorganização do modelo de atenção à saúde no Brasil, no que se refere à ênfase atribuídaao poder local e à universalização do direito à saúde. Identifica-se neste contexto uma tensão ao configurarSão Paulo como uma metrópole global, tendo como pano de fundo o fluxo da população em busca de serviçosde atenção à saúde. Para isto, utilizou-se como parâmetro para a análise o fluxo estabelecido pela populaçãoda sub-região metropolitana sudeste, mais conhecida como a Região do ABC. Desenha-se assim um painel emque se confrontam duas tensões, ou melhor, duas escalas: a municipal e a metropolitana.Palavras-chave: metrópole; políticas de saúde; serviços de saúde.

AYLENE BOUSQUAT

Médica, Professora da Faculdade de Medicina do ABC, Pesquisadora do CedecVÂNIA BARBOSA DO NASCIMENTO

Médica, Professora da Faculdade de Medicina do ABC, Pesquisadora do Cedec

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A METRÓPOLE PAULISTA E A SAÚDE

região; a especialização nos setores terciário e quaterná-rio da economia; a diminuição relativa do peso industrial,associada à mudança nas características das plantas indus-triais que tendem a se tornar menores, automatizadas enão-poluentes; o aumento da economia e do emprego in-formal e o aumento das desigualdades e da pobreza sãoalguns dos elementos da transformação de São Paulo nametrópole global, transacional brasileira (Santos, 1994).

Ressalta-se que mais do que a simples substituição dascaracterísticas “típicas” das metrópoles industriais paraas apontadas no parágrafo anterior, é, na verdade, estardiante da “nova forma espacial” da economia global e dasociedade informacional (Castells, 1999:428).

Se a fórmula de manutenção do poder da metrópoleindustrial era crescer sem parar – aumentando sua área deinfluência contígua; incrementando o número de plantasindustriais e de serviços; atraindo populações migrantes, etc.– , o mesmo não ocorre no caso da metrópole transacional.Nesse caso, como a informação é a peça-chave desse pro-cesso, a metrópole transacional, dentro desse espaço flui-do, não precisa necessariamente agregar todos os elemen-tos em seu território, e mesmo assim é possível manter ocomando e a direção política e econômica.

Outro aspecto central no processo de conformação dametrópole transacional paulista é estar marcado pela “in-tensificação e renovação dos processos sociais de exclu-são (...). Em outros termos, as novas feições da paisageme a intensificação da exclusão social estão presentes nasmetrópoles contemporâneas”. Desse modo, a dimensãoespacial da exclusão social passa a ser outro elemento quedeve ser incorporado na perspectiva da construção depolíticas de saúde que perseguem a eqüidade (Lencioni,1996:40, grifo nosso).

Em suma, se as grandes metrópoles mudaram muito, oespaço virou fluxo, somaram-se informações às mercado-rias circulando por estradas, mercadorias não-palpáveiscirculando pelo ar, uma cidade cada vez mais desigual seconsolidou, e pessoas se apropriaram cada vez mais dife-rentemente dos seus territórios, aí está caracterizada umamudança radical que precisa ser entendida pelo campo deestudo das políticas da saúde.

A Nova Configuração do Espaço Produtivoe as Implicações para as Políticas de Saúde

A concentração de atividades econômicas, particular-mente industriais, pode ser considerada, até a década de70, o eixo organizador da cidade de São Paulo e de sua

região metropolitana, que redundou num modelo de ocu-pação urbana bastante polarizado e desigual. Entretanto,a partir dos anos 80 uma nova lógica se impôs, com au-mentos crescentes do peso dos setores terciário e quater-nário na economia. O modelo espacial daí decorrente foimenos polarizador que o primeiro, causando reflexos im-portantes no uso do solo, na divisão socioespacial do tra-balho e, conseqüentemente, no fluxo da população.

Desde a década de 70, o Brasil e São Paulo, em parti-cular, vêm assistindo a um crescente aumento no percen-tual de empregos gerados pelo setor terciário da econo-mia. Em 1985, o setor de comércio e serviços respondia,no Brasil, por 49% da população economicamente ativa(PEA), e no município de São Paulo essa taxa alcançava60% (Sempla, 1990).

A esse quadro soma-se a consolidação de São Paulocomo o grande centro financeiro nacional, fato extrema-mente recente que é um dos elementos-chave na sua cons-tituição como metrópole transacional. Deve-se observarque entre 1980 e 1985 a participação das instituições fi-nanceiras no PIB do Estado de São Paulo cresceu de 6,5%para 20% (www.seade.gov.br).

Não obstante o crescimento significativo no setor deserviços, o peso da atividade industrial ainda se mantémbastante expressivo na capital paulista, em especial quan-do comparada com o resto do país. Algumas interpreta-ções, entretanto, partindo da observação da diminuiçãodo peso da capital no Valor de Transformação Industrial(VTI),1 chegam à conclusão de que teria ocorrido um “es-vaziamento industrial” na capital paulista, constatação que,exatamente por ser bastante genérica, precisa ser melhoranalisada. Essa contextualização será realizada tomandocomo referência dois aspectos: a atual lógica da confor-mação da Região Metropolitana e seu entorno, e a quali-ficação do parque industrial que permanece na capital.

Na verdade, o que ocorre não é uma simples saída deindústrias da capital, mas, graças a fluxos imateriais, emgrande parte devidos ao maior controle da informação ge-rencial a distância, existe a possibilidade de um espraia-mento da Região Metropolitana de São Paulo. Pois, defato, não se trata de uma “transferência” linear do centroeconômico e industrial da Capital para o Interior (de for-ma análoga ao que havia ocorrido na transferência do Riode Janeiro para São Paulo como a grande metrópole na-cional). Em síntese, a saída de plantas industriais do terri-tório paulistano associa-se à sua consolidação como me-trópole transacional, e se faz em função dela, formando-seassim uma região metropolitana desconcentrada.

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De fato, nesse movimento de desconcentração indus-trial, a saída das indústrias parece ter ocorrido, sem dei-xar de considerar a já descrita diminuição do peso do VTI,em virtude de outro elemento associado a esse processode “metropolização” que é um fato novo: a cisão entre agestão e a produção. Essa cisão se torna possível graças àtecnologia de informação, em especial nas telecomunica-ções, e à informatização. Não há como se falar em cisãoentre gestão e produção sem a possibilidade da informáti-ca, das redes de fibra ótica, etc.

Aquela desconcentração das empresas passa a ser fun-cional, mas o centro de poder se mantém na capital e de-senha-se, na verdade, não uma superação da capital pau-lista pelas cidades médias que crescem ao seu redor, masum processo bastante complexo de relações econômicas/sociais/políticas/informacionais entre São Paulo e suaRegião Metropolitana desconcentrada.

Outro aspecto que merece ser aprofundado é a mudan-ça do perfil do parque industrial que permanece na cida-de de São Paulo. Em especial porque, por trás das modifi-cações ocorridas na estrutura territorial de produção, naverdade estão os novos arranjos de concorrência e com-posição do capital, em que se destacam os setores comalta incorporação tecnológica (Pires, 1995).

Enquanto alguns setores, como metalurgia e indústriatêxtil, apresentaram significativas diminuições, outros ra-mos mais modernos, como indústria eletrônica e química,ao contrário da tendência geral, apresentaram um aumen-to tanto no número de empresas quanto no de empregos.

Destaca-se, agora, o setor de material elétrico-eletrô-nico voltado especificamente para a indústria de informá-tica, segundo Scott e Storper (1988) o “setor sintomáticocentral” de todo o complexo da indústria de alta tecnolo-gia. No município de São Paulo as indústrias de eletrôni-ca vão apresentar um comportamento inverso ao conjun-to da indústria, pois neste caso ocorreu uma importantecentralização das atividades, e em particular em seu nú-cleo urbano mais central. Em 1981, a capital concentrava44,4% das indústrias de informática no Brasil e 49,3% dosempregos, chegando em 1992 a 61,6% das indústrias e a70,89% dos empregos no setor (Pires, 1995).

Em síntese, do ponto de vista do seu arranjo industrial,pode-se afirmar que a metrópole de São Paulo asseguroucom ampla vantagem sua supremacia. Quando houve saí-da de plantas industriais, a maioria se dirigiu para regiõesdo entorno da metrópole estreitamente vinculadas a ela,configurando o que se pode denominar de “desconcentra-ção funcional”. E quando as plantas industriais se espa-

lharam, um processo inverso ocorreu na gestão das unidadescom a centralização crescente no município de São Paulo eum crescimento das indústrias com expressiva incorporaçãotecnológica, as quais, ao contrário de outros ramos, perma-necem na cidade, demandando trabalhadores capacitados.

A preocupação com as políticas públicas de saúde fazsurgir uma das questões possíveis que é sua relação coma nova configuração do espaço produtivo e do mercadode trabalho. Isso adquire relevância pela conformação dosistema de proteção social brasileiro que, em especial atéa Constituição de 1988, se pautava numa fragmentaçãobastante clara entre os trabalhadores inseridos no merca-do formal e o restante da população. No entanto, mesmodepois da implantação do SUS, novas formas de rupturaspodem ser identificadas, em especial no acesso ao sistemade saúde supletivo dos convênios, que é particularmente vin-culado à inserção no mercado de trabalho formal. Só naRMSP, segundo a Fundação Seade, cerca de 44% da popu-lação se utilizou desse setor em 1994. Soma-se a isso ofato de a rede pública de saúde ter se construído voltadapara as populações não-inseridas ou inseridas marginal-mente no mercado de trabalho, em especial mulheres e crian-ças. Daí uma certa dificuldade em incorporar aqueles seg-mentos populacionais que não conseguiram manter suainserção no mercado de trabalho formal, com a diminuiçãodo peso do setor secundário em detrimento do terciário edo quaternário. Ou seja, apenas as alterações na configu-ração do espaço produtivo paulista implicam, por si só,novas situações para as políticas públicas de saúde.

A consolidação de São Paulo como a metrópole glo-bal, transacional brasileira impõe novos desafios na im-plementação de políticas de saúde que, partindo da con-cepção de saúde como um direito social, persigam aeqüidade. Não só aumentam as desigualdades socioespa-ciais e as distâncias a serem percorridas entre “o melhor eo pior”, como se está diante de um quadro urbano bastan-te complexo, em que as lógicas do fluxo da população, docapital e das informações não respeitam os limites admi-nistrativos municipais. É essa lógica que será abordada aseguir, tomando-se por referência o fluxo da populaçãoem busca de atenção à saúde na RMSP.

O FLUXO DA POPULAÇÃO EM BUSCADE ATENÇÃO À SAÚDE: UMA DINÂMICAMUNICIPAL OU METROPOLITANA?

É importante a discussão sobre os fluxos,2 pois é emtorno deles que a sociedade atual se articula; são fluxos

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de capital, de informação e de tecnologia. Entretanto, comoafirma Castells (1999:436), “Fluxos não representam ape-nas um elemento da organização social: são a expressãodos processos que dominam nossa vida econômica, polí-tica e simbólica”.

O objetivo aqui é identificar o fluxo da população daRMSP em busca de atenção à saúde, definindo-se qual alógica de deslocamento intermunicipal que se estabelece.

Para tanto, uma das possibilidades metodológicas re-side na utilização dos dados da Pesquisa Origem-Destino(OD), de periodicidade decenal e uma importante refe-rência para os estudos da RMSP. A OD de 1977 foi reali-zada pela Emplasa (Empresa Metropolitana de Planeja-mento da Grande São Paulo) e as subseqüentes, pelo Metrô(Diretoria de Planejamento e Expansão dos TransportesMetropolitanos). O conjunto das pesquisas OD se mos-trou capaz de fornecer informações relevantes sobre ascaracterísticas socioeconômicas da população, a localiza-ção das atividades urbanas e do padrão de mobilidade (flu-xo) dessa mesma população.

Para analisar o fluxo da população em busca de atenção àsaúde em 1987 e 1997, mantendo-se como referência os flu-xos mais gerais da população, procedeu-se a uma tabulaçãoe análise especial dos dados das duas últimas ODs.

Em 1997, foram feitas diariamente 31.432.000 viagensna RMSP, 1.200.000 viagens por motivo de saúde. Entre 1987e 1997, as viagens por motivo de saúde (VPMS) mantive-ram percentuais constantes em relação às viagens totais (VT)na faixa de 4%. Praticamente não ocorreu variação no índicede viagens por 100 mil habitantes, que se manteve por voltade 3.500 VPMS/100 mil habitantes.3 Sem dúvida, o númerode pessoas que se locomovem por motivo de saúde é bastan-te significativo, correspondendo a cerca de 600 mil, uma vezque o deslocamento de uma pessoa inclui, em sua maioria,duas viagens (ida e volta), o que equivale a se imaginar umacidade inteira de porte médio – como Osasco – se movimen-tando diariamente.

Uma das questões colocadas diante do fluxo estabeleci-do nas VPMS reside em cotejá-lo com as políticas de saúdeimplementadas no período 1987-1997. O recorte salientadorefere-se à análise da capacidade dos municípios da RMSPpara reter em seus territórios as VPMS neles originadas.

Essa opção decorre da constatação do peso dos proces-sos de municipalização nas políticas públicas de saúde estabe-lecidas nesse período. Uma das diretrizes foi a adscrição daclientela tendo como referência a base municipal, e as expe-riências de gestão intermunicipal da saúde, sob a forma deconsórcios, foram e são ainda bastante incipientes e raras.4

Mesmo considerando-se que uma significativa parcelada população da RMSP (44,0%) possui convênio médico,5

seria previsível que a execução das políticas supracitadasse refletisse em um aumento da capacidade do municípiode reter as suas VPMS; ou seja, seria possível identificarum padrão de alteração no fluxo das VPMS entre 1987 e1997, provavelmente um aumento das VPMS retidas e umadiminuição da atração para a capital.

O Mapa 1 apresenta o panorama encontrado em 1987,registrando poucos municípios que retêm mais de 90% dassuas VPMS. Em 1997, como pode ser visto no Mapa 2,ocorreu o inverso do que se previa: apenas os municípiosde Cotia e São Paulo mantiveram retenção superior a 90%das suas VPMS. Uma primeira constatação seria a ocorrên-cia de uma diminuição da capacidade de retenção dos muni-cípios entre 1987 e 1997, que parece imediatamente parado-xal com as lógicas das políticas de saúde do período.

Entretanto, é importante qualificar a existência de doispadrões distintos naqueles municípios que apresentam per-centuais elevados de retenção: pode existir realmente apossibilidade de se obter a atenção desejada no própriomunicípio, ou pode-se estar diante de um índice de mobi-lidade muito baixo e uma demanda bastante reprimida. Parabuscar evidenciar ambas as possibilidades compara-se onúmero de deslocamento pela população, padronizandonovamente para 100 mil habitantes. Assim, enquanto SãoPaulo apresenta um índice de 4.140 viagens por 100 milhabitantes, esse índice diminui para 3.074 em Mogi dasCruzes, 2.405 em Cotia, 1.404 em Embu-Guaçu e 843 emJuquitiba, todos municípios com alto grau de retenção em1987.

De qualquer forma, uma parte considerável dos muni-cípios da RMSP não consegue, seja em 1987 ou em 1997,fixar as VPMS em seus territórios. Exceto a capital, a es-cala municipal parece não ser suficiente, na RMSP, paradesenhar o fluxo da busca de atenção à saúde.

Não obstante, quando se muda a escala de análise e seopta pela escala metropolitana tomando-se como referên-cia as sub-regiões (Mapa 3), pode-se observar um outrofluxo, detalhado na Tabela 1. Com exceção da sub-regiãosudoeste, as demais retiveram percentuais superiores a 75%das VPMS originadas nos municípios que as compõem.A sub-região sudeste foi a que mais atraiu as VPMS nelaoriginadas e registrou a menor atração para a capital. Deve-se observar, no entanto, que as VPMS foram atraídas paradeterminados municípios que funcionam como pólo deatração – Guarulhos, Osaco, Mogi das Cruzes, SãoBernardo do Campo e Santo André.

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MAPA 1

Percentual de Retenção das Viagens por Motivos de Saúde no Município de OrigemRegião Metropolitana de São Paulo – 1987

MAPA 2

Percentual de Retenção das Viagens por Motivos de Saúde no Município de OrigemRegião Metropolitana de São Paulo – 1997

Fonte: Bousquat, 2000.

Fonte: Bousquat, 2000.

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A METRÓPOLE PAULISTA E A SAÚDE

MAPA 3

Sub-Regiões MetropolitanasRegião Metropolitana de São Paulo – 1997

Fonte: Metrô, 1998.

TABELA 1

Viagens por Motivo de Saúde, por Local de Atração, segundo Sub-Regiões MetropolitanasRegião Metropolitana de São Paulo – 1987-1997

1987 1997Sub-RegiãoMetropolitana Viagens Viagens na Viagens Viagens na

Atraídas para Região Pólo Regional Atraídas para Região Pólo Regionala Capital (%) (%) a Capital (%) (%)

Norte 22,0 76,9 29,6 63,0Nordeste 21,2 78,8 Guarulhos (74,5%) 20,3 73,0 Guarulhos (70,0%)Leste 14,0 80,0 Mogi das Cruzes (42,8%) 14,5 82,1 Mogi das Cruzes (47,3%)Sudeste 11,7 88,3 Santo André (32,0%) 12,8 87,2 Santo André (36,2%)

São Bernardo (28,5%) São Bernardo (26,5%)Sudoeste 51,5 43,0 49,7 47,4Oeste 22,2 77,0 Osasco (51,3%) 16,0 83,1 Osasco (56,0%)

Fonte: Bousquat, 2000.

A capital (sub-região metropolitana centro) não só re-teve 96,1% das VPMS originadas em seu território, masfuncionou como o mais importante pólo de atração dasVPMS originadas no conjunto da RMSP.

Assim, as sub-regiões metropolitanas revelaram-se ca-pazes, exceto a sub-região sudoeste, de reter a grandemaioria das VPMS originadas em seu próprio território.Na verdade, desenharam-se lógicas de deslocamentos re-gionais e não municipais, mas sempre mantendo um fluxocom a capital.

A seguir, um detalhamento das dinâmicas da sub-re-gião metropolitana sudeste, a região do ABC, uma regiãoque reteve o maior número de VPMS, mas desta vez sali-entando a dinâmica de utilização dos serviços.

O ABC E OS SERVIÇOS DE SAÚDE

O ABC, uma região com cerca de 2 milhões de habi-tantes, congrega sete municípios (Santo André, SãoBernardo do Campo, São Caetano do Sul, Diadema, Mauá,

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Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra) e reúne uma sé-rie de contradições, fruto de um modelo de desenvolvi-mento socioeconômico, político e cultural que confor-mou uma região com “identidade própria”, ligada,todavia, ao processo histórico de conformação socio-espacial da capital.

Ao analisar especificamente o desenvolvimento daspolíticas de saúde na região, há uma presença bastanteimportante do setor privado de saúde, pois o setor públi-co passou a ter nova configuração no seu padrão de aten-ção à saúde somente a partir do processo de descentrali-zação, com a Constituição de 1988.

Essa nova configuração do modelo de atenção à saú-de, portanto, coincide com a mudança do perfil econômi-co da região, em consonância com o que aconteceu noconjunto da RMSP, descrito anteriormente, no qual sesomam a ampliação do setor de serviços, a escassez doemprego, o desemprego, entre outros, num processo quecausou impacto ao setor de saúde, pois ampliou a deman-da ao setor público de um contingente populacional queperdeu o direito aos convênios médicos.

Para ilustrar essa situação foram utilizados os parâme-tros das condições locais da estrutura de serviçosassistenciais de saúde (ambulatorial e hospitalar), a pro-dução dos serviços realizados e a dinâmica intermunici-pal de utilização dos hospitais públicos na região.

De certa forma, com a implantação do SUS na região,verificou-se uma expansão dos serviços nos municípiosdo ABC,6 principalmente à custa da atenção ambulatorial,permanecendo um impasse sobre o atendimento especia-

lizado ambulatorial e o hospitalar. Mesmo nesse caso foipossível identificar uma ampliação na oferta de leitospúblicos na região (Nascimento, 2000), e pode ser maisum elemento que explique a atração de VPMS para a ca-pital, apontada anteriormente.

A partir da análise da produção ambulatorial, apesarda grande dificuldade na disponibilidade de dados, emespecial pelas constantes mudanças nos procedimentos enos registros das informações, pode-se evidenciar asdisparidades encontradas na região. O município de San-to André foi o que incorporou o maior grau de tecnologia,enquanto no outro extremo estava Rio Grande da Serra,com capacidade apenas para ofertar serviços de atendi-mento básico à saúde. Embora Diadema, Mauá, SãoBernardo do Campo e São Caetano do Sul apresentassemvalores per capita elevados nos gastos com a saúde, osprocedimentos realizados concentraram-se proporcional-mente na atenção de menor custo, ou seja, na atenção bá-sica. Os dados disponíveis, entretanto, são insuficientespara uma análise mais precisa sobre a modalidadeambulatorial na região, apenas indicando uma situaçãomuito desigual entre os municípios (Nascimento, 2000).

Ao analisar a rede hospitalar pública verificou-se que,no início da implantação do SUS, apenas os municípiosde Mauá, Santo André e São Bernardo do Campo pos-suíam leitos públicos, embora funcionando precariamen-te. Nos anos seguintes à implantação observou-se um in-cremento no número de leitos na região. Ao lado disso,houve diminuição do número de leitos privados na regiãocomo pode ser verificado na Tabela 2.

TABELA 2

Evolução no Número de Leitos Gerais (1)Municípios do Grande ABC – 1990-1997

Hospitais Públicos Hospitais PrivadosHospitais Número de Leitos

Universitários per capitaMunicípios Estadual Municipal Lucrativo Não-Lucrativo

1990 1997 1990 1997 1990 1997 1990 1997 1990 1997 1990 1997

Total 200 0 226 737 3.004 2.691 864 643 56 64 2,1 1,7Santo André 0 0 114 172 976 971 203 76 0 0 2,1 1,9São Bernardo do Campo 0 0 0 51 1.069 1.105 0 0 56 64 2,8 1,7São Caetano do Sul 0 0 112 103 157 172 495 354 0 0 5,1 4,7Diadema 0 0 0 221 426 275 0 0 0 0 1,4 1,5Mauá 200 0 0 160 246 68 110 113 0 0 1,9 0,9Ribeirão Pires 0 0 0 30 130 100 0 0 0 0 1,6 1,2Rio Grande da Serra 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0

Fonte: CAH-106/ Datasus/Fundação IBGE.(1) Não foram considerados os leitos psiquiátricos.

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A METRÓPOLE PAULISTA E A SAÚDE

Em termos regionais, pode-se afirmar, portanto, que aoferta de serviços públicos de saúde aumentou considera-velmente, como também se diversificou o espectro deações, procurando atender às distintas demandas dessecomplexo setor. Esse perfil, no entanto, manteve um níti-do padrão intra-regional de absorção da demanda por ser-viços de saúde, como será visto a seguir, confirmando alógica de funcionamento metropolitana apontada na se-ção precedente.

A Dinâmica de Utilização dos Serviços

Por meio da informação oferecida pelo Datasus sobrea origem do paciente submetido à internação hospitalarpela Guia de Autorização de Internação Hospitalar (AIH),verifica-se que as internações ocorridas no ABC não obe-deceram a uma lógica racional de referência hospitalarpactuada previamente nos termos dos parâmetros de ne-cessidade versus oferta de serviços, afirmação possível

GRÁFICO 1

Internações, por Especialidade, segundo Origem e Destino do PacienteMunicípios do Grande ABC – 1998

Fonte: Datasus/AIH.

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pelo modo de utilização desses serviços, porque obede-cem a uma lógica metropolitana, ultrapassando os limitesterritoriais municipais.

Detendo-se no fluxo de usuários em termos intra-re-gionais (Gráfico 1), nota-se que os municípios de SantoAndré e Mauá foram os que mais atenderam a uma gamadiversificada de necessidades hospitalares (obstetrícia,clínica médica, clínica cirúrgica e pediatria), absorvendoa clientela de praticamente todos os municípios da região,inclusive de São Paulo. Talvez a explicação para isso es-teja na história dos hospitais – Municipal de Santo Andrée Nardine, em Mauá –, que já apresentavam característi-cas regionais antes da implantação efetiva do SUS. Nosdemais municípios, registrou-se uma invasão menor, jus-tamente por terem concebido seus serviços dentro da ló-gica do SUS – Municipal. Todavia, registra-se um inten-so desgaste das Secretarias Municipais de Santo André eMauá, por não terem conseguido reverter essa situaçãoque compromete acentuadamente sua governabilidade,uma vez que o aumento dos gastos com a saúde tem sidoinversamente proporcional à satisfação dos seus munícipes.Os prefeitos e secretários de saúde dessas cidades alegamque essa invasão de munícipes de outras cidades impedeque haja um melhor atendimento à população local, por-quanto mais de 50% dos recursos destinados à saúde aca-bam sendo absorvidos pela assistência hospitalar, a mo-dalidade assistencial em que a invasão se faz mais presente.Como conseqüência, os munícipes dessas cidades ficamdescontentes porque ao necessitar de uma vaga parainternação são colocados na mesma condição dos pacien-tes de outras cidades e submetidos a serviços com condi-ções adversas, como prontos-socorros lotados, internaçõesem macas nos corredores, transferência para outros hos-pitais da Região Metropolitana, etc., comprometendo a“imagem” do governo municipal. Isso gera uma tensãomuito grande entre os municípios da região, avaliada pe-los gestores municipais de saúde como de difícil soluçãoa curto prazo (Nascimento, 2000).

A perspectiva da lógica metropolitana paulista contri-bui com aspectos relevantes para o processo de formula-ção e implementação das políticas públicas de corte so-cial, neste caso as de saúde. Não é possível pensar ematendimento equânime das necessidades de saúde na me-trópole, sem incorporar as questões desencadeadas por seu

processo de conformação espacial e suas dinâmicas so-cial, econômica e política aí estabelecidas.

NOTAS

E-mail das autoras: [email protected] e [email protected]

Este artigo é um dos resultados das teses de doutorado de Bousquat (2000) e deNascimento (2000).

Deve-se ressaltar a importância da orientação da Profa. Dra. Amélia Cohn, sem aqual teria sido impossível a elaboração das teses, e da colaboração da Diretoriade Planejamento e Expansão dos Transportes Metropolitanos do Metrô, que ce-deu a Tabulação Especial da Pesquisa Origem-Destino.

1. Em 1960 a capital respondia por cerca de 60% do VTI do Estado de São Paulo,valores que diminuem progressivamente chegando em cerca de 30% em 1985.Fonte: FIBGE, Censos Industriais 1960-1985.

2. Assume-se aqui a definição de fluxos proposta por Castells (1999:436): “asseqüências intencionais, repetitivas e programáveis de intercâmbio e interaçãoentre posições fisicamente desarticuladas, mantidas por atores sociais nas estru-turas econômica, política e simbólica da sociedade”.

3. Os índices foram: 3614,5 em 1987 e 3525,5 em 1997.

4. Na área de saúde houve um consórcio na década de 80 entre as cidades deFerraz de Vasconcelos, Itaquaquecetuba e Poá, que não perdurou até os anos 90.

5. Fonte: http://www.seade.gov.br – Pesquisa de Condições de Vida, 1994.

6. Entre 1988 e 1998 o número de unidades básicas de saúde na região passou de118 para 190 (Nascimento, 2000).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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PLANO DIRETOR EM SANTOS: POLÍTICA NEGOCIADA

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PLANO DIRETOR EM SANTOSpolítica negociada

SONIA NAHAS DE CARVALHO

Socióloga, Analista da Fundação Seade

Resumo: O presente trabalho discute as possibilidades da política participativa de planejamento urbano, coma alteração do equilíbrio de forças sociais consolidadas em matéria urbana. A análise recupera a experiênciados dois governos do PT em Santos, no período 1989-96, identificando as estratégias que orientaram as rela-ções entre o Executivo municipal e os grupos sociais ligados à produção imobiliária urbana. O governo Telmade Souza priorizou a questão fundiária, e as relações com esses grupos, pautadas pelo confronto, evoluírampara o impasse, interrompendo-se o processo da política. O governo David Capistrano Filho priorizou o fo-mento das vocações econômicas locais, e as articulações com o setor da construção urbana permitiram formu-lar uma alternativa negociada de política.Palavras-chave: plano diretor; planejamento urbano; participação; governo municipal; Brasil pós-1988.

cidade de Santos, fundada logo após a descober-ta do Brasil, expandiu-se somente a partir da se-gunda metade do século XIX, em processo inte-

tica e a abertura de novas ligações viárias: a Rodovia dosImigrantes e a Ponte do Mar Pequeno.

