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VOLUME I

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Esta apostila não poderá ser comercializada. Sua distribuição e cópia são livres, desde que a fonte seja citada.

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Prefácio

O estudo do Antigo Testamento representa um grande desafio para a Igreja contemporânea, pois é difícil, muitas vezes, estabelecer um critério objetivo entre as formas e as normas teológicas presentes na Bíblia hebraica. Uma pergunta bem comum e, por vezes indigesta, é o que os livros de Levítico e Deuteronômio podem ensinar à Igreja nos dias de hoje, por exemplo?

Outro problema muito comum está na distinção feita entre o Primeiro Testamento e os escritos canônicos autorizados pela Igreja da era Patrística. Isto é, comumente diz-se que o Antigo Testamento é a aliança da Lei e no Novo Testamento consolida-se a graça. Talvez, por falta de um estudo mais cuidadoso e de uma leitura mais honesta, não consigamos enxergar a graça e a longanimidade de Javé demonstradas no período que conhecemos por Antigo Testamento. Será que esta divisão entre Lei e Graça faz justiça àquilo que Javé quis revelar ao homem durante o desenrolar da história? E se a Lei dada no Antigo Testamento fosse a expressão maior de sua graça ao povo que ele escolheu sem mérito algum?

Por vezes somos confrontados acerca do padrão comportamental dos

personagens presentes nas narrativas vetero-testamentárias. Como lidar com esta situação? As ações e reações destes personagens servem como parâmetro de conduta para a Igreja diante da elevação ética proposta por Jesus no Novo Testamento? Se servirem, temos um problema ético; se não servirem temos um problema literário.

Como justificar, se é que existe uma justificativa para a chamada justiça retributiva,

para as ordens de matança, e tantos outros exemplos que deixam a Igreja, muitas vezes, sem palavras diante destes prováveis paradoxos teológicos.

O Antigo Testamento mostra a aliança entre Javé e seu povo na história, por isso,

o presente material tem como objetivo estudar os escritos do Primeiro Testamento sob a ótica desta aliança. Portanto não haverá nenhuma ênfase acerca das histórias individuais dos personagens contidos nas narrativas do Antigo Testamento, pois estas histórias só fazem sentido dentro do contexto maior da Aliança que Javé estabeleceu com seu povo e o quanto ele foi fiel a este pacto, mesmo em detrimento da infidelidade do povo a quem havia chamado.

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Esperamos que o presente estudo sirva como incentivo a buscarmos sempre a verdade contida nos antigos textos hebraicos, e sua aplicação para a Igreja, pois o apóstolo Paulo afirmou certa vez que, tudo o que antes foi escrito para nosso ensino foi escrito, a fim de que, pela paciência e consolação das escrituras, tenhamos esperança. Que nossa esperança seja reacesa ao lermos e estudarmos sobre a aliança de Javé com seu povo, que nunca falhou e sempre cumpriu o seu propósito eterno, mesmo diante das falhas e pecados do seu povo.

Este material toma como fundamento bibliográfico a obra “Panorama do Antigo

Testamento” de Andrew Hill e John Walton, da editora Vida e mais algumas obras clássicas como a “Introdução ao Antigo Testamento” de Willian Lasor, David Hubbard e Frederic Bush, da editora Vida Nova.

Cristiano Machado e Alexandre Milhoranza www.crentassos.com.br

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Sumário

Introdução ao Pentateuco .................................................................................................... 7

Introdução ao livro de Gênesis - A promessa corre perigo ................................................ 11

Introdução ao livro do Êxodo - Um povo dentro da lei ....................................................... 15

Introdução ao livro de Levítico - A parte legal da Bíblia ..................................................... 19

Introdução ao Livro de Números - Com quantos escravos se faz uma nação? ................. 23

Introdução ao Livro de Deuteronômio - A nova geração ................................................... 27

Introdução aos livros históricos do povo da aliança ........................................................... 32

Introdução ao Livro de Josué - Com o pé na promessa .................................................... 35

Introdução ao Livro de Juízes - O círculo vicioso .............................................................. 39

Introdução ao Livro de Rute - Nem tudo está perdido. ...................................................... 43

