SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e...
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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS I
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS
FERNANDA SANTOS DE OLIVEIRA
SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A
DRAMATURGIA
Salvador
2016
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FERNANDA SANTOS DE OLIVEIRA
SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A
DRAMATURGIA
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Estudo de Linguagens, no âmbito da
Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do
Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da
Universidade do Estado da Bahia, como requisito
final para a obtenção do grau de Mestre em Estudo
de Linguagens.
Orientadora: Profª. Drª. Elizabeth Gonzaga de
Lima
Salvador
2016
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2
FICHA CATALOGRÁFICA
FICHA CATALOGRÁFICA
Sistema de Bibliotecas da UNEB Bibliotecária: Jocélia Salmeiro Gomes – CRB:5/1111
Oliveira, Fernanda Santos
Sargento Getúlio : travessias entre a literatura e a dramaturgia / Fernanda Santos Oliveira –.
Salvador, 2016.
109 f.
Orientador: Elizabeth Gonzaga de Lima
Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado da Bahia. Programa de Pós-Graduação
em Estudo de Linguagens
Contém referências.
1. Literatura brasileira – Crítica e interpretação. 2. Ribeiro, João Ubaldo, 1941-2014.
Sargento Getúlio - Adaptações. I. Lima, Elizabeth Gonzaga de. II. Universidade do
Estado da Bahia. Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens.
CDD 869.09
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FERNANDA SANTOS DE OLIVEIRA
SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A
DRAMATURGIA
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Estudo de Linguagens, no âmbito
da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas,
Campus I, da Universidade do Estado da Bahia, como requisito final para a obtenção do grau
de Mestre em Estudo de Linguagens.
Aprovada em ________ de ________ de ___________.
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________________________
Profª. Drª. Elizabeth Gonzaga de Lima (Orientadora)
Universidade do Estado da Bahia
_______________________________________________________
Profª. Drª. Márcia Rios da Silva (Examinadora interna)
Universidade do Estado da Bahia
_______________________________________________________
Prof. Dr. Márcio Ricardo Coelho Muniz (Examinador convidado)
Universidade Federal da Bahia
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[...] é preciso descobrir dentro do romance uma
dramaturgia, que existe ali dentro, atuar como um
decifrador que tenta descobrir, revelar uma língua
invisível. (FREIRE apud CARVALHO, 2008)
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AGRADECIMENTOS
A Deus, pela presença em minha vida.
À minha família, pelo amor incondicional.
Aos meus amigos, pelo incentivo e apoio.
À Universidade do Estado da Bahia, pelas oportunidades concedidas.
À Profª Drª Elizabeth Gonzaga de Lima, pela orientação, atenção e disponibilidade.
Aos membros da Banca do Exame de Qualificação, Profª Drª Márcia Rios da Silva e Prof. Dr.
Márcio Ricardo Coelho Muniz, pelas contribuições.
A todos os professores do PPGEL, pelo apoio intelectual.
Aos meus colegas de mestrado, pela amizade.
Aos funcionários do PPGEL, pela gentileza.
A todos que contribuíram para a realização deste trabalho.
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RESUMO
Neste estudo, investigou-se como o romance Sargento Getúlio, do escritor baiano João
Ubaldo Ribeiro, publicado em 1971, assume contornos de uma narrativa com um significativo
potencial representativo, relacionando-o com o texto dramatúrgico homônimo do roteirista e
diretor teatral, Gil Vicente Tavares. Esta pesquisa amparou-se nas referências teóricas de Ian
Watt (1990) e de Lucien Goldmann (1967) relacionando literatura e sociedade, além de
Marthe Robert (2007) e de Anatol Rosenfeld (1996), a respeito do romance moderno. No
intuito de analisar o narrador do romance, considerando sua performance e estratégias
narrativas que o transformam no contador de histórias, utilizou-se os estudos de Walter
Benjamin (1994) e Paul Zumthor (2000). No âmbito da dramaturgia, privilegiou-se os estudos
de Williams (2010), Pavis (2005), Bornheim (1983) e quanto ao processo adaptativo
considerou-se a concepção de Linda Hutcheon (2013). Através dos percursos criativos do
literário e do dramatúrgico, que se faz imprescindível reconhecer o redimensionamento do
universo artístico que demanda um alargamento dos olhares da crítica. Em Sargento Getúlio,
o poder da palavra que anuncia o estabelecimento de um novo mundo transita entre o literário
e o dramatúrgico demonstrando a decomposição existencial do homem do sertão,
evidenciando a flexibilidade entre as fronteiras artísticas numa representação que contempla o
popular, o heróico e a aridez humana como contraponto e repulsa das contradições do mundo
moderno.
Palavras-chave: Sargento Getúlio. Literatura. Dramaturgia. Adaptação.
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ABSTRACT
In this study, we investigated as the novel Sergeant Getúlio, make bahian writer João Ubaldo
Ribeiro, published in 1971, to take contours of a narrative with significant hum potential
representative, relating it to the homonymous dramaturgical text to theatrical writer and
director, Gil Vicente Tavares. This research was steadied-in theoretical references Ian Watt
(1990) and Lucien Goldmann (1967) relating literature and society, in addition to Marthe
Robert (2007) and Anatol Rosenfeld (1996), an respect to the modern novel. In order to
analyze the narrator of the novel, the performance your considering and strategies narratives
that transform the stories counter, was used studies of Walter Benjamin (1994) and Paul
Zumthor (2000). Relating to dramaturgy, priority was given studies Williams (2010), Pavis
(2005), Bornheim (1983) and how the adaptive process considered to Linda Hutcheon design
(2013). Through the creative paths of literary and dramaturgical , which is indispensable to
recognize the resizing of the artistic universe demand an extension of the critical looks. In
Sergeant Getulio, the power of speech announcing the establishment of a new world moves
between the literary and dramaturgical demonstrating the existential breakdown backwoods
man, showing flexibility between artistic boundaries in a representation which includes the
popular, heroic and human aridity as a counterpoint and repulsion of the contradictions of the
modern world .
Keywords: Sergeant Getulio. Literature. Dramaturgy. Adaptation.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 09
1 SARGENTO GETÚLIO: O ROMANCE NO LIMIAR ENTRE A LITERATURA
E A DRAMATURGIA ............................................................................................... 14
1.1 GETÚLIO ENTRE FEITOS E FRAQUEZAS: DO HERÓI AO ANTI-HERÓI
ROMANESCO ............................................................................................................. 15
1.2 “UMA HISTÓRIA DE ARETÊ” PARA ALÉM DE UMA QUESTÃO DE HONRA”
...................................................................................................................................... 24
1.3 O NARRADOR-CONTADOR: A DESINTEGRAÇÃO DO MUNDO ARCAICO
.......................................................................................................................................31
2 SARGENTO GETÚLIO ENQUANTO TEXTO DRAMATÚRGICO: ENTRE O
LITERÁRIO E O ESPETÁCULO ........................................................................... 38
2.1 TEXTO DRAMATÚRGICO, UM GÊNERO?............................................................ 39
2.2 SARGENTO GETÚLIO REINVENTADO: OS RECORTES DE GIL VICENTE
TAVARES ..................................................................................................................... 46
2.3 GIL VICENTE TAVARES: ENTRE O LEITOR E O DRAMATURGO .................... 51
3 O CARÁTER LITERÁRIO DO TEXTO DRAMATÚRGICO E O CARÁTER
DRAMATÚRGICO DO ROMANCE ...................................................................... 57
3.1 INTERFACES DOS SARGENTOS GETÚLIOS...........................................................62
3.2 VERSÕES DO REGIONALISMO PARA JOÃO UBALDO E GIL VICENTE
TAVARES ................................................................................................................... 70
3.3 OS GETÚLIOS NO MUNDO E OS MUNDOS DE GETÚLIO: IMAGINÁRIO DOS
ARCAÍSMOS .............................................................................................................. 75
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 80
REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 83
APÊNDICE – Quadro comparativo entre o romance Sargento Getúlio, de João
Ubaldo Ribeiro, e o texto dramatúrgico homônimo de Gil Vicente
Tavares..........................................................................................................................89
ANEXO – Texto dramatúrgico Sargento Getúlio, de Gil Vicente
Tavares..........................................................................................................................96
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INTRODUÇÃO
Quando se trabalha um texto literário no teatro, tal
preferência não deve limitar-se ao enredo ou à
fábula, que por sua vez podem ser escritos por
outrem, mas sim pela forma de contar, pela
linguagem e suas idiossincrasias. De outra forma
não haveria tanto sentido em se aproximar de uma
obra de natureza tão aparentemente distinta
daquela que se conhece como a da linguagem
teatral. (Juarez Dias, 2010).
Novas maneiras de pensar a literatura e a dramaturgia são perceptíveis na trajetória
dos dois campos artísticos resultando em reconfigurações na forma e no conteúdo de ambos.
A partir de seus pontos de intersecção, o texto dramatúrgico passa a ocupar um lugar
problemático na medida em que ora se comporta como o guia do espetáculo, ora concorre
com os demais elementos cênicos.
No percurso do processo adaptativo entre a literatura e o teatro, a escrita dramatúrgica
emoldura-se com um caráter híbrido que agrupa linguagens e teatralidades ao texto. Com base
em ponderações comparativas estabelece-se uma análise das proximidades entre as duas
formas de escrita possibilitando uma análise de seus pressupostos, dos deslocamentos
interartísticos e de suas áreas limítrofes. O título da dissertação “Sargento Getúlio: travessias
entre a literatura e a dramaturgia" deve-se ao fato da pesquisa enveredar-se pelo diálogo entre
o romance e o texto dramatúrgico Sargento Getúlio, ressaltando suas mútuas contaminações.
A escolha pelo romance Sargento Getúlio, de João Ubaldo Ribeiro, iniciou na
Graduação em Letras - Língua Portuguesa e Literaturas de Língua Portuguesa com a
apresentação de trabalhos que foram sedimentando a curiosidade em continuar pesquisando a
produção do autor. No Mestrado em Estudo de Linguagens, a proposta do projeto de pesquisa
incorporou a análise do texto dramatúrgico homônimo de Gil Vicente Tavares. O objetivo do
estudo foi traçado com o intuito de analisar o processo adaptativo que se inicia com o
romance Sargento Getúlio e resulta no trabalho dramatúrgico, destacando as particularidades
inerentes ao processo, os traços do romance que potencializam a sua adaptação e as escolhas
de Gil Vicente Tavares para a elaboração da narrativa sob o olhar da dramaturgia.
João Ubaldo Osório Pimentel Ribeiro, escritor, acadêmico, cronista, jornalista,
roteirista e professor, nasceu na cidade de Itaparica, no estado da Bahia, em 1941. Em 2014,
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aos 73 anos, morreu, no Rio de Janeiro, o escritor que integrava a Academia Brasileira de
Letras e que se destacou como um dos escritores mais traduzidos da literatura brasileira.
Em 1968, João Ubaldo Ribeiro publicou o seu primeiro romance Setembro não tem
sentido demarcando o início dos olhares da crítica para a sua produção literária. Além de
contos, ensaios e obras da Literatura Infantojuvenil, escreveu crônicas cotidianas e políticas
publicadas em jornais de circulação nacional como O Globo e O Estado de São Paulo, e em
jornais do exterior, como Frankfurter Rundschau e Diet Zeit, na Alemanha, The Times
Literary Supplement, na Inglaterra e O Jornal e Jornal de Letras, em Portugal. Publicou dez
romances de 1968 a 2009: Setembro não tem sentido (1968), Sargento Getúlio (1971), Vila
Real (1979), Viva o Povo Brasileiro (1984), O Sorriso do Lagarto (1989), O Feitiço da Ilha
do Pavão (1997), A Casa dos Budas Ditosos (1999), Miséria e Grandeza do Amor de
Benedita (2000), Diário do Farol (2002) e O Albatroz Azul (2009).
Algumas de suas obras foram traduzidas para o inglês, francês, alemão, espanhol e
italiano. O escritor imbuiu-se da tarefa de traduzir para o inglês suas obras Sargento Getúlio e
Viva o Povo Brasileiro, sendo publicadas nos Estados Unidos em 1978 e 1989,
respectivamente. Em sua carreira literária, João Ubaldo recebeu importantes prêmios
internacionais, tais como o Prêmio Anna Seghers (1994), em Berlim,o Prêmio Die Blaue
Brillenschlange (1995), como melhor livro infantojuvenil, na Alemanha, o Prêmio Camões
(2008), entre outros, o que demonstra o sucesso de sua obra no exterior. Conforme Ceccantini
(2014), apesar do autor receber o Prêmio Jabuti com Sargento Getúlio em 1972, “essa obra
alcançou um círculo leitor mais amplo e um valor simbólico mais alto apenas quando foi
lançada nos Estados Unidos e recebeu críticas muito favoráveis”, além de comparar a
trajetória do protagonista de Sargento Getúlio com o monólogo de Hamlet considerando a sua
dúvida existencial “Levo ou não levo?”. A exploração de questões de âmbito universal
partindo do contexto local particulariza a produção de João Ubaldo ao provocar um
tensionamento entre o binarismo local e universal que permeia a sua obra.
A partir da década de 1990, a fortuna crítica do autor é agrupada em dissertações de
mestrado, teses de doutorado e livros, tais como: Vida e paixão de Pandonar, o cruel, de João
Ubaldo: um estudo de produção e recepção, de João Luís Ceccantini; João Ubaldo: um estilo
de sedução, de Wilson Coutinho; Estampas do imaginário: literatura, cultura, história e
identidade, de Eneida Leal Cunha; Caderno de Literatura Brasileira 7, do Instituto Moreira
Salles; João Ubaldo Ribeiro: obra seleta, de Zilá Bernd; Este lado para dentro: Ficção,
confissão e disfarce em João Ubaldo, de Juvenal Batella de Oliveira. Entre capítulos e livros
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publicados, destacam-se: O caminho do meio: uma leitura da obra de João Ubaldo, de Zilá
Bernd e Francis Utéza; João Ubaldo: littératuré brésilienne et constructions identitaires, de
Rita Oliviere-Godet; As distintas facetas de João Ubaldo, de Malcolm Silverman; Brava
gente brasileira, de João Luís Ceccantini e A escritura mestiça de João Ubaldo, de Zilá
Bernd.
Algumas obras de João Ubaldo foram adaptadas para o cinema, para a televisão e para
o teatro. Em 1983, foi produzido o filme Sargento Getúlio. Em 1991, O Sorriso do Lagarto
foi adaptado como minissérie da Rede Globo. Em 1993, adaptou O santo que não acreditava
em Deus para a série Caso Especial, da Rede Globo. Em 1999, escreveu o roteiro de Deus é
Brasileiro, em parceria com Cacá Diegues, a partir do conto O santo que não acreditava em
Deus. Em 2004, o romance A Casa dos Budas Ditosos foi adaptado para o teatro em forma de
monólogo por Domingos de Oliveira.
Em 2011, estreou a peça teatral Sargento Getúlio, de Gil Vicente Tavares, dramaturgo,
diretor e compositor, nascido em 1977, em Salvador, no estado da Bahia. A peça é um
monólogo com trechos entrecortados do romance de João Ubaldo Ribeiro e foi contemplada
com os Prêmios Braskem de Teatro nas categorias de Melhor Espetáculo e Melhor Ator e
indicada nas categorias de Melhor Direção e Melhor Iluminação. A adaptação preserva o
texto original dos trechos selecionados do romance o que demonstra a flexibilidade da zona
de intersecção entre os campos literário e dramatúrgico.
O romance Sargento Getúlio assume contornos de uma narrativa bastante provocadora
para o leitor contemporâneo. Por meio de um monólogo, traça-se o percurso da personagem
Getúlio, Sargento que tem a missão de levar um prisioneiro de Paulo Afonso, interior da
Bahia, até Barra dos Coqueiros em Aracaju. Metamorfoseando-se numa “história de aretê”,
rastros de elementos da cultura grega antiga podem ser vislumbrados na construção do
romance.
A narrativa romanesca vem demonstrando, desde sua publicação, um significativo
potencial representativo. Em 1983, ganhou uma versão cinematográfica. Em 2011, o roteirista
e diretor teatral, Gil Vicente Tavares, estreia a peça teatral Sargento Getúlio. Ao levar Getúlio
para os palcos, o teatro ressignifica o fazer artístico com sua linguagem encenada. Nessa
perspectiva, este estudo busca relacionar o romance à arte dramatúrgica a partir da reflexão
sobre as nuanças da representação.
Desse modo, esta pesquisa justifica-se pela importância do estudo do romance numa
perspectiva da hibridação de forma que possibilite explorar as relações dialógicas na travessia
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entre a literatura e a dramaturgia. Logo, avaliam-se as formas como a representação está
hibridizada no meio artístico e como se dá sua manifestação nas formas de expressão literária
e dramatúrgica. Este estudo persegue a seguinte indagação: a representação é capaz de
atravessar fronteiras entre a literatura e a dramaturgia, possibilitando uma mútua
contaminação, transfigurando-as?
No intuito de suscitar tais abordagens, este trabalho foi organizado em três seções. Na
seção 1, intitulada Sargento Getúlio: o romance no limiar entre a literatura e a dramaturgia,
apresenta-se uma discussão a respeito da arte do romance, a partir da análise do texto de João
Ubaldo, considerando sua intensidade na exploração de referências. A reflexão sobre o
universo da oralidade na trajetória de Getúlio, concomitantemente heroica e anti-heroica,
configura-se como gancho para o capítulo seguinte, no qual se ressalta a abordagem sobre o
texto dramatúrgico – eixo principal da discussão – e no enfoque dos aproveitamentos que o
diretor teatral Gil Vicente Tavares realizou dos elementos da oralidade constitutivos do
romance.
A seção 2, sob o título Sargento Getúlio enquanto texto dramatúrgico: entre o
literário e o espetáculo, contempla uma discussão a respeito do texto dramatúrgico a partir da
análise da obra homônima de Gil Vicente Tavares. A abordagem volta-se para o texto
dramatúrgico Sargento Getúlio, inserindo-o no contexto social, tratando da inventividade
inerente ao processo de adaptação.
A seção 3, O caráter literário do texto dramatúrgico e o caráter dramatúrgico do
romance, problematiza as similitudes entre os dois universos artísticos e analisa quais
aspectos os aproximam e os distanciam. Considera o processo adaptativo como uma
intertextualidade explícita, além de abordar sobre o regionalismo materializado no conteúdo e
na forma.
Esta pesquisa, portanto, amparou-se nas referências teóricas de Erich Auerbach
(1976), a respeito da representação da realidade na literatura e de Georg Lúkacs (2009),
acerca das relações entre o romance e a epopeia. A abordagem sobre os gêneros e as formas
híbridas, partiu das concepções de Gérard Genette (1990), Victor Hugo (2007), Todorov
(1980), Mikhail Bakhtin (2002) e Emil Staiger (1975). Acerca da ascensão romanesca,
fundamentou-se nos estudos de Ian Watt (1990) e baseou-se na concepção de Lucien
Goldmann (1967) relacionando literatura e sociedade, além de Marthe Robert (2007) e Anatol
Rosenfeld (1996), a respeito do romance moderno. Os estudos de Walter Ong (1988)
propiciaram ponderações a respeito da cultura oral. Contou-se, ainda, com as discussões de
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13
Beatriz Resende (2008), Erik Schollhammer (2000) e Ângela Maria Dias (2007) para abordar
a tematização da violência na literatura contemporânea.
No intuito de analisar o narrador do romance, considerando sua performance e
estratégias narrativas que o transformam no contador de histórias, utilizou os estudos de
Walter Benjamin (1994) e Paul Zumthor (2000). As reflexões sobre os estudos de recepção e
da Teoria do Efeito pautaram-se nas concepções de Wolfgang Iser (1996). No âmbito da
dramaturgia, privilegiaram-se os estudos de Williams (2010), Pavis (2005), Bornheim (1983)
e quanto ao processo adaptativo considerou-se a concepção de Linda Hutcheon (2013).
Quanto aos aspectos do regionalismo, partiu-se das concepções de Sílvio Romero (1949),
Antonio Candido (1987), Ligia Chiappini (1994) e Durval de Albuquerque (2011).
É, pois, considerando as relações mútuas por meio dos percursos criativos do literário
e dramatúrgico, que se faz imprescindível reconhecer o redimensionamento do universo
artístico que demanda, por sua vez, um alargamento dos olhares da crítica. E, por meio dessa
interação, a linguagem performática de Sargento Getúlio, seja por meio das palavras ou por
meio da ação, impõe-se com sua poeticidade no cenário contemporâneo.
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14
1 SARGENTO GETÚLIO: O ROMANCE NO LIMIAR ENTRE A LITERATURA E A
DRAMATURGIA
Às vezes, ocorre-nos pensar em Babel; mas é
exatamente essa flexibilidade que fez do romance a
primeira forma simbólica verdadeiramente
mundial: uma fênix que onde quer que se encontre
sabe retomar o voo, e que tem a astúcia de acertar
sempre a linguagem justa para os seus novos
leitores. (Franco Moretti, 2009).
No âmbito da discussão a respeito da relação entre as artes e, especificamente, do
potencial representativo do romance Sargento Getúlio, de João Ubaldo Ribeiro, e do texto
dramatúrgico homônimo de Gil Vicente Tavares, cabe uma reflexão a respeito da noção de
representação que perpassa a literatura e a dramaturgia. Derivando do latim repraesentare, o
termo transita por diversas teorias ao longo da história, sendo incorporados vários atributos ao
mesmo. Porém, nesse percurso histórico, ao ser frequentemente relacionado ao conceito de
significação, intermediando a relação entre o signo e o objeto, a representação destaca-se
como o modo de estar no lugar de outro.
O ato de representar é fundamental para as artes de um modo geral. Por isso, a
importância de compreender como acontece sua manifestação nas mais diversas formas de
expressão. Afinal, quais são os limites da representação na literatura? A representação é capaz
de romper fronteiras entre a literatura e o dramatúrgico contaminando-os mutuamente,
transfigurando-os. Arte e realidade interpenetram-se por meio da representação. Esta, por sua
vez, torna-se um fio condutor entre o real e o artístico. É imprescindível discutir sobre a forma
como a expressividade no romance Sargento Getúlio o faz extrapolar fronteiras interartísticas.
As artes proporcionam um despertar para o mundo e, ao mesmo tempo, interfere no modo de
concebê-lo.
Erich Auerbach (1976) relaciona literatura e realidade ao buscar demonstrar a
concepção de literatura como representação1 da realidade a partir de obras consagradas da
literatura ocidental por meio de uma abordagem filológica. Tal pensamento foi debatido a
1Em Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental, Erich Auerbach (1976) defende a literatura
como representação da realidade na literatura ocidental o que foi intensamente criticado pelas correntes do
século XIX. A mimesis, segundo o autor, possibilitaria a unidade da diversidade inerente às relações históricas e
culturais. Foucault (1988), em Isto não é um cachimbo, ao se debruçar sobre o século XVI ao XIX verifica que a
mimesis restringe-se a um dado momento: o período clássico quando realidade e representação tornam-se
distintos e aborda que a arte deve ser liberta do signo sem necessariamente limitar-se à cópia ou imitação da
realidade.
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partir do século XIX e, especialmente, durante o século XX. A arte é desafiadora e como tal
não é uma imitação da realidade, não existe uma pretensão em ser a realidade, mas através de
um caráter questionador representar uma realidade transfigurada. Qual realidade importou a
João Ubaldo, como romancista, e a Gil Tavares, como roteirista, ao concederem vida a
Getúlio, na literatura e na dramaturgia, respectivamente?
É na imaginação que reside o poder da arte e da representação de transfigurar os
modos de ver-se o mundo. Então, é por meio da ficção que a literatura redimensiona seu
potencial para além de um universo de fantasias. E, por meio desse universo ficcional é que
Getúlio mostra-se e apresenta suas realidades configuradas num percurso que extrapola as
páginas do romance, assim como redimensiona o dramatúrgico.
No transcorrer da História, dentre as modificações ocorridas no âmbito do campo
artístico, ressalta-se o diálogo instigante entre a literatura e o cinema, a música, a dramaturgia,
entre outras linguagens, que foram transformando-se ao longo do tempo. Desse
entrecruzamento, a literatura adquiriu visibilidade em outros campos artísticos, possibilitando
o alargamento de suas potencialidades.
Nesse sentido, considerando que a dramaturgia e a literatura configuram-se como
formas de representação, reiteradamente, marcadas por uma interação mútua em seus
percursos, faz-se necessária uma discussão a respeito desse processo intercambiante. Nesse
desvencilhar da realidade, Getúlio encarna uma personagem profícua de sentidos e
significações.
1.1 GETÚLIO ENTRE FEITOS E FRAQUEZAS: DO HERÓI AO ANTI-HERÓI
ROMANESCO
Georg Lukács (2009), filósofo húngaro, em sua obra A teoria do romance, estabelece
uma relação entre o romance e a epopeia a partir da comparação entre dois mundos: o mundo
dos gregos com sua unidade e o mundo moderno caracterizado pela fragmentação e perda de
sentido ao afirmar que o “romance é a epopeia de uma era para a qual a totalidade extensiva
da vida não é mais dada de modo evidente, para a qual a imanência do sentido à vida tornou-
se problemática, mas que ainda assim tem por intenção a totalidade.” (LUKÁCS, 2009, p. 55).
O autor afirma ser o romance a epopeia de um mundo cuja totalidade encontra-se
fragmentada, no entanto o romance busca atingir esta totalidade.
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Nesse sentido, conforme o pensamento lukácsiano, o romance sucede a epopeia
contrapondo-se a mesma em seus aspectos estéticos. Porém, o autor reconhece que as
diferenças entre ambos vão além de tais aspectos, ao considerar os seus respectivos mundos.
A partir desses matizes, pretende-se por meio da análise do romance Sargento Getúlio
verificar suas particularidades quanto à configuração do herói e anti-herói. Afinal, quais são
aproximações e distanciamentos entre o mundo homérico e o mundo de Ubaldo?
Partindo do pressuposto de que os gêneros literários não são autossuficientes, mas
complementares, é notório como os elementos do épico, do dramático e do lírico transitam
entre as fronteiras impostas por qualquer tipo de categorização. Gérard Genette (1990),
teórico francês, ressalta a importância das relações transtextuais para a literatura, assinalando
que as formas de conceberem-se os gêneros literários no decurso histórico passaram por
diversas transformações de maneira que “no trágico reside a perfeição do épico, no lírico a
perfeição do trágico, no épico a perfeição do lírico” (GENETTE, 1990, p. 57). Victor Hugo
(2007), ao teorizar sobre o grotesco, defende os gêneros híbridos ao reconhecer que o drama
reúne características dos outros gêneros, como o lírico e o épico, ressaltando que a obra de
arte não deve ser limitada por sua forma. Segundo o autor, a relação do grotesco com o
sublime acarretou numa profusão de formas alargando as possibilidades artísticas. Todorov
(1980) enfatiza que os gêneros nascem deles próprios. E, nesse sentido, o estudioso admite a
possibilidade de recriação dos gêneros antigos. Entre a hibridação e a recriação dos gêneros, a
literatura renovou-se e ampliou o seu campo artístico.
As reflexões iniciais sobre gênero emergem na antiguidade com Platão e assumem
contornos mais definidos com Aristóteles. Victor Hugo, no século XIX, exprime a idéia de
flexibilidade entre os gêneros e Emil Staiger (1975) aprofundou tal ponto de vista ao conceber
a obra de arte com uma essência fundamentalmente lírica, épica ou dramática o que não
impede da mesma apresentar traços de outro campo.
A fim de traçar o perfil dos heróis no campo literário é imprescindível retomar a forma
como a literatura era concebida na Grécia antiga. Os poemas homéricos ilustram os valores
heroicos consagrados na honra e na glória dos grandes feitos. A epopeia é a forma que
Homero utilizou para expressar a totalidade inerente à cultura grega. Jean-Pierre Vernant
(2008) afirma que o homem da Grécia antiga era entrelaçado ao contexto social e cultural de
tal forma que se comportava como o fundador e fruto do seu meio. Nesse sentido, Lukács
(2009) ressalta que:
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Para os gregos, a decadência da vida como depositária do sentido apenas
transferiu a proximidade e o parentesco mútuo das pessoas para uma outra
atmosfera, mas não os destruiu: cada personagem que aparece está à mesma
distância da essência, do suporte universal, e portanto, em suas raízes mais
profundas, todos são aparentados uns aos outros; todos compreendem-se
mutuamente, pois todos falam a mesma língua, todos guardam uma
confiança mútua, ainda que como inimigos mortais, pois todos convergem
do mesmo modo ao mesmo centro e se movem no mesmo plano de uma
existência que é essencialmente a mesma. (LUKÁCS, 2009, p. 42).
O mundo grego era envolvido por uma atmosfera alegórica, mística e sagrada, sob a
qual a divindade imperava e concedia as dádivas. Nesse contexto, a epopeia assume a
expressão de um mundo “no qual a transgressão de normas firmemente aceitas acarreta por
força uma vingança, que por sua vez tem de ser vingada, e assim ao infinito, ou então é a
perfeita teodiceia, na qual crime e castigo possuem pesos iguais e homogêneos na balança do
juízo universal.” (LUKÁCS, 2009, p. 61).
A epopeia surge, portanto, como a demonstração da plenitude e grandeza do homem
grego. Virtudes bem representadas por Homero na constituição de sua epopeia marcada por
elementos transcendentais. A cultura grega era intimamente ligada aos deuses. Assim, os
heróis da epopeia representam um elo nessa mediação com os deuses. Lukács estabelece uma
associação entre o surgimento do gênero de Homero e a essência da vida:
[...] então toda a ação é somente um traje bem-talhado da alma. Ser e
destino, aventura e perfeição, vida e essência são então conceitos idênticos.
Pois a pergunta da qual nasce a epopeia como resposta configuradora é:
como pode a vida tornar-se essencial? E o caráter inatingível e inacessível de
Homero – e a rigor apenas os seus poemas são epopeias – decorre do fato de
ele ter encontrado a resposta antes que a marcha do espírito na história
permitisse formular a pergunta. (LUKÁCS, 2009, p. 26-7).
Dessa forma, a essência transcendental da vida dos gregos residia no seu mundo
homogêneo. E o herói da epopeia, intimamente ligado ao seu mundo, apresenta-se como um
ser representativo, “nunca é, a rigor, um indivíduo. Desde sempre se considerou traço
essencial da epopeia que seu objeto não é um destino pessoal, mas o de uma comunidade.”
(LUKÁCS, 2009, p.67).
Assim, a epopeia baseia-se na essencialidade da vida de forma que a totalidade do ser
presentifica-se “quando o saber é virtude e a virtude, felicidade; quando a beleza põe em
evidência o sentido do mundo.” (LUKÁCS, 2009, p. 31). Portanto, com a modernidade e o
surgimento do romance ocorre um distanciamento dessa representação de feitos de homens
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gloriosos e de deuses transcendentais característicos da epopeia. Os mitos cedem lugar para
uma perspectiva histórica e a totalidade de sentidos da cultura grega despedaça-se, conforme
Lukács:
O processo segundo o qual foi concebida a forma interna do romance é a
peregrinação do indivíduo problemático rumo a si mesmo, o caminho desde
o opaco cativeiro na realidade simplesmente existente, em si heterogênea e
vazia de sentido para o indivíduo, rumo ao claro autoconhecimento. Depois
da conquista desse autoconhecimento, o ideal encontrado irradia-se como
sentido vital na imanência da vida, mas a discrepância entre ser e dever-ser
não é superada, e tampouco poderá sê-lo na esfera em que tal se desenrola, a
esfera vital do romance; só é possível alcançar um máximo de aproximação,
uma profunda e intensa iluminação do homem pelo sentido de sua vida.
