Scheler Max Dieferenca Entre Homem e Animal

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    [DIFERENA ESSENCIAL

    ENTRE O HOMEM E O

    ANIMAL]

    (in: A Situao do Homem no Cosmos)

    Max Scheler

    Tradutor:Artur Moro

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    Excerto autnomo da obra de Max Scheler

    A situao do homem no cosmos,editada pela Texto & Grafia, Lisboa, Junho de 2008,

    com a benvola autorizao do Editor,

    Joaquim Soares da Costa

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    Covilh, 2008

    FICHA TCNICA

    Ttulo: [Diferena essencial entre Homem e Animal]in: A Situao do Homem no CosmosAutor: Max SchelerTradutor: Artur MoroColeco: Textos Clssicos de Filosofia

    Direco: Jos M. S. Rosa & Artur MoroDesign da Capa: Antnio Rodrigues TomComposio & Paginao: Jos M. S. RosaUniversidade da Beira InteriorCovilh, 2008

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    Apresentao

    So estas pginas, relativas ao animal e ao homem, um extracto deA situao do homem no cosmos de Max Scheler. Como a tribofilosfica bem sabe (ou deveria saber), o grande pensador traa alias linhas fundamentais de uma nova disciplina que, mais tarde, vi-ria a figurar no currculo de muitas faculdades universitrias sob

    o nome de Antropologia filosfica. , a esse ttulo e apesar dasua brevidade, um texto fundamental da filosofia contempornea,e fruto igualmente de uma das mentes alems mais atentas, enr-gicas e radiosas da primeira metade do sculo XX. Representa, aomesmo tempo, o resumo coeso, denso e brilhante, de um projectoantropolgico muito mais vasto que o autor tinha em mente rea-lizar, que por ele foi repetidamente anunciado e prometido, masnunca de todo levado a efeito. Em parte devido morte prematurado filsofo em 1928, com a idade de 54 anos; em parte ainda de-vido ao esprito inquieto, quase vulcnico, de Max Scheler, fonte

    perene de ideias e de intuies geniais, mas talvez sem pacinciae concentrao para o trabalho lento de as organizar numa obrasistemtica.

    No seu estado definitivo, mas de ndole programtica, A situa-o do homem no cosmos o desenvolvimento de uma confernciadada pelo autor em 24 de Abril de 1927, numa jornada rotulada deEscola da sabedoria (Schule der Weisheit) e organizada peloConde Hermann Keyserling em Darmstadt volta do tema Ho-mem e Terra, na qual participaram tambm, entre outros, C. G.Jung e Leo Frobenius. Dentro da evoluo intelectual do filsofo,situa-se naquele que habitual e consentneo reconhecer como osegundo perodo do seu pensamento, que vai de 1920/22 a 1928e representa uma inflexo significativa em relao aos anterioresmotivos e ncleos da sua reflexo, graas aos quais Max Schelerhavia conquistado um lugar de grande destaque na cena filosficada Alemanha.

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    De facto, o primeiro perodo, desdobrado ao longo do arco tem-poral de 1897 a 1920, centrara-se nos temas das emoes humanas,do amor, da natureza da pessoa, dos valores e da sua respectiva hi-erarquia, do eterno no homem, ou seja, do divino; insistira, aomesmo tempo, numa crtica virulenta a Kant, a Husserl e s no-es de razo e conscincia puras, prprias do idealismo alemo,contrapondo-lhes o lugar central do corao, do homem como ensamans, na linha agostiniana (do ordo amoris) e pascaliana (das

    raisons du coeur).

    O segundo perodo, em contrapartida, desenha uma viragemdramtica no itinerrio scheleriano; por um lado, o filsofo distancia-se da f catlica, de que antes fora um paladino muito apreciado e acuja sombra desentranhara uma notabilssima filosofia da religio;por outro, continua atento ao problema do divino, mas agora in-serido numa viso do processo csmico universal, em que adqui-rem realce os temas da energia vital (impulso) e do esprito.Mas este olhado como impotente, como necessitando das con-dies vitais, da histria e das dimenses culturais para se realizarcomo esprito, num processo evolutivo de teomorfose de cunhopantesta, englobando todas as esferas da vida, desde a planta atao elemento espiritual.