Introdução ao Livro de Samuel - O homem governa? ....................................................... 46

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Introdução ao Pentateuco

O termo Pentateuco se refere aos cinco primeiros livros da Bíblia cristã. Mas este nome provém da palavra grega pentateuchos, que significa cinco rolos. Este nome foi usado pelos judeus helenistas (não nascidos na Palestina) de Alexandria, pois os judeus de origem hebraica o conheciam com Torah, ou seja, "instrução em santidade". Outros nomes para esta coleção são usados, tais como:

● Lei ● Livro da lei ● Lei de Moisés

Os livros que compõem esta coleção foram os primeiros escritos a serem reconhecidos como canônicos, ou inspirados divinamente, pela comunidade hebraica. A igreja cristã, desde seu início, herdou esta tradição. Na divisão tripla da Bíblia hebraica, Lei, Profetas e Escritos, o Pentateuco ganha destaque vindo sempre no início.

TEMA E CONTEÚDO EM GERAL

Apesar de conhecermos, hoje, o Pentateuco como cinco livros separados, ele deve ser compreendido como um único livro em cinco volumes. Para uma compreensão básica, o Pentateuco pode ser dividido em dois grandes blocos:

● Gênesis 1-11 ● Gênesis 12 - Deuteronômio 34

A primeira parte explica a criação de todas as coisas e a queda do homem. Podemos encontrar os seguintes temas neste bloco:

● Origem das coisas ● A criação pefeita ● Propósito do homem

A segunda parte se propõe a explicar a resposta ao dilema apresentado na primeira parte, e inclui os seguintes temas:

Chamada de Abraão

Eleição do povo de Israel

A Aliança com seu povo

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● A origem do pecado ● O julgamento do pecado (observado

no dilúvio) ● A misericórdia de Deus (observada

ao poupar Noé e sua família) ● Orgulho e autossuficiência do

homem (observados na Torre de Babel)

UNIDADE DO PENTATEUCO

O tema que unifica todas as partes do Pentateuco é a promessa feita a Abrão registrada em Gênesis 12:3. A importância do Antigo Testamento para a igreja é observada pelo uso que o Novo Testamento faz dele. Paulo, especialmente, recorre muito ao Antigo Testamento principalmente o trecho compreendido entre a chamada de Abrão até o rei Davi. Isto pode ser observado em seu discurso registrado em Atos 13:17-41. Neste discurso, Paulo afirma que Cristo é o objetivo máximo e o cumprimento da redenção narrada no Antigo Testamento. A unidade do Pentateuco é vista também nas narrativas dos livramentos de Deus, tendo como centro a confissão de fé mostrada no Êxodo, ponto máximo da redenção de Javé no Antigo Testamento. A redenção dada no Êxodo serve de padrão dos atos de salvação de Javé no Antigo Testamento, conforme podemos observar nos seguintes textos: Amós 2:4-10; Jeremias 2:2-7; Salmos 77:13-19. A narrativa do Pentateuco tem o seguinte esboço:

Javé escolheu o povo hebreu, representado por Abrão, sem qualquer mérito. Livrou este povo da escravidão do Egito de modo miraculoso e estabeleceu com este povo sua aliança. A este povo Javé deu terras e uma lei para que pudessem ter uma constituição.

Esta história é narrada de Gênesis a Deuteronômio, e os capítulos 12 a 50 de Gênesis apresentam a promessa dessas terras, o livramento que será dado imerecida e gratuitamente, apontando para a concretização do cumprimento da aliança e a posse dessas terras.

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GÊNEROS LITERÁRIOS DO PENTATEUCO

O Pentateuco contém um amplo acervo de gêneros literários, reflete a natureza da arte hebraica em sua forma e conteúdo. Grande parte do conteúdo do Pentateuco é expresso por meio das narrativas. Estas narrativas não são apenas registros históricos do povo hebreu, pois há interpretações teológicas mescladas ao texto, tal como a interpretação dos sofrimentos de José em favor do seu povo, registrada em Gênesis 50:15-21. As narrativas do Pentateuco também incluem linguagem antropomórfica, ou seja, dar características humanas para Deus (Deus se ira, se arrepende, tem braços, mãos, rosto, etc.), além de teofanias, ou a manifestação visível de Deus entre seu povo (sinais da natureza, tais como trovões; o "ANJO DO SENHOR"). Outro gênero literário muito comum no Pentateuco é a poesia. Abaixo segue os principais tipos de poesia encontrados no Pentateuco:

● Orações: Benção sacerdotal de Arão - Números 6:22-27 ● Canções de louvor: Cântico de Miriã - Êxodo 15:21 ● Canção no estilo épico: Cântico de Moisés - Êxodo 15 ● Bênçãos de família: Jacó abençoando seus filhos no leito de morte - Gênesis 49 ● Profecias: Balaão profetizando sobre Israel - Números 23 e 24

O terceiro tipo mais comum de estilo literário é o legal (lei). O conceito de lei, no mundo do Antigo Testamento, não era exclusivo do povo hebreu. Pelo contrário, pois é certo que povos distintos dos hebreus já tinham suas leis promulgadas a pelo menos 500 anos antes das leis de Moisés. O povo babilônico é um exemplo. A influência destes documentos na formação da Lei do Pentateuco é inegável. O objetivo da lei para os hebreus era organizar e regulamentar a vida cotidiana do povo (cerimonial, moral e civil) tendo em vista a santidade requerida por Javé no relacionamento da aliança estabelecida. CONTEXTO HISTÓRICO DO PENTATEUCO

O Pentateuco cobre o período histórico da criação até a morte de Moisés, pouco antes de o povo hebreu entrar na Terra Prometida. Sem entrar muito nos detalhes de data, pois há uma ampla variedade de linhas de pensamento, adotaremos o período de 2000 a.C. para as narrativas patriarcais e o período de 1500 a.C. para as narrativas do Êxodo. O período histórico comum é situado na Idade do Bronze Médio no Antigo Oriente Médio.

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A civilização egípcia é a que mais predomina durante a história do Pentateuco.

O PENTATEUCO E A IGREJA CRISTÃ

A questão da interpretação ou mesmo o uso do Antigo Testamento pela Igreja é alvo de antigas controvérsias ao longo da história. Existiram desde aqueles que negaram completamente a utilidade do Pentateuco pela Igreja até aqueles que ainda tem em todas as leis e narrativas do Antigo Testamento um padrão doutrinário e comportamental para Igreja. A difícil conciliação entre "lei" e "graça" originou vários métodos de interpretação do Pentateuco para a Igreja hoje. Abaixo estão algumas abordagens do Antigo Testamento para a Igreja:

O Pentateuco como um manual de ética pessoal.

O Pentateuco como "testemunha de Cristo", ou seja, tudo tem um "significado oculto" que aponta para Cristo.

O Pentateuco como parte integrante da história da salvação, onde Deus age como redentor da humanidade.

O Pentateuco como parte das "Escrituras" para a Igreja, atuando como voz de autoridade com relação à crença e prática na comunidade religiosa. Nesta abordagem não se olha o Pentateuco exclusivamente sob as lentes do Novo Testamento, mas atribui-se um valor bíblico-teológico a estes escritos preservando a autoridade divina para a Igreja do Novo Testamento, conforme Paulo afirma em Romanos 15:5, que tudo o que foi escrito, foi escrito para nos ensinar.

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Introdução ao livro de Gênesis - A promessa corre perigo

O estudo do livro de Gênesis é importante, pois fundamenta o ensino teológico de todo o Antigo Testamento. Não se trata de um livro científico, nem tampouco é uma obra biográfica ou histórica, mas é legítimo investigar suas afirmações, assim como podemos aprender sobre homens e mulheres que se deixaram ser usados por Deus e que segue os mesmos rumos da história da humanidade. O nome Gênesis vem da tradução grega do Antigo Testamento (chamada septuaginta), e significa origem. O nome no original hebraico era "No princípio". Autoria A tradição atribui a Moisés a autoria de Gênesis, mas não se encontra no livro nenhuma evidência conclusiva. Como o Pentateuco, na tradição judaica, era visto como uma única obra, e Moisés é descrito como o compilador dos outros livros, logo ele foi cogitado como o mais provável escritor de Gênesis. Estrutura de Gênesis Gênesis está dividido literariamente em onze partes que começam por "...esta é a história de...". Isso sugere que alguém antes de Moisés já havia separado este material que foi usado para compor o livro todo. Estas seções não servem apenas para dividir o livro, mas demonstram a graça e misericórdia de Deus em preservar a raça humana mesmo com todo pecado produzido pela humanidade. Além disso a história destas gerações mostra que o plano redentor de Deus estava sendo executado.