(LUKÁCS, 2009, p. 82).
O herói épico passa por mudanças no campo literário e surge o herói romanesco. Em
sua teoria, Lukács demonstra como se configura o herói problemático em busca da harmonia a
partir da constituição do romance moderno. Ian Watt (1990), baseando-se no pensamento de
Max Weber, analisa a ascensão da forma romanesca na Europa a partir de correntes
filosóficas do século XVII e XVIII e do advento do individualismo moderno. Destaca que o
romance consolidou-se como a forma literária mais expressiva da experiência individual.
Como narrativa das trajetórias individuais, o romance rompe com sua estrutura tradicional e
introduz uma nova tendência.
Lucien Goldmann (1967) defende que a perspectiva do romancista interfere na
composição de sua produção. O autor considera a obra de Lukács um divisor de águas para a
sociologia da literatura ao superar o entendimento da obra literária como mero espelho da
realidade social e buscar uma associação no campo da forma. Goldmann aprofunda o eixo
relacional entre literatura e sociedade a partir da historicização da forma e da designação da
coletividade como sujeito.
Goldmann analisa a problemática do romance moderno a partir da perspectiva de
Hegel do romance como epopeia do mundo burguês a qual foi rebatida por Bakhtin (2002)
que defende o romance como o reconhecimento de uma nova conjuntura. Como Lukács,
Goldmann demonstra uma elevação da epopeia e trata o romance como o gênero
problemático.
O herói da epopeia seguia os rastros do destino ao passo em que o herói romanesco é
responsável por seus atos. Bakhtin defende o romance como o gênero capaz de seguir em
constante mutação formal. Mikhail Bakhtin (2002) apresenta o romance como um gênero
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inacabado e reconhece que o seu processo evolutivo o torna singular. O autor estuda o
contexto de estabelecimento do romance e demonstra que os demais gêneros “romancizaram-
se”. Tal fato contribuiu para a inovação de sua linguagem, entremeada por recursos estilísticos
e na liberdade do processo criativo.
Numa exposição que não possui um caráter histórico, Anatol Rosenfeld (1996) reflete
sobre o romance moderno. Segundo o estudioso, no romance, a linearidade temporal foi
abalada ao marcar a diferença entre os tempos cronológico e subjetivo. Segundo o autor, a
“narração torna-se assim padrão plano em cujas linhas se funde, como simultaneidade, a
distensão temporal.” (ROSENFELD, 1996, p. 83). O autor analisa o romance moderno a
partir do estudo das formas de narrar e da posição do narrador. Discute sobre a eliminação do
espaço e do tempo absolutos ao assumirem um caráter subjetivo. O homem une o passado, o
presente e o futuro. Há uma convergência entre os tempos no monólogo da personagem. O
uso da primeira pessoa permite evidenciar na estrutura do romance o fluxo da consciência.
Conforme Catherine Gallagher:
A onisciência do narrador, o discurso indireto que revela os estados mentais
da personagem, o monólogo interior, são todos modos de retirar “as
experiências subjetivas íntimas das [...] personagens, o aqui e o agora de
suas vidas que, no mundo real, permaneceriam inacessíveis a qualquer
observador.” (GALLAGHER apud MORETTI, 2009, p. 651).
Acontece uma individualização do herói no romance moderno que ultrapassa a
estrutura tradicional do gênero e transforma a maneira de narrar. E a própria personagem
passa a ser representada de forma fragmentada, à medida que o narrador mostra-se imerso na
narrativa. Enquanto a cultura grega era intimamente ligada à coletividade, na modernidade
prevalece o indivíduo. A epopeia era a forma do mundo grego antigo e o romance constitui-se
na forma do mundo moderno. A modernidade distancia o eu e o mundo e o homem entrega-se
na busca de sentidos para a sua vida. Segundo Walter Ong:
À medida que a escrita e, por fim, a impressão gradativamente alteram as
velhas estruturas poéticas orais, a narrativa se constrói cada vez menos sobre
figuras “fortes” até que, após cerca de três séculos de impressão, ela possa se
mover confortavelmente no mundo da vida humana comum, típico do
romance. Aqui, no lugar do herói, encontramos finalmente até mesmo o anti-
herói, que, em vez de enfrentar o inimigo, constantemente recua e foge.
(ONG, 1998, p. 84).
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Nesse sentido, Getúlio por meio das suas façanhas busca ser o herói implacável. São
muitos os heróis que se insurgem no meio literário representando a coragem e a valentia ao
lutar por uma causa. O herói surgiu a partir da mitologia que destacava como virtudes a
bravura e a audácia daqueles que participavam dos rituais. Segundo Kothe (2000), o herói
épico traduz-se no desejo de construção de sua história; o trágico seria o destino humano; o
trivial é a representação do poder; o pícaro é a luta pela sobrevivência.
Na literatura, o herói épico de Homero foi o primeiro perfil traçado por meio da
escrita, atrelado à mitologia, gradativamente, torna-se mais humano. Nessa transição do
divino para a humanidade nasce a personagem literária que abarca uma tipologia de heróis: o
trágico que apesar de buscar demonstrar sua força revela uma fraqueza ao perder o poder. O
embate contra o destino é a sua marca e o situa entre o divino e o humano; o herói trivial
sendo aquele que representa a classe social influente; o herói picaresco, um tipo trapaceiro
que busca vantagens. A moralidade do herói faz com que suas ações sejam justas e aceitas,
apesar da crueldade descomunal.
A presença da morte é outro elemento atrelado às ações heroicas. É perceptível como
os elementos heroicos presentificam-se no romance Sargento Getúlio através da configuração
triunfante do protagonista. A representação da violência e do espírito de vingança era
recorrente na epopeia homérica. Assim como a busca pela glória e o reconhecimento em
nome da honra. O guerreiro aspirava por uma morte que lhe concedesse a glória. Para isso, é
permanente a cobiça pelos melhores feitos, com bravura e destemor. O herói canta sua
exaltação para a coletividade e inscreve-se numa atmosfera de autoadmiração. O que importa
é a memória coletiva. É nessa ambientação e com esse perfil que Homero cria seus heróis.
Nesse sentido, que Getúlio de Ubaldo Ribeiro ressignifica o perfil do herói: “eu sou
Getúlio Santos Bezerra e meu pai era brabo e meu avô era brabo e no sertão daqui não tem
ninguém mais brabo do que eu. E eu dou um murro na testa do carneiro que aparecer e o
carneiro morre.” (RIBEIRO, 2008, p. 140). O que exalta o seu herói é a coragem e a bravura:
“agora veja essa peixeira que eu truxe, que deixei envenenada dentro dum rato morto duas
semanas e tem um anzol no bico que é para eu arrancar um pedaço de sua tripa quando ela
sair da sua barriga, e tomar com cachaça.” (RIBEIRO, 2008, p. 121). Getúlio é esse herói que
se metamorfoseia em anti-herói transplantado para as páginas do romance: “Eu sou eu. Meu
nome é um verso: Getúlio Santos Bezerra, e de vez em quando eu penso que, não tendo
ninguém melhor do que eu, tudo que pode me acontecer é melhor do que os outros. Hum. Não
sei, acho que eu penso demais, não adianta.” (RIBEIRO, 2008, p. 140). José Hildebrando
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Dacanal afirma que “Sargento Getúlio apareceu com lugar já definido dentro da literatura
brasileira. A obra de João Ubaldo Ribeiro, criação poética a cuja grandeza ninguém pode
deixar de curvar-se, integra, sem qualquer dúvida, o ciclo da nova narrativa épica.”
(DACANAL, 1988, p. 90).
O fundamental no perfil de Getúlio é o ímpeto de partir para o combate com sua
atuação descomedida: “Aí inverti a arma, encarquei duas vezes no beiço do alguém e
arranquei quatro dentes de alicate. E deixei.” (RIBEIRO, 2008, p. 62); “Bom, por primeiro
bati a coronha nele para ele abrir a boca; depois tirei dois dentes de riba, dois dentes de baixo.
Foi serviço ligeiro.” (RIBEIRO, 2008, p. 67); “Pode ser crime, mas não é roubo, porque tirar
coisa de delegacia não deve ser roubo, pode ser crime. Pode ser o que quiser, em mim não
pega nada, eu sou eu e nicuri é o diabo, campe-se.” (RIBEIRO, 2008, p. 118).
Em Sargento Getúlio, o herói legitima-se por meio de uma escrita oralizada que
perpassa por uma enorme expressividade no transcorrer da narrativa: “Eu moro no mundo.
Moro andando. Ai, aaaaaaaaai, aai, aai, ai, ai, aaaaaaaaai, aaaai, ai um boi de barro, ai um boi
de barro, um boi de barro, ai um boi de barro, ai de eu, um boi de barro, ai um boi de barro.”
(RIBEIRO, 2008, p. 31). Além disso, é muito frequente a presença de cantigas,“pois ô de
casa/abre essa porta/tem uma visita/de cara torta” (RIBEIRO, 2008, p. 78), músicas,
“Bonequinha linda/dos cabelos louros/olhos tentadôrios/lascos de lubila.” (RIBEIRO, 2008,
p. 52), versos de cordel “Capitão Moreira César/Dezoito guerras venceu/A terceira não
interou/No Belo Monte morreu [...] O alfere Vanderlei/É bicho de opinião/Quando foi para
Canudo/Foi em frente ao batalhão.” (RIBEIRO, 2008, p. 90-1). Em Sargento Getúlio,
oralidade e memória entrecruzam-se e vão sendo verbalizadas no decorrer das páginas e
vivenciadas pelo protagonista.
Walter Ong afirma que foi comprovado que “a Ilíada e a Odisséia eram
essencialmente criações orais, fossem quais fossem as circunstâncias que determinaram seu
registro pela escrita.” (ONG, 1988, p. 71). A respeito da cultura oral o pesquisador ressalta
que:
A tradição heróica da cultura oral primária e da cultura escrita primitiva,
com seu enorme resíduo oral, está relacionada ao estilo de vida agonístico,
mas é construída segundo as necessidades dos processos noéticos orais. A
memória oral trabalha eficientemente com personagens “fortes”, indivíduos
cujas façanhas são notáveis, memoráveis e geralmente notórias. Desse modo,
a economia noética própria a ela gera figuras de tamanho descomunal, isto é,
figuras heróicas não por motivos românticos ou deliberadamente didáticos,
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mas por motivos muito mais fundamentais: organizar a experiência numa
forma permanentemente memorável. Personalidades apagadas não podem
sobreviver na mnemônica oral. Para garantir peso e memorabilidade, as
figuras heróicas tendem a constituir figuras-tipo: o sábio Nestor, o furioso
Aquiles, o astuto Ulisses. (ONG, 1998, p. 83).
O herói homérico é construído como uma figura impetuosa. Como exemplo tem-se a
personagem Aquiles que prefere uma vida breve, mas que fosse, sobretudo, gloriosa. Homero
eternizou o herói grego de forma que é glorificado reavivado na pele de outros heróis. Dessa
forma, percebe-se em Getúlio um revestimento desse herói grego que clama por ser
reconhecido. A grandeza sugerida pelas ações desmedidas de Getúlio é um dos aspectos que o
aproximam do herói grego:
Qualquer estrago na cara está explicado. Ele que diga que não foi o tombo,
que é a última coisa que ele abre a boca para dizer. Vosmecê tem um alicate
aí? Que eu arranco dois dentes da frente dele. Arranco dois de baixo, dois de
cima, que fica mais certo. Assim ele assobia e cospe bem, hum? Primeiro,
dou de coronha atravessada nos beiços, que amorteceia, amolece e ele abre a
boca mais fácil. Depois, puxo de uma, puxo de duas, puxo de três e arranco.
Isso não tem dificuldade, os de baixo puxa para cima direto e os de cima
puxa para baixo direto. Resistindo, sacode de uma banda para outra, até vir.
Seu Nestor trouxe um baú de folha, aquilo assim de ferruge, tão assim que
abriu com um roncor devagar, e deu o alicate. Esse, não muito melhor, um
negrume. Achei que ia estrompar as gengivas do coisa. Acho que vai
estrompar suas gengivas, coisa. Vosmecê desculpe, não tem outro, mas é
isso ou capação. (RIBEIRO, 2008, p. 61-2).
Getúlio desbrava pela vastidão do seu mundo, por um caminho aventuroso, numa
narrativa que o reveste de contornos rígidos. Ao insistir no cumprimento de sua missão, a
personagem busca acatar as aspirações de sua alma, de forma que suas ações assumem um
perfil característico da epopeia homérica na qual o herói entrega-se ao combate em nome da
glória. Porém, o herói Getúlio como representante do Estado assume uma perspectiva
individualizada.
Em Sargento Getúlio, a hipérbole é evidente na fala da personagem: “Eu ia ser o maior
cangaceiro do Brasil, o maior piloto de jagunço do Brasil e ia ter a maior tropa. E não me
chamasse de sargento, me chamasse de capitão. Ou me chamasse de major.” (RIBEIRO,
2008, p. 126) e aos poucos Getúlio vai corporificando-se num dragão: “dava uns urros bem
altos para quebrar vidraças e tomava duas pipas de cachaça de cada vez e comia dois cabritos
sozinho ou então um bezerro e assoprava para arrancar os pés de árvore do chão e quando eu
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batesse a coronha no chão, o chão tremia todo e as frutas despencavam.” (RIBEIRO, 2008, p.
126) de forma que todos pudessem chamá-lo de “Dragão Manjaléu”.
Getúlio entremeia-se pelo universo da oralidade até a hora da morte: “eu vou morrer e
nunca vou morrer eu nunca vou morrer Amaro eu nunca vou morrer um aboio e uma vida
Amaro aaaaaaaaaaaaaaaahhh eeeeeeeeeeeeeeeh aê aê aê aê aê aê aê aê aê aê eco eco aê aê aê
aê aê eu nunca vou morrer Amaro [...] eu vou e cumpro e faço e” (RIBEIRO, 2008, p. 163).
Percebe-se uma fala que reforça seu destemor: “e lá vou eu, melhor do que o reis da Hungria,
não quero nem olhar para trás.” (RIBEIRO, 2008, p. 123). E a personagem não admite a
fragilidade que lhe cabe com o transcorrer dos anos e afirma preferir a morte a deixar sua
inteireza:
Eu não, que na minha mão tem uma linha riscando a linha maior, que diz:
morte matada. Isso é fato, não tem como correr. É melhor, dói menos e dá
menos transtorno. Nessa morte eu acredito, porque não posso pensar que eu
vou ficar velho e sem dente e minha mão vai tremer. Uma coisa que não
existe é Getúlio velho, só existe Getúlio homem inteiro, não posso ficar de
boca mole, falando porque no meu tempo isso no meu tempo aquilo.
Verdade que tem certos velhos que ainda são machos, mas esses é do tempo
antigo, não é hoje. (RIBEIRO, 2008, p. 125-6).
Getúlio batalha incansavelmente em defesa de sua honra. E com a consciência de que
“A coisa que mais tem é morte, e o mais certo que tem. Desque nasce começa a morrer.
(RIBEIRO, 2008, p. 39), Getúlio reafirma sua “machidão” em devaneios sobre sua morte:
e quando eu morresse, avô de todos, pai direto ou por tabela, me enterravam
ali e botavam em riba uma cruz com o Senhor crucificado e quem passasse
ia dizer: aquela cruz é do finado, se não se benzer ele ainda vem e lhe pega.
A machidão toda aí, era Garanhão Santos Bezerra, Malvadeza Santos
Bezerra, Abusado Santos Bezerra, Tombatudo Santos Bezerra, Comegente
Santos Bezerra, Enrabador Santos Bezerra, Rombaquirica Santos Bezerra,
Sangrador Santos Bezerra, Vencecavalo Santos Bezerra, todo mundo.
(RIBEIRO, 2008, p. 128).
O romance Sargento Getúlio apresenta uma narrativa que ao acompanhar o fluxo do
pensamento de Getúlio apresenta longos parágrafos com uma cadência próxima da oralidade:
“Propriá e Maruim, já viu, poeiras e caminhãos algodoados, a secura fria. E sertão do brabo:
favelas e cansançãos, tudo ardiloso, quipás por baixo, um inferno.” (RIBEIRO, 2008, p. 9).
Assim, a metamorfose do herói ao anti-herói materializa-se de “Paulo Afonso a Barra dos
Coqueiros” e arraiga-se na essência da narrativa de Ubaldo ao explorar nessa “história de
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aretê” uma relação estreita com a cultura oral de forma que possibilita o entrelaçamento de
gêneros e demonstra como a escrita literária ressignifica-se na sua expressividade. Para tanto,
situar-se diante de Sargento Getúlio é desvendar toda uma riqueza cultural no intercalar dos
gêneros presentificados na constituição do romance.
1.2 “UMA HISTÓRIA DE ARETÊ” PARA ALÉM DE UMA QUESTÃO DE HONRA
“Nesta história, o Sargento Getúlio leva um preso de Paulo Afonso a Barra dos
Coqueiros. É uma história de aretê.” (RIBEIRO, 2008, p. 7). É com esta epígrafe que João
Ubaldo Ribeiro apresenta o romance Sargento Getúlio, constituindo-o na metáfora da aretê.
Dessa forma, cabe uma reflexão sobre a acepção do termo e de seu desdobramento no
decorrer da construção narrativa.
De origem grega, o termo aretê, equivalente à noção de excelência, está relacionado
com a realização de um objetivo. Etimologicamente, o termo advém de aristós que significa
excelente (SPINELLI, 2014, p. 168). Na Grécia antiga, o termo perpassa pelos mais diversos
âmbitos da cultura assumindo diversas conotações, interpenetrando nos campos da religião, da
filosofia, da educação e da moral, especialmente.
Na tese Sargento Getúlio na tese Dominação e violência, entre a história e a ficção:
uma análise de Sargento Getúlio, de João Ubaldo Ribeiro, de autoria de Fábio Roberto
Rodrigues Belo (2007), o autor desenvolve uma abordagem relacionando o termo aretê com a
estrutura de poder e a obediência de Getúlio, numa perspectiva histórica, ressaltando que o
termo não está ligado à virtude, mas à simples tarefa que cabia a Getúlio, na sua condição de
subordinado. Além disso, alguns estudos aludem ao termo aretê, relacionando à deusa da
virtude e ao cumprimento da missão de Getúlio, mas não se aprofundam na questão. A
perspectiva desta pesquisa, ao contrário, utiliza a noção do termo aretê relacionada à virtude,
conforme a acepção grega, relacionando-o com a tematização da violência na literatura
contemporânea.
É perceptível que Ubaldo empregou a epígrafe de forma intencional ao utilizá-la como
um prenúncio da narrativa. Faz alusão ao destino da história destacando-se como um
referente. O uso do termo grego influencia no desenvolvimento da leitura. Conforme Gilberto
Mendonça Telles (1979), as epígrafes servem de elemento que relaciona o texto ao contexto,
estabelecendo-se como um dos componentes culturais da obra. Ao propor um caráter
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intertextual a partir da epígrafe, o autor sugere uma particularidade à sua obra. A epígrafe
ultrapassa a estrutura textual e assume um aspecto profético e indicial.
Nessa perspectiva da busca pela excelência é que se nota como tal qualidade reveste a
personagem de Ubaldo de coragem e de habilidade no seu intento de cumprir a missão de
levar o prisioneiro até Barra dos Coqueiros – tarefa concedida pelo chefe Acrísio Antunes. A
aretê, nesse contexto, está intrinsecamente relacionada à incumbência que foi destinada a
Getúlio. Eis, portanto, a virtude da cultura grega que assume, gradativamente, contornos na
trajetória de Getúlio.
A personificação da aretê em Getúlio o reveste de coragem e faz da honra o seu alvo.
Para ele não existem “limites para a frouxidão que faz o homem dar nas canelas e botar a
alma no mundo, correndo do destino” (RIBEIRO, 2008, p. 10). Sem fugir do destino, a
personagem segue seu caminho, desafiando sua sina. No percurso até Aracaju, Getúlio divaga
vislumbrando a entrega do “peste” do prisioneiro. Admite que não gosta desse serviço de
levar preso, o que o deixa avexado. “Depois de levar vosmecê lá, assento os quartos num
lugar e largo essa vida de cigano. Só se doutor Zé Antunes pedir muito. Mesmo assim. Me
aposento-me.” (RIBEIRO, 2008, p. 13).
O que importa para a personagem é o seu nome e preza por ele. Afinal é um homem
resolvido: “Mas se eu não sou um homem despachado ainda estava lá no sertão sem nome,
mastigando semente de mucunã, magro como o filho do cão, dois trastes como possuídos,
uma ruma de filhos, um tico de comida por semana e um cavalo mofino” (RIBEIRO, 2008, p.
14). Com vinte mortes nas costas, Getúlio admite que não se lembra de todas. “A primeira é
mais difícil, mas depois a gente aprende a não olhar a cara para não empatar a obra. De perto
demais não é bom. Se agarram-se na gente, puxam a túnica para baixo.” (RIBEIRO, 2008, p.
15).
Getúlio faz do mundo a sua moradia. Cortando estradas, na medida em que se depara
com qualquer ameaça ao cumprimento de sua tarefa, ele valida sua qualidade virtuosa e
exalta-se como o melhor entre os guerreiros. No percorrer da narrativa, a personagem
reafirma-se constantemente em nome de seus valores.
“Mas em missão não se pode fazer arruaça” (RIBEIRO, 2008, p. 36). Por meio de
preceitos, Getúlio vai traçando seu perfil na narrativa, como um sargento que não gostava de
usar uniforme “descompleto” e prezava pela ordem quando estava com alguma incumbência.
Além disso, “não existe quem bote a honra no lugar da saída” (RIBEIRO, 2008, p. 39), pois o
que importa é a sua reputação.
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Subordinado à missão que foi concedida pelo chefe Acrísio Antunes, Getúlio defronta-
se com uma mortandade durante o percurso e ao buscar abrigo na igreja, apresenta-se ao
padre como: “Getúlio de Acrísio Antunes, Antunes do pecidê, pecidê desse Sergipe, Sergipe
desse mundão, mundão que está esquentado, esquentado que vai derreter.” (RIBEIRO, 2008,
p. 64). Enquanto o padre não abria a porta, Getúlio tentava explicar sobre sua missão,
ressaltando que se não desse certo a culpa seria do “padre avariado”. Nesse momento,
evidencia-se como a identidade de Getúlio está vinculada à subordinação do chefe.
Mas, a preocupação de Getúlio era chegar logo na Barra dos Coqueiros, em Aracaju,
com o traste do prisioneiro. O padre pergunta ao sargento porque ele não tomava a decisão de
sumir e, prontamente, ele responde: “Eu sumir, eu sumir? Como que eu posso sumir, se
primeiro eu sou eu e fico aí me vendo sempre, não posso sumir de mim e eu estando aí
sempre estou, nunca que eu posso sumir. Quem some é os outros, a gente nunca.” (RIBEIRO,
2008, p. 86). Getúlio não admitia correr do seu destino e fugir não fazia parte da
personalidade de um homem viril.
Persistente na sua marcha reforça sua dureza afirmando que não sabia quantos homens
de Aracaju seriam capazes de deter sua intrepidez. Afinal, o que prevalecia era cumprir com
excelência a primeira ordem que foi dada pelo chefe Acrísio:
o chefe me mandou buscar isso aí e eu fui, peguei, truxe, amansei, e vou
levar porque mesmo que o chefe agora não possa me sustentar, eu levei o
homem, chego lá entrego. É preciso entregar o bicho. Entrego e digo: ordem
cumprida. Depois o resto se aguenta-se como for, mas a entrega já foi feita,
não sou homem de parar no meio. Se for assim mesmo como se diz que é,
espero as outras ordens, porque essa está dada e nem ele que viesse aqui e
me pedisse para não levar eu não deixava de não levar, porque possa ser que
ele esteja somente querendo me livrar de encrenca, eu levo esse lixo de
qualquer jeito, chego lá e entrego. Nem que eu estupore. (RIBEIRO, 2008, p.
86-7).
Essa busca da “ordem cumprida” está atrelada ao caráter de Getúlio o aproxima da
aretê grega. Afinal, como homem que não pára no meio, a personagem proclama sua virtude.
A entrega do prisioneiro torna-se equivalente ao alcance da excelência grega. O sargento, em
seguida, resolve descrever os atributos de suas origens. A essência de seu antepassado
familiar constituía-se por uma gente braba e essa referência realçava ainda mais seu vigor e
destemor:
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Quero ver esse bom em Aracaju que me diz que eu não posso, porque eu sou
Getúlio Santos Bezerra e igual a mim ainda não nasceu. Eu sou Getúlio
Santos Bezerra e meu nome é um verso e meu avô era brabo e todo mundo
na minha raça era brabo e minha mãe se chamava Justa e era braba e no
sertão daqui não tem ninguém mais brabo do que eu, todas as coisas eu sou
melhor. Pode vim. Getúlio Santos Bezerra eu me chamo, e enquanto um
carneiro qualquer um mata com uma mão de pilão na testa eu dou um murro
na testa e mato esse carneiro ou outro que tenha e mato qualquer vivente e
esses ferros que eu carrego eu manejo. (RIBEIRO, 2008, p. 87).
Paul Ricoeur (1997) associa tempo e narrativa a partir da proximidade entre a
narrativa histórica à narrativa ficcional. Considera a atividade de leitura fundamental para a
representação do tempo ao possibilitar o entrelaçamento entre história e ficção. Ubaldo
incrementa sua narrativa literária de aspectos históricos, políticos e culturais do Brasil da
década de 1950. Ao representar literariamente o autoritarismo desmedido por meio da
personagem denominada Getúlio, tal artifício possibilita fazer a referência a Getúlio Vargas,
presidente do Brasil no período.
De maneira alegórica, Ubaldo reconstrói o cenário do período ditatorial com seus
embates e truculências em um Brasil atrasado e pobre. Numa Bahia agrária e dominada por
jagunços. Partidos políticos como a União Democrática Nacional (UDN), que fazia oposição
ao governo de Vargas, e Partido Social Democrático (PSD) que surgiram na época são citados
no texto, assim como faz alusão aos presos políticos. No período ditatorial, jornalistas,
escritores e artistas eram censurados.
Na década de 1950, o poder no estado da Bahia estava sob o governo do PSD e
passava por mudanças socioeconômicas. Até meados do século XX, a população brasileira era
predominantemente rural e iniciava o processo de industrialização. Somente em meados da
década de 1950 que a modernização econômica começa a modificar os grandes centros
urbanos. O país passa a adotar um estilo de vida distinto e a caminhar rumo à modernização e
ao progresso. Eletrodomésticos invadem as casas e inicia um modelo consumista de produtos
industrializados. Poder, política e cangaço da Bahia a Sergipe é o que entrecorta o monólogo
de Getúlio. Um coronelismo de uma época que se traduz na saga do sertão e um sargento que
almeja ser estimado e temido.
Segundo Schollhammer, nos romances regionalistas “a violência ainda se articulava
dentro de um sistema simbólico de honra e vingança, numa realidade social do sertão em que
a lei e o monopólio estatal da violência não conseguiam garantir a igualdade entre os
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sujeitos”. (SCHOLLHAMMER, 2000, p. 238). Como parte deste sistema simbólico, a
personagem Getúlio sente a necessidade de demonstrar sua superioridade:
Corro, berro, atiro melhor e sangro melhor e bebo melhor e luto melhor e
brigo melhor e bato melhor e tenho catorze balas no corpo e corto cabeça e
mato qualquer coisa e ninguém me mata. E não tenho medo de alma, não
tenho medo de papa-figo, não tenho medo de lobisomem, não tenho medo de
escuridão, não tenho medo de inferno, não tenho medo de zorra de peste
nenhuma. E não escuto liberdade, não converso fiado, não falo de mulher,
não devo favor e não gosto que ninguém me pegue. (RIBEIRO, 2008, p. 87-
8).
Segundo Beatriz Resende, a respeito do brutalismo na literatura brasileira
contemporânea, é o “fragmentário da narrativa, acompanhado por certo humor e ironias sutis,
que impede que a obra se transforme puramente no relato do mundo cão.” (RESENDE, 2008,
p. 31). Através de um relato hiperbólico, Getúlio ilustra tal tipo de narrativa com o exagero
nas descrições:
O senhor já ouviu falar de meu nome, Getúlio Santos Bezerra, sou eu mesmo
e quando eu dou risada pode todo mundo tremer e quando eu franzo a testa
pode todo mundo tremer e se eu bater o pé no chão pode todo mundo correr
e se eu assoprar na cara de um pode se encomendar. Sou curado de cobra e
passo fome, passo frio e passo qualquer coisa e não pio e se me cortarem eu
não pio. Durmo no chão, durmo em cama de vara, durmo em cama de couro,
ou então não durmo e quem primeiro aparecer primeiro quem atira sou eu e
quando atiro não atiro nas pernas, atiro na cara ou atiro nos peitos e os
buracos que eu faço às vezes é um em cima do outro e tem uma coisa: em
Sergipe todo não tem melhor do que eu e se eu lhe digo que não tem um
melhor do que eu em Sergipe, não vejo esse bom, estou lhe dizendo que não
tem melhor no mundo, porque essa é uma terra macha e eu sou macho dessa
terra. (RIBEIRO, 2008, p. 88).
E, dessa forma, da palavra de honra que foi dada ao chefe Acrísio, Getúlio dirige-se ao
prisioneiro e afirma que: “seu destino está escrito e vosmecê vai comigo para Aracaju para eu
lhe entregar” (RIBEIRO, 2008, p. 93). Entre a palavra de honra e a escrita do destino o
sargento configura-se num perfil em busca da excelência e faz de sua missão a sua aretê:
E eu vou levar esse traste arrastado ou espetado, naquele hudso até Aracaju,
e chegando lá apresento ele: ele veio de Paulo Afonso até aqui e está com
essa boca em petição porque deu cupim no caminho e comeu os dentes da
frente. E se cortei a cabeça do tenente, foi bem cortada. Mas não vou dizer a
todo mundo que eu cortei a cabeça do tenente. Só digo ao chefe e calo a boca
e cruzo os braços e boto o olho no vento. E quem quiser que bote o olho no
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meu. E pronto. E se ninguém quiser ir comigo, eu vou só. (RIBEIRO, 2008,
p. 88).
O mundo de Getúlio circunscreve-se a ele e seu chefe. “É por isso que eu só posso ter
de levar esse traste para Aracaju e entregar. Tem que ser.” (RIBEIRO, 2008, p. 97). Não
aceita qualquer recado que lhe traga alguma contra-ordem, apesar de reconhecer a
possibilidade de que tudo era verdade. Começa a perceber-se sozinho no seu mundo.
Mesmo com todos os percalços encontrados pela estrada Getúlio reafirma sua decisão
de levar o prisioneiro. Afinal, nunca foi “homem de falhar no meio” (RIBEIRO, 2008. p.
102). “Deus me livre que eu não leve o coisa comigo e não entregue, o que é que eu vou ficar
pensando depois, se já tenho pouco para pensar e o pouco que eu tenho vai inchando na minha
cabeça e vai tomando conta do oco que tem lá dentro?” (RIBEIRO, 2008, p. 103). Getúlio,
sem olhar para trás, segue em busca da bela hora. “Entreguei, cambada de capadoços,
entreguei. Agora quero ver. An-bem, nunca pensei no que eu vou fazer depois, comigo agora
não tem depois.” (RIBEIRO, 2008, p. 153).