    Aqui se inscreve A situao do homem no cosmos. Depois deconstatar na cultura europeia trs ideias irreconciliveis do ho-mem, que inspiraram respectivamente uma antropologia teolgica,outra filosfica e uma terceira cientfico-natural, Max Scheler apre-senta o seu projecto de uma doutrina englobante do ser humano.Comea por fazer uma distino entre o conceito sistemtico-naturale o conceito essencial de homem, que possibilite o seu enquadra-mento e faa sobressair a sua posio especfica no todo csmico.A filosofia, ao encarar o homem terrestre, deve igualmente atender organizao vital do sujeito de conhecimento e sua vontade dedomnio. Em virtude da sua participao no impulso vital biops-quico, o homem encontra-se radicado na srie gradual das foras e

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    capacidades psquicas que, desde a planta, passando pelos animaismais insignificantes, chega ao nvel dos animais superiores. No en-tanto, a sua especificidade no radica em ulteriores estdios do serorgnico e vital, mas na dimenso espiritual, inserida no cosmos.Enquanto pessoa, as suas caractersticas so a abertura ao mundo,a conscincia de si, a capacidade de objectivao. Enquanto esp-rito, dispe de actos emocionais e volitivos, do poder de ideao eda intuio de fenmenos originrios, que o capacitam para a re-

    duo fenomenolgica e a consequente apreenso de contedosessenciais, autnomos, autgenos e inderivveis de outras reali-dades. Nesta idoneidade reside o critrio de toda a configuraocultural, mas cujo cumprimento s possvel atravs da fantasiaimpulsiva determinadora de imagens sob a direco e o controlodo esprito. Se este , na sua forma, originariamente desprovidode fora, o impulso vital, por seu lado, carece de direco no seumovimento. Por isso, a meta de todo o ser e acontecer finitos a re-cproca compenetrao do esprito originariamente impotente e dafora avassaladora do impulso, cego perante todas as ideias e valo-

    res espirituais - a espiritualizao da vida e o revigoramento vitaldo esprito. Neste drama metafsico, que resume e condensa todo oacontecer csmico, o homem torna-se colaborador de Deus, emcujo ser absoluto, tambm ele em processo de auto-realizao, tmo seu fundamento a natureza e o esprito.

    * * *

    O texto original, a partir do qual se fez a traduo aqui pro-posta, encontra-se no volume IX das Obras Completas [Gesam-melte Werke] de Max Scheler, editadas pela Francke Verlag de

    Berna/Munique, 1976, sob a superviso de Manfred S. Frings.

    Artur Moro

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    Diferena essencial

    entre Homem e Animal

    (in: A Situao do Homem no Cosmos)1927

    Max Scheler

    Surge agora, aqui, a questo decisiva para o conjunto do nosso pro-blema: se a inteligncia est j presente no animal, existir aindamais do que uma simples diferena de grau entre o homem e o ani-mal haver tambm uma diferena de essncia? Existir aindano homem algo de todo diverso que ultrapasse os estdios essenci-ais at agora abordados, algo de especificamente humano, que sejairredutvel e no se esgote com a escolha e com a inteligncia emgeral?

    aqui que os caminhos se dividem de forma mais pronunciada.Uns querem reservar para o homem a inteligncia e a escolha, querecusam ao animal: reconhecem decerto uma diferena hiperquan-titativa, mas situam-na a um nvel em que, a meu ver, no existe

    nenhuma diferena essencial. Outros, sobretudo todos os evoluci-onistas da escola darwiniana e lamarkiana, rejeitam com Darwin,Schwalbe e W. Khler uma diferena derradeira entre o homem eo animal, justamente porque este j possui tambm inteligncia;religam-se assim, de alguma forma, grande teoria da unidade do

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    [Diferena essencial entre Homem e Animal] 7

    homem, que designo como a teoria do homo faber e, por conse-guinte, no conhecem nenhum ser metafsico, nenhuma metafsicado homem, a saber, nenhuma relao distintiva, que o homem en-quanto tal possuiria com o fundamento do mundo.

