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    Equipe de realizacao:Projeto grafico de Lucio G. Machado e Eduardo J. RodriguesAssessoria editorial de Mara VallesRevisao de Herbene Mattioli

    CIP-Brasil. Catalogucao-na-FonteCamara Brasileira do Livro, SP

    D739s2.ed.Donnangelo, Maria Cecilia Ferro.

    Sande e sociedade I Maria CeciliaLuiz Pereira. - 2, ed. - Sao Paulo1979,F. Donnangelo,Duas Cidades,

    1. Assistencia medica 2. Medicina social 3. Politicamedica L Pereira, Luiz, 1933- II. Titulo.

    17. CDD-362.118. -362.1042517. e 18. -301.517. e 18. -338.4761NLM-WA 30

    Indices para catalogo sistematico:1, Assistencia medica : Bem-estar social362.1 (17.) 362.10425 (18,)2, Medicina comunitaria 362.1 (17.) 362.10425 (18.)3. Politica medica : Economia 338.4761 (17. e 18.)4. Saiide : Assistencia medica : Bem-estar social362,1 (17.) 362.10425 (18,)5. Sociclogia medica 301.5 (17. e 18.)

    Saude e SociedadeMaria Cecilia F.. onnangelo

    Luiz Pereira

    c n J Livrariac n J Duas Cidades

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    Colec;aoHIST6RIA E SOCIEDADEConselho Diretor:Carlos Guilherme MotaLuiz PereiraMoacir G. Palmeira

    r

    2.' ediyao

    consiste na na integra,do texto da tese de livre-docenciade MariaCecilia Donnangelo, Medicina e Estrutura So-cial (0 Campo Emergencia da Medicina Comuni-taria), deiendida em agosto de 1976 junto ao Depar-tamento Medicina Preventiva da Faculdade de Me-dicina da USP. A este texto se agrega 0de LuizPereira. Capitalismo e Sande, consti tuido por notasbaseadas em consideracoes apresentadas a Autora; naqualidade membro da Comissao Examinadora e nasituayiio de oral da tese, e que, no coniunto,se apresentam como complemento desta. COl1lO essasnotas destacam, nessa linha de complementoriedade, 0conseudo da contribuifiio da Autora ultrapassa as Ii-mites pelo titulo da tese, pois nesta se en-contram alguns balizamentos [undamentais para aconstrucdo do objeto do campo estudos que, aca-demicamente, se denominaria sociologia da saude,

    o titulo deste volume, indicativa desse cam-po que 0 da tese. o Editor

    Todos os direitos reservados porLIVRARIA DUAS CIDADES LTDA.Rua Bento Freitas, 158 - Sao Paulo1979

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    Sumario

    Apresentacao , ,PARTE I - Medicina e Estrutura Social

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    Capitulo I - Medicina: Pratica Tecnica -- Pratica Social 15Capitulo II - Medicina na Sociedade de Classes ... 29

    1. A medicalizacao da sociedade2, Raizes da medicalizacao

    3047

    PARTE II - Medicina Comunitaria 69Capitulo III - Medicina Comunitaria: Politica Medica -Politica Social . 75

    I. Medicina comunitaria e reforma 752. Urn novo objeto e uma nova estrategia 88

    AP::.NDICE - Capitalismo 'e Sande (Luiz 95

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    Apresenta~io

    A partir da analise das relacoes entre a medicina comopratica social e a estrutura das sociedades concretas onde elase desenvolve, este trabalho busca sistematizar algumas das ques-toes que cercam 0 campo da Medicina Comunitaria como formade prestacao de services medicos.Esse enunciado parece suficiente para de urn lado,o sentido restrito em que a Medicina Comunitaria estara sendoconsiderada - em sua dimensao de service - de outro, 0 cara-ter subordinado do estudo da Medicina Comunitaria a compreen-sao da pratica medica em sentido mais ample, justificando, por-tanto, a posicao aparentemente secundaria desse especifico tema

    no conjunto do texto. Todavia, e conveniente agregar algumasobservacoes acerca do tipo de tratamento dispensado a MedieinaComunitaria, quando menos .pelo fato de que muitos profissio-nais na area da saude veem nessa modalidade de pratica umavia para a obtencao de determinados alvos pragmaticos imedia-tos e certamente esperam, dos estudos que a ela se dirigem, eon-tribuicoes tambem imediatamente incorporaveis a tais projetos.Primeiramente, deve-se advert ir que, embora a Medicine Co-munitaria constitua efetivamente objeto estudo, 0 que elevisa nao e mais que a indicacao de uma de analise daespecificidade do campo, de maneira que ficam excluidas tantouma abordagem intensiva dessa forma de pratica medica, quantaa .elaboraeao de qualquer tperspectiva imediata de interferencia

    na area de saude com vistas a reformulacoes intemas. Por outrolado, deixa-se tambem de proceder a urn tratamento sistematicodas diversas l inhas de prat ica medica passiveis de comportar aque-la adjetivacao ou que tern assim sido designadas, As razoes paratanto encontram-se delineadas no texto, mas a indicacao parecenecessaria, uma vez que 0 termo "Comunitario" tem recobertouma ampla gama projetos de organizacao assistencia me-dica que nao se equivalem, quer em termos de sua estrutura in-tema quer em termos do sentido particular de sua articulacao,9

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    com a estrutura social.' Finalmente, cabe observar, em contrapar-tida, que alguns dos aspectos aqui consideradoscomo integrandoocampo da Medicina Comunitaria nao sao usualmente designa-dos por esse especffico termo, decorrendo a sua emergencia, naanalise, do referendal utilizado para a delimitacao do campo.Essas observacoes nao devem adquirir 0 sentido de indica-

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    A tarefa dedelimitacao do campo da Comunitariaimplica urn processo de selecao a operar-se um conjuntomuito heterogeneo de estudos de carater doutrinario e tecnicosobre os mais variados temas referentes a medicina, as suas fun-

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    Iistas. Perspectiva Imposta, em urn primeiro momento, pelo fa~ode que ela se confunde. assim com o.p.roprio ambi:~

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    dicina quer como urn campo estruturado de pratica nas quais aaplicacao cientifica e tecnologica ocupa urn Iugar privilegiadoporem nao exclusivo ou mesmo dominante, quer como campoarticulado ao conjunto de praticas sociais.

    Por outro lado, e interessante assinala r que a predominanciadaquela perspectiva de. analise tem permitido visualizar, aindaque parcialmente, sobretudo as transtormacoes que se proces.samnos meios de trabalho medico. "Historicidade dos meios e anisto-ricidade dos objetivos" e a formula na qual sintetiza Laura Contio carater dessa historia cronologica escrita em termos de "umaaprendizagem progressiva por parte da humanidade dos meiosmais idoneos para cura r a enfe rmidade ." (1) Todavia, a propriahistoricidade dos meios de trabalho nao se esgota no registro deseus fundamentos cientificos ou de sua diversificacao tecnologicaprogressiva. Ademais, identifica-Ios a um conjunto de procedi-mentos tecnicos e cienti ficos implica uma evidente simpl ificacao.

    Primeiramente e preciso assinalar que apratica medica en-qnanto ato terapeutico nao se .eonfunde com uma pratica cienti-fica, cam a elaboracao de uma ciencia, Tern uma especificidade,em sua dimensao de interferencia sobre urn objeto particular,,;"Em materia de patologia, a primeira palavra, historicamente fa-lando e a ultima palavra, logicamente falando, corresponde aclinica. Bern, a clinic a nao e urna ciencia e nunca sera umaciencia, inclusive quando ntiliza meios cujaeficacia esteja cadavez mais garantida cientif icamente, A clinica e inseparavel daterapeutica e est a e uma tecnica de instauracao e restauracao donormal cujo objetivo, a saber a satisfacao subjetiva de uma normaque esta instaurada, escapa a jurisdicao do saber objetivo, Naose ditam cienti ficamente normas a vida." (2) Essa especificidadeda clinic a como ato medico permite aventar a ideia de que emsuas relacoes com a ciencia biologic a esse ate a precede e rnesmofundamenta: "Se na atualidade 0 conhecimento da enfermidadepor parte do medico pode prevenir a experiencia da enfermidadepar parte do enfermo, isso seexplica pelo fato de que a segundasuscitou a primeira, Portanto ( ... ) existe uma medicina porqueha homens que se sent em enfermos e nao que os homens se entei-rem de suas enfermidades porque ha medicos e atraves deles( ... ). Todo conhecimento tern sua fonte na reflexao sobre umfracasso da vida. .Isto nao significa que a ciencia seja uma receitade procedimentos de acao, mas peIo contrario, que 0 impulso-daciencia pressupoe um obstaculo para a acao, A propria vida ( ... )

    e quem introduz na humana as de saudee de enfermidade. Essas categorias sao biologicamente tecnicase subjetivas e nao biologicamente e objetivas." (3)Por outro lado, e como decorrencia, os de trabalho me-

    dico nao se superpoem inteiramente a um conjunto de principiosbiologicos e equipamentos tecnicos, tambern a instau-racao de uma relacao particular entre e 0 objeto desua pratica. a clinic a como Entendida agoraa clinica como de trabalho, como de procedimentosque compoem 0 ato terapeutico, a forma pela qual 0 ato medicose estrutura, enquanto ato clinico, permite apreende-lo analitica-n:en~e em sua relativa independeneia aqueles principios et~c ll1cas. Encontrando-se no centro renovacao da pratica me-dica moderna, a como meio de trabalho, como forma sin-gular de conhecimento do individuo parece ter assentadosua origem menos em resultados especificos do progresso tecnicoe cientffico do que em uma geral do campo devi sao do terapeuta, em uma reorientacao e temporal deato medico. Nos termos de Foucault, cuja analise permite tam-bern apreender nessa perspectiva a constituicao da clinica comocampo de saber, 0 da experiencia antes das gran-des descobertas do seculo "modificou menos os seus mate-dais do que a sua forma ( ... ) foram as formas devis ibil idade que 0novo do qual Bichate , sem duvida, 0 primeiro testernunho absolutamente coerente,nao deve inscrever-se na ordern das purificacoes psicologicas eepistemologicas; nao e outra coisa senao uma reorganizacao sin-tatica da enfermidade na qual os limites do visivel e do invisivelseguem um novo tracado", (4)

    Essas tern por que a tendenciaa indistincao entre ciencia e medica cientifica-mente fundada leva frequentemente a a especificidade dosmeios de trabalho para reduzi-los a um conjunto de recur-sos tecuo16gicose, mais que isso, de tecnologia material. Ondelocalizar, a partir outras dimensoes da medica, entree1as 0 seu carater ate incorporacao cres-cente daquele tipo de no processo de trabalho medicopode explicar essa mas Parte deladecorre tam bern quer a isolar os meios de producaodos demais estrutura de e consumo deservices a isolar as assumidas pela

    (1) Conti, Laura - "Estructura Social v Medicina", in Medicina vSociedad, Editorial Fontanela, Barcelona, 1972, pp. 288-289. .(2) Canguilhem, G. - La Normal y 10 Patologico ; Siglo XXI, Bue-nbs Aires, 1971, p. 174.