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Abaixo está o quadro que apresenta esta estrutura:

Ordem Geração Referência

1 Dos céus e terra 2:4 - 4:26

2 Adão 5:1 - 6:8

3 Noé 6:9 - 9:29

4 Sem, Cam e Jafé 10:1 - 11:9

5 Sem 11:10-26

6 Terá 11:27 - 25:11

7 Ismael 25:12-18

8 Isaque 25:19 - 35:29

9 Esaú 36:1-8

10 Esaú 36:9 - 37:1

11 Jacó 37:2 - 50:26 Propósito e conteúdo Alguns temas de Gênesis giram em torno da boa criação de Deus, da desobediência que separou o homem de Deus e de sua revelação progressiva ao povo escolhido por meio da aliança. O livro de Gênesis explica a razão da escolha de Abraão e sua família para realização da aliança com Javé. A aliança é o tema que unifica as histórias contidas em Gênesis e narra os perigos do não cumprimento desta aliança. No decorrer desta história Deus envia seus julgamentos à humanidade, que se opoe ao pecado estabelecido em todos os aspectos. Ao contrário das demais histórias da origem do universo, Gênesis mostra que Javé não apenas organizou o universo, mas deu origem ao mesmo mediante o poder de sua palavra. As demais histórias da criação de outros povos mostram que o universo não foi criado, mas apenas organizado mediante lutas entre as divindades. Gênesis mostra que o universo foi criado pelo poder do Deus soberano, pois os povos ao redor de Israel personificavam as forças da natureza como deuses, e Gênesis mostra Javé como o criador destas forças. Outro aspecto importante é que as histórias da criação dos outros povos mostram que a humanidade foi uma ideia posterior dos deuses, porém Gênesis deixa claro que o propósito da criação foi gerar um ambiente no qual o homem pudesse viver. Algumas narrativas da criação mostram que o homem foi criado para fazer o trabalho que os deuses estavam cansados de fazer, portanto era uma ferramenta de dominação dos escravos, já que os reis e governantes eram considerados deuses. O texto de Gênesis não esconde os problemas e erros dos patriarcas, mas a despeito disso Javé manteve-se fiel à aliança que havia estabelecido com Abraão e sua descendência. Estes episódios demonstram que não foi por mérito que ele havia escolhido esta família.

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Estrutura narrativa

CRIAÇÃO (1:1 - 2:3)

O registro da criação está estruturado de forma a demonstrar a progressão do sem forma e vazio para o pleno preenchimento, adequando-se ao homem. A narrativa conta como o homem decaiu da alta posição a que fora colocado na criação para a expulsão do jardim que Javé criara para ele. O assassinato de Abel por Caim mostra que a nova ordem do pecado havia se instalado nas raízes da humanidade. O registro posterior das genealogias do livro de Gênesis prova que o pecado viera para ficar definitivamente nos fundamentos da humanidade. O relato do pecado culmina no dilúvio, atraindo o julgamento de Javé sobre a humanidade, mas ao mesmo tempo representou sua graça, ao poupar Noé e sua família. Aqui temos outro contraste com as narrativas de outros povos sobre o dilúvio, pois, nestas narrativas, os deuses não desejaram poupar ninguém, antes a salvação de uma família foi a traição de um dos deuses que avisou sobre a destruição iminente do mundo. Após o dilúvio Javé renova sua aliança com a humanidade, a mais abrangente da Bíblia, pois envolve a todos com a promessa de não destruir mais a Terra com água. Seu julgamento é visto mais uma vez, ao impedir os homens de se unirem em rebelião confundindo suas línguas, gerando a expansão geográfica. Porém, sua graça é renovada ao se revelar a um homem e sua família.