A única verdade aceita para o sargento era a ordem pronunciada pelo chefe. Não
cumprir a missão significaria um racha na sua palavra e, consequentemente, afetaria a sua
honra. Atributo este de enorme significado para o seu mundo. A aretê em Getúlio situa-se,
portanto, no interstício entre o dito e o vivido:
Vai até a casa do chefe, que eu quero levar e quero olhar a cara dele e dizer:
olhe aí sua encomenda, pode fazer o que quiser; por mim, pegava esse
ordinário e aplicava um merecido logo, que aprontava as coisas, mas não
tenho nada com isso mesmo. É isso que eu quero fazer, e quero botar as
vistas bem dentro das dele que é para ele dizer na minha cara que não
mandou buscar e aí eu digo a ele: quem o senhor mandou em Paulo Afonso,
que eu me lembro, aqui mesmo nessa sala, quem o senhor mandou em Paulo
Afonso, numa noite, aqui nessa sala mesmo, eu, Getúlio Santos Bezerra,
tomando um vermute vermelho aqui, quem o senhor mandou para Paulo
Afonso para buscar esse criaturo, não foi nem eu. (RIBEIRO, 2008, p. 157).
E, na narrativa, tal virtude é evidenciada pelo querer fazer da personagem numa
trajetória marcada por tensão e violência. Segundo Schollhammer, “a violência enquanto tema
da literatura brasileira tem tido como cenário, de modo geral, o interior, o campo, o sertão e,
mais recentemente, o espaço urbano.” (2000, p. 236). Segundo o autor, o brutalismo é uma
das vertentes da contemporaneidade caracterizada pela reinvenção da violência social que ao
explorar o realismo abusa da crueza humana na literatura. Na narrativa de Ubaldo, o uso da
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violência ultrapassa a exploração desse realismo cruel. Ao considerá-la como uma metáfora
da aretê, Ubaldo ressignifica tal virtude grega numa roupagem contemporânea e coloca em
evidência a importância da palavra dada para um mundo intrinsecamente oral. O sargento
imagina como seria o momento do encontro com o chefe. Imagina-se questionando ao chefe
se ele havia mandado ou não ir até Paulo Afonso:
Tinha minha missão, isso tinha. E fiz. Tinha minha vida, isso também, e vivi,
e se me perguntasse quer viver uma vida comprida amofinado ou quer viver
uma vida curta de macho, o que era que eu respondia? Eu respondia: quero
viver uma vida curta de macho, sendo eu e mais eu e respeitado nesse mundo
e quando eu morrer se alembrem de mim assim: morreu o Dragão. Que
trouxe uma mortandade para os inimigos, que não traiu nem amunhecou, que
não teve melhor do que ele e que sangrou quem quis sangrar. Agora eu sei
quem eu sou. (RIBEIRO, 2008, p. 160).
O desfecho do romance é caracterizado por uma fala de desespero da personagem
Getúlio, que ao perceber que o destino está traçando um novo rumo, se vê diante da morte,
mas com a certeza de que continuará vivo pela grandeza de sua missão e suas últimas palavras
são “eu vou e cumpro e faço e” (RIBEIRO, 2008, p. 163). Por meio da palavra dada, Getúlio
que antes era identificado como o “Getúlio de Acrísio” passa a reconhecer-se como Getúlio
Santos Bezerra. Através da busca por fazer-se cumprir a missão que lhe foi dada pela palavra,
o sargento passa de subordinado a uma ordem a assumir uma postura daquele que respeita,
acima de tudo, a palavra. E a missão, dessa forma, acaba por singularizar Getúlio.
A exploração da violência em Sargento Getúlio dá-se por uma linguagem fortemente
significativa. Conforme Ângela Maria Dias, “cada vez mais, as escrituras acolhem imagens e
são por elas plasmadas. Não apenas pela mera iconicidade descritiva, mas, sobretudo, nos
melhores momentos, pela densidade plástica da paisagem que, mesmo distante do olhar,
renasce, a cada vez, inscrita na espessura da letra.” (DIAS, 2007, p. 22).
João Ubaldo cria um ambiente de violência em nome da honra que, por sua vez, é
realçada por meio da aspereza da linguagem. Conforme Beatriz Resende, “em torno da
questão da violência aparecem a urgência da presentificação e a dominância do trágico, em
angústia recorrente” (RESENDE, 2008, p. 33). Dacanal considera que:
A epopéia trágica criada por João Ubaldo Ribeiro faz de Sargento Getúlio
um dos mais comoventes personagens da literatura brasileira. Comovente
porque Getúlio marcha inexoravelmente para a autodestruição, apesar de se
saber que ele é inocente. As forças que o impelem para o cataclisma final são
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exteriores a ele. Mais ainda, parecem pairar, intangíveis, acima da condição
humana. Desde o início tem-se a impressão – tornada depois certeza – de
que na base da ação de Getúlio se esconde uma hybris contra a qual,
implacáveis, se levantam as deusas da vingança que o destroem.
(DACANAL, 1988, p. 94-5).
Observa-se uma tendência representativa da violência atrelada a um contexto social
dominado por uma simbologia da honra e da vingança. Sobretudo no século XX, “o tema
principal do regionalismo pode ser visto, dessa forma, como o confronto entre um sistema
global de justiça moderno e sistemas locais de normatização social regulados pelos códigos de
honra, vingança e retaliação” (SCHOLLHAMMER, 2000, p. 238).
Percebe-se a violência como consequência de uma modernidade tardia em
contraposição aos valores do mundo considerado arcaico, com seus códigos de honra. O
sertão é tematizado na literatura, afirmando-se como um espaço áspero e brutal. Porém, agora
a representação da violência também se estabelece com a expressão das contradições urbanas
que acompanham a realidade do sertão. Sertão este como o do universo de Ubaldo que
reaviva uma representação semelhante à das “epopeias homéricas”, construída a partir dos
códigos de honra e da celebração de feitos notáveis de seu herói. Por meio do atravessamento
da aretê na narrativa, Ubaldo atribui sentidos ao percurso traçado por Getúlio. Em tal
itinerário, é também desenhada a trajetória do auto-reconhecimento da personagem que
incorpora a virtude grega.
1.3 O NARRADOR-CONTADOR: A DESINTEGRAÇÃO DO MUNDO ARCAICO
A importância da antiga civilização grega para o
mundo todo estava começando a se mostrar sob
uma luz inteiramente nova: ela assinalava o ponto,
na história humana, em que a cultura escrita
alfabética, profundamente interiorizada, pela
primeira vez se chocava diretamente com a
oralidade. (Walter Ong, 1988).
Considerando a epígrafe acima, nota-se como o choque entre a cultura escrita e a
oralidade remonta à Grécia antiga. A relação entre oralidade e escrita percorre o transcorrer da
história de forma que é possível perceber seus entrelaçamentos no campo literário.
Etimologicamente, o termo literatura provém do latim litera que se refere à letra do alfabeto.
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Apesar da literatura, predominantemente, abranger o universo escrito é evidente a influência e
a persistência da oralidade no processo criativo do fazer literário.
Conforme Walter Ong, o teatro grego antigo “foi a primeira arte verbal ocidental a ser
totalmente controlada pela escrita. Foi o primeiro gênero - e durante séculos o único – a
possuir caracteristicamente uma estrutura compacta” (ONG, 1988, p. 167). O autor ressalta
que antes de configurar-se como uma apresentação oral, o teatro constitui-se partindo do texto
escrito. E, dessa forma, o narrador esconde-se e cede espaço para as vozes dos personagens.
Com a impressão e surgimento do romance, Walter Ong ressalta que houve uma preocupação
maior com o texto do que com os ouvintes. Porém, o autor aponta para uma incerteza quanto à
permanência dessa atenção voltada prioritariamente para a escrita:
O fato de os romancistas do século XIX repetirem o “caro leitor” revela o
problema de adaptação: o autor ainda tende a sentir uma audiência, ouvintes,
em algum lugar, e deve constantemente lembrar-se de que a história não é
para ouvintes, mas para leitores, cada um isolado em seu próprio mundo. O
apego de Dickens e de outros romancistas do século XIX à leitura
declamatória de excertos de seus romances também revela a inclinação
remanescente para o antigo mundo do narrador oral. (ONG, 1988, p. 167-
168).
Partindo-se do pressuposto de que na narrativa de Ubaldo as marcas de oralidade
permeiam todo o texto é importante analisar a imbricação da literatura oral na tessitura da
narrativa romanesca. A própria configuração do narrador no romance Sargento Getúlio
assume feições de um contador de causos. É um narrador-contador que se mantém firme na
luta contra a desintegração do seu mundo arcaico. Nesse embate, a oralidade, gradativamente,
impõe-se como modo de pensamento e de expressão. Conforme Walter Ong:
a despeito dos mundos maravilhosos que a escrita abre, a palavra falada
ainda subsiste e vive. Todos os textos escritos devem, de algum modo, estar
direta ou indiretamente relacionados ao mundo sonoro, hábitat natural da
linguagem, para comunicar seus significados. “Ler” um texto significa
convertê-lo em som, em voz alta ou na imaginação, sílaba por sílaba na
leitura lenta ou de modo superficial na leitura rápida, comum a culturas de
alta tecnologia. A escrita nunca pode prescindir da oralidade. (ONG, 1988,
p. 16).
Em Sargento Getúlio, a personagem assume uma performance que proporciona a
junção entre o narrador e o contador. É evidenciada uma postura próxima do contador de
histórias nos moldes da cultura oral. Porém, numa versão impressa e demarcada pelas
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33
palavras. Segundo Walter Ong, externamente ao teatro, na narrativa “a voz original do
narrador oral empregou diversas formas quando se tornou a voz silenciosa do escritor, à
medida que o distanciamento realizado pela escrita solicitou diversas ficcionalizações do
leitor e do escritor descontextualizados” (ONG, 1988, p. 167).
Por meio da linguagem, Getúlio desvenda sua cultura. Seu modo de narrar, ao
apresentar similitudes com o poeta popular, aproxima-se do universo da oralidade de forma a
superar as fronteiras da escrita e manifestar o perfil do contador. Sargento Getúlio é
exuberante em preceitos do universo popular. Conforme Dacanal, Ubaldo “constrói o mundo
de Getúlio rompendo barreiras e destruindo convenções narrativas com tal furor que não é
nada fácil organizar o caos [...] À crítica compete apenas demonstrar como este elemento
aparentemente absurdo faz parte essencial da obra.” (DACANAL, 1988, p. 91).
O mundo arcaico representado no romance Sargento Getúlio desponta no discurso do
narrador-contador em contraponto com a modernidade e o universo da escrita. Getúlio admite
que não gosta de jornal, “acho difícil, muitas palavras. Menos verdades.” (RIBEIRO, 2008,
p.17). Segundo Dacanal, o fato de “negar-se a aceitar as mutações históricas – pois não podia
compreendê-las - , Getúlio paira sobre o vácuo, sem mundo e sem tempo, devendo marchar,
assim, de forma irreversível, para a destruição, para a tragédia final” (DACANAL, 1988, p.
95).
Getúlio continua a afirmar-se pelas crenças populares: “quem come jaca e bebe
qualquer espécie de cachaça estupora” (RIBEIRO, 2008, p.11); “A hora de cada um é a hora
de cada um.” (RIBEIRO, 2008, p. 24); “O embigo estuporou, botaram estrume em cima,
mastruço pilado, nada foi.” (RIBEIRO, 2008, p. 45); “que na minha mão tem uma linha
riscando a linha maior, que diz: morte matada.” (RIBEIRO, 2008, p.125). Dessa forma, a
narrativa brota da oralidade para a escrita apresentando toda a imponência da personagem.
Conforme Dacanal, “Getúlio pertence a outro tempo, a outro mundo”. Seus métodos e
expressões são do passado, do tempo do cangaço [...] Sendo do passado, Getúlio não entende
mais o mundo nem pode ser por ele entendido.” (DACANAL, 1988, p. 96), ao ressaltar que é
evidente na narrativa o choque entre o mundo rural e o mundo urbano.
Sargento Getúlio é um testemunho da tradição oral expressa por seu protagonista que
desconsidera a importância da educação formal para a formação da conduta humana: “nunca
vi ginásio fazer caráter” (RIBEIRO, 2008, p. 28). Por meio de um relato espontâneo,
entremeado pela sabedoria popular, oralidade e memória complementam-se: “Bicho ruim não
morre fácil.” (RIBEIRO, 2008, p. 14); “não tinha um pé de árvore para remédio” (RIBEIRO,
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34
2008, p. 35); “e pimenta no cu dos outros é refresco.” (RIBEIRO, 2008, p. 80). Porém,
Getúlio afirma que hoje “essa terra não vale mais nada, não vale quase mais nada, está uma
frouxidão e um homem não sabe de quem depende e querem mudar tudo e nunca vai
adiantar.” (RIBEIRO, 2008, p. 86). A personagem não compreende a modernidade e “o que
eu não entendo eu não gosto, me canso [...] Não gosto que o mundo mude, me dá uma agonia,
fico sem saber o que fazer.” (RIBEIRO, 2008, p. 96-7). Aos poucos, Getúlio, mesmo
resistindo para a preservação do seu chão, percebe que as mudanças são inevitáveis:
muitas vezes, numa hora como essa, a gente pensa que o mundo para. Mas
não para nada, se sabe. Tem uma porção de gente se mexendo, e eu aqui no
meio, paradão. Mas parado como um peixe junto das pedras dum riacho, que
se você quiser mexer perto ele dá uma rabanada e some. Porque é assim que
eu sou. (RIBEIRO, 2008, p. 127-28).
Na narrativa, é comum a personagem incorporar uma linguagem marcadamente
hiperbólica, atravessada por cordéis:
Prezado amigo Getúlio
Permita eu lhe contar
Um caso que se passou
Na vila de Propriá
Teve tanta mortandade
Que até o cão teve lá.
[…]
O rio se abriu no meio
E o mato se escancarou
Igual como São Noé
Quando o mundo se acabou
E tudo isso por causo
De um homem que lá chegou.
Esse homem era por nome
De um tal de Honorato
Nascido de mãe pagona
E de pai cabra safado
Criado em leite de onça
E muito mal educado.
Quando dormia era ruim
E acordado pior
Matava quatro por dia
E ainda dizia – é só?
E um dia só pra interar
Deu um fim até na avó.
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35
(RIBEIRO, 2008, p. 37-8).
Getúlio assume-se como integrante do universo da tradição oral: “não semos tudo o
mesmo? agora não muito, porque eu sou eu, Getúlio Santos Bezerra e meu nome é um verso
que vai ser sempre versado [...] eu sou maior do que o reis da Hungria” (RIBEIRO, 2008, p.
161). O narrador funde-se na memória da personagem, que transmite suas experiências em
sua atuação como contador de histórias. O contador propicia um ambiente de experiência
coletiva. E, como tal invoca um saber que passa ser ameaçado pela modernidade. Conforme
Walter Benjamin, a “origem do romance é o indivíduo isolado, que não pode mais falar
exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe conselhos nem
sabe dá-los.” (BENJAMIN, 1994, p. 201).
Entretanto, em Sargento Getúlio, o narrador adota uma linguagem performática que o
aproxima da tradição oral. A performance na literatura possui uma amplitude significativa que
a associa a diversos segmentos. Segundo Ravetti (2002), a performance está associada à
teatralização, às situações enunciativas, às práticas culturais e aos contextos de prática de
ritual. De uma forma geral, a performance literária está vinculada ao poder da linguagem de
extrapolar as páginas e evocar a biografia do autor, representando suas experiências que são
embutidas na narrativa na fala de um narrador que explora a musicalidade e a recitação. Sobre
o conceito de performance Paul Zumthor (2000) afirma que é o texto em presença imbuído de
uma força na comunicação poética. Getúlio assume, novamente, a performance de um poeta
popular:
Capitão Moreira César
Dezoito Guerras venceu
A terceira não interou
No Belo Monte morreu.
[…]
O alfere Vanderlei
É bicho de opinião
Quando foi para Canudo
Foi em frente ao batalhão.
(RIBEIRO, 2008, p. 90-1).
Neste trecho, o emprego de versos possibilitam uma cadência próxima à da narrativa
oral. Nota-se que o narrador descreve as ações das personagens, reforçando a bravura cravada
no perfil destes de maneira que demonstra um narrador preocupado em pormenorizar estas
particularidades típicas da cultura local. Conforme Walter Ong:
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36
As bases do pensamento e da expressão fundados na oralidade tendem a ser
não tanto meras totalidades, mas agrupamentos de totalidades, tais como
termos, frases ou orações paralelos, termos, frases ou orações antitéticos,
epítetos. As nações orais preferem, especialmente no discurso formal, não o
soldado, mas o soldado valente; não a princesa, mas a bela princesa; não o
carvalho, mas o carvalho robusto. Assim, a expressão oral está carregada de
uma quantidade de epítetos e outras bagagens formulares que a cultura
altamente escrita rejeita como pesados e tediosamente redundantes em
virtude de seu peso agregativo. (ONG, 1988, p. 49).
Apesar de narrado em primeira pessoa, é frequente no romance Sargento Getúlio um
entrecruzamento de vozes. Isto é possível pela reinvenção do narrador que, apesar de
circunscrito ao universo impresso, é remodelado por uma performance que o faz extravasar do
seu espaço tradicional, como se pode observar neste fragmento:
No meio daquele baba todo, o homem querendo fazer discurso. Que significa
isso? Que significa isso? Que significa isso, sargento? Senhor desculpe,
senhor vai com a gente, mestre. A dona da casa falando carioca, parecia até
coisa que prestasse. Tárcio segurou ela pelo quengo e jogou lá dentro. Pensa
que calou a boca? Ficou lá saturando a paciência, de maneiras que Tárcio foi
e arregalou o olho cego em cima dela e soltou um bafo nela: não arrelia,
mulher dama! Já se viu mulher dama ter querer, onde já se viu. Quando o
diabo não vem, manda o secretário. (RIBEIRO, 2008, p. 18).
É possível observar que se trata de estratégia narrativa que reaviva o contador e sua
performance para a escrita literária. É evidente, em Sargento Getúlio, um deslocamento do
narrador tradicional de forma que se demonstra um contador que conduz o leitor para o seu
mundo. Ubaldo proporciona o atravessamento do oral pelo escrito. Segundo Moreira:
Considerar a literatura arte auditiva é um dos caminhos que nos permitem
compreender o processo tradutório que possibilita ao leitor perceber o corpo
cultural do contador de histórias inscrito na narração performática dos
textos. A qualidade auditiva da literatura imprime à escrita a possibilidade de
criar a própria situação de fala por ela instaurada. (MOREIRA, 2005, p. 83).
Por meio da exploração dessa arte auditiva, corporifica-se um narrador-contador. Em
Sargento Getúlio, essa fusão caracteriza um narrador performático: “conseguimos ouvir a sua
voz e ver seu corpo” (MOREIRA, 2005, p. 63). A narrativa de Ubaldo, portanto, ao conceder
uma voz e um corpo ao seu narrador possibilita ao leitor entranhar-se pelo universo do
contado. Sargento Getúlio provoca uma aproximação com o leitor, da qual trata Eliana Yunes
(1984), e é por meio da voz que se estabelece um apelo ao performativo com a finalidade de
proporcionar uma leitura significativa. Nesse sentido, pode-se ressaltar que o texto de Ubaldo
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destaca-se por sua originalidade em reinventar um espaço para o contador, aquele que,
segundo Walter Benjamim, estaria predestinado ao desaparecimento. Conforme Alfredo Bosi
(1987), a tradição está propensa à reinvenção de forma que o contador pode reconfigurar-se
em outros espaços.
O contador tradicional transfigura-se no narrador ao perpassar o universo da escrita.
Nessa perspectiva, são criadas novas maneiras de narrar e de compor narrativas. Nesse
contexto, Getúlio é a personagem que representa a luta pela persistência do seu mundo arcaico
e resiste à racionalização e intelectualização do mundo moderno. A modernidade ocasionou
um desencantamento do indivíduo ao vislumbrar a desintegração gradativa do seu universo.
Por isso, é importante demonstrar como a configuração do narrador é capaz de reinventar o
processo de construção da narrativa, na intersecção entre a oralidade e a escrita, de maneira
que o texto literário permite evidenciar a arte integradora de um povo, ao situar-se diante da
poética verbalizada nessa narrativa.
Imersa nesse contexto de imbricações mútuas entre vários campos artísticos a
narrativa de Ubaldo mostra-se com uma enorme potencialidade representativa. Ao narrar uma
história de aretê, Ubaldo passeia pela cultura grega antiga estabelecendo uma imersão no
universo homérico. Da epopeia presentificada no romance, a oralidade destaca-se como
instrumento essencial na expressão da honra do herói.
Nesse diálogo entre a oralidade e a escrita, percebe-se que o narrador assume uma
performance que concede à narrativa um elemento potencial do dramatúrgico. Afinal, Getúlio
por meio dessa estratégia performática deixa-se incorporar por outras vozes, de tal forma que
é possível estabelecer uma aproximação com a linguagem dramática. Partindo da oralidade do
mundo homérico para a escrita do romance de Ubaldo e com o despontar de Getúlio com o
texto dramatúrgico Sargento Getúlio, de Gil Vicente Tavares, o que se nota é que as artes de
representação constituem-se e mesclam-se, constantemente, na intersecção entre dois mundos:
o da oralidade e o da escrita. Ao explorar a performance na escrita literária conjuga a
capacidade de transcrever a voz no trabalho com a palavra na fala do protagonista que tem a
missão de criar sua própria realidade. Afinal, é por meio de uma poética da voz que Getúlio e
sua linguagem performática são transportados para o universo teatral.
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2 SARGENTO GETÚLIO ENQUANTO TEXTO DRAMATÚRGICO: ENTRE O
LITERÁRIO E O ESPETÁCULO
No campo das afinidades entre a literatura e o teatro, destaca-se o texto clássico da
Poética de Aristóteles, que apresenta a definição de tragédia como mímese que “se serve da
acção e não da narração e que, por meio da compaixão e do temor, provoca a purificação de
tais paixões.” (ARISTÓTELES, 2008, p. 47-8). Ao considerar a tragédia como o gênero
superior, enumerando suas prerrogativas, Aristóteles demonstra seu potencial enquanto forma
de representação, seja através da sua leitura, seja por meio do espetáculo cênico, demarcando
por meio de sua obra o diálogo entre a poesia e o teatro.
A partir da ascendência da tragédia, a literatura dramática consolida-se com a
associação entre a poética e o teatro na Arte Poética, datada de 1674, de Nicolas Boileau-
Despréaux. O prefácio de Cromwell Do grotesco e do sublime, de 1827, de Victor Hugo, ao
defender os gêneros híbridos trata o drama como aquele “que funde sob um mesmo alento o
grotesco e o sublime, o terrível e o bufo, a tragédia e a comédia, o drama é o caráter próprio
da terceira época de poesia, da literatura atual” (HUGO, 2007, p. 40). Assim, o autor clama
por um novo fazer poético instigado pelos tempos modernos, que supere a fixação de regras
estanques e abra espaço para o drama pintar a vida.
O teatro resistiu ao longo do tempo e avançou no terreno da hibridação, como é o caso
das adaptações teatrais que utilizam o texto literário como ponto de partida. Desse modo, o
teatro reconfigura-se em novos formatos com vistas a atender as demandas de cada época,
assim como acontece com a literatura. As circunstâncias modificam-se e os gêneros também.
Onde situa o dramatúrgico? Quais afinidades com a literatura? O que define sua
tendência para o espetáculo? O texto dramatúrgico aproxima-se do texto literário enquanto
precede o espetáculo por tomar a palavra como forma de expressão. Enquanto o primeiro é
considerado como parte da obra teatral, o segundo é a própria arte concebida para o desfrute
da leitura. Apesar de apoiar-se no literário, o texto dramatúrgico distingue-se por sua
inclinação ao espetáculo.
Enquanto linguagem verbal, o texto dramatúrgico é levado a extrapolar seus limites ao
passo em que é elaborado para abarcar outras formas expressivas. Entre os limites das
palavras, o texto dramatúrgico estaria inacabado como arte teatral. Seria outra obra artística.
Como uma das etapas do processo da arte teatral, o texto dramatúrgico é trabalho do
dramaturgo, mas que está sujeito às mudanças pelo diretor e sua equipe técnica. É um escrito
![Page 40: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado](https://reader033.fdocumentos.com/reader033/viewer/2022052309/5c4dd83993f3c34c550bb726/html5/thumbnails/40.jpg)
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acessível e instável. Um texto em processo por sua finalidade dupla que extrapola a atividade
de leitura, ao ser conduzido para uma miragem no palco. O texto dramatúrgico assume um
caráter maleável à medida que vai acoplando as leituras dos integrantes do processo de
elaboração de uma obra teatral.
Considerando, portanto, a inconstância da arte e especificamente dessa remodelação
do gênero teatral é necessário discutir acerca do texto dramatúrgico teatral como gênero. O
caso da adaptação da obra literária à peça teatral, mantendo um diálogo com o texto de
partida, é um assunto polêmico, com pontos de vista divergentes. Muito já se discutiu a
respeito das intersecções entre literatura e outras artes, como por exemplo, com o cinema.
O texto dramatúrgico pressupõe elementos que possibilitarão os aspectos teatrais. De
acordo com os recursos disponíveis para a sua performatização, sua finalidade é detalhar de
forma minuciosa ações, diálogos e sons que darão vida ao espetáculo em cena. Texto
dramatúrgico e peça de teatro aproximam-se nesses aspectos, no interstício entre o papel e o
palco. Ressalta-se, porém, que um mesmo texto dramatúrgico pode desdobrar-se em variadas
interpretações cênicas.
O texto dramatúrgico situa-se, portanto, na intersecção entre a narrativa literária e a
peça teatral. Ao adaptar uma obra literária para a linguagem encenada, o roteirista também
experimenta um momento de criação. Contudo, uma parcela do repertório da literatura cederá
espaço para os recursos específicos do teatro, considerando que o romance é constituído por
uma estrutura narrativa e o teatro demanda uma estrutura que o conduza à ação.
Esse processo de criação que conta com a supressão dos elementos literários que não
são passíveis de serem convertidos em performance faz do texto dramatúrgico teatral um
gênero distinto e específico. Deve-se levar em consideração, no entanto, que muitos trabalhos
voltados à transcriação de peças a partir de romances ignoram o texto dramatúrgico como
gênero de escrita. Dessa forma, é necessário reconhecer as particularidades inerentes ao
processo de transcriação. Enquanto isso, o texto dramatúrgico teatral segue envolto pela
supremacia do texto literário, como também escondido em suas especificidades atrás dos
palcos.
2.1 TEXTO DRAMATÚRGICO, UM GÊNERO?
O espetáculo, por sua efemeridade, sobrevive
apenas na memória de seus espectadores; dele o
que fica registrado é o texto e isto talvez tenha
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contribuído para sustentar a idéia da sua
supremacia, já que esse elemento por vezes é a
única fonte de informação sobre a atividade teatral
de determinadas épocas. (Hebe Alves, 2011).
Na epígrafe acima, Hebe Alves apresenta um enfoque a respeito da supremacia do
texto teatral sobre o espetáculo, do primeiro ressalta a importância do registro enquanto o
segundo fica limitado à memória. É possível considerar o texto dramatúrgico como gênero
textual, apesar de tratado muitas vezes como uma simples intermediação entre a obra literária
e a peça teatral?
A partir deste questionamento é válido traçar uma trajetória sobre as concepções de
gêneros textuais com a finalidade de compreender os fatores que interferem na classificação e
categorização das modalidades textuais. Basilar quando o assunto é representação artística,
Platão ao dialogar sobre a imitação do real, em A República (1965), ressalta que cabe aos
artistas, de acordo com suas habilidades e técnicas, representar o real.
Nesse intervalo entre o real e o representado, Aristóteles na Poética (2008) discute
sobre os gêneros literários perpassando pela análise da mímesis, da tragédia e da comédia. Ao
tratar sobre a teoria da tragédia, sendo esta uma “imitação de acção elevada e completa,
dotada de extensão, numa linguagem embelezada” (ARISTÓTELES, 2008, p. 47), o filósofo a
diferencia da epopeia, por ser esta considerada a arte da narrativa e não do drama.
Sob a perspectiva dessa distinção, Maingueneau assinala que a discussão sobre os
gêneros baseou-se nas tradições da Poética e da Retórica. Entretanto, “com o declínio da
Retórica, foram, sobretudo, os gêneros e subgêneros da literatura que passaram para o
primeiro plano.” (MAINGUENEAU, 2004, p. 46). Dessa forma, o estudioso acrescenta que a
literatura encontra-se analisada sob a categoria dos gêneros. Sendo assim, outras formas
artísticas podem ser estudadas à luz dos gêneros e não somente a literatura.
Com o passar do tempo, porém, o estudo dos gêneros foi conquistando espaço na
medida em que é “nos baseando na caução fornecida pela instituição literária que lemos uma
peça de teatro diferentemente de um romance, de um poema.” (MELLO, 2004, p. 98). A partir
de meados do século XX, após a hegemonia do autor e do texto, o leitor assume o eixo central
da análise literária. Segundo Jauss (1994), a Estética da Recepção é fundamental para a
análise recepcional do leitor em sua dimensão coletiva considerando os fatores estéticos,
sociais e históricos atrelados a este. Para Wolfgang Iser (1996), seria necessário estudar o
processo interacional texto-leitor a partir da Teoria do Efeito. No ato interpretativo, autor-
![Page 42: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado](https://reader033.fdocumentos.com/reader033/viewer/2022052309/5c4dd83993f3c34c550bb726/html5/thumbnails/42.jpg)
41
obra-leitor entram em cena de modo que o resultado é dinâmico por serem inúmeras as
possibilidades de leituras. É um processo que associa a atuação do leitor sobre as lacunas
dispostas no texto decorrendo no preenchimento dos vazios do texto.
A partir da interação das obras literárias pelo leitor, as mesmas são recriadas
continuamente. Assim, com a leitura do romance Sargento Getúlio por Gil Vicente Tavares
estabeleceu-se uma relação a partir de suas experiências e que interveio na recepção da obra.
O fato da obra já ter sido consagrada como um clássico da literatura brasileira também agrega
uma soma de leituras. O contato entre obra e leitor resulta numa incorporação de novos
sentidos para o texto literário e o redimensiona mantendo vivo o sistema literário. A leitura
permitiu vislumbrar a possibilidade de levar o monólogo para a dramaturgia, ampliando o
campo de atuação do dramaturgo para concretizar uma nova experiência. A relação dialógica
com a leitura interfere na postura do leitor e este, por sua vez, interfere na obra.
A Fenomenologia, corrente que defende o leitor como o cerne da criação literária,
influenciou o campo de estudos da recepção que alargou a atuação do leitor no processo de
atribuição de sentidos ao texto. Na perspectiva da Estética da Recepção, Jauss volta-se para a
fenomenologia da recepção coletiva, enquanto Wolfgang Iser centra-se no ato individual da
leitura. A Teoria do Efeito, concebida por Iser a partir dos contributos da Fenomenologia,
examina as implicações da leitura literária sobre o leitor de forma que este passa a participar
mais ativamente no processo de possibilidades interpretativas. Segundo Iser (1996), a
literatura concretiza-se por meio da leitura.
Iser (1996) defende a existência de um leitor implícito na própria tessitura textual que
concede pistas no sentido de direcionar a leitura. É o leitor compreendido como estrutura
textual que, ao exercer a compreensão, é compelido a assumir um posicionamento. A partir
dos repertórios dos leitores implícito e real, pode-se emergir uma perspectiva diferente da
obra. As múltiplas possibilidades interpretativas de um texto evidenciam que os leitores
realizam subjetivamente escolhas diferentes, mutáveis conforme seu modo de compreensão.
Nas obras literárias, ao explorarem os significados conotativos da linguagem permitem
desvendar diversas formas representacionais da realidade.
Iser (1996) postula que o texto concede indícios de como o imaginário deve ser
formulado mentalmente pelo leitor. Ingarden (1979) acredita que o autor deixa
intencionalmente hiatos no texto que serão completados pelo leitor ao passo que Iser acredita
que as lacunas não devem ser preenchidas necessariamente, ao considerar que os vazios do
texto permitem a atuação eficaz do leitor.