    (3) Idem, idem, pp.(4)Mexico, 1966, p.

    eNascimiento! la Clinica, Siglo XXI,

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    pratica medica, como totalidade, daqueles assumidos pela produ-s;ao em geral nas sociedades historicas,Os meios de producso nao se sucedem, meramente, Corres-pondem a e fundament am rnodalidades de articulacao entre 0 tra-balho medico, seu objeto, seus produtos e a forma de seu con-sumo. 0 desenvolvimento da propria clinica, como meio de tra-balho, so se da pela modificacao de todo 0 campo da pratica:"Para que a clinica fosse posslvel como forma de conhecimentofoi necessaria toda uma reorganizacao do campo hospitalar, umanova definicao do estatuto do entermo na sociedade e a instaura-((ao de uma certa relacao entre a assistencia e a experiencia, 0auxfl io e 0 saber." (5) De outra parte, a imediatez na relacjioentre 0trabalhador e os instrumentos de trabalho, consubstancia-da na clinica, proporciona as bases para uma organizacao detodos os elementos do processo de producso de services sob aforma da medicina liberal ou artesanal: uma ideologia do trabalho---0l iberalismo medico - uma relas;ao especifica de.troca dessetrabalho por renda em um mercado livre, Ulna delimitas;ao par-t icular do volume e modalidades do consume. Finalmente; 0 de-senvolvimento dos meios de trabalho medico e com eles, 0dapratica medica, responde a outras ordens de determinacoes naoredutfveis 1'10 cientifico. Para permanecer ainda 1'10 nivel da eli-nica como instrumento de trabalho pode-se novamente recorrer

    1'10 estudo de Foucault que ocupando-se, embora, em uma pers-pectiva epistemologica, da constituicao de uma nova estruturado saber medico, proporciona tambem importantes indicacoesacerca da forma e extensao em que as ideologias e os projetosde reorganizacao social em jogo durante mementos da revolucaopolitica burguesa na Franca se projetam no ambito das institui-goes medicas e com elas instauram novas correspondencias. Estasse expressam, sobretudo, na abertura de urn novo espaco socialpara a doenca, 0 doente e a medicina: "Este campo medico (. .. )e estranhamente parecido, em sua geornetria implicita , com 0 es-paco social com que sonhava a Revolucao, pelo menos em suasprimeiras formnlas: uma configuracao homogenea em cada umade suas regioes, constituindo urn conjunto de pontos equivalentescapazes de manter com sua totalidade relacoes constantes; umespaco de livre circulacao na qual a relacao das partes com 0todo aparece sempre reversfvel e suscetfvel de transposicao" ( . .. ) .Ha, portanto, convergencia espontsnea e profundamente arrai-gada entre as exigencias da ideologia, politico e as da tecnologiamedica. Com urn so movimento, medicos e homens de Estadoreclamam em urn vocabulario diferente, porem por razoes essen-cialmente identicas, a supressao de tudo 0que possa ser um obsta-(5) Foucault, M. - op. cit., p. 275.

    culo para a constituicao deste novo espago: os hospitais ( ... )a corporacao de medicos C .. ) as Faculdades (6).A emergencia da clinica como meio de trabalho coincideportanto, com uma nova articulaC;l'ioentre a medicina e a socie-dade. A medicina deve abrir-se para 0 espa

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    socials, a categoriade ....t",,.f,,,..t'l,nro;do atualmentedo fato medico.recoes: pressoesdica; contestacaoseu conseqtrente eteitodosvida

    ou do protoplasm a ( ..teza parece desusado porsal (. .. ). o que 0a rica lexicologiadamental, Iacilmente

    vacoes tecnologicas, e indispensavel agora afirmar 0significadodessas inovacoes naestrutura atual de producao de services me-dicos e de sua articulacao no social. 0 que se fara de urn angulorestrito e apenas em carater indicativo, uma vez que esse e urndos aspectos a ser retomado em outros mementos do estudo. Amoderna medicina tecnologica representa, antes de tudo, a me-diacao de urn con junto enorme de novos recursos de diagnosticoe terapeutica na relacao entre 0 medico e 0 objeto de seu traba-lho. Tais recursos, que permitem, em grande parte, 'apreender adoenca em sua exterioridade por reterencia ao corpo, e que vaoda microscopia as tecnicas radiologicas, graficas e cirurgicas alta-mente sofisticadas, encontram seu suporte em urn vasto conjuntode equipamentos materiais custosos, e cujo ritmo de obsolescen-cia nao parece distinguir-se marcadamente daquele que caracte-riza a tecnologia utilizada na producao economica em geral, obe-decendo tambem em parte aos mesmos objetivos economicos queai acarretam esse processo. Resultando de complexes e onerososprocessos de producao industrial e realizando, atraves de seu con-sumo na pratica medica, a mais-valia produzida em outros setores,os novos meios de trabalho instauram um vinculo direto e espe-cffico entre a medicina e os objetivos basicos da producao eco-nomica, Esse. tipo de vinculoaponta para uma dimensao signi-ficativa da articulacao entre a medicina e 0 economico, mesmoquando se considere essa dimensao apenas como secundaria porreferencia a outros aspectos da mesma articulacao,De referenda a constituicao de novas configuracoes da pra-tica medica e possivel afirmar que, mediante arelacao entre 0 tra-balho medico e 0 objeto de sua pratica, 0 desenvolvimento detais reeursos tecnologicos e de capital, equivale a possibilidade deuma radical transformacao na producao de services, basicamenteem dois sentidos: 0 da superacao da clinica como meio basicode trabalho e 0da absorcao progressiva da medicina artesanalpor novas rnodalidades de organizacao da producao. Em relacaoa prirneira possibilidade, e necessario Iembrar a imediatez da re-lacao entre 0medico e 0 instrumental de que se compoe a elinicapara advertir a possibilidade de uma significativa reestruturacaointerna do ato medico a base dos novos meios de trabalho: "0exame ja nao anseia por reconduzir a superficie do corpo, as po-tencialidades do toque, os elementos reveladores do mal. Ultra-passando a fronteira onde se lia at e entao 0 testemunho morbido,ele procura na profundidade dos orgaos (endoscopia) ou em suaorganizacao histologica (anatomo-patologica) a essencia lesional,A autopsia verificadora, logicamente contemporanea" da morte,sucede 0 rapto da substancia viva da biopsia. 0 medico ja naoadivinha a causa, ele a ve, a reconheee na arquitetura celular,na forma.rna coloracao e na importancia dos elementos do nucleo

    eeonomicos quede trabalho

    articula~iio daesnectatmente na dimensao

    "politizacao"em varias di-ciencia me-medicinae do.o modo de vida dos

    tecnologico sobre 0bem-estar do paciente; iden-

    (8) Polack, J.(9) Parabrasileira,des doLivraria

    na sociedadeas rnodalida-e Sociedade,espccrarrnerue Capitulo II.20 21

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    umapossibilidade dec1aramente discernivelna imediatez daCaracterlsticaplano da

    Esse objeto - 0 corpo -'- ao qual se dirige 0 ato terapeutico,pode ser pensado, em decorrencia de sua Iormalizacao ao nivelda ciencia biologica, primeiramente como uma estrutura anatomo-fisiologica suscetivel, em sua generalidade, de uma manipula9aOorientada para principios regulares e repetitivos de interferenciatecnica. E a esse corpo anatomo-fisiologico, coujunto de cons-tantes estruturais e funcionais, que a rnedicina se propoe funda-rnentalmente dirigir, Mas ao toma-lo como objeto de sua praticaela nao se dirige precipuamente para 0 desvendamento das regu-laridades elaboradas ao nivel da ciencia biologica, e sim paraa obtencao de efeitos especificos, orientados uma concepcaodo e normal ou patologico 0 corpo. outros termos;nao apenas a ciencia do corpo mas 0 proprio corpo que consti-tui 0 objeto da medica e, ainda 0 corpo normalou patologico suscetivel de uma manipulacao com vistas a deter-minados efeitos.

    Do centramento da medicina no corpo anatomo-fisiologicoe na forma pela qual ele e conceptualizado no interior de urndado campo cientffico, decorre que 0 reconhecimento daquelasregularidades cientificamente construidas proporciona tambem 0primeiro referendal a dos conceitos de normale patologico, da tecnica da medicinasobre 0 seu objeto, Esse nao permite darconta de todas as implicacoes norrnalidade ou detodas as determinacoes que se exercem sobre 0 corpo. 0 queimplica afirmar, ao mesmo que 0 como objetopratica medica nao se anatomo-fi-siologica,

    A primeira dessas aos limites da cons-trucao cientifica do frente a manifesta-,;;ao concreta de encontra sen suporte nas analisesde Canguilhem e se conecta com a ideia anteriormente aventadada da sobre a ciencia: "0 conceito denorma e um conceito que nao se deixa reduzir ~ emfisiologia mais que em outra - a um conceitoobjetivamente determinavel metodos cientfficos. Portanto,rigorosamente falando, 11f1O uma ciencia biologics do normal.Ha urna ciencia das biologicas chamadas'normals'. condicao de norma-lidade constroi-se no desenrolar propria vida a qual e,em si,norrnativa, capaz de instituir normas e modificar as normas queinstitui. Ela traca os limites para a conceptualizacao do normale para sua restauracao, e nao se subordina aos canones cientif icos

    tificacao do carater discriminatorio, de classe, que se manifestana manipulacao dos recUISOSmedicos, e outras tantas orientacoesque talvez possam ser.sintetizadas nos termos propostos por Po-lack: "Politizar 0fato medico e encontrar aquilo que, na doen-ca, apesar do brilho da medicina, protesta cc:ntra a ordem sociale, por consequencia, em sua consciencia elaborada, a ameaca." (10)Todavia, 0 tratamento dispensado a esse elemento central da pra-rica medica _\ os meios de trabalho ~ tinha escopo bastantelirnitado. Nl10 se propunha sua analise historica, mas tao-so-mente indicar irnpossibilidade de 0 sen earater socialatraves do exclusive registro de sua diferenciacao progressive,especialmente este implica a sua reducao a urn conjuntode elementos interior de urn campo cientffico etecnologico, Por outro lade, embora 0 carater historico dos meiosde trabalho sponte diretamente para a historicidade dos objetivosda medicina e dela decorra, os elementos ate aqui indicadospermanecerao bastante incompletos sem uma referenda maisdireta a tais objetivos. fase do estudo esse tratamento sereduzira tambem a algumas indicacoes muito gerais.