Em Santos, foram introduzidas novas atividades eco-nômicas, em especial comerciais e de serviços, e a cida-de, que tinha na função portuária sua principal tendência,viu estimulada sua vocação turística, elevando-se acentua-damente o fluxo de visitantes provenientes do planalto einterior do Estado. O caráter regional das novas ativida-des econômicas contribuiu para a redefinição das relaçõesentre os municípios da baixada e confirmou a posição deliderança ocupada por Santos – uma liderança que a re-força como centro regional de comércio e serviços.

As transformações urbanas que se identificam na cida-de associam-se à especificidade do turismo implementa-do – caracterizado pela opção de compra de imóveis parao lazer –, aos novos fluxos migratórios e às opções de localde residência da população. Esses fluxos, provenientes,em sua maioria, de outras regiões brasileiras, compõem-se basicamente de trabalhadores atraídos pelas oportuni-dades de emprego geradas pela dinamização da constru-ção civil e das obras públicas.

A intensidade dos deslocamentos resultou em taxas decrescimento populacional mais elevadas para a região doque propriamente para o município de Santos,2 pois ascaracterísticas físicas de seu território restringem as op-ções de instalação desses contingentes de população. Deum lado, a área urbanizada do município está restrita à

grado ao desenvolvimento da cultura cafeeira no Estadode São Paulo. Essa expansão associou Santos ao cresci-mento econômico do Estado de São Paulo e, desde então,o município vem se firmando como pólo regional que fa-voreceu o aparecimento e a consolidação das cidades doentorno.

Nos anos 50 do século XX, a cidade sofreu profundastransformações, que alteraram seu perfil socioeconômicoe redefiniram suas relações com os municípios da Baixa-da Santista. Para tanto, foram decisivos os investimentospúblicos que resultaram na abertura da ligação rodoviáriaentre o planalto e a baixada, com a inauguração da viaAnchieta, em 1947, iniciativa que contribuiu para acen-tuar a vocação turística da cidade e dos demais municí-pios da região; e, na década de 50, na instalação do póloindustrial em Cubatão,1 complexo industrial voltado parao fornecimento de insumos para a indústria de bens durá-veis que se desenvolvia no planalto e que passaria a cons-tituir o principal foco dos movimentos migratórios para abaixada. Nos anos 60 e 70, o crescimento desse pólo in-dustrial intensificou-se, bem como se expandiram e diver-sificaram as atividades portuárias e aumentaram os flu-xos turísticos, pari passu ao desenvolvimento econômicodo planalto, com a implantação da indústria automobilís-

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sua porção insular – correspondendo a somente 39,4 km2

de uma área total de 474 km2.3 Na sua parte continental,somente no antigo distrito de Bertioga havia alguma con-centração populacional, mesmo assim de baixa proporção.4

De outro lado, a oferta reduzida de áreas livres e as con-dições de habitabilidade satisfatórias existentes na ilha –dadas as elevadas coberturas dos serviços de infra-estru-tura e de equipamentos sociais – elevam os custos demoradia.

Dentro desse quadro, na porção insular do territóriosantista, as únicas opções para os segmentos populacio-nais de baixa renda têm sido a ocupação de áreas nosmorros, que se adensam e passam a assumir nítidas fei-ções de favela; o deslocamento para a Zona Noroeste, oque leva inclusive à favelização de áreas de mangues erestingas; e a ocupação das áreas residenciais deteriora-das do centro da cidade, acelerando o processo deencortiçamento. Porém, essa população instala-se tambémem áreas de pior oferta de infra-estrutura dos municípiosde Cubatão (Jardim Casqueiro), São Vicente (Humaitá eSamaritá), Guarujá (Vicente de Carvalho) e Praia Gran-de, e, dessa forma, ultrapassa os limites municipais deSantos. Os empregados de salários mais elevados das in-dústrias instaladas em Cubatão optam por residir em San-tos, um município que, além de uma rede instalada de ser-viços de infra-estrutura e de equipamentos sociais, ofereceoutros serviços urbanos e comerciais mais sofisticados.

O impacto sobre a configuração urbana de Santos épercebido, à primeira vista, no paredão de edifíciosresidenciais construídos ao longo da orla marítima. Umdocumento da prefeitura municipal identifica-o tambémna redistribuição espacial de sua população: “As famíliasresidentes de maior renda passaram a ocupar um novoespaço – na área denominada Vila Rica, entre as avenidasAna Costa e Conselheiro Nébias; a classe de renda médiatransferiu-se para bairros mais centrais; e as famílias demenor renda começaram a transferir-se para áreas menosvalorizadas como a zona noroeste e os morros, além dasmargens dos rios e canais naturais onde surgem as favelasde palafitas” (Sedam, 1992:4). As atividades comerciaise de serviços no território de Santos localizam-se predo-minantemente nos bairros pertencentes à área central e nosbairros do Gonzaga e Boqueirão, na faixa da orla. Os de-mais caracterizam-se por uma ocupação predominantemen-te residencial, à exceção dos bairros da entrada da cida-de, cuja ocupação está associada às atividades portuáriase retroportuárias ligadas ao transporte e à armazenagemde carga.

O padrão socioespacial de Santos, se pouco se distin-gue do verificado na maioria das cidades brasileiras, étambém fruto das características do desenvolvimento daregião que lhe atribuiu a liderança sobre os municípios doentorno, sem, contudo, privá-la dos mesmos problemas queos afetam. Solucioná-los, porém, pressupõe instrumentosurbanos que dependem prioritariamente de decisões afe-tas à esfera municipal de governo, em face das regras ins-titucionais brasileiras, reforçadas com o restabelecimentodo município como ente federado, conforme determinoua carta constitucional de 1988. Quanto à política urbana,a Constituição dedicou um capítulo ao tema, em querecolocou o planejamento urbano na pauta das políticasurbanas e elegeu o plano diretor – de responsabilidade dopoder público municipal, elaborado e executado pelo Exe-cutivo e transformado em lei pelo Legislativo – como ins-trumento básico à ordenação da cidade.

Em Santos, o plano diretor, elaborado nos anos 90,fundava-se em um diagnóstico do processo de ocupaçãourbana que enfatizava os efeitos indutores do desenvol-vimento das principais atividades econômicas e definiao papel do município no contexto regional. Para os go-vernos do Partido dos Trabalhadores – Telma de Souza(1989-92) e David Capistrano Filho (1993-96) –, trataros problemas urbanos implicava também seguir duas di-retrizes gerais. A primeira era, claramente, a orientaçãomais geral do partido aos seus membros em cargoseletivos, cunhada na expressão inversão de prioridades.Inverter prioridades na alocação de recursos públicos erao mecanismo adotado para minimizar as desigualdadessociais. O padrão esperado de intervenção pública seriao de buscar alcançar a cidade homogênea, intensifican-do ações e investimentos públicos nas porções da cida-de mais mal-atendidas por serviços e equipamentos ur-banos. Não se tratava mais de buscar a cidade equilibradae ordenada preconizada pelas soluções urbanas dominan-tes nos anos 60 e 70 e que se encontravam em vigor nacidade desde 1968, com o Plano Diretor Físico entãoaprovado.

A segunda diretriz era implantar e consolidar um pro-jeto democrático de governo, com o apoio e estímulo àparticipação popular no processo das políticas públicas.Para tanto, seria necessário fomentar a organização po-pular e criar instâncias para sua representação, como osconselhos municipais.5 No caso do planejamento urbano,a implantação dessa diretriz significava, inclusive, alterara composição de forças sociais representada no ConselhoConsultivo do Plano Diretor (Coplan), instituído em 1968,

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de forte presença dos setores ligados à produção imobiliá-ria urbana.

A política de planejamento urbano a ser executada como plano diretor era, assim, a proposta de uma política pú-blica participativa que, esperava-se, alterasse o equilíbriode forças sociais historicamente representadas em políti-cas dessa natureza, pois manter o mesmo perfil de partici-pação social significava dar continuidade à tendência dedefinição dos grupos sociais com os quais a política urba-na historicamente dialoga.

Assim, não é de surpreender que o perfil social repre-sentado no conselho do plano diretor fosse fortementemarcado por aqueles setores, assim como o campo maisgeral que tradicionalmente delimita quais são os proble-mas urbanos e de que modo são normalmente tratados.Nessa linha de interpretação, Margareth Weir (1992:191)afirma que é a forma como as políticas existentes se de-senvolvem que define alguns grupos como vozes autori-tativas em um campo particular de política e, simultanea-mente, torna outras vozes de menos credibilidade. Aspolíticas já desenvolvidas, além disso, influenciam o le-que de soluções possíveis e fornecem analogias das quaispolíticos e policy-makers utilizam-se para julgar futurasopções.

Diferentemente desse quadro geral e histórico, a natu-reza participativa da política de planejamento urbano emSantos significava mudar o padrão de definição dos ins-trumentos reguladores da produção do espaço urbano fun-dado na interlocução – e, muitas vezes, parceria – com osgrupos ligados ao setor de produção imobiliária urbana,sejam seus segmentos empresariais, sejam os profissio-nais que lhes dão suporte.

Cada uma das administrações do período comportou-se de forma distinta nessa interlocução. Sem que tivesseadquirido os contornos formais de um programa de go-verno, a gestão Telma de Souza valeu-se da obrigato-riedade de elaboração dos planos diretores imposta pelaConstituição de 1988 para discutir a questão fundiária e aregulação pública do solo urbano. Essa foi a questão po-lítica prioritária de seu governo, e as possibilidades deproposição foram oferecidas pelas condições políticas que,consagradas pela Constituição de 1988, atribuíram maiorautonomia à esfera municipal de governo para formular eimplementar políticas.

Em face dessas condições, o plano diretor foi visto comoinstrumento que propunha realizar a reforma urbana dis-cutida nos anos 80, por intermédio do governo municipal.Assim, ele abriu caminho para a discussão da questão

fundiária e a proposição de instrumentos reguladores dosolo urbano que contivessem mecanismos de separaçãoentre o direito de propriedade e o de construir.

O governo David Capistrano Filho, já mais distante dasteses da reforma urbana dos anos 80 e com a experiênciade governo acumulada pelo PT, atribuiu outra prioridadeao plano diretor, abandonando as metas de realização deuma reforma urbana. O conteúdo atribuído ao plano dire-tor expressou o esforço da liderança do Executivo de in-tegrar as diversas iniciativas públicas para o fomento dasvocações econômicas locais, de cidade portuária e turís-tica e de centro comercial e de serviços. A diretriz de es-timular as vocações da cidade fixou metas e alinhou pro-gramas considerados mais adequados ao contexto dos anos90, e o plano diretor, além de plano de uso do solo, foitambém plano de governo e de desenvolvimento.

No governo Telma de Souza as relações com os seto-res sociais ligados ao mercado imobiliário urbano evoluí-ram para o impasse, comprometendo a continuidade dapolítica, pelo menos no que dizia respeito à estruturaçãodos instrumentos básicos de regulação da produção urba-na do município em sua porção insular. No governo DavidCapistrano Filho, o deslocamento do eixo central da polí-tica favoreceu a conciliação, negociando-se, com essesmesmos setores, a proposta de plano diretor que, trans-formada em projeto de lei, alcançou a esfera legislativa.Vejamos com mais vagar esse processo.

CONFRONTO E NEGOCIAÇÃO POLÍTICA

A política de planejamento urbano do governo Telmade Souza não continha a clareza necessária quanto aospassos a serem percorridos e aos instrumentos técnicos aserem adotados. Em seu lugar, tinha-se a certeza da mo-dalidade de planejamento que não se queria desenvolver,e que se apoiava na crítica às experiências brasileiras an-teriores de planejamento urbano. Era claro também que odesenvolvimento da política teria, por condição básica, aintegração dos mais amplos setores sociais ao seu proces-so. Perseguir essa meta era atender às diretrizes de gover-no, que continham, entre os princípios fundamentais deação, a democratização da gestão pública, com a dissemi-nação do acesso às informações e a incorporação da par-ticipação popular no processo de formação das decisões.

Assim, a política de planejamento urbano pressupunhaa incorporação prioritária da participação dos setores so-ciais que, em geral, são excluídos do processo de decisãode políticas e dos benefícios decorrentes das ações dos

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agentes públicos e privados sobre a cidade; pressupunha,ainda, o rompimento com as soluções tradicionalmenteadotadas no Brasil de disciplinamento do uso e ocupaçãodo solo urbano, propondo-se, em seu lugar, instrumentospúblicos de caráter redistributivo. Ampliar a participaçãono processo de formação da política significou enfrentarproblemas de diferentes ordens. Do mesmo modo, os es-forços por romper o padrão dominante de política trouxe-ram as dificuldades próprias de propostas de mudança. Taisproblemas e dificuldades, que eram previsíveis, surgiramdas ações e reações dos principais atores envolvidos edesenharam a política no governo Telma de Souza.

A alternativa politicamente possível conformou ummodelo de política que foi por nós denominado de seg-mentação por projeto – expressão do resultado da intera-ção entre os principais atores envolvidos em um processomarcado por dois eixos distintos: tratamento integral daporção insular do território santista e tratamento de temá-ticas urbanas específicas. Em outras palavras, uma políti-ca que se caracterizou, em seu primeiro eixo, pelos obstá-culos que impediram o avanço das discussões em face daoposição dos setores sociais ligados ao mercado imobi-liário, e, no segundo, pela interação entre os atores envol-vidos, conduzindo à aprovação dos instrumentos de regu-lação urbanística referentes à questão ambiental e à dehabitação de interesse social. Este último caso permitiuao governo atender a algumas prioridades, como a de in-tegrar à cidade “legal” os setores sociais excluídos dosbenefícios urbanos, com a instituição de mecanismos deregulação do uso e ocupação do solo em áreas de favelas,de cortiços e em vazios urbanos, destinados à habitaçãode interesse social.

Como decorrência, à natureza redistributiva, original-mente proposta, associou-se um sentido compensatório,pois a abrangência do zoneamento especial de interessesocial ficou restrita às porções do território santista jáocupadas pela população de baixa renda. Simultaneamente,o caráter redistributivo da política foi redefinido, visto quea própria segmentação da política expressou a maneiracomo os conflitos locais foram administrados, conduzin-do-a para uma arena distributiva, ao restringir as articula-ções entre o Executivo e os segmentos populares nas de-finições relativas aos problemas habitacionais de interessesocial e entre este poder e os setores sociais ligados aomercado imobiliário nas questões sobre regulamentos bá-sicos do uso e ocupação da cidade.

Desenvolver uma política que apostasse na ampliaçãoda participação como mecanismo para alterar o equilíbrio

de forças preexistentes colocou, para o governo, um du-plo desafio. Em primeiro lugar, houve dificuldades de mo-bilização popular em um quadro local marcado pelo bai-xo nível de organização dos setores de menor renda, emespecial aqueles de base urbana. Essas dificuldades, nãosuperadas, incluíram, de um lado, a não-mobilização denovos segmentos sociais e, de outro, as críticas formula-das dentro da própria máquina de governo ao processo decondução da política. Além dessas, houve outras, locali-zadas no único espaço institucional de articulação entre opoder público e a sociedade santista, o Conselho Consul-tivo do Plano Diretor (Coplan), e que foram estratégicaspara os resultados da política.

O segundo desafio situou-se no âmbito desse mesmoconselho. Para uma política que pressupunha instituirmecanismos de participação social, a condição institucio-nal era dada com a existência do Coplan. Porém, esseconselho era um espaço cuja composição remontava àépoca de sua criação em 1968 e que privilegiava algunssetores sociais. Formalmente, era a instância de compe-tência para articular, representar e expressar as forçassociais locais em matéria de plano diretor. Mesmo para ogoverno do PT, a existência desse conselho não estava emquestão, o que é atestado pela própria regularidade de fun-cionamento e sistemática de convocação das reuniões pelogoverno. De novembro de 1989 – data da primeira con-vocação – a novembro de 1992 – final do governo –, oconselho reuniu-se 40 vezes, o que representou uma mé-dia anual superior a 12 reuniões. Para o governo, não sequestionavam também as atribuições legais de órgão con-sultivo. Ao contrário, entendia-se a função do conselhocomo complementar à função legislativa da Câmara.

O que, de fato, o governo questionava era o perfil deforte acento dos grupos dominantes ali representados, poiso conselho expressava apenas uma parcela da ampla gamasocial, sendo os segmentos populares sub-representados.Não obstante questionar seu perfil, o governo santista deTelma de Souza não empreendeu nenhuma ação no senti-do de alterá-lo. As iniciativas foram localizadas e se res-tringiram às solicitações da subprefeitura de Bertioga6 edo Conselho de Defesa do Patrimônio Cultural e Artísti-co do Município de Santos, que tiveram encaminhamen-tos distintos, e à incorporação dos representantes da Câ-mara municipal, porém respaldada pela lei de criação doconselho.

Incorporar novos membros ao Coplan implicava alte-rar a lei de 1968 que havia criado esse conselho. A orien-tação geral adotada foi a de se aguardar a revisão global

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do plano diretor, em curso, para incluir as mudanças decomposição. Indagada sobre a ausência de mudança decomposição do conselho, a então secretária de Desenvol-vimento Urbano e Meio Ambiente afirmou que os esfor-ços de mudança ou ampliação não foram empreendidos“até para não criar mais atritos” com os membros conse-lheiros.7

Como conseqüência, o Coplan manteve-se como fórumde representação majoritária dos interesses produtores dacidade, e as dificuldades à incorporação de novos segmen-tos sociais e ao rompimento com a concepção anterior deplano diretor inviabilizaram a proposta original do Exe-cutivo municipal. Como a composição de forças sociaisrepresentadas nesse conselho impossibilitou as iniciativaspara alterar sua composição, o governo precisou buscarnovos espaços, ainda que pouco formalizados, de partici-pação popular para a discussão e elaboração de suas pro-postas. O desenho segmentado da política foi, assim, con-solidando-se nesse processo, e as alternativas de tratamentoda questão fundiária e de incorporação da participação po-pular foram realizadas, com maior intensidade, na discus-são do problema habitacional e, menor, na questão am-biental para a área continental do município. Por sua vez,o Conselho Consultivo do Plano Diretor permaneceu inal-terado em sua composição e consolidou-se como o espa-ço institucional dos conflitos em torno dos instrumentoscentrais da política, quais sejam, os instrumentos relati-vos à regulação do uso e ocupação do espaço urbano daporção insular do município.8

Proposta de Plano Diretor: Impasse nas Negociações

As premissas básicas que fundaram a proposta urbanapara a porção insular de Santos enfatizaram as conseqüên-cias sobre as demandas de equipamentos sociais e de infra-estrutura urbana produzidas pelos adensamentos tópicoscaracterísticos do processo de crescimento urbano santista.Além disso, o plano diretor foi concebido como instrumentode orientação do crescimento urbano com qualidade de vida,de incorporação das áreas precárias do território urbano quecrescem e se estruturam à margem dos regulamentos urba-nos e de democratização da cidade.

Com base nessas premissas, os objetivos da propostado governo foram: distribuição justa dos ônus e benefí-cios decorrentes das melhorias da infra-estrutura urbana;racionalização do uso dessa infra-estrutura; incorporaçãoda cidade informal à cidade real; otimização da correla-ção entre as funções urbanas; preservação, proteção e re-

cuperação do ambiente natural e urbano; e democratiza-ção da gestão urbana.9

A concepção de intervenção, que realizaria esses obje-tivos, tinha como prioridade disciplinar o adensamentourbano de forma a atender às necessidades sociais não-satisfeitas, geradas pelo próprio processo histórico deocupação da cidade. Tal concepção fundamentava-se naconstatação de que os instrumentos legais existentes, emparticular os índices urbanísticos estabelecidos pela lei doPlano Diretor Físico de 1968, haviam sido insuficientespara atender a essas necessidades, e, em seu lugar, propu-nha a divisão territorial da Santos-ilha em zonas dedisciplinamento do adensamento urbano e a adoção de umíndice padrão de ocupação e aproveitamento do lote. Paracada zona de adensamento, delimitada em conformidadecom as características da ocupação existente, foram fixa-dos os valores máximos de aproveitamento e ocupação.

Fundada nessa concepção, a proposta elaborada dis-tinguia-se da definição de zonas de usos urbanos prefe-renciais, características do zoneamento funcional, pois nãosegregava atividades urbanas “cuja incompatibilidade entresi fosse passível de medidas de controle, objetivando, comisso, democratizar o espaço”. A incompatibilidade entreatividades seria avaliada “pelo desconforto e risco a quepossa estar submetida, num determinado momento, par-cela da população, ou pelo comprometimento da integri-dade dos patrimônios público e privado. As atividades,cujas medidas mitigadoras não permitam sua convivênciacom as demais, ficaram restritas a uma zona ao longo dasbordas leste e norte da ilha”.10

O modelo proposto completava-se com a adoção de umíndice padrão que corresponderia a uma taxa de ocupaçãode 50% e um coeficiente de aproveitamento de duas vezesa área do lote, ressalvando-se os índices específicos na re-gião dos morros. Com a possibilidade de exploração dopotencial construtivo do lote, o índice de aproveitamentopoderia chegar até seis vezes a sua área, desde que a ocu-pação máxima fosse igual a 25% do lote. Nesses casos, combase no conceito de que vertilicalizar é parcelar vertical-mente o lote, pressupunha-se a contrapartida ao poder pú-blico correspondente a 25% da área do lote a ser atendidapelo empreendedor e destinada a suprir a carência de lo-gradouros e equipamentos públicos, bem como a adequa-ção do sistema viário.11 A instituição desse índice padrãoseria o instrumento central da reforma urbana, requeridapara se alcançar a igualdade no acesso aos benefícios cole-tivos gerados na cidade e, dessa maneira, imprimir conteú-do redistributivo à política de planejamento urbano.12

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A proposta baseada no zoneamento por adensamento ena adoção de um índice padrão contrariava, em particu-lar, os interesses ligados ao mercado imobiliário urbano.Esse setor, não obstante reconhecer a inadequação dos ins-trumentos urbanísticos vigentes desde 1968 à realidadedos anos 90, opôs-se sistematicamente à proposta do Exe-cutivo, marcando sua presença na maioria absoluta dasreuniões do Coplan realizadas. Das 40 reuniões realiza-das, a Associação dos Empresários da Construção Civilda Baixada Santista (Assecob), principal entidade de re-presentação dos interesses do mercado imobiliário local,compareceu a 37 reuniões. Ao seu lado, alinharam-se osrepresentantes do Sindicato das Empresas de Compra,Venda, Locação e Administração de Imóveis Residenciaisde São Paulo (Secovi) e do Sindicato da Indústria da Cons-trução Civil de Grandes Estruturas do Estado de São Pau-lo (Sinduscon), com comparecimento superior à metadedas reuniões.

As diferenças conceituais entre as propostas dos repre-sentantes do setor da construção civil e do Executivomunicipal, bem como as relações conflituosas entre am-bos, rapidamente evoluíram para o impasse, com a Assecobapresentando uma contraproposta ao projeto do governo,que considerava o “fator custo” – entendido como a via-bilidade de mercado para a definição dos índices urbanís-ticos a serem utilizados – elemento estruturador central.De forma sintética, essa proposta explicitou a posição dosempresários do setor da construção civil, partidários daadoção de índices de aproveitamento e ocupação diferen-ciados segundo porções do território urbano do municí-pio, bem como da manutenção do zoneamento por zonasde usos urbanos predominantes.

Afinal, o que estava em jogo? A proposta do governo,especialmente através do solo criado, era a de instituir novopadrão de relacionamento entre os setores público e pri-vado que rompesse com a perspectiva tão somenteregulatória dos instrumentos urbanísticos tradicionalmenteutilizados. Ao propor a separação praticamente universale generalizada entre os direitos de propriedade e de cons-truir, alteravam-se as relações entre aqueles setores, sub-metendo-se as ações do setor privado às decisões públi-cas. Por essa perspectiva, a proposta apresentada pelaAssecob colidia frontalmente com a do Executivo.

A crítica central à instituição de um índice padrão fun-damentava-se no único e mesmo tratamento dispensadopara toda a cidade, não se negando, em contrapartida, apossibilidade de sua utilização em áreas específicas e de-limitadas da cidade. Entre os argumentos da Assecob, a

questão não seria mais a de instrumentos para interven-ção urbana, pois, ao se generalizar o instituto do solo criadopara todo o território urbano, a proposta seria de reformatributária.13

A avaliação da proposta desse setor pelo Executivomunicipal ressaltou que a diferença básica situava-se napreocupação com o urbano contida na proposta da prefei-tura. “O poder público vê questões da ocupação de formamais abrangente porque é sobre ele que recaem as deman-das coletivas suscitadas pelo adensamento. Ao se proporíndices menores pensa-se não somente em melhorar o pa-drão de adensamento como também criar mais áreas li-vres, ainda que a nível privado, reduzindo a pressão so-cial que essa questão representa.”14 O reverso dessaspalavras expressaria a estreiteza dos objetivos de que sereveste a ação de um grupo privado, preocupado unicamentecom a consecução imediata de seus interesses. Assim in-terpretada, a visão de intervenção pública do Executivo opu-nha-se, por princípio, à visão do setor empresarial da cons-trução civil. Uma postura inflexível que comprometeu acontinuidade da política quanto à definição dos instrumen-tos de regulação do uso e ocupação do solo.

Por meio das ações da Secretaria de DesenvolvimentoUrbano e Meio Ambiente, o governo adotou uma posturamaniqueísta em relação aos empresários do setor da cons-trução civil em geral, situando-os entre os principais res-ponsáveis pela produção de um espaço urbano socialmentedesigual, tendo sido duramente criticados por suas resis-tências às propostas apresentadas sobre o solo criado.

“O pessoal está acostumado com um determinado pa-drão de trabalho, de apropriação do solo e o solo criadoacaba colocando uma coisa totalmente nova, que o pes-soal tem dificuldade de enfrentar. É claro que quem cons-trói não quer perder, ele quer ter mais vantagem para po-der utilizar, potencializar mais o uso, o lucro, etc. A horaque você coloca um custo para ele, mesmo que você de-pois demonstre que este custo não existe em determina-dos casos ou é extremamente residual, realmente não éfácil. Houve uma resistência muito grande.”15

A reação dos empresários da construção civil foi dura:“Estas pessoas têm as idéias fundamentadas na questãoideológica, na questão profissional de cada um, mas sãoidéias que não têm nada a ver com a sociedade. Você nãopode fazer uma legislação que você não leve em conside-ração a sociedade, você tem que conhecer a sociedade parasaber quais são os problemas dela para poder propor umalegislação para ela. Afinal de contas para quem é a legis-lação? É para regular o setor empresarial da construção

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civil? Isto é uma coisa. O setor da construção civil existepara resolver um problema da sociedade, ou seja, mora-dia. Alguém tem que fazer para alguém comprar. Se vocêfaz legislação você tem que levar isto em consideraçãoaté porque o setor empresarial da construção civil não éum bicho-papão, vai gerar empregos, impostos para a ci-dade... Então se você tem como adversário o setor da cons-trução civil... ”.16

Em suma, as duas propostas vieram acompanhadas deatitudes inflexíveis, apoiadas em noções preconcebidas.Para o Executivo municipal, as influências das orienta-ções do PT eram fortes. Além disso, ser governo signifi-cava a oportunidade de ver implementadas muitas daspropostas gestadas em outros fóruns. Para o setor da cons-trução civil, identificado com outra linha política, a resis-tência ao diálogo estabeleceu-se a priori, até por diferen-ças ideológicas. O resultado já era previsível, pois, se “oempresariado não vem junto”, conforme a expressão dosecretário de Obras e Serviços Públicos, a discussão so-bre essa dimensão da política de planejamento urbano “erauma discussão que não saía muito do lugar”, segundo aspalavras da secretária de Desenvolvimento Urbano e MeioAmbiente.

Recorrer ao confronto na negociação de políticas foi aprincipal estratégia utilizada pelo governo Telma de Sou-za. Tal como também identificada por Frey (1996), estaestratégia mostrou-se positiva ao se decidir pela interven-ção na empresa privada de transportes coletivos, bem comoao se pautar em regime de urgência o projeto de lei dozoneamento especial de interesse social. Porém, recorrerao confronto não solucionou o impasse nas relações como setor da construção civil. Nesse caso, as ações do go-verno – sem os aliados esperados – e do setor imobiliáriourbano levaram à interrupção da política, pelo menos noque diz respeito aos instrumentos gerais de regulação douso e ocupação do solo.