    Pelo que a mim me toca, rejeito ambas as teorias. E afirmo: aessncia do homem, o que se pode chamar a sua posio pecu-liar, est muito acima do que se denomina inteligncia e aptidopara a escolha; e no se chegaria l, mesmo se estas faculdades se

    representassem ampliadas seja a que grau for e, inclusive, se inten-sificassem at ao infinito1. Mas seria igualmente errneo imaginara novidade, que faz do homem um homem, como um novo est-dio essencial que se acrescenta aos anteriores: impulso afectivo,instinto, memria associativa, inteligncia e escolha e como umnovo grau das funes e aptides psquicas e vitais: o seu conheci-mento respectivo dependeria ainda da competncia da psicologia.

    O novo princpio est fora de tudo aquilo que, no sentido maisamplo, podemos chamar vida. O que somente do homem faz umhomem no um novo estdio da vida em geral nem sequer

    um estdio da nica forma de manifestao desta vida, da psi-que , mas apenas um princpio oposto a toda e a cada vidaem geral, e tambm vida no homem: um genuno e novo factoessencial que, como tal, no se pode reduzir evoluo natural davida; se a algo se reduz, apenas ao fundamento supremo e nicodas coisas: ao prprio fundamento, de que a vida apenas umagrande manifestao.

    Os Gregos afirmaram j semelhante princpio e chamaram-lherazo2. Para este X, preferimos utilizar uma palavra mais am-pla; engloba ela o conceito de razo e, alm do pensamento por

    ideias, abarca tambm uma espcie determinada de intuio1 Entre Th. Edison, olhado apenas como tcnico, e um chimpanz inteli-

    gente, a diferena decerto muito grande - somente de grau.2 Cfr. Julius Stenzel, Der Ursprung des Geistbegriffes bei den Griechen na

    revista Die Antique.

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    8 Max Scheler

    (Anschauung) a intuio dos protofenmenos ou dos contedoseidticos , e ainda uma certa classe de actos volitivos e emocio-nais como bondade, amor, arrependimento, venerao, admiraoespiritual, beatitude e desespero, a livre deciso: ou seja, a pala-vra esprito (Geist). Mas ao centro de actos, em que o esprito semanifesta no seio das esferas finitas do ser, caracterizamo-lo comopessoa, em contraste incisivo com todos os centros vitais funci-onais que, do ponto de vista interno, se chamam tambm centros

    psquicos.

    [Essncia do esprito]

    Mas que este esprito, este princpio novo e to decisivo?Poucas palavras suscitaram, como esta, tantos abusos uma pala-vra em que raramente se pensa algo de determinado. Se situarmosno topo do conceito de esprito a sua funo particular de saber, otipo de saber que s ele pode proporcionar, ento a determinaofundamental de um ser espiritual, seja qual for a sua constituio

    psicofsica, o seu desprendimento existencial do orgnico, a sualiberdade, a possibilidade que ele ou o centro da sua existncia tem de se separar do fascnio, da presso, da dependncia do org-nico, da vida e de tudo o que pertence vida por conseguinte,tambm da sua prpria inteligncia pulsional.

    Um ser espiritual j no se encontra, pois, sujeito ao impulsoe ao meio, mas est liberto do meio e, como nos apraz dizer,aberto ao mundo: semelhante ser tem mundo. Pode, ademais,elevar a objectos os centros de resistncia e de reaco do seumeio, tambm a ele originariamente dados, que s o animal possui

    e nos quais extaticamente mergulha; pode, em princpio, apreendero prprio ser-assim (Sosein) desses objectos, sem a limitao queeste mundo objectal, o seu carcter de dado, experimenta atravsdo sistema pulsional da vida, bem como as funes e os rgossensoriais a ele submetidos.

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    [Diferena essencial entre Homem e Animal] 9

    O esprito , pois, objectividade, determinabilidade pelo ser-assim das prprias coisas. Tem apenas um ser vital capaz deplena objectividade. Em termos mais incisivos: s um tal ser portador do esprito, cujo intercmbio principial com a realidadea ele exterior e consigo mesmo sofreu, em relao ao animal, umainverso dinmica, incluindo a sua inteligncia.