    Parece inegavel que a pratica medica se estrutura por refe-rencia a objetivos que se encontram dados fora dela, na estru-tura economica e polftico-ideologica das sociedades nas quaisse integra. Permanecer, entretanto, no plano dessa afirrna

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    mas eventualmente os subordina. 0 homem sadio e 0 homemcapaz de muitas normas: "A saude e uma margem de toleranciacom respeito as infidelidades do meio ambiente (. .) . Porem,o meio ambiente ( ... ) nao e urn sistema de constantes meeani-cas, ffsicas e qulmicas, nao estara acaso consti tuido por invarian-tes? Por cerro esse meio ambiente que a ciencia define esta cons-tituido por leis, porem essas leis sao abstracoes teoricas. 0 servivo nao vive entre leis mas entre seres e acontecimentos quediversificam essas ( ... ). Sustentamos que a vida de urn servivo ( . .. ) somente reconhece as categorias de saude e enfermi-dade no plano da experiencia, que e antes de tudo uma provano sentido efetivo do terrno e nao no plano da ciencia, A cienciaexplica a experiencia, mas nem por isso a anula." (12)E essa dimensao extracientifica da norma e do corpo normalque a medicina enfrenta em sua pratica concreta, reconheca-oou nao no plano das Iormalizacoes teoricas que orientam essainterferencia, Recorrer, portanto, como faz Canguilhem, aos "mo..dos de andar a vida" como criterios para a normatividade, equi-vale tambem a ultrapassar a concepcao do corpo anatomo-fisio-logico como objeto ingenue da pratica medica, principiando aidentificar nesse corpo outras ordens de determinacoes, A nor-matividade de que fala Canguilhem e ainda, em urn primeiroplano, uma normatividade biologics. Esse biologico nao se con-funde, todavia, com a reducao do corpo a urn conjunto de

    tantes estruturais-funcionais: "0 homem, inclusive 0 homemco, nao se limita a seu organismo. Posto que prolongou seus6rgaos atraves de instrumentos, 0 homem somente considera seucorpo como 0rneio de todos os possiveis meios de a

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    significado na estrutura historica da producao: significado quese expressa na quantidade de corpos "socialmente necessaries",no modo pelo qual serao utilizados, nos padroes de acao fisicae cultural a que deverao ajustar-se. Do fato de que 0 trabalhoocupe posicao fundamental na forma pela qual cada sociedadedeterrnina 0 sentido e 0 lugar social dos indivlduos que a com-poem decorre 0 segundo aspecto a ser assinalado: 0 corpo social-mente investido nao hornogeneo, dado que em sociedades de-terminadas os diversos corpos nao tern significatividade igual,mas, ao dimensionam adquirem significados par-ticulares, quer no das representacoes, quer ao nivel da for-ma pela incorporados 11estrutura da producao social.Essa dupla da normatividade social e, em parte, tra-balhada por quando se a analise do sistemade relacoes entre formas efetivas de consurno medico na Francae 0 conjunto de cornportamentos corporais distintas categoriassociais: "As norm as que determinam as condutas fisicas dos su-jeitos sociais e sistema constitui sua 'cultura somatica' saoo resultado de condicoes objetivas que essas normas retraduzemna ordem cultural ( e dependern, mais exatamente, do grauem que os individuos obtern seus meios materiais de existenciada atividade da venda de mercadorias que sao 0 produtodessa atividade on do aproveitamento da f'orca ffsica e de suavenda 110 mercado de trabalho. (14)o estudo de Boltanski constitui urna das poucas analisesque, tomando como centro a instauracao do corpo como reali-dade social, buscarn sistematica mente, a partir dai, explicar ele-mentos caracterfsticos da estrutura da pratica medica atual, nocaso do auto!". em uma perspectiva que remere basicamente aidentificacao do social discipl inador, ou de normatizacaodo corpo, propria medicina, (15)o tratarnento que dispens a as variacoes do consumo medico

    das diferentes classes socials ao autor negar a possibili-dade de da medica" (de con SUmo medico)a urna primaria, e conduz igualmente a superar, em-b~ra por via da vern sendo aqui utilizada, uma visaosimplificada do medicina: "Como 0 consumo medicose relaciona com um 0 corpo, cujo Iuncionamento parecefundamental mente determinado coacoes de ordem fisiologicaou biologica, tende-se com a reduzir, ao menos impli-

    citamente, a 'necessidade medica' auma 'necessidadeque, subordinada diretamente a s exigencies do corpo, tenderia( ... ) a aparecer logo que aparece a enferrnidade e a satisfazer-sedesde que aparece ( ... ). Somente atraves da relacao que os indi-viduos mantem com 0 seu corpo e possivel romper com a teorianatnralista das necessidades e das funcoes (. ) . Esta teoriatende a ver em cada consumo particular, em nosso caso 0 con-sumo medico, a expressao direta de umapreexistente - em nosso caso a 'necessidadede necessidade primaria cuja natureza seria identica asepocas e em todos as grupos sociais ." (16)

    Em ultima analise, 0 que se pretendeu ressaltar ate aqui,atraves de proposicoes bastante gerais, e que a compreensao domodo pelo qual a sociedade toma seus corpos, os quantifica elhes atribui significado cultural, politica e econornica e indispensa-vel para explicar as formas assumidas pelsque com isso se pretendesse tambem afirmarmentos que constituem 0 campo da medicina sao .estruturadosfora dela. Encontra-se ainda por fazer uma historia da medicinacapaz de dar conta, sistematicamente, das determinacoes econo-micas e politicas do corpo e de sua relacao com as tormas histo-ficas da producao medica. Nao e diffcil todavia verificar que,da medicina grega, com sua diversificacao interna de terapeutas,de saberes, de tecnicas e de objetivos em conformidade com adiferenciacao socialmente estabelecida entre os dos escravose dos homens livres - ricos e pobres - estrutura atual dapratica medica, que extrai grande parte de sua peculiaridade dosignificado politico e economico da forca de trabalho em suarelacao com 0 capital, 0 trabalho medico se exerceu, atraves dobiologico, sobre corpos socialmente determinados. Com isso na-turalmente, a propria interferencia da medicina sabre 0seu obje-to, e nao apenas os principios que regem essa interferencia, ultra-passam os efeitos identificaveis ao nivel do corpo biologico, (17)

    Esse carater da medicina ja se expressa no plano do atoterapeutico individual. Mas e justamente a forma assumida pelaestrutura integral da prestacao de services que 0 revela maisclaramente, posto que permite identificar a que sociaiseles se destinam, que ordens de problemas "tecnicos" ou de enfer-midades sao por eles abrangidos, que efeitos decorrem de taisintervencoes, como se estruturam e que rneios de trabalho mobi-

    (14) Boltanski, Sociales del Cuerpo, Ediciones Pe-riferia, Buenos Aires,(15) Essa encontra mais elaborada em outra obra domesmo autor : Education Morale de Classe, Mouton, Paris,1969, e sera posteriormente considerada.

    (16) Boltanski, Los Usos Sociales del Cuerpo, pp. 23 e 99.(17) Como fonte de dados para a analise desses aspectos, ver a cole-tanea de textos de autoria de Henri Sigerist - Historic Sociologia defa Medicina, editada par Gustavo Molina, Bogota, especialmenteCapitulos I, II, III, V IX.

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    lizam com vistas ao atendimento de diferentes "corpos sociais".Ao mesmo tempo, e ainda desse angulo que se pode sobretudoperceber a relacao entre 0 objeto da pratica medica - entendidoja agora como objeto tambern socialmente determinado - e osobjetivos que the sao. atribuiveis a partir da forma de realizacaoda estrutura social inclusiva. E is so porque a articulacao da me-dicina com objetivos localizaveis -mediata ou imediatamente- em diferentes niveis da vida social ou, em outros termos, abusca, atraves da mobilizacao da pratica medica, de efeitos sociaisdeterminados, se efetiva primeiro e necessariamente atraves dadesignacao dos sujeitos que se constituirao em objeto dessa pra-tica.

    Capitulo IIna de Classes

    Diferentemente cuja origem e coin-cidente com a ou com 0 desenvolvimento dasociedade a revestir-se mais facil-mente de um as determinacoes espe-cfficas que adquire na sociedade 0 consideravel desen-e tecnologico subjacente a pratica

    ""."".,"".LW'-'. a possibilidade de na me-de cienti-

    tambem por re-relacoes so-na marcada con-suportes.

    no interiorse situarem

    entre as mais e que elespodem tambem investidos do caraterde autonomia, como de praticas eagentes que, preexistindo a lim novo modo producao parecempreservados de novas form as correspondentes a articula-c;oes as estruturas economica e poll-tico-ideologica que (1)

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    A referenda Gramsci categoria derecobre nitidamente a dimensaocerca a medicina e 0 medico: "Dadolectuais tradicionais sentemtinuidade historica e suarno sendo autonomos eautocolocacao nao dcixa

    "intelectuais tradicio-que, dat derivada,categorias de inte-sua ininterrupta con-. . s L . _mesrnos co-dorninante. Essaimportancia no

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    1. A medicaliza;ao da socledade

    seu efetivo significado para a explicacao cia estrutura atual deproducao de services medicos, bern como de sua importancia naproblematizacao, relativamente recente, da pratica medica, quese exerce a partir de fontes, motivacoes e referenciais bastante dis-tintos.o processo atraves do qual a pratica medica toma neces-sariamente como seu objeto diferentes categorias e classes sociaisconsti tui, tambem aqui, 0 ponto central para a analise dos as-pectos que caracterizam essa pratica nas sociedades capital is tas,part icularmente no capitalismo industrial . determinantes desseprocesso e as formas por de assumidas encontram-se tambem, na"turalmente, na origem dos sucessivos projetos ou tentativas deorganizacao racional da producao de services, de que a MedicinaComunitaria representa, em parte, uma das manifestacoes.

    Urn dos angulos atraves dos quais se poderia apreender maisfaci lmente os.nexos entre a pratica medica e a estrutura de classese dado pela propria diterenciacao pratica medica conforme sedest ine as distintas classes e camadas diferenciacao essaque tern sido registrada mesmo em sociedades onde a forma deorgantzacao dos services medicos faria supor a ocorrencia de urnpadrao "igualitario" de COl1SUlno.2)

    Nao sendo, em urn fenomeno novo, uma vez que a propriamedicina antiga ja ditere, em sua pratica, segundo a origem socialdo paciente, a diferenciacao adquire especificidade nas sociedadescapitalistas como decorrencia da forma pela qual nela se proje-tam 0 fator trabalho e as relacoes de classe. Assim e que, mesmoa partir do memento em que 0 ouidado medico se generalizouamplamente, como resposta, quer a necessidade de reproducaoda forca de trabalho frente ao processo de producao economic a,quer a mementos particulates do desenvolvimento, a nivel poli-t ico, des antagonismos de classe, verificou-se paralelamente: deum lado, a selegao de grupos sociais a serem incorporados aocuidado medico, conforme ao seu significado para 0 processoeconomico e politico; de outro, urna dif'erenciacao das instituig6esmedicas voltadaspara diferentes tipos de e diferentes clien-telas, a qual se expressa em grande parte em sen carater 'privado'ou 'estatal' mas que nao se esgota ai.Ernbora esses process os se apresentem graus e formasdiferentes em distintas forrnacoes socials, devem ser registrados,

    Analisar a especificidade assumida pratica medica nascciedade de classes implica, primeiro, romper com essa concep-t, la9 de neutralidade, buscando i?entificar , ~m todos os a~pec:osda pratica, as formas pelas quais el~ expnme ~s ~e~erm1l1agoesproprias a essa estrutura. Tarefa obviamente mars facil de proporque de executar, mas cuja forrnulacao, quando menos, to;na-senecessaria para orientar os limites bastant.e m~destos a~aves ~osquais se tentara identificar, para alem da imediata funcao tecnicada medicina, seu significado economico, poli tico e ideologico. 0principal aspecto dessa limita