A decisão por interromper o processo mostrou que essesetor foi o interlocutor privilegiado na discussão dos ins-trumentos de regulação do solo urbano, pois a impossibi-lidade da negociação impediu a continuidade da políticae, ao Executivo, a conclusão e o encaminhamento de umprojeto de lei de plano diretor à Câmara, não obstantehaver-se empenhado para tanto. A quantidade de reuniõesrealizadas e a apresentação e discussão das propostas doExecutivo e da Assecob na esfera do Conselho Consulti-vo do Plano Diretor confirmaram-na como a instância ins-titucional com poder de veto na política de planejamentourbano em Santos. Apesar de, formalmente, não ter cará-

ter deliberativo, o conselho reuniu a competência políticacapaz de suspender o andamento da política, uma vez quea proposta do Executivo não atendia aos interesses majo-ritários ali representados. Os grupos ligados à construçãocivil, por seu turno, fizeram uso e se beneficiaram dessecanal de representação social junto à política de planeja-mento urbano.

O problema urbano “em partes” expressou, assim, apermeabilidade da política aos diferentes valores e inte-resses sociais existentes na cidade, atribuindo-lhe, conse-qüentemente, objetivos múltiplos. Entre estes, os gruposligados à construção civil, pela capacidade de fazer valerseus interesses, constituíram-se em interlocutores privile-giados da política. Uma política permeável aos diferentesinteresses e específica no tratamento da heterogeneidadedo problema urbano contém, entre seus objetivos, aque-les que correspondem aos interesses desses grupos.

CONCILIAÇÃO E PLANEJAMENTO URBANO

De forma distinta do governo Telma de Souza, o go-verno David Capistrano Filho concluiu a proposta de po-lítica de planejamento urbano com o encaminhamento doprojeto de lei do plano diretor ao Legislativo. A conclu-são desse projeto envolveu atividades que se desenrola-ram em 1995, em um processo iniciado com a divulgaçãodos trabalhos técnicos em andamento e o cumprimento deuma agenda de debates públicos, encerrando-se com oenvio do projeto de lei à Câmara municipal. Contudo, aconclusão de uma proposta no âmbito do Executivo nãogarantiu sua aprovação pelo Legislativo, pois, ao final dogoverno, após 13 meses de permanência na Câmara, o pro-jeto de lei sobre o plano diretor não chegou a ser votado.

Dado que as condições político-institucionais geraispermaneceram inalteradas – inclusive mantendo-se à frentedo Executivo municipal um representante do mesmo par-tido do período anterior –, a questão que se levanta é aseguinte: que fatores possibilitaram ultrapassar a etapa deformulação da política na esfera executiva?

Inicialmente, devem ser consideradas as mudanças pro-cessadas ainda na fase de campanha para as eleições mu-nicipais, em 1992. Nessa ocasião, eliminou-se o principalfoco de conflito entre o setor da construção civil e o go-verno anterior, reduzindo as tensões que marcaram essasrelações. O então candidato David Capistrano Filho, emdebate promovido na sede da Associação dos Empresá-rios da Construção Civil da Baixada Santista, declarou suadisposição de suspender a discussão relativa ao solo cria-

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do, dada a conjuntura econômica que o país atravessava.Mais do que a intenção de postergar a discussão para umadata futura, a declaração do candidato expressou o seupropósito de dispensar novo tratamento à questão relati-va ao uso e ocupação do solo urbano.17 Tal disposição foiinterpretada como o anúncio do deslocamento da questãorelativa à propriedade urbana para o âmbito circunscritoao seu uso, com o conseqüente distanciamento das pro-postas que pressupunham separar o direito de proprieda-de e o direito de construir. Em outras palavras, o anúncioexpressou a intenção em trazer “de volta” para a arenaregulatória a questão relativa ao uso e ocupação do solo,afastando a política de planejamento urbano, pelo menosnessa temática que lhe é central, da arena redistributiva,como se pretendia com a ênfase atribuída à questãofundiária no governo Telma de Souza.

Além disso, essa decisão significou aceitar os produ-tores da cidade como interlocutores privilegiados e forçasocial co-responsável pelo estabelecimento dos instrumen-tos reguladores do uso e ocupação do solo, e do mesmomodo aceitar os agentes do mercado que, como parte doprocesso de produção da cidade, podem criar obstáculosao andamento da política caso não se atenda a suas de-mandas. Se essa decisão expressou a disposição ao diálo-go e à negociação, por conseqüência, alterou-se a nature-za e as condições das relações entre os interesses do setorimobiliário e a chefia do Executivo, o que permitiu criaras bases para novas estratégias, agora de conciliação enegociação.

Razões políticas sustentaram essas estratégias, defini-das desde as eleições municipais. No primeiro turno, acomposição partidária à candidatura David CapistranoFilho era basicamente a mesma de 1988, denominadaUnidade Democrática Popular (PT, PSB, PC do B e PV),acrescida do Partido de Mobilização Nacional (PMN) –que reunia parcela dissidente do PSDB –, ao qual coube aindicação do vice. No segundo turno, o candidato da UDPcontou com o apoio formal do PSDB e com a declaraçãode apoio, ainda que tímida, de Beto Mansur, atual prefei-to e à época candidato derrotado no primeiro turno.18

Empossado no cargo, o novo prefeito buscou constituiruma base política mais ampla e formar um governo repre-sentativo das forças que ganharam a eleição, de tal formaque, na composição de seu secretariado, duas pastas fo-ram entregues ao PSDB.19

A ampliação da base de sustentação do governo, por sisó, era a disposição de nova composição política. Alémdisso, a participação do PSDB no governo facilitou as ne-

gociações com o setor imobiliário da construção civil, jáque algumas de suas lideranças pertenciam a esse parti-do, como o então presidente da Assecob e seu antecessor.Esses fatos, portanto, corroboram a disposição à negocia-ção e à conciliação, contribuindo para quebrar as resis-tências ao diálogo que marcaram as relações entre o Exe-cutivo e o setor da construção civil no governo anterior.

Ao seu lado, os objetivos da política foram alargados,alterando-se seu escopo em relação ao governo Telma deSouza. A política elaborada compreendeu a dimensão maisespecífica relativa aos instrumentos de regulação urbana,mantendo-se os fundamentos estabelecidos no governoanterior. Mas a política caracterizou-se especialmentecomo plano de desenvolvimento, ao incluir as diretrizesde ação à promoção das vocações econômicas da cidade,e como plano de governo, ao reunir os programas públi-cos existentes e previstos de forma articulada e integra-dos às diretrizes de desenvolvimento. As novas dimen-sões incorporadas expressaram as prioridades do governoDavid Capistrano Filho, que, ao propor o papel de indutordo desenvolvimento local à prefeitura, deslocou para umoutro plano a dimensão de regulador do uso e ocupaçãodo solo contida na política de planejamento urbano. Comisso, a política de planejamento urbano do governoCapistrano revestiu-se de caráter abrangente e integrado,distinto daquele que marcou essa política no governoTelma de Souza, restrita aos instrumentos de regulaçãourbanística.

O novo conteúdo atribuído ao plano diretor visou inte-grar as diversas iniciativas públicas na direção do fomen-to das vocações econômicas historicamente reconhecidascomo tal: porto, turismo e comércio e prestação de servi-ços. A diretriz de estimular as vocações da cidade fixoumetas e alinhou programas considerados mais adequadosao contexto – cujos contornos se tornaram mais claros nosanos 90 –, que cobrava a redefinição do papel das cida-des em um mundo globalizado. As metas do governo an-terior de realização de uma reforma urbana foram aban-donadas. A nova prioridade era o incentivo às atividadeseconômicas, gerando riqueza de modo a garantir a me-lhoria da qualidade de vida da população santista.

Deslocado o eixo central de preocupações da política,portanto, quebrou-se a percepção anterior que identifica-va o setor imobiliário da construção civil e, por extensão,os segmentos sociais dominantes como “inimigos”. A rea-lização das novas metas pressupunha uma composiçãopluriclassista, pois dependia-se do concurso de diversasforças sociais, incluindo aquelas que lideram a promoção

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das atividades econômicas. No campo político, essas con-dições foram favorecidas pela presença do PSDB entre asforças políticas que compuseram o governo municipal.

Sob a ótica do governo David Capistrano Filho, a rele-vância dos novos objetivos suplantaria os objetivos origi-nais do plano diretor, tal como definidos no governo an-terior, ou seja, relacionados estritamente aos instrumentosde regulação do solo urbano. O novo plano passou a assu-mir também, e principalmente, as características de planode desenvolvimento e de plano de governo.

Além de constituir tema inovador,20 em particular comoiniciativa do Executivo municipal, a nova dimensão atri-buída à política foi prioritária, contudo, somente para ogoverno, não chegando a sensibilizar segmentos sociais.O debate que se sucedeu à divulgação do projeto do Exe-cutivo centralizou-se nos elementos conceituais e nos ins-trumentos propostos à regulação do uso e ocupação dosolo. Na proposta elaborada, à exceção da exclusão domecanismo do solo criado, foi-se fiel aos parâmetros es-tabelecidos pelo governo anterior, segundo os quais des-tinava-se tratamento diferenciado às porções continentale insular do território santista, permanecendo as diretri-zes de preservação para o continente, consoante a lei daÁrea de Proteção Ambiental, aprovada em 1992. Para oterritório insular, a proposta mantinha a diretriz dezoneamento por áreas de disciplinamento do adensamen-to urbano, desde que controlado o impacto de eventualincompatibilidade entre atividades urbanas, e o tratamen-to diferenciado e a correspondente delimitação de zonasespeciais para o tratamento de temáticas urbanas especí-ficas.21

Projeto de Lei do Plano Diretor:Conciliação nas Negociações

A discussão em torno da proposta do Executivo desen-volveu-se, inicialmente, por meio de consulta popular e,na seqüência, no âmbito do Conselho Consultivo do Pla-no Diretor. A consulta popular foi estruturada em umaseqüência organizada de eventos, previamente divulgados,segundo agenda estabelecida por um grupo de trabalhoconstituído no gabinete do prefeito. A convocação da so-ciedade para discutir o projeto do Executivo perdia o ca-ráter “assembleísta” que adquirira na gestão de Telma deSouza. No governo David Capistrano Filho, os objetivosdessa consulta foram claramente definidos, assim comoobedeceram a um calendário organizado para a realiza-ção dos eventos, que foram precedidos da distribuição

ampla e gratuita de exemplares do projeto do Executivo.22

Além disso, no âmbito da máquina administrativa, as de-cisões quanto à condução do processo de discussão pú-blica e também quanto ao conteúdo da política foramtomadas a partir do arranjo político-administrativo cen-tralizado no gabinete do prefeito – expressão da centrali-dade adquirida pela política. Ao modelo mais descentra-lizado que marcara a condução da política no governoanterior, no governo David Capistrano Filho correspondeuum modelo político-administrativo centralizado, com de-cisões tomadas no âmbito de seu próprio gabinete.

Com a consulta popular buscou-se, da mesma formaque no governo Telma de Souza, cumprir a diretriz degoverno de democratizar a gestão pública, ampliando oacesso da população às informações e estimulando a prá-tica da consulta popular. Com a abertura do debate públi-co, o objetivo foi não só divulgar a política, mas tambémobter apoio para o projeto de lei elaborado, sem o com-promisso de incorporar as sugestões apresentadas duran-te o debate. A disseminação da política e os debates reali-zados coexistiram com o Conselho Consultivo do PlanoDiretor, preservando-se suas competências específicascomo canais distintos de encaminhamento e de articula-ção da política na esfera executiva. Mantidas suas atri-buições legais, o conselho continuou desempenhando umpapel politicamente decisivo nesse processo – o de emitiro parecer final sobre o projeto de lei enviado à Câmara. Omesmo não ocorreu com a consulta popular, cujo maiorobjetivo foi mobilizar a sociedade em apoio ao projetodo Executivo em sua fase posterior e decisiva, no âmbitolegislativo – apoio que os formuladores da política consi-deravam necessário para a aprovação da lei pela Câmaramunicipal.

No processo de preparação e execução da consultapopular, a parceria com o Conselho Consultivo do PlanoDiretor não ocorreu, malgrado a intenção dos membrosdo governo. Ao contrário, sendo órgão colegiado com atri-buições específicas em relação ao plano diretor, esse con-selho limitou-se a aprovar a agenda das reuniões prepara-tórias ao congresso municipal. Assim, manteve-se adistinção entre os debates públicos e o Coplan como ca-nais de interlocução entre o poder público e a sociedade,com funções e objetivos distintos.

As entidades membros do Coplan participaram das dis-cussões das sessões do congresso, encaminhando suges-tões como atores individuais interessados na temática, nodebate que então se iniciou e que teve continuidade nasreuniões do conselho que se seguiram. Foi o que mostrou

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o registro do congresso municipal, pelo que se verificouque a Delegacia da Baixada Santista do Sindicato dosArquitetos e a Assecob apresentaram suas propostas naplenária que sucedeu a última sessão temática. No casoda Assecob, o seu representante, alegando o adiantado dahora de realização da sessão, propôs transferir a discus-são das sugestões formuladas para o âmbito do Coplan, oque foi aceito pela plenária do congresso. Assim, deslo-cou-se para um fórum restrito, constituído legalmente, odebate acerca de questões tão caras ao setor da produçãoimobiliária – em particular à Assecob, entidade líder nacondução das negociações.

Nas reuniões do Coplan, os aspectos contidos no pla-no que mais diretamente afetavam os setores ligados àprodução imobiliária foram efetivamente debatidos e,por fim, deliberados. Em face do equilíbrio de forçasaí existente, as mudanças introduzidas no projeto doExecutivo que foram estruturais – visto terem alteradosubstancialmente os fundamentos estabelecidos pelogoverno – localizaram-se no capítulo sobre as restri-ções urbanísticas.

Se as negociações desenvolvidas no âmbito do Coplanmantiveram inalterada a proposta do Executivo para a áreacontinental do município, o mesmo não ocorreu em rela-ção à sua porção insular. Sem alterar sua posição ante-rior, explicitada durante o governo Telma de Souza, osrepresentantes do setor da produção imobiliária discor-daram dos fundamentos do zoneamento por adensamentoe recolocaram a proposta do zoneamento fundado na se-paração de usos urbanos, sustentados por uma cultura ur-bana historicamente cristalizada de leitura de cidade. Amanutenção do zoneamento por função urbana vinha aoencontro das necessidades e dos interesses do setor pro-dutor da cidade, pois, a este, mais diretamente que a ou-tros grupos, convém separar usos urbanos, que é a condi-ção para o exercício de sua atividade econômica compotencialização de ganhos.23

Politicamente, a natureza do conflito era a mesma da-quela presente no governo Telma de Souza, expressando-se, de um lado, em uma política que, sem perder sua natu-reza regulatória, propunha-se também redistributiva, nosentido de visar ao acesso mais igualitário à cidade e aosbenefícios coletivos nela produzidos em face das oportu-nidades permitidas pela mistura de usos urbanos. Com essaperspectiva, a proposta do Executivo santista seria a res-posta pública para a reversão do processo histórico deocupação das cidades brasileiras de grande e médio por-tes, marcado pelo fenômeno da segmentação do espaço

urbano entre excluídos e incluídos. Sem desconsiderar acontribuição de uma política macroeconômica, os defen-sores dessa proposta consideravam que os instrumentosurbanísticos implantados, ao provocar a valorização de-sigual do custo da terra, também teriam concorrido para aemergência desse fenômeno. De outro lado, manter a di-retriz do zoneamento funcional significaria dar continui-dade ao processo de ocupação da cidade segundo moldesanteriores, isto é, com segmentação e segregação socio-espaciais.24

Não obstante tais críticas e a própria fundamentaçãoque sustentava o modelo de zoneamento proposto peloExecutivo, as mudanças sugeridas pela Assecob, incor-poradas ao texto final do projeto de lei, reintroduziramalguns dos parâmetros norteadores do zoneamento funcio-nal, em particular a redefinição do uso exclusivo para al-gumas áreas urbanas e a diferenciação de índices de apro-veitamento e taxas de ocupação do lote segundo zonasurbanas. Ainda por sugestão da Assecob, foram estipula-das as áreas do território da Santos-ilha consideradasprioritárias aos seus interesses, para as quais propuseram-se alterações de perímetro, de usos urbanos permitidos ede índices de aproveitamento e ocupação dos lotes. Àexceção dessas, a contraproposta do setor não contevenenhuma modificação urbanística a ser introduzida nasdemais áreas.

A atenção diferenciada da Assecob entre áreas do ter-ritório insular de Santos foi a principal evidência das prio-ridades dos interesses imobiliários representados. No con-texto urbano da cidade, as áreas com modificaçõescorrespondem àquelas com melhor potencial de merca-do: os bairros em direção à orla, por suas característicasde região de residência da população santista de poderaquisitivo mais elevado, além de veraneio; e a área cen-tral, que, em face da cobertura existente de equipamentose serviços urbanos, guarda, em si mesma, potencial para arealização de novos investimentos imobiliários.

Como indicador que reforça o caráter conciliatório dasnegociações entre o Executivo e o setor imobiliário daconstrução civil classifica-se também a aprovação da LeiComplementar no 213, de 17/4/96,25 de criação das ZonasEspeciais de Desenvolvimento Econômico (Zede).26 Inte-grada ao projeto como instrumento de zoneamento espe-cial, a lei das Zede é um instrumento de regulação públi-ca do uso do solo que isola porções do território municipalpara adensamento urbano diferenciado, adapta o instru-mento do solo criado para a intervenção urbana, restrin-gindo-o a situações urbanas específicas, e estabelece as

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bases para novas parcerias entre os setores público e pri-vado. O novo arranjo entre tais setores, instituído por esseinstrumento legal, permite negociar caso a caso, poten-cializar ganhos imobiliários para o setor empresarial pri-vado e gerar recursos novos para intervenção pública nasolução de problemas de habitação dos segmentos caren-tes da população.

A instituição das Zede viabilizou-se em contexto deevolução nas discussões sobre o processo de produção dacidade, que incluiu, nas palavras de David Capistrano Fi-lho, a “aceitação por parte dos empresários da construçãocivil da idéia do solo criado até como um bom negócio”,27

com aumento de potencial construtivo, bem como de al-teração de usos urbanos em áreas delimitadas da cidadeque suportam maior adensamento. Em contrapartida, oempreendedor imobiliário arcaria com recursos que po-deriam ser destinados à habitação de interesse social.28

Para o então presidente da Assecob, a visão do gover-no David Capistrano Filho distinguia-se daquela do go-verno Telma de Souza, pois reconhecia a ampla gama deagentes sociais que interferem no desenvolvimento dascidades, dentre os quais o próprio setor empresarial deprodução imobiliária. Para essa entidade, o governo tinhaoutra compreensão da cidade, mais voltado para a pro-blemática do desenvolvimento de Santos, como a questãodos negócios, “até porque entende que, se a atividadeempresarial parar, isto é ruim para a cidade”.29

Essa opinião fundamenta-se na mudança das relaçõesque passaram a se estabelecer com o setor produtor imo-biliário urbano e que, na seqüência das declarações deDavid Capistrano Filho, ainda em campanha, foram re-forçadas por suas próprias ações. A proposição das Zede,como alternativa “mitigada” do mecanismo do solo cria-do, não contrariava a visão daquele setor, pois, de acordocom o presidente da Assecob, “não se opunha à idéia desolo criado”, já que sua utilização “não pode ser para tudo”,uma vez que “o solo criado é um incentivo, uma troca”.30

Em outro depoimento, reafirmando essa posição, ressal-tou o ponto de vista diferenciado quanto ao solo criadoem termos da “visão das operações interligadas”, dadodever-se dispor de instrumentos que permitam alterar oespaço urbano com contrapartida, porém, “não de formageneralizada”. 31

A evolução das discussões sobre a produção da cida-de, com a aprovação das Zede, e as alterações referentesaos instrumentos urbanísticos introduzidas no projeto delei do plano diretor explicitaram a alternativa negocia-da. Como resultado, superou-se a etapa da discussão da

política na esfera executiva, com o que supunha-se po-der garantir o apoio necessário à aprovação do projetopela Câmara. Pelo menos no que se refere a esses instru-mentos, prevaleceu a concepção de cidade que não éigual, para a qual o mercado demanda tratamento dife-renciado. A alternativa final de política consistiu, de umlado, na aplicação restrita do instrumento do solo criadoa determinadas áreas do território urbano e, de outro, nafixação de índices de aproveitamento e taxas de ocupa-ção diferenciados segundo áreas do território urbano, àsquais é passível a reserva de exclusividade a determina-dos usos urbanos.

É nesta perspectiva que adquirem sentido as palavrasdo presidente da Assecob, para quem “o plano diretor foidiscutido, foi por consenso arrumada uma redação úni-ca...” no âmbito do Conselho Consultivo do Plano Dire-tor. Para o Executivo, negociar alguns pontos tornou-se omecanismo possível para se conseguir aprovar o plano noconselho, dada sua característica de instituição de repre-sentação social majoritariamente formada pelos segmen-tos ligados ao setor produtor imobiliário urbano, pois,mesmo com o “retrocesso” havido, “valeria a pena enviaro plano do jeito que estava para a Câmara, porque tería-mos muitos outros avanços...”.32

Tais avanços localizaram-se nas suas dimensões deplano de desenvolvimento, com o reforço do papel doExecutivo como “indutor” das vocações econômicas lo-cais e regionais. Para que pudesse se realizar, a composi-ção de sua base de sustentação social adquiriu, de fato,caráter pluriclassista, com particular apoio dos segmen-tos economicamente dominantes localizados no setor imo-biliário da construção civil. Em compensação, deslocou-se a discussão sobre os instrumentos de uso e ocupaçãodo solo para a dimensão regulatória da produção urbana.

Se, por um lado, a proposta final do plano diretor con-trariou os princípios originais que a fundaram nos idos de1990, por outro, os resultados alcançados confirmaram adisposição do prefeito David Capistrano Filho de estabe-lecer o diálogo com o setor da construção civil, coerenteao compromisso assumido durante a campanha eleitoral.As mudanças processadas no texto final enviado à Câma-ra foram decorrentes do perfil de representação social doconselho do plano diretor, majoritariamente formado porsegmentos ligados à produção imobiliária. Por parte dogoverno, diante das dificuldades políticas que impedirama gestão David Capistrano Filho de alterar a composiçãodesse conselho, foi preciso negociar, pois, do contrário,não se teria aprovado o plano diretor em seu âmbito.

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CONCLUSÕES

A análise da política de planejamento urbano em San-tos, nos dois governos do PT, revelou as dificuldades emse romper com o modelo de ação pública, há muito crista-lizado na cultura urbana brasileira. Para garanti-lo, os gru-pos sociais ligados ao setor de produção imobiliáriadesempenharam papel decisivo, mobilizaram-se e, orga-nizados nos espaços institucionais existentes, defenderamseus interesses. Os esforços dos dois governos para am-pliar os segmentos sociais de interlocução da política, paraalém desses grupos, foram ora pouco eficientes, comoconstatado no governo Telma de Souza, ora cautelosos,como visto no governo David Capistrano Filho. E a polí-tica dialogou efetivamente com os mesmos grupos sociaiscom que historicamente vem dialogando.

Em ambos os governos, o Conselho Consultivo doPlano Diretor ocupou posição estratégica, pois foi aarena institucional privilegiada da política. Nele con-centraram-se as decisões sobre o plano diretor, mormen-te em sua dimensão de plano de uso do solo, cujos re-sultados foram, primeiro, a interrupção do processo e,depois, a aprovação da versão final do projeto de leienviado ao Legislativo. As tentativas dos dois prefei-tos de alterar sua composição em nenhum momentoforam conclusivas, e o conselho manteve o mesmo per-fil de representação social que foi definido em 1968,data de sua criação. Assim, nos oito anos de governoda Unidade Democrática Popular, os interlocutores pri-vilegiados da política de planejamento urbano em San-tos foram os grupos sociais representados no Coplan,predominantemente os setores ligados à produção imo-biliária, que, no caso específico de Santos, eram lide-rados pela Associação dos Empresários da ConstruçãoCivil da Baixada Santista, a Assecob.

Esta análise, contudo, não se conclui se um último as-pecto não for reforçado. As ações dos principais agentesda política desenvolveram-se dentro do contexto políticoe institucional existente, que favoreceu certos cursos deação e impediu outros. Por intermédio das relações esta-belecidas entre esses agentes, seus objetivos e interesses– considerando que tais relações são mediadas por regras,formais ou não, e procedimentos institucionais estabele-cidos –, os resultados da política, em cada um dos gover-nos, foram as alternativas possíveis de serem apresenta-das em cada um dos momentos políticos.

Se as alternativas de política apresentadas resulta-ram, predominantemente, da interação entre o Executi-

vo e o setor de produção imobiliária, o processo dapolítica somente chegou a seu término por meio dasrelações estabelecidas entre o Executivo e o Legislativo.Por uma razão institucional – de manutenção da sepa-ração entre as funções executiva e legislativa – e poruma razão política – de evitar o confronto aberto comuma Câmara de representação predominante das forçastradicionais e conservadoras da sociedade santista –, aestratégia foi a de se preservar as funções políticas doLegislativo, submetendo-se a essa esfera as decisõesque, institucionalmente, a ela estão restritas, reservan-do-se ao Executivo a competência formal de encami-nhar projetos de lei e de regulamentar leis aprovadas.De seus resultados, extraem-se as possibilidades de co-existência política, reduzindo os riscos de paralisaçãodo processo que possam ocorrer caso o conflito entreExecutivo e Legislativo seja exacerbado.

Assim, no governo Telma de Souza, a decisão tomadapela chefia do Executivo, diante do impasse nas negocia-ções com o setor da construção civil, de interromper apolítica anteviu novos conflitos que poderiam emergir nadiscussão de um projeto de lei de instituição do plano di-retor na arena legislativa. Telma de Souza, consciente dessequadro, observou: “a correlação de forças na Câmara eraterrível. Sabíamos que, num confronto, o setor dominanteda cidade levava a Câmara”. Além do perigo de derrota,o próprio calendário eleitoral de 1992 contribuiu para ainterrupção do processo, deixando sua solução para a ad-ministração seguinte. Portanto, o cálculo político priorizouas próprias regras de sucessão municipal, uma vez que orisco de insistir na proposta poderia comprometer a su-cessão municipal.

No governo David Capistrano Filho, o projeto de leifoi enviado à Câmara e, apesar de ter incorporado a dis-cussão ampliada com a sociedade organicamente estrutu-rada e a negociação com os segmentos sociais específicos– que, de forma direta e sistemática, mobilizaram-se emtorno de sugestões que alteraram a versão de projeto doExecutivo – não foi votado até o final do governo. As hi-póteses explicativas para esse resultado identificam afalta de empenho de membros do próprio Partido dos Tra-balhadores em aprovar um projeto de tal magnitude e, seos próprios vereadores pertencentes ao partido do prefei-to dispensaram poucos esforços às suas iniciativas noâmbito da temática urbana, imagine-se o comportamentodaqueles não-alinhados. Esse aspecto foi reforçado como quadro político-eleitoral da época, com a indicação deduas pré-candidaturas à prefeitura municipal pelo PT, di-

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vidindo a sua bancada de quatro vereadores em apoio acada uma delas.

Além disso, dar continuidade ao processo da políticano âmbito do Legislativo dependia do empenho do Exe-cutivo. Isso foi reconhecido pelo próprio chefe de gover-no, que identificou a esfera legislativa como “órgão dehomologação das decisões tomadas na esfera executiva”,e também por um dos vereadores do PT, para quem oExecutivo faz valer sua força junto à sua bancada de for-ma a garantir a tramitação dos projetos de seu interesseaté a votação. As poucas pressões exercidas combinaram-se ao momento eleitoral e à posição ocupada pela políticana agenda do governo David Capistrano Filho.

Para a chefia do Executivo, as dimensões do projetode lei que eram prioritárias vinham sendo de algumaforma cumpridas. A própria promoção do desenvolvi-mento contida no projeto do plano diretor encontrououtros canais para sua realização, mesmo que parcial-mente, dadas suas especificidades que demandavamlongo prazo e demorada maturação. Se, de um lado, asprioridades de governo trazidas para o plano diretor en-contraram outros canais para se desenvolver, de outro,precisamos observar que esse plano, naquilo que se re-feria ao uso do solo, não mais correspondia à propostaoriginal de governo. A versão final alterou os funda-mentos de orientação da produção urbana como resul-tado do processo negociado entre o Executivo e o setorempresarial da construção civil. Assim, a pouca pres-são exercida pelo Executivo sobre o Legislativo podeser entendida dentro desse quadro. Para o prefeito, oprojeto de lei de instituição do plano diretor não foinem sequer votado por razões “decorrentes da nature-za clientelista e, pior que clientelista (eu sei que é umapalavra dura), corrupta de uma parcela ponderável dosvereadores” e não por “oposição de qualquer setor so-cialmente importante da cidade que tenha se oposto aoplano diretor do jeito que ele foi formatado”.