![Page 43: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado](https://reader033.fdocumentos.com/reader033/viewer/2022052309/5c4dd83993f3c34c550bb726/html5/thumbnails/43.jpg)
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A Teoria do Efeito entende a leitura como a interação entre autor, texto e leitor. O
leitor assume uma identidade participativa e crítica e a leitura configura-se como um ato
subjetivo e intransferível. Entre o dito e o não dito o leitor tece significados por entre as
lacunas da narrativa, costurando-as interligando as estruturas textuais. São diversos os
caminhos possíveis para preenchimento dos vazios do texto. Por isso, não há somente uma
única via interpretativa.
A atividade de leitura é essencialmente dinâmica e a capacidade imaginativa do leitor
abarca conjecturas, revisões, confirmações e questionamentos. É uma ação simultânea a
outras. É uma rede entremeada de conexões que exerce um efeito sobre o leitor e este atua
diante do texto. O dramaturgo Gil Vicente Tavares ao realizar a leitura individual do romance
de Ubaldo, identifica-se com o perfil da personagem Getúlio e vivencia um processo
interativo com a narrativa. Ao estabelecer afinidades com o texto, o leitor lhe atribui
significados e o redimensiona criticamente.
Sargento Getúlio possui uma narrativa complexa ao considerar seus elementos
referenciais. Ao leitor cabe interagir profundamente por entre as camadas textuais, o que se
inicia no próprio título. Sargento Getúlio presume que Getúlio é representante do poder
estatal e protagonista da narrativa. No transcorrer da narrativa, o leitor constrói e reconstrói o
perfil da personagem de forma que seu discurso deflagra uma vivência conflitante que
acarreta em um desfecho sugestivo, mas não conclusivo. Ao final do enredo, Getúlio vê-se
sozinho diante das forças do governo e seu discurso delirante e ofegante sugere que a
personagem caminha para a morte. Porém, isso não fica explícito na narrativa, o que alarga o
potencial da obra em estimular o imaginário do leitor na formulação de pressuposições.
A partir do título, a curiosidade do leitor é instigada para desvendar quem é Getúlio.
Nas primeiras linhas é traçado um perfil do mesmo como homem violento e corajoso que
conduz o leitor ao conhecimento dos demais personagens por meio de sua perspectiva. Aos
poucos, o leitor nota que a autossuficiência de Getúlio submete-se às conspirações do destino.
O conflito da personagem com o novo mundo é o cerne narrativo. E evidencia-se um
contraponto entre o modo de vida rude e o moderno. O final da narrativa é provocante pelo
fato do autor não colocar um ponto final no discurso de Getúlio o que pode provocar uma
estranheza no leitor que é motivado a tecer suposições a partir dos indícios textuais. O leitor,
do início ao fim, é levado a participar ativamente, estabelecendo conexões e atribuindo
sentidos à obra.
![Page 44: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado](https://reader033.fdocumentos.com/reader033/viewer/2022052309/5c4dd83993f3c34c550bb726/html5/thumbnails/44.jpg)
43
O texto teatral assume um aspecto diferente da escrita literária assim como o momento
da representação no palco. De acordo com Raymond Williams, “a relação entre texto e
encenação não é nada estável. Ademais, as variações devem sempre ser compreendidas
segundo os termos dos métodos possíveis e mutáveis de representação e escrita dramática”
(WILLIAMS, 2010, p. 219). Essa instabilidade evidencia as especificidades inerentes ao texto
dramatúrgico levando-o a assumir um caráter distintivo.
As particularidades do texto dramatúrgico, como as marcações, suprimidas na
encenação, apontam para uma leitura diferenciada desse tipo de texto. Além disso, não se
pode esquecer que o teatro apresenta uma conformação devido ao seu padrão de estruturação
consolidado:
Existe, antes de uma situação dramática, uma linguagem dramática. É ela
que confere dinâmica, por exemplo, aos longos monólogos onde a
personagem, não tendo o apoio de um interlocutor, tem que estar apoiada no
efeito que suas frases produzem no ouvinte. É uma linguagem que pressupõe
uma assistência, uma reação. A personagem é seu primeiro ouvinte, reage às
suas próprias frases. (MENDES, 1995, p. 29).
O texto teatral ultrapassa o lugar de objeto da literatura ao consolidar suas práticas
discursivas e ao estabelecer uma linguagem própria. Conforme Mendes (1995), “a frase
dramática é em si mesma um gesto. Ao lê-la, imaginamos simultaneamente a atitude da
personagem que a profere.” (MENDES, 1995, p. 29). Nesse sentido, o texto teatral remete
para uma espécie de contrato de leitura ao constituir-se de elementos, como as rubricas, que
são marcações cênicas que clamam pela presença de um ator para lhes dar sentidos.
No estudo dos gêneros é essencial o reconhecimento do leitor como aquele que
atribuirá sentidos às modalidades artísticas. Como a linguagem teatral pressupõe uma reação,
cabe destacar o envolvimento entre o espectador e o teatro. Alves ressalta que:
A questão do envolvimento do espectador tem a idade do teatro e, durante
um longo período, defendeu-se o predomínio do texto como elemento capaz
de conquistar e manter a sua atenção, por ser um possível fator de coesão dos
múltiplos sentidos da encenação. Ao longo do século XX, os artistas de
teatro enfrentaram essa hierarquia, com ruidosos argumentos e criativa
produção, desafiando normas e valores que poderiam conferir o selo de obra
artística às suas realizações. O fruto positivo desses embates foi o avanço
inegável de uma poética propriamente cênica, de uma consciência cada vez
mais nítida das opções que se oferecem ao encenador, em seu campo
específico, em seu trabalho de materialização do espetáculo. (ALVES, 2011,
p. 119).
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44
Até o século XIX houve o predomínio do texto sobre sua concretização no palco.
Como componente mais significante, o texto era dotado de autonomia. Contudo, os artistas
lutaram contra essa supremacia do texto. Conforme Pavis (2010), no final do século XIX, a
figura do diretor alarga sua atuação contribuindo para o desenvolvimento de técnicas cênicas,
enfraquecendo a supremacia do texto ao longo do século XX.
Vê-se que a depender do contexto histórico, a arte é encarada de forma diferenciada e
assim aconteceu com a relação entre o texto e o espetáculo. O texto teatral ao contar com o
reconhecimento de sua estrutura confirma as expectativas do leitor diante do mesmo.
Bronckart (2003) ressalta que a classificação variada dos gêneros é justificada pela quantidade
de critérios que não são exclusivamente linguísticos. Assim, o texto teatral é um texto que
invoca a concretização num palco e, para tanto, ultrapassa os recursos linguísticos. Exigindo,
especialmente, uma leitura cênica, capaz de concretizar os recursos expressivos constituintes
do espetáculo:
A representação e a percepção do escritor de teatro como autor, no sentido
pleno do termo, emergiu lentamente, principalmente como um efeito das
práticas do mercado livreiro que simultaneamente explorou o sucesso de
certos dramaturgos, multiplicou as edições corrompidas que deviam ser
recusadas por seus autores e permitiu que os leitores reconhecessem os
méritos de textos muitas vezes traídos pelas más condições de representação
ou pela indisciplina dos espectadores. (CHARTIER, 2002, p. 12).
Sob tais perspectivas, tornam-se cabíveis alguns questionamentos: considerando sua
dimensão técnica o texto dramatúrgico tem apenas um valor utilitário? O registro manuscrito
de uma peça é necessário, após a sua materialização no palco? A incerteza do texto
dramatúrgico como gênero continua, se considerar que sua completude se situa na finalidade
cênica, que sua palavra serve à performance e à ação.
Conforme Williams (2010, p. 215), o “ato de escrever uma peça e o ato de representá-
la são claramente distintos, assim como a experiência de ler uma peça e assistir a um
espetáculo”. O estudioso acrescenta ainda que quando “um dramaturgo escreve uma peça, ele
não escreve uma história para que os outros a adaptem para a cena; ele escreve uma obra
literária que, como tal, pode ser diretamente encenada” (WILLIAMS, 2010, p. 216). Se por
um lado, o texto dramatúrgico aproxima-se do romance, por outro, a diferença entre ambos
reside na forma como o texto dramatúrgico utiliza o espaço e o tempo. É justamente isso que
concede ao texto dramatúrgico uma particularidade.
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45
A literatura é envolta por um caráter bastante subjetivo que demanda a atenção e a
capacidade de visualização durante a leitura. Enquanto isso, o teatro recorre à visão e à
emoção produzidas no espectador envolvido pela representação:
Um terceiro elemento desta relação entre texto e oralidade se inscreve na
história dos modos de ler e enfatiza a leitura em voz alta. Esta prática
constitui uma das mais importantes formas de circulação e de apropriação
das peças de teatro e das obras romanescas na época moderna. Em relação às
peças, diversos dispositivos das edições impressas serviam para indicar ao
leitor como ele devia ler o texto, marcando os silêncios, pondo em destaque
as palavras ou os versos portadores de um sentido particular, respeitando o
ritmo dos trechos ou dos diálogos. Nesse sentido [...] pretendiam reduzir a
distância entre o texto representado e o texto impresso, dando ao leitor a
oportunidade de vislumbrar a declamação dos atores e o desenrolar da peça
pela leitura em voz alta ou por meio de uma reconstituição mental.
(CHARTIER, 2002, p. 9).
O conceito de dramaturgia, em seu sentido estrito, está associado à composição de
texto dramático escrito. Porém, a partir do século XX tal definição não mais atende o campo
teatral e alarga-se em novos sentidos. Da arte de escrever texto para encenação, o teatro passa
a elaborar espetáculos que não se apoiam no texto e exploram o tempo, o espaço e a ação.
Pavis (2005) classifica a escrita em dramática e cênica. Enquanto a primeira envolve o
texto e o leitor, a segunda é a concretização da encenação. Com o alargamento da dramaturgia
para além da palavra, o termo passa a abarcar os elementos cênicos. A base de construção de
um texto dramatúrgico é a ação, enquanto o texto literário constitui-se pela narração e
descrição. A literatura apresenta uma dimensão subjetiva, que por meio da escrita, possibilita
um universo de caminhos. Porém, no teatro, a interpretação continua subjetiva sob
determinados aspectos. O espectador é quem testemunha a ação cênica. Na literatura, por sua
vez, o narrador é testemunha dos acontecimentos.
A especificidade da linguagem da literatura permite lançar mão de recursos artísticos
que são dispensáveis para o texto dramatúrgico, que transita do verbal para o visual e o
sonoro. Ao considerar que a escrita do romance também é passível de transposição para outra
forma expressiva, cabe concluir que tais modalidades textuais não são totalmente diversas,
apesar de conter singularidades.
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46
2.2 SARGENTO GETÚLIO REINVENTADO: OS RECORTES DE GIL VICENTE
TAVARES
Gil Vicente Tavares, dramaturgo baiano, roteirizou e dirigiu a versão teatral do
romance de João Ubaldo Ribeiro Sargento Getúlio. A peça teatral estreou em 03 de agosto de
2011, em comemoração aos 70 anos de Ubaldo Ribeiro e os 40 anos de lançamento do
romance, apresentando-se em festivais do país por meio do Palco Giratório, em parceria com
a FUNARTE e o Ministério da Cultura.
Ao reinventar Sargento Getúlio, Gil Tavares incrementou o monólogo com recursos
do romance, mantendo a contraposição da representação tradicional sobre o nordeste e
detendo-se na representação do homem nordestino, através da personagem Getúlio, com sua
fala rítmica ao contar os casos. A opção pelo monólogo mostrou-se fundamental para o texto
dramatúrgico ganhar a força para encenação no palco. Getúlio apresenta-se como Sargento da
Polícia Militar de Sergipe, com a missão de conduzir um prisioneiro entre Bahia e Sergipe. O
texto dramatúrgico inicia-se com a personagem na estrada. Gradativamente, na medida em
que a narrativa acompanha o diálogo de Getúlio que é entrecruzado por outras vozes, como se
emergissem outras personagens.
A busca pelo extravasamento do vazio é o que se verifica no drama Sargento Getúlio,
explorando sensações e emoções. O monólogo lírico-dramático evidencia o perfil do herói
que se procura em suas próprias reflexões e faz dessa busca o seu conflito numa exposição de
ações e reações. Nesse percurso, é assegurado um compasso intenso e a narrativa avança de
forma que o foco na personagem progride.
A linguagem do drama reflete o estado de espírito da personagem aliada a uma voz, a
um gesto e a uma imagem humana que refletem uma alma tensionada. Há uma valorização da
subjetividade encarnada na linguagem de Getúlio por meio do monólogo que aos poucos
revela o ser e as angústias do protagonista: “Minha mulher sou eu e meu filho sou eu e eu sou
eu” (RIBEIRO, 2008, p. 41), “o meu aboio é oco” (RIBEIRO, 2008, p. 42), “Amaro, ou você
fala ou eu me ferro” (RIBEIRO, 2008, p. 12), “Se tivesse cangaço, eu ia para o cangaço, com
um chapéu de estrelas prateadas e ia me chamar Dragão Manjaléu e ia falar pouco e fazer
muito [...] Luzinete, eu vou ser é deputado e vou fumar uns charutos” (RIBEIRO, 2008, p.
126), “Tem uma porção de gente se mexendo, e eu aqui no meio, paradão. Mas parado como
um peixe junto das pedras dum riacho, que se você quiser mexer perto ele dá uma rabanada e
some. Porque é assim que eu sou” (RIBEIRO, 2008, p. 127-128), “eu sou o macho dessa
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terra” (RIBEIRO, 2008, p. 88), “eu nunca vou morrer” (RIBEIRO, 2008, p. 163). Getúlio
constrói-se por meio da linguagem e por meio dela apresenta-se ao leitor. Mendes (1995)
defende que a linguagem emerge na personagem e paralelamente lhe dá vida. A opção pelo
monólogo favoreceu a autoconstrução da personagem.
Assim, Gil Tavares explora os rastros de teatralidade do romance Sargento Getúlio, e
isso define suas preferências ao selecionar os trechos com maior carga dramática. Por meio de
uma narrativa múltipla e emaranhada, a personagem apela à atenção do leitor por meio de
uma fala ininterrupta sem lhe dar chance de desviar o olhar. Segundo o dramaturgo, a opção
pelo monólogo deu-se em sua primeira leitura quando imaginou a personagem sozinha no
palco, em defesa de sua honra. Para tanto, o diretor tentou apreender outras imagens do
Nordeste. Em entrevista concedida ao Blog da Cena, Gil Tavares comenta sobre o despertar
de seu interesse em adaptar Sargento Getúlio para o teatro:
Certa noite, na casa de meu pai, me dei conta de que jamais havia lido um
romance de João Ubaldo Ribeiro. Conhecia seus contos e crônicas, e então
resolvi ler algum livro famoso dele. Saquei Sargento Getúlio da estante e li
num só fôlego. Tenho plena convicção de que se algum dia eu lesse essa
obra, independente de grau de parentesco ou conhecimento do autor, iria
querer adaptá-la. Então o fato de ser meu padrinho foi apenas um estímulo a
mais para que eu encarasse a obra, só pesou na iniciativa da leitura, nada
mais. A partir da leitura, a motivação foi meramente artística. (TAVARES
apud ANUNCIAÇÃO, 2014).
A narrativa de Ubaldo é muito presente neste texto dramatúrgico, contudo, o roteirista
realiza uma releitura do romance, recortando trechos e criando uma disposição distinta.
Ressalta-se que os trechos selecionados, em sua maioria, são mantidos inalterados,
especialmente no caso do desfecho, pois segundo Gil Tavares, “identificava ali um fluxo que
não queria que fosse interrompido, e esse desafio de não contar com nenhuma dramaturgia e
apenas as palavras de Ubaldo pra mim foi provocador”. (TAVARES apud ANUNCIAÇÃO,
2014). Apesar de o dramaturgo afirmar que não se apoiaria em nenhuma dramaturgia, é
visível como o desfecho do romance é potencialmente significativo de uma dramaturgia da
palavra. Mesmo optando por não explorar a dramaturgia cênica, persiste a palavra dramática
que envolve o leitor/espectador:
Há os que defendem o teatro enquanto realidade precipuamente literária, e o
palco existiria apenas para explicitar um sentido exaustivamente presente no
texto. Todos os outros elementos que compõem o espetáculo - a começar
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pelos atores, meros instrumentos – só encontrariam a sua razão de ser na
completa subordinação à palavra literária. O texto seria um valor em si,
autônomo, porque é literatura; e o espetáculo ser-lhe-ia assim acrescentado,
tão-somente para evidenciar ou fazer ver a verdade da criação do
dramaturgo. (BORNHEIM, 1983, p. 75).
Quanto à organização do texto, o texto dramatúrgico apresenta uma seleção de trechos
do romance no intuito de melhor reconfigurá-los à arte dramática. A peça é dividida em
prólogo, quatro cenas, quatro interlúdios e um epílogo. O interlúdio é uma curta passagem,
geralmente de viés lúdico, que entrecruza as cenas de uma peça teatral, conforme Carlos Ceia:
Derivado do latim interludere, “no meio do jogo, do divertimento”, o termo
refere-se a um breve episódio ou a uma parte lúdica que entrecorta a
sequência normal dos actos de uma peça de teatro. Inicialmente, o interlúdio
foi uma peça ligeira autónoma, sempre com intenção lúdica ou burlesca, e
que durante a Idade Média e o Barroco, ganhou diferentes acepções, como o
português entremez, italiano intermezzi, o francês entremets ou o espanhol
entremeses. [...] O interlúdio teve particular importância na secularização do
drama e na forma como promoveu o desenvolvimento da comédia burguesa,
desde cedo fixada nos salões das aristocracias européias. (CEIA, 2010).
O texto dramatúrgico de Gil Tavares é entrecortado por interlúdios nos quais a
personagem Getúlio dialoga ora com Amaro, ora com Luzinete. No interlúdio I, Getúlio
reporta-se ao “peste” e “frouxo” do Amaro; no interlúdio II, dialoga com Luzinete expondo
suas pretensões de ir para o cangaço e afirma que para ser deputado não existe requisito; no
interlúdio III, conta causos de Trancoso de forma bastante cômica, e no interlúdio IV conta
que sua mulher Luzinete agora é a lua. Dessa forma, os episódios apresentam um caráter
lúdico que evidenciam o lado cômico da personagem Getúlio, deixando escapar a visão crítica
da personagem que afirma que seria deputado, pois não precisa de qualquer pré-requisito.
No romance é narrada a trajetória de Getúlio ao levar o prisioneiro de Paulo Afonso a
Aracaju. Na versão teatral, Getúlio começa narrando seu desfecho, e depois apresenta
momentos de sua aventura com Amaro e Luzinete, assumindo-se como integrante de um
universo arcaico e de brutalidade, no qual Getúlio expõe toda sua expressividade:
O decisivo, porém, está no seguinte: todas essas invectivas terminam apenas
pondo em maior evidência uma questão bem peculiar e até mesmo exclusiva
dos tempos modernos: é que freqüentemente o autor teatral já não é um
homem de teatro, e sim um escritor, fechado em seu gabinete, como se
costuma dizer. Há alguns dramaturgos que, guiados talvez por certo peso de
consciência, fazem cursos de teatro e aventuram-se até a incursionar por uma
ou duas experiências cênicas. Contudo, as suas tentativas transforma a
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49
ribalta em cobaia de experimentação, porque, de fato, não pertencem ao
meio, não se sentem mordidos pela fatalidade cênica, e não deixam, um só
momento, de serem literatos. Esse exclusivismo literário do dramaturgo
explica porque tantos textos dramáticos, ainda que dotados de alto valor
literário, sejam totalmente inexeqüíveis no palco, a ponto de ser tornado
claro que a excelência literária de um texto não constitui condição suficiente
para a sua viabilidade cênica, tornando-o às vezes alheio à própria existência
do teatro. (BORNHEIM, 1983, p. 83).
Gil Tavares ressalta a descontinuidade do fluxo do tempo, ao começar pelo desfecho
do romance, como também apresenta alterações na narrativa e condensa as falas dos demais
personagens na figura do protagonista. O texto dramatúrgico Sargento Getúlio conserva
trechos do romance de Ubaldo Ribeiro que evidenciam a vocalidade de Getúlio que se
comporta como um herói épico com todas as suas virtudes. “O lirismo com que João Ubaldo
conduz a história acaba por transformar a novela num poema épico em versos livres. Tentei
desenhar os diversos sargentos que há no Getúlio, mostrando sua violência, fraqueza, paixão e
crueza” (TAVARES apud FRENTE&VERSO COMUNICAÇÃO INTEGRADA, 2014).
Tavares retoma para o palco toda a sutileza e complexidade da obra literária:
Já outros pretendem que o texto não goza de nenhum privilégio especial,
seria simplesmente um dos componentes que concorrem para montar a
unidade do jogo cênico; a verdade do espetáculo derivaria, pois, de um
conjunto de elementos entre os quais estaria a palavra. A palavra constituiria
apenas um dos elementos do espetáculo já que, por exemplo, existem às
vezes cenas inteiras em que os atores não dizem absolutamente nada, e no
entanto, sem essas cenas a ação dramática perde seu sentido. E, finalmente,
há os que adotam uma posição radicalmente contrária à mera presença da
literatura no teatro; a literatura seria a responsável pelo estado de decadência
em que se encontra o teatro – de onde vem a necessidade de reinventar a
realidade cênica, através da revalorização ou da redescoberta daqueles
ingredientes que integrariam originariamente o teatro. Dessa forma, a
literatura seria um elemento impuro, não especificamente teatral, que se teria
agregado tardiamente ao teatro, terminando por deturpá-lo. (BORNHEIM,
1983, p. 76).
Gil Tavares afirma que “falar em predicados do meu teatro pode soar cabotino, mas, a
despeito disso, como diria Caetano Veloso, “na Bahia nego fica den‟dum útero”. Acrescenta
ainda: “Sempre estive atento em fazer um teatro que tentasse ser aceito no sertão da Bahia ou
no Berliner Ensemble. A arte deve ser universal, mesmo cantando sua aldeia, e deve ter
sempre uma preocupação com uma estética apurada, dentro dos limites financeiros e artísticos
de cada um”. (TAVARES apud ANUNCIAÇÃO, 2014). Nota-se que existe uma inquietação
por parte do dramaturgo de produzir uma arte que seja universal. A aceitação do produto
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artístico parece direcionar os artistas quanto às suas escolhas. O objetivo é redimensionar a
perspectiva regional superando a dicotomia entre o local e o universal.
Conforme Bornheim (1983), alguns autores defendem o teatro como fenômeno
essencialmente literário por considerarem sua estabilidade e seu caráter intemporal em
contraponto à efemeridade do espetáculo. O autor reforça que se trata de um pensamento
equivocado uma vez que a História constrói-se na efemeridade do tempo e acrescenta que a
questão dos dramaturgos está relacionada com a História da Literatura e não com o teatro:
Aqui seria necessário escrever um outro ensaio: Das Dificuldades em
Aceitar a Finitude. A experiência mais efêmera e passageira que o homem
possa ter, a mais destinada ao esquecimento, a mais radicalmente finita
insere-se no espaço que inventa o sentido da existência humana. O que é a
obra escrita considerada em si mesma? Recusada a sua encenação, resta o
leitor; e o ato particular da leitura, o modo como cada leitor vê o texto, é o
que lhe empresta vida: se o texto é fixo, há uma história de suas
interpretações, e é esta sequência de experiências transitórias que faz de uma
peça literária algo vivo e atuante. (BORNHEIM, 1983, p. 82-3).
O desafio é partir do local para concretizar-se numa arte universal. Como no romance,
Gil Vicente Tavares busca suplantar as particularidades regionais a partir de sua intensidade
emblemática ao problematizar questões pertinentes à condição humana. Conforme Mendes “é
comum a afirmação, entre os críticos e teóricos do drama, de que o teatro é um caso-limite da
literatura. Mas, ao contrário, parecer ser a encenação que se faz um caso-limite da leitura”.
(MENDES, 1995, p. 39). Desta forma, por estabelecer-se uma nova leitura é que se produziu,
por outros meios, por outros sistemas de signos, um novo Getúlio, que foi levado ao palco:
Há outro fator ainda que apresenta aspectos inquietantes. Pela primeira vez
na Historia, o teatro, além de montar o repertório contemporâneo, preocupa-
se em levar à cena a totalidade da dramaturgia ocidental e mesmo mundial.
Acontece que quando isso é feito por razões que querem apenas manter a
cultura literária – o que quase sempre permanece subjacente, como espécie
de respeito tácito -, a encenação não passa de um meio de mostrar essa
cultura, e o teatro facilmente torna-se informativo, como se devesse estar a
serviço de valores literários perenes. (BORNHEIM, 1983, p. 83-4).
Bornheim (1983) discorre sobre a montagem de textos clássicos que em determinado
momento histórico pode obter sucesso e, posteriormente, ter sua comunicação com o público
comprometida. Como as adaptações são diálogos explícitos e irrestritos entre obras, a “ribalta
permanece aberta às mais diversas modalidades de experiência teatral, desde o puro
espetáculo de texto até a improvisação completa. E é no interior desse caleidoscópio de
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formas que rebenta o conflito entre teatro e literatura.” (BORNHEIM, 1983, p. 85). A arte
perpetua-se a partir da própria arte, de forma que as histórias podem ser inovadas e
atualizadas a cada época e por outros meios de expressão.
Ao reinventar Sargento Getúlio na dramaturgia, Gil Vicente reconta a história à sua
maneira. Recorte que não simplifica o romance, mas alarga o seu potencial representativo. A
partir do ponto de vista do leitor e dramaturgo, a leitura materializa-se em uma atividade de
atribuição de significados e invenção. Nesse processo de transposição inventiva, o produto é
resultado de uma nova interpretação que ultrapassa o ato de repetir a história em outro código.
2.3 GIL VICENTE TAVARES: ENTRE O LEITOR E O DRAMATURGO
Gil Vicente Tavares, dramaturgo de Sargento Getúlio2, graduou-se em Direção Teatral
pela Universidade Federal da Bahia. Possui Mestrado e Doutorado pelo Programa de Pós-
Graduação em Artes Cênicas (UFBA). Em 1999, ganhou o Prêmio Braskem de Teatro na
categoria de Diretor Revelação. Participou do texto dramatúrgico de Vixe Maria, Deus e o
Diabo na Bahia (2004) e do texto dramatúrgico de Cidade Baixa. Fundou o grupo Teatro NU,
em 2006. Recebeu o Prêmio FAPEX de Teatro, em 2010, com a peça Sade. É produtor das
peças Os Amantes II, Os Javalis, Os Males do Tabaco, O Urso, O Pedido de Casamento,
Destinatário desconhecido e Quarteto.
Em 2011, Gil Vicente Tavares iniciou o projeto de representar Sargento Getúlio no
teatro, um monólogo com cinquenta minutos de duração. O romance ubaldiano já havia se
consagrado na literatura brasileira, era possível encontrar um número significativo de
pesquisas sobre esta obra. Conforme Jauss, o “horizonte de expectativa de uma obra, que
assim se pode reconstruir, torna possível determinar seu caráter artístico a partir do modo e do
grau segundo o qual ela produz seu efeito sobre um suposto público.” (JAUSS, 1994, p. 31).
O fato do romance já ter sido consagrado em 1999 pode ter influenciado Gil Vicente Tavares
enquanto leitor a agregar o processo de atribuição de significados do romance a ponto de
imaginá-lo em outro viés artístico. Segundo Cajaíba (2011, p. 143), “a obra de arte só se
concretiza no ato de sua fruição. Caso contrário, ela permanece “adormecida”, inexiste. Assim
2 Encenado pela primeira vez em 2011, o espetáculo Sargento Getúlio de Gil Vicente Tavares atravessou o país.
Ainda em 2011, ganhou o prêmio Braskem de Teatro. Em 2013, participou da apresentação de peças baianas no
Festival de Curitiba. A peça Sargento Getúlio recebeu a colaboração do Palco Giratório, projeto da rede de
Serviço Social do Comércio - SESC.
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se poderia também afirmar que a recepção de uma obra literária é tão “efêmera” quanto à
recepção de uma encenação teatral.” A recepção tanto do romance como da peça teatral não
pode ser condicionada apenas ao formato de ambos, e nem somente ao contexto histórico em
que ocorre a publicação do romance e a apresentação da peça teatral, mas, sobretudo à forma
como atinge os diversos públicos. Quanto a esse aspecto ainda é necessário um longo
percurso em prol da democratização da arte:
A implicação estética reside no fato de já a recepção primária de uma obra
pelo leitor encerrar uma avaliação de seu valor estético, pela comparação
com outras obras já lidas. A implicação histórica manifesta-se na
possibilidade de, numa cadeia de recepções, a compreensão dos primeiros
leitores ter continuidade e enriquecer-se de geração em geração, decidindo,
assim, o próprio significado histórico de uma obra e tornando visível sua
qualidade estética. (JAUSS, 1994, p. 23).
Tavares, a partir do texto dramatúrgico, ao reconfigurar o tempo e o espaço, reaviva a
complexidade da construção da personagem Getúlio com toda sua riqueza e contradições. O
monólogo é entremeado por uma narrativa entrecortada e reorganizada de forma distinta da
sequência do romance. Fica evidente a ruptura em relação à tendência de firmar-se o homem
nordestino apenas como sertanejo, superando, assim, a representação tradicional, ao optar por
explorar o homem nordestino sob uma nova ótica que transcende as preocupações locais.
Nesse sentido, referindo-se aos símbolos da seca nordestina, Tavares ressalta que estes “são
elementos que pasteurizaram o que de mais forte podemos trazer do sertanejo, de sua alma.
Para isso, apostamos muito mais nas imagens do texto, já que a fala, a prosódia e as
referências já são tão sertanejas e agrestes. A secura está dentro dele”. (TAVARES apud
FRENTE&VERSO, 2014).
Como já foi mencionado, a versão teatral de Sargento Getúlio surgiu da proposta de
Gil Tavares, em 1999, que após conhecer o romance ubaldiano, visualizou um monólogo e no
dia seguinte perguntou a Carlos Betão: “Já tenho meu próximo projeto, Sargento Getúlio, um
monólogo. Topa?” (TAVARES apud SANTANA, 2012). Porém, adaptação e encenação
atravessaram uma longa trajetória. Inicialmente, Gil Tavares elaborou uma versão de 20
páginas do texto. Após 11 anos de tentativas de montagem da peça, optou-se por reduzir o
texto dramatúrgico para 14 páginas. Para a apresentação no SESC-Leituras, o texto foi
reduzido para 11 páginas e, após os ensaios reduziu para dez. Tavares ressalta que foi
intrigante esse percurso, que inicia com a versão antiga de 20 páginas, e, a partir dos ensaios,
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percebeu-se a necessidade de redução das falas. Assim, Gil Tavares3 realizou os ajustes
devido ao trabalho de interpretação, que terminou por influenciar o processo de adaptação:
Em geral, as adaptações, especialmente de romances longos, sugerem que o
trabalho do adaptador é o de subtrair e contrair; isso é chamado de “arte
cirúrgica” (ABBOT, 2002, p. 108) por um bom motivo. Ao adaptar a trilogia
de romances de Philip Pullman, intitulada Fronteiras do Universo [His Dark
Materials], de 1.300 páginas, para duas peças de três horas cada, Nicholas
Wright precisou cortar personagens centrais (por exemplo, a cientista da
Oxford Mary Malone) e, assim, os mundos que eles habitam (por exemplo, a
terra dos mulefas); foi necessário acelerar a ação e envolver a igreja desde o
começo. Logicamente, além de encontrar dois clímax principais para
substituir os três da trilogia, ele também precisou explicar certos temas e
detalhes do enredo, pois não havia tanto tempo para o público registrar
informações quanto na leitura dos romances. (HUTCHEON, 2013, p. 43-4).