OS PATRIARCAS NA PALESTINA (11:27 - 37:1)

O texto a seguir não pretende demonstrar a continuidade da fé da humanidade, e Abraão não é apresentado como um homem diferente dos demais, pelo contrário, pois o texto de Josué 24:2 mostra que Abraão e sua família eram politeístas, não adoravam a Javé. Concluímos, portanto, que Javé escolhera a Abraão do nada, sem nenhum tipo de mérito. Após o estabelecimento da aliança com Abraão todo enredo gira em torno do suspense em relação ao cumprimento das promessas feitas por ocasião da aliança. O primeiro deles é a incapacidade de Sara de gerar filhos. Nestas narrativas está incluída também a história de Abraão e Sara no Egito, que, para escapar da fome acabam se envolvendo com o perigo do faraó se apossar de Sara com sua esposa. Outro obstáculo ao cumprimento da promessa fica por conta do problema entre Abraão e seu sobrinho Ló. Outro episódio envolvendo Abraão e seu sobrinho foi o resgate que Abraão realizou de Ló. Outros empecilhos ao cumprimento da promessa são apresentados, tais como no capítulo

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15, apresentado Eliezer, um empregado de Abraão, como um possível herdeiro, e, no capítulo 16 com a entrada em cena de Hagar e Ismael. Javé havia, no entanto estipulado que o herdeiro seria um filho legítimo de Abraão e Sara. A narrativa prossegue, e, mais uma vez, o cumprimento da promessa está em risco quando Sara quase foi levada para o harém de Abimeleque. Se ela fica lá, mesmo que por pouco tempo, poderia haver dúvidas sobre a filiação de Abraão, pois seu nascimento estava previsto para dali um ano. A ameaça é removida por meio de um sonho que o rei teve orientando-o a devolver Sara. No capítulo 21 temos o nascimento de Isaque e tudo tende a ficar bem, porém o pedido de Javé para Abraão sacrificar Isaque coloca o risco de volta à história. Entretanto todos os riscos anteriores decorreram de algum erro humano, mas este risco ao cumprimento da promessa vinha do próprio Deus. Esta prova tinha o objetivo de Abraão demonstrar seu temor a Javé, pois não era uma obediência apenas para ganhar algo em troca, neste caso Abraão perderia! Eliminado mais este obstáculo Javé renova suas promessas a Abraão (Gênesis 22:16-18). Após estas narrativas os obstáculos continuam, pois era necessário que Isaque também se casasse e tivesse filhos. Após a história sobre o arranjo do casamento entre Isaque e Rebeca, surge outra ameaça ao cumprimento da promessa: Rebeca também era estéril. O texto relata mais uma vez a graça de Deus ao permitir que Rebeca tivesse filhos, eliminando outra ameaça à promessa. A partir daí o texto relata as dificuldades de relacionamento entre família da aliança, que novamente põe em risco o cumprimento da promessa. O texto também tem a intenção de mostrar que Jacó, o escolhido de Javé para continuar a promessa não tinha a mesma estrutura espiritual que Abraão seu avô, o que em si mesmo representa outro obstáculo ao cumprimento da promessa.

OS PATRIARCAS NO EGITO (37:2 - 50:26)

Neste ponto o narrador introduz a José, filho preferido de Jacó. A narrativa de José é perfeitamente estruturada, exceto pelo capítulo 38 de Gênesis, que narra a história isolada de Judá, que teria grande importância para a história posterior do povo de Israel. O objetivo principal da história de José é explicar a razão de o povo ter vivido no Egito durante tanto tempo, explicando os motivos do Êxodo do povo, o grande evento fundador do povo de Israel no Antigo Testamento. Apesar do tema da aliança ser pouco comentado, fica evidente a ação de Javé em guardar seu povo para o cumprimento pleno das promessas feitas a Abraão décadas antes.