    Que inverso esta?No animal seja ele de organizao superior ou inferior cada

    aco, cada reaco, por ele efectuada, inclusive a inteligente,dimana de uma disposio fisiolgica do seu sistema nervoso, qual esto ligados, no plano psquico, instintos, impulsos motorese percepes sensveis. O que para os instintos e para os impulsosno interessante tambm no dado, e o que dado s dadoao animal como centro de resistncia relativamente ao desejo ou averso, isto , como centro biolgico. O primeiro acto do dramade um comportamento animal frente ao seu meio tem, pois, sem-pre o ponto de partida num estado psicofisiolgico. A estrutura domeio ambiente a, de modo exacto e pleno, consistentemente

    conforme peculiaridade fisiolgica e, indirectamente, naturezamorfolgica do animal, e ainda estrutura impulsiva e sensorial,pois elas constituem uma rigorosa unidade funcional. Tudo o queo animal pode advertir e apreender a partir do seu meio reside nosseguros limites e fronteiras da estrutura do seu meio. O segundoacto deste drama consiste em introduzir no meio uma modifica-o efectiva, mediante uma reaco do animal na direco do fimalmejado. O terceiro acto assim a transformao do estado psico-fisiolgico. A conduta animal desenrola-se, pois, sempre de acordocom esta forma:

    A[nimal)]M[eio]

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    Num ser que tem esprito ocorre absolutamente o contrrio.Ele quando e na medida em que tambm, por assim dizer, se servedo seu esprito capaz de uma conduta que possui uma formade decurso oposta. O primeiro acto deste novo drama, do dramahumano, o seguinte: o comportamento motivado pelo puroser-assim de um complexo intuitivo ou representativo elevadoa objecto, e isto , em princpio, independente da organizao fi-siolgica e psquica do organismo humano, independente dos seus

    impulsos motores e do aspecto exterior e sensvel do meio, que jus-tamente encontra neles a sua elucidao e recebe sempre uma certadeterminao modal (ptica ou acstica, etc.). O segundo acto a inibio livre, isto , derivada do centro da pessoa, de um im-pulso motor, ou ento, a desobstruo de um impulso motor antesretido (e de uma reaco correspondente). O terceiro acto umatransformao, vivida como dotada de valor prprio e com carcterdefinitivo, da objectalidade de uma coisa. A forma de semelhantecomportamento a da abertura ao mundo, da libertao do fas-cnio do meio ambiente:

    H[omem]A[bertura ao mundo] ...

    Este comportamento, onde por constituio existe, por na-tureza susceptvel de uma extenso ilimitada chega at onde sedesdobra o mundo das coisas existentes.

    O homem , pois, o X que, em medida ilimitada, se pode com-

    portar como aberto ao mundo. A hominizao (Menschwer-dung) a elevao abertura ao mundo por fora do esprito.

    O animal no tem objectos; vive extaticamente imerso no seumeio que ele, qual caracol com a sua concha, transporta como es-trutura para onde quer que v sem de tal meio conseguir fazerum objecto. No consegue levar a cabo nem o afastamento pecu-liar, a distanciao do meio ambiente ao mundo (isto , a um

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    [Diferena essencial entre Homem e Animal] 11

    smbolo do mundo), de que o homem capaz, nem a transforma-o em objectos dos centros de resistncia que os seus afectose impulsos delimitam. Ser-objecto , pois, a categoria mais for-mal da vertente lgica do esprito. Eu diria que o animal est poressncia demasiado preso e absorvido na realidade vital, correla-tiva aos seus estados orgnicos, para alguma vez objectivamentea conseguir apreender. O animal j no vive, decerto, de modoabsolutamente exttico no seu ambiente (como no seu meio mer-

    gulha o impulso afectivo, insensvel, privado de representaes einconsciente, da planta, sem qualquer ressonncia interna dos es-tados peculiares do organismo); , por assim dizer, restitudo a simesmo, graas separao entre o sensrio e o elemento motore em virtude da permanente retroaco dos seus respectivos con-tedos sensoriais: possui um esquema corporal. Frente ao meio,porm, o animal continua a comportar-se extaticamente mesmoonde se conduz de modo inteligente. E a sua inteligncia perma-nece orgnica-impulsiva-praticamente vinculada.

    O acto espiritual, tal como o homem o pode realizar, e contra-

    riamente simples retroaco do esquema corporal animal e dosseus contedos, est essencialmente ligado a uma segunda dimen-so e etapa do acto reflexo. Em resumo, chamaremos concentra-o a este acto, e cham-lo-emos a ele e ao seu fim, o fim desteconcentrar-se, conscincia de si, prpria do centro de actividadeespiritual, ou autoconscincia. O animal, diferentemente daplanta, tem conscincia, mas no autoconscincia, como j Leib-niz vira. No se possui, no senhor de si e, por isso, tambmno consciente de si mesmo.