O texto dramatúrgico Sargento Getúlio resulta numa transcriação do romance que
transcende o universo das palavras e encontra em outros signos um caminho para aproximar-
se do espectador e, assim, explorar a simbologia que circunscreve a linguagem dramática. Ao
levar para palco uma forma representativa do homem nordestino, problematiza o Nordeste
não numa perspectiva regional, mas, sobretudo, a subjetividade desse ser. Essa representação,
portanto, ultrapassa uma questão social em sua linguagem encenada e abre espaço para uma
abstração que veicula um drama existencial em toda sua potencialidade expressiva. A partir
de uma sequência dramática distinta, Gil Tavares cria sua forma peculiar de apresentar
Getúlio:
Eu respeito quase 100% do texto de Ubaldo. Contudo, fiz uma edição da
versão original, recortando trechos e criando uma linha dramática distinta da
narrativa do romance. Vale ressaltar que me impus o desafio de seguir,
palavra por palavra, toda a parte final do livro, pois identificava ali um fluxo
que não queria que fosse interrompido, e esse desafio de não contar com
nenhuma dramaturgia e apenas as palavras de Ubaldo pra mim foi
provocador. No livro, os acontecimentos seguem um fluxo, contando a saga
de Getúlio levando o prisioneiro de Paulo Afonso a Aracaju. Na minha
versão, Getúlio começa narrando seu próprio final, e depois divide-se entre
momentos de sua aventura e momentos de descanso, fantasia e humor com
3 É importante ressaltar que Tavares assume mais de uma função nesse processo. Como dramaturgo, roteirista e
diretor Tavares perpassa a condução de várias etapas: desde a elaboração do texto dramatúrgico até a montagem
cênica que trabalha com os demais elementos para a representação no palco (som, iluminação, cenário, dentre
outros).
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Amaro, o motorista da Hudson – na peça uma Rural –, e Luzinete, sua
mulher. (TAVARES apud ANUNCIAÇÃO, 2014).
Gil Tavares a partir da leitura do romance ubaldiano estabelece uma forma de
atualização da obra de arte. A esse respeito, Jauss defende o recurso da atualização como
capaz de contribuir para a concretização do sentido da obra de arte. Assim, segundo o autor, a
“literatura como acontecimento cumpre-se primordialmente no horizonte de expectativas dos
leitores, críticos e autores, seus contemporâneos e pósteros, ao experienciar a obra.” (JAUSS,
1994, p. 26).
Conforme Regina Zilberman, “nenhum leitor fica imune às obras que consome; essas,
da sua parte, não são indiferentes às leituras que desencadeiam [...] Só que a ação do leitor
não é individualista; nem cada leitor age de modo absolutamente singular.” (ZILBERMAN,
2012, p. 183). Por intermédio de sua releitura, Gil Tavares concretiza suas experiências e
atribui novos sentidos a Sargento Getúlio ao potencializar a dramaticidade em torno de uma
única personagem. Acrescenta que quando leu o livro imaginou o momento em que a morte
aproxima-se e a pessoa rememora toda sua trajetória, ressaltando que “esse sertão imaginário,
que está na moda, já cansou como imagem e não me interessa. A cultura popular foi recriada
por todos os grandes artistas, mas quando se joga o folclore na frente, a gente esquece tudo o
que pode estar por trás” (TAVARES apud CARNIERI, 2013).
Se Getúlio de Ubaldo apresenta-se como símbolo da virtude nordestina, no recorte de
Gil Tavares, a personagem realça a beleza linguística do homem simples nordestino por meio
de sua musicalidade ao falar. Conforme Tibaji (2002) “a obra pertence ela mesma ao mundo
para o qual ela se apresenta”. É assim que Gil Tavares constrói sua singularidade no âmbito
da arte teatral, ao explorar uma forma transcendental de representação do nordeste,
contribuindo para uma maior visibilidade do teatro baiano. Nesse sentido, cabe ressaltar a
concepção de Raymond Williams:
Para qualquer ator, encenador e diretor, o mesmo problema – o de
transformar a escrita numa produção real – é permanente, tal como para o
escritor é diverso, experimental, mutável. E para os leitores e o público,
essas várias relações e atividades estão lá o tempo todo, embora eles talvez
não trabalhem nelas de modo direto. Dessa forma, o que acontece entre o
texto e a cena é uma relação contínua, em toda essa importante área da
escrita e da atuação que constitui nosso drama, o tradicional e o
contemporâneo. (WILLIAMS, 2010, p. 232).
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Da imbricação, portanto, entre esses dois campos artísticos - literatura e teatro - as
formas de conceber os gêneros modificam-se, de forma que a literatura assume características
do teatro que, por sua vez, toma a cadência da escrita literária e a incorpora com ação.
Consequentemente, o narrar literário mescla com o dramatúrgico demonstrando como as
fronteiras entre os gêneros são tênues.
Gil Tavares aborda sobre as limitações do processo criativo na busca pela teatralidade
e dramaticidade. Ressalta que na arte teatral existe a possibilidade de renovação constante ao
passo em que é resultado do diálogo com os variados elementos cênicos: direção, iluminação,
música e interpretação:
Esse preâmbulo todo foi pra dizer que, começados os ensaios, minha
adaptação, e as palavras de Ubaldo arrumadas daquele jeito ali passaram a
ser um problema para os dois: eu e Betão. Como resolver as transições,
como criar os personagens da trama, como diferenciar Luzinete, como usar a
música como elemento dramático, e não ilustrativo e meramente
sentimental? É natural que haja um corte ali, uma arrumação de frases acolá,
um reforço de uma palavra, a inserção de uma expressão para esclarecer
melhor o sentido de algo. (TAVARES apud SANTANA, 2012).
Da transposição, portanto, do romance ubaldiano para o texto teatral a narrativa
prepara-se para transformar-se em ação. Um novo formato é exigido para esse deslocamento.
A narração gradativamente cede lugar à ação. Com o recorte de Gil Tavares dos trechos da
narrativa de Ubaldo, elabora-se uma nova configuração textual. Nesse intermédio, entre a
narrativa e o palco, o texto dramatúrgico situa-se numa fronteira sem pertencimento e sem
identidade. Porém, apesar de basear-se no texto literário, a escrita do texto dramatúrgico
teatral vai além de uma adaptação ao considerar que foi elaborado com a perspectiva de ser
representado no palco. Ainda que mantenha trechos do romance, ao pensar no monólogo
teatral Tavares é levado a pensar numa linha dramática que possibilitou maior afinidade com
os elementos cênicos.
Por isso, a importância da discussão sobre as concepções de gênero e dos fatores que
interferem para tal definição. E nesse embate são várias as possibilidades para superar a
indefinição do texto teatral. A tradução entre as modalidades artísticas conduz o “tradutor”
para a liberdade de criação. Um percurso que inicia com a leitura do romance levando-o
através das veredas da imaginação para um universo de possibilidades. A imaginação criadora
instrumentaliza o leitor às escolhas. Justamente essa liberdade da criação artística que faz do
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roteirista um criador e não um simples “adaptador” subordinado à supremacia do texto de
partida.
Com o propósito de ser representando perante um público, o monólogo teatral explora
os sentimentos da personagem numa linguagem performativa que provoca o leitor. No texto
dramatúrgico, Getúlio fala consigo mesmo, mas já existe a expectativa de um futuro
espectador. Ao atentar-se para a teatralidade textual do romance Sargento Getúlio, Tavares
reúne no texto dramatúrgico um arcabouço que permite a representação cênica ao organizar os
trechos narrativos numa estrutura dramática. Em suas mãos Getúlio refaz-se numa sincronia
entre a composição textual e a dramaturgia.
No conflito de Getúlio está inscrito um conflito de um mundo com suas contradições
numa narrativa dramatúrgica entremeada por elementos performativos que evidenciam seu
potencial representativo. A escrita dramática focada em Getúlio apresenta uma dinâmica que
além de demonstrar suas angústias interiores evidenciam que a personagem está sujeita a uma
força maior. A morte de Amaro e a de Luzinete conduzem a narrativa para outro rumo.
A forma de constituição cênica do texto institui uma mescla entre o cômico e a
criticidade que entrecortam o monólogo. A partir de tais nuances, nota-se como o
dramatúrgico dispõe de elementos que conectam o texto à cena partindo de uma escrita
performativa. As palavras ubaldianas dispostas numa folha de papel ganham significação no
processo de leitura. Ao transportá-las para o palco, Gil Tavares incorpora outros recursos
expressivos a partir de sua releitura que é condicionada por suas experiências, pelo momento
histórico.
E, assim, torna-se perceptível a riqueza do fazer literário e do fazer teatral e,
especialmente, do diálogo entre ambos. É, pois, considerando o diálogo entre a literatura e o
teatro no decorrer da história que a arte redimensiona-se e demanda por uma nova concepção
e por novos conceitos. Dessa forma, é notável a sutileza entre os limites do texto romanesco e
do texto dramático, uma vez que ambos podem enriquecer-se mutuamente e promover a
flexibilidade das classificações estanques. E a análise desse percurso entre o romance
ubaldiano e a peça teatral de Gil Tavares legitima a maleabilidade que caracteriza o fazer
artístico. E, por meio dessa interação, literatura e teatro transitam pelo universo da arte de
forma a remodular os limites da imaginação oportunizando o alargamento do potencial
criativo.
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3 O CARÁTER LITERÁRIO DO TEXTO DRAMATÚRGICO E O CARÁTER
DRAMATÚRGICO DO ROMANCE
A partir da configuração de Sargento Getúlio como texto dramatúrgico considerando
seu recorte do romance homônimo cabe problematizar as similitudes entre os mesmos e
analisar quais aspectos os aproximam e os distanciam. O que faz o texto de Ubaldo ser
considerado romance e o de Gil Vicente Tavares assumir contornos de texto dramatúrgico?
Gil Tavares por meio do monólogo teatral conduz o texto do romance para a ação de
forma que o narrativo passa ao dramático. Se o objetivo do romance é a leitura, o
dramatúrgico aspira à encenação. No processo de leitura e exploração do romance, a técnica
do monólogo foi eleita por Gil Tavares como a forma que melhor levaria Getúlio ao palco. O
desenvolvimento do texto dramatúrgico é pensado objetivando a cena. A complexidade do
romance de Ubaldo Ribeiro é transposta para a fala de Getúlio no monólogo dramatúrgico. A
oralidade da narrativa romanesca mantém-se presente na fala de Getúlio que aspira a
vocalização.
Os pormenores do romance são comprimidos no texto de Tavares, mas a escrita de
Ubaldo mantém-se como fonte da dramaturgia apesar da narrativa não ter sido pensada sob tal
finalidade. Autor e dramaturgo confundem-se no processo de transposição do romance para a
dramaturgia. Para compreensão do romance enquanto forma cabe refletir sobre o surgimento
do mesmo e suas nuanças ao longo do tempo. Como gênero literário em prosa, o termo
romance foi usado apenas no século XVIII, com o declínio da epopeia e a ascensão do
romance com a industrialização. Os valores até então vigentes foram abalados e com o
advento da burguesia o romance assume uma formatação diferenciada.
Conforme Lukács (2009), a forma do romance é distinta da atuação da forma na
epopeia. Especificamente no romance moderno a ética funciona como componente
estruturante. O romance configura-se como o gênero literário flexível e capaz de incorporar
recursos diversos, desenvolvendo-se de forma significativa no século XIX. No decurso
histórico, o romance passa por profundas mudanças e assume formatos que atendem o público
de cada época de forma que não existe uma única definição que será capaz de abranger suas
metamorfoses ao longo dos séculos.
Desde suas origens, o romance incorporou estilos e formas variadas, como a retórica, a
epístola e versos das poéticas orais. A notória sensibilidade às mudanças históricas fez com
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que o gênero renovasse constantemente através dos séculos. Com dimensão e composição
flexíveis, são inúmeros os caminhos que o romance permite. E, agora, admite-se personagem
de todas as classes sociais, diferentemente da epopeia que apenas adotava personagens nobres
como protagonistas.
Ao contrário dos heróis míticos da epopeia, veem-se heróis comuns nos romances que
vivenciam conflitos condizentes com o período moderno. No caso de Sargento Getúlio, o
conflito do herói reside em seu descompasso em relação aos valores da modernidade. No
romance, o herói pertence ao domínio da perspectiva individual, ao contrário das narrativas
clássicas cujo herói conduzia uma coletividade.
O romance, dotado de elasticidade, move o ficcional e o real de forma que parte do
trabalho com a ficção e apresenta uma interpenetração no cotidiano mantendo ligações com o
contexto cultural, histórico e social. Segundo Robert, o romance “apropria-se de todas as
formas de expressão, explorando em benefício próprio todos os procedimentos sem nem
sequer ser solicitado a justificar seu emprego.” (ROBERT, 2007, p. 13).
A ascensão do romance deu-se a partir de causas diversas. No século XVIII, houve
uma expansão no processo de alfabetização alcançando diversas classes sociais na Europa,
que também contava com a profissionalização de escritores, o que contribui para o surgimento
de narrativas mais simples do que a formalidade clássica da epopeia e da tragédia. Segundo
Ian Watt (1990), até mesmo o preço reduzido das velas oportunizou a leitura dos romances
pela nova classe alfabetizada. Por considerar as infindas possibilidades de diálogo do romance
com outras formas, Robert o define como:
Gênero revolucionário e burguês, democrático por opção e animado por um
espírito totalitário que o leva a romper obstáculos e fronteiras, o romance é
livre, livre até o arbitrário e até o último grau da anarquia. Paradoxalmente,
todavia, essa liberdade sem contrapartida não deixa de lembrar muito a do
parasita, pois, por uma necessidade de sua natureza, ele vive ao mesmo
tempo na dependência das formas escritas e á custa das coisas reais cuja
verdade pretende “enunciar”. E esse duplo parasitismo, longe de restringir
suas possibilidades de ação, parece aumentar suas forças e ampliar ainda
mais seus limites. (ROBERT, 2007, p. 13).
O romance é o lugar das experiências narrativas. E, assim, o romance é moldado de
acordo com a dinâmica da contemporaneidade de maneira que sua forma pode ser
ultrapassada por recursos outros que exigem, a depender do momento histórico, uma nova
concepção para o gênero. Sua peculiaridade reside na subversão e na recriação da realidade e
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não na reprodução da mesma. Conforme Robert (2007), a literatura e a realidade dotaram o
romance de vantagens. A elasticidade do romance em abrigar formas diversas é uma das suas
peculiaridades:
nada o impede de utilizar para seus próprios fins a descrição, a narração, o
drama, o ensaio, o comentário, o monólogo, o discurso; nem de ser a seu bel-
prazer, sucessiva ou simultaneamente, fábula, história, apólogo, idílio,
crônica, conto, epopéia; nenhuma prescrição, nenhuma proibição vem limitá-
lo na escolha de um tema, um cenário, um tempo, um espaço; nada em
absoluto o obriga a observar o único interdito ao qual se submete em geral, o
que determina sua vocação prosaica: ele pode, se julgar necessário, conter
poemas ou simplesmente ser “poético”. (ROBERT, 2007, p. 13-4).
No caso de Sargento Getúlio, romance de João Ubaldo, ao abrigar o monólogo faz do
narrador o seu protagonista a partir do foco narrativo em primeira pessoa. Além de Getúlio,
outros personagens participam dos fatos: Amaro, o preso, Luzinete, Acrísio Antunes, Seu
Nestor. Estes são descritos por Getúlio a partir de seus aspectos físicos e psicológicos: Amaro
„frouxo por demasiado‟, o preso „cabrunquento‟, Antunes „do pecidê‟, Luzinete é „um diabo
duma mulher grande‟, Seu Nestor „parece de boa carne, com a cara seca e esturricada e os
olhos apertados‟. O enredo, nesta narrativa, obedece a lógica do pensamento de Getúlio que
relembra experiências e vivencia situações embaraçosas. E o tempo cronológico do romance
faz-se no presente, porém também explora o tempo psicológico, a partir das rememorações e
reflexões de Getúlio. A fusão dos tempos surge como o elemento aliado à forma romanesca.
Ao apresentar-se concretamente no romance abrangendo a reminiscência e a memória, o
tempo contribui para ampliar os atributos da personagem e possibilita a expressão do
transcurso da vida.
Ao assumir a encenação como finalidade, Gil Tavares empreende um trabalho de
adaptação do romance Sargento Getúlio que se inicia com a construção do texto
dramatúrgico. Os recortes do romance são encadeados de forma a possibilitar o desenrolar das
cenas considerando que o texto dramatúrgico é concebido para ser representado no palco. A
extensão narrativa do romance é abreviada no texto dramatúrgico de forma que o texto
literário de Ubaldo é conservado e apenas reorganizado. Dramaturgia e literatura
embaralham-se no processo adaptativo sedimentando uma composição singular.
A adaptação é fundamental para a cultura humana que se recria no recontar histórias.
A transmissão de histórias coincide com os primórdios da humanidade, uma vez que a própria
vida humana é explicada por narrativas sagradas que são propagadas por gerações. Segundo
![Page 61: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado](https://reader033.fdocumentos.com/reader033/viewer/2022052309/5c4dd83993f3c34c550bb726/html5/thumbnails/61.jpg)
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Linda Hutcheon (2013), as sociedades sempre apresentaram uma tendência em promover
adaptações interculturais, mesmo antes da globalização. Até mesmo as culturas que não
utilizavam o recurso da escrita, difundiam seus contos através de contadores
instrumentalizados pela memória e pela voz. Nessa transmissão, as histórias passavam por
profundas mudanças, devido às sínteses, ampliações, trocas que resultavam em adaptações.
Dessa maneira, a narrativa é um instrumento essencial para a sociabilidade humana e
compreensão do mundo. Desde a escrita rupestre até a constituição da narrativa e de outras
formas de expressão, o homem busca adaptar os seus pensamentos e experiências para a
dimensão artística. O que pode ser verificado desde o tratamento da obra de partida como
original e na obra derivada como cópia. É preciso atentar-se para o fato de que a adaptação é
resultado de um processo criativo com suas particularidades. A noção de intertextualidade
contribui para a superação da ideia de fidelidade. Dessa forma, a adaptação pode ser
concebida como tradução intersemiótica que se dá a partir de um processo dialógico. Gérard
Genette (1990) ao explorar as formas de transtextualidade destaca a hipertextualidade como
uma ação transformadora que possibilita as adaptações que são hipertextos derivados de
hipotextos.
Em Uma teoria da adaptação, Linda Hutcheon (2013) analisa o funcionamento do
processo adaptativo a partir de exemplos práticos e diversos, tendo como intuito
problematizar a visão depreciativa que o envolve. A estudiosa ressalta que as adaptações são
vistas de forma pejorativa e vários são os termos utilizados para a sua caracterização:
secundárias, derivativas, inferiores, deformação, infidelidade, dentre outros. A autora
problematiza a classificação das adaptações como secundárias e derivadas, ocupando no
campo da crítica uma posição de subordinação e inferioridade ao texto de partida. Ressalta
que se trata de um tratamento pejorativo do processo de adaptação considerando que a
fidelidade não deve ser um critério de análise das adaptações.
No processo de adaptação, o estudo da estrutura narrativa é fundamental. Para tanto,
McFarlane (McFARLANE apud HUTCHEON, 2013) propõe um método de análise da
adaptação considerando os elementos mais passíveis de transposição e ressaltando os que
exigem o poder criativo do tradutor. Nessa perspectiva, o processo adaptativo abrange a
tradução dos elementos transferíveis para outro suporte, como também aqueles que são
criados.
A relação entre o texto de partida e o texto reinventado é declarada de forma que os
mantêm conectados intertextualmente. Sendo assim, a adaptação vai além de uma simples
![Page 62: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado](https://reader033.fdocumentos.com/reader033/viewer/2022052309/5c4dd83993f3c34c550bb726/html5/thumbnails/62.jpg)
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imitação ao atualizar a narrativa do texto de partida, reinventando-a com um potencial
criativo. Nesse sentido, o processo de transposição de um texto ao outro resulta numa
atualização artística que engloba os aspectos temporais e espaciais.
No campo do teatro brasileiro, incontáveis adaptações foram encenadas no país. Assim
como Gil Vicente Tavares são muitos os dramaturgos que optam pela transposição quase que
integral de textos literários para a arte dramática. É o caso de Aderbal Freire Filho, diretor
cearense, que realizou a transposição dos seguintes romances para o teatro denominando a
técnica como “romance-em-cena”: A mulher carioca aos 22 anos, de João de Minas, O que
diz Molero, de Dinis Machado, e O púcaro búlgaro, de Campos de Carvalho:
Quando faço um romance sem adaptação – o que chamei de romance-em-
cena: A mulher carioca, O que diz Molero e O púcaro búlgaro – não faço
qualquer adaptação literária (de narrativa a drama), o que me obriga a
construção de uma dramaturgia na cena, a uma profundíssima adaptação
cênica desses romances originais. Um ponto de partida é pedir aos atores que
atuem em primeira pessoa, mesmo falando em terceira pessoa. Ou seja:
usando originalmente o texto narrativo, dou a ele uma forma dramática. E
então trato de buscar essa síntese na encenação, o que me leva a "escrever"
na cena a adaptação: a dramaturgia. Tudo fica claro desde que se entenda
que não separo texto e cena, que quando falo em forma dramática não estou
falando só de literatura dramática, mas do conjunto idealmente inseparável
texto-cena. (FREIRE apud ESTEBAN, 2013).
Juarez Dias (2010), a respeito do espetáculo Levantado do Chão, adaptação do
romance de José Saramago, ressalta o processo situado entre o escrito e o vir a ser encenado.
Problematizando a noção de fidelidade ao usar o texto original, Aderbal (FREIRE apud
RAMOS, 2006) defende a não-adaptação do texto de forma que sejam trabalhadas as
potencialidades teatrais da literatura. Posteriormente, o diretor passa a considerar a técnica
“romance-em-cena” como uma adaptação absoluta em que são realizados cortes no romance
de forma a revelar sua dramaturgia.
A partir das escolhas de Gil Vicente Tavares, cabe analisar o que faz com que os
trechos literários de Ubaldo convertam-se em um texto dramatúrgico. Para tanto, este estudo
centra-se na conversão do texto romanesco em um texto dramatúrgico optando por não
analisar o espetáculo cênico, pautando-se na Teoria das Adaptações de Linda Hutcheon.
Investiga-se a materialização do processo adaptativo que recria o romance em um texto
dramático e altera sua finalidade primária, considerando que o primeiro tem por fim a leitura e
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o segundo a fonte para a encenação. A finalidade do texto é suficiente para defini-lo como
literário ou dramatúrgico? Quais são as interfaces entre um gênero e outro?
A estrutura e o objetivo do texto conduzem o texto de Ubaldo para ser considerado
romance ao passo que define o de Tavares como um texto dramatúrgico. Portanto, a
adaptação ao formato específico da peça teatral através da realização de cortes profundos do
romance faz com que o texto de Tavares assuma a encenação como finalidade precípua. Gil
Vicente Tavares acomoda parte do texto de Ubaldo em outro suporte capaz de transformá-lo
numa transposição criativa. No caso de Sargento Getúlio, texto dramatúrgico, cabe analisar
quais foram as escolhas e as exclusões realizadas a partir do romance homônimo. É
importante verificar as estratégias pelas quais Gil Vicente Tavares reorganiza sua releitura,
analisando as fronteiras entre a reprodução e a criação e quais fatores regularam tal
transposição.
3.1 INTERFACES DOS SARGENTOS GETÚLIOS
No processo adaptativo do romance para o texto dramatúrgico Sargento Getúlio foi
feito um recorte de trechos literários que foram reorganizados numa disposição distinta. Cabe
analisar quais aspectos fizeram o texto assumir uma configuração de texto dramatúrgico, ao
considerar que a maior parte dos trechos foi mantida sem qualquer alteração. Seria o texto de
Ubaldo carregado de um significativo potencial dramático? O romance Sargento Getúlio é
estruturado sob a forma de um monólogo – técnica que implica uma fala que narra e um
interlocutor. O teatro também pode adotar o monólogo para ser representado, de forma que a
personagem, conversando consigo própria, dirige-se ao público expressando suas reflexões e
emoções.
O texto dramatúrgico não apresenta elementos secundários, tais como as marcações
cênicas com a indicação dos personagens antecedendo cada fala, informações sobre o cenário
e figurino, a movimentação da personagem no palco, a gestualidade e entonação. Com relação
à estrutura, o texto apresenta a divisão em prólogo, interlúdios, cenas e epílogo. Como o
enredo do romance acontece na trajetória de Paulo Afonso a Barra dos Coqueiros, a própria
representação no espaço teatral seria facilitada pelo fato de não explorar ambientes diversos.
Além disso, o próprio tempo do monólogo contribui por acontecer no tempo presente e
permitir uma brevidade diante do palco.
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O texto dramatúrgico tem o objetivo de ser transposto para o palco, onde a ação será
encenada. A essência da ação é o conflito que no caso de Sargento Getúlio é representado
pelo embate entre levar ou não o preso. Assim como no romance, o texto dramatúrgico conta
uma história, porém disposta de forma diferenciada. O discurso direto empregado no romance
também aproximou o literário dos moldes do dramatúrgico. Assim como o Getúlio do
romance conversa com o leitor por meio de um discurso direto, o Getúlio do dramatúrgico
também estará mais próximo do público ao ser conduzido aos palcos sem a necessidade de
intermediação de um narrador que é dispensado no texto teatral.
Desse modo, é perceptível como a escrita contemporânea é tomada por uma
hibridização que a torna cada vez mais complexa. Seja enquanto literatura, seja enquanto
dramaturgia, a textualidade presente em Sargento Getúlio é dotada de um encadeamento de
estilos e de linguagens que amplia os critérios tradicionais de categorização da arte.
A Sociedade Brasileira dos Autores Teatrais – SBAT, responsável pela regulação de
processos legais de adaptação teatral, entende qualquer forma de suavizar a adaptação de
forma que possibilite o não recolhimento de direitos autorais como uma maneira de
transgredir a lei (BRASIL, 1998). Nessa perspectiva, a adaptação configura-se como derivada
e subordinada à obra de partida. A partir desse entendimento, o dramaturgo teria uma
liberdade regulada por processos legais de forma que seu ato criativo possa estar
condicionado a diversos fatores externos. Sendo assim, autores de obras derivadas teriam um
grau de liberdade menor que autores de obras inéditas? A autoria está condicionada a uma
espécie de gradação adaptativa considerando a forma em que foi utilizado o texto de partida,
que pode ser uma simples inspiração até o uso de trechos completos.
De uma forma geral, o processo de diálogo interartístico exige que o novo autor
explore alguns elementos, como as questões da linguagem e do contexto histórico e
sociocultural. E são, justamente, tais fatores que fazem o novo texto não ser uma réplica do
texto de partida. É um trabalho de equivalências, apropriações e reestruturações.
O romance Sargento Getúlio apresenta elementos que possibilitam sua transcriação
para outros universos artísticos como se Ubaldo já visualizasse no monólogo um potencial de
conversão. E o monólogo, por sua vez, é bastante representativo da escrita contemporânea.
Primeiramente, por possibilitar a exploração da subjetividade conflituosa da personagem
diante das mudanças históricas; segundo, por propiciar a construção de um enredo intenso,
mas com uma economia de personagens e de espaços. Configura-se como uma espécie de
minimalismo centrado em uma única personagem que ecoa as demais vozes discursivas e que
![Page 65: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado](https://reader033.fdocumentos.com/reader033/viewer/2022052309/5c4dd83993f3c34c550bb726/html5/thumbnails/65.jpg)
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situa o tempo e o espaço. Conforme Hutcheon, o teatro e o romance são reconhecidos como
“formas nas quais o homem é o assunto central. O desenvolvimento psicológico (e, assim, a
empatia do receptor) é parte do círculo narrativo e dramático quando os personagens são o
foco das adaptações.” (HUTCHEON, 2013, p. 33-4).
O romance é repleto de símbolos que bem servem à criação do texto dramático,
explorando de tal forma a linguagem e seu potencial que impulsiona o literário para além de
suas fronteiras. Primeiramente, destaca-se que Sargento Getúlio é puramente ação. Ação do
narrador que fala. Ação da personagem que faz e acontece. Linguagem literária e
dramatúrgica mesclam-se por meio da ação narrativa que é conduzida com enorme
intensidade dramática. Por meio de um estilo que explora a descrição de acontecimentos por
meio do monólogo, elabora uma técnica centrada no discurso da personagem.
Getúlio anuncia-se na tessitura narrativa como se estivesse no centro de um palco. Ele
é o núcleo e para ele convergem todos os olhares. E o discurso ininterrupto da personagem
impede que qualquer intervenção interrompa o seu contar causos. O leitor emerge no
pensamento de Getúlio como se fosse um espectador tomado por sua encenação. O próprio
enigma do desfecho da história fica a cargo do leitor decifrar. Por meio de um estilo
minucioso, a narrativa segue a fragmentação do pensamento de Getúlio que por diversas
vezes salta de um assunto ao outro de forma abrupta. E a sequência narrativa molda-se como
flashes que revelam a elevação e o declínio do seu narrador-personagem.
A narrativa obedece a forma agreste do seu falar. A aparente incompetência do
narrador de relatar os fatos, por não ser dotado de uma linguagem rebuscada, faz o seu
monólogo adquirir um estilo peculiar: mais do que ler, o leitor é capaz de ouvir sua voz. Ao
acompanhar sua história, o leitor se depara com efeitos de linguagens que concedem à
narrativa uma singular vocalidade que intensifica a representação. Vocalidade esta que é
aproveitada no texto dramatúrgico por meio da constância das falas, tal como no romance.
Como se João Ubaldo adotasse uma forma de narrar dramatúrgica e Gil Vicente Tavares
abraçasse o literário como um script.
Getúlio inventa sua realidade e narra a si mesmo, transformando o seu dizer em um
autorretrato para o leitor. É um eu que busca abarcar momentos de seu percurso no mundo,
recapitulando cenas e revela-se desmoronado diante da morte de seu companheiro Amaro e de
sua Luzinete. A partir da morte de ambos, o dragão Getúlio desfaz-se. A virilidade e a
coragem do protagonista são construídas a partir da fraqueza e covardia de Amaro e da vida
![Page 66: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado](https://reader033.fdocumentos.com/reader033/viewer/2022052309/5c4dd83993f3c34c550bb726/html5/thumbnails/66.jpg)
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mansa de Luzinete. Sem Amaro e sem Luzinete, Getúlio vê-se acuado e demonstra uma
confusão mental e um comportamento delirante.
O monólogo de Getúlio é a paulatina construção e desconstrução da personagem. E
isso se mantém no texto dramatúrgico. Entre escolhas e complementações, os adaptadores de
textos derivados, primeiramente, são leitores para depois assumirem o papel de criadores ao
se debruçarem no processo de construção do texto dramatúrgico. Situado entre a obra de
referência e o espetáculo, qual o estatuto do texto dramatúrgico? É como se o mesmo
ocupasse um entre-lugar de tal forma que sempre é tratado como um processo e não como
produto:
Conforme meu exemplo até aqui sugere, contar uma história, como em
romances, contos e até mesmo relatos históricos, é descrever, explicar,
resumir, expandir; o narrador tem um ponto de vista e grande poder para
viajar pelo tempo e espaço, e às vezes até mesmo para se aventurar dentro
das mentes dos personagens. Mostrar uma história, como em filmes, balés,
peças de rádio e teatro, musicais e óperas, envolve uma performance direta,
auditiva e geralmente visual, experienciada em tempo real. (HUTCHEON,
2013, p. 35).