Se o resultado final foi a interrupção da tramitação doprojeto de lei na Câmara em meados do último ano demandato, visto não ter sido nem mesmo colocado em vo-tação, na prática da ação de governar, as dimensões dapolítica que interessavam ao Executivo já se realizavampor meio de programas prioritários de governo em imple-mentação, definidos consoante as metas estabelecidas paraa promoção das vocações econômicas da cidade. Paracumprir esses objetivos prioritários, as negociações comos setores empresariais, dentre eles o da produção imobi-liária urbana, já haviam resultado no apoio esperado.

NOTAS

E-mail da autora: [email protected]

Trabalho extraído da tese de doutorado da autora (Carvalho, 1999).1. Até sua emancipação, em 1948, Cubatão integrava-se ao município de Santos.2. As taxas de crescimento demográfico da Região de Governo de Santos foram,nos períodos 1950-60 e 1960-70, de, respectivamente, 4,67% e 4,47% ao ano(Baeninger e Souza, 1994:9), mais elevadas que as observadas para o total doEstado, que foram de 3,57% e 3,20%. No município de Santos, nos mesmos perío-dos, as taxas foram de 2,55% e 2,77% (dados da Fundação Seade).3. A população santista residente na porção insular do território municipal era daordem de 99% de sua população total.4. O distrito de Bertioga foi emancipado na década de 90.5. Além disso, o projeto democrático de governo buscou garantir o acesso gene-ralizado às informações públicas. Os dois governos priorizaram o desbloqueio doacesso aos dados municipais e a comunicação com a população em geral, pormeio da publicação diária do jornal D.O. Urgente, distribuído gratuitamente.6. Bertioga era, ainda, distrito de Santos e, dentro do projeto de descentralizaçãoadministrativa do governo Telma de Souza, criou-se uma unidade administrativadescentralizada.7. Entrevista concedida à autora por Lenimar Rios, secretária de Desenvolvimen-to Urbano e Meio Ambiente do governo Telma de Souza, em 27/07/98.8. Desde a concepção original, as porções insular e continental do território mu-nicipal mereceram tratamento distinto, destinando-se, à primeira, instrumentosao adensamento urbano, e, à segunda, de preservação.9. A recuperação dos elementos estruturadores da proposta de uso e ocupação dosolo foi extraída do projeto de lei elaborado pela Sedam, do texto que o introdu-zia e da ata da reunião do Coplan, realizada em 05/12/90. Foram também elabo-radas propostas para a zona especial de interesse cultural e imóveis de interessecultural; as Zonas Especiais de Interesse Ambiental; o Fundo de Desenvolvimen-to Urbano de Santos, e o Conselho de Desenvolvimento Urbano de Santos. Naanálise acima, ativemo-nos aos aspectos estruturadores que orientaram a concep-ção básica de intervenção no uso e ocupação do solo.10. Essas atividades correspondem àquelas portuárias e retroportuárias.11. A contrapartida, por ordem de prioridade, seria quitada em terreno, obras eserviços ou moeda. Nesse último caso, os recursos seriam transferidos para umfundo municipal a ser criado, e sua aplicação seria fiscalizada por um conselhocomposto por representação do poder público e da sociedade civil.12. Além desse índice, foi proposta a instituição do mecanismo de transferênciade potencial construtivo para imóveis classificados como de interesse cultural ousocial, admitida exclusivamente para imóveis integrantes de corredores de ativi-dades econômicas e para lotes contidos nas Zonas Especiais de Interesse Social 3(Zeis 3), que correspondem às intervenções em cortiços. Esses mecanismos, ape-sar de propostos, não chegaram a ser tema de discussão nessa fase da política.Outros instrumentos foram definidos, mas eram de natureza complementar ao eixoestrutural da proposta formulada.13. Segundo o presidente da Assecob, a oposição não era contra a “idéia” do solocriado e declarava-se a favor, desde que fosse diferenciado por regiões da cidadeou até por atividade urbana. Entrevista concedida à autora por José Marcelo FerreiraMarques, em 21/07/94.14. Conforme ata de reunião do Conselho Consultivo do Plano Diretor (Coplan).15. Entrevista concedida à autora por Lenimar Rios, em 27/08/94.16. Entrevista concedida à autora por José Marcelo Ferreira Marques, em 21/07/94.17. Contribuíram também, para o entendimento dessas mudanças, as diferençasde personalidade entre Telma de Souza e David Capistrano Filho, observadas porvários de seus assessores diretos. À Telma de Souza, via de regra, atribuem-setraços de uma personalidade mais sensível e comunicativa, comprometida comquestões de longo prazo. David Capistrano Filho, em geral, é associado a umapersonalidade mais fechada, econômico em suas palavras, racional e pragmático,com preocupações mais de curto que de longo prazo. Além disso, salientam ofato de Telma de Souza ser nascida em Santos e fazer parte da sua história, eDavid Capistrano Filho ser uma pessoa de fora.

18. Segundo David Capistrano Filho. Entrevista concedida à autora, em 15/12/97.

19. As demais secretarias foram ocupadas pelo PT e pelo PSB.

20. Azevedo (1994) identifica esse caráter inovador como uma das dimensões aserem pensadas na definição do papel de agências de planejamento municipal emcidades de médio e grande porte no momento presente. Para ele, essa dimensão tem

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relação com a capacidade do governo municipal de possibilitar à cidade desenvol-ver plenamente suas potencialidades, estimulando suas vocações econômicas.21. Mesmo com o alargamento de seus objetivos, a política não perdeu a caracte-rística de segmentação por projeto, definida desde o governo anterior, seja pelacontinuidade das intervenções, a partir das propostas de zoneamento especial deinteresse cultural, ambiental, de desenvolvimento econômico, etc., seja pela de-cisão de implementar os instrumentos aprovados no governo Telma de Souza re-lativos à habitação de interesse social, base para a política habitacional desenvol-vida pelo governo David Capistrano Filho.22. A consulta popular foi feita através de um congresso municipal, estruturadoem três sessões temáticas, e que foi precedido de reuniões setoriais e regionais.23. A proposta apresentada pela Assecob baseou-se no exame, artigo por artigo,do projeto de lei do Executivo.24. Dentro da tendência das análises urbanísticas que se sustentam na crítica aoplanejamento urbano tecnocrático e que defendem formas mais democráticas deplanejamento, situam-se Rolnik (1997) e Villaça (1998).25. A Lei no 213/96 foi regulamentada ainda durante o governo David CapistranoFilho, por meio do Decreto no 2.778, de 07/08/96. Contudo, não há registro denenhum empreendimento imobiliário executado em consonância a essa lei.26. Note-se que essa modalidade de zoneamento especial estava relacionada tam-bém entre as zonas especiais discutidas durante o governo Telma de Souza.27. Entrevista concedida à autora por David Capistrano Filho, em 15/12/97.28. Entrevista concedida à autora por José Marques Carriço, coordenador técni-co do plano diretor no governo David Capistrano Filho, em 17/04/96.29. Entrevista concedida à autora por José Marcelo Ferreira Marques, em 21/07/94.30. Entrevista concedida à autora por José Marcelo Ferreira Marques, em 21/07/94.31. Entrevista concedida à autora por José Marcelo Ferreira Marques, em 16/04/96.32. Entrevista concedida à autora por José Marques Carriço, em 17/04/96.

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PLANEJAMENTO URBANO-REGIONAL E CRISE AMBIENTAL: REGIÃO METROPOLITANA...

A

PLANEJAMENTO URBANO-REGIONALE CRISE AMBIENTAL

Região Metropolitana de Curitiba

cidade e o seu contexto urbano-metropolitano têmse configurado, cada vez mais, num considerá-vel desafio aos estudiosos do urbanismo. Os pro-

análise compreende o terceiro dos três questionamentosanteriores, apontando, de maneira particular, a interaçãoentre o processo de parcelamento do solo urbano na fran-ja leste da Região Metropolitana de Curitiba (RMC) e aproblemática dos recursos hídricos da área.4

PLANEJAMENTO URBANO E AINSURGÊNCIA DA DIMENSÃO AMBIENTAL

A cidade atingiu papel determinante no mundo contem-porâneo. Segundo Choay (1985), a cultura ocidental, aoaprofundar o conhecimento de si e de suas realizações,percebe a cidade como seu símbolo mais eloqüente.5

Em sua formulação inicial, o pré-urbanismo6 espelhouuma fase em que o homem se considerava no pleno direitode modificar os recursos naturais e deles usufruir paraviabilizar o desenvolvimento da sociedade humana. En-trava em vigor uma ordem nova que buscava adequar ascidades ao modo de produção industrial.7 Por volta de 1910,com a criação do termo “urbanismo”,8 iniciou-se uma dis-ciplina específica, caracterizada pelo caráter de reflexão ecrítica, ancorada em parâmetros científicos e voltada paraa função de organizar os elementos urbanos por meio daestruturação administrativa e técnica dos espaços. Esta novadisciplina passa então a ser um campo de especialistas.

Mais tarde, à época do final da Segunda Guerra Mun-dial, por iniciativa conjunta de profissionais externos ao

blemas ambientais urbanos, nesse cenário, demandam abusca de soluções que ultrapassam o campo restrito dedisciplinas isoladas, levando o urbanismo a atingir o pa-tamar de campo prático da interdisciplinaridade.

Curitiba, capital do Estado do Paraná, tem se projeta-do, nacional e internacionalmente nos últimos trinta anos,como uma realidade urbana na qual ter-se-iam equacio-nados os problemas relativos ao planejamento urbano e àqualidade de vida da população. Mesmo que alguns as-pectos do seu contexto possam expressar certo sucesso empolíticas e práticas de planejamento urbano, inúmeros sãoaqueles que, paradoxalmente à positividade imagética dacapital paranaense, atestam expressiva degradaçãosocioambiental (Mendonça, 2001).1 A cidade constitui-se,sobretudo ante este e outros paradoxos, num verdadeirolaboratório a desafiar os urbanistas para a investigação,afinal, de que maneira configurar-se-ia uma “cidade doPrimeiro Mundo”2 dentro da realidade do “Terceiro Mun-do”? Seria mesmo Curitiba uma “Capital Ecológica”?3 Queelementos do processo de urbanização estão na gênese dosproblemas relativos aos recursos hídricos da Região Me-tropolitana de Curitiba?

Estas questões possibilitariam o desenvolvimento devários trabalhos. No presente artigo, todavia, o cerne da

Resumo: As ocupações urbanas em área de mananciais da porção leste da Região Metropolitana de Curitiba,a despeito da existência de um plano de desenvolvimento regional, o Plano de Desenvolvimento Integrado,aprovado em 1978, são o tema central das análises aqui desenvolvidas. As ocupações irregulares da área sur-giram nos anos 70 e se efetivaram especialmente na década de 90, com invasões sobre parcelamentos aprova-dos desde antes de 1950, quando não havia ainda planejamento regional.Palavras-chave: planejamento urbano-regional; planejamento ambiental; parcelamento do solo.

CRISTINA DE ARAÚJO LIMA

Professora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da UFPRFRANCISCO MENDONÇA

Professor do Departamento de Geografia e do Programa de Doutorado em Meio Ambiente e Desenvolvimento,Coordenador do Curso de Mestrado em Geografia da UFPR

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meio dos urbanistas (sociólogos, historiadores, juristas,economistas, psicólogos e outros) e sob a liderança dePatrick Geddes, biólogo escocês, foi proposto um novométodo conhecido como “sociological surveys”. Sugeria-se uma pesquisa ampla do quadro urbano a ser focaliza-do, anterior à intervenção urbana – desde a demografia, aeconomia, a história, até as condições sociais e culturais,enfim, todos os aspectos que possibilitassem amplo co-nhecimento do caso. A pesquisa vasta sobre o conjuntocomplexo de fatores urbanos deveria ser realizada de for-ma integrativa por profissionais de diversas formações,fato que deu origem à metodologia do planejamento ur-bano moderno. Nas palavras de Geddes (apud Choay,1979:39), “os urbanistas estão acostumados a pensar ourbanismo em termos de régua e compasso, como umamatéria que deve ser elaborada só pelos engenheiros earquitetos, para os conselhos municipais. Mas o verdadeiroplano (...) é a resultante e a flor de toda a civilização deuma comunidade e de uma época”.

Ao analisar as obras urbanas no segundo pós-guerra,construídas na perspectiva do que seria racional, demo-crático, igualitário e útil para todos, Jacobs (1999) afir-mou haver “uma profunda incompreensão do que são ascidades: os processos são a essência”. No seu livro, pu-blicado originalmente em 1961, tem-se um dos primeirosbrados pelo valor dos processos sociais e das conforma-ções urbanas informais, inusitadas para o rigor científicoe o distanciamento do planejamento técnico de então. Parao autor, nesses ambientes urbanos “saudáveis”, há umavitalidade e uma energia de interação social que depen-dem crucialmente da diversidade, da complexidade e dacapacidade de lidar com o inesperado de maneiras con-troladas, porém criativas. Essa criatividade, que pode ge-rar soluções além da limitação burocrática dos técnicos,representava uma temeridade para o planejamento urba-no modernista, mas, para ele, “é curioso que o planeja-mento da cidade nem responde à autodiversificação es-pontânea entre as populações urbanas nem conseguefornecê-la. É curioso que os planejadores das cidadespareçam não reconhecer essa força de autodiversificaçãonem ser atraídos pelos problemas estéticos de exprimi-la”(Harvey, 1996:74-76). Assim, a liberdade das conforma-ções urbanas encontrou eco apenas algumas décadas de-pois, no discurso pós-moderno; “a cidade, insiste Raban,é um lugar demasiado complexo para ser disciplinada dessaforma (pelos planejadores)” (Harvey, 1996:17).

Conforme Santos (1994), nas novas conformações daurbanização (Sposito, 1999:86) da contemporaneidade, a

cidade incorpora representações diferenciadas, materiaisou não: internamente, na fragmentação do tecido emorfologia urbana e, externamente, pela extrapolação doslimites físicos por meio do fluxo da comunicação media-tizada nos âmbitos nacional e internacional. O espaço ur-bano globalizado é marcado por relações sociais, econô-micas e culturais em constante e acelerada mutação(Santos, 1994). A par desses processos, também a ques-tão relativa ao meio ambiente é evidenciada pela degra-dação socioambiental generalizada.

No Brasil, a criação das regiões metropolitanas, em1973, pela Lei Federal Complementar nº14, constituiuesforço voltado para a coordenação das atividades e pro-blemas urbanos e caracterizou as metrópoles como pólosde desenvolvimento urbano coordenado por entidadesespecíficas. No entanto, desde o início, as entidades coor-denadoras do planejamento no âmbito metropolitano fi-caram sujeitas às decisões políticas para implementar suasações e instrumentos de planejamento, como os planos dedesenvolvimento regional.

A Região Metropolitana de Curitiba foi objeto de es-tudo do Iuperj/Minter de 1975 (apud Oliveira, 1995), queavaliou as realizações de planejamento urbano da capi-tal paranaense até a metade dos anos 70, concluindo quea dimensão técnica dessas soluções não inovava. No “casode Curitiba”, a contribuição para o aprimoramento dastécnicas de planejamento urbano nacional não estaria naoriginalidade, mas sim “em sua dimensão político-insti-tucional. Não é a técnica do planejamento, mas a políti-ca do planejamento o fator mais relevante” (Oliveira,1995:34).

Desde a década de 70, quando o Plano Diretor deCuritiba passou a ser executado e detalhado, observam-se rápidas transformações, paralelamente ao aprofunda-mento da teorização sobre as cidades, momento em quese encontra também o pensamento de Manuel Castells(apud Oliveira, 1995), para quem o “sistema urbano é umaexpressão do sistema total do qual ele é parte: o modo deprodução capitalista”. Para este autor, “o sistema urbanodesempenha uma função específica no sistema total, istoé, a reprodução da força de trabalho através da organiza-ção do processo de consumo”. Para Oliveira (1995), cujavisão vai na mesma perspectiva de Castells, a cidade, atra-vés de seus compartimentos espaciais específicos, seusdiversos espaços, incrementaria a reprodução da força detrabalho, pois, “(...) na medida em que o consumo se tor-na uma questão coletiva, a questão urbana se transformanuma questão política”.

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Paralelamente à aceleração do consumo do solo me-tropolitano e à conseqüente degradação ambiental, vemse configurando, há cerca de duzentos anos, o Planeja-mento Ambiental, em resposta a situações urbanas de cri-se provenientes do ambiente urbano da Revolução Indus-trial e tendências já materializadas na cidade barroca, comoobserva Franco (2000), ao serem derrubados os limitesda cidade medieval, propiciando a prevalência dos inte-resses empresariais, que valorizaram o traçado geométri-co e a perspectiva horizontal das grandes avenidas, emdetrimento da malha urbana que favorecia a integraçãosocial. O Planejamento Ambiental recupera a razão so-cial da cidade, ao se caracterizar pela abordagem conjun-ta dos elementos do ambiente, pois assume que poucosprocessos se desenvolvam isoladamente.9

Na Região Metropolitana de Curitiba (Mapa 1), o pro-cesso de planejamento urbano da capital do Estado tem sidodeterminante para a ocupação regional. Para muitos, trata-se de um modelo a ser seguido. No entanto, na década de90, a crise ambiental existente no conjunto da metrópoletorna-se muito evidente, especialmente quanto ao esgota-mento dos mananciais de abastecimento público de água.

ASPECTOS DA OCUPAÇÃO DE ÁREAS DEMANANCIAIS DE ABASTECIMENTO PÚBLICODE ÁGUA

Segundo documentação elaborada pelo IPPUC (1997),a cidade de Curitiba, até a década de 60, teve um cresci-mento caracterizado pelo simples acréscimo de áreas aoredor do centro urbano pioneiro. Após a fase de cresci-mento acelerado nas duas décadas seguintes, no início dosanos 90, Curitiba apresentou uma taxa anual de cresci-mento mais baixa (2,29%) que a sua região metropolitana(Tabela 1). Também há menor quantidade de bairros comtaxas de crescimento superiores à média do município, masainda bastante altas em bairros afastados, como São Miguel(16,89%), Campo de Santana (13,43%) ou Ganchinho(11,71%), que até então eram pouco habitados. Ao mes-mo tempo, a ocupação nas porções sul e noroeste do mu-nicípio consolida-se, enquanto alguns bairros mais cen-trais, onde predominam serviços e comércio, perdempopulação.

A expansão da ocupação urbana, motivada pelo baixopreço dos lotes, foi direcionada para regiões considera-

MAPA 1

Região Metropolitana de Curitiba1996

Fonte: Comec – Coordenação da Região Metropolitana de Curitiba/PR.

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das inadequadas para urbanização, que compreendem áreasinundáveis e se distribuem na porção sul do município,em zona fronteiriça a outros municípios. Porém, além daocupação periférica ainda dentro de Curitiba, estaracionalidade fundamentada no baixo custo da terra e ointeresse no usufruto das facilidades urbanas implantadasna capital paranaense levaram à continuidade – algumasvezes apenas parcial – da malha urbana curitibana em lo-teamentos implantados fora da cidade, porém próximosdos terminais de transporte coletivo urbano da capital.Nesse sentido, o estudo do Ipea e IPPUC (1993) afirmaque, “em termos de população bruta e suas taxas de cres-cimento, o que se confirma para Curitiba, nas duas últi-mas décadas, é o comportamento da região metropolita-na, a periferização da população em busca de áreas a preçosmais acessíveis à sua disponibilidade financeira, aliada àacessibilidade no transporte coletivo. Esses bairros estãolocalizados na área de influência do final dos corredoresde transporte estruturais, aí incluindo o eixo da Av. Ma-rechal Floriano Peixoto”.

O Plano de Desenvolvimento Integrado da RegiãoMetropolitana de Curitiba – PDI, aprovado em 1978, foio primeiro plano de organização territorial regional e oprimeiro produto da Coordenação da Região Metropoli-tana de Curitiba – Comec, tendo sido elaborado sobretu-do porque a instituição oficial da região metropolitanaexigia a elaboração de um plano de desenvolvimento daárea. De autoria de uma equipe de planejadores, o PDI(1978) foi pioneiro na articulação de dados regionais, atéentão nunca analisados sob o recorte metropolitano, edefiniu diretrizes funcionais segundo enfoque sistêmicocujo produto deveria ser uma região equilibrada em suasdiferentes dinâmicas, na qual o desenvolvimento urbanotivesse o suporte adequado sem que isso prejudicasse asbases produtivas e a qualidade de vida humana.

Fundamentava-se o plano em um modelo de organiza-ção territorial, visando a ação metropolitana segundo es-tratégia intra-regional que previa áreas de contenção, depreservação, de promoção e de dinamização, definidasatravés da consideração de características e potencialida-des do espaço e das atividades existentes. Quanto às áreasdos mananciais de abastecimento público mais importan-tes para a região, o documento indica que “os centros ur-banos nos municípios de Piraquara e São José dos Pinhaisdeverão ter seus crescimentos controlados de forma maisrígida em virtude de sua localização específica, muito pró-ximos a áreas de captação de água e área inundáveis”(Comec, 1999a:22) e determinava para este vetor leste,

ou “subsistema leste”, a estratégia de preservação ambien-tal, no sentido de conservação.

No chamado subsistema leste, de acordo com as carac-terísticas físico-geográficas e a ocupação existente e pre-vista, em decorrência de loteamentos aprovados nas dé-cadas anteriores a 50, o PDI/78 considerava que “oposicionamento geográfico de Curitiba, nas cabeceiras doRio Iguaçu, bem como dos maiores assentamentos urba-nos da região, impede que o desenvolvimento urbano sejaorientado na direção leste, área de terrenos planos, sob apena de esgotar importantes reservas de abastecimento deágua. Ao sul o crescimento é limitado pelo Rio Iguaçu esuas áreas de inundações. Ao norte, por uma topografiabastante ondulada. Portanto, o desenvolvimento urbanoda região é orientado para oeste; embora estas áreas abri-guem terrenos medianamente ondulados, oferecem possi-bilidades de, desviando os obstáculos, condicionar o cres-cimento de maneira orgânica.

Atualmente a Comec procede à reavaliação do PDI,pois, desde as leituras mais recentes, percebeu-se que asestratégias previstas no plano não haviam se tornado reais.Durante os anos 90, houve identificação mais clara da

TABELA 1

Evolução Populacional UrbanaRegião Metropolitana de Curitiba – 1970-1996

Municípios 1970 1980 1991 1996

Total 660.570 1.330.944 1.886.168 2.226.560Adrianópolis 831 1.051 1.589 1.691Almirante Tamandaré 4.288 27.063 59.080 80.058Araucária 5.473 27.128 54.262 68.648Balsa Nova 1.234 1.262 2.430 2.829Bocaiúva do Sul 908 1.679 2.373 3.061Campina Grande do Sul 319 3.783 12.722 22.984Campo Largo 15.927 37.401 53.892 22.984Cerro Azul 1.325 1.880 3.208 4.089Colombo 1.092 54.979 110.273 145.988Contenda 1.122 3.498 4.823 5.469Curitiba 584.481 1.024.975 1.315.035 1.476.253Doutor Ulisses 314 326 391 523Fazenda Rio Grande 617 3.265 21.855 40.499Itaperuçu 1.281 3.644 5.998 9.008Mandirituba 747 3.951 4.382 5.324Pinhais 7.972 35.406 72.079 82.787Piraquara 4.141 25.521 19.359 28.109Quatro Barras 1.105 3.493 8.132 12.272Quitandinha 1.242 1.587 2.476 2.932Rio Branco do Sul 3.787 10.766 17.716 15.401São José dos Pinhais 21.475 56.804 111.952 151.209Tijucas do Sul 389 825 1.272 1.703Tunas do Paraná 500 657 869 1.057

Fonte: Comec (1999b); IBGE.

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concentração espacial dos problemas regionais localiza-dos nas áreas periféricas. Curitiba contou ao longo dosanos com um processo de planejamento exemplar, que decerta forma repercutiu numa intensiva urbanização dasáreas periféricas, onde a legislação era mais fragmentadae permissiva, cenário só alterado com o advento da LeiFederal nº 6.799/79, que regulou o parcelamento do soloem áreas urbanas.10 A nova percepção do espaço metro-politano, com a presença marcante do desenvolvimentourbano da cidade-pólo e do seu entorno imediato – a Gran-de Curitiba – mostrou a forte vinculação entre o centrourbano mais antigo e as recentes áreas periféricas em pro-cesso de urbanização.

Loteamentos Aprovados

Segundo dados da Comec, desde períodos anteriores a1950, estendendo-se até 1994, foram aprovados regular-mente 229.618 lotes na RMC.

Nos anos 50, verificou-se o efetivo início do processo deparcelamento do solo regional, e de forma bastante expres-siva, atingindo cerca de 33% do total de lotes aprovados naRMC até 1994. Agrupando-se os dados disponíveis em eta-pas, observa-se que até 1949, com exceção da capital, ape-nas três municípios da região metropolitana – Araucária,Colombo e São José dos Pinhais – apresentavam parcela-mentos do solo de características urbanas (Tabela 2).

Naquele momento não havia base para argumentaçãocontra a ocupação urbana devido ao desconhecimentoexato da dimensão e da fragilidade do aqüífero cársticoem Colombo e municípios vizinhos, ou da escala que atin-giriam os efeitos degradadores da evolução do adensamen-to populacional regional de forma legal ou ilegal nas áreasde mananciais da porção leste. Cabe, no entanto, a cons-tatação da origem de um processo de degradação ambien-tal iniciado há cerca de 50 anos e que foi deflagrado, emsua maioria absoluta, justamente em áreas de fragilidadeem relação a grandes densidades humanas, no caso paramanutenção do recurso natural de água, enquanto fatorfundamental para a ocupação da região. Portanto, o focoda maioria absoluta das primeiras manifestações do pro-cesso contemporâneo de parcelamento do solo regionalforam as áreas metropolitanas de mananciais de abasteci-mento público no leste.

O pequeno número de lotes aprovados nos municípiosde Araucária, Colombo e São José dos Pinhais expressa afraca dinâmica do parcelamento urbano então existente noperíodo anterior a 1950. Na década seguinte, no entanto,

foram quebrados todos os recordes registrados até 1994,no que se refere a números de lotes aprovados pelos mu-nicípios que comporão oficialmente, em 1973, a regiãometropolitana em estudo. Com um total de 75.729 lotesaprovados em 13 municípios, tem-se, nos anos 50, umamédia por município de 5.825 lotes aprovados em dez anos,o que significa um crescimento de 2.589% em compara-ção com o período anterior.

Os anos 50 confirmam a constatação anterior em rela-ção à ocupação regional deflagrada na área de mananciaisleste. Através dos dados para este período, verifica-se queo grande destaque de parcelamentos urbanos desta décadaocorreu no município de Piraquara, que aprovou, neste in-tervalo de dez anos, cerca de 60% do total de lotes aprova-dos pelo município até 1994, ou seja, mais de 40 anos de-pois. A quantidade de lotes aprovados em Piraquara foi aindamaior do que no município vizinho de São José dos Pinhais,líder do processo no leste metropolitano até então.

Desde as origens do tipo de parcelamento aqui focali-zadas na RMC, os municípios do leste metropolitano quecontêm em seus territórios os mananciais mais importan-tes para abastecimento regional – Pinhais, Piraquara e SãoJosé dos Pinhais – tiveram um desempenho determinantepara tornar significativo este processo. No entanto, aomesmo tempo, incorporaram a seus territórios elementospotenciais para uma ocupação incompatível com valores

TABELA 2

Total de Lotes AprovadosRegião Metropolitana de Curitiba – 1949-1994

Até 1949 1950-59 Total até 1994Municípios

Nos Nos Nos

Absolutos % Absolutos % Absolutos %

Total 676 0,29 75.729 32,98 229.618 100,00Almirante Tamandaré - - 3.192 14,96 21.342 100,00Araucária 123 0,67 1.525 8,29 18.386 100,00Balsa Nova - - - - 533 100,00Bocaiúva do Sul - - 247 18,88 1.308 100,00Campina Grande do Sul - - 3.080 41,48 7.425 100,00Campo Largo - - 4.780 30,19 15.831 100,00Colombo 311 0,90 9.746 28,12 34.658 100,00Contenda - - - - 637 100,00Fazenda Rio Grande - - 1.297 14,86 8.730 100,00Itaperuçu - - - - 3.680 100,00Mandirituba - - 94 12,16 773 100,00Pinhais - - 10.954 41,94 26.116 100,00Piraquara - - 21.427 61,56 34.806 100,00Quatro Barras - - 1.298 22,38 5.801 100,00Rio Branco do Sul - - 83 2,02 4.113 100,00São José dos Pinhais 242 0,53 18.006 39,59 45.479 100,00

Fonte: Comec (1999b).

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ambientais. A aprovação de loteamentos dispersos, des-conectados da malha urbana estabelecida, era prática rea-lizada sem parâmetros para avaliação dos danos sociais,econômicos e ambientais futuros.