    Concentrao, autoconscincia e capacidade objectivante da ori-

    ginria resistncia impulsiva formam, portanto, uma singular es-trutura indissolvel que, como tal, s ao homem pertence.Com este tornar-se-consciente-de-si, com este novo recuo e

    centrao da existncia que o esprito possibilita, surge igualmentea segunda caracterstica essencial do homem. Graas ao seu es-

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    prito, o ser que denominamos homem pode alargar o ambientecircundante dimenso do universo e objectivar as resistncias;pode igualmente e o mais notvel transformar em objectoa sua prpria constituio fisiolgica e psquica, cada vivnciamental particular, cada uma das suas funes vitais. S por isso que semelhante ser pode tambm renunciar livremente sua vida.O animal ouve e v mas sem saber que ouve e que v. A psiquedo animal funciona, vive mas o animal no nenhum psiclogo e

    fisilogo! Devemos pensar em estados extticos muito raros do ho-mem na hipnose plena, na absoro de certos venenos inebrian-tes, em certas tcnicas de inibio consciente do esprito (ou seja,j com uma interveno mental), por exemplo, cultos orgisticosde toda a espcie para, de algum modo, nos transferirmos para oestado normal do animal. O animal tambm no vive os impulsosderivados das suas tendncias como seus, mas como atraces erepulsas dinmicas, que derivam das prprias coisas do meio. Ohomem primitivo, que em certos rasgos se encontra ainda perto doanimal, no diz tenho horror a esta coisa, mas a coisa tabu.

    Para a conscincia animal existem apenas as atraces e aversesderivadas das coisas do meio ambiente. O macaco, que de repentesalta para aqui e, em seguida, para ali, vive, por assim dizer, emxtases simplesmente pontuais. (Fuga patolgica das ideias no ho-mem). O animal no tem uma vontade que sobreviva aos seusimpulsos e sua mudana e que, na alterao dos seus estadospsicofsicos, possa garantir uma continuidade. Um animal chegasempre, por assim dizer, a um lugar diferente daquele que origina-riamente pretendia. Nietzsche profundo e correcto quando dizque o homem o animal que pode prometer.

    H quatro graus essenciais em que aparece todo o existente, re-lativamente sua interioridade (Innesein) e ipseidade (Selbstsein).As coisas anorgnicas so de todo desprovidas de semelhante in-terioridade e ipseidade; tambm no tm centro algum, que on-ticamente lhes pertena; portanto, tambm nenhum medium, ne-

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    [Diferena essencial entre Homem e Animal] 13

    nhum ambiente. O que neste mundo objectivo designamos comounidade, at s molculas, aos tomos e aos electres, dependeexclusivamente do nosso poder de dividir os corpos realiter ou,pelo menos, em pensamento. Cada unidade corporal anorgnicas tal relativamente a uma legalidade determinada da sua ac-o sobre outros corpos. Mas os centros inespaciais de foras,que suscitam o aparecimento da extenso no tempo, e que temosde colocar metafisicamente na base das imagens dos corpos3, so

    centros de pontos dinmicos de aco interdependente e recproca,em que confluem as linhas de fora de um campo. Um ser vivo,pelo contrrio, sempre um centro ntico e modela a sua uni-dade espacio-temporal e a sua individualidade; estas no derivam,como nas coisas anorgnicas, da nossa actividade de unificaobiologicamente condicionada. Ele um X que a si prprio se de-limita; tem individualidade desmembr-lo significa aniquil-lo, eliminar a sua essncia e a sua existncia. O impulso afectivoda planta possui um centro e um meio em que o ser vivo, relati-vamente aberto no seu crescimento, est mergulhado, sem rplica

    dos seus diferentes estados ao seu centro; mas a planta dispe, emgeral, de uma interioridade e, por isso mesmo, animada. Noanimal, a sensao e a conscincia existem, e h nele um pontocentral de retransmisso dos estados mutveis do seu organismo, etambm uma modificabilidade do seu centro mediante tal retrans-misso: est, pois, j dado a si mesmo uma segunda vez. Mas ohomem ainda o uma terceira vez, em virtude do esprito: na au-toconscincia e na objectivao dos seus processos psquicos e doseu aparelho sensrio-motor. Importa, pois, pensar a pessoa nohomem como o centro que supera a oposio do organismo e do

    meio.No como se existisse uma gradao ao longo da qual um serprimordial se dobra sempre mais sobre si mesmo na edificao domundo, a fim de se captar a si mesmo em graus sempre mais ele-

    3 Cfr., a propsito, Erkenntnis und Arbeit, Ges. Werke, Vol. 8. [N. do Editor]

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    14 Max Scheler

    vados e em dimenses sempre novas para, finalmente, se possuira si mesmo e apreender inteiramente no homem?