O texto dramatúrgico Sargento Getúlio elege como prólogo o trecho do capítulo I do
romance de Ubaldo em que o narrador tece reflexões sobre a morte de forma que explora uma
descrição que transparece ao leitor uma sensação de estar ofegante, com a repetição da
conjunção “e”:
se revira e range os dentes e levanta a cabeça e puxa o ar e busca conversa e
espia os lados e fica retado porque todo mundo não está indo com ele e
arroxeia os beiços e faz que se senta e se esfrega em tudo e se baba e se bate
dos lados e olha duro para as pessoas e dá gofadas e fica com pena dele
mesmo e estica as pernas e se treme todo e faz cara de medo e se destorce e
faz barulhos e se bufa e se borra e grita e pensa naquilo que nunca fez e pede
a Deus nas alturas e chuta o vento e estica a roupa e incha o peito e no fim
faz uma força e revira os olhos de modo medonho e dá um arranque para
cima e vai embora no seu caminho, que o dia de nós todos vem. (RIBEIRO,
2008, p. 24).
Em seguida, inicia a Cena I na qual Getúlio descreve o momento em que sua mulher
estava grávida, trecho que corresponde ao capítulo II do romance. No início, nota-se um uso
reiterado do advérbio “quando”: “Eu alisava a barriga, quando tinha tempo, quando vinha um
sossego, quando quentava, quando deitava, quando estava neblina, quando aquietava.”
(RIBEIRO, 2008, p. 40), o que concede à narrativa um padrão rítmico. E prossegue a trama
![Page 67: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado](https://reader033.fdocumentos.com/reader033/viewer/2022052309/5c4dd83993f3c34c550bb726/html5/thumbnails/67.jpg)
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com a cena trágica em que mata a mulher que havia o traído. O desfecho da cena é
entrecortado com o aboio: “Ai, ai, ai, ai, aaaaaaaaaaai um boi de barro, um boi de barro,
aaaaaai, ai, ai, ai, mãe” (RIBEIRO, 2008, p. 42), no qual a presença da voz ressoa. O trabalho
ficcional com a voz assume o centro da narrativa, interligando ações a um eixo performático
ao aproximar-se da reprodução dos aboios.
O primeiro interlúdio que entrecorta as cenas refere-se a um dos trechos do capítulo I
em que o narrador dirige-se ao companheiro Amaro, mas o mesmo não responde o que
provoca um ar de comicidade ao tempo em que a peça faz-se a partir de um monólogo:
Ôi Amaro, uh-uh Amaro, ô seu peste, quando um homem fala tu responde.
Um dia desses com essa macriação algum macho lhe tira-lhe o fato fora, que
tu só vai ter tempo de espiar as tripas, rezar meia salverrainha, um quarto de
atodecontição e escolher o melhor lugar no barro para se ajeitar, e ligeiro
ligeiro, que possa ser que antes de chegar já tenha ido. Ôi Amaro, inda mais
que tu é frouxo por demasiado. Vosmecê sabe, esse apustemado é de
Muribeca. Povo de Muribeca não presta, tudo tabaréu, lá não tem nada, não
sabe vosmecê. Amaro, ou você fala ou eu me ferro. An-bem. Hum. Chu.
(RIBEIRO, 2008, p. 11-12).
Amaro é aquele que se coloca a ouvir. Essa forma peculiar de estruturação narrativa
possibilita que a leitura esteja conectada a uma voz que se põe a contar. Getúlio expõe-se
como voz e demanda uma escuta. Amaro é sua escuta e por meio deste o narrador põe-se a
contar ininterruptamente. E por meio do silêncio e ausência de julgamentos de Amaro
evidencia-se um espaço de escuta para o contador de histórias. Getúlio é a voz. Amaro é a
escuta.
A cena II corresponde a um dos trechos do capítulo IV em que narra o momento em
que estavam na fazenda de Nestor e deparam-se com a chegada do tenente Amâncio e então
se inicia o embate entre Getúlio e o tenente. Em tal cena, fica evidente a descrição que
termina por enaltecer a valentia do sargento:
E então arrastei ele para dentro da porteira. Uma visita, uma visita, Seu
Nestor, uma visita de cara torta
pois ô de casa
abre essa porta
tem uma visita
de cara torta
e fui assim cantando baixo e com ele arrastando pelo cabelo e cheguei na
porteira e com o mesmo punhal que ele estava riscando o ar, com aquele
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mesmo punhal que ele estava ciscando, passei no pescoço, de frente para
trás, sendo mais fácil do que eu tinha por mim antes de experimentar, com
aquele mesmo punhal que ele estava na cintura e depois na esgrima e me
chamando de corno, cortei o pescoço, foi bastante mesmo mais fácil do que
eu pensei antes e por dentro tinha mais coisa também do que eu pensei, uma
porção de nervos, só o osso de trás que demorou um pouco, mas achei um
buraco no meio de dois, escritinho uma rabada de boi, e aí foi fácil,
atravessando ligeiro o tutano e encerrando, a cavalaria de Deus pela justiça,
corno é a mãe, teve sangue como quatro torneiras, numa distância mais do
que se pode acreditar, logo se esgotando-se e diminuindo e pronto final.
(RIBEIRO, 2008, p. 78-79).
Por meio de cantigas, a personagem mostra o seu universo regional entrecruzando os
signos locais. Apesar dos excessos de valentia da personagem, comporta-se como uma figura
cômica pela forma que exprime sua ação desmedida. O herói desmedido arrisca-se entre a
tragicidade do destino representada pela ameaça da morte e o reconhecimento de seus feitos.
No interlúdio II, elegeu-se a narração sobre Luzinete que corresponde ao capítulo VI
do romance. Em tal fragmento, Getúlio devaneia sobre o cangaço para o qual seria o seu
destino com um chapéu de estrelas prateadas e passaria a chamar-se Dragão Manjaléu.
Getúlio almejava o brilhantismo do cangaço, com sua veste imponente simbolizada pelo
chapéu com estrela. O perfil de Getúlio bem se assemelha ao dos cangaceiros que apesar dos
crimes que cometiam seus adornos simbólicos os colocavam numa dimensão mística.
Assume, posteriormente, para a sua interlocutora Luzinete que seria mesmo era
deputado, uma vez que não precisa de nenhum pré-requisito. Nota-se como o enredo é
entremeado por uma crítica política por meio de um discurso irônico. Ainda na mesma cena,
Getúlio percebe-se “parado como um peixe junto das pedras dum riacho”, enquanto “tem uma
porção de gente se mexendo”. Frente às mudanças da sociedade, a personagem sente-se
empacada e resiste a enfrentar o novo destino. Ao final da cena, Getúlio fantasia como seria
lembrado após a morte:
e quando eu morresse, avô de todos, pai direto ou por tabela, me enterravam
ali e botavam em riba uma cruz com o Senhor crucificado e quem passasse
ia dizer: aquela cruz é do finado, se não se benzer ele ainda vem e lhe pega.
A machidão toda aí, era Garanhão Santos Bezerra, Malvadeza Santos
Bezerra, Abusado Santos Bezerra, Tombatudo Santos Bezerra, Comegente
Santos Bezerra, Enrabador Santos Bezerra, Rombaquirica Santos Bezerra,
Sangrador Santos Bezerra, Vencecavalo Santos Bezerra, todo mundo.
(RIBEIRO, 2008, p. 128).
![Page 69: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado](https://reader033.fdocumentos.com/reader033/viewer/2022052309/5c4dd83993f3c34c550bb726/html5/thumbnails/69.jpg)
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O trecho acima é carregado de comicidade que faz com que a sobrepujança da
brutalidade de Getúlio seja tomada por um tom risível. Dessa forma, a personagem suaviza a
sua carga de crueldade e potencializa o seu discurso com um efeito dramático. Na cena III, o
texto dramatúrgico retrocede ao capítulo IV e leva para a trama o encontro de Getúlio com o
padre de Japoatã. O sargento refere-se ao padre com um tom de comicidade:
O padre eu não conhecia. Só de nome, e quando vi, pensei que não fosse
padre, pensei que fosse um avariado maluco, fazendo de padre. Ou
manifestado, pode sempre estar. Ele fala depressa e grosso, não se entende
quase. Mas se sabe por que se chama o Padre de Aço da Cara Vermelha,
porque demonstra a dureza e porque tem uma marca vermelha trespassada
pela cara, a cuja marca vermelha fica mais vermelha agora, menas vermelha
indagora e assim vai, conforme. (RIBEIRO, 2008, p. 63).
A forma como Getúlio reporta-se ao padre revela como a religiosidade é alvejada
ironicamente pelo autor. Ao reconhecer no padre a figura de um “avariado maluco”, desmonta
a instituição por meio de um tom irreverente. E a cena continua com o padre afirmando que
Getúlio deveria cortar a cabeça mesmo do tenente por ter chamado o sargento de corno. Nota-
se como a inversão de valores está imbricada na narrativa de forma que até mesmo o padre
adota uma postura inesperada. Além disso, a cena é incrementada com a descrição hiperbólica
de Getúlio:
Corro, berro, atiro melhor e sangro melhor e bebo melhor e luto melhor e
brigo melhor e bato melhor e tenho quatorze balas no corpo e corto cabeça e
mato qualquer coisa e ninguém me mata. E não tenho medo de alma, não
tenho medo de papafigo, não tenho medo de lobisomem, não tenho medo de
escuridão, não tenho medo de inferno, não tenho medo de zorra de peste
nenhuma. (RIBEIRO, 2008, p. 87).
O interlúdio III corresponde ao capítulo VI do romance, episódio em que Amaro conta
histórias de trancoso de cunho cômico. Na região Nordeste do Brasil, as narrativas populares
transmitidas pela tradição oral são conhecidas como histórias de Trancoso e algumas delas são
exploradas no texto dramatúrgico. E o imaginário popular envolve o enredo e enriquece a
tessitura textual na medida em que se embebe com as dúvidas e angústias existenciais do
homem interiorano em contraposição a um mundo que não lhe pertence e a tradição é
redimensionada para além das fronteiras locais.
Na cena IV, narra-se a morte de Amaro durante o combate com as forças do governo,
momento em que Getúlio percebe que “essa vida é uma bosta”. E, ao ser desafiado por
![Page 70: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado](https://reader033.fdocumentos.com/reader033/viewer/2022052309/5c4dd83993f3c34c550bb726/html5/thumbnails/70.jpg)
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Luzinete a acabar logo com o bando e seguir com a missão, Getúlio não mais se considera
como o invencível e afirma: “só se eu fosse um avião. Só se eu fosse um elefante.”
(RIBEIRO, 2008, p. 140). Com a morte do companheiro Amaro, Getúlio inicia seu processo
de desmoronamento de sua invencibilidade.
No interlúdio IV, em continuidade ao capítulo VII, Getúlio anuncia a morte de
Luzinete que “agora é a lua” e afirma que: “se eu fosse tirar vingança, não tinha tantos que eu
matasse que pudesse descontar Amaro nem meus filhos, nem a cara de Luzinete avoando
pelas nuvens e virando lua e eu aqui de baixo com cinza na cara e chorando lama.”
(RIBEIRO, 2008, p. 144). Nesse momento, o que restava de brutalidade no comportamento de
Getúlio é definitivamente desmontado com a morte de Luzinete. Assim como no romance, Gil
Vicente Tavares reconhece os episódios das mortes de Amaro e Luzinete importantes para a
condução da narrativa e entendimento que o declínio do protagonista estava associado a tais
acontecimentos.
No epílogo, Gil Vicente Tavares reporta-se ao capítulo VIII o qual coincide com o
desfecho do romance. Cena que carrega em si um enorme potencial de dramaticidade a partir
da evidência do delírio de Getúlio quando se vê diante da morte. Da força imbatível ao
delírio, percebe-se que Getúlio não é capaz de existir sozinho, pois precisa sustentar-se na
fraqueza de Amaro e na calmaria de Luzinete.
Na adaptação há uma intertextualidade explícita com a outra obra que é determinada
no processo de produção e de recepção. A opção pela homonímia evidencia a relação
declarada entre as obras e aponta para a fidelidade como um dos critérios que direcionou o
processo adaptativo. É o caso de Sargento Getúlio enquanto texto dramatúrgico que apresenta
recortes originais do romance homônimo. Para Merker (2012), “a adaptação de um romance
para cena nunca é inocente e é sempre produtora de sentido novo. Ou seja: o palco não dita –
o palco liberta.”.
Os recortes são expressivos para o ato cênico. Porém, percebe-se uma narrativa, em
seu aspecto material, que não apresenta didascálias e indicações cênicas distinguindo-se da
padronização dos textos dramáticos, assim como não dispõe também do nome da personagem
antecedendo à sua fala. Apresenta-se, porém, a divisão das cenas e as interrupções com os
interlúdios, além do prólogo e epílogo.
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3.2 VERSÕES DO REGIONALISMO PARA JOÃO UBALDO E GIL VICENTE
TAVARES
Em Sargento Getúlio, tanto no romance quanto na peça, o regionalismo é
presentificado na linguagem, na tematização e na própria estrutura formal. Getúlio assume a
voz discursiva e detém o domínio da narrativa. Na movência pela geografia ficcional, a
personagem constrói sua narrativa e ao tecer a imagem de um Nordeste arcaico, tematiza as
relações de poder e deflagra o ambiente de hostilidade do sertão.
No entanto, João Ubaldo contribui para a recriação do regionalismo nordestino ao
construir um monólogo que se distancia do formato da narrativa tradicional. Ao enveredar
pelo sertão a partir da voz do narrador-personagem, o leitor é capaz de visualizar os
problemas regionais mesclados ao tom intimista. Portanto, nesta perspectiva, cabe analisar os
depoimentos de João Ubaldo e Gil Vicente Tavares em que os autores não assumem os tons
regionais em Sargento Getúlio, romance e drama, respectivamente:
A comparação da prosa de João Ubaldo Ribeiro em Sargento Getúlio com a
de Guimarães Rosa, no entanto, não confere com depoimentos do próprio
escritor. Em entrevista aos Cadernos de Literatura Brasileira, ele nega a
afirmação do jornalista de que Sargento Getúlio representaria uma
experiência literária próxima à narrativa de tons regionais. “Noutras
palavras”, continua a pergunta, “o sr redigiu Sargento Getúlio sob a sombra
de Graciliano Ramos e, principalmente, Guimarães Rosa?” “Não”, diz ele. E
só volta ao assunto um pouco mais à frente, novamente refutando uma
suposta aproximação com Rosa no que diz respeito ao uso de neologismos
que reforcem o aspecto oralizado da narrativa: “Na verdade, eu invento
poucas palavras; eu deturpo muito, isso sim. Existem palavras no livro (...)
que eu nem sabia que conhecia – elas emergiram na hora em que eu estava
escrevendo o romance. Eu às vezes até me assustava”, diz. (OLIVEIRA,
2006, p. 54).
Gil Vicente Tavares afirma que:
O grupo Teatro Nu adapta um romance do baiano João Ubaldo Ribeiro,
Sargento Getúlio na forma de um monólogo. “Proibi o diretor musical de
colocar rabeca, zabumba, coro e sertão no meio”, brinca o diretor Gil
Vicente Tavares, que conversou com a reportagem. Quando leu o livro – de
uma sentada – o diretor imaginou o momento da execução de uma pessoa,
quando toda a vida passa diante de seus olhos. “Esse sertão imaginário, que
está na moda, já cansou como imagem e não me interessa. A cultura popular
foi recriada por todos os grandes artistas, mas quando se joga o folclore na
frente, a gente esquece tudo o que pode estar por trás”, explica. (CARNIERI,
2014).
![Page 72: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado](https://reader033.fdocumentos.com/reader033/viewer/2022052309/5c4dd83993f3c34c550bb726/html5/thumbnails/72.jpg)
71
Os depoimentos de João Ubaldo e Gil Vicente demonstram o quanto a literatura, assim
como a arte em geral, evidencia a maneira pela qual o regionalismo é tratado como inferior,
associado ao atraso e ao rudimentar. No campo literário, constitui-se fundamentalmente da
prática das descrições do ambiente e das questões locais à qual está ligado historicamente no
intuito de recriar a literatura brasileira com suas particularidades estéticas e culturais.
Apesar da constância da temática regional na literatura brasileira, há uma disposição
da crítica, na contemporaneidade, de desconsiderar a perspectiva regionalista. Conforme
Durval de Albuquerque, “o regional para o intelectual regionalista era um desfilar de
elementos raros, pinçados como relíquias em via de extinção diante do progresso”
(ALBUQUERQUE, 2011, p. 65).
Antonio Candido (1987) ressalta que o fenômeno regionalista dinamizou a literatura,
considerando que passou por mudanças, mas sua perspectiva ainda persiste. O autor o divide
em: pitoresco, crítico e superregionalismo. É na década de 1950 que emerge o
superregionalismo a partir da reinvenção da linguagem com Guimarães Rosa com a proposta
de unir o regional ao universal. Característica esta que se nota na narrativa de João Ubaldo ao
tematizar o choque entre a modernidade e o arcaico a partir da diluição das marcas locais.
O universal é alcançado a partir do redimensionamento das particularidades locais
para deflagrar a problemática existencial do homem interiorano em contraposição a um
mundo que não lhe pertence. Sargento Getúlio representa as mudanças sociais que se
sucederam em meados do século XX, na passagem de um contexto agrário para o urbano. E o
narrador, por sua vez, protagoniza o regional na luta contra o inelutável. Vê-se, portanto, o
encontro entre o urbano e o sertão. Assim, diante da modernização o comportamento de
Getúlio evidencia como a personagem encontra-se desajustada num mundo que passa por
mudanças para as quais manifesta uma repulsa.
O regionalismo possui nuances no campo literário de forma que não cabe uma única
definição que seja capaz de contemplar sua abrangência. No decurso histórico, os escritores
brasileiros dividiram-se entre a universalidade da arte e a realidade local. Inicialmente, havia
uma disparidade entre a linguagem do narrador e a linguagem das personagens de forma que
uma sobrepunha-se a outra. Isto favoreceu para que o regionalismo como vertente literária
fosse tratado como inferior. Se antes a perspectiva regionalista estava associada ao atraso e ao
pitoresco, agora estes traços superam-se e são lançados para uma dimensão universal. O
regionalismo prossegue no campo literário a partir do embate entre o local e o universal. Ao
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superar o exótico, o sentimentalismo e o realismo social, o fenômeno é condicionado a atingir
a universalidade regional.
Em Sargento Getúlio, ao contrário, narrador e personagem fundem-se numa
linguagem una e representativa da região. Assim, se em determinadas obras nota-se um
regionalismo representado pelas personagens, em outras o próprio narrador expressa a
linguagem regional. Getúlio representa a recusa ao progresso, manifestando em seu
comportamento a dicotomia de um mundo que passa a desvendar um embate entre o velho e o
novo. A degradação humana representada pela personagem revela-se não como uma
decorrência de seu destino individual, mas, sobretudo revela as tensões pelas quais passaram
toda uma coletividade.
O regionalismo em Sargento Getúlio constitui-se não a partir da tematização da
pobreza e da marginalidade, mas da tradição regional, com suas crenças, costumes,
expressões e vivacidade. A partir do tensionamento de um momento histórico marcado pelo
choque entre a modernização e a tradição, tal dicotomia deflagra os desajustes de uma
modernização tardia. Assim, evidencia-se uma tendência do literário de expressar a oralidade
de um povo que resiste através do próprio falar às mudanças. E os próprios conflitos que se
exteriorizam por meio da violência representam um mundo caótico e contraditório.
No que tange à linguagem, as obras regionalistas no âmbito da literatura brasileira, na
maior parte das vezes, têm registrado o uso da norma culta, seja pelo narrador, seja pelas
personagens. Isso porque ao tentar aproximar-se da linguagem regional, tais obras não se
conformavam no padrão estético literário vigente. Alguns autores ousaram na busca por
reproduzir a linguagem regional, exigindo novos parâmetros de literariedade ao texto. É o
caso de Guimarães Rosa, como também de João Ubaldo, que ao reinventarem a escrita
literária demonstram como o regionalismo é um recurso dinâmico que ao relacionar-se com o
local acompanha as mudanças socioculturais e faz-se continuamente atual.
É preciso reconhecer o regionalismo como um fenômeno para além das fronteiras
classificatórias que tem suas particularidades, continuidades e mudanças. Em Sargento
Getúlio, vê-se uma narrativa que explora a composição de estilo, assim como evidencia uma
das faces da história brasileira. Ao evocar dialetos e crenças específicas de uma região,
Ubaldo reconstrói artisticamente o local de forma que passa a assumir dimensões universais.
A partir da caracterização do ambiente e das singularidades culturais, Ubaldo constitui
esteticamente uma das partes do país.
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73
O regionalismo enquanto manifestação literária tem sido bastante problematizado pela
crítica. Conforme Durval de Albuquerque (2011), ao criticar o regionalismo a “História
Regional” questiona somente alguns recortes regionais no intuito de buscar o verdadeiro. De
uma forma geral, é considerado retrógrado e com poucos atributos artísticos.
A expressão “regionalismo” tem sido utilizada para denominar fenômenos diferentes
no Brasil. Em fins do século XIX, Sílvio Romero (1949) utiliza o termo “sertanejismo”
associando-o a um realismo voltado para o homem simples do campo com o objetivo de
assegurar o nacionalismo no campo literário. No início do século XX, José Veríssimo (1969)
emprega o termo “regionalismo” para caracterizar os romances que descreveram
poeticamente o contexto sertanejo.
A partir dessas discussões, instaurou-se um enquadramento binário para o fenômeno
regionalista, ao passo que o regional passa a ser equivalente a local, rural e inconciliável com
o universal e urbano. O modernismo contribuiu para a associação do regionalismo como
produto do subdesenvolvimento do Brasil. E, assim, intensifica-se o julgamento pela crítica
como se o mesmo tratasse de um fenômeno literário incipiente por amparar-se na cultura
popular. Com o passar dos anos, o regionalismo é explorado na literatura nacional mostrando-
se como um recurso vivaz e mutável. No decorrer dos anos, a escrita regionalista vem
assumindo novas roupagens que superam a escrita pitoresca e o artificialismo linguístico.
Segundo Bueno Camargo (2006) são diversos os aspectos do romance de 30 disseminados
pela cultura brasileira.
O regionalismo emerge ao longo do processo de afirmação nacional, perpassando a
crítica social e alcança, por exemplo, a subjetividade do sertanejo. Ao debruçar-se sobre a
perspectiva regionalista e suas nuances no transcorrer do tempo, Antonio Candido (1987)
estabelece uma relação com o subdesenvolvimento ressaltando o caráter descritivista do
regionalismo em suas manifestações iniciais. O autor ao apresentar a fase do
superregionalismo destaca que é perceptível a suplantação do localismo e a pretensão do
universal. Na intersecção entre as singularidades regionais e os conflitos humanos a ficção
assume contornos distintos.
Ligia Chiappini (1994) parte de uma noção de regionalismo vinculada aos contextos
sociais demonstrando os desajustes do homem diante da lógica do capital e do seu
consequente processo desenvolvimentista. Segundo a autora, o regionalismo busca na tradição
os elementos que contrapõem o homem do interior ao progresso e ao desenvolvimento.
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74
Juliana Santini (2011) ressalta que alguns autores do século XX não são contemplados
pela classificação da literatura regionalista de Antonio Candido e, por isso, é necessário um
revisionismo histórico da ficção regionalista no Brasil assim como dos critérios de avaliação
da crítica. A autora destaca que o regionalismo, geralmente associado ao subdesenvolvimento,
foi enquadrado no pensamento de que a produção de Guimarães Rosa, caracterizada como
superregionalista, marcou a impossibilidade de representação do local:
Mais de cinquenta anos depois de sua sistematização, o paradigma de análise
desenhado por Antonio Candido desdobra-se em sua própria escrita e ecoa
em letras outras, impondo as certezas – e também os hiatos e as
ambiguidades – como ponto de pauta para a exegese contemporânea, queira
ela ou não aceitar a relação orgânica de nossas letras com o
subdesenvolvimento. (SANTINI, 2011, p. 84).
De todo modo, a reverberação da tendência regional na produção contemporânea é
evidente. A literatura nacional é constituída pelos recortes regionais que formam a diversidade
e heterogeneidade do todo. Por meio de um pano de fundo da descrição física, cultural e
social, o regionalismo mostra sua face. Apesar das delimitações do espaço e do tempo, o
regionalismo a partir de sua ficcionalidade ressignifica suas fronteiras e atinge o íntimo do
homem do sertão. Nessa tarefa, Ubaldo constrói sua personagem como uma extensão da
brutalidade do sertão que evidencia em algumas passagens o desejo de permanência de seu
universo arcaico.
Em Sargento Getúlio, a secura está na linguagem e no próprio estilo adotado pelo
autor. Se antes o homem rude era envolto por uma aura pitoresca, agora a personagem
defronta-se diante da ameaça de desintegração do seu mundo. E ao caminhar para o desfecho
da narrativa, evidencia-se o declínio desastroso do retrocesso. Getúlio representa a incultura e
o anacronismo em contraposição ao cosmopolitismo. Nota-se a combinação do pitoresco e da
consciência crítica na composição de um novo regionalismo. Segundo Antonio Candido, na
fase do superregionalismo tem-se uma consciência do subdesenvolvimento. É visível em
Sargento Getúlio, o estranhamento na aproximação entre a modernização e o mundo rural. A
partir da exploração da linguagem regional e da tematização do universo agreste, a narrativa
ganha contornos de um documento histórico e sociológico.
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75
3.3 OS GETÚLIOS NO MUNDO E OS MUNDOS DE GETÚLIO: IMAGINÁRIO DOS
ARCAÍSMOS
Entre o campo e a cidade e no interstício entre o arcaico e o moderno, Getúlio
constrói-se e decompõe-se. Inicia-se com uma força brutal e invencível que, aos poucos, entra
em declínio. A linguagem local é consagrada como um símbolo da representação. Em
Sargento Getúlio, os arcaísmos manifestam-se na linguagem, no estilo e como traço
comportamental da personagem protagonista, de forma que representam um processo de
mudança em que se percebe uma tensão entre a continuidade e a descontinuidade do passado.
Em Sargento Getúlio nota-se uma estrutura formalmente distinta. A trajetória à qual
conduz o narrador-personagem conduz o leitor pela tradição sertaneja e constrói a imagem de
si próprio como o protótipo do arcaico. E no decorrer da viagem, percebe-se uma oscilação no
perfil do protagonista que perpassa pela figura do herói ao trágico. E entre a cidade e o sertão,
Getúlio impõe-se na representatividade das singularidades regionais e teme por sua
decadência. O regional faz-se presente no falar, na religiosidade, nas crenças e costumes.
O sargento que representa o Estado no início da narrativa passa a ser alvo do governo
ao caminhar-se para o desfecho. A recusa às mudanças faz com que Getúlio, o herói do sertão
nas vestes de homem do governo, seja alvejado. Getúlio e sua força brutal são desmoronados
por uma contraordem. Getúlio constrói sua autoimagem numa narrativa envolvente que abusa
da virtuosidade do homem do sertão. Sob o ponto de vista do narrador, o leitor é conduzido
por uma linguagem que constrói e desconstrói a figura do sargento. Toda a narrativa é
construída por meio da fala da personagem, que parece seguir sem nenhuma pausa, o que faz
com que Ubaldo contribua para uma revitalização da forma e estilo literários. Além disso, a
fala de Getúlio é bastante representativa da variação regional da língua característica do falar
do sergipano da década de 1950.
Em se tratando de aspectos linguísticos, o uso de arcaísmos denota uma marca
passadista que persiste numa não mudança e isso é determinante no comportamento de
Getúlio. O arcaísmo é o uso de expressões que não são mais usadas pela coletividade ou que
são mais raras num determinado momento histórico. Na obra de João Ubaldo podem ser
localizadas diversas expressões arcaicas de uso regional por serem mais conservadoras. Como
exemplos de arcaísmos linguísticos, é possível citar os seguintes exemplos:
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76
ALEMBRAR (LEMBRAR) “Isso eles não se alembram de contar.” (RIBEIRO, 2008, p.
21).
ASSOPRAR (SOPRAR) “Alípio queria falar mas não podia, só assoprava com
descontrole de vento.” (RIBEIRO, 2008, p. 15).
CÁ (AQUI) “Esse cá que Amaro vai pegar de jeito deve de ter tirado
carta de valente lá, e vem aqui.” (RIBEIRO, 2008, p. 133).
DE COMER (COMIDA) “Lampião andava com uma colher de prata no embornal.
Todo de comer enfiava colher.” (RIBEIRO, 2008, p. 13).
DONDE (ONDE) “Donde se vê que a sede da fala também é parte na
bochecha.” (RIBEIRO, 2008, p. 15).
RIBA (CIMA) “Veio força armada da Bahia, botaram cachorro,
escondemos o menino e se dispomos por baixo dos oitizeiros
da praça, pela riba do palanque, em cima da piçarra.”
(RIBEIRO, 2008, p. 20).
No início da narrativa, nos deparamos com a expressão “gota serena”, que é uma
expressão utilizada popularmente no Nordeste para referir-se a um estado de fúria e
nervosismo. É recorrente também no discurso de Getúlio o uso de construções como “se
tranforma-se” demarcando os traços de oralidade do narrador.
Getúlio faz referência ao povo de Muribeca que segundo o protagonista não presta. Na
Bahia, circula a Lenda de Muribeca que aponta para a possibilidade de uma cidade perdida
que possui ouro e pedras preciosas. Segundo Aguiar (1979), um português chamado Diogo
Álvares, o Caramuru, havia sobrevivido a um naufrágio no Brasil, no século XVI, e recebeu
ajuda dos índios Tupis-Guaranis. Um dos filhos do português com uma índia recebeu o nome
de Muribeca, que em viagem com os índios Tapuias descobriu um lugar rico em ouro e pedras
preciosas que passaram a ser vendidos no porto de Salvador. Além das lendas e contos
regionais, a narrativa é entremeada por expressões utilizadas em Sergipe:
APUSSO contra a vontade
ABESTALHADO imbecil, tolo
ABILOLADO doido, maluco
AGARRAR grudar
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77
AGONIA aflito, amargurado, angustiado, apressado
APERREADO aborrecido, ansioso, apressado, chateado
APOIS concordância
ARRE denota alívio ou espanto
ARRODEAR andar ao redor
AVEXADO apressado
BEXIGUENTO imprestável
CABRUNCO palavrão ofensivo
CABRUNQUENTO coisa ou pessoa ruim
OXENTE espanto ou surpresa
DA BEXIGA em intensidade
DA PESTE muito bom ou muito ruim
ESTUPOR BALAIO 1. Infarto. Morte. Paralisia repentina. 2. Pessoa feia. 3. Expressão
usada quando a pessoa se irrita com algum objeto ou alguma
situação.
FUMBAMBENTO desbotado
PORRETA bacana, maravilhosa, legal
SE FAZER Fingir
ZORRA admiração
E a percepção passadista não se restringe à linguagem, mas também ao nível
comportamental. É evidente o contraste entre os elementos arcaicos e a modernidade. A partir
do literário que materializa a recriação de um mundo, outro mundo é reinventado a partir da
reestruturação da linguagem.
Com a demarcação de elementos arcaizantes no romance e no texto dramatúrgico
Sargento Getúlio, cabe problematizar o uso dos arcaísmos como recurso artístico. O emprego
na literatura de termos arcaicos relaciona-se com o modo pelo qual o autor e o leitor os
concebem. A partir dessa relação dinâmica entre o texto, o autor e o leitor, os arcaísmos
emergem com um enorme potencial significativo. João Ubaldo explora uma linguagem e um
estilo que perpassam o regional e recria o mundo a partir da plurissignificação do literário. A
bravura de Getúlio também é refletida pela natureza imponente do sertão. Sertão brabo, sertão
que arde e que se traduz num inferno. O arranjo estrutural de Sargento Getúlio dá-se por uma
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78
narração em forma de monólogo, que assume um ritmo acelerado de forma que João Ubaldo
supera em termos estilísticos outros autores que também tematizaram o sertão.