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Introdução ao livro do Êxodo - Um povo dentro da lei

O nome do livro vem do Grego Exodos, que significa saída, pois o tema principal do livro é a saída do povo de Israel do Egito. O nome em hebraico significa "Estes são os nomes", pois o mundo antigo nomeava seus escritos com as primeiras palavras do livro. O livro do Êxodo continua a narrativa do povo hebreu no Egito, onde ficaram os descendentes de Jacó durante a fome na Palestina. O livro conta o processo de formação da nação de Israel, ou seja, de uma família ao nascimento do povo de Israel por meio da aliança no Monte Sinai, de acordo com a narrativa dos capítulos 19 a 24. A aliança é o eixo do livro, que mostra o ato redentor de Javé para com o povo que havia escolhido. A saída do povo de Israel no Egito mostra a fidelidade de Javé para com sua própria palavra, e é o ponto máximo da redenção no Antigo Testamento juntamente com o pacto estabelecido no Monte Sinai. Estrutura do livro Baseado na geografia o livro do Êxodo pode ser dividido em três partes:

1. Israel no Egito: 1:1 - 13:16 2. Jornada de Israel no deserto: 13:18 - 18:27 3. Israel no Sinai: 19:1 - 40:38

O livro do Êxodo liga Gênesis, que nos conta a razão da Aliança, com Levítico, o livro das leis da Aliança para o povo eleito. A repetição dos nomes dos integrantes da família de Jacó no capítulo 1 faz a ponte entre os relatos do livro com Gênesis, assim como o final do livro descreve a glória de Javé enchendo o tabernáculo (40:34-38) associando a saída do povo de Israel do Sinai liderado pela nuvem (Nm. 10:11-35). A primeira parte narra o livramento do povo da escravidão no Egito por intermédio de Moisés, que teve como porta voz seu irmão Arão. Moisés é incumbido e equipado para realizar esta tarefa, por meio de sinais miraculosos. Este trecho também destaca a paciência de Javé com o povo e a obediência devida às suas ordens. Esta libertação foi realizada com o envio de 10 sinais tanto para os egípcios como os hebreus e terminou com a instituição da páscoa como memorial para as futuras gerações.

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A segunda parte explica como Javé converteu ex-escravos em seu povo particular (19:1-6). Para isso ele estabeleceu sua aliança, um tratado com este povo, de acordo com o antigo modelo do povo hitita conforme abaixo:

Prefácio: 20:2a

Prólogo histórico 20:2b

Condições: 20:3-17(10 mandamentos) e 20:21 - 23:19

Leitura pública: 24:7

Lista de testemunhas: 24:1-11

Bênçãos e maldições: 23:20-33 A terceira parte esclarece os detalhes do tabernáculo e como Javé estabeleceu sua presença entre o povo por meio deste tabernáculo. O trecho também determina a ordenação do sacerdócio de Arão e seus descendentes, que explica a inclusão na genealogia do capítulo 6, legitimando o sacerdócio. A idolatria e a rebelião de Israel são julgadas por Javé (32: 1:10), que tem sua ira retira pela intercessão de Moisés. Neste episódio a misericórdia de Javé é demonstrada, o que tornou a renovação da aliança possível (32:11 - 34:17). Este será o comportamento padrão do povo durante todo o Antigo Testamento. Propósito e conteúdo O livro do êxodo é permeado pelos seguintes temas principais:

● A soberania de Javé sobre as divindades pagãs ● A lei como padrão religioso e social para Israel ● O Êxodo como evento significativo da Redenção de Israel no Antigo

Testamento ● A presença de Deus simbolizada pelo tabernáculo

A mensagem do livro ainda inclui o julgamento do opressor de Israel, o Egito, o livramento da escravidão pelo poder miraculoso de Javé, o estabelecimento de Israel como nação sacerdotal para os outros povos. Propósitos do livro do êxodo:

Histórico Preservação do registro histórico do povo de Israel, seu livramento e presença no deserto. (6:4)

Teológico Auto revelação divina. Deus, além de lembrar-se das promessas feitas aos patriarcas, agora revela-se aos seus descendentes (6:2-3)

Didático Importância do relacionamento de aliança com Javé e a importância da lei como instrumento desta aliança para moldar a identidade de Israel como povo escolhido (23:20-23)