    [Exemplos de categorias espirituais]

    Ora a partir da estrutura do ser do homem da propriedade queele tem de ser dado a si mesmo, da sua capacidade de objectivaodo seu meio, de todo o seu ser psquico e fsico e da relao causal

    de ambos torna-se compreensvel uma srie de particularidadeshumanas; indiquemos brevemente algumas.

    S o homem possui plenamente a categoria de coisa e de subs-tncia concreta. O animal no a tem. Uma aranha, espreita nasua teia, posta-se no seu ponto nodal, atira-se de imediato sobre omosquito que, preso na teia, se afasta dela e cuja presena foi pro-vavelmente trada por um movimento, graas ao sentido do tacto;mas se o mosquito se puser a uma distncia que fica ainda dentrodo seu campo visual, a aranha empreende imediatamente a fuga(experincias das aranhas de H. Volkelt): para ela um ser dife-

    rente o que v e o que capta pelo tacto; no consegue identifi-car o espao visual e o espao tctil de aco (espao cinestsico)nem as coisas que a se encontram. Tambm os animais superio-res no dispem inteiramente da categoria de coisa. Um macacoa que se oferece uma banana meio-descascada foge dela, ao passoque a come quando est inteiramente pelada; e quando est intacta,ele prprio a descasca e, em seguida, come: para o animal, a coisabanana no se alterou, transmutou-se noutra. Falta aqui, evi-dentemente, ao animal um centro que lhe permita referir a uma se mesma coisa objectiva concreta, a um ncleo idntico de reali-

    dade, as funes psicofsicas da viso, da audio e da olfaco,e as realidades visveis, audveis, gustativas, olfactivas e palpveisque nelas se apresentam.

    Ademais, o homem tem de antemo um nico espao. Aquiloque, por exemplo, o cego de nascena operado aprende no a

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    confluncia numa nica intuio espacial de espaos originaria-mente separados, como os espaos tctil, visual, auditivo, cinest-sico, mas a identificao dos seus dados sensoriais como smbolose propriedades de uma coisa que existe num lugar. Mas ao ani-mal falta, por seu turno, a funo central, que faculta um espaounitrio como uma forma consistente, antes das coisas singularese da sua percepo. Falta-lhe sobretudo o tipo particular de auto-centrao, que junge todos os dados sensoriais aos impulsos a eles

    associados e os refere a um s mundo ordenado de modo subs-tancial. Como noutro lugar demonstrei de modo exaustivo, falta aoanimal um genuno espao mundial, que persistiria como fundoestvel, independentemente dos seus movimentos locais. Faltam-lhe igualmente as formas vazias do espao e do tempo nas quais,inserido, o homem apreende originalmente as coisas e os aconteci-mentos. Elas s so possveis num ser (espiritual) cujo desprazerpulsional sempre excessivo em relao sua satisfao. Origi-nariamente, chamamos vazio irrealizao persistente da nossaexpectao pulsional o primeiro vazio , por assim dizer, o va-

    zio do nosso corao.A raiz da intuio humana do espao e do tempo, que precede

    todas as outras sensaes externas, reside na possibilidade de movi-mento orgnico espontneo e de aco numa ordem determinada.O facto de o espao tctil, como se pde comprovar em determi-nados fenmenos patolgicos, no estar directamente coordenadocom o espao ptico, mas somente mediante sensaes cinest-sicas, indica tambm que a forma vazia do espao, pelo menoscomo espacialidade ainda informe no homem, j vivida antesda conscincia de algumas sensaes, graas experincia dos im-

    pulsos motores e ao sentimento de poder suscit-los (pois esses im-pulsos motores que tm por consequncia primeira as sensaescinestsicas). Este espao motor primitivo, a conscincia do meioenvolvente, subsiste ainda quando de todo se esvaneceu o espaoptico, em que somente dada a diversidade contnua e simultnea