A linguagem em sua dimensão dupla que parte das particularidades locais para
evidenciar o conflito existencial de seu portador: o narrador-personagem. A linguagem,
alargada ao âmbito universal, que é representacional, mas incursiona-se pela realidade e
evidencia Getúlio em sua complexidade na sua trilha de identidades perdidas. O trabalho
linguístico, que não é meramente reprodução, faz-se a partir da reinvenção. Conforme José
Hildebrando Dacanal, Sargento Getúlio “apareceu com lugar já definido dentro da literatura
brasileira. A obra de João Ubaldo Ribeiro, criação poética a cuja grandeza ninguém pode
deixar de curvar-se, integra, sem dúvida, o ciclo da nova narrativa épica” (DACANAL, 1988,
p. 90).
João Ubaldo considera que a literatura de abrangência universal alcança maiores
êxitos (OLIVEIRA, 2006). O autor assume não gostar de ser questionado sobre influências
literárias e considera-se um ignorante em ficção. Sobre as influências, Ubaldo Ribeiro afirma
que quando escreveu Sargento Getúlio não havia lido Guimarães Rosa, apesar da crítica
estabelecer comparações entre os autores. Admite que a linguagem aproxima-se por referir-se
ao sertão, porém não vê similaridades entre os estilos. Ainda afirma que ao escrever a
narrativa perguntava para sua mãe o que se comia em Sergipe, onde morou com a família. A
sua fonte de pesquisa de linguagem, segundo o escritor, ocorreu no âmbito familiar.
O início da narrativa já prenuncia o perfil do protagonista que se comporta como uma
gota que não é fixa e mora no mundo andando. O monólogo Sargento Getúlio faz com que o
leitor veja o mundo sob a perspectiva do narrador-personagem que faz da sua fala um estilo
próprio de escrever literariamente. Getúlio não afirma o nome do preso em nenhum momento
em sua fala. O seu apego à palavra dada faz da sua contrariedade às novas ordens a luta pela
manutenção do universo sertanejo com seus costumes e valores. As relações de poder se
engendram em meio a um mundo conservador e suas mutações. Entre o passado e a
modernidade, Getúlio entra em crise.
O pai de João Ubaldo, Manoel Ribeiro era líder do PSD, foi Secretário de Segurança e
governou o Estado temporariamente. De certa forma, o ficcional embebe-se das experiências
e memórias do contexto histórico que o autor vivenciou. As relações de poder são bem
demarcadas na fala de Getúlio: “Mesmo agora que eu perdi a autoridade, sempre fica o
prestígio. Em Aracaju tenho as costas quentes e não é assim que Getúlio vai se ver de uma
hora para outra.” (RIBEIRO, 2008, p. 12-13).
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O monólogo é estruturado a partir da ordem e da contraordem. Sob a primeira pessoa
do foco narrativo, configura-se a personagem protagonista em um „eu‟ que é formado pelo
binômio narrador-personagem que tece o romance. Não existem contornos entre o narrador e
Getúlio. É a voz de Getúlio que narra. Através da missão de contar do narrador, percorre-se a
missão da personagem Getúlio em sua trajetória. E, nesse percurso, emerge-se uma
personagem complexa, com múltiplas personalidades e discurso variável. Seu monólogo é
interpenetrado por vozes que se dirigem aos seus interlocutores, mas também que expressa o
seu pensamento e sua fala solitária. Getúlio conta no presente e a narrativa encerra-se com a
sua morte. Apesar desta não estar implícita, mas é suposta pela fala do protagonista que vai
esvanecendo. O romance é constituído pela fala da personagem que não concede um ponto
final à narrativa.
Paulatinamente, Getúlio defronta-se com os novos rumos do mundo e demarca seu
território a partir do fazer. E, este fazer, constitui num impasse que se torna o centro do
monólogo. A determinação de levar o preso é uma afirmação da identidade de Getúlio e de
seus valores ancorada na renúncia às mudanças. Entre histórias e figuras da infância de
Ubaldo, o monólogo intensifica-se como marco documental de um contexto e de uma época
de forma envolvente e poética.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
As obras de arte têm ressonância em todo o social.
Elas são máquinas de produção de sentido e de
significados. Elas funcionam proliferando o real,
ultrapassando sua naturalização. São produtoras de
uma dada sensibilidade e instauradoras de uma
dada forma de ver e dizer a realidade. São
máquinas históricas de saber. (Albuquerque Júnior,
2011).
O romance não mais se reveste unicamente das formas e linguagens dos séculos
antecedentes, mas reconstrói-se a partir de novos recursos. Por meio do trabalho com a
palavra o gênero exprime nuanças da coletividade humana que através da leitura serão
partilhadas e reinterpretadas. No círculo entre destino e sujeito a personagem romanesca
demonstra o seu drama e faz-se signo de vícios e virtudes bem exploradas no texto
dramatúrgico.
Sargento Getúlio, de João Ubaldo Ribeiro, expôs a emergência de um sertão por meio
de um monólogo que atravessa as fronteiras romanescas e alcança as potencialidades do
dramatúrgico, fazendo com que os contornos do campo literário tornem-se indefinidos. Na
travessia entre o romance e o texto dramatúrgico Sargento Getúlio notam-se aspectos
intercambiantes entre a literatura e a dramaturgia de forma que evidencia como a arte é dotada
de possibilidades. Por meio da leitura literária, o texto é ressignificado e desponta para outro
viés artístico. O regionalismo e aspectos da linguagem são algumas das marcas do romance
que são revitalizadas no texto dramatúrgico.
Por meio da exploração do imaginário social e da construção de subjetividades do
homem no ambiente hostil do sertão, Sargento Getúlio evidencia a criação do Nordeste de
João Ubaldo que é reverberado na dramaturgia demonstrando seus predicados culturais e
simbólicos. No processo adaptativo da literatura à dramaturgia, estereótipos e crendices do
espaço regional são inventariados na circularidade da narrativa que é imbuída da polaridade
entre o arcaico e o moderno. A partir da perspectiva das relações de poder, o narrador-
personagem impõe-se diante de um contexto vitimizado pelas forças políticas e traça sua
trajetória de perdas e estranhamentos.
Mais do que explorar o binarismo entre o atraso e o progresso, João Ubaldo expõe
tematicamente e linguisticamente a subjetividade da personagem no trânsito entre
identificação e desidentificação, entre o reconhecimento e o desajuste. A opção pelo
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81
monólogo ajustou-se ao intento do autor ao trazer para a narrativa a perspectiva do olhar de
dentro e do espaço psíquico.
Getúlio representa o contraponto ao discurso da modernidade e do progresso. Entre o
coronelismo e o falar regional vê-se a problematização da estereotipia arraigada na
representação do Nordeste materializada na subjetividade do protagonista. A fala de Getúlio
desenrola-se no sentido de demonstrar a sustentação das relações de poder. Conforme
Albuquerque, as variadas formas de expressão “como a literatura, o cinema, a música, a
pintura, o teatro, a produção acadêmica, o são como ações, práticas inseparáveis de uma
instituição. Estas linguagens não apenas representam o real, mas instituem reais.”
(ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011, p. 34).
Ao tematizar sobre o Nordeste, a literatura e a dramaturgia contribuem para a
(des)construção de realidades. É a narrativa da sensibilidade do homem diante do contexto da
modernidade. Não é o homem do sertão que busca o progresso do Sul. Ao contrário, é o
impacto do homem diante da consciência de que o progresso ameaça o seu lugar.
O olhar de estranhamento do homem perante a modernização configura uma dimensão
subjetiva do sujeito. Vê-se a retratação do sertão enquanto instância emocional embutida na
fala da personagem que se desmonta gradativamente na trajetória que o leva para o
dilaceramento existencial. Sob o estigma da violência, o banditismo do sertão atravessa a
narrativa do romance e protagoniza no texto dramatúrgico Sargento Getúlio. Os símbolos de
poder de Getúlio são suplantados por forças dominantes. Apesar de reagir à iminência de
dissolução de seu mundo, Getúlio reconhece sua derrota e demonstra sua fragilidade.
O drama de Getúlio mantém o elo entre a literatura e a dramaturgia. A subjetividade
da personagem deflagra sua imponência, como também sua tragicidade, permite a exploração
das potencialidades da narrativa de Ubaldo pela arte dramatúrgica. Da perspectiva
modernizante e industrializante do Estado em contraponto às tradições locais, Sargento
Getúlio adentra-se no colapso dos códigos culturais demarcado na fala do narrador-
personagem.
Na reação ao moderno, Getúlio faz-se rústico e forte evidenciando uma personagem
simbólica que enfrenta conflitos e adversidades na fixação de seu modo de ser. Ao representar
os valores de seu contexto regional, Getúlio materializa em sua figura um repertório
imagético, enunciativo e expressivo que funcionam como a matéria-prima literária e
dramatúrgica.
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João Ubaldo e Gil Vicente Tavares vão além das dicotomias entre o arcaico e o
moderno ao focalizarem o impacto desse encontro na subjetividade do homem do sertão. A
partir da perspectiva de Getúlio, o leitor é tomado pelo drama e conflitos internos que
perpassam o contexto de disputa regional. Tanto a literatura e a dramaturgia apostam no
potencial da personagem em instituir imagens regionais e embebem-se da incapacidade do
mesmo em assimilar o novo mundo. O heroísmo de Getúlio é arrebatado e anuncia a
decadência de seu mundo de coragem e bravura. O monólogo que inicia exaltando o seu nome
evidencia um desfecho trágico, compondo uma figura com contornos complexos e múltiplos.
A partir da estratégia do monólogo centrado na voz do narrador Ubaldo explora a
força criativa da linguagem, atentando para a potencialidade do conteúdo e, sobretudo, da
forma. Em Sargento Getúlio, o poder da palavra que anuncia o estabelecimento de um novo
mundo transita entre o literário e o dramatúrgico demonstrando a decomposição existencial do
homem do sertão com suas dúvidas e problemas. Do diálogo entre a literatura e o teatro,
evidencia-se a flexibilidade entre as fronteiras artísticas numa representação que contempla o
popular, o heroico e a aridez humana como contraponto e repulsa das contradições do mundo
moderno.
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APÊNDICE – Quadro comparativo entre o romance Sargento Getúlio, de João Ubaldo
Ribeiro, e o texto dramatúrgico homônimo de Gil Vicente Tavares
ROMANCE TEXTO
DRAMATÚRGICO
CAPÍTULO I
“Quem nunca viu não sabe o que é [...] A hora de cada um é a hora
de cada um.” (RIBEIRO, 2008, p. 24).
PRÓLOGO
CAPÍTULO II
“Ela estava de barriga na ocasião [...] E no outro dia podiam me ver
dançando uma jornada de chegança, nós que semos marinheiros
dentro dessa anau de guerra por isso que puxemos ferro olelê
largamos a grande vela.” (RIBEIRO, 2008, p. 40-41).
“Ai, ai, ai, ai, aaaaaaaaaai um boi de barro, um boi de barro,
aaaaaaai, ai, ai, ai, mãe” (RIBEIRO, 2008, p. 42).
“ai, um boi de barro, um boi de muito barro que eu comia, todas as
cores, um dia eu morro e a laranjeira murcha, ai, mãe, um boi de
barro. Meto um dedo no ouvido bem de leve, e devagarzinho vou
sacudindo, vou sacudindo, e solto um aboio alto pelos ares. Mas
ninguém escuta, não tem boiada, o meu aboio é oco. Nunca fui
vaqueiro. Mas mesmo assim solto um aboio bem alto e o dedo quase
arranca a orelha e olho o chão e fico triste.” (RIBEIRO, 2008, p. 42).
CENA 1
CAPÍTULO I
“Ôi Amaro, uh-uh, Amaro, ô seu peste, quando um homem fala tu
responde [...] Vosmecê sabe, esse apustemado é de Muribeca. Povo
de Muribeca não presta, tudo tabaréu, lá não tem nada, não sabe
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vosmecê. Amaro, ou você fala ou eu me ferro. An-bem. Hum. Chu.”
(RIBEIRO, 2008, p. 11-12).
CAPÍTULO IV
“Nunca pensei que ia degolar o tenente, pelo menos nunca pensei
assim no claro, quer dizer, nunca disse: Getúlio, vamos cortar a
moléstia da cabeça do tenente [...] Donde que o homem esguincha
sangue mais longe do que pode cuspir.” (RIBEIRO, 2008, p. 73-79).
CENA 2
CAPÍTULO VI
“Pois é Luzinete, olhando assim pela janela, podia ficar aqui. Mas
tem horas que se pode ficar, horas que não se admite.” (RIBEIRO,
2008, p. 125).
“Assim não pode, não quero. Me diga-me, vamos para o cangaço?
Eu sei que não tem cangaço, mas se tivesse você ia? Não ia, você é
mulher que gosta mais de um filho no bucho e de um homem na
cama e de morte morrida [...] Se tivesse cangaço, eu ia para o
cangaço, com um chapéu de estrelas prateadas e ia me chamar
Dragão Manjaléu e ia falar pouco e fazer muito.” (RIBEIRO, 2008,
p. 125-126).
“Luzinete, eu vou ser é deputado e vou fumar uns charutos. Amaro
pode guiar meu carro, que eu deixo. Pra ser deputado não é preciso
nada. Se eu fosse deputado, você ia, não ia? Pra ficar toda lorde, e
aprendia a falar difícil, não aprendia?” (RIBEIRO, 2008, p. 126-
127).
“Numa hora como essa, a gente pensa que o mundo pára. Mas não
pára nada, se sabe. Tem uma porção de gente se mexendo, e eu aqui
no meio, paradão. Mas parado como um peixe junto das pedras dum
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riacho, que se você quiser mexer perto ele dá uma rabanada e some.
Porque é assim que eu sou.” (RIBEIRO, 2008, p. 127-128).
“Então eu podia morrer de velho, não podia? Podia. Podia ficar aqui
e todo ano lhe emprenhar certo para vir um filho em janeiro, que é
princípios do ano e acerta mais [...] A machidão toda aí, era
Garanhão Santos Bezerra, Malvadeza Santos Bezerra, Abusado
Santos Bezerra, Tombatudo Santos Bezerra, Comegente Santos
Bezerra, Enrabador Santos Bezerra, Rombaquirica Santos Bezerra,
Sangrador Santos Bezerra, Vencecavalo Santos Bezerra, todo
mundo. Tu bem que ia gostar disso, eu acho. (RIBEIRO, 2008, p.
128).
CAPÍTULO IV
“Nem nunca pude pensar que Amaro soubesse essas rezas, nem
muito menos que esse padre de Japoatã fosse botar os três ajoelhados
e rezando [...] Sabia que a gente estávamos chegando e que era
forçado abrigar” (RIBEIRO, 2008, p. 63).
“e havia um nervoso, porque a hora não era de molequeira, com um
tenente defunto e degolado e mais uma porção de cabras no tiroteio e
um sarseiro completo na fazenda de seu Nestor e isso tudo ele
devendo de saber e de braço cruzado [...] Não que parece um ano;
parece um dia, que o ano passa depressa, mas o dia passa devagar.”
(RIBEIRO, 2008, p. 64).
“- É isso mesmo. Tem muitas cabeças nesse mundo de meu Deus [...]
Quem some é os outros, a gente nunca. Bom, isso é, diz o padre.”
(RIBEIRO, 2008, p. 85-86).
“olhe sargento, o problema é que foi um engano, sargento, um
engano que foi mandar o senhor buscar o homem em Paulo Afonso,
CENA 3
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agora temos complicação [...] O senhor tem a minha palavra de
honra.” (RIBEIRO, 2008, p. 99-100).
“Se for assim mesmo como se diz que é, espero as outras ordens,
porque essa está dada e nem ele que viesse aqui e me pedisse para
não levar eu não deixava de não levar, porque possa ser que ele
esteja somente querendo me livrar de encrenca e eu não tenho medo
de encrenca, eu levo esse lixo de qualquer jeito, chego lá e entrego
[...] e no sertão daqui não tem ninguém mais brabo do que eu, todas
as coisas eu sou melhor.” (RIBEIRO, 2008, p. 87).
“Corro, berro, atiro melhor e sangro melhor e bebo melhor e luto
melhor e brigo melhor [...] não tenho medo de inferno, não tenho
medo de zorra de peste nenhuma.” (RIBEIRO, 2008, p. 87).
“Sou curado de cobra e passo fome, passo frio e passo qualquer coisa
e não pio e se me cortarem eu não pio [...]e chegando lá apresento
ele: veio de Paulo Afonso até aqui” (RIBEIRO, 2008, p. 88).
“e se cortei a cabeça do tenente, foi bem cortada. Mas não vou dizer
a todo mundo que eu cortei a cabeça do tenente [...] E se ninguém
quiser ir comigo, eu vou só, aviu Amaro? E, disse o padre, eu não
sou esses machos todo.” (RIBEIRO, 2008, p. 88)
CAPÍTULO VI
“...e de noite Amaro conta histórias de trancoso, depois que a gente
amarremos o bicho bem amarrado e demos água a ele e ficamos lá
[...] Como é, Amaro, quem ensinou essa cantiga ao macaco, e a gente
cantamos o tempo todo, quando a gente não temos mesmo o que
fazer e damos muitas risadas e depois paramos e voltamos de novo,
até que paramos de dar risadas e ai só fica umas espremidazinhas: ai,
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ai. Ui, ui.” (RIBEIRO, 2008, p. 107).
CAPÍTULO VII
“Fisdaputa, devem ter pedido campo na cidade toda para me pegar
como tresmalhada, só que não vão pegar, vão pegar a mãe, eu não
vão pegar.” (RIBEIRO, 2008, p. 132-133).
“Antes, ele estava bem, aliás estava ótimo, porque aprendeu a
manejar bem a arma, que não é fácil [...] Esse cá que Amaro vai
pegar de jeito deve de ter tirado carta de valente lá, e vem aqui.”
(RIBEIRO, 2008, p. 133).
“Pois eu estava de olho na janela, descansando a arma para atirar nos
peitos de um que vinha de banda e eu queria atirar resvelado nas
costelas dele e aí a arma de Amaro parou de papocar [...] até que eu
vi que era a última desencostada que ele dava na vida, eu espiei de
banda e vi os olhos de Amaro. (RIBEIRO, 2008, p. 133).
“Pois então, quando eu vi os olhos de Amaro parados e ele olhando
para lugar nenhum, com o braço pendurado no prego, eu vi que ele
tinha sido matado e no começo não senti nada [...] Ali tem uma ruma
de homem e se eu for lá, antes de eu poder dizer uai, eles dão conta
de mim certinho e aí quem vai levar esse bexiguento para Aracaju,
você com certeza é que não vai.” (RIBEIRO, 2008, p. 139).
“Tem umas bombas aí, disse Luzinete, tem umas bombas aí, do
homem que vivia amancebado com minha irmã e que trabalhou
numa pedreira. Ques bombas? Umas bombas, disse ela, que parece
um rolo cada e que vem num molho dumas cinco, acende e joga. E
separando todas pode jogar umas cinco vezes, meia dúzia, que abre
caminho ali e não sobra nada. São umas bombas ótimas.” (RIBEIRO,
2008, p. 141).
CENA 4
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CAPÍTULO VII
“Sabe vosmecê que minha mulher agora é a lua? Ficou lua quando
explodiu com as bombas e os cabra que estavam lá são uns belzebus
e vão viver debaixo do chão até que eu queira e eu sempre vou
querer.” (RIBEIRO, 2008, p. 143).
“Quando eu gritei que se ouviu em todo Estado de Sergipe, desde lá
no São Francisco até no Estado da Bahia, de bandinha por bandinha,
foi por causo de Amaro que eu gritei, que era meu irmão. Luzinete é
a lua, mas Amaro? Não é nada.” (RIBEIRO, 2008, p. 143).
“Nem vi quando ele tomou o tiro, estava vigiando a sua laia. Vá
marchando, vá marchando, quero marchando. Nós vamos marchando
até chegar na beira do rio, que nós possa ser que vamos de canoa,
vosmecê remando e eu com pose, é assim que nós vamos. Diga:
louvado seja nosso Senhor Amaro, para sempre seja louvado tão bom
Senhor Amaro.” (RIBEIRO, 2008, p. 144).
“Está vendo aquilo brilhando no escuro, peste? Aquilo brilhando
meio azul, aquilo se chama-se uma planta por nome cunanã, que é
como uns cipós [...] Mas não faço isso, lhe levo para Aracaju e lá não
sei. Luzinete subiu com as bombas, nada deve ser achado dela, no
meio da pedra e do barro. Sastifatório, isso?” (RIBEIRO, 2008, p.
141-142).
“Agora me digo: como pode ter outra coisa que não eu lhe levar para
Aracaju e depois, depois não sei? Porque, se eu fosse tirar vingança,
não tinha tantos que eu matasse que pudesse descontar Amaro nem
meus filhos, nem a cara de Luzinete avoando pelas nuvens e virando
lua e eu daqui de baixo com cinza na cara e chorando lama.”
(RIBEIRO, 2008, p. 144).
INTERLÚDIO 4
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CAPÍTULO VIII
“Tinha minha missão, isso tinha. E fiz. Tinha minha vida, isso
também, e vivi, e se me perguntasse quer viver uma vida comprida
amofinado ou quer viver uma vida curta de macho, o que era que eu
respondia? Eu respondia: quero viver uma vida curta de macho,
sendo eu e mais eu e respeitado nesse mundo e quando eu morresse
alembrem de mim assim: morreu o Dragão [...] balas e como meu
dedo longe e o lhelá Ara eu vejocaju e a àguacor rendode vagar e sal
gadaela éboa nun cavoumor renun caeusoueu, aium boi de barro,
aiumboi aiumboide barroaê aê aê aiumgara jauchei de barro e vidaeu
sou eu e vou e quem foi ai mi nhalaran jeiramur chaai ei eu vou e
cumpro e faço e” (RIBEIRO, 2008, p. 160-163).
EPÍLOGO
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ANEXO – Texto dramatúrgico Sargento Getúlio, de Gil Vicente Tavares
Sargento Getúlio João Ubaldo Ribeiro/Gil Vicente Tavares ©
SARGENTO GETÚLIO
PRÓLOGO
Quem nunca viu não sabe o que é. Tem quem diga que a morte é calma. Tem quem diga que
dá até paz, como num descanso. Só se for depois, porque na hora o sofrente arregala as vistas
e se segura no que achar, como quem se segura na vida. E se revira e range os dentes e levanta
a cabeça e puxa o ar e busca conversa e espia os lados e fica retado porque todo mundo não
está indo com ele e arroxeia os beiços e faz que se senta e esfrega em tudo e se baba e se bate
dos lados e olha duro para as pessoas e dá gofadas e fica com pena dele mesmo e estica as
pernas e se treme todo e faz cara de medo e se destorce e faz barulhos e se bufa e se borra e
grita e pensa naquilo que nunca fez e pede a deus nas alturas e chuta o vento e estica a roupa e
incha o peito e no fim faz uma força e revira os olhos de modo medonho e dá um arranque
para cima e vai embora no seu caminho que o dia de nós todos vem. A hora de cada um é a
hora de cada um.
CENA 1
Ela estava de barriga na ocasião. Eu alisava a barriga, quando tinha tempo, quando vinha um
sossego, quando quentava, quando deitava, quando estava neblina, quando aquietava. Parecia
um cachorro, ficava ali, os olhos gazos miúdos me assuntando. O barrigão me trazia
sastifação, já se adevinhava bem ali e o embigo bem que já saia um pouco para fora e se podia
sentir passando a mão. Pois ficava alisando de um lado para o outro, numa banzeira, pensando
no bicho lá dentro. Quando matei, nem pensei mais em matar. Matei sem raiva. Pensei que
não, antes da hora, pensei que ia com muita raiva, mas não fui. Cheguei, olhei, ela deitada
assim e ainda perguntou: que é que tem? Ela sabia, não sabia só disso, tinha certeza que não
adiantava fugir, porque eu ia atrás. A dor de corno, uma dor funda na caixa, uma coisa tirando
a força de dentro. Nem sei. Uma mulher não é como um homem. O homem vai lá e se
![Page 98: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado](https://reader033.fdocumentos.com/reader033/viewer/2022052309/5c4dd83993f3c34c550bb726/html5/thumbnails/98.jpg)
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despeja. A mulher recebe o caldo de outro. Que fica lá dentro, se mistura com ela. Então não é
a mesma mulher. E também tem que se abrir. E quando se abre assim, se escanchela e mostra
tudo, qual é o segredo que tem? A mulher que viu dois é diferente da mulher que só um viu,
porque tem de abrir as pernas, mostrar até lá dentro. Não é a mesma mulher. Isso pensei em
dizer a ela, cheguei a abrir a boca. No natural, não falo com quem atiro, é um despropósito. Já
se viu, por exemplo, matar um porco e dizer a ele que ele vai morrer por isso e por aquilo
outro. Nada, é a faca. Quem se mata não se conversa. Mas ela eu quis dizer, porque, na hora
que primeiro bati os pés nos tijolos da sala aberta, vinha com dor. Chegando, passou a dor,
não acertei com a fala. Uns olhos gazos tão parados e o cabelo escorrido de banda e a cabeça
também de lado, me olhando. Que é que tem? Ela sabia. Quando viu meu braço atrás das
costas, tirou as vistas. Quis falar de novo. Eu podia dizer, mas tive medo de conversar. Se
quer fazer uma coisa, não converse. Se não quer, converse. Eu tinha de fazer. Não gostava de
pensar que ia atravessar a rua com o povo me olhando: lá vai o dos galhos. Isso eu podia dizer
a ela. Mas não disse nada e, na hora que enfiei o ferro, fechei os olhos. Nem gemeu. Caiu lá
com a mão na barriga. Fui embora logo, nunca mais botei os pés lá, moro no mundo. Melhor
morar andando, agora. Luzinete, ela me diz: me emprenhe. Não deixo mulher enxertada nesse
mundo, não tenho como. Matado aquele filho, morreu o resto que podia vir. Ora, cipó do
mato, arrenego de diabo de penca comigo, arreia. Fico assim no mundo. A mulher do homem
é ele mesmo, tirante as de quando em vez, uma coisa ou outra, somente para aliviar, uma
descarga havendo precisão. Minha mulher sou eu e meu filho sou eu e eu sou eu. E assim. E
no outro dia podiam me ver dançando uma jornada de chegança, nós que semos marinheiros
dentro dessa anau de guerra porisso que puxemos ferro olelê largamos a grande vela. Ai, ai,
ai, ai, aaaaaaaaaai um boi de barro, um boi de barro, aaaaaaai, ai, ai, ai, mãe, ai, um boi de
barro, um boi de muito barro que eu comia, todas as cores, um dia eu morro e a laranjeira
murcha, ai, mãe, um boi de barro. Meto um dedo no ouvido bem de leve, e devagarzinho vou
sacudindo, vou sacudindo, e solto um aboio alto pelos ares. Mas ninguém escuta, não tem
boiada, o meu aboio é oco. Nunca fui vaqueiro. Mas mesmo assim solto um aboio bem alto e
o dedo quase arranca a orelha e olho o chão e fico triste.
INTERLÚDIO I
Ôi Amaro, uh-uh, Amaro, ô seu peste, quando um homem fala tu responde. Um dia desses,
com essa macriação algum macho lhe tira-lhe o fato fora, que tu só vai ter tempo de espiar as
tripa, rezar meia salverrainha, um quarto de atodecontição e escolher o melhor lugar no barro
![Page 99: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado](https://reader033.fdocumentos.com/reader033/viewer/2022052309/5c4dd83993f3c34c550bb726/html5/thumbnails/99.jpg)
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para se ajeitar, e ligeiro ligeiro, que possa ser que antes de chegar já tenha ido. Ôi Amaro,
inda mais que tu é frouxo por demasiado. Vosmecê sabe, esse apustemado é de Muribeca.
Povo de Muribeca não presta, tudo tabaréu, lá não tem nada, não sabe vosmecê. Amaro, ou
você fala ou eu me ferro. An-bem. Hum. Chu.
CENA 2
Nunca pensei que ia degolar o tenente, pelo menos nunca pensei assim no claro, quer dizer,
nunca disse: Getúlio, vamos cortar a moléstia da cabeça do tenente. Até só vi que era tenente
depois de perto, mas vi mais que era mais cabra safado do que qualquer outra coisa. A gente
estava desencostado um pouco pelali, todo mundo pensando numa coisa um cadinho
diferente, com o olho na estrada. Nessas horas, fica um silêncio, o ar fica duro mais ou menos.
De longe um matinho, parecendo uns bancos de macambira, tudo muito quieto, só mutucas de
vez em quando, uns bichos assim, umas coisas dessas. Essas alturas, nunca pensei em degolar
o tenente, até nunca pratiquei uma degolação antes, só que ele chegou com um lenço branco e
falou com Nestor como se estivesse dando ordem num meganha daqueles lá dele. Me olhou: o
senhor está fora de uniforme, sargento. Nisso, eu estou conhecendo ele, que chama-se
Amâncio e é por demais perverso, todo mundo sabe, e é udenista. O sol batia muito quente e
ele enrolou um lenço por debaixo do quepe e espiava a gente com as vistinhas miúdas, como
de porco. Fala fino, nunca admiti homem de fala fina, se bem que seja o tipo de maior
ruindade, possa ser até porque tem a fala fina mesmo. Ele disse, olhando para minha cara,
esse sargento desenquadrado retirou um homem de Paulo Afonso e se homiziou na sua terra e
eu vim buscar o homem, o sargento e o chofer, o governo não tolera essas bitrariedades. O
homem vai. Nestor pregueou a cara toda, acho que já estava se aguentando da vontade de
bufar mais, mas não disse nada um tempão, apesar do tenente ficar falando e tirar um patacho
do bolso e fazer uma pose de porreta e dizer que não tinha tempo, quando não foi que Nestor
cuspiu um fuminho mastigado e ficou fazendo pit-pit com a boca, até tirar todos os
pedacinhos de fumo. Aí perguntou ao tenente: o senhor é do governo da Bahia? Porque, se se
aborreceu porque tiraram um homem de Paulo Afonso, é porque é do governo da Bahia, não é
de fato? Não, disse o tenente, eu sou é desse governo mesmo daqui, o governo do senhor e
desse sargento. Meu mesmo não, disse Nestor; só às vezes; às vezes nem é. Bom, eu sou do
governo que interessa, disse o tenente. Ah, disse Nestor, e deu uma bufa. Nisso só olhando
para o chão, sabendo-se que, quando um cabra como Nestor conversa com um sujeito olhando
para o chão é somente com a tenção que o outro não veja o que ele vá fazer nas vistas dele. Eu
![Page 100: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado](https://reader033.fdocumentos.com/reader033/viewer/2022052309/5c4dd83993f3c34c550bb726/html5/thumbnails/100.jpg)
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lá. Calado, a terra não era minha, só o couro que era, e aquele peste não era flor que se
cheirasse, devia ter uma porção de gente espalhada ali pelas beiras do caminho. Nestor
encostou na porteira e disse o senhor está vendo esta porteira, não está, pois essa porteira é a
porteira do caminho de minha fazenda, que vai dar na minha casa, a minha casa que só entra
quem eu convido, e ninguém convidou o senhor. Quase que dava para sentir um cheiro de
defunto, tinha mais homem ruim espalhado ali que nem sei. Não tenho nada com isso, disse o
tenente, vim aqui buscar três homens e só saio com eles. Ques homens, meu filho? Eu já disse
ao senhor, já expliquei muito bem explicado, é o sargento, o chofer e o preso. Bom, disse eu,
eu é que não vou, você vai, Amaro? Eu não, disse Amaro, eu não estou com vontade de viajar.