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    em sua generalidade, a fim de indicar que a extensao atual damedicina nao traduz nem a total generalizacao do cuidado me-dico, nem 0 desenvolvimento necessa rio de urna prati ca uniformepar referencia aos tipos de cuidados prestados. Ao contrario, aexclusao, ainda arual, de determinadas camadas sociais do acessoa tais cuidados, tanto em sociedades capitalistas centrais quantonas dependentes, bem como a constatacao de que a rnedicinainstitucionalizada reproduz - na forma pela qual seleciona pa-tologias, incorpora e a favorece 0 atendirnentodiferencial das classes sociais - 0 da sociedade,tem-na leva do, com ao centro do debate politico acer-ca da estrutura sociedades. Diga-se, passagem, queesse carater seletivo conduz muitos dos criticos da medicina con-temporanea a ressaltarem sua orientacao individualista, concep-

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    A extensao mais marcada do cui dado medico sob a formade consumo individual diz respeito, propriamente, a estruturade producao de services ja no seculo XX, quando na maior partedas sociedades capitalistas desenvolveram-se os esquemasde segu-ro-social como meCaniS1110Snstitucionalizados pelo Estado sobas condicoes proprias do capitalismo rnonopolista. Entretanto, ainstauracao do seguro-social c , com eie, da extensao do consumomedico, constituiu urn rnomento adiantado de urn processo cujasorigens sao mais remotas e ja revelam, sob outras facetas, a espe-cificidade do papel assumido pela medicina na estrutura socialcapitalista. Em outros termos, a tendencia a extensao social dapratica medica embora se revista atualmente de formas institu-cionais especfficas e se expresse no aumento das possibil idades deconsumo individual de services responde em sua generalidade,tambem sob outras formas, e em distintas circunstancias, a con-dic;oes relacionadas ao processo de acumulacao do capital ou,ainda, a necessaria subordinacao do trabalho ao capital em con-dicces as mais adequadas possiveis a obtencao e apropriacao damais-valia. Antes de considerar algumas das situacoes historicasatraves das quais se configurou a medicalizacao, pode-se ten tarsistematizar, em algum grau, as formas de participacao da medi-cina na reproducao social atraves da reproducao da forca detrabalho e das relacoes de producao, ou relacoes de classe, semque se vise distinguir, a nao ser analiticamente, esses dois aspectosde sua articulacao na estrutura social.

    A continuidade do processo de acurnulacao capitalista ouda reproducao das condicoes ~ econornicas e politico ...deologicas- da producao constitui, portanto, 0 ponto de referenda maisamplo para a analise da medicina como pratica social na estru-tura capitalista. 0 fato de que e1e encontre na reproducao daforca de trabalho urn de seus componentes fundamentais, apontaimediatamente para uma das formas possiveis de participac;ab damedicina em tal processo, uma vez que 0 corpo representa, porexcelencia, 0 seu objeto. Dado porem, que esse objeto s6 sedefine no conjunto das relacoes sociais, ao exercer-se sobre 0corpo, definindo os Iirnites de sua capacidade fisica e normati-zando as Iormas de sua utilizacao, a medicina nao apenas criae recria condicoes materials necessarias a producao economicamas participa ainda da determinacao do valor historico da torcade trabalho e situa-se, portanto, para alern de seus objetivostecnicamente definidos,, Essa aplicacao da rnedicina ao corpo, enquantoagente so-cialmente determinado da producao economica, fundamenta, entreoutras, uma de analise que apreende a participacaoda pratica no processo de acumulacao atraves de sua

    imediata articulacao com a estrutura economic a, em particularcom 0 momento da producao. Sinteticamente, tal perspectivaacentua 0 papel da medicina no processo de producao da mais-valia, em particular da mais-valia relativa atraves basicamente doaumento da produtividade do trabalho, dado que a melhoria dascondicoes de saude do trabalhador possibilita a obtencao de urnmaximo de produtos em menor tempo de trabalho e, correspon-denternente, a producao de mercadorias pOl'eusto mais reduzido.Ou, em outros termos, ao dirigir-se a Iorca de trabalho ocupadana producao, a pratica medica (ernbora aumente 0 valorabsolutedessa forca pelo aumento de tempo de trabalho a ela incorporado)contribui para 0 aumento da rnais-valia atraves da reducao dotempo de trabalho necessario para a obtencao do produto a queessa f'orca de trabalho se aplica, e da consequente baixa de seuvalor pOl' relacao ao do produto,

    Apontando para esse aspecto nuclear especificidade damedicina como pratica social, a produtividade do trabalho cons-titui tema central de varies estudos que buscam no economico e,em particular, no momento da producao, urn elemento explicativeda articulacao estrutural da medicina, como conhecimento oucomo pratica. Pode-se utilizar os termos de Polack para indicaro conteudo dessas formulacoes, ernbora com a advertencia deque tais termos nao as sintetizam, mas apenas express am 0 sen-tido geral em que se orientam: "Dirigindo-sea forc;a de trabalho,o ato terapeutico eleva seu nivel ou contribui para sua manuten-C;aono quadro de uma reproducao ( .. ). A Medicina nao visaessencialmente 0 dominic dos quadros organizativos da economia,mas a definigao permanente de urn nfvel de produtividade. Asforcas produtivas (a energia proletaria) constituem 0 seu alvoeleito. Por isso meSl11O,a influencia cia atividade sanitaria sobrea marcha da economia e relativamente direta, imediata. 0sistemade cuidados tern sob seu controle a parte Inrmana da atividadede producao, 0 trabalho ( ). Toda a medicina e ate de regu-lacao da capacidade de trabalho. A norma do trabalho impregnao julgarnento dos medicos como Urn ponto de referenda rnaispreciso que U111 valor biologico ou fisiologicornensuravel. A so-ciedade atribui portanto ao trabalho Urn valor de norma biolo-gica." (5) 0processo de trabalho medico seria entao permeado,em todosos seus mementos, pela necessidade basicamente eco-nomica de reproducao da forca de trabalho. E ainda nesse sen-tido, embora no quadro de uma problematica mais restrita que seorienta Dreitzel ao desenvolver a analise do que designa "atitudeinstrumentalista para com 0 corpo" como base do processo de

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    (5) Polack, .1 . c. - La medicine du Capital, Maspero, Paris, 1971,pp. 35-36.35

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    obtencao da produtividade e do lucro e como elemento explica-tivo de aspectos da organizacao dos services medicos nos EstadosUnidos: "Em nossas sociedades capitalistas a saude e institucio-nalmente definida como a capacidade de produzir 0 excedentea~ropriado pelos pr

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    sistentes em um conjunto sempre crescente de recursos materialscuja utilizacao substitui etapas anteriormente inerentes ao atoclinico.o sentido dessas alteracoes nao se esgota, todavia, na mo-dificacao intern a doprocesso de trabalho mas diz respeito a umaforma particular de articula

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    politico e ideo16gico da extensao da pratica medica e que respon-de, tambem, fundamentalmente, pela irreversibilidade acima refe-rida, do processo, A necessidade de manter e recuperar a forcade trabalho com vistas ao aumento da produtividade, se proporcio-na 0 angulo privilegiado da articulacao da medicina com 0 eco-nomico e revel a a sua participacao relativamente direta na orga-nizacao do processo produtivo, nao esgota, quer a analise de seupapel na reproducao da estrutura de classes, quer a identificacaodos elementos subjacentes a rnedicalizacao e as formal> por elaassumidas,

    A fim de identificar sob outros angulcs as determinacoes queincidem sobre a pratica medica, e necessario considerar que ascondicoes de continuidade do processo de acumulacao nao se en-contram dadas inteiramente no plano da reproducao, a nivel eco-nomico, dos fatores de producao. Na medida em que as relacoesde producao sao relacoes de classe que se processam atraves denma contradicao fundamental, consistente na oposicao entre 0carater social da producao e 0 carater privado da apropriacao,elas implicam a possibilidade do desenvolvimento dos antagonis-mos de classe e da transformacao do modo de producao. Nessesentido, a continuidade do processo de acumulacao capitaJista de-pende da presenca de condicoes supra-estruturais - ideologicase politicas - capazes de assegurar que nao se manifestem contra-dicoes ja instaladas ao nivel da estrutura da producao, adquirin-do, tambem a nivel politico, a forma de antagonismo, Depende,em outros termos, das possibilidades de exercicio da "hegemonia",entendida como 0 dominic ideologico e politico das classes nopoder sobre as dernais classes na sociedade, 0 qua] se processaatraves de um conjunto de instituicoes privadas ou estatais.o conceito de hegemonia, elaborado por Gramsci com vis-tas aexplicar, atraves da analise do ideologico e do politico, ascondicoes de sujeicao das classes dominadas, permite apreenderas relacoes entre as classes no sentido de direcao cultural e po-Utica. Distinguindo a "sociedade civil" da "sociedade politic a"ou Estado, Gramsci refere-se a funcao de "hegemonia" exercidapelo grupo dorninante e a Iuncao de "dominio direto ou de co-mando" exercido pelo Estado como organizacao .politico-juri-dica, expressas atraves da obtencao de urn consenso "coletivo"acerca da orientacao impressa ao poder pelo grupo dominante,quer atraves da direcao intelectual e moral, quer atraves da coer-

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    grup?S .sobre os ela se exercera, que se forme um certoequilfbrio de comprornisso, que 0 grupo dirigente faca sacriff-ClOSde ordem economico-corporativa; mas e tambem indubita-vel que eS.tessacrificios e este comprornisso nao podem referir-sea~, essencial; porque se a hegemonia e etico-politica, nao podedeixar de ser tambem economica, nao pode deixar deter seufl!ndament? .na fum;:ao decisiva que 0 grupo dirigente exeree nomicleo ?~C~SlVOa estrutura economica." (11) Em outros termos,as POSSl~lhd~des de exercfcio da hegernonia nao se encontram jadadas historicamente mas se atraves de urn processocontradit6rio de enfrentamentos e, pOI' de concessoes, en-tre cIa~ses e. . . de. classes, indicando a presenca, ao menospotencial, de distintas ideologies e projetos politicos capazes dedesempenhar papel efet ivo na transformacao da estrutura.. . A. analise da articula