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    da extenso. Na transio do animal para o homem, descobri-mos, pois, uma inverso total de vazio e cheio, de harmoniaquer com o tempo quer com o espao. Embora os animais superio-res possuam diversidades espaciais (as mais primitivas tem decertoapenas impresses temporais), estas no so, todavia, homogneas;por isso, os lugares no persistem de modo fixo como um sistemaposicional prvio e destacam-se nitidamente das qualidades con-cretas e dos movimentos das formas do meio ambiente. S a p-

    tica superior do homem (a marcha erecta!) possui este sistema; masele pode perder-se em casos patolgicos, pelo que somente resta oespao por assim dizer originrio, a vivncia do meio en-volvente. O animal to incapaz de separar as formas vazias doespao e do tempo dos contedos determinados dos objectos am-bientais como de abstrair o nmero de uma quantidade, dadacomo maior ou menor nas prprias coisas. Vive totalmente afer-rado realidade concreta do seu respectivo presente. S quandoas expectaes que se transformam em impulsos motores superamtudo o que realizao efectiva de um desejo numa percepo ou

    sensao que se encontra no homem o fenmeno muito curi-oso de que o vazio espacial, e tambm o vazio temporal, surgemcomo prvios, como subjacentes, a todos os contedos possveisdas percepes e do mundo integral das coisas. Por isso, o ho-mem, sem suspeitar, v o vazio do seu corao como um vazioinfinito do espao e do tempo, como se esta vacuidade pudessesubsistir independentemente da existncia das coisas! S muitotarde que a cincia corrige a colossal iluso da viso natural domundo, ao ensinar que espao e tempo so somente ordenamentos,possibilidades de posio e de sucesso das coisas, e que fora e

    independentemente destas no tm existncia.O animal, dizia eu, tambm no tem, de modo constitutivo, oespao do mundo. Um co pode viver anos num jardim e ter es-tado muitas vezes em cada stio nunca conseguir fazer dessejardim, seja ele reduzido ou amplo, uma imagem de conjunto, nem

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    tambm do arranjo, independente da sua situao corporal, das r-vores, dos arbustos, etc. Domina apenas espaos do meio ambi-ente que mudam com os seus movimentos, e que ele no podecoordenar no espao do jardim, independente da sua posio cor-poral. Tal deve-se a que o animal nem sequer capaz de objectivaro seu prprio corpo e os seus respectivos movimentos o que lhepermitiria inserir na sua intuio espacial a sua prpria situaocorporal enquanto elemento mutvel, aprendendo assim a contar

    quase instintivamente com a contingncia da sua posio, como ohomem consegue, mesmo sem a cincia. Esta realizao do ho-mem apenas o incio do que ele prossegue na cincia. De facto,a grandeza da cincia humana consiste no seguinte: ele aprendenela a contar cada vez mais com a sua posio acidental no uni-verso, consigo mesmo e com toda a sua constituio fsica e ps-quica como uma coisa estranha, ligada s outras coisas por nexoscausais rgidos; sabe assim adquirir, pouco a pouco, uma imagemdo prprio mundo, cujos objectos e leis so, juntamente com ela, detodo independentes da sua organizao psicofsica, dos seus senti-

    dos e respectivos limiares, das suas necessidades e dos interessesdestas pelas coisas tais objectos e leis permanecem, pois, cons-tantes, em plena mudana de todas as suas posies no universo,dos seus estados, organizaes especficas e impresses sensveis.

    S o homem, enquanto pessoa, consegue como ser vivo alar-se acima de si e, a partir de um centro que est, por assimdizer, para l do mundo espacio-temporal, fazer de tudo, inclusivede si prprio, um objecto do seu conhecimento. Por isso, o homem,como ser espiritual, o ser superior a si mesmo como ser vivo e aomundo. enquanto tal igualmente capaz da ironia e do humor, que

    encerram sempre uma elevao sobre a existncia prpria.Mas o centro a partir do qual o homem realiza os actos comque objectiva o seu corpo e a sua psique, com que do mundo nasua plenitude espacial e temporal faz um objecto, no pode ser umaparte deste mundo; no pode, pois, possuir stio algum no espao

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    ou no tempo: s pode estar situado no fundamento mais elevado doser.