Pois an-bem, disse Nestor. Apois está. O senhor escutou bem direito que eles não estão com
vontade de sair e não sou eu que vou botar as visitas para fora, meu pai me deu educação.
Agora, uma coisa eu pedia ao senhor, que é para não entrar, porque se entra vira visita e eu
nunca dei um tiro numa visita, não sabe o senhor como é, disse Nestor, e bufou mais. Lá por
riba, os cabras quase podia se ouvir cantando panderrolê tepandepi tapetape rugi, escolhendo
quem ia receber a paçoca por primeiro. Arre. Eu sei que o senhor veio pelai com a fraqueza
do governo toda embalada, mas tenho para mim que nem aquele sacrista daquele seu patrão
vai achar decente que o senhor entre assim na casa de uma pessoa honesta e venha aqui tirar
as visitas de dentro de casa, fazer umas macriações, arranjar umas encrencas. Olhe, seu
Nestor, não queremos mortandade, o senhor entrega os homens e eu vou me embora e fica
tudo na mais santa, não se fala mais nisso.
- Pois eu acho que isso vai ser uma festa de urubu – disse Nestor.
- Possa ser – disse o tenente – Mas o senhor se alembre que o cáqui é mais duro pro bico do
urubu.
- Roupa possa ser – disse Nestor – mas o couro é mais.
- Possa ser – disse o tenente. – Mas na companhia de um sargento corno e desertor, com um
pirobo por chofer, não acredito, muito, não.
Eu nem sei quem descarregou primeiro, se foi eu ou se foi Nestor, se foi o cabra na distância,
mas a situação não podia prosseguir, com o tenente começando a dar uns assobios e aqueles
assobios dando umas parenças de sinal para a força e ninguém sabendo quantos eles vinha
trazendo por detrás e ainda mais me chamando nome, que eu não gostei, de formas que
empoeirou logo tudo e a gente fomos caindo logo pelo outro lado da vala no meio dos pipocos
e nisso Nestor se levantava, dava num parabelo em pé, gritava e se borrava sempre mais,
parecia um macaco, nos pinotes. Foi tudo azul, assim uma fumaça grande, mas o fidamãe logo
![Page 101: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado](https://reader033.fdocumentos.com/reader033/viewer/2022052309/5c4dd83993f3c34c550bb726/html5/thumbnails/101.jpg)
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na primeira escapou dos seis tiros que lhe dirigi encarreirado, a canhota no chão, e ficou no
meio de dois pé de pau, um pouco amarrado de um lado e de outro, se bem a força tivesse por
detrás e guentasse o fogo bastante. Mas eu tinha resolvido que ia lá, que era que eu ia fazer.
Logo nos princípios é assim: um frio na barriga e um aperto. Depois, uma vontade de não
fazer nada, umas lembranças. Até que a raiva sobe na cabeça, ou uma coisa dessas, até que
estrala um negócio e a gente sobe. Sobe mesmo. De maneiras que procurei feição de encostar
mais e Nestor mandou descer os cabras por riba, atravessando atrás das cabeças da gente, para
arrodear e enfincar no meio da força e da gente, saindo por detrás duns matos de onde
ninguém esperava. Sei bem não, mas foi um fogo brabo, quase que um papoco só, sem
pedaços, um barulho grosso como pedra, um barulho inteiro. Voava folhas que era bastante.
Voava aquele folharame numa fuzilaria e eu vou chegando junto do tenente, vou chegando
pelo lado me arrastando e ele quase que me acerta, mas Nestor levanta a mão e desce em cima
dele uma chuva de chumbo que descia e subia terra por todos lados, e eu ando mais e enrolo e
aí espio a cara dele bem de junto da minha, com um lenço enrolado na boca, sem dúvidas por
causo de todo o pó que está avoando e então pego uma mão de terra e pico nos olhos do
infeliz e pico mais e pico mais e vou aterrando, quando ele pega um punhal que tinha nos
quartos, quando ele pega esse punhal do tamanho de um jegue e traça pela frente dele com as
vistas fechadas, mas num arco que vai e vem para os lados, mas porém faz curvas de baixo
para cima, de modos que não existe posição para se entrar naquela roda que ele desenha com
o punhal que mais parece uma baioneta e eu não sei o que vou fazer, porque não tenho na mão
nada carregado na hora e a faca que eu levei é curta e assim estou só agarrando mais terra com
a mão e faço tenção de arrumar pela goela dele, nisso que eu vejo uma pedra como que uma
pedra de calçamento e agarro essa pedra e com uma raiva, que nem sei, porque a bicha
cortava minha mão, olhei bem no pé do nariz dele, olho bem assim para a cara dele e solto a
pedra na cara dele com toda a força que eu tenho e vejo ele amunhecar de logo e o sangue
esguinchar. Ah vai, ah vai, vai, vai, vai! Hum. Encarco, peste ruim, quase que não aguento
levantar mais a pedra, estava deitado de barriga no chão tinha chegado ali gatinhando e tinha a
alma nos bofes mas ainda segurei com as duas mãos, mirei devagar e carreguei a pedra em
cima dele com as duas mãos outra vez e aí pronto, com uma sastifação, só escutei o
barulhinho da cara dele entrando, tchunque, como quem parte uma melencia e o sangue dele
correu por dentro de minha manga e a pedra rolou e caiu no colo dele e ficou.
![Page 102: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado](https://reader033.fdocumentos.com/reader033/viewer/2022052309/5c4dd83993f3c34c550bb726/html5/thumbnails/102.jpg)
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Pois nunca mesmo tinha feito isso, só sabia de ouvir falar, mas deu uma vontade, de maneiras
que fiquei sentado um pouco, vendo o punhal, que estava largado no chão e sem ação. E então
arrastei ele para dentro da porteira. Uma visita, uma visita, seu Nestor, uma visita de cara torta
pois ô de casa
abre essa porta
tem uma visita
de cara torta
e fui assim cantando baixo e com ele arrastando pelo cabelo e cheguei na porteira e com o
mesmo punhal que ele estava riscando o ar, com aquele mesmo punhal que ele estava
ciscando, passei no pescoço, de frente para trás, sendo mais fácil do que eu tinha por mim
antes de experimentar, com aquele mesmo punhal que ele estava na cintura e depois na
esgrima e me chamando de corno, cortei o pescoço, foi bastante mesmo mais fácil do que eu
pensei antes e por dentro tinha mais coisa também do que eu pensei, uma porção de nervos, só
o osso de trás que demorou um pouco, mas achei um buraco no meio de dois, escritinho uma
rabada de boi, e ai foi fácil, atravessando ligeiro o tutano e encerrando, a cavalaria de Deus
pela justiça, como é a mãe, teve sangue como quatro torneiras, numa distância mais do que se
pode acreditar, logo se esgotando-se e diminuindo e pronto final. Donde que o homem
esguincha sangue mais longe do que pode cuspir.
INTERLÚDIO II
Pois é Luzinete, olhando assim pela janela, podia ficar aqui. Mas tem horas que se pode ficar,
horas que não se admite. Assim não pode, não quero. Me diga-me, vamos para o cangaço? Eu
sei que não tem cangaço, mas se tivesse você ia? Não ia, você é mulher que gosta mais de um
filho no bucho e de um homem na cama e de morte morrida. Eu não, que na minha mão tem
uma linha riscando a linha maior, que diz: morte matada. Isso é fato, não tem como correr. É
melhor, dói menos e dá menos transtorno. Nessa morte eu acredito, porque não posso pensar
que eu vou ficar velho e sem dente e minha mão vai tremer. Uma coisa que não existe é
Getúlio velho, só existe Getúlio homem inteiro, não posso ficar de boca mole, falando porque
no meu tempo isso no meu tempo aquilo. Verdade que tem certos velhos que ainda são
machos, mas esses é do tempo antigo, não é hoje. Antigamente, tinha umas mágicas, acho. Se
tivesse cangaço, eu ia para o cangaço, com um chapéu de estrelas prateadas e ia me chamar
Dragão Manjaléu e ia falar pouco e fazer muito. Luzinete, eu vou ser é deputado e vou fumar
uns charutos. Amaro pode guiar meu carro, que eu deixo. Pra ser deputado não é preciso nada.
![Page 103: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado](https://reader033.fdocumentos.com/reader033/viewer/2022052309/5c4dd83993f3c34c550bb726/html5/thumbnails/103.jpg)
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Se eu fosse deputado, você ia, não ia? Pra ficar toda lorde, e aprendia a falar difícil, não
aprendia? Numa hora como essa, a gente pensa que o mundo pára. Mas não pára nada, se
sabe. Tem uma porção de gente se mexendo, e eu aqui no meio, paradão. Mas parado como
um peixe junto das pedras dum riacho, que se você quiser mexer perto ele dá uma rabanada e
some. Porque é assim que eu sou. Então eu podia morrer de velho, não podia? Podia. Podia
ficar aqui e todo ano lhe emprenhar certo para vir um filho em janeiro, que é princípios do ano
e acerta mais. Não ia nascer mulher, só ia nascer um bando de macho e eu botava uns nomes
de macho e depois a gente tomava essas terras que tem aí e armava umas tropas de mais
macho e ficava dono do mundo aqui, cada filho arranjando outra mulher, cada mulher parindo
mais macho e nós mandando, e quando eu morresse, avô de todos, pai direto ou por tabela, me
enterravam ali e botavam em riba uma cruz com o senhor crucificado e quem passasse ia
dizer: aquela cruz é do finado, se não se benzer ele ainda vem e lhe pega. A machidão toda aí,
era Garanhão Santos Bezerra, Malvadeza Santos Bezerra, Abusado Santos Bezerra,
Tombatudo Santos Bezerra, Comegente Santos Bezerra, Enrabador Santos Bezerra,
Rombaquirica Santos Bezerra, Sangrador Santos Bezerra, Vencecavalo Santos Bezerra, todo
mundo. Tu bem que ia gostar disso, eu acho.
CENA 3
Nem nunca pude pensar que Amaro soubesse essas rezas, nem muito menos que esse padre de
Japoatã fosse botar os três ajoelhados e rezando. O padre eu não conhecia. Só de nome, e
quando vi, pensei que não fosse padre, pensei que fosse um avariado maluco, fazendo de
padre. Ou manifestado, pode sempre estar. Ele fala depressa e grosso, não se entende quase.
Mas se sabe por que se chama o Padre de Aço da Cara Vermelha, porque demonstra a dureza
e porque tem uma marca vermelha trespassada pela cara, a cuja marca vermelha fica mais
vermelha agora, menas vermelha indagora e assim vai, conforme. Sabia que a gente
estávamos chegando e que era forçado abrigar, e havia um nervoso, porque a hora não era de
molequeira, com um tenente defunto e degolado e mais uma porção de cabras no tiroteio e um
sarseiro completo na fazenda de seu Nestor e isso tudo ele devendo de saber e de braço
cruzado. Ora, pode ser padre pode ser frade, pode ser freira pode ser bispo, pode ser santo
pode ser anjo, pode ser imagem pode ser profeta, mas, numa hora de precisão como que fica
ali só espiando, que parece um ano. Não que parece um ano; parece um dia, que o ano passa
depressa, mas o dia passa devagar.
- É isso mesmo. Tem muitas cabeças nesse mundo de meu Deus.
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103
- O tenente me chamou de corno, seu padre. E era ele ou eu.
- É isso mesmo - diz o padre. - Devia de ter cortado mesmo.
E se benzeu e disse que não precisava dizer aquilo. É que a situação mudou, diz o padre, não
sei se vosmecê vai poder levar o homem para Aracaju, porque lá está uma novidade de gente
e uma porção de jornais e dizem que quando vosmecê chegar vão lhe encher o couro e soltar o
homem. Não acredito que Antunes possa lhe sustentar. Ah, isso não, se Antunes não me
sustenta, o que e que me sustenta? Não sei, disse o padre, e enfiou as duas mãos pelo meio da
batina, com as pernas escarranchadas e ficou com a cabeça pendurada. Essa terra, diz ele
depois de muito tempo, já foi uma boa terra, porque havia mais homens e quem era homem
não tinha de que temer. Hoje essa terra não vale mais nada não vale quase mais nada, está
uma frouxidão e um homem não sabe de quem depende e querem mudar tudo e nunca vai
adiantar. Porque, se tiram os recursos do homem, o que é que deixam com o homem? Nada.
Uma vida, possa ser, e isso não é vida de homem, é um enterro. Não sei, não sei, diz o padre,
sacudindo a cabeça e fazendo um bico com a boca. Por que vosmecê não some? Eu sumir, eu
sumir? Como que eu posso sumir, se primeiro eu sou eu e fico aí me vendo sempre, não posso
sumir de mim e eu estando aí sempre estou, nunca que eu posso sumir. Quem some é os
outros, a gente nunca. Bom, isso é, diz o padre. Mas olhe sargento, o problema é que foi um
engano, sargento, um engano que foi mandar o senhor buscar o homem em Paulo Afonso,
agora temos complicação. Quem disse isso, foi o chefe? Foi o chefe que disse, não tem mais
condição de cobertura, a coisa mudou. Foi o chefe que mandou o recado? Foi, foi. E por que
não veio ele? An, responda essa. Não veio porque não quer deixar ninguém saber que foi
mandado dele. Vem força federal, vem tudo. Então o senhor solta o homem e some e pronto.
E o resto se ajeita em Aracaju.
- Não posso sumir. Quem pode sumir é os outros, como é que eu posso sumir, se eu sou eu?
Do mais, se vosmecês estão querendo que eu solte o homem e suma, é porque depois ele e
vosmecês vão atrás de mim, me arrancar nos infernos para me botar a culpa do negócio.
- O senhor tem a minha palavra de honra.
Se for assim mesmo como se diz que é, espero as outras ordens, porque essa está dada e nem
ele que viesse aqui e me pedisse para não levar eu não deixava de não levar, porque possa ser
que ele esteja somente querendo me livrar de encrenca e eu não tenho medo de encrenca, eu
levo esse lixo de qualquer jeito, chego lá e entrego. Nem que eu estupore. Quero ver esse bom
em Aracaju que me diz que eu não posso, porque eu sou Getúlio Santos Bezerra e igual a mim
ainda não nasceu. Eu sou Getúlio Santos Bezerra e meu nome é um verso e meu avô era brabo
![Page 105: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado](https://reader033.fdocumentos.com/reader033/viewer/2022052309/5c4dd83993f3c34c550bb726/html5/thumbnails/105.jpg)
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e todo mundo na minha raça era brabo e minha mãe se chamava Justa e era braba e no sertão
daqui não tem ninguém mais brabo do que eu, todas as coisas eu sou melhor. Corro, berro,
atiro melhor e sangro melhor e bebo melhor e luto melhor e brigo melhor e bato melhor e
tenho catorze balas no corpo e corto cabeça e mato qualquer coisa e ninguém me mata. E não
tenho medo de alma, não tenho medo de papafigo, não tenho medo de lobisomem, não tenho
medo de escuridão, não tenho medo de inferno, não tenho medo de zorra de peste nenhuma.
Sou curado de cobra e passo fome, passo frio e passo qualquer coisa e não pio e se me
cortarem eu não pio. Durmo no chão, durmo em cama de vara, durmo em cama de couro, ou
então não durmo e quem primeiro aparecer primeiro quem atira sou eu e quando atiro não
atiro nas pernas, atiro na cara ou atiro nos peitos e os buracos que eu faço às vezes é um em
cima do outro e tem uma coisa: em Sergipe todo não tem melhor do que eu e se eu lhe digo
que não tem um melhor do que eu em Sergipe, não vejo esse bom, estou lhe dizendo que não
tem melhor no mundo, porque essa é uma terra macha e eu sou o macho dessa terra. Se for
para esperar, espero, mas esperar não é ficar. E eu vou levar esse traste arrastado ou espetado,
naquela hudso até Aracaju, e chegando lá apresento ele: veio de Paulo Afonso até aqui e se
cortei a cabeça do tenente, foi bem cortada. Mas não vou dizer a todo mundo que eu cortei a
cabeça do tenente. Só digo ao chefe e calo a boca e cruzo os braços e boto o olho no vento. E
quem quiser que bote o olho no meu. E pronto. E se ninguém quiser ir comigo, eu vou só,
aviu Amaro? E, disse o padre, eu não sou esses machos todo.
INTERLÚDIO III
...e de noite Amaro conta histórias de trancoso, depois que a gente amarremos o bicho bem
amarrado e demos água a ele e ficamos lá e Amaro diz: foi um dia uma vaca vitória, deu um
peido se acabou-se a história e a gente damos muitas risadas e como não temos mais o que
dizer, só ficamos repetindo foi um dia uma vaca vitória deu um peido se acabou-se a história,
mesmo porque Amaro se esquece do começo ou do fim das histórias, às vezes esquece do
meio, às vezes esquece do fim, às vezes esquece do começo e diz assim: essa eu começo pelo
meio, essa eu começo pelo fim, conforme. Tem umas que só se lembra uns pedaços ali outros
pedaços lá. Nos princípios não dá vontade nem de contar nem de ouvir, mas depois não tem
diferença. contanto que tenha uma história, que depois a gente vai botando o meio ou depois o
fim, ou então não bota nada e fica lá. Amaro se lembra de uma história de uma velha que
comeu um macaquinho e o macaquinho depois de dois dias ela botou vivo, vivo, no pinico.
Como é, Amaro, ah-hum. Como é as histórias do macaco? Então se deu-se que a velha comeu
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o macaco, mas o macaco saiu inteiro, quer dizer, ela botou inteiro, e como foi que esse
macaco saiu inteiro? Bom, isso a história não diz, é porque é um bicho muito safado, comeu
assim sem uma nem duas, ele sai inteiro. Apois: saiu inteiro e cantou: eu vi, eu vi o cuzinho
da velha e preto e branco e amarelo. Como é Amaro, cante aí? Eu vi, eu vi, e eu sorrio muito,
sorrio que me engasgo, às vezes sorrio mais do que eu pensava que tinha condição de sorrir,
rico só pensando no diacho da velha com dor de barriga, e que cu é esse que é preto e branco
e amarelo? Como é, Amaro, quem ensinou essa cantiga ao macaco, e a gente cantamos o
tempo todo, quando a gente não temos mesmo o que fazer e damos muitas risadas e depois
paramos e voltamos de novo, até que paramos de dar risadas e ai só fica umas
espremidazinhas: ai, ai. Ui, ui.
CENA 4
Fisdaputa, devem ter pedido campo na cidade toda para me pegar como tresmalhada, só que
não vão pegar, vão pegar a mãe, eu não vão pegar. Antes, ele estava bem, aliás estava ótimo,
porque aprendeu a manejar bem a arma, que não é fácil. Parece fácil, mas não é fácil, precisa
preparo. Mas foi ele que estava sentado no chão com os dois joelhos para cima e esfregando a
arma pelo cano e mastigando um talo de capim como quem não está nem ai, foi ele que viu
primeiro chegar alguma coisa e aí se levantou sem dizer nada e foi olhar para o lado do
caminho. Guente ai, disse ele, e encostou do lado da porta, cuspiu o capim e ficou. Essa porta
vai abrir daqui a pouco, disse ele, e eu vou fazer um festejo. An-bem, disse eu, temos
pertubação, e me levantei, segurei um instrumento e espiei de meia travessa pela janela e de
fato estava lá quase na curva um bando de cabra safado, tudo esperando. Esse cá que Amaro
vai pegar de jeito deve de ter tirado carta de valente lá, e vem aqui. Pois eu estava de olho na
janela, descansando a arma para atirar nos peitos de um que vinha de banda e eu queria atirar
resvelado nas costelas dele e aí a arma de Amaro parou de papocar. Eu digo: que é isso,
Amaro, se faltou munição pegue uma arma dessas do destacamento, que tem bastante e ele
nada respostou. E nada, de formas que, quando eu consegui acertar dois balaços no infeliz lá,
que ele foi desencostando no mourão da cerca, desencostando, desencostando, até que eu vi
que era a última desencostada que ele dava na vida, eu espiei de banda e vi os olhos de
Amaro.
Pois então, quando eu vi os olhos de Amaro parados e ele olhando para lugar nenhum, com o
braço pendurado no prego, eu vi que ele tinha sido matado e no começo não senti nada.
Somente olhei de novo e disse olhe Luzinete, olhe que acertaram Amaro, não está bom a
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gente pendurar esse animal desse preso pelum pé, que foi por causo dele que mataram
Amaro? Mas não tive tempo de fazer mais nada, porque estava ainda a fuzilaria e eu tinha de
me aguentar e fiquei assim até quando que deu umas duas horas e parece que eles mandaram
buscar reforço, porque pelo que eu sei devem ter deixado uns quatro vigiando o caminho, ou
mesmo mais, que é para não admitir saída nenhuma. Em meia hora esse reforço chega, não
chega não? Deve de chegar, disse Luzinete, e não estava com medo. Eu fiquei olhando mais
Amaro morto. Luzinete disse, quando você estava atirando na janela, eu quis fechar as vistas
dele, mas não fechou, vai ter que ficar assim mesmo. É, eu disse, vai ter que ficar assim
mesmo. E, vai ter que ficar. Aí ela disse ele era como seu irmão, e eu disse acho que era, era
mesmo, acho que era, e acredito que no mundo eu só tinha ele e você, isso eu acredito. Estou
sentido, eu disse, essa vida é uma bosta. Puxei ar: quem está vivo está morto, a verdade é essa.
Reze um terço, Luzinete. Reze um rosário. Ainda outro dia ele estava rezando lá no padre, ele
sabe todas as rezas. Sabe, não; sabia, disse Luzinete, e por que tu não acaba com aqueles
pestes de uma vez logo e vai embora com sua missão? É, digo eu, só se eu fosse um avião. Só
se eu fosse um elefante. Ali tem uma ruma de homem e se eu for lá, antes de eu poder dizer
uai, eles dão conta de mim certinho e aí quem vai levar esse bexiguento para Aracaju, você
com certeza é que não vai. Tem umas bombas aí, disse Luzinete, tem umas bombas aí, do
homem que vivia amancebado com minha irmã e que trabalhou numa pedreira. Ques bombas?
Umas bombas, disse ela, que parece um rolo cada e que vem num molho dumas cinco, acende
e joga. E separando todas pode jogar umas cinco vezes, meia dúzia, que abre caminho ali e
não sobra nada. São umas bombas ótimas.
INTERLÚDIO IV
Sabe vosmecê que minha mulher agora é a lua? Ficou lua quando explodiu com as bombas e
os cabra que estavam lá são uns belzebus e vão viver debaixo do chão até que eu queira e eu
sempre vou querer. Quando eu gritei que se ouviu em todo Estado de Sergipe, desde lá no São
Francisco até no Estado da Bahia, de bandinha por bandinha, foi por causo de Amaro que eu
gritei, que era meu irmão. Luzinete é a lua, mas Amaro? Não é nada. Nem vi quando ele
tomou o tiro, estava vigiando a sua laia. Vá marchando, vá marchando, quero marchando. Nós
vamos marchando até chegar na beira do rio, que nós possa ser que vamos de canoa, vosmecê
remando e eu com pose, é assim que nós vamos. Diga: louvado seja nosso Senhor Amaro,
para sempre seja louvado tão bom Senhor Amaro. Está vendo aquilo brilhando no escuro,
peste? Aquilo brilhando meio azul, aquilo se chama-se uma planta por nome cunanã, que é
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como uns cipós. Aquilo é seu inferno, sempre foi. Mas meu, meu é minhas estrelas e por ali
sei para onde eu vou, porque nasci aqui e essa terra é minha. E agora é minha só, porque
morreu todo mundo que prestava. Tudo culpa sua, que não tem nada com essa terra, posso lhe
garantir. Pois está vendo aqueles brilhos, são meus brilhos do mato e se eu quisesse brilhava
também e casava com a Princesa Vagalume e voava. Mas não faço isso, lhe levo para Aracaju
e lá não sei. Luzinete subiu com as bombas, nada deve ser achado dela, no meio da pedra e do
barro. Sastifatório, isso? Agora me digo: como pode ter outra coisa que não eu lhe levar para
Aracaju e depois, depois não sei? Porque, se eu fosse tirar vingança, não tinha tantos que eu
matasse que pudesse descontar Amaro nem meus filhos, nem a cara de Luzinete avoando
pelas nuvens e virando lua e eu daqui de baixo com cinza na cara e chorando lama.
CENA 6 - EPÍLOGO
Tinha minha missão, isso tinha. E fiz. Tinha minha vida, isso também, e vivi, e se me
perguntasse quer viver uma vida comprida amofinado ou quer viver uma vida curta de macho,
o que era que eu respondia? Eu respondia: quero viver uma vida curta de macho, sendo eu e
mais eu e respeitado nesse mundo e quando eu morresse alembrem de mim assim: morreu o
Dragão. Que trouxe uma mortandade para os inimigos, que não traiu nem amunhecou, que
não teve melhor do que ele e que sangrou quem quis sangrar. Agora eu sei quem eu sou.
Aquela força que vem, coisa, aquela força que vem pelo rio atravessando, pode se ver os
fuzios apontando para cima e está se vendo que ninguém pensa que vai me pegar fácil, porque
senão não vinha tanta gente. Todo mundo sabe que eu vou dar testa, aviu vosmecê? E só vem
fardado, veja bem, coisa, não vem um paisano para remédio com certeza, só vem mesmo os
mandados, os mandadores não vem. Antes que eles queiram me acabar, coisa, eu ainda sou
capaz de lhe arrastar sete vezes pela beira dessa praia de lama, indo e voltando, e arrasto o
comandante dessa força e mais quantos praças chegue perto. Não vejo nem a cara, coisa, e
não quero conversar, acho que não carece conversa agora, carece atividade. Aquela força,
aquela força, coisa, é uma fraqueza, e daqui mesmo, com vosmecê amarrado aí no coqueiro
que é para ver um macho lutando, o que vosmecê nunca fez na vida, trempe, aquela força é
uma fraqueza, venha de Lá fraqueza do governo, me solto, me destaramelo, me vou e é assim
mesmo, na idéia umas lembranças, na mão uns bacamartes, nos pés uma fincada, minha vida e
a laranjeira morta e a lua que Luzinete mora, espie ai, coisa, ã uma fraqueza e miles homens
desses é como nada e como eu tem mais aqui, essa é uma terra de macho, viu, traste, e a terra
que me pariu vai me vomitar de novo, quantas vezes me enterrarem, quem tem amigo nesse
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mundo, ôi Amaro, viu Amaro, olhe ques jias brancas nos tijolos do chão, não estremeça, trem,
veja que terra essa, com a morte deslizando pelo rio, as caras deles nem se enxerga, mas veja
que terra essa, com nós aqui plantados no chão, não semos a mesma coisa? não semos a
mesma coisa? É engraçado como vem esses homens e esses homens nenhum está pensando
nada, porque todos estão somente sentindo, veja bem, eu sinto, eles sentem, tudo sente, olhe
essa água salgada, sujeito, que veio de Lá de dentro dos matos de Sergipe e vai chegando
devagar, Morcego. Cotinguiba, Jacarecica. Ganhamoroba. Poxi. Pomonga e o Vaza-barril e o
Piauí e o Itamerim e o Siriri e o Japaratuba, veja, coisa, é até bonito essa água vindo de lá de
dentro, isso tudo não é uma coisa só? a minha cara de cinza, o meu cabelo de terra, a minha
bota de couro, a minha arma. de ferro, hem, coisa? não semos tudo o mesmo? agora não
muito, porque eu sou eu, Getúlio Santos Bezerra e meu nome é um verso que vai ser sempre
versado e se tem lua alumia e se tem sol queima a cara e se tem frio desaquece, ai dois bois de
barro e uma caixa de fósforo e um garajau cheio de barro, aboio eu aboia tu, hem Amaro, ecô,
ecô, nós que semos marinheiros larguemos a grande vela porisso que puxemos ferro, olerê,
larguemos a grande vela, olhe ai, Amaro, eu sou maior do que o reis da Hungria, no dia dois
de fevereiro tem uma festa em Capela, hem coisa, sabe onde Capela fica? sabe onde Capela
fica, sabe onde Capela fica, e onde fica Capela? e onde fica Salgado e onde fica Largato? e
onde fiquemos nós? Ói, Lá vem eles, assunte, e tão devagar que não se sente, em casa tem
todos uma mulher e um cuscus e uns inchadinhos, veja bem isso, cada dia se pare mais nessa
terra, é assim uma fortaleza de gente aparecendo nesse mundo de meu Deus, para que isso,
hem? e eu sendo eu, sendo eu, quando eu era menino eu comi barro e entrei por dentro do
chão, comendo barro, cagando barro e comendo de novo, ôi coisa, olhe a vida, Lá vem a
força, em Japaratuba tem umas canas e o canavial é louro, louro como uns portodafolhenses e
quem nasce em Muribeca é muribequeno ou muribequeiro, hem Amaro? quando eu entrei em
Luzinete, entrei e fiquei, minha santa santinha, na lua, minha santa santinha e umas bombas
de banana que jogou nos cabras, porque a gente não dá, umas risadas, coisa? que é que está
vendo aí, coisa, o chão? isso tudo é um verdume só, coisa, quando chove e quando não chove
e uma amarelidão, mas vosmecê pode se jogar no chão que não tem perigo que ele lhe abraça,
talvez até lhe coma e você vire um pé de pau ou tu vire um gaiamum ou vossa excelência vire
numa pedra, isso pode crer e mesmo quente com a chuva esfumaçando, mesmo assim ele Lhe
abraça e pode ficar Lá, porque aonde é que vai ficar mesmo, tem que ficar no chão, já chorou
uma certa feita, coisa? de fora para dentro não, mas de dentro para fora, nos repuxos e
cavando lá de dentro? eu mesmo não, mas possa ser que chore agora, porque eu estou com um
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pouco de vontade de chorar agora, seu coisa, seu traste, seu trempe, possa ser que eu chore
agora, visto que não é que eu tenho medo, eu não tenho medo nem de alma, mas eu posso
chorar porque eu nunca falei com aquela força fraqueza nem vou falar e tem tanta coisa que
eu não pude fazer porque eu não sabia e o mundo inteiro parou aqui, hem Amaro? veja essa
água e essa beira de rio, com esse barulho aí de leve noite e dia, veja essa água e Aracaju e a
ponte do imperador, veja esse povo vindo atravessando de barco atrás de nós e carregando as
armas apontando para cima e aquele navio parado ali, nem sabe o que está se passando, tem
uns homens lá jogando dominó e pensando na vida, mas porém o destino está dando volta,
hem Amaro? lá na lua e pode crer que eu estou vivo no inferno, lá na lua está Luzinete e essa
força se atira eu também atiro, ô minha lazarina, ô meu papo amarelo e um mandacaru de
cabeça para cima eu vou morrer e nunca vou morrer eu nunca vou morrer Amaro eu nunca
vou morrer um aboio e uma vida Amaro aaaaaaaaaaaaaaaahhh eeeeeeeeeeeeeeeh aê aê aê aê
aê aê aê aê aê aê ecô ecô aê aê aê aê aê eu nunca vou morrer Amaro e Luzi netena lua essas
balas e como meu dedo longe e o lhelá Ara eu vejocaju e a àguacor rendode vagar e sal
gadaela éboa nun cavoumor renun caeusoueu, aium boi de barro, aiumboi aiumboide barroaê
aê aê aiumgara jauchei de barro e vidaeu sou eu e vou e quem foi ai mi nhalaran jeiramur
chaai ei eu vou e cumpro e faço e