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    pectiva se desloca da contradicao para a hierarquizacao das ca-tegorias sociais segundo um"quantum" de consume. Nesse sen-tido, parece adequadoconsiderar que a propria otica da diver-sidade do consumo das diferentes categorias sociais pode ja re-presentar urn .mecanismo potencial de suavizacao de confl itos so-ciais, nil. 'medida em que corresponda a urn deslocamento para aexclusiva esfera do consumo, de antagonismos identificaveis aonivel da producao, Essa otica tern a vantagem de proporcionarum elemento de manejo economico e politico possivel, dado quea elevacao controlada do consumo nao afeta 0 essencial da es-trutura de produgao e que niveis mais elevados de consumo po-dem constituir, particularmente em certas conjunturas, aspectosignificative da hegemonia, conquanto deva ser mantido em Ii-mites compatlveis com a realizacao de taxas adequadas de acumu-Iacao - limites apenas definiveis par relacao a dinamica econo-mica e politica no plano das formacoes sociais. Neste plano, aestrutura de classes nao se reduz as duas classes polares identifi-cadas ao nivel do modo de producao capitalista - burguesia eproletariado - mas expsessa-se atraves de uma multiplicidadede classes, fracoes de classes, camadas, cuja situacao de classedeve ser todavia referida as relacoes de producao ou seja, as for-mas pelas quais se definem as suas posicoes na estrutura daproducao. Do fato dessa rnultiplicidade de classes, que so po-dem ser apreendidas e analisadas peIo estudo da forma como serealiza 0 modo de producao em cada sociedade concreta, decor-re em parte a possibilidade do deslocamento da enfase na dife-renciacao dada ao nivel da producao para aquela que se da aonivel do consumo ou, sob outra forma, a possibilidade de sobre-por a presence de uma estrutura de classes a otica da estratifi-cacao social.Atentar para a ocorrencia desse deslocamento, bem comopara 0 fato de que de pode estar em correspondencia com osinteresses economicos, polit icos e ideologicos das classes domi..nantes, nao significa que se deva visualizar 0 processo politicotao-somente pelo jmgul da dominacao, 0 interesse dessa pers-pectiva decorre da possibilidade que oferece para a compreen-sao de uma das dimensoes das "politicas sociais" destinadas aprcporcionar consumes especificos tais como educacao, saude,habitacao, e que na fase atual do capitalismo encontram 110 Es-tado 0 seu agente privilegiado. E importante reafirmar que taispoli ticas nao correspondem a qualquer al teracao significativa nasrelacoes de producao e que, alem do sentido que. adquiren~ noprocesso politico podem mesrno corresponder ao interesse nne-diatamente economico do capital, quer por ativarem determina-das areas de producao, quer por representarem a garantia deum salario indireto 0 qual, refletindo-se em uma redistribuicao

    da renda on em urna vantagem de naoos custos saodo Estado. Isto

    maior montante consume, traz ademaisdiretamente sabre 0 capital sempre quesobretudo par meio da partieipacaoque as "politicas sociais" corres-estntamente aos interesses dominantes ~sdentro de certos limites, elas nao a~-e, tal, sua potenciali-processo politico. potencialidade-do processo - acresce-se do fatoem sua fun

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    de classes ou de classes nao hegemonicas tem-nas reve-lado como forcas socials, a partir da expressao dessa .modalidadede interesses, Consequentemenre, se por vezes a hegernonia po-lftico-ideologica se expressa atraves de interferencias no plano dadistribuicao e do COl1SlJmode bens que assumern urn carateraparentemente independente das relacoes de classe, especialmen-te na medida em que podem antecipar-se a qualquer manifesta-s:aoY.1mediatade confliros sociais, e precise considerar que, mes-mo na incorporacao dessa ordem de interesses sociedade, re-vela-se tambem classes nao hegemoni-cas como outros tennos, a compreensao da"politica como parte do processo de controle dos antago-nismos, implica se apreenda 0 fato de que ela expressa, emsua realizacao e em suas l11odalidades, a relacao das Iorcas 50-dais ao nfvel das sociedades coneretas.

    Embora nao se trate de privilegiar a articulacao da medici-na com 0 frente ao sentido que adquire no plano da pro-dugao senso estrito -- 0 seu significado respectivopor a reproducao social so poderia ser apreendidoem outro nfvel de analise -'- pode-se admitir que 0 processo pe-10 qual a medica acabou por tomar necessariamente comoseu objeto pratieamente todas as classes, fragoes de classes e ca-madas socials constitriiu sobretudo uma das form as de manifes-tagao, no plano das relacoes de classe, 0 proprio fatode que a e a morte se distribuam de maneira a reve-lar as formas departiCipagao dos grupos sociais na estrutura daproducao e nas oportunidades de consume contribui para tornara medicina uma areasig;nificativa do ponto de vista politico.Nas alteracoes experimentadas pela producao de services medi-cos manifestou-se, em seu duplo sentido, 0processo acima refe-ride de incorporacao da desigualdade ao nfvel polit ico ideologi-co: expressao, a um tempo, do exercicio da hegernonia declasse e das pressoes por aumento de consume como potencial-mente negadoras dessa hegernonia. A historia politica da medi-cina, em as sociedades, revela mementos particularmenteexpressivos dessa ordem de determinaooes: "Se se considera maisde perto essa de etica, e posslvel conta de que 0va-lor da vida hurnana sofre variacoes in cess antes em tome de al-guns mementos de flexao historica e politica. Esse valor variou,sem duvida, nil. com a Frente Popular, a. Resistencia, aLibertacao, a das situacoes colonials, sem que se pos-sa afirmar, por outre 0 paralelismo dessas-modificacoescom 0 creseimento econornico e as variacoes da balanca comer-cial (. .) A respeito valor da vida humana e de suas flu-tuacoes, .a inercia do sistema e essencialmente economica, as mu-

    tacoes sao politico-~ociais." (15) 0 ~esmo fenom~~o pode s~rdescrito para a maier parte das sooiedades europeras, a partirdo seculo XIX, bem como para as sociedades amerioanas, espe-cialmente no seculo XX. Todavia, e importante assinalar a re-lativa impropriedade dacompartiIl1el1taliza.9ao, expressa n~ c~-tado texto, das determinacoes economicas e politicas que mCI-dem sobre a pratica medica. Necessaria para efeito de analise,ela nfio corresponde a complexidade da forma de articulacao damedicina no conjunto das praticas sociais, na medida em que,referidas as condicoes gerais do processo de acumulacao, refl itaas contradieoes proprias a de.A participacao da medicina na dinamica das relacoes declasse evidencia-se mais facilmente na epoeaatual, quando a no-< ; 3 . 0 de "direito a saiide" tornou-se a pedra de toque atraves daqual se manifestant as determinac;oes politico-ideologicas que in-cidem sobre a pratica medica. Todavia, e desde que nao secompartimentalize 0 economico e 0politico-ideologico no plano.concreto da reproducao social, e possivel pensar a progressivareorganizagao historica da pratica medica como inseparavel detodo 0 processo de constituicao e reprodueao da estrutura dassociedades capitalistas.

    2. Raizes da medicalizaCff80

    A redefinicao da medicina como pratica social aparece jamarcadamente no seculo XVIII, atraves sua extensao 'insti-tucionalizada para 0 ambito de toda a sociedade, permeando 0proeesso polit ico e eCOnOIl11cOe: forma peculiar . Nao e 0 cui-dado medico que entao segeneraliza e sim 0 que se poderia con-siderar, de maneira aproximada, uma extensao do campo de nor-matividade da medicina atraves da defini

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    ciedades, Pode-se, todavia, registrar alguns desses mementos dereorientacao da medicina os quais, se nao proporcionam todasas indica~oes para a compreensao de seu significado social re-cente, revelam ja alguns de seus fundamentos,Os estudos de Rosen sobre a emergencia e 0desenvolvimen-to da nocao de "polttica medica" e das conotacoes que assumeem diferentes sociedades europeias indicam c1aramente as basesdo que se poderia considerar a reorientacao da medieina no sen-tido de urn novo modo de articulacao com as estrategias politi-cas e economicas da nova estrutura de producao que se consoli-

    dava, (16) 0 significado social assumido pela medicina com aemergencia do capitalismo ja se esboca durante 0 penodo mer-cantilista, articulado ao papel que. ele desempenha no processode acumula~ao da.riqueza. Marcando a etapa de transil$ao domodo feudal ao modo capitalista de produgao, 0 mercantilismocomo doutrina e forma de organizacao social a um so tempoeconomica e politica, implica 0 recurso a diferentes meios deacumulacao pelas sociedades europeias: 0 sistema colonial, 0 re-gime de dividas publicas, os esquemas de tributacao, 0controlesobre a atividade produtora interna. E implica, em contraparti-da, 0 reforco e a utilizacao de urn poder centralizado, capaz deacionar aqueles meios - 0poder do Estado: " . .. 0corte en-tre 0Estado feudal e 0Estado capitalista nao ocorre no momen-to em que aparece 0 Estado correspondente a consolidacao dodominio politico da classe burguesa, cujo exemplo seria0 Estadosaido da Revolucao francesa, mas no momenta em que aparece 0Estado absolutista (. . ) . A funcao do Estado absolutista naoe precisamente operar nos limites fixados por um modo de pro-du~ao ja dado, mas produzir rela

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    George Rosen precede a urn registro circunstanciado da en-fase posta pelas doutrinas economicas ~ pohticas sobre a impor-tancia do crescimento populacional na Franca, Inglaterra e Ale-manha, especialmente nos seculos XVII e XVIII. Em todos es-ses paises estabelecem-se programas para 0 calculo da popula-~ao atraves de estatfsticas de nascimento e de mortalidade, berncomo polft icas eventuais de estfmulo aos casamentos e nascimen-tos: "0 que 0 poder naeional necessitava, conforme 0 percebe-ram seus legisladores e seus conselheiros era, antes de mais na-da, uma grande populacao; em segundo lugar, que a populacaofosse provida, para tanto, de recursos materials; e, finalmente,que ela devesse estar sob controle do governo, de forma a poderser utilizada para qualquer dos usos requeridos pela polftica es-tatal. Embora a doutrina mercantilista reeebesse em suas aplica-~oes, enfase variada em epocas e lugares diferentes, reconheceu-se sempre em algum grau que 0 uso efetivo da populacao em urnpais exigia atencfio aos problemas de saude." (10)

    Aumentar e controlar a populacao nao signif ica necessaria-mente medica-Is, em sentido estrito, mas representa uma tarefapotencial para a medieina como pratica social que se redefine.Essa tendencia difusa, articulada as praticas do mereantilismo,a pensar os problemas de saude, adquire primeiro efetividade nosestados alemaes, onde se procurou desenvolver, desde logo, umaa

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    Iho redefinida, participara progressivamente do novo modo deacumulacao peculiar it sociedade mercantil capitalista.Ainda que amplamente divulgadas na epoca, sobretudoatraves da obra de Peter Frank, "Medicinische Polizcy" as con-

    cep~()es e praticas consubstanciadas no conceito de poli?-a me-dica nao encontram no resto da Europa expressao equivalenteit que adquiriu na Alemanha, condizendo com sua sitlla'Sao derelativo atraso economico frente a outros paises europens, massobretudo com 0 papel a ser ali desempenhado pelo Estadotambem em mementos sucessivos da organizacao social, na im-pl

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    mente a forma pela qual, com a pobreza, 0 problema da neces-sidade adentra a Revolw;ao francesa e supera (sem impor-se, to-davia, poder-se-ia desde logo acrescentar) 0 nucleo do movimen-to revolucionario consubstanciado, segundo ele, no principio daliberdade: "A ideia de que a pobreza serviria para que os ho-mens.rompessem os grilhOesda opressao, dado que os pobres na-da tem a perder senao suas cadeias, chegou a ser para nos taofamiliar ( ... ) que tendemos a. esquecer que era desconhecidoantes da Revolucao Francesa." (23) A invoca