Sem dúvida o município de maior número de lotes apro-vados é o de Piraquara, integrante da área de mananciais re-gionais do leste. Até 1949 não havia registro de loteamentosem Piraquara, mas, nos dez anos seguintes, ocorreu a apro-vação recorde de 21.427 lotes, valor que, na década de 60,caiu para menos de 1/5 do total efetivado nos anos 50.

Outro destaque surpreendente pelo alto número de lo-tes aprovados consiste no caso do então Distrito de Pi-nhais, pertencente ao município de Piraquara, do qualemancipou-se em 1992. O distrito industrial congregavauma série de indústrias chamadas “de fundo de quintal”.Localizada exatamente na divisa com Curitiba, esta loca-lidade apresenta problemas de suscetibilidade a inunda-ções, baixa declividade dificultando a drenagem natural eescoamento superficial. Na década de 50, contudo, veri-ficou-se a aprovação de nada menos do que 10.954 lotesnesta porção regional, que está também em área de ma-nanciais importantes. Em um patamar bem abaixo, apesarde não menos importantes, ficam os municípios de Cam-po Largo (4.780 lotes), Almirante Tamandaré (3.192 lo-tes) e Campina Grande do Sul (3.080 lotes).

Esta posição significativa do parcelamento na área demananciais leste em relação ao total de lotes aprovados naRMC, entre 1950 e 1959, pode ser visualizada no Gráfico 1.

Portanto, houve uma explosão na quantidade de lotesaprovados em vários municípios metropolitanos na déca-da de 50, sendo que os maiores números envolvem áreasdos mananciais do leste regional (66,52%).

Na década de 60, na Região Metropolitana de Curitiba,aprovou-se metade do total de lotes da década anterior. Emrelação à proteção dos mananciais, o governo estadual daépoca procedeu à desapropriação de loteamentos aprova-dos em margens de rios, o que desestimulou a ocupação.

Na década 70, sobressai o caráter definitivo de acele-ração da ocupação periférica regional, através dos desta-ques absolutos de número de lotes aprovados nos municí-pios de Almirante Tamandaré e Colombo, em locaisambientalmente inadequados e desprovidos de estruturaçãourbana. Tal situação assumiu papel determinante no qua-dro dos problemas regionais 20 anos depois.

A partir da interrupção da trajetória acelerada deparcelamento do solo metropolitano ocorrida na décadaanterior, os anos 80 configuram-se como uma retomadade crescimento da ocupação do solo em condições de maiorestabilidade quanto ao parcelamento do solo regional. Osgrandes picos de parcelamento atingem valores menoresque os da década de 70.

Ao mesmo tempo, verificam-se uma queda na intensi-dade do processo em geral e uma retomada de crescimen-to, porém de forma mais expandida, abrangendo maiornúmero de municípios metropolitanos. Neste momento,observam-se duas faces desconexas na configuração es-pacial da Região Metropolitana de Curitiba: enquanto arealidade evidencia com maior vigor uma discrepância comas estratégias do plano regional – PDI de 1978, é aprova-da a maioria das legislações de uso e ocupação do solonos municípios, conforme as estratégias do mesmo PDI.

A Região Metropolitana de Curitiba reúne atualmentecerca de 27% da população do Estado – uma proporçãomenor que a média das regiões metropolitanas do país(38,61%) (IBGE, 1991 e 1996) –, mas demonstra cresci-mento de 266,27% em relação ao período inicial da ace-leração do processo de urbanização regional, nos anos 50.

No Gráfico 2 apresenta-se um resumo das análises pre-cedentes, referente ao número de lotes aprovados na RMC,por município e por década, em seus valores médios emáximos, visando delinear a seqüência do fenômeno daocupação do solo urbano metropolitano.

Comparando-se os dados relativos ao número de lotesaprovados com o crescimento populacional no período1949-94, observa-se que o montante de lotes aprovados nosseis períodos torna-se insignificante. No entanto, cabe a ob-servação referente à taxa de ocupação de cada lote e coefi-ciente de aproveitamento, que no caso em foco normalmen-te restringe-se a uma família composta por 3,67 pessoas, pelamédia regional (Comec, 1999b) ou, às vezes, mais de uma

GRÁFICO 1

Comparativo do Total de Lotes Aprovados na Década de 50Região Metropolitana de Curitiba e

Municípios dos Mananciais do Leste Metropolitano – 1950-59

Fonte: Comec (1999b).

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família. Sem agrupar o número de habitantes por família emcada lote, verifica-se o grande aumento populacional a par-tir dos anos 70. Considerando-se a diferença de ângulo dográfico de crescimento populacional na RMC nos períodosanalisados, conclui-se que, caso o número de lotes aprova-dos permanecesse no ritmo apresentado entre 1960 e 1970,chegar-se-ia ao final dos seis períodos com cerca de 340.000lotes aprovados na RMC. No entanto, considerando a taxade crescimento entre 1979 e 1994, chegar-se-ia ao final dosperíodos com mais de 800.000 lotes aprovados na RMC. Cabeobservar que este último número calculado refere-se à ten-dência real, em andamento.

Visualizam-se algumas evidências advindas da compa-ração entre o ritmo do crescimento populacional e o nú-mero de parcelamentos de solo urbano na região, princi-palmente em relação à defasagem entre os dois fatores,lembrando-se que os dados apresentados não incluemCuritiba, município que abriga mercado imobiliário demaior porte e dinamismo, mas que envolve valores incom-patíveis com o poder aquisitivo da população que adquireos lotes na periferia.

Voltando a atenção para a ocupação em área de ma-nanciais, verifica-se que os municípios de Pinhais, Pira-quara e São José dos Pinhais têm sido objeto de intensoprocesso de parcelamento do solo, em áreas urbanizadasou não, dentro do perímetro urbano ou em zonas rurais.Inicialmente conformou-se um quadro de ocupação em

potencial que, no entanto, assumiu escala e significadocrescentemente mais significativos no decorrer dos últi-mos 50 anos.

Pelos dados anteriormente apresentados, verifica-se queesses parcelamentos, regularmente aprovados, atingiramum pico não mais repetido na década de 50, estendendouma grade preliminar de 75.729 lotes distribuídos em tre-ze municípios, sendo que Piraquara liderou esta etapa,aprovando mais de 21.000 lotes. Cabe destacar o fato deque grande parte destes parcelamentos – implantados ounão – encontram-se em espaços de grande proximidadecom o pólo metropolitano, sendo exemplo o territóriodesmembrado de Piraquara, em 1992, que veio a se cons-tituir no município de Pinhais.

No geral, observa-se uma dinâmica regional de ocupa-ção bastante intensa e que vem se acelerando, com umataxa de crescimento populacional regional em torno de3,43% a.a., enquanto a população do Estado está crescendo1,24% (IBGE, 1991 e 1996). Este ritmo acelerado de cres-cimento, que se destaca entre as demais regiões metropo-litanas do país, traz alguma inquietação a respeito da qua-lidade de vida dos habitantes, especialmente em relaçãoaos recursos fundamentais para a sobrevivência. Dentreestes está a água, cuja principal fonte natural encontra-senos mananciais de abastecimento público.

Conforme estudos de especialistas, os recursos hídricosda RMC são limitados e seu esgotamento está próximo,num horizonte de 35 anos. Por outro lado, a necessidadede habitação segue aumentando, ao longo das décadas, nocompasso do crescimento populacional, tanto vegetativoquanto de migrações, estas últimas fruto principal da dis-seminação de uma imagem de cidade sem problemas, comexcelente qualidade de vida e com forte poder de atra-tividade. A questão da contaminação dos mananciais deabastecimento público de água está estreitamente vincu-lada à realidade econômica e social e depende da capaci-dade de atendimento às demandas públicas e da mobili-zação do Estado, ou seja, a efetividade de políticaspúblicas.

No âmbito das ações do Estado, encontram-se aquelasreferentes ao planejamento urbano e regional, queobjetivam a organização espacial das atividades da socie-dade no território. A questão do parcelamento do solo me-tropolitano extrapola a apropriação da base física paradelinear os contornos da vida urbana em seus quesitosrelativos à qualidade. Além dos dados demográficos, aque-les referentes à renda são importantes para o delineamen-to da população que ocupará, no caso, os lotes aprova-

GRAFICO 2

Evolução do Número de Lotes Aprovados,Considerando os Valores Médios e Máximos

Região Metropolitana de Curitiba (1) – 1949-94

Fonte: Comec (1999b).(1) Exceto o município de Curitiba.

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dos. Os futuros moradores farão parte da massa de contri-buintes que, com o pagamento de taxas, tarifas e outrasmodalidades de imposto, mantêm boa parte dos serviçospúblicos urbanos, viabilizando a manutenção e a renova-ção dos atendimentos gerais da cidade.

Na RMC, segundo dados do IBGE provenientes do Cen-so Populacional de 1991, 40,12% dos chefes de família re-cebem até dois salários mínimos por mês e 33, 11% ga-nham até cinco salários mínimos mensais. Ou seja, naparcela com teto salarial de dois salários, provavelmenteas necessidades básicas consumirão a renda. Mesmo entreaqueles cujos rendimentos não ultrapassam os cinco salá-rios, considerando uma família de três a quatro pessoas,11 opadrão de vida será um tanto restrito para formação profis-sional de nível médio a alto, acesso a conhecimento atuali-zado, novas tecnologias e inúmeros exemplos de atividadesde crescimento do potencial humano. Como conseqüência,caberá ao próprio Estado suprir espaços públicos com re-cursos materiais e humanos para o desenvolvimento dos seuscidadãos. Porém, antes das condições complementares paraa qualidade de vida, existem, na área em estudo, questõesfundamentais a serem resolvidas.

A questão habitacional configura-se num dos maioresdesafios para o poder público. Antes mesmo de melhoriados padrões habitacionais existentes, visando otimizaçãodo consumo de energia, ou utilização de materiais e pro-cessos que causem menos impacto ao ambiente, devem-severificar as condições de pobreza extrema, em que os cida-dãos utilizam-se de subabitações, configurando um proble-ma social e de responsabilidade do Estado. Nesse aspecto,é interessante verificar a escala assumida pelo problema dasocupações irregulares da região, em especial nos municí-pios aqui enfocados pela sua condição de proximidade comos mananciais de abastecimento público de água.

Um dos pontos que não têm sido considerados devida-mente no planejamento e na gestão regionais diz respeitoà interligação das sub-bacias hidrográficas, especialmen-te a disseminação da poluição gerada a montante que atingeas áreas a jusante. Considerando-se que as duas captaçõesda Sanepar na bacia do Alto Iguaçu localizam-se uma noRio Iraí, entre os municípios de Piraquara e Pinhais, e aoutra no Rio Iguaçu, no município de São José dos Pi-nhais, divisa com Curitiba, verifica-se que a contamina-ção das sub-bacias decorrentes de ocupações, regulares eirregulares, observadas na área de estudo, apresenta-sepreviamente carregada à altura de Pinhais com o volumedo Rio Palmital, cujas nascentes estão no município deColombo, ao norte.

A várzea do Rio Palmital vem sendo progressivamenteocupada de forma irregular desde os anos 70, transfor-mando-se num grande foco de contaminação dos manan-ciais usados no abastecimento regional público de água.Essa contaminação é causada, dentre outros motivos, pelaocupação conhecida por “Zumbi dos Palmares”, localiza-da no município de Colombo, que é uma das três maioresocupações regionais apresentando mais de 1.000 unida-des de subabitações em 1997, segundo Comec, ou seja,uma população de cerca de 3.800 habitantes12 assentados,sem infra-estrutura, sobre o leito de inundação do rio. ORio Palmital encontra o Rio Iraí na divisa entre os muni-cípios de Pinhais e Piraquara, unindo-se mais à frente, nadivisa com Curitiba, ao Rio Atuba, no chamado “MarcoZero do Iguaçu”. Na bacia do “Altíssimo Iguaçu”, encon-tram-se as duas captações de água do lado leste da RMC,que representam 69,23% da produção de água do princi-pal sistema de abastecimento público regional, denomi-nado “Sistema Integrado Curitiba”, junto à BR-277. Estesistema abastece Curitiba, Araucária, Colombo (em cercade 50%), Pinhais e São José dos Pinhais.

Tal qual vasos comunicantes, os rios de uma mesmabacia desenvolvem sua dinâmica natural independente doslimites político-administrativos municipais ou de outranatureza abstrata, impostos pelo homem. Quando anali-sam-se dados, os números passam a ser sobretudo indica-dores de uma realidade concreta que perfaz todo um qua-dro de qualidade de vida. Entre 1992 e 1997, o número deocupações irregulares nos municípios do leste enfocadosno trabalho – Pinhais, Piraquara e São José dos Pinhais –cresceu cerca de 4,5 vezes em cinco anos, o que pode sig-nificar que, a cada ano, instalaram-se precariamente nes-tes municípios cerca de 5.783 pessoas ou, a cada dia, maisde 15 pessoas, ou quatro famílias, considerando uma mé-dia regional de componentes da unidade familiar.13 Estevalor atinge, em 1997, um total de 38.221 pessoas, nostrês municípios, em estado de carência generalizada, poisas ocupações irregulares normalmente formam um qua-dro de extrema precariedade, não apenas quanto aos as-sentamentos em si, na sua materialidade, mas principal-mente no que se refere à precariedade física, de formaçãoprofissional e da cidadania dos seus moradores.

A respeito da evolução das ocupações irregulares na re-gião metropolitana, cabe destacar que o número destas unida-des existentes nos três municípios analisados é 2,9 vezes maiorque o valor apresentado pela RMC no mesmo período.14

A variação das taxas de crescimento das ocupações ir-regulares ocorridas nos municípios da região metropoli-

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tana, entre 1992 e 1997, configurou focos para tal tipo deassentamento. Na liderança encontra-se o município dePiraquara, com uma taxa de 69,81%, seguido por São Josédos Pinhais e Bocaiúva do Sul. Estes três municípios sãointegrantes do vetor leste de crescimento metropolitano.

Neste momento é necessário salientar a gravidade dasocupações localizadas em áreas de mananciais. Ao leste,sobre mananciais superficiais, e na direção norte, sobremananciais subterrâneos cársticos. Além disso, cabe tam-bém destacar o grande número de ocupações efetivadasno município de São José dos Pinhais, o segundo maiornúmero da região metropolitana, com taxa de crescimen-to em 34,93%, entre 1992 e 1997.

Portanto, pode-se concluir que as ocupações irregularesde maior amplitude quanto à ocupação espacial situam-seem áreas metropolitanas menos adequadas para recebê-las,no caso, em razão da sua localização em áreas de manan-ciais de abastecimento público de água, tanto ao norte comoa leste da região. O grande destaque fica com os municípiosde Piraquara e São José dos Pinhais, que apresentam núme-ros muito altos, especialmente o primeiro. Esta constataçãodemonstra o risco ambiental advindo do processo de ocupa-ção que atinge importantes áreas de mananciais de abasteci-mento público de água, como nos municípios citados.

O Planejamento Urbano Ambiental coloca-se comoperspectiva a ser implementada, pois, de forma similar aoque houve com o PDI, os seus instrumentos, estruturais enão-estruturais, devem ser executados. Tendo em vista ascondições atuais da RMC, especialmente em relação àpobreza da população periférica, é necessário considerarum enfoque ambiental em relação ao planejamento urba-no-regional. Isto exige adotar princípios amplos, de cu-nho socioambiental, como os privilegiados pela “Agenda21”, que aborda as dimensões sociais e econômicas, a con-servação e o gerenciamento dos recursos para desenvol-vimento o fortalecimento do papel dos grupos principais,como a infância e a mulher. A Agenda 21, para o urbano,é um guia para a articulação de políticas locais, como asreferentes ao espaço urbano.

NOTAS

E-mail dos autores: [email protected] e [email protected]. Mendonça (2001) apresenta uma análise embasada em dados e que explicita oparadoxo entre o citymarketing e os graves problemas relativos à degradaçãoambiental em Curitiba e sua região metropolitana.2. Slogan veiculado na década de 80 pela administração pública municipal deCuritiba para enfatizar aspectos da qualidade de vida da cidade.3. Slogan criado pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba(IPPUC), no início da década de 90, com base no índice de áreas verdes da cida-de (cerca de 50 m2/hab conforme dados da própria prefeitura) e sua associação

com o modelo de transporte coletivo implantado, tomado como sucesso pela ad-ministração municipal.

4. Esta problemática foi o tema central da tese de doutorado de um dos autores dopresente texto (Lima, 2000).

5. Analisando os escritos de diversos autores a respeito do espaço e da cidade,Choay (1985:68) ressalta a condição privilegiada que o comentário sobre a cida-de possibilita ao expressar uma visão de mundo e uma idéia da natureza humana.6. Referência à denominação utilizada por Choay (1979:61-136).

7. São dessa época várias proposições, teóricas e práticas, elaboradas por profis-sionais de diversas categorias, como historiadores, economistas e políticos. Desta-cam-se as obras de Owen, Fourier, Cabet e outros, como descreve Benevolo (1983).

8. Como idéia e pensamento, as origens do urbanismo remontam ao início daRenascença, no século XV. Para Harouel, o urbanismo foi definido em 1867 porCerda, no que concorda Choay (1985). No entanto, quanto à adoção do termopela realidade atual, considera-se neste trabalho a data apresentada por Bardetapud Choay (1979:2-3).

9. O exemplo da importância da permeabilidade do solo urbano remete a um con-junto de ações de conservacionistas, cujo sucesso depende das ações humanas(Gibbons, 1996:243).

10. Constitui exemplo a desapropriação ocorrida na gestão de Parigot de Souza,no governo estadual, com área de loteamento adquirida pela Sanepar, empresaestatal de distribuição de água e saneamento.

11. Composição familiar média na RMC é de 3,67 pessoas (Comec, 1999b:52).12. Número médio de moradores no município de Colombo, segundo Comec (1999b).

13. Adotando a média entre os valores dos três municípios (3,67 pessoas/domicí-lio), segundo Comec (1999b).

14. Na RMC o número das ocupações irregulares cresceu 152,22% durante oscinco anos contemplados, enquanto em Pinhais, Piraquara e São José dos Pinhaiso crescimento das unidades foi de 442,58 % no mesmo período (Comec, 1999b).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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“A

A OPOSIÇÃO FAVELA-BAIRRO NOESPAÇO SOCIAL DO RIO DE JANEIRO

LUIZ CESAR DE QUEIROZ RIBEIRO

Professor do IPPUR da Universidade Federal do Rio de JaneiroLUCIANA CORRÊA DO LAGO

Professora do IPPUR da Universidade Federal do Rio de Janeiro

Resumo: O trabalho tem como objetivo traçar o perfil social da população residente em favelas nametrópole do Rio de Janeiro a partir de dois enfoques analíticos: a heterogeneidade social no interior douniverso estudado e a distância social entre tal população e aquela em seu entorno. Essa perspectiva nospermitirá refletir sobre a imagem da favela como o locus principal da pobreza excludente. Para tanto,serão analisados indicadores de ocupação, renda, instrução, padrão familiar, migração, cor e idade,construídos com os dados do Censo Demográfico 1991 e da Contagem da População 1996.Palavras-chave: favela; segregação urbana; desigualdades sociais.

s ‘favelas’ – criação genuinamente carioca,não observada em nenhuma outra cidade,mesmo no Brasil – não constituem puramente

Ocupada militarmente a área reconquistada, os morado-res devem ser ajudados a sair dali, pois o território recon-quistado vai ser liberado da presença do crime. Vai ser re-florestado, se for o caso. Ou vai servir para uma escola,para um posto de saúde ou para uma delegacia. Enfim, vaiter uma destinação pública e social.

Ao reassentar os moradores em suas novas residências,o poder público deve cuidar para que eles possam ter, daíem diante, a mesma qualidade de vida de qualquer cidadãocarioca, livre de quadrilhas e de chefes de gangues”(Cavalcanti, 1996).

Essas duas citações ilustram a longevidade do chama-do “problema da favela” no Rio de Janeiro. Expressamtambém, de maneira condensada, a trajetória da principal(di)visão da sociedade carioca, centrada na separação entrea favela e a cidade. Desde o início do século XX, comefeito, as favelas vêm sendo representadas como perten-centes a um outro mundo social e cultural, como se fos-sem “uma cidade à parte”, já escrevia Olavo Bilac. A pro-ximidade espacial com os bairros de classe média alta,urbanisticamente organizados e providos de equipamentoe serviços urbanos, produziu um forte contraste social queserve de evidência auto-demonstrada da existência dasduas cidades.

Durante a década de 70, no cerne da crítica à chamada“teoria da marginalidade urbana”, buscou-se demonstraro equívoco dos discursos dualistas sobre as favelas, man-

impiedoso crime contra a estética, elas são particularmen-te uma grave e permanente ameaça à tranqüilidade e à sa-lubridade públicas.

Erigidas contra todos os preceitos da higiene: sem água,sem esgotos, sem a mínima parcela de limpeza, sem re-moção de lixo; são como largas sentinas cobertas de deje-tos e dos demais resíduos da existência humana, amon-toados de imundícies e podridões repastando nuvens demoscas, infiltrando nos quarteirões da cidade toda a sortede moléstia e de impurezas.

Desprovidas de qualquer espécie de policiamento,construídas livremente de latas e frangalhos em terre-nos do Patrimônio Nacional, libertadas de todos os im-postos, alheias a toda ação fiscal: são excelente estí-mulo à indolência, atraente chamariz de vagabundos,reduto de capoeiras, vallacoitos de larápios que levama insegurança e a intranqüilidade aos quatro cantos dacidade pela multiplicação dos assaltos e dos furtos”(Pimenta, 1926).1

“A única solução que existe para se recuperar um terri-tório que está em poder do inimigo é iniciar uma açãobélica. Trata-se de pôr em prática uma tática de guerra,com a ocupação, ostensiva e poderosa, de todo o territó-rio a ser conquistado.

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A OPOSIÇÃO FAVELA-BAIRRO NO ESPAÇO SOCIAL DO RIO DE JANEIRO

tidos por instituições, governos e parte da academia. Como?Demonstrando a existência de semelhanças entre as fave-las e os espaços populares, em termos de estrutura e prá-ticas sociais. Constatando que nas favelas não havia sómigrantes do campo e tampouco nelas observava-se asobrevivência da cultura folk, as favelas passam a ser vis-tas como “complexo coesivo, extremamente forte em todosos níveis: família, associação voluntária e vizinhança”(Boschi, 1970). Outros demonstraram que a vida nas fave-las era marcada “pela amizade e espírito cooperativo e re-lativamente livre de crime e da violência” (Perlman,1977:136). Encontrou-se na favela uma estrutura socialdiversificada, chegando-se mesmo a observar a existênciade setores identificados como a “burguesia favelada” e quenela se fazia política como nos outros espaços populares(Silva, 1967). Também identificou-se a existência de rela-ções de sociabilidade entre “mundo da favela” e “mundodos bairros”, inicialmente pela inserção dos moradores dafavela no mercado de trabalho.

Nos dias de hoje, as representações dualistas das fa-velas retornam ao debate público sobre a sociedade ur-bana carioca. Em primeiro lugar, pelos efeitos, no campoacadêmico, da absorção de conceitos e noções teóricascom os quais se estrutura hoje o debate internacionalsobre os impactos sociais e espaciais das mudanças eco-nômicas nas cidades. Tornou-se expressão de prestígiointelectual o uso de termos tais como “gueto”, “exclusãosocial” e “nova marginalidade” nas análises sobre o “pro-blema da favela”. Assume-se como axioma que as mudan-ças em curso no mundo do trabalho estariam desfazendoas relações de integração da favela com a cidade. A in-clusão do narcotráfico e da violência urbana na agendada academia reforça a legitimidade da concepção dualista,uma vez que a vida organizativa da favela estaria sendosubstituída por um estado de anomia. Não raro, encon-tramos menções que associam as favelas cariocas aosguetos negros americanos.

A utilização freqüente pela mídia de metáforas tais como“cidade partida”, “desordem urbana”, entre outras, por ou-tro lado, vem dotando a concepção dualista da favela delegitimidade social. Em contrapartida emergem demandas,por parte de governos e instituições ligadas à gestão públi-ca da pobreza, de novos discursos sobre a favela que subsi-diem a política de integração da favela ao bairro.

Em resumo, assistimos hoje à produção intensa de ima-gens, idéias e práticas que re-editam o antigo mito da fa-vela como um outro mundo social à parte da cidade, dife-rente, identificado pela carência e desorganização.

A proposta deste trabalho é submeter essa (di)visão dacidade do Rio de Janeiro a uma reflexão crítica, a partir daavaliação empírica das diferenças demográficas e sociaisentre o mundo da favela e o da cidade. O texto está dividi-do da seguinte maneira: na primeira parte, examina-se aevolução da população moradora em favelas no períodode 1940 a 1996. Na segunda, são analisados os principaistraços sociodemográficos da população residente nas fa-velas e nos bairros da cidade. Por fim, avalia-se a distânciasocial entre moradores em favela e em bairros segundo arenda.

QUESTÕES CONCEITUAIS EMETODOLÓGICAS

Os conceitos de espaço e de distância sociais são utili-zados classicamente na sociologia para desvendar os me-canismos que regulam os processos de interação humananas formas societárias de vida coletiva. Eles estão pre-sentes nas obras de autores como Simmel (1971), Sorokin(1973), Park (1924), entre outros. Podemos, no entanto,identificar duas concepções distintas desses conceitos: umapsicossocial, que entende a distância social como o resul-tado de atitudes de simpatia e antipatia de certos gruposem relação a outros (Bogardus, 1959), e outra propria-mente sociológica (Sorokin, 1973; Bourdieu, 1979), naqual a distância social entre os indivíduos resulta das re-lações das posições sociais nas quais estão inseridos. Nessasegunda corrente, a subjetividade dos indivíduos tem im-portância, mas como resultado da sua inserção no mundosocial, já que as “similitudes na posição social dos indiví-duos ocasionam, geralmente, modos de pensar semelhan-tes, uma vez que implica hábitos, interesses, costumes, va-lores e tradições, inculcados nas pessoas por grupossociais semelhantes, aos quais estas pessoas pertencem”(Sorokin, 1973:227).

É na sociologia de Bourdieu (1979; 1993), contudo,que o conceito de distância social ganha importância ana-lítica. Em sua visão espacial da sociedade, Bourdieu com-preende o espaço social como formado por relações deproximidade e separação que são, antes de mais nada, re-lações hierárquicas. Por outro lado, os lugares no espaçosocial são definidos pelas posições geradas pela distribui-ção desigual do volume e da composição do capital (eco-nômico, social e simbólico), as quais expressam as rela-ções de dominação na sociedade entre as classes sociais.

“A idéia de diferença, de separação, está no fundamen-to da própria noção de espaço, conjunto de posições dis-

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tintas e coexistentes, exteriores umas às outras, definidasumas em relação às outras por sua exterioridade mútua epor relações de proximidade, de vizinhança ou dedistanciamento e, também, por relações de ordem, comoacima, abaixo e entre. Várias características dos membrosda pequena burguesia, por exemplo, podem ser deduzidasdo fato de que eles ocupam uma posição intermediáriaentre duas posições extremas, sem serem objetivamenteidentificáveis e subjetivamente identificados com uma oucom outra” (Bourdieu, 1993:18).

Compreendendo a cidade como a “objetivação” doespaço social, a análise das proximidades e distânciassociais entre favela e o restante da cidade implica ava-liar a sua posição na (di)visão do mundo social cario-ca. Essa análise, porém, não é trivial, pois pressupõesuperar duas tendências presentes nas formas hege-mônicas de representação da distinção social, que mui-tas vezes surgem como realidades auto-evidenciadas,portanto inquestionáveis pelo discurso científico. Tra-ta-se das tendências à naturalização e à substancializa-ção da ordem social, nas quais têm enorme importân-cia as metáforas espaciais. Com efeito, elas nos produzema ilusão de que as propriedades sociais de uma práticaou os atributos de um grupo podem ser explicados poreles mesmos, sem levar em consideração que o real nasociedade é sempre relacional e, como tal, construídosocialmente.

“A estrutura do espaço social se manifesta, em contex-tos mais diversos, sob a forma de oposições espaciais, oespaço habitado (ou apropriado) funcionando como umaespécie de simbolização espontânea do espaço social. Nãohá espaço em uma sociedade hierarquizada que não sejahierarquizado e que não exprima as hierarquias e as dis-tâncias sociais, sob uma forma (mais ou menos) deforma-da e sobretudo mascarada pelo efeito de naturalização queimplica a inscrição durável das realidades sociais no mundonatural: as diferenças produzidas pela lógica histórica po-dem assim parecer surgidas da natureza das coisas (é su-ficiente pensar na idéia de ‘fronteira natural’ ” (Bourdieu,1993:160).