    Kant, na sua profunda doutrina da apercepo transcendental,explicara j, no essencial, esta nova unidade do cogitare, que a condio de toda a experincia possvel e, por isso, de todos osobjectos da experincia no s da experincia externa, mas tam-bm da interna mediante a qual se nos torna acessvel a nossaprpria vida interior. Foi, pois, o primeiro a colocar o esprito

    acima da psique e negou expressamente que o esprito seja ape-nas um grupo de funes de uma pretensa alma-substncia cujaadmisso fictcia se deve apenas a uma coisificao ilegtima daunidade actuosa do esprito.

    [O esprito como actualidade pura]

    Distinguimos deste modo uma terceira determinao impor-tante do esprito: ele o nico ser que incapaz de para si ser ob-jecto actualidade pura, possui existncia s na livre realizao

    dos seus actos. O centro do esprito, a pessoa, no existe, pois,nem como objecto nem como coisa, mas somente uma textura(essencialmente determinada) ordenadora de actos, que continua-mente se realiza a si mesma. A pessoa existe to-s nos seus actose mediante eles. O psquico no se realiza a si mesmo; uma s-rie de acontecimentos no tempo a que, do centro do nosso esp-rito, podemos em princpio assistir e de que, na percepo internae na observao, podemos ainda fazer objecto. Todo o psquico objectivvel mas no o acto espiritual, a intentio, justamenteo que enxerga os prprios processos anmicos. Ao ser da nossa

    pessoa s podemos chegar recolhendo-nos, concentrando-nos nasua direco mas no objectivando-o. As outras pessoas tambmno so objectivveis enquanto pessoas. (Neste sentido diz Go-ethe de Lili, que ele a amou demasiado, e no que a poderia terobservado). S podemos conseguir em relao a elas uma par-

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    tilha de conhecimento, reproduzindo e realizando conjuntamenteos seus actos livres, graas quilo que uma palavra pobre rotula deseguimento ou como costumamos dizer identificando-nos,mediante a compreenso possvel apenas pela atitude do amorespiritual, que o oposto extremo de toda a objectivao, com oquerer, o amor de uma pessoa e assim com ela prpria.

    De igual modo, s pela co-realizao podemos participar nosactos desse esprito supra-singular nico por ns necessaria-

    mente pressuposto no princpio da ligao essencial e inviolvelda ideia e do acto, se admitirmos que, independentemente da cons-cincia humana, se realiza neste mundo uma ordem de ideias e se aimputarmos ao prprio ser primordial como um dos seus atributos ou seja, numa ordem essencial, na medida em que se trata do es-prito cognoscente; numa ordem axiolgica objectiva, porquanto setrata do esprito que ama; numa ordem teleolgica do processo domundo, na medida em que se lida com o esprito enquanto dotadode querer.

    A mais antiga filosofia das ideias, que predominou desde Santo

    Agostinho, admitiu as ide ante res, isto , uma Providnciae um plano da criao csmica j antes da realidade efectiva domundo. As ideias, porm, no existem antes das coisas, nem ne-las nem depois delas, mas com elas, e s so geradas no Espritoeterno no acto da realizao contnua do mundo (creatio continua).Por isso, tambm a nossa co-execuo destes actos no um sim-ples achamento ou descoberta de um ser que existe independen-temente de ns, mas uma verdadeira co-produo, uma geraoconjunta das essencialidades, ideias, valores e fins, atribudos aoLogos eterno, ao amor e vontade eternos, a partir do centro e da

    origem das prprias coisas.

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    [Nota do Tradutor]

    A verso aqui proposta data de 2004, mas s agora publicada.As pginas oferecidas neste electro-stio constituem um breve ex-certo (de temtica una) da obra A situao do homem no cosmos,que foi editada pela Texto & Grafia, Lisboa, Junho de 2008.

    Agradeo ao Editor a amabilidade de aceder reproduo elec-trnica desta seleco, para que o leitor, na sua cibernavegao,possa sentir o antegosto do profundo e denso ensaio de Max Sche-ler e atrever-se a degust-lo, com olho atento e acmen crtico, natotalidade do seu desenvolvimento e na riqueza dos seus contedose motivos tericos.

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