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    primeira metade do seculo XIX.Tais concepcoes se desenvolvem sobre 0 quadro de fundoda industrializacar, gradual da Franca apos a Revolucao e asGuerras Napoleoni93s, industrializacao que reproduz as preca-rias condi90es de tTabalbo e vida urbana a que estiveram sujei-tos os trabalhadores industrials tambem na Inglaterra e outrospafses. A forca de trabalho liberada pela nova estrutura econQ-mica concentrara-se nos centres industriais urbanos: "A popula-

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    cando necessariamente uma contradicao, essa arnbiguidade, con-tudo, apenas persistira ate a definitiva afirmacao da hegemoniapolit ica burguesa e 0 relativo alijamento das demais classes so-ciais da participacao no processo politico. Contribuindo paraabalar as estruturas socials e politicas da "velha sociedade", asnovas concepcoes de direito social nao correspondem, todavia,condicoes objetivas capazes de dar origem a novas instituicoesnesse especifico dorninio. J a na segunda metade do seculo XIXtera declinado 0 movimento de reforrna medica e social, subsis-tindo agora program as mais limitados de reforma sanitaria, vol-tados para 0 eontrole de doencas transmissfveis especfficas econdicoes ambientais particulares. Nao sera tarnbem, estranhoa esse declinio 0 desenvolvimento da medicina bacteriologicaque ja permite a reconducao da pratica medica aos Iimites do or-ganico "e 0 desenvolvimento doestudo das doencas infecciosassem que ele fosse perturbado por consideracoes sociais e refle-xoes sobre polftica medica" (30)

    A emergencia desse campo de reflexao acerca do caratersocial da doenca e da pratica medica nao secircunscreveu aFranca, Estendeu-se aos demais paises da Europa, em parti-cular a Alemanha, onde 0 desenvolvimento da ideia de uma me-dicina como ciencia social coincidiu com a repereussao, reveladano movimento politico alemao da rnetade do seculo, dos ideaisjacobinos da Revolucao Francesa e da participaeao do proleta-riado frances na Revolucao de 1848. Rudolf Virchow e SalomonNeumann sao, nil. epoca, os principals Iideres do movimento damedicina social alema, cnjos principios podemser assim sinte-tizados: "a saude das pessoas e urn assunto que ooncerne dire-tamente a sociedade e esta tern a obrigacaode proteger e asse-gurar a saude de seus mernbros: as condieees socials e econo-micas. exercem uma importante influencia' sobre a saude e adoenca e tais relacoes .devem ser cientificamente investigadas; asmedidas destinadas a promover a saude e a combater a doencadevem ser tanto sociais como medicas". (3l) Segundo Vircho~,"0 estado democratico requer que todos os cidadaos gozem deurn estado de bem-estar, porque reconhece que todos tern iguaisdireitos. Desde que a igualdade geral de direitos oonduz ao auto-governo, 0est ado tern por sua vez 0direito de esperar que cadaurn saiba como adquirir e manter atraves deseu proprio trabalhourn estado de bem-estar, nos Iimites das leis estabelecidos peloproprio povo. Contudo, as eondicoes do bem-estar sao a saudee a educacao, de maneira que constitui taref'a do estado prover

    em bases, as mais amplas possiveis, os meios para manter e pro-porcionar educacao e saude atraves da ao:;aopublica ( . .. ). Assim,nao e suficiente que 0 estado garanta a cada cidadao as neeessi-dades basicas para a existencia e que assists a cada urn, cujotrabalho nao basta para a satisfacao dessas necessidades; 0estadodeve fazer mais, deve assistir a qualquer urn, de forma que eletenha as condicoes necessarias para uma existencia saudavel". (32)Esse direito dos cidadaos a assistencia e tanto mais justificavelquanto as enfermidades colet ivas, as epidemias, da mesma formaque a doenca individual sao vistas em grande parte como mani-testacao de condicoes desfavoraveis da vida social. Virchow de-senvolve uma teoria das epidemias, distinguindo as naturais dasartificiais, na dependencia dos fatores que atuam em cada caso- eventos naturais ou 0 modo de vida social. As epidemias arti-f iciais sao proprias da sociedade, resultado da deficiente organi-zacao politic a e social que impede a participacao equivalente detodas as classes na cultura da sociedade, Seu controle exige 0 .reconhecimento das condicoes economicas, politicas e sociais quegeram a enfermidade e uma consequente intervencao ativa navida social nosentido de remove-los, Essa intervencao requerque a medicina adentre a esfera da vida politica. Na verdade, naoM.. que distinguir entre medicina e polit ic a, pois nessa Iinha depensamento "a medicina e uma ciencia social e a politica nadamais e do que medicina em grande escala". A Reforrna Medicae , portanto, parte da reforma geral necessaria das instituicoes,destinadas a instaurar uma nova sociedade com condicoes maisadequadas ao bem-estar da populacao: condi90es de trabalho,saude, educacao.

    Uma reforma dentro da propria revolucao, poder-se-ia dizer ,ao considerar 0 carater relativamente antecipatorio de tais princf-pies que se formulavam no memento da implantacao do capita-lismo industrial na Alemanha e da preparacao da hegemonia po-lltica burguesa, por referenda ao processo mais tardio de desen-volvimento dos "direitos sociais" sob capitalismo monopolista.Nao obstante, essas proposicoes consti tuiam sobretudo a expres-sao de processes imediatos, ja manifestos no decorrer da Revolu-

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    encontrara na Alemanha mais sucesso que na Franca. Parte desseprograms foi consubstanciado no esboco para uma Lei de SaudePublica elaborada por Neumann e submetida ~ Sociedade de Me-dicos e Cirurgioes de Berlim, em 1849. 0 projeto definia osobjetivos da saude publica: 1) 0desenvolvimento sadio, ffsico emental dos cidadaos; 2) a prevencao de todos os perigos paraa saude: 3) 0 controle da doenca. Sua area de atuacao envolviaa sociedade como urn todocom 0 correspondente controle detodas as condicoes capazes de afetar a saude (tais como0solo,a industria, os alimentos e a habitacao) e a protecao de cadaindividuo contra as situacoes que0 impedissem de zelar por suasaude, Situacoes essas que podem ser enquadradas em duas cate-gorias principals: aquelas consistentes em pobreza e enfermidade,quando 0 individuo tera entao 0 direito de solicitar assistenciaao Estado; as que dizem respeito aocorrencia de doencas trans-missiveis e mentais, quando 0Estado, por direito e obriga

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    de formalizacao dessa modalidade de assistencia a pobreza, Eisso, em decorrencia dos aspectos part iculates assumidos ali pelarevolucao burguesa em seus desdobramentos tanto economicosquanto politicos. E interessante considerar. sumariamente algunsaspectos da questao dos pobres na Inglaterra, em parte porquerevelam a forma pela qual 0 desvendamento da categoria amplae imprecisa da "pobreza", HO sentido de evidenciar 0 carater subja-cente de classe dos grupamentos sociais que ela recobre, adentrao processo politico, no seculo de maneira distinta da quecaracterizou a Revolucao Francesa, e torna a "Lei dos Pobres"urn ponto significativo na definicao gradual dos "direitos sociais"dos trabalhadores,o pauperismo na Inglaterra assume proporcoes considera-veis em decorrencia do ritmo relat ivamente rapido do processo depenetracao do capitalismo na agricultura, iniciado gracas a ex~r~-priacao, a partir do seculo XV, pela parcela da nobreza que maconstituir 0 micleo da burguesia industr ial, das diversas formasde pequena propriedade terri torial, em beneficio. da insta~ra

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    as formas de sua manipulacao, permaneceu por muito temporigorosamente compativel com a concepcao do equilibrio espon-taueo de uma sociedade sem defeitos ou contradicoes estruturais.Em outros termos, a pobreza nao assumiu diretarnente a formade questao social, e a assistencia representou papel significativeentre as condicoes que impedirarn a emergencia, sob forma con-tundente, na cena politica, do problema da necessidade comoquestao social.

    De referencia aos aspectos medicos, George Rosen lamentaque 0 libe ralismo e 0 carater intensamente paroquial da adminis-tracao interna inglesa tenha representado, a seu ver, urn obstaculoao desenvolvimento de tentativas de implantacao de politicas desaude equivalentes as que se esbocaram na Alemanha e na Franca- 0 que nao impediu, por outro lado, a emergencia de obrastais como as de William Petty e Nehemiah Grew, onde as relacoesentre doenca e condicoes socia is sao si st ematicamente trabalhadas,Todavia, e considerando-se a compreensiveI falencia, na pratica,de tais politicas arnplas de medicalizacao, quase poder-se-ia admi-tir, contra Rosen, que pelo proprio carater local e em grande parteprivado de sua aplicacao, bern como pOl' sua enfase discrimina-toria - economics e politica - em relacao ao indigente, a Leidos Pobres teria permitido na Inglaterra uma assistencia maisregular e ate mesmo uma medicalizacao - limitada e repressiva,embora - mais efetiva e continua que em outras sociedades. Ecerto que nada havia de romantico ou humanitario no exerciciodos controies locais sobre a forca de trabalho disponivel, e a lite-ratura inglesa 0 retrata em termos suficientemente ricos. Mas 0que se encontra em jogo nao e a questao de se a assistenciatornava a pobreza menos amarga e sim 0 que ela representouem terrnos de controlesocial. A Lei dos Pobres introduz na his-toria da medicalizacao um principio de intervencao medica quecorresponde tanto a uma forma de permitir que a pobreza tenhaaces so em algum grau ao cuidado medico, quanto a uma modali-dade de defesa econ6mica e polftica da sociedade. 0 estudo deRosen "Economic and Social Policy in Public Health" descreveo principio do movimento no sentido de uma instltucionalizacaornais marcada da assistencia medica ao pobre, ocorrida particular-mente .nas gran des cidades, no seculo XVIII, com a criacao dehospitais e dispensaries, na qual a iniciativa privada joga um papeIpreponderante.