A avaliação crítica da separação entre favela e cidadedeve, portanto, começar pela crítica do senso comum quesustenta essa distinção social, para posteriormente re-construí-la cientificamente como objeto de conhecimento.Seguindo as pistas do caminho analítico proposto porWacquant (2000) para analisar o lugar dos guetos no es-paço social da sociedade americana, a nossa tarefa com-portaria as seguintes atividades:

- identificar as categorias do senso comum com as quaisse produzem discursos mais ou menos eruditos sobre asfavelas e seus congêneres (mocambos, baixada, etc.);- reconstruir a história dessas categorias, procurandoidentificar quais as suas funções no sistema de classifica-ção da sociedade brasileira, ou seja, nas formashegemônicas pelas quais as divisões e desigualdades so-ciais são representadas, que podem ser de isolamento,separação e reserva de força de trabalho;- analisar a hierarquia do espaço social, fazendo a neces-sária distinção analítica entre a condição social da favela,isto é, as suas características sociodemográficas, urbanís-ticas e ambientais, e sua posição no espaço social da ci-dade, o que implica pensar a favela como um lugar na hie-rarquia socioespacial do Rio de Janeiro. A maioria dasanálises restringe-se a avaliar a condição social da favela,buscando-se descrever as características e os atributos queexplicariam a posição de isolamento ou separação e infe-rioridade;- analisar a demanda de discurso público sobre a margi-nalidade. Há uma investida intelectual na formulação dodiscurso sobre a marginalidade e a exclusão que não estádesconectada das necessidades da gestão social da pobre-za por meio da intervenção pública. Muitas vezes, o sur-gimento de problemas na manutenção da ordem social esimbólica da cidade gera novas demandas – por parte dasinstituições encarregadas pela gestão social da pobreza –de discursos públicos sobre os pobres, suas formas de vidae de moradia.

Esta análise não pretende percorrer todas essas etapas.A proposta deste texto é apenas identificar a situação so-cial das favelas a partir da avaliação empírica das dife-renças sociodemográficas que as distanciam e aproximamda cidade. Para tanto, serão utilizadas fontes de informa-ções diferentes, compreendendo períodos distintos – Cen-so Demográfico 1991 e Contagem da População 1996. Aofinal do texto encontra-se o esboço de uma reflexão sobrea pertinência da separação da favela e da cidade na com-preensão dos princípios de construção e reprodução doespaço social da cidade do Rio de Janeiro.

EVOLUÇÃO DA POPULAÇÃORESIDENTE EM FAVELA

Os dados censitários de 1950 a 1991 mostram que ataxa de crescimento anual da população favelada do Riode Janeiro começou a decrescer na década de 60, sofren-

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A OPOSIÇÃO FAVELA-BAIRRO NO ESPAÇO SOCIAL DO RIO DE JANEIRO

do uma queda brusca nos anos 70. Tal queda se deve atrês fatores (Tabela 1). Em primeiro lugar, a diminuiçãodo ritmo de crescimento populacional não foi relativaapenas aos residentes em favelas, mas a toda a populaçãocarioca. No período 1950-1960 a população cresceu cer-ca de 3% ao ano, e os favelados, 7% ao ano. Na década de70 esses percentuais caíram para 1,8% e 2,5%, respecti-vamente. Nesse período o movimento migratório em di-reção à metrópole do Rio de Janeiro começava a perder oímpeto verificado nos anos 40 e 50, e a capital, principalárea de atração desses fluxos, sofreu os impactos dessamudança. Nota-se, entretanto, que a proporção de favela-dos em relação ao total da população continuou aumen-tando, até mesmo no período 1970-1980, quando a taxade crescimento dos primeiros alcançou seu menor valor(Tabela 1). Em outras palavras, o ritmo de crescimentoda população favelada se manteve bem acima da progres-são dos demais moradores.

O segundo fator relacionado à queda da taxa de cresci-mento da população favelada entre as décadas de 60 e 70foi a “abertura” da periferia metropolitana aos trabalha-dores pobres por meio da produção extensiva de lotes ur-banos, iniciada na década de 50 e expandida até os anos70. Nesse período, o loteamento periférico, com baixosinvestimentos em infra-estrutura e comercialização a lon-go prazo, tornou-se o principal meio de acesso dos po-bres à casa própria. Com efeito, houve um redireciona-mento dos fluxos migratórios inter e intra-regionais paraessas “novas” áreas, especialmente os oriundos do pró-prio município do Rio de Janeiro, o que gerou a diminui-ção do número de migrantes na capital.

Por último, cabe mencionar os impactos da política deremoção de favelas nas décadas de 60 e 70. Segundo San-tos, 175.800 pessoas haviam sido removidas até 1968, masfoi a partir desse ano, até 1973, que o programa foi mais

sistemático e intenso. Vale mencionar o caráter seletivo detal política, na medida em que 70% dos domicílios removi-dos localizavam-se na zona sul, na Tijuca e no Méier. Oresultado foi a perda de representatividade das favelas dazona sul: se, em 1950, 25,4% da população favelada estavana zona sul, em 1970 apenas 9,6% dela ainda residia na área(Castro, 1979).

Esse conjunto de fatores alimentou a idéia, difundidano final dos anos 70, de que as favelas tenderiam a desa-parecer do cenário urbano carioca. Entretanto, houve umaretomada do crescimento das favelas na década de 80, tantopela densificação das antigas quanto pelo surgimento denovas.

Por que voltaram a crescer as favelas na cidade do Riode Janeiro, exatamente no momento em que ocorreu umaforte queda do crescimento demográfico da cidade? Emprimeiro lugar, em razão da mudança da dinâmica do cres-cimento metropolitano do Rio de Janeiro. Com efeito, ocrescimento extensivo-periférico, que gerou oportunidadesde acesso à casa própria para amplos segmentos sociais,entrou em colapso, entre outras razões, pelo encarecimen-to da terra e pela perda da capacidade de endividamentodos trabalhadores em geral, atingindo aqueles com menorqualificação e sem proteção das leis trabalhistas. Somem-se ainda as transformações na conjuntura política fluminensea partir de 1982, data que marca o início da adoção pelospoderes públicos locais (governo estadual e municipal) depolíticas de reconhecimento das favelas e dos loteamentosirregulares e clandestinos como solução dos problemas demoradia das camadas populares. Essas políticas, ao propo-rem a legalização da posse da terra e a urbanização das fa-velas, reduziram as incertezas quanto à manutenção dosmoradores em suas ocupações e criaram expectativas demelhores condições de vida, cujo resultado foi a reduçãodas barreiras para novas ocupações.

Nos anos 90 o ritmo de crescimento da populaçãofavelada (1,6% ao ano) manteve-se bem acima do refe-rente ao da população não-favelada (0,0% ao ano). O re-sultado foi o aumento da proporção dos que residem emfavelas em relação ao total da população carioca, que pas-sou, em cinco anos, de 16% para 17%. No entanto, essastendências variaram significativamente entre as diferentesregiões da cidade. As duas zonas de expansão do municí-pio – o eixo elitizado da Barra/Jacarepaguá e o eixo popu-lar da zona oeste – apresentaram as maiores taxas de cres-cimento tanto da população favelada (3,9% e 3,4% ao anorespectivamente) quanto da não-favelada (1,6% e 1,3% aoano). Nas três zonas consolidadas, todas com crescimen-

TABELA 1

Crescimento da População Total e FaveladaMunicípio do Rio de Janeiro – 1950/1991

População População Crescimento Populacional B/A

Anos do Município Favelada a.a. (%) (%)

(A) (B) do Município da Favela

1950 2.375.280 169.305 - - 7,131960 3.300.431 335.063 3,34 7,06 10,151970 4.251.918 565.135 2,57 5,37 13,291980 5.090.723 722.424 1,82 2,49 14,191991 5.480.768 962.793 0,67 2,65 17,57

Fonte: Fundação IBGE. Censos Demográficos; Iplanrio, 1991.

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to negativo da população não-favelada, destaca-se a zonasul, com uma taxa de crescimento dos residentes em fave-las de 2,4% ao ano, aumentando de 14,9% em 1991 para17% em 1996 a proporção desses residentes em relação àpopulação total da região. A zona norte da cidade foi a únicaregião que apresentou perda absoluta de população resi-dente em favela.

Como crescem as favelas? Classicamente, atribuiu-se àmigração, particularmente à do Nordeste, a causa do cres-cimento demográfico nas favelas. Os dados censitários, noentanto, indicam que a migração explica cada vez menos oacelerado processo de favelização em curso na cidade. Nazona oeste, por exemplo, região que apresentou, entre 1991e 1996, o maior incremento absoluto de população favelada(em torno de 22 mil pessoas), apenas 2 mil e 600 pessoasresidentes em favelas eram migrantes2 da década de 90.Podemos inferir que o surgimento e a expansão de novasfavelas (localizadas predominantemente na zona oeste) têmocorrido por meio da mobilidade espacial no interior dopróprio município, seja do bairro para a favela, seja de fa-velas consolidadas para favelas recentes. A fuga do alu-guel, tanto no mercado formal quanto informal, e a redu-ção da oferta de habitação ou lote popular explicam essamobilidade em direção às favelas periféricas. Vale lembrarque o valor do aluguel de um imóvel nas favelas das zonassul e norte pode equivaler, hoje, ao de um apartamento emCopacabana ou no Centro.

A mobilidade intramunicipal tem menor peso explicativoquando se observa o incremento populacional nas favelasjá consolidadas das zonas sul e suburbana. Na zona sul dacidade cerca de 40% do incremento da população favelada,nos primeiros cinco anos da década de 90, era compostopor migrantes de fora do município, em sua maior parte do

Nordeste. Nesse sentido, a possível “expulsão branca”,gerada pela valorização imobiliária, de residentes maispauperizados das favelas centrais deve ser relativizadadiante da possibilidade de “entrada” nesses espaços deuma população migrante cujo perfil social era, em média,inferior ao dos já residentes. Na Tabela 3, observa-se operfil socioocupacional mais elevado do conjunto da po-pulação ocupada residente nas favelas das zonas sul enorte, em comparação com o perfil dos migrantes nordes-tinos que se dirigiram para essas áreas na década de 80.As redes familiares funcionam, para o migrante recém-che-gado, como importante mecanismo de acesso à moradia ede inserção na economia urbana. Por sua vez, a localiza-ção dessas favelas em áreas com grande demanda por tra-balho de baixa qualificação nos setores de serviços e cons-

TABELA 2

População Residente em Favela e Fora da FavelaMunicípio do Rio de Janeiro – 1991/1996

Crescimento Absoluto Crescimento Anual (%) População Favelada/ População Favelada/

Grandes ZonasFavela Não-Favela Favela Não-Favela

População Total População Total

1991 (%) 1996 (%)

Total do Município 71.089 842 1,6 0,0 16,1 17,2

Centro/Zona Sul 16.110 -27.035 2,4 0,8 14,9 17,0

Barra/Jacarepaguá 13.523 29.364 3,9 1,6 15,0 16,6

Zona Norte -2.636 -23.123 -1,1 -1,4 12,6 12,7

Subúrbio 21.367 -57.672 0,8 -0,6 20,6 21,8

Zona Oeste 22.725 79.308 3,4 1,3 9,6 10,5

Fonte: Fundação IBGE. Censo Demográfico 1991 e Contagem da População 1996.

TABELA 3

Perfil Socioocupacional da População Ocupada e do Migrante NordestinoOcupado, Residentes nas Favelas da Zona Sul e da Zona Norte

Município do Rio de Janeiro – 1991

Em porcentagem

Categorias População Ocupada

Socioocupacionais (1) População Residente Migrante Nordestino

Elite 1,3 0,4

Pequena Burguesia 3,4 0,7

Classe Média 17,0 6,4

Operário 20,9 15,7

Proletário do Terciário 37,3 59,7

Subproletário 19,8 16,9

Fonte: Fundação IBGE. Censo Demográfico 1991.(1) Elite: empresários e executivos dos setores público e privado e profissionais de nívelsuperior; Pequena Burguesia: pequenos empregadores do serviço e comércio; Classe Média:empregados em ocupações de rotina, supervisão, segurança, ensino básico e técnicos;Operário: trabalhadores da indústria e da construção civil; Proletário do Terciário: prestadoresde serviço e comerciários; Subproletário: trabalhadores domésticos, ambulantes e biscateiros.

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A OPOSIÇÃO FAVELA-BAIRRO NO ESPAÇO SOCIAL DO RIO DE JANEIRO

trução civil se mantém como fator central para essa inser-ção do migrante.

A DIVISÃO FAVELA-BAIRRO NOESPAÇO DESIGUAL DA CIDADE

A população residente nas favelas do Rio de Janeiro ésignificativamente mais jovem do que a que mora nos bair-ros da cidade, confirmando um perfil etário que é, de umamaneira geral, típico das áreas populares. Nesse sentido, éna zona oeste do município, área periférica popular, que seencontra a menor diferença entre o perfil etário da favela edo bairro: enquanto na favela cerca de 51% dos moradorestêm até 24 anos, no bairro esse percentual é de 45% (Tabe-la 4). Quanto mais nos aproximamos do centro, maior adiferença de perfil e mais idosa é a população.

O perfil etário dos residentes em favelas não apresentagrandes variações entre as cinco zonas da cidade. O percen-tual da população na faixa de 0 a 24 anos varia de 47,6%,nas favelas da zona sul, a 51,9%, nas da zona oeste. Valeobservar, ainda, o peso relativamente menor da faixa acimade 45 anos nas favelas da Barra e de Jacarepaguá: enquantonessa zona o percentual é de 13,9%, nas demais variou entre17% e 18,7%. Esse perfil mais jovem das favelas da Barra e de

Jacarepaguá acompanha o perfil dos próprios bairros em queestão localizadas, que também apresentam menor peso relati-vo da faixa acima de 45 anos e maior proporção das faixas entre15 e 24 anos e entre 25 e 44 anos. Como área de expansão paraos segmentos sociais médios, essa zona atrai uma populaçãoem começo de carreira e na primeira fase do ciclo familiar (ca-sal sem filhos ou casal com filhos pequenos). Como área demaior concentração da produção imobiliária, atrai trabalha-dores para a construção civil, cujo perfil etário é relativamen-te jovem e cuja alternativa de uma moradia próxima se restrin-ge às favelas da região.

Em relação à diferenciação por sexo, cabe apenas des-tacar uma proporção de mulheres relativamente maior nosbairros em comparação com as favelas, particularmenteno centro/zona sul e Barra/Jacarepaguá.

O indicador de cor evidencia maior predominância deuma população branca nos bairros da cidade – em tornode 64% – e de uma população não-branca nas favelas –em torno de 62% (Tabela 5). Esses percentuais sofrem sig-nificativa variação segundo as diferentes áreas. Enquantono centro/zona sul e Barra/Jacarepaguá mais de 80% dosmoradores são brancos, na zona norte esse percentual éde apenas 48%. Entre os residentes nas favelas, a varia-ção segundo a localização geográfica é menor: as favelas

TABELA 4

População, por Faixa Etária, segundo a Localização do Domicílio na Favela ou Fora da FavelaMunicípio do Rio de Janeiro – 1996

Em porcentagem

Localização do DomicílioFaixa Etária

Total 0-10 Anos 11-14 Anos 15-24 Anos 25-44 Anos 45-64 Anos 65 Anos e Mais

TotalFavela 100,0 22,8 8,0 19,7 32,1 13,3 4,1Fora da Favela 100,0 15,1 6,4 16,6 31,9 20,3 9,6

Centro/Zona SulFavela 100,0 21,0 7,1 19,6 34,0 13,8 4,5Fora da Favela 100,0 9,8 4,5 14,5 31,5 24,1 15,6

Barra/JacarepaguáFavela 100,0 23,3 7,6 20,7 34,6 11,3 2,6Fora da Favela 100,0 15,7 6,7 17,5 33,8 19,6 6,7

Zona NorteFavela 100,0 22,6 8,3 19,5 30,8 13,5 5,2Fora da Favela 100,0 11,0 5,4 14,6 30,4 23,5 15,2

SubúrbioFavela 100,0 23,0 8,1 19,6 31,6 13,4 4,2Fora da Favela 100,0 15,0 6,5 16,4 31,9 20,8 9,5

Zona OesteFavela 100,0 23,7 8,7 19,5 31,1 13,1 3,9Fora da Favela 100,0 19,1 7,6 18,4 32,0 16,9 6,0

Fonte: Fundação IBGE. Contagem da População 1996.

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do centro/zona sul são as que apresentam a menor pro-porção de não-brancos (cerca de 55%); nas demais essepercentual varia de 62% a 65%.

Os dados sobre a escolaridade da população acima de 23anos do Rio de Janeiro (Tabela 6) evidenciam uma profundadiferença de perfil entre os residentes nas favelas e nos bair-ros, seja nas áreas centrais ou na periferia da cidade, emboraa diferença se apresente relativamente menor na periferia. Aprimeira constatação é a elevada proporção, nas favelas, dapopulação com até 7 anos de estudo: acima de 70% em to-das as zonas! Entre os moradores dos bairros, o menor per-centual dessa faixa foi de 19% na zona norte, e o mais eleva-do foi de 52%, na zona oeste. Em outras palavras, o nível deinstrução nas favelas é ainda inferior ao observado nos bair-ros populares da periferia da cidade.

Uma segunda evidência refere-se à pequena diferen-ciação, entre as cinco zonas, dos perfis de escolaridadedos moradores em favelas. As diferenças mais significati-vas são os percentuais relativamente maiores (i) daquelescom até 3 anos de estudo nas favelas da Barra/Jacarepaguá(36,6%) e da zona norte (35,6%) e (ii) daqueles com ní-vel superior nas favelas do centro/zona sul (1,3%). É in-teressante destacar o fato de que os residentes das favelas

mais recentes, localizadas na periferia, não apresentam umperfil de instrução inferior àqueles das favelas centrais con-solidadas. A menor proporção dos migrantes – especial-mente dos que provêm de longa distância – nas favelasperiféricas pode explicar em parte essa equivalência no nívelde escolaridade.

Analisando o perfil socioocupacional da populaçãoocupada nas favelas e nos bairros observa-se, assim comono perfil de instrução, uma profunda diferença entre osdois universos de análise (Tabela 7). No entanto, essasdiferenças variam significativamente entre as cinco zonasda cidade.

Uma primeira evidência é o corte favela-bairro no quese refere ao percentual da elite, que se mostra bastanteacentuado apenas nas seguintes áreas: centro/zona sul,Barra/Jacarepaguá e zona norte. A maior diferença, nes-se caso, está na zona norte, onde a elite representa 28,5%dos moradores dos bairros e 0,9% dos residentes em fa-velas. Na zona oeste, por outro lado, a elite apresentabaixíssima representatividade tanto nos bairros quantonas favelas: 3,6% e 0,6%, respectivamente. Em relação àclasse média, o corte favela-bairro é menos acentuado:nas favelas do centro/zona sul, 19,2% dos moradores es-

TABELA 5

População, por Sexo e Cor,segundo a Localização do Domicílio na Favela ou Fora da Favela

Município do Rio de Janeiro – 1996

Em porcentagem

Localização Sexo Cor

do Domicílio Homem Mulher Branca Não-Branca

TotalFavela 48,8 51,2 38,0 62,0Não-Favela 46,6 53,4 64,3 35,7Centro/Zona SulFavela 48,4 51,6 44,4 55,6Não-Favela 43,7 56,3 84,0 16,0Barra/JacarepaguáFavela 48,2 51,8 34,6 65,4Não-Favela 44,2 55,8 87,1 12,9Zona NorteFavela 49,3 50,7 37,4 62,6Não-Favela 48,4 51,6 47,9 52,1SubúrbioFavela 49,4 50,6 36,4 63,6Não-Favela 47,4 52,6 65,8 34,2Zona OesteFavela 48,7 51,3 37,3 62,7Não-Favela 46,7 53,3 62,9 37,1

Fonte: Fundação IBGE. Censo Demográfico de 1991.

TABELA 6

População Acima de 23 Anos, por Anos de Estudo,segundo a Localização do Domicílio na Favela ou Fora da Favela

Município do Rio de Janeiro – 1996

Em porcentagem

Localização Anos de Estudo

do Domicílio Até 3 4 a 7 8 a 10 11 a 14 Mais de15

TotalFavela 33,8 40,4 16,5 8,6 0,7Não-Favela 11,8 25,0 17,1 27,4 18,7Centro/ZonaSulFavela 33,7 40,1 10,9 8,0 1,3Não-Favela 7,2 14,4 11,4 28,0 38,9Barra/JacarepaguáFavela 36,6 38,4 15,4 9,0 0,7Não-Favela 12,0 20,3 13,4 27,1 27,2Zona NorteFavela 35,6 39,9 16,2 7,6 0,7Não-Favela 5,3 13,7 11,1 30,4 39,5SubúrbioFavela 33,8 40,4 16,6 8,7 0,6Não-Favela 11,2 27,0 19,0 29,8 13,0Zona OesteFavela 31,6 41,8 16,6 9,3 0,7Não-Favela 18,0 34,0 20,9 21,8 5,2

Fonte: Fundação IBGE. Censo Demográfico de 1991.

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A OPOSIÇÃO FAVELA-BAIRRO NO ESPAÇO SOCIAL DO RIO DE JANEIRO

tão em ocupações médias, enquanto nos bairros essepercentual é de 32,6%. Mesmo nas favelas da Barra/Jacarepaguá, onde os moradores apresentam um perfilsocioocupacional relativamente mais proletário do que oencontrado nas demais zonas, o percentual da classemédia alcança 10,8%.

Uma segunda evidência é a participação, não muito di-ferenciada, dos subproletários nas favelas e nos bairrosdo centro/zona sul e zona oeste: cerca de 17% nas favelasde ambas as zonas e 11% nos respectivos bairros. Nãodeixa de ser surpreendente o fato de cerca de 11% dos re-sidentes nos bairros mais valorizados da cidade – centro/zona sul e Barra/Jacarepaguá – serem subproletários, ca-tegoria composta predominantemente por trabalhadoresdomésticos. Essa é uma evidência de que ainda existemnessas áreas mecanismos, por meio do mercado, que ga-rantem o acesso desses trabalhadores à moradia.

Por fim, cabe destacar a significativa diferenciação, entreas favelas, dos seus perfis socioocupacionais, segundo aárea em que se encontram. As favelas do subúrbio e dazona oeste apresentam um perfil mais operário – em torno

de 30% dos ocupados – do que o verificado nas favelasdas demais zonas, onde a predominância dos trabalhado-res do terciário é relativamente maior.

DISTÂNCIA FAVELA-BAIRRO

Nesta parte do texto, avalia-se a distância social entrefavela e bairro no que concerne à renda monetária. A Tabe-la 8 apresenta a razão entre as médias da renda total dosmoradores das favelas e as dos bairros, segundo variáveissociodemográficas reconhecidas na literatura especializadacomo determinantes da renda: inserção na estrutura ocupa-cional, escolaridade, idade, cor e sexo. As desigualdadesoriundas dessas diferenças podem expressar mecanismosde segregação e/ou discriminação de certos segmentos so-ciais no mercado de trabalho quando usados como critérioseletivo na distribuição das oportunidades ocupacionais oudiferenciador do salário. Como são reconhecidos os dife-renciais de renda entre trabalhadores brancos e não-bran-cos no mercado de trabalho urbano brasileiro, e como nasfavelas os não-brancos têm presença expressiva, parte-se

TABELA 7

População Ocupada, por Categorias Socioocupacionais,segundo a Localização do Domicílio na Favela ou Fora da Favela

Município do Rio de Janeiro – 1991

Em porcentagem

Localização do Categorias Socioocupacionais (1)

Domicílio Elite Pequena Classe Operário Proletários do SubproletáriosBurguesia Média Terciário

TotalFavela 0,8 5,6 15,2 27,8 33,5 17,1Não-Favela 13,0 8,0 34,5 12,4 23,1 9,0Centro/Zona SulFavela 1,8 5,5 19,2 16,0 40,1 17,4Não-Favela 26,6 8,3 32,6 3,2 18,3 11,0Barra/JacarepaguáFavela 0,7 5,1 10,8 27,0 36,6 19,8Não-Favela 16,8 8,5 29,5 12,1 22,8 10,4Zona NorteFavela 0,9 4,9 15,7 21,9 35,5 21,1Não-Favela 28,5 9,1 37,3 3,4 14,3 7,4SubúrbioFavela 0,6 5,5 15,0 30,6 31,8 16,4Não-Favela 8,8 8,2 39,2 12,9 23,7 7,1Zona OesteFavela 0,6 6,5 13,9 30,5 31,5 17,0Não-Favela 3,6 6,7 28,3 21,9 28,6 11,0

Fonte: Fundação IBGE. Censo Demográfico 1991.(1) Elite: empresários e executivos dos setores público e privado e profissionais de nível superior; Pequena Burguesia: pequenos empregadores do serviço doméstico e comércio; Classe Média:empregados em ocupações de rotina, supervisão, segurança, ensino básico e técnicos; Operários: trabalhadores da indústria e da construção civil; Proletários do Terciário: prestadores deserviço e comerciários; Subproletários: trabalhadores domésticos, ambulantes e biscateiros.

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dessa dicotomia como ponto de referência para avaliar adistância entre favela e bairro.

Observa-se a existência de homologia entre a hierarquiaocupacional e a distância social entre moradores da favelae do bairro. Nas posições mais inferiores (empregadas do-mésticas, ambulantes, biscateiros) há muita proximidadeentre os moradores da favela e os do bairro, já que os dife-renciais de renda são bem pequenos. Na medida em quesubimos na hierarquia, as distâncias aumentam, chegan-do ao máximo entre as ocupações não-manuais de nívelmédio, em que os moradores em favela têm 56% da rendados moradores no bairro. A mesma homologia é encontra-da no exame dos diferenciais de renda entre brancos e não-brancos, embora a distância entre esses dois segmentosseja menor do que a verificada entre a favela e o bairro. Jáas distâncias entre os moradores de favela são significati-vamente menores, o que sugere a existência de fortehomogeneidade social.

Constata-se situação similar na análise por nível de es-colaridade, ou seja, à maior escolaridade corresponde maior

distância social entre moradores de favela e moradores debairro, o mesmo sucedendo com a distância entre brancos enão-brancos. Foi verificada, contudo, alguma nuança. Aposição de desvantagem relativa dos moradores de favela edos não-brancos da cidade parece ser a mesma até a faixade escolaridade equivalente ao primário (8 anos). Os dife-renciais aumentam mais fortemente no corte favela/bairro nasoutras faixas, atingindo o patamar de 44% entre aqueles commais de 12 anos de instrução. Em outras palavras, os mora-dores de favela têm maior dificuldade em transformar seucapital escolar em renda do que o conjunto dos não-bran-cos. Entre os trabalhadores “sem instrução”, ou seja, aque-les que estão na posição mais desfavorável no mercado detrabalho – que, como foi visto representam cerca de 70%dos moradores em favela –, constata-se uma surpreendentediferença de renda: os moradores em favela recebem 85%dos que moram no bairro.

No exame dos diferenciais por idade e gênero, verifica-se que a distância entre favela e bairro é semelhante à exis-tente entre branco e não-branco.

Será que as diferenças de renda resultam de mecanismosde discriminação no mercado de trabalho dos moradores dasfavelas? Será que teríamos então a configuração do fenô-meno da guetificação dos moradores das favelas?

AS FAVELAS SÃO GUETOS?

A análise da situação das favelas perante a dos bairrossugere a existência de importante divisão no espaço so-cial da cidade do Rio de Janeiro. A oposição favela/bair-ro parece ser a expressão espacial das notórias desigual-dades que marcam a sociedade brasileira, já que concentraos segmentos sociais que apresentam maiores desvanta-gens no acesso às oportunidades: os mais jovens, os não-brancos e os de baixa escolaridade. Entretanto, os resul-tados da nossa análise indicam ser a favela o lugar demoradia dos que desfrutam de maior desvantagem entreos afortunados da cidade, uma vez que os diferenciais derenda aumentam entre os grupos com maiores chances dese igualarem aos moradores do bairro. Ao mesmo tempo,os diferenciais de renda não são desprezíveis entre os maisdesafortunados da cidade.