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JAVÉ

O livro de êxodo mostra como Javé se auto revelou ao povo escolhido de forma progressiva. O nome é geralmente traduzido por "EU SOU", mas tem implicações muito mais profundas, pois este nome carrega o radical do verbo hebraico ser e pode apontar para a eternidade e auto existência de Deus. Além do seu próprio nome Javé se revelou por outros meios, chamados de teofanias, tais como: o Anjo do Senhor (Ex. 3:2; 14:19), Milagres (Ex. 8:16-19), a sarça ardente (3:2), Sinais da natureza (19:18-20), voz (24:1), nuvem da glória (16:10), coluna de fogo (40:34-38), face a face com Moisés (33:11). Estas manifestações eram acompanhadas do conteúdo que revelavam a própria essência e caráter de Javé: se lembrava das obrigações da aliança (19:10-15; 25:1-9), Juiz e Salvador (12:27), governa as nações em benefício do povo eleito (15:4-6), santo, mais poderoso que os deuses das nações vizinhas (15:11; 18:10-12), gracioso e misericordioso (32:11-14).

OS DEZ SINAIS

O texto dos dez sinais apresenta, na verdade, a luta cósmica entre Javé e os deuses egípcios, por isso o livro menciona que Javé havia colocado Moisés por "deus" para os egípcios, pois este era tido como uma divindade (Ex. 7:1). O texto, além de sinais, traz também a palavra maravilhas, que pode significar tanto a idéia de milagre como a intensificação dos fenômenos naturais. Esta série de sinais também serviu para evidenciar a predisposição de faraó em não crer em Javé (Ex. 3:19-20), agravado ainda mais pelo endurecimento de seu coração por Deus (Ex. 9:8-12). Após o sexto sinal, aparentemente ele não tinha mais a opção de se arrepender para obedecer à ordem de Javé. É possível que isto seja semelhante ao pecado de blasfêmia contra o Espírito Santo (Mc. 3:2-30), onde Jesus condena os fariseus por atribuir a belzebu os milagres que ele operava. O quadro anexo compara os sinais com os deuses egípcios. Mas atenção é apenas um quadro comparativo do panteão egípcio, e não deve ser tomado de forma conclusiva.

A PÁSCOA

As gerações futuras receberam a ordem de celebrar a páscoa comemorando o grande livramento dado por Javé ao povo escolhido (Ex. 12:13-14). A festa dos pães sem fermento os faria lembrar-se da grande pressa com que saíram da escravidão (12:11). A dedicação dos primogênitos os lembraria da misericórdia de Javé, quando poupou os primogênitos hebreus do anjo da morte (12:23).

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O NT interpreta a páscoa hebraica como um tipo da morte sacrificial de Jesus pelos pecadores (Jo. 1:29; I Co. 5:7). A ceia do Senhor é fundamentada no ritual da páscoa tanto como memorial (Lc. 22:7-30), quanto à expiação feita pelo cordeiro pascal (Ap. 5:6-14).

OS DEZ MANDAMENTOS

Estão registrados em Êxodo 20:1-17, onde Moisés não é mencionado como mediador, diferentemente do restante da lei. Talvez, para destacar o caráter eterno e perfeito da lei que Javé dava ao povo da aliança, o livro de Êxodo narra que Deus fala diretamente do céu, e não do monte Sinai. Oito, dos dez mandamentos, estão na forma negativa, ou seja, proibições. Isso ressalta o caráter absoluto da lei divina para o povo. Os dez mandamentos podem ser considerados atos da graça divina para com seu povo, pois trouxeram um sentido religioso, ético e social a um imenso grupo que, pouco tempo antes, era apenas escravo. A lei representava o conjunto de regras da aliança firmada entre Javé o povo escolhido. No NT Jesus reduz estas leis a duas dimensões básicas e destaca que a essência da lei era justiça, misericórdia e fé (Mt. 23:23).