    A medicalizacao como cuidado individual nao ultrapassarade muito, no seculo XIX, as possibilidades con tid as na assisten-

    reito as pessoasa menos que se

    a adrnissao de urntrabalhador situado fora

    fato de que, admi-contudo desse di-juntarnente com suas famil ias,internamento nas "workhouses" ,

    seculo e cuja funcao pri-em elemento econo-da assistencia sobinferior aode traba-38) Marshall, T. H. - Politica Social, op, cit ; p. 29. formado mais

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    lho": "A Poor Law tratava as reivindicacoes dos pobres nao como

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    parte integrante de seus direitos de cidadao, mas como uma alter-nativa deles - como reivindicacoes que poderiarn ser obtidassomente se deixassem inteiramente de ser cidadaos, POls os in-digentes abriam mao, 11a pratica, do direito civil da liberdadepessoal devido ao intemamento na casa de trabalho e eram obri-gados por lei a abrir mao de quaisquer direitos que possuissem( ... ), incapacidade que permaneceu em existencia ate 1918." ITrata-se, portanto, antes de mais nada de reduzir a rnassa de in-capacitados aparentes ao seu limite mfnimo e Iiberar para 0 mer-cado de trabalho - aumenrando ao rnesmo tempo a competicaoneste mercado - 0 volume disponivel de Jansa de trabalho ade-quado aos interesses do capitalismo industrial competitive. Issoimplica a correspondente exigencia de desarticular em definitiveos lacos anteriormente estabelecidos entre 0 "pobre" e a fregues iaa que "pertence", de forma tal que ele possa irrornper e circularIivremente no mercado. Para tanto, os novos mecanismos adrni-nistrativos da Lei buscarao garantir maior grau de centralizacao,uniformidade de metodos e eficiencia, mediante a criacao de UlnaComissao Central da Lei dos Pobres, assim como a designacaode comissarios para 0 controle da execucao em nivel local. Esseensaio, ainda timido, de centralizacao, por referencia a uma ativi-dade tradicionalmente descent ra lizada , se nao represent s qualquerinterterencia marcante do poder estatal na organizacao da socieda-de, nao deve entretanto, ser desprezado, porque voltara a manif'es-tar-se muito breve no processo de implantacao da "Saude Publica".o sentido fundamentalmente economico da nova legislacao,regist rado com frequencia por seus analistas (40), traz consigo al-gumas implicacoes cujo significado, no plano politico, nao e des-prezivel. Alem do efetivo aumento de individuos desassistidoscompetindo agora no mercado de trabalho, e do esboco de cen-t ral izacao dos controles, ja apontado, a Reforma traz como efeitonecessario a transfiguracao do antigo pobre - deficiente indi-v.idual; em u~ novo tipo de pobreza: a que caracteriza 0 proleta-riado industrial, A pobreza continuara a expressar-se pelas variasformas de carencia e enfermidade mas nao se identifica corn 0nao-trabalho, diz respeito agora a uma categoria social claramente

    discernivel, que pode ser e sera doravante mais frequentementerernetida a forma que assume o processo de acumulacao de capi-tal. Adernais, 0 proletar iado indus tr ial, d iferenternente dos pobresde paroquia, introduz na vida politica novas forrnas de organi-zacao - em especial os sindicatos e, atraves delas, associacoesvoluntarias de assistencia, passiveis de expressar a "solidarieda-de de classe", (11) 0 significado da presenca das organizacoes ope-rarias no processo politico se expressara em to do 0 processo queleva ao estabelecimento progressive, na lnglaterra, ate a sua con- .solidacao, na metade do seculo XX, do chamado "Estado doBem-Estar Social".As condicoes do proletariado urbane, em particular nas ci-dades industriais em acelerado crescirnento, fazern com que aquestao da Saude Publica apareca na sequencia direta cia Reforrnada Lei dos Pobres. Na decada de 1830 0 crescimento das taxasde mortalidade da populacao urbana e rnais impression ante queo propriocrescimento populacional das cidades, e sua intima rela-"ao com as condicoes do trabalho sao tao arnplamente conhecidasque nfio se necessita retoma-las aqui. A necessidade de centro-lar, por razoes econornicas e politicas a acao dos Iatores que acar-retarn os elevados indices de enferrnidade e de morte vai assumiragora a forma predorninante do Sanitarismo, com a adocao demedidas capazes de atingir coletivamente a populacao, A Leide Saude Publica, de 1 que define as responsabilidades epoderes das autoridades sanitarias locais e as funcoes do Medicode Sande, cuja norneacao cornpulsoria, para todas as en-contra-se ao menos prevista, represent a a cristalizacao de umlongo processo que se manif'esta, a nivel do Estado, a partir dastentativas de Chadwick de introduzir no administrativeda Comissao da Lei dos Pobres alguns mecanismos capazes deperrnitir 0 controle estansrico das condicoesde saude, sucessiva-mente, na designacao de uma "Comissao sabre a Saiide nas Ci-dades", inspirada no Relatorio Chadwick de 1842" (Report..on a inquiry into the Sanitary Condition of the Labouring Popu-lation of Great Britain"), na criacao, em 1848, da Junta deSaude (General Board of Health) e 11a adocao rd e medidas efe-tivas de controle sanitario, Assim e que, em 1840 se introduz umprograma de vacinacao obrigatoria, cujo cumprimento fica a

    (41) Rosen tambern indica, a seu modo, 0pesosenca pol itica do proletariado ern medidas que se ~e>"l'a.()(Lei dos Pobres, Legislacao Fab nl ... ) contribuern para reorientar a filo-sofia social prevalescente. Alern disso, a nova classe de traba lhadoresiridustriais, tornando a serio as impficacoes democraticas do liberalismoem terrnos da dignidade e dos direitos humanos, e reconhecendo a efica-cia da solidaricdade de grupo, organiza-se em sindicatos e partidos poli-(lCOS que se recusarn a competir uns com os outros, e age no sentido deassegurar para SI propria va rias especies de services sociais, incluindocuidados medicos" "Economic and Social.. ", op, cii., p. 429.

    (39) Marshall, T H. - Cidadania, Classe Social e Status ZaharEd., R. Janeiro, 1967, p. 72. '(40) Alern de enfatizar como basica para a Ref'orma de 1834 a cxi-

    gencia _de. disP01:ibilidade e maior mobilidade da mao-dc-obra 'para aproducao industrial, Rosen aponta, como relacionado a ref 'orrnulacao daassistencia, um aspecto interessante: os custos rnarcadarncnte cresceri tcsdos programas destinados a pobreza, ate 0 seculo XIX, dcco rrentes daforma indiscriminada da assistencia e de sell carater desccntralizado.Note-se que esses custos nao representavarn encargo exclusivo do poderpublico. Veja-se "Economic and Social Policy", 0p, cit., p. 418.66 67

    cargo das juntas de beneficencia responsaveis tambem pela pres-tacao da assistencia a doentes pobres, bem como outros controles

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    medicos nao individuais que configuram progressivamente urnsistema complexo de rnedicalizacao indireta da sociedade, quevern agregar-se a assistencia medica a pobreza.Portanto, na segunda rnetade do seculo XIX, 0 Estado In-gles, liberal por excelencia - no sentido de que a sua nao-inter-vencao no econornico pode ser, por condicoes historicas, singu-larmente acentuada - ja garantira a presenca de urna rede relati-vamente ampla de medicalizacao representada, de urn lado, pelocuidado do pobre, de outro, pela implantacao de medidas gerais

    de controle do ambiente, bem como das doencas transmisslveis edas epidernias. A arnpla categoria do trabalho encontra-se aindaexcluida desse processo, com relacao ao cuidado medico indivi-dual. Sera necessaria toda uma recornposicao economica, ideo-logica e politic a antes que se configure a generalizacao da assis-tencia, ja na metade do seculo XX. Mas, os fates com os quaisemerge gradualmente essa recomposicao, ja se encontram pre-sentes, e nao apenas na Inglaterra, nas ultimas decadas do seculoanterior. A crise economica capitalista que entao se verificou, osextraordinarios indices de desemprego, as greves operarias, apon-tam para as mudancas progressivas que se rnanifestarao, a niveldo Estado, nas dimensoes crescentes do intervencionismo, de quea "politica social" participara como aspecto revelador das rela-coes Estado-Classes sociais. Na Inglaterra, a Lei dos Pobres cons-tituira 0 ponto central das discussoes sobre a "reforrna social" eos "direitos sociais", ap6s a constatacao, irrefutavel a partir dacrise do ultimo quarrel do seculo XIX, de que a questao socialrepresentava mais que a presenca na socieclade de uma camadade individuos incapacitados, A revogacao definitiva desse estatu-to s6 ocorrera quando a Lei de 1948 que, inspirada no PlanoBeveridge de Assistencia Social, estabelece a Junta de Assisten-cia Nacional e e introduzida com os terrnos: "A Lei dos Pobresem vigor deixara de existir." (42) A consolidacao da politica so-cial sob 0Estado intervencionista, que se generalizou por todaa Europa no comeco do seculo XX, sob a forma de garantia,aos trabalhadores industriais e, posteriormente, a todas as cate-gorias sociais, de beneffcios pecuniarios e de consurno de services- em gerai atraves do seguro compulsorio - foi relativamentetardia na Ingla terra e completou-se justarnente com a irnplantacao,na metade do seculo, do "Service Nacional de Saude", pratica-mente a estrutura mais estatizada e mais ampla de prestacao decuidados medicos individuais em sociedades capit ali st as.

    Parte II'Oornunltarta

    (42) Urna analise circunstanciada da evoluca o dos services sociais naInglaterra, a partir do seculo XVIII e ate periodo bastante rcccnte, CI1-contra-so na"obra ja referida de Marshall, Politica Social.68

    dado se resolve atraves de um conjunto de praticas complemen- desse especffico aparato conceitual. Extensao de services m e -

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    tares. 0 reforco desse elernento nao corresponde necessariarnente,entretanto, i1 diluicao de urn saber e de uma tecnica especifica-mente medicos, apropriados agora por ourros grupos de agentes,mas diz respeito propriarnente a incorporacao de novas praticasque encontram 0 seu campo privilegiado de exercicio na manipu-lacao do comportamento social dos grupos humanos. Esse social,de que a pratica medica se da conta e com 0 qual opera, mesmoquando nao 0 conceptualiza, sera objeto de forrnas especificasde conceptualizacao tratamento que permitirao, de outra parte,que 0 dominio do saber biologico que comp5e a medicina e aspraticas tecnologicas que ela sucessivamente incorporou, sigamliberados de urna perrnanente intrusao historica do social, diver-samente conceptualizado, no campo da pratica medica. Ternan-do-se tributaria dessas novas praticas tecnicas, mais do que doselementos caracteristicos do campo de saber e atuacao tecnico-cientifico do dominic medico, a Medicina Cornunitaria irnplicaa emergencia, de um lado, de uma medicina tecnologicamentesimplif icada, por referenda a pratica medica predominante, e 30mesmo tempo ampliada, de respeito a s fungoes sociais 3 queserve de suporte. Esse duplo movimento na direcao de umasimplificacao e de urn alargamento do campo de interferenciada pratica, atraves da constituicao do trabalhador coletivo damedicina corresponde a urna estrategia particular pela qual searticulam as caracteristicas atuais da producao de services me-dicos, entre elas ados custoscrescentes e a questao socio-politicasubjacentes a extensao cia pratica. Alem de configurar a extensaoda medicina sob forma de services a serem individualrnente con-surnidos, a Medicina Comunitaria equivale, portanto, nessa espe-cifica perspectiva, a uma medicina simplificada, bern como auma modalidade particular de service social.o objeto efetivo dessa pratica, assim como a nova adjetiva-gao do campo medico constituem elementos para uma serie dequestoes acerca da Medicina Cornunitaria como estrategia naoapenas de recomposicao interna da pratica medica mas tambemde participacao no processo economico e politico. A "pobreza"constitui, por excelencia, 0 ebjeto atribuido a medicina atravesdo novo projeto. A recente adjetivacao, por sua vez, indica aum so tempo um lugar de exercfcio da pratica e uma conceptuali-zacao do social que aponta para aquele objeto, definindo-o prj.meiro, diluindo-o em seguida na nocao de uma comunidade que,seja on nao preexistente, ser criada ou recriada, e que, fi-nalmente, Iundarrrenta propostas de interterencia sobrero objeto.Em uma de suas dimensoes, essas propostas incidem sobre 0principio da "parricipacao cornunitaria" como forma de supera-cao dos problemas socials identificados e Iormalizados atraves

    dicos, atraves de uma "simplificacao-ampliacao" das tecnicas ernjogo, com a participacao da comunidade, sao os terrnos que C0111-poem basicamente 0 campo da Medicina Comunitaria. Sua erner-gencia e difusao nao se process am sem que af'lore ao nivel dapratica medica to do urn cornplexo de contradicoes cuja cornpreen-sao implica 0 recurso a analise da estrutura social nas f'orrnacoessociais onde a Medicina Comunitaria encontra rnaior ou menorefetivacao.