Tais constatações parecem fortalecer as concepçõesdualistas da favela. Gostaríamos, porém, de terminar nos-so trabalho com breves comentários que, a nosso ver, sãonecessários para escapar do reducionismo. Com efeito,como foi dito no início, esta análise é insuficiente para iden-tificar a posição das favelas no espaço social da cidade. É

TABELA 8

Razão entre a Renda Média dos Moradores da Favela,do Bairro e da Cidade

Município do Rio de Janeiro – 1991

Bairro (1) Favela Cidade

Indicadores Não-Branco/ Não-Branco/ Favela/ Não-Branco/Branco Branco Bairro Branco

Ocupação

Subproletariado 0,86 0,91 0,93 0,87

Operariado 0,73 0,93 0,84 0,74

Proletariado do Terciário 0,63 0,87 0,68 0,64

Não-Manual Nível Médio 0,63 0,85 0,56 0,63

Anos de Estudo

Sem Instrução 0,90 0,81 0,85 0,88

De 1 a 4 Anos 0,75 0,92 0,77 0,74

De 5 a 8 Anos 0,76 0,99 0,75 0,75

De 9 a 11 Anos 0,72 0,89 0,61 0,71

Mais de 12 Anos 0,67 0,84 0,44 0,67

Idade

Jovem 0,77 0,87 0,78 0,74

Adulto 0,47 0,82 0,46 0,47

Maduro 0,44 0,90 0,37 0,44

Idoso 0,41 0,87 0,30 0,40

Sexo

Homem 0,43 0,77 0,35 0,42

Mulher 0,45 0,93 0,66 0,44

Fonte: Fundação IBGE. Censo Demográfico 1991.(1) Exclui os moradores das favelas.

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A OPOSIÇÃO FAVELA-BAIRRO NO ESPAÇO SOCIAL DO RIO DE JANEIRO

imprescindível passar da análise da divisão favela/bairropara a interpretação da (di)visão dessa dicotomiasocioespacial, ou seja, avaliar se as diferenças observa-das são representadas legitimamente na sociedade cario-ca como separação e/ou inferioridade.

A reflexão sobre a distância social em termos de rendaoferece a possibilidade de explorar alguns caminhos. Asdiferenças observadas sugerem duas explicações a respeitoda simbolização da divisão favela-bairro e sua inscrição naspráticas sociais que regulam a relação entre trabalho emoradia. Na primeira, a favela seria considerada variáveldependente. Ela seria a conseqüência de práticas discri-minatórias no mercado de trabalho contra aqueles quemoram nas favelas. Ou seja, o fato de morar em favela seriaum atributo negativo, do qual resultam práticas discri-minatórias quanto à determinação da renda. A situação dosmoradores de favela seria idêntica à das mulheres no mer-cado de trabalho, já fartamente descrita na literatura socio-lógica e econômica. A legitimidade social dessa dis-criminação seria obtida pela transformação do lugardesclassificado dos moradores da favela em um habitus(Bourdieu, 1979), pelo qual se produziria a naturalizaçãoda discriminação e a conseqüente disposição dos mora-dores das favelas em aceitar menores salários. Esse argu-mento aproxima a posição da favela no espaço social doRio de Janeiro daquela dos guetos negros americanos,segundo as análises de Wilson (1987) e Wacquant (2000),nas quais a inferioridade social dos seus moradores sereproduz como um círculo perverso.

Na segunda hipótese, a favela seria uma variável inde-pendente. Há duas variantes explicativas nesse caso. Naprimeira, a favela seria o resultado dos baixos e incertos ren-dimentos dos trabalhadores que exercem posições inferio-res às suas possibilidades em razão da segmentação domercado de trabalho, cuja conseqüência é a obtenção derenda inferior. A ilustração dessa variante seria a forte pre-sença na favela de trabalhadores da construção civil, setorprodutivo no qual a escolaridade tem pouca importância nadeterminação do rendimento dos trabalhadores, dada a na-tureza manufatureira do processo de trabalho e a prevalên-cia do trabalho autônomo. Os baixos e incertos rendimen-tos obtidos somente permitiriam acesso ao submercadohabitacional da favela como estratégia de diminuição doscustos da moradia e do transporte. Na segunda variante, afavela resultaria da acessibilidade à fonte de renda propi-ciada pela localização residencial de determinados segmen-tos de trabalhadores que exercem ocupações temporárias,incertas e dependentes do contato pessoal entre demanda

e oferta. A ilustração dessa variante seria a forte presençade prestadores de serviços pessoais nas favelas localiza-das nas áreas mais centrais da cidade. Tal hipótese estariacoerente com a constatação da relação entre o gradiente darenda média dos moradores das favelas pelas grandes árease o mapa social da cidade, na qual nota-se que, quanto maispróximo dos centros de concentração espacial das camadassuperiores, maior a renda relativa, conforme transparece naleitura da Tabela 9.

Em resumo, nas duas variantes da segunda hipótese, aseparação entre favela e não-favela expressaria a segmen-tação do acesso aos recursos localizados desigualmentena cidade, sejam eles os relativos à moradia ou às oportu-nidades de trabalho e renda. Essa nos parece a mais plau-sível hipótese explicativa das diferenças de renda entrefavela e bairro. A renda e o seu montante explicam a sele-ção entre moradores da favela e do bairro. Aqueles queconseguem vencer as barreiras existentes no mercado detrabalho e aumentam a sua renda ou têm acesso a ocupa-ções mais estáveis tendem a abandonar a favela. É o quemostram estudos sobre mobilidade residencial (Lago,2000) entre as favelas centrais da cidade do Rio de Janei-ro e a periferia metropolitana.

O último comentário diz respeito à necessidade de le-var em consideração as diferenças entre as favelas quantoà sua posição no espaço social da cidade. A favela poderepresentar tanto um momento da mobilidade ascendentede certos segmentos sociais, quanto o seu contrário, lugardo refúgio para aqueles que estão em processo de mar-ginalização social. A entrada nas favelas localizadas nazona sul de migrantes de outros municípios do Estado doRio de Janeiro e da região nordestina do Brasil, todos comstatus social e ocupacional inferior aos dos moradores,parece indicar a situação na qual o crescimento da favela

TABELA 9

Razão entre a Renda Média dos Moradores em Favelas,segundo Grandes Áreas

Município do Rio de Janeiro – 1991

Grandes Áreas Razão

Total 1,00

Zona Sul/Centro 1,12

Barra/Jacarepaguá 0,94

Zona Norte 1,05

Zona Oeste 0,90

Subúrbio 0,94

Fonte: Fundação IBGE. Censo Demográfico 1991.

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pode estar associado à dinâmica de mobilidade social as-cendente. Em contraposição, o crescimento das favelas nazona oeste poderia expressar um movimento de mobilida-de social descendente, especialmente no caso dos mora-dores das favelas da zona sul que, por algum motivo, sevêem obrigados a abrir mão do maior acesso à fonte de rendae ocupação. Será que essas favelas estariam transitandopara uma situação de gueto, na medida em que o seu cres-cimento parece estar associado a um processo de isolamen-to social?

Não é possível responder a essa questão neste texto.Gostaríamos tão-somente de lembrar que o trabalho não éa única dimensão explicativa da exclusão social produzidapela guetificação dos negros pobres americanos, segun-do as análises de Wacquant e Wilson. O gueto é tambémproduzido pela estigmatização dos territórios onde se con-centram os segmentos fragilizados economicamente, peladiminuição da densidade organizacional desses territóriose pela baixa presença do Estado. Sobretudo, a guetificaçãose realiza quando ocorre a desapropriação simbólica dosmoradores desses territórios, na capacidade de controlarsua representação social, nas formas coletivas de classifi-cação das divisões da sociedade e, portanto, na sua iden-tidade como grupo. É essa despossessão que permite trans-formar os desiguais em proscritos sociais, e como taisvivendo na desordem ou em uma outra ordem social con-siderada legitimamente inaceitável.

Esse ponto nos devolve ao início deste trabalho, à re-flexão sobre a importância das concepções teóricas, dasimagens e das práticas presentes no atual debate públicosobre a cidade partida. Que efeitos simbólicos negativosestariam sendo produzidos pelas associações cada vez maisfreqüentes entre a favela e a violência e pela crescente le-gitimidade do discurso público da desordem urbana comorazão dos males da cidade? Há algo fora da ordem? Serãoos pobres favelados ou os discursos sobre eles?

NOTAS

E-mail dos autores: [email protected] e [email protected]

Este trabalho foi desenvolvido no âmbito das pesquisas “Metrópole, Desigual-dades Socioespaciais e Governança Urbana” (Pronex-CNPq/Finep) e “Reestru-turação Econômica e Social e Governança Urbana nas Grandes Metrópoles”(CNPq/CNRS-França) desenvolvidas no Observatório de Políticas Urbanas eGestão Municipal - Ippur/UFRJ-Fase e contou com a colaboração dos assistentesde pesquisa Peterson Leal Pacheco, Cynthia Campos Rangel, Carlos EduardoSartor, Giovanna Altomare Catão e Paulo Azevedo.1. Trecho do discurso pronunciado pelo médico, um dos elaboradores do “pro-blema da favela”, no Rotary Club.

2. Entende-se como migrante todo aquele que residia em outro município que nãoo do Rio Janeiro até 1991.

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MUDANÇAS NO MEIO RURAL E DESAFIOS PARA O...

N

MUDANÇAS NO MEIO RURAL E DESAFIOSPARA O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

Resumo: Em razão do grande crescimento das atividades não-agrícolas na ocupação da população rural noperíodo pós-1960, o texto mostra a complexidade dos fatores que condicionam esse comportamento. Além daconstatação de queda significativa das ocupações agrícolas, outros pontos são abordados: a crise agrícola; asnovas funções do meio rural e a emergência de novos atores; as mudanças nas famílias rurais e nas explora-ções agropecuárias; as similaridades entre os mercados de trabalho urbano e rural; e as demandas da popula-ção dos centros urbanos pelos produtos e serviços rurais.Palavras-chave: ocupações não-agrícolas; população rural; desenvolvimento rural sustentável.

o período pós-1960, observou-se um crescenteengajamento da população rural em atividadesnão-agrícolas desenvolvidas no campo ou nas

PEA agrícola estar distribuída de forma semelhante entreos domicílios urbanos e rurais (havia um certo predomí-nio dos urbanos – 53% do total, em 1998) fez com que aqueda das ocupações na agricultura paulista fosse sentidatanto nas cidades como no meio rural.

Na área rural, especificamente, a “saída” para a popu-lação residente foi encontrar ocupações fora da agricultu-ra, no próprio campo ou nas cidades. Esse movimentoganhou tal magnitude no Estado que, no final dos anos90, mais de 50% da população economicamente ativa(PEA) com residência rural ocupava-se em atividades não-agrícolas (569 mil pessoas, em 1998). No período 1992-97, houve uma inversão a favor das ocupações não-agrí-colas, em detrimento das agrícolas, culminando com amaior ocupação dos residentes rurais nos mais diversosramos da atividade econômica (Balsadi, 2000).

Um fenômeno que auxilia no entendimento dessa in-serção da população rural em atividades não-agrícolas éo commuting, ou seja, o ir e vir (diário, semanal, etc.) daresidência para o local de trabalho em áreas consideradasurbanas. Segundo Schindegger e Krajasits (1999), o au-mento da mobilidade das pessoas é uma reação ao pro-cesso de concentração geográfica da demanda de mão-de-obra no mercado de trabalho em algumas regiões pri-vilegiadas. Essa mobilidade apresenta, segundo os auto-res, duas formas: os movimentos migratórios, com mu-dança de residência; e o commuting entre os locais de

cidades, na grande maioria dos países desenvolvidos1 eem desenvolvimento.2 Com isso, as ocupações não-agrí-colas (Orna) passaram a ter um peso cada vez maior narenda dos residentes e das famílias rurais.3

No Brasil, Del Grossi (1999) observou que a popula-ção rural não é exclusivamente agrícola, uma vez que maisde 3,9 milhões de pessoas estavam ocupadas em ativida-des não-agrícolas, em 1995, o que representava 26% daPEA rural ocupada. Segundo o autor, a PEA rural não-agrícola, de certa forma, vem mantendo o contingente detrabalhadores rurais, pois, enquanto os ocupados na agri-cultura permaneceram estagnados entre 1981 e 1995, aPEA rural não-agrícola aumentou em quase 1 milhão depessoas em todo o país, principalmente nas regiões Su-deste e Centro-Oeste.

Especificamente no Estado de São Paulo, a demandade mão-de-obra na agropecuária apresentou queda ao lon-go dos anos 90, devido à incorporação de modernas tec-nologias disponíveis para os agricultores – principalmen-te aquelas destinadas às operações de colheita e pós-colheita – e à queda da área cultivada em importantes cul-turas. Como resultado, a PEA agrícola paulista passou de1.261 mil pessoas ocupadas, em 1992, para apenas 944mil, em 1998, segundo os dados da PNAD. O fato de a

OTAVIO VALENTIM BALSADI

Engenheiro Agrônomo, Analista da Fundação Seade

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residência e de trabalho. Essa mobilidade constitui-se emimportante mecanismo de “balanceamento” para o mer-cado de trabalho regional. Os autores observaram doismovimentos interessantes no commuting: primeiro, ele estácrescendo muito devido a maior concentração do empre-go, incluindo ampliação nas distâncias percorridas e nostempos de deslocamento; segundo, esse crescimento émuito maior nas áreas consideradas rurais, que ficam muitodependentes dos centros urbanos para a geração de em-pregos.

Dada a importância e a atualidade do tema, dentro davisão de que, a partir de meados do século XX, a agricul-tura, o espaço e a sociedade rural têm (ou podem ter) ca-minhos dissociados a percorerr (Baptista, 1997), o textotem por objetivo apontar algumas das principais transfor-mações que têm ocorrido no meio rural, com reflexos di-retos na alteração da estrutura ocupacional da populaçãorural, o que, certamente, coloca novos desafios para aspolíticas que buscam um desenvolvimento sustentável.Além das mudanças no meio rural, o texto também apon-ta a forte influência das demandas da população urbana,principalmente dos grandes centros, no crescimento dasocupações não-agrícolas da PEA rural.

TRANSFORMAÇÕES NO MEIO RURAL E ASOCUPAÇÕES AGRÍCOLAS E NÃO-AGRÍCOLAS

Vários trabalhos que trataram do crescimento das ocu-pações não-agrícolas da PEA rural tenderam a explicar omotivo desse comportamento focalizando apenas um dospontos fundamentais relacionados com as profundas trans-formações pelas quais vem passando o meio rural: a clarae forte tendência de queda das ocupações agrícolas. Essatendência ocorreu, e continua ocorrendo, como conseqüên-cia da modernização e mecanização das principais opera-ções de cultivo das grandes culturas e também pela redu-ção da área cultivada, motivada seja por crises de algumasculturas (como no Brasil e em vários países em desenvol-vimento, cujas políticas agrícolas estão sendo, ou já fo-ram, desmontadas), seja por políticas específicas de con-trole de excedentes (set aside nos EUA e na Europa, porexemplo). Como resultado dessa modernização, houve umgrande aumento da produção física, com uma área culti-vada substancialmente menor e um contingente cada vezmais reduzido de trabalhadores no processo produtivo.

No entanto, para melhor entender o grande crescimen-to das ocupações rurais não-agrícolas da população eco-nomicamente ativa com domicílio rural, principalmente

nos anos 80 e 90, é necessária a inclusão de outros fatoresexplicativos, os quais se relacionam com a crise na agri-cultura, com as novas funções do meio rural e a emergên-cia de novos atores rurais, com as mudanças nas famíliasrurais e nas explorações agropecuárias e com as similari-dades entre os mercados de trabalho urbano e rural. Essespontos, conjuntamente com o avanço tecnológico que re-duz as ocupações agrícolas, ajudam a explicar, de formamais adequada, por que cada vez mais a PEA rural nosdiferentes países, desenvolvidos ou em desenvolvimento,ocupa-se fora das atividades agropecuárias.

Queda dos Preços das Principais Commodities eCrise Agrícola

Esses fatos têm como conseqüência uma significativa re-dução da rentabilidade na atividade agropecuária,4 o que tam-bém contribui para a busca de outras fontes de renda fami-liar. Segundo Buttel (1990), a crise internacional naagricultura manifesta-se por uma série de fatores, além datendência da queda dos preços das commodities e da conse-qüente redução no valor da produção agropecuária e na ren-da dos agricultores: maior endividamento dos agricultores;diminuição no preço das terras e demais ativos rurais; e li-quidação de ativos por parte dos agricultores endividados.Para vários países, deve-se, ainda, adicionar as altas taxasde juros reais e as crises e desmontes dos instrumentos depolítica agrícola. Considerando-se tudo isso em momentosde crise econômica mundial, com baixa demanda externa porprodutos agropecuários e constantes aumentos na produçãomundial de alimentos em função dos avanços tecnológicos,tem-se, de fato, um cenário muito desfavorável para a me-lhora da renda dos agricultores, principalmente daqueles dospaíses em desenvolvimento, que ainda encontram fortes bar-reiras protecionistas no mercado interno dos países desen-volvidos (Europa, EUA e Japão).

Além disso, alguns autores (Goodman e Redclift, 1990;Tubiana, 1985) constataram que, desde a formação do mer-cado mundial de commodities no final do século XIX, ainstabilidade dos preços agrícolas é a regra e não a exce-ção. Durante o século XX, Tubiana (1985) observa quehouve apenas um período de excepcional estabilidade dospreços agrícolas, entre 1956 e 1972. Essa fase foi marcadapela integração e interdependência dos sistemas agroa-limentares, como resultado da própria internacionalizaçãoda produção e acumulação da economia mundial.

A estabilização dos preços era condição necessária paraessa integração e também para a ampla difusão do mode-

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lo hegemônico de produção – consumo norte-americano,baseado nos seguintes elementos: recorrência cada vezmaior ao capital nas propriedades (mecanização); dimi-nuição maciça do uso da força de trabalho agrícola; espe-cialização das tarefas dentro do processo produtivo; re-volução técnica pela utilização de insumos industriais(adubos, herbicidas, fungicidas, inseticidas) e sementesmelhoradas geneticamente; e intensificação da criação deanimais (aves, suínos e bovinos) com base na compra derações industriais (Tubiana, 1985). Pelo lado do consu-mo, consolidou-se a chamada “dieta fordista”, baseadalargamente na ingestão de cereais, massas e carnes.5

No período pós-1972, vários fatores contribuíram paraque a excepcional estabilidade do período anterior entrasseem colapso, culminando com a grave crise mundial naagricultura nos anos 80, a qual vem se arrastando até omomento:6 a CEE, atual União Européia, passou da posi-ção de importadora para grande exportadora líquida dealimentos no mercado mundial; os países do Terceiro Mundotambém entraram como exportadores de commodities apartir dos anos 70 (Brasil, México, Argentina); houve umaruptura dos acordos bilaterais, com o fechamento dosmercados e dificuldades crescentes de regulação, além doaumento do protecionismo. No cenário macroeconômicomundial, houve o fim da Golden Age do capitalismo in-dustrial do pós-Segunda Guerra, a erosão da hegemonianorte-americana no comércio agrícola mundial, os cho-ques do petróleo, a crescente mobilidade do capital e, nadécada de 80, ocorreu uma grande recessão mundial, comcrise fiscal nos EUA e na CEE, além da crise da dívidaexterna no Terceiro Mundo.

Segundo Goodman e Redclift (1990), os principais com-ponentes da crise internacional na agricultura são: o desen-volvimento, nos EUA, de um modelo de inovação tecnoló-gica e intervenção no mercado agrícola e sua disseminaçãointernacional; o esgotamento do sistema de regulação docomércio mundial do pós-Segunda Guerra, gerenciado pe-los EUA; a crise de representação política e legitimaçãoentre as organizações de agricultores e o Estado; e a falhaem conter os problemas ambientais associados ao novo mo-delo de política tecnológica agrícola.

Em face das transformações ocorridas no meio ruralnas últimas décadas e, também, da não-inserção de gran-de parte da população rural no mercado internacional decommodities, Buttel (1990) alerta que se deve ficar aten-to ao fato de haver uma crise rural que é muito mais am-pla do que a crise agrícola simplesmente. Essa crise rural,certamente, atinge um número de pessoas muito maior do

que a crise agrícola (os produtores modernizados) e, paraser resolvida, pode custar bem menos do que se gasta paraa manutenção da renda de uma parte privilegiada de agri-cultores. O autor propõe uma reorientação para efetivosprogramas de desenvolvimento rural integrado, tendocomo resultado o aumento das rendas rurais e do padrãode vida dos seus residentes.

O Meio Rural Não é Somente Agrícola

O meio rural deixou de ser sinônimo de agrícola e pas-sou a ser o local de atividades que eram tipicamente urba-nas. Segundo Baptista (1994), o declínio do lugar da agri-cultura nas atividades e ocupações no espaço rural foiacompanhado pelo surgimento de funções não-agrícolas,tais como os aspectos ambientais e de proteção à nature-za, o lazer e o turismo, a caça, a pesca e o acolhimentodos que aí pretendem viver temporária ou permanentemen-te. Segundo o autor, a procura por esses usos tende a au-mentar, e a questão que se coloca é saber quem se encar-regará da oferta desses novos serviços no interior dassociedades rurais.

Graziano da Silva et alii (1996), analisando essas no-vas funções do meio rural brasileiro, em geral, e do pau-lista, em particular, concluíram que já não se podecaracterizá-los somente como agrários. É preciso incluiroutras variáveis, como as atividades rurais não-agrícolasdecorrentes da crescente urbanização do meio rural (mo-radias de alto padrão, turismo rural, lazer e outros servi-ços), as atividades de preservação do meio ambiente, alémde um conjunto de atividades agropecuárias intensivas(olericultura, floricultura, fruticultura de mesa, piscicul-tura, criação de pequenos animais – rã, escargot, aves exó-ticas), que buscam nichos de mercado para sua inserçãoeconômica. Além disso, o comportamento do empregorural, principalmente dos movimentos da população resi-dente nas zonas rurais, não pode mais ser explicado ape-nas a partir do calendário agrícola e da expansão/retraçãodas áreas e/ou produção agropecuárias. Esse conjunto deatividades, mais a ocupação da população economicamenteativa com domicílio rural nos setores do comércio, da in-dústria e da prestação de serviços, públicos e privados,respondem cada vez mais pela nova dinâmica populacio-nal do meio rural paulista.

Recentes pesquisas têm indicado que muitas áreas ru-rais estão rompendo com a idéia clássica de que elas sem-pre tendem a perder competitividade e população para asáreas urbanas, pois estão recebendo novos investimentos

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e atraindo empresas industriais e de serviços, de forma adiversificar cada vez mais as atividades econômicas. Comoresultado, há um incremento de proporção da populaçãorural que passa a não depender exclusivamente da rendaadvinda da atividade agrícola. A tradicional divisão so-cial do trabalho entre as cidades e as áreas rurais torna-secada vez mais imprecisa, ou “borrada” (Saraceno, 1997).

A antiga concentração das atividades agrícolas nas áreasrurais e da manufatura nas cidades é cada vez menos mar-cada por uma diferenciação de estrutura das atividades eco-nômicas e sociais desenvolvidas nas áreas urbanas e rurais.É cada vez mais freqüente o fato de residentes urbanos pas-sarem a viver no meio rural e viajarem diariamente paraseu trabalho (commuting) pelos mais diferentes motivos(custo de vida, segurança, estilo de vida) e de empresas (ser-viços e indústria) mostrarem maior propensão a escolhersua locação fora de grandes aglomerados urbanos.

O resultado dessas mudanças (rural diferente de agrí-cola) é que a distribuição do emprego está cada vez me-nos polarizada e cada vez mais similar nas áreas urbanase rurais. Do ponto de vista das políticas públicas, umaalteração fundamental é os programas passarem a dar maisatenção ao território (economia local) do que à polariza-ção anterior entre rural e urbano, ou agrícola e industrial(Saraceno, 1997).

Saraceno (1994) argumenta que os motivos da crescentecompetitividade das economias locais, incluindo as áreasrurais, estão ligados a duas ordens de fatores. A primeirarefere-se às razões econômicas, com destaque para: seg-mentação da demanda para certos produtos no mercadomundial; maior capacidade de resposta a processos deprodução não-massivos por parte das pequenas e médiasempresas; multiplicação de nichos ou mercados garanti-dos para produtos de áreas protegidas e específicas; pos-sibilidade de maior integração em redes das empresas dediferentes localidades, integrando vantagens especializa-das de cada uma; e oportunidades oferecidas pelas novastecnologias de comunicação para trabalhar em áreas não-centrais. A segunda ordem de fatores diz respeito à razãosocial, com a criação de uma demanda por novos usos dosespaços rurais pela população dos grandes centros (lazer,moradia, turismo, etc.).

Saraceno (1994) ressalta que a leitura rural-urbano dadiferenciação espacial era relevante enquanto os proces-sos de urbanização e industrialização operavam de ma-neira clássica, típica da primeira geração de países desen-volvidos. Com o deslocamento entre espaço e setor(industrialização difusa, novas funções de lazer das áreas

rurais, descentralização dos serviços públicos, etc.) surgeum novo tipo de área, mais dinâmica, antes caracterizadacomo área rural, mas que se tornou periurbana ou de in-dustrialização difusa, podendo ser mais bem descrita comoeconomia local. Portanto, com essas mudanças, as áreasrurais já não são espaços “tranqüilos”, onde nunca ocorrenada, exceto um lento declínio socioeconômico.

Devido às novas funções do meio rural (lazer, mora-dia, turismo, preservação ambiental, sede de empresasindustriais e de serviços, etc.), que precisam ser regula-mentadas, surgiram novos grupos sociais de representa-ção de interesses para esses temas (associações de consu-midores, movimentos ecológicos, etc.), de modo que osdestinos do meio rural e de sua regulamentação deixaramde ser exclusividade das associações de produtores rurais,7

pois existem outros grupos sociais com direitos similaresem participar da utilização desse espaço (Moyano Estra-da e Hidalgo da Silva, 1991). Por isso, as associações deprodutores precisam mostrar uma maior sensibilidade paraos novos problemas do mundo rural, entendido como algomais amplo do que o local onde se desenvolvem apenasas atividades produtivas agropecuárias.8

Como não se pode mais falar de separação entre socie-dade rural e urbana, dada a sua interdependência, nota-seuma defasagem entre os tradicionais instrumentos utiliza-dos até o momento pelos poderes públicos para regular aagricultura e os novos problemas que surgem no meio rural(Moyano Estrada, 1994). Dessa forma, as políticas de de-senvolvimento rural não podem ser orientadas somente paraos produtores modernos e viáveis, pois a agricultura cum-pre um papel não apenas produtivo, mas de manutenção deum tecido social articulado no meio rural. Daí a importân-cia da pluriatividade e das ocupações em atividades não-agrícolas no desenvolvimento das famílias rurais.

Os novos atores sociais estão procurando e exploran-do oportunidades para obter ganhos com o desenvolvimen-to das novas atividades, enquanto o planejamento e a de-finição de políticas públicas são fundamentais paradirecionar esse processo e definir os direitos e usos daterra no meio rural. Se não houver uma regulação ade-quada para os novos usos do meio rural, esse processobeneficiará apenas alguns atores sociais, não promoven-do um desenvolvimento integral das áreas rurais commelhoras para a população rural residente.

Tendo em vista que, na última década, houve umamudança no cenário político, passando de um enfraqueci-mento da agenda nacional para um fortalecimento da agen-da local/regional, os “arranjos institucionais” nesse nível

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de governo estão lidando melhor com a heterogeneidadedo uso da terra e do espaço social rural, de forma a darmelhores respostas de regulação para os diferentes níveisde desenvolvimento no meio rural (Marsden 1995). Nes-se sentido, é necessário que os poderes públicos locais,em parceria com as diferentes organizações coletivas e/ou socioprofissionais, busquem e ofereçam soluções ino-vadoras e flexíveis aos problemas mais correntes da po-pulação rural, de modo que o novo rural torne-se algo real-mente positivo para a população rural, na geração de novasocupações e melhoras nas condições de vida, e não bene-ficie somente os componentes das classes urbanas maisabastadas (Etxezarreta et alii, 1995; Saraceno, 1999).

Similaridades do Trabalho Rural e Urbano

Essa tendência ocorre, não apenas em relação à impor-tância dos ramos de atividade na ocupação das pessoas, masà forma de organização do trabalho. Mingione e Pugliese(1987) chamam a atenção para o papel da agricultura emtempo parcial (e depois da pluriatividade) na alteração dabase estrutural da organização social da agricultura e dasáreas rurais. Ao diminuir a dedicação exclusiva dos mem-bros familiares à atividade agropecuária, crescendo, comocontrapartida, as ocupações no mercado de trabalho não-agrícola, houve maior homogeneização e mesmo uma uni-ficação dos mercados de trabalho urbano e rural.

A agricultura em tempo parcial e a pluriatividade pro-movem uma articulação entre a agricultura e os demaissetores econômicos, num contexto territorial que já foiagrícola e rural, passando cada vez mais a ser caracteri-zado pela presença de diversos ramos de atividade, comexceção das áreas mais atrasadas e mais pobres. Nesseespaço, onde o rural já não é sinônimo de agrícola, há forteexpansão das atividades industriais e de serviços, antesrestritas às áreas urbanas, de tal forma que a difusão denovas tecnologias, que acompanha esse processo, tornacada vez maior a analogia entre os processos de trabalhona agricultura e na indústria e entre os mercados de traba-lho urbano e rural.9

Processos de produção uniformes, especialização damão-de-obra, estabilidade no emprego e uso da força detrabalho adulta masculina eram, até pouco tempo, as carac-terísticas marcantes da produção industrial no modelofordista. Com as mudanças na produção industrial, houveuma aproximação do modelo de trabalho típico da agricul-tura (trabalho por conta própria, produção flexível, escas-sa divisão do trabalho, trabalho de mulheres e jovens,

sazonalidade, subemprego, etc.). Esse modelo de trabalhoe de emprego generalizou-se para quase todos os setoresda economia. Suas características, que podem parecer res-tos do passado, ou aspectos do caráter atrasado da agricul-tura, são perfeitamente compatíveis com a modernizaçãocapitalista. Outras semelhanças entre os mercados de tra-balho rural e urbano são a crescente informalização na in-dústria e nos serviços, a redução da escala de produção, oaumento do emprego por conta própria, a externalizaçãode fases do processo produtivo e o crescimento do númerode pessoas pluriativas (Pugliese, 1991).

Com essas mudanças, houve uma “desdiferenciação”na divisão social do trabalho, pois é cada vez mais fre-qüente o fato de uma mesma pessoa possuir o estatuto deempregado e de conta própria simultaneamente, como re-sultado das tendências do processo de produção industrialno âmbito do agribusiness e da necessidade decrescentede mão-de-obra para as atividades agropecuárias, decor-rente da generalização de tecnologias que tornam o traba-lho humano redundante (Mingione e Pugliese, 1987).

Bonanno (1989) também aborda algumas das caracte-rísticas semelhantes entre as estruturas do mercado de tra-balho urbano e rural. Segundo o autor, apesar de aindaexistirem diferenças entre a força de trabalho urbana e arural, tem sido observado um processo geral de homo-geneização do trabalho. As mudanças incluem, primeira-mente, uma alteração na regularidade do emprego. Osempregos tradicionais urbanos eram caracterizados comosendo para o ano inteiro e, conseqüentemente, eram qua-litativamente diferentes dos empregos agrícolas, largamen-te sazonais. Hoje, a regularidade do emprego está, no ge-ral, decrescendo e é praticamente ausente nos setoresinformais e descentralizados que estão emergindo.

As mudanças também envolvem a remuneração do tra-balho, que tende a ser menor que no passado. O decrésci-mo do emprego em empresas centrais e a expansão de in-dústrias periféricas, assim como do setor de serviços,levaram ao desenvolvimento de uma situação em que umaporção significativa dos empregos novos disponíveis pagamenos, em termos reais, do que há uma década. Essa si-tuação contrasta com os padrões estabelecidos no pós-guerra, nos quais a remuneração abaixo dos níveis sala-riais estabelecidos por lei ou por acordos sindicais eratípica dos trabalhos agrícolas. Finalmente, as mudançasenvolvem os sujeitos do emprego. O aparato produtivoreestruturado, nos âmbitos industriais e de serviços, cres-centemente emprega trabalhadores “marginais”. Um gran-de número de mulheres, idosos, adolescentes e imigran-

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tes ilegais encontra emprego em setores tradicionalmentecaracterizados pela presença de trabalhadores masculinosde idade mediana. A prática de empregar trabalhadores“marginais” era constante na agricultura porque esse seg-mento da classe trabalhadora constitui-se em importantefonte de trabalho em períodos de intensa demanda por mão-de-obra, como na colheita.

Apesar da similaridade dos mercados de trabalho ur-bano e rural, é fundamental considerar a contribuição deSaraceno (1999). Analisando as iniciativas do ProgramaLeader na Europa, a autora afirma que o mesmo propõeum novo enfoque do desenvolvimento rural, baseado pre-cisamente no princípio de que os recursos disponíveis di-ferem, em grande medida, de um território rural para ou-tro, fazendo com que a oferta e a demanda de trabalhosejam cada vez mais específicas e diferentes entre si, emrazão do contexto local em que se inscrevem.

Isso tem contribuído muito para se levar em conta quenão há só um mercado, mas sim uma multiplicidade demercados rurais de trabalho, sendo, conseqüentemente,necessário criar projetos e meios de efetivá-los adapta-dos a essa diversidade. A diversidade dos mercados ru-rais de trabalho implica que um território pode ter êxitoonde outro fracassou por completo, devido a seu contex-to particular: tipo de atividade desempenhada; grau deimplicação dos agentes locais; intensidade da assistênciatécnica e econômica proporcionada; possibilidades de for-mação e disponibilidade de mão-de-obra qualificada.10

Mudanças na Estrutura da Família Rural

As alterações fazem com que a família rural deixe deser nucleada e orientada segundo uma estratégia únicabaseada na agricultura. Com isso, as fontes de renda dasfamílias são múltiplas, e a agricultura é apenas uma delas,em muitos casos, nem sequer a mais importante. O funda-mental a destacar aqui é que, com a liberação da mão-de-obra familiar para as atividades não-agrícolas, muitos dosantigos membros familiares não-remunerados acabamocupando-se na condição de empregados. Isso ocorreu noEstado de São Paulo nos anos 90, quando houve uma re-dução de quase 50% no número de membros familiaresocupados na agricultura e residentes no meio rural, os quaisengrossaram as fileiras dos empregados não-agrícolas,categoria mais significativa da PEA rural não-agrícola(Balsadi, 2000).

Um primeiro aspecto a destacar é a crescente dificul-dade de parte significativa das famílias rurais de sobrevi-

ver apenas com a produção agropecuária voltada para omercado, fato que já vem ocorrendo desde o final dos anos70, com a tendência histórica de queda dos preços dascommodities, e que se acentuou na década de 90, com amaior abertura dos mercados domésticos à competiçãointernacional e com as reformas das políticas agrícolas dospaíses desenvolvidos e desmontes das políticas nos paí-ses em desenvolvimento (Baptista, 1994).

Isso tem feito com que muitas explorações estejam, cadavez mais, com maiores dificuldades de sobreviver comounidade de produção agrícola. Em países com uma políti-ca bem definida (EUA, Europa, Japão), os mecanismosde sustentação de renda dos agricultores e das famíliasrurais caminham para ajudas diretas e transferências so-ciais (previdência social e aposentadoria autorizada paraos agricultores mais idosos), de modo a permitir que aspessoas continuem residindo no meio rural, mas com de-dicação a outras atividades, incluindo as não-agrícolas.

Segundo Baptista (1994), a articulação da família com otrabalho fora da exploração ocorre em situações diferencia-das: pai e filhos trabalham fora como assalariados agrícolas(situação clássica pré-modernização agrícola, que está emdeclínio acentuado); a grande expansão do trabalho fora daexploração acompanhou a crescente difusão das atividadesindustriais e de serviços no meio rural ou nos centros urba-nos de fácil acesso para a população rural; o sistema de pro-dução especializou-se e é crescentemente realizado pelo chefeda exploração (com o elevado grau de mecanização e auto-mação da agropecuária, a unidade de produção agrícola ten-de a se converter de familiar para individual) e as expectati-vas de futuro da mulher e dos filhos, que procuram trabalhofora da agricultura, não passam pela exploração agropecuá-ria exclusivamente.11

Em conseqüência disso, o autor agrega as famílias ru-rais em quatro grupos: famílias cujos rendimentos pro-vêm principalmente da atividade produtiva agrícola (gru-po com maior decréscimo); famílias cujos rendimentosadvindos da exploração agropecuária ainda são relevan-tes, mas já inferiores aos rendimentos obtidos nos mer-cados de trabalho não-agrícola; famílias cujos rendimen-tos provêm principalmente da previdência social e/ou deoutros fluxos financeiros públicos e privados desligadosde qualquer laço com a atividade agrícola (normalmentesão famílias pequenas e constituídas de idosos); famíliascom rendimentos provenientes sobretudo de subsídios(ajuda direta), que visam afastá-las da produção para omercado e convertê-las em zeladoras da paisagem e doambiente.

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No caso brasileiro, de acordo com os resultados obti-dos no Projeto Rurbano, é preciso incluir um novo grupo:as famílias não-agrícolas residentes no meio rural, inseri-das somente no mercado de trabalho não-agrícola. SegundoGraziano da Silva e Del Grossi (1999), havia 1,7 milhãode famílias não-agrícolas (ou 22% do total de famíliasrurais) no Brasil, em 1997, o que representa um forte cres-cimento na década de 90 pois, em 1992, eram 1,2 milhão(ou 17% do total).

Arnalte (1996), recuperando as contribuições de estu-diosos franceses sobre as modificações nas relações in-ternas das famílias rurais, intimamente ligadas com asmudanças nas explorações, chama a atenção para a cres-cente inserção das mulheres de agricultores em empregosindependentes da exploração agropecuária.

Na Europa, constata-se um progressivo distanciamentoda mulher em relação ao trabalho agrícola em quase to-dos os países, o qual tende a ser maior para as mais jo-vens e com maior nível de formação escolar e profissio-nal. Essa motivação das mulheres, dada por uma opçãoprofissional fora da agricultura, muitas vezes é responsá-vel pela pluriatividade das famílias rurais. Mesmo nãohavendo motivações econômicas (no sentido de crise derentabilidade agrícola), a busca por uma qualificação edesenvolvimento profissional acaba por levar essas pes-soas ao mercado de trabalho não-agrícola. Em contra-partida, em alguns países em desenvolvimento estudados,a falta de oportunidades de trabalho na agricultura aindasurge como o principal responsável pela inserção da mu-lher no trabalho não-agrícola, muitas vezes em condiçõesbastante precárias, como empregadas nos serviços domés-ticos ou como conta própria em atividades de pequenocomércio e artesanato (Graziano da Silva, 1999a; Weller,1994; Lanjouw, 1999).

Para Reardon e Berdegué (1999), Berdegué, Reardone Escobar (2000), os principais fatores de acesso dosmembros familiares às ocupações não-agrícolas são osincentivos e a relação de risco e rentabilidade dessas ati-vidades em face das atividades agrícolas; a capacidade paraentrar nas atividades não-agrícolas, dada por formaçãoescolar, nível de renda familiar, posse de ativos, acesso acrédito, etc.; a dinâmica econômica regional no entornoeconômico; a quantidade de terra disponível e seu aces-so; a composição da família, em termos de idade e gênerodos seus integrantes; e a infra-estrutura social básica naregião (eletrificação, estradas, telefones, irrigação, sanea-mento básico, água encanada, etc.), necessária ao investi-mento em novas atividades.

Ellis (1998) chama a atenção para o fato de a diversifi-cação das rendas das famílias rurais, motivadas por estra-tégias de sobrevivência ou acumulação, ser apenas umcomponente do aspecto fundamental, a própria diversifi-cação dos estilos de vida no meio rural que passam a in-cluir alternativas para além das tradicionais atividadesagropecuárias. O autor acrescenta outros fatores, alémdaqueles apontados anteriormente, como determinantes dadiversificação das rendas das famílias rurais: sazonalidadeda renda agrícola; mercados de trabalho diferenciados noentorno socioeconômico; imperfeições no mercado decréditos e poupança familiar realizada no tempo e estra-tégias de investimento; além das similaridades de com-portamento das famílias rurais e urbanas.

Mudanças na Estrutura das Propriedades Rurais

As alterações têm impulsionado boa parte dos mem-bros familiares para as atividades não-agrícolas. SegundoArnalte (1989), o modelo clássico de redução de custosna agricultura está associado a uma das formas básicas deprogresso técnico: a mecanização, junto com uma dimen-são mínima das propriedades, abaixo da qual não é rentá-vel o uso dos equipamentos mecânicos. Isso, segundo oautor, explicava a diferenciação de técnicas produtivasentre pequenas e grandes explorações e a conseqüente criseeconômica e o desaparecimento das primeiras, impossi-bilitadas de acompanhar o treadmill tecnológico, ao me-nos em regiões onde as condições de topografia dificul-tam sua orientação para produções menos mecanizadas.

No entanto, alguns autores observam, na agriculturaeuropéia e mesmo na brasileira, que muitas pequenas emédias propriedades têm conseguido baixar seus custosde produção transferindo às empresas de serviços exter-nos a gestão e execução de uma parte substancial do pro-cesso produtivo,12 fenômeno chamado de externalizaçãoou desativação de serviços, antes internos às proprieda-des rurais. Essa mudança na estrutura das explorações atin-ge também as grandes propriedades.13

Com esse processo de externalização, as exploraçõesconvertem-se na sede física de uma série de atividades quepodem ser realizadas: com máquinas, equipamentos eoutros meios de produção que não pertencem à explora-ção; com mão-de-obra empregada e paga por empresasexternas à exploração; e a partir de decisões (de tipo decultivo, características das operações culturais) não toma-das pela exploração, senão impostas por indústrias, coo-perativas ou empresas comerciais. Portanto, a externaliza-

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ção de serviços coloca novos pontos de análise sobre asexplorações agropecuárias, mas um dos mais pertinentesé que ela libera e “expulsa” para o mercado de trabalho amão-de-obra familiar até então ocupada nas exploraçõesagropecuárias.

Arnalte (1989) mostra que a forma de externalizaçãodas atividades varia de acordo com a estrutura das explo-rações. Em virtude da estrutura agrária e do tamanho daspropriedades, esse processo cumpre uma função diferen-te. É nas regiões de pequenas explorações que a externa-lização de tarefas mecanizadas contribui de forma maisevidente para a eficiência do processo produtivo e redu-ção de custos de produção, permitindo o aproveitamentode economias de escala associado ao uso de tecnologiasmecânicas modernas. Nessas regiões, também ocorrem asmudanças mais substanciais na natureza das explorações(principalmente no tocante à distribuição do trabalho fa-miliar).

Nas regiões de “agricultura familiar consolidada”, aexternalização tem um papel complementar e o uso detarefas externas centra-se em trabalhos com máquinas es-pecializadas modernas, pois o equipamento mecânico bá-sico é de propriedade dos agricultores. Finalmente, nasregiões de grandes explorações, o processo de externa-lização visa, principalmente, a mecanismos de gestão daforça de trabalho e de redução do emprego assalariadopermanente nas explorações. É bastante comum a exis-tência de trabalho precário nas empresas de serviços con-tratadas para esse fim. No Brasil, as cooperativas de tra-balho são um bom exemplo da manutenção de condiçõesprecárias e da não-extensão dos direitos trabalhistas paraos trabalhadores rurais.14

DINÂMICAS DAS OCUPAÇÕES NÃO-AGRÍCOLAS

Além das referidas mudanças no meio rural propria-mente dito, também é preciso estar atento para um outroimportante fator que tem impulsionado o crescimento dasocupações não-agrícolas da PEA rural: as demandas ur-banas pelos produtos e serviços rurais. Segundo Klein(1992), Weller (1994) e Graziano da Silva e Del Grossi(1997), há nove tipos de dinâmicas (mutuamente influen-tes) que impulsionam as Orna:- a dinâmica que engloba as atividades econômicas dire-tamente vinculadas à agricultura, fornecendo bens e ser-viços que são insumos da produção (transporte e comér-cio de insumos, máquinas e equipamentos, fornecimentode crédito, prestação de serviços de engenheiros e veteri-

nários, etc.) e também processando, comercializando etransportando os produtos agropecuários, o que representaos encadeamentos a montante e a jusante dos complexosprodutivos;- aquela que engloba as ocupações geradas pelo consumo dapopulação rural, incluindo tanto os bens e serviços de con-sumo como os serviços auxiliares para o consumo de bensurbanos (transporte, comércio, etc.). Ambas as dinâmicasestão diretamente vinculadas ao comportamento do setoragropecuário, em termos de expansão e geração de renda, einfluem no mercado de trabalho rural pelo lado da demandade bens e serviços não-agropecuários;- aquela que, além de estar vinculada à situação da agricul-tura, influi pelo lado da oferta no mercado de trabalho não-agropecuário. Trata-se da mão-de-obra “excedente” da agri-cultura, a qual busca emprego não-agropecuário nas própriaszonas rurais, ou nas cidades, sem abandonar a unidade fa-miliar;- a dinâmica relacionada à demanda por bens e serviçosnão-vinculados diretamente à produção agropecuária,como artesanato, lazer e turismo rural, os quais podemser desenvolvidos (ou produzidos) no próprio meio rural,apesar de serem consumidos majoritariamente por resi-dentes nos centros urbanos;- aquela referente à expansão dos serviços públicos para asáreas rurais (educação, saúde, seguridade, administrativo, etc.);- a demanda por terras para uso não-agrícola por parte das(agro)indústrias e empresas prestadoras de serviços, quebuscam o meio rural como alternativa de locação para fugirdas externalidades negativas dos centros urbanos;- a demanda da população urbana de baixa renda por ter-renos para autoconstrução de suas moradias em áreas ru-rais situadas nas proximidades das cidades e que possu-em infra-estrutura mínima de transportes e de serviçospúblicos (água e luz elétrica);- a demanda da população urbana de alta renda por áreasde lazer e/ou segunda residência, bem como pelos servi-ços a elas relacionados;- as “novas atividades agropecuárias”, cuja organizaçãoda produção e, principalmente, o seu circuito de realiza-ção estão assentados em nichos de mercado urbanos.

Das nove dinâmicas apontadas, seis são muito influen-ciadas pelas demandas da população dos centros urbanos.Isso é um ponto-chave para pesquisas futuras que busquemaprofundar as relações entre o urbano e o rural (crise ur-bana metropolitana e crise agrícola, por exemplo) no au-

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mento das ocupações não-agrícolas da população rural. OEstado de São Paulo, por apresentar elevado grau de urba-nização, com grande desenvolvimento e muitos pólos re-gionais importantes, possui um alto índice de atividadesnão-agrícolas na ocupação da PEA rural, o que tem tidoreflexos positivos em muitas regiões.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em razão do exposto, em que se constata uma grandecomplexidade nos fatores que influenciam a estrutura ocu-pacional dos residentes rurais, é preciso que as políticasassumam um enfoque integrador das atividades agrícolase não-agrícolas, ao mesmo tempo em que utilizem dife-rentes instrumentos de política econômica e social parapromover um modelo de desenvolvimento rural que per-mita aos seus habitantes melhorarem suas condições deemprego, renda e qualidade de vida.

Sobre esse aspecto das políticas públicas, deve-se re-gistrar que, no final dos anos 70, Anderson e Leiserson(1980) já chamavam a atenção para o fato de que o dese-nho das políticas de desenvolvimento rural, em adição aoprovimento de recursos necessários para o crescimento daprodutividade agrícola, deve também incluir as necessi-dades das atividades locais não-agrícolas. O crescimentoe a concentração dessas atividades nas áreas rurais neces-sitam e demandam serviços de infra-estrutura – eletrici-dade, suprimento de água, estradas, escolas, saneamentobásico –, além de crédito bancário e do desenvolvimentode instituições, públicas e privadas, locais. Os autores tam-bém alertavam para a necessidade de treinamento e for-mação da população rural para as atividades não-agríco-las, dada sua contribuição para o aumento das chances dese conseguir melhores empregos e rendimentos para ostrabalhadores.

Para Reardon e Berdegué (1999), a conjugação dosestudos mais recentes sobre as ocupações da PEA rural,no sentido de tratar com a mesma magnitude e importân-cia o número de empregos nas atividades não-agrícolas ea renda rural gerada nos mesmos; a persistência da pobre-za rural, do desemprego e do subemprego na agricultura,após mais de duas décadas de ajustes estruturais; e a cons-ciência cada vez mais clara de que a natureza e a perfor-mance das ocupações e da renda rural não-agrícola afe-tam, positiva ou negativamente, o desempenho daagropecuária, pois há muitas evidências de que as áreasmais pobres são aquelas onde o não-agrícola é pouco de-senvolvido (Arnalte, 1998), são os principais motivos que

têm influenciado os policy makers a dar cada vez maisatenção para outras fontes potenciais de geração de em-prego e renda nas áreas rurais, criando-se um novo inte-resse para um fenômeno constatado desde os anos 60: acrescente importância das ocupações não-agrícolas paraa população rural.

No entanto, o fato concreto a ser frisado é que o cres-cimento explosivo das ocupações não-agrícolas da PEArural no Estado de São Paulo, e em outras unidades daFederação, mostra que, tão ou mais importante que conti-nuar o seu fomento, seria imprimir a essas atividades não-agrícolas um caráter mais ordenado (socioeconômico eambiental), mais includente e com reais melhoras das con-dições de vida para todo o conjunto de residentes rurais.Deixados à sua própria sorte, o novo rural paulista e obrasileiro podem reproduzir muitas mazelas, tornandoinviável um promissor desenvolvimento sustentável.

NOTAS

E-mail do autor: [email protected]

Este texto está baseado na introdução e no capítulo 1 da dissertação de mestradodo autor (Balsadi, 2000).1. Nos Estados Unidos, segundo Guither e Halcrow (1988), pelo menos 72% daspropriedades rurais tinham membros familiares ocupados fora da agricultura em1985, indicando um alto percentual da PEA rural em atividades não-agrícolas.Em recente trabalho, Abramovay cita dados de pesquisadores americanos, mos-trando que apenas 10% do pessoal ocupado no meio rural vive da agricultura.“Mesmo nos condados de base fundamentalmente agrícola, menos de 35% doemprego depende da agricultura e da agroindústria” (Abramovay, 1999:23). Ain-da segundo o autor, em 1991, 93% dos domicílios rurais norte-americanos não sededicavam à produção agropecuária. Situação semelhante ocorre em países euro-peus, como a França, onde 90% dos domicílios em áreas predominantemente ru-rais não contam com nenhum trabalhador agrícola.

Na Europa, uma avaliação muito detalhada sobre a pluriatividade das famíliasrurais foi feita pelo Projeto Arkleton Trust. De acordo com os dados do projeto,obtidos para 24 regiões da Europa, 58% (em média) das famílias eram pluriativas,em 1987, indicando também uma grande inserção da PEA rural em atividadesnão-agrícolas (Fuller, 1990).

2. Em um dos trabalhos de pesquisa pioneiros sobre o crescimento das ocupaçõesnão-agrícolas em países em desenvolvimento, Anderson e Leiserson (1980) mostra-ram que, para 15 países analisados, a participação das Orna na ocupação da PEArural variava entre 12% e 49%, em 1970. Para todos os países estudados, já era pos-sível constatar, no período 1950-70, que as atividades não-agrícolas passavam a as-sumir importância crescente como ocupação para os trabalhadores com residênciarural. Esse crescimento das ocupações não-agrícolas, observado com intensidade desdeos anos 60, aponta para o fato de que não se tratava de variações conjunturais, massim de um componente estrutural na ocupação da população rural.

Klein (1992), analisando a evolução das ocupações da PEA rural em 18 paíseslatino-americanos, nas décadas de 70 e 80, observou que o número de pessoasocupadas na agricultura reduziu-se de forma acentuada e sistemática. Em 1950,54% dos trabalhadores latino-americanos estavam ocupados na agricultura, en-quanto no início dos anos 90 essa participação era de 25%.

3. Reardon et alii (1998) constataram que as rendas não-agrícolas são muito im-portantes para os domicílios rurais nos países em desenvolvimento. Em uma revi-são de literatura sobre cerca de 100 pesquisas no período 1970-90, encontraramum índice de 42% de renda não-agrícola na renda total dos domicílios rurais naÁfrica, 40% na América Latina e 32% na Ásia. Lanjouw (1999) também obteve opercentual de 40% de participação das rendas não-agrícolas na renda total dosresidentes rurais no Equador, em 1995. Em outro trabalho, Berdegué, Reardon e

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Escobar (2000) obtiveram as seguintes participações das rendas não-agrícolas nototal da renda da população rural, após compilarem várias pesquisas de autoreslatino-americanos: 39% no Brasil; 41% no Chile; 50% na Colômbia; 59% na CostaRica; 38% em El Salvador; 68% no Haiti; 38% em Honduras; 55% no México;42% na Nicarágua; 50% no Panamá; e 50% no Peru.

4. Um estudo do Ibre/CEA da Fundação Getúlio Vargas (FGV) para o Brasil,analisando o período 1985-95, mostrou que os preços de algodão, arroz, café,açúcar, cebola, feijão, laranja, mandioca, milho e soja caíram, em média, para ametade nos anos 90, em relação à década anterior. A queda do trigo foi aindamaior: mais de 70%. Nesse mesmo período, os custos de produção aumentaramsignificativamente e o resultado foi uma brutal redução na rentabilidade das ativi-dades agropecuárias tradicionais, que diminuiu quase 40%, em média, quando secompara a renda bruta obtida na primeira metade dos anos 90 com a da primeirametade da década passada (Lopes, 1997).

5. Os instrumentos de difusão desse padrão foram os financiamentos do PlanoMarshall para a reconstrução das economias européia e japonesa no pós-SegundaGuerra, o acordo com a CEE por ocasião da Rodada Kennedy (1964-67), a PL480 que, com o discurso da “ajuda alimentícia” aos países do Terceiro Mundo,resolveu o problema de estoque do governo americano e disseminou o plantio econsumo de trigo e a Revolução Verde nos anos 60, que contou com fortes finan-ciamentos para os países do Terceiro Mundo e com transferência de pacotes tec-nológicos.6. O interessante é que a superprodução de alimentos nos anos 80 indica que setrata de uma “crise de sucesso” das políticas agrícolas dos países desenvolvidos(e mesmo de alguns em desenvolvimento). Portanto, suas causas devem ser bus-cadas nos próprios instrumentos das políticas agrícolas desde o pós-Segunda Guerra(contradição entre protecionismo interno e expansionismo para novos mercados).

7. Buttel (1982) foi pioneiro ao constatar que o part-time farming teve participa-ção fundamental na entrada de “novos agentes rurais” (neo-rurais), vindos de áreasurbanas, para a agricultura. Ou seja, muitos dos novos residentes rurais entraramnas atividades rurais combinando a agricultura com atividades não-agrícolas.

8. Obviamente, essas mudanças produzem importantes impactos entre as tradi-cionais representações dos agricultores, as quais reagem de formas distintas. Comobem salientou Moyano Estrada (1988), é comum o convívio das novas e das ve-lhas formas de corporativismo no meio rural, em geral, e na agricultura, em par-ticular. Ortega (1995) também constatou isso para a agricultura brasileira.

9. “Pessoa que também trabalha na agricultura” é a expressão utilizada porPugliese (1991) para mostrar a crescente homogeneização das formas de traba-lho na agricultura e em outros setores, bem como a constatação da pluriatividadedos membros familiares rurais como elemento estrutural desse mercado de tra-balho unificado.

10. Com essa ênfase, “fica claro que os resultados diferem de uma zona paraoutra: por exemplo, pode-se ter o caso de que em um território busquem-se solu-ções alternativas ao declínio da atividade agrícola; em outro, a preocupação vemmotivada pelo êxodo dos jovens, pela falta de espírito empresarial, pela persis-tência de uma mentalidade dependente das ajudas ou, inclusive, pela inadequa-ção entre as possibilidades de formação existentes e a demanda de uma mão-de-obra qualificada para realizar atividades inovadoras; em outro, também pode pro-vocar inquietude a falta de possibilidades de emprego para as mulheres; ou, emoutro, os problemas vêm motivados, sobretudo, pela alta porcentagem de empre-gos de jornada parcial, temporários, precários ou informais existentes; e, por úl-timo, pode-se dar o caso em que se produzam demasiados deslocamentos diáriosde pessoas que vão trabalhar em uma cidade vizinha, ou que, pelo contrário, ten-te-se romper o isolamento da economia local” (Saraceno, 1999:4).

11. Sobre esse tema no Brasil, com destaque para a migração de jovens do meiorural para as cidades, ver o trabalho de Camarano e Abramovay (1999).

12. Nos estudos europeus e no estudo para o Brasil feito por Laurenti (1996), asoperações de mecanização agrícola são as mais freqüentes nos processos deexternalização de atividades feitas por empresas de serviços externas à proprie-dade (uso de tratores, colheitadeiras, aplicação aérea de defensivos, aplicação defertilizantes e corretivos). O outro destaque é a contratação de mão-de-obra paraas colheitas. Vale destacar que, além das empresas de serviços, há também agri-cultores (ou cooperativas de agricultores) que vendem seus serviços demotomecanização para os demais produtores da região. Normalmente, eles mon-tam uma frota de máquinas e implementos e vendem seus serviços para as proprie-dades rurais impossibilitadas de ter equipamentos próprios.

13. A externalização pode funcionar como forma de redução de custos e aumentoda competitividade das pequenas e médias propriedades, liberando a mão-de-obrafamiliar para atividades não-agrícolas. É importante salientar que o tamanho dapropriedade não é mais pré-requisito para a mecanização do processo produtivo.

14. Sobre esse tema, ver os trabalhos de Alves, Paulillo e Silva (1996), Paulillo(1996), Graziano da Silva (1999b) e Baptistella, Vicente e Veiga (2000).

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