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    Capitulo III

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    Mediclna Comunltarla: Polttlca Medica- Polltica Social

    A proposta de Medicina Comunitaria surge na ultima decadapara ocupar espacos deixados pelo processo de medicalizacao,em particular nas sociedades cuja estrutura producao de ser-vices medicos se torn a problernatica em termos da capacidadepara estender ou sustentar os niveis pm Desenvol-vendo-se na sequencia de outras propostas de recomposicao dapratica medica, tais a Medicina Integral e Medicina Pre-ventiva, a Medicina nao se introduz como urn novocampo conceitual frente a uma nova problematica. Antes assenta,em principios elaborados no interior propostas, 0 seuprojeto nuclear: uma de prestacao services it popu-lacao, Os elementos a serem manipulados projeto daMedicina Comunitaria assumem configuracoes dist intas em dife-rentes Iorrnacoes mas os fundament os estrategiaradicam no conjunto de processes que convergiram para a cons-tituicao da estrutura problematica da pratica atual e quea seguir, retomados.

    1. Medlcfna e

    Expressando-se do cuidado medi-co, a medicalizacao efetivamente a penetracao da me-dicina pelas determinacoes proprias a sociedade de classes. Suaestreita articulacao com as condicoes analisadastorna dificilmente 0 processo de extensao do cuidadomedico e, mais que possibilidades de incorporacao75

    ao consumo, a base daqueles determinantes, de grupos SOCIalS urn processo que, guardando uma aparente sernelhanca externa

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    que dele se encontrarn excluidos, Embora tal exclusao nao sedistinga substancialmente da privacao de outros elementos deconsumo, 0 fato e que as mesmas circunstancias que forjarama medica lizacao torn am faci lmente problematizavel 0 campo dasaude, Incorrendo em evidente simplificacao, mas apenas parailustrar, pode-se dizer que 0 conjunto das praticas polit ico- ideo-logicas no interior das quais se elaborou 0 princ tpio do "direi toa saude" assegura tambem que as estatisticas de rnortalidade in-cidam sobre a assistencia medica - antes que sobre as condi-96es sociais em que sao geradas - e imponham ao campo su-cessivas recomposicoes. Ou ainda, que tendo sido redefinidas, aomesmo tempo que se redefiniam os corpos como objeto da pra-t ica , a s necessidades de saude, embora t ranscendam 0 campo me-dico, encontram nele sua area privilegiada de expressao.

    Por outro lado, se a extensao do cui d ado medico revela umaarea de pratica cortada pelas contradicoes estrutnrais e se 0 prin-cipio do "di reito a saude" condensa tais contradicoes, ao mesmotempo que expressa uma solucao compativel com sua presenca,e preciso Iembrar que a atual configuracao historica jia praticamedica proporciona outros focos de problematizacao .. Ao mesmotempo que se dirigia a novos objetos, a pratica medica alteravaa totalidade de seu campo, pela convergencia dos processos queintroduziram, com base no desenvolvimento cientifico e tecnico,a progressiva substituicao dos meios de trabalho e a superacaodo padrao artesanal de organizacao da pratica, e por cuja viapenetraram tambem as questoes continuamenteretomadas acercados custos da assistencia, dos niveis de especializacao do traba-lho, da eficacia do ato medico, do equjlibrio entre disponibilidadede recursos e demanda por consumo,

    Enquanto a extensao do cui dado medico assume variadasproporcoes em distintas sociedades, a medicina tecnologica, comtodos os seus corolariosvaparece invariavelmente como a formadominante de organizacao da pratioa, Ao consultorio medicosucede-se 0 hospit al como "locus" indispensavel de exercicio dotraba lho medico, de concentracao tecnologica e , correspondente -mente, de concentracao de capital. As necessaries modificacoesno processo de trabalho expressam-se principalmente na fragmen-tacao do ato clinico em numerosas praticas especializadas, Aotrabalho especializado correspondem tanto um processo de frag-mentacao tecnica do objeto da pratica, como a multiplicacao dasinterterencias e ainda a ampliacao de cada ate medico pelo apro-fundamento da intormacao que orienta a interferencia e pelamultiplicacao dos instrumentos de trabalho que requer. As mo-dificacoes internas ao trabalho implicam a relativa dilui';ao docontrole dos . resultados de cada nova interferencia tecnica, em

    com 0 processo industrial de producao em escala, nao pode acar-retar, contudo, nern a padronizaciio dos atos ou dos resultados,nern a reductio dos custos da producao, ambas obstaculizadas res-pectivamente pela especificidade do objeto do trabalho e pelaforma particular de utilizacao da tecnologia que irnplica 0 apro-f'undamento intensive, ao nivel das especialidades medicas, dotrabalho dispendido na producao de cada unidade de service.Ou seja, maier tempo de formacao profissional, maior volumede equipameritos, multiplicacao de taretas prcfissiorrais auxilia-res, enfim, maior tempo de trabalho pregresso, manif'estando-seem cada interferencia parcial sobre 0 objeto - e obviamenteno eonjunto das interf'erencias para prornover, 11a seque!lCiada rnedicina tecnologica, 0 aumento dos custos do service. 0crescirnento doscustos unitarios e 0 crescimento dos custos glo-bais, dados pela convergencia da incorporacao tecnologica e daextensao dos cuidados anteriorrnente analisadas como expres-sao necessaria de condicoes estruturais, econornicas e politicas -indicarn mais nitidamente que quaisquer outros elementos 0 cam-po de tensoes no qual se desenvolve a pratica medica atual, 11amedida em que a rnanipulacao de qualquer desses aspectos inter-fere com situacces irredutrveis a urna dirnensao puramente tecni-ca da organizacao da pratica. A propria questao da eficacia do'ato medico, entre outras, assenta rnenos na presence de criteriostecnicos de identificacao da qualidade do service que no fato depoder ser remetida ao conjunto das multiplicacoes de atos par-ciais e dos custos decorrentes.

    A problernatizacao do carater especializado e fragmentariodo ato medico, de sua eficacia, e de seu encarecimento, sobre aqual e desnecessario alongar-se, uma vez que domina, Bas ultimasdecadas, praticamente toda a literatura acerca da organizacaosocial da assistencia medica, revela, para alem da perspectivatecnica ou doutrinaria em que se situam diferentes autores, apenetracao do campo medico pelo social, em que pesem as dife-rencas de conceptualizacao desse social. Se nao ise pode recuarna tra jetoria c ienrffi co-tecnologica impressa a pratica da medi-cina, tampouco e possivel declinar dos efeitos penetracao his-torica do campo pel as relacoes de classe. portanto, quebuscar, formas de conciliacao das tendencias que se manifestamna estrutura intern a' da pratica e na necessaria manutencao dosniveis de consume. As rentativas de conciliacao dessas diversasordens de fatores apresentam-se atraves de diversos esquemas de"reform a medica" mais Oll menos acentuada, a depender das con-dicoes da estrutura social e da producao de de saude emsociedades concretas.

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    A penetracao do Estado na area da assistencia medica comoprincipal produtor de services, eliminando ou reduzindo, CODse-quentemente, a producao privada e 0 consumo em urn mercado

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    livre, equivale, na sociedadecapitalista, ao modelo mais radicalde interferencia Besse campo de problemas, na medida em queenvolve, potencial mente, rnaior controls dos elementos em jogoua pratica medica e na distribui

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    seu campo (ecologico e social) de constituicao, A recoruposicaodo sentido totalizador da pratica implica, portanto, antes de rnaisnada: 0 descentramento do enfoque biolcgico :e a correspondenteorientacao de cada ato medico no sentido de apreender e inter-ferir com a complexidade do paciente dada pOI" sua inclusaoem urn campo de relacoes onde a familia aparecera como unidadefundamental; a consideracao do conjunto de fatores que concor-rem para a emergencia da enferrnidade, e de sua interacao, afim de que a interferencia se oriente para momeruos precocesdo processo saude-doenca, antecipando-se, sempre que possivel,a necessidade do recurso a acoes curativas.

    sistematizacao desses principios, bern como 0 desenvol-vimento das estrategias voltadas para a recomposicao da praticafar-se-a progressivarnente, envolvendo a superposicao dos cam-pos da medicina integral e da medicina preventiva. Centradasbasicamente na organizacao interna do ato medico, tais estra-tegias encontram no proprio profissional, e em cada urn deles, 0agente par excelencia da retorma medica. Incorporando ao pro-cesso de trabalho os principios reterentes ao individuo e as suasrelacoes com 0 meio, bem como 0 correspondente reconheci-mento de que a doenca constitui 0 memento de urn processoque envolve a interacao de um conjunto de agentes naturais esociais, 0medico superara, pelo estabelecimento de novas relacoescom 0 indivtduo, a familia e a comunidade, as deficiencias re-sultantes do carater fragmentario de SUa pratica, assegurandoque a acumulacao dos atos medicos, assim corrigidos, modifiquea totalidade da atencao medica e das necessidades de saude ... Emoutros terrnos, munido de uma nova visao da pratica e de umanova atitude para com as necessidades individuais e socials queincidem sobre a area da saade, 0 profissional passaria a atuarcomo 0 agente de uma mudanca capaz de transcender os limitesdo ato medico individual para atingir 0 meio social inclusive.Cumpre, to d avia, desenvolver em cada profissional as novas per-cepgoes e atitudes, 0 que supoe a reforma educacional como parteintegrante dessa estrategia, dado que as praticas dominantes daescola medica contribuem para reforcar 0 carater fragmentarioda medicina, sua dimensao predominantemente curativa e 0 con-sequente di~~anciamento entre as necessidades de saude e a aten-gao medica ... E no interior da escola medica que se desenvolvera,portanto, a novo projeto medico, basicamente educative, e semqualquer outre suporte que nao a poss ibil idade de manitestacao,no comportamento dos agentes, dos efeitos de uma recomposicaoanall tica dos e lementos que integram 0 campo medico e de umapostura doutrinaria face a necessidade da reforrna.

    matica desse surnario, parece indiscutivel 0 limitado potencialde reforrnulacao subjacente a tal projeto, ernbora de nao sedesenvolva tarnpouco livremente em urn campo isento de obsta-culos e tensoes. A identificacao de seus Iirnites nao po de sertodavia inteiramente deduzida dos principios e estrategias que 0compoem, dependendo tarnbem de que se indique as relacoesque guarda com a estrutura social e da ate