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Introdução ao livro de Levítico - A parte legal da Bíblia

O povo de Israel, prestes a se transformar em uma nação, era o povo escolhido por Javé no Antigo Testamento. Javé escolhera este povo sem nenhum tipo de critério ou merecimento e os libertara da escravidão do Egito para encaminhá-los para a terra que prometera aos seus antepassados. Esta terra seria o local onde o povo escolhido deveria servir de testemunho para outras nações (Gn. 12:3), e não o deserto. Portanto, este povo, formado por ex-escravos, precisava, além da terra prometida, de uma lei, um código de conduta, pois nesta terra eles teriam contato com as práticas de povos pagãos. O livro de Levítico contém este código para o povo da aliança, pois reflete a vida santa que este povo deveria ter por causa desta aliança (Lv. 20:26), confrontando estas práticas pagãs com a maneira correta de adorar ao único Deus. O livro do Êxodo descreve a revelação e a construção do lugar de adoração do povo da aliança, o Tabernáculo (Ex. 25 - 31); o livro de Levítico descreve os detalhes da forma de adoração que este povo deveria prestar a Javé no tabernáculo. O nome Levítico vem do grego, e significa "o que é relativo aos levitas". O nome hebraico do livro é "E chamou", tirado das primeiras palavras do primeiro versículo. Moisés não é mencionado como autor humano no livro, porém seu nome aparece mais de 25 vezes, quase em todos os capítulos na expressão "O Senhor disse a Moisés", exceto 2, 3, 9, 10 e 26, o que leva judeus e cristãos tradicionais a atribuir a autoria do livro a Moisés.

CONTEXTO CULTURAL

Não eram apenas os hebreus que tinham um sistema religioso composto de sacrifícios e sacerdotes no antigo Oriente Médio. Povos egípcios e cananeus realizavam holocaustos, ofertas de comunhão, tinham lugar próprio de adoração das divindades e demais rituais semelhantes aos israelitas. Porém, algumas diferenças mantinham o povo de Israel distinto do sistema religioso de outros povos, tais como:

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● A revelação direta da palavra divina ● A manifestação visível de Javé ● A compreensão do pecado humano e suas consequências ● A natureza ética do culto a Javé comparado com o culto da fertilidade de

outros povos ● O caráter santo e justo de Javé em contraste com os deuses "humanizados"

dos pagãos ● A proibição de sacrifícios humanos

Estrutura de Levítico O livro de Levítico deve ser lido como uma continuação dos capítulos 25 a 40 de Êxodo, pois a primeira expressão do livro "e chamou o Senhor a Moisés" sugere esta estrutura, que na realidade vai até o livro de Números 10:10, narrando o primeiro ano do nascimento da nação de Israel. As leis são discursos que Javé diz a Moisés, para que ele transmita ao povo. Estas leis eram para todo povo, pois tratava sobre os procedimentos de culto, festas solenes, instruções para os sacrifícios e diretrizes gerais para que a vida religiosa não fosse desassociada da vida civil. O quadro abaixo mostra as divisões principais do livro:

I. Regulamentos para oferecimento de sacrifícios 1:1 - 7:38

II. Descrições da ordenação de Arão e seus filhos e os primeiros sacrifícios no tabernáculo

8:1 - 10:20

III. Leis regulamentando a pureza ritual 11:1 - 15:32

IV. Liturgia e calendário para o Dia da Expiação 16:1-34

V. Leis com exortações à vida santa 17:1 - 26:46

VI. Leis sobre dízimos e ofertas 27:1-34 Propósito e conteúdo O propósito do livro de Levítico é expresso pela ordem dada no capítulo 11 versos 44 e 45: "...consagrem-se, sejam santos porque eu sou santo...", uma vez que o povo de Israel fora chamado para cumprir uma missão (ser benção a todas as famílias da terra), por causa do ato redentor de Javé ao executar o Êxodo dos descendentes de Jacó do Egito (Lv. 22:32-33). Portanto, Levítico é um manual de santidade pelo qual o povo escolhido, o futuro reino de sacerdotes e nação santa (Ex. 19:6), deveria adorar a Javé para usufruir as bênçãos prometidas (Lv. 26:1-13). O livro de Levítico aborda ainda conceitos sobre:

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● A santidade de Deus ● O princípio da mediação sacerdotal ● A pureza do povo da aliança ● A remissão do tempo pelo calendário litúrgico ● O princípio de substituição no ritual do sacrifício

A primeira parte deste manual, que abrange os capítulo 1 a 10, prescreve os procedimentos de adoração a Javé, enquanto que a segunda parte, que vai do capítulo 11 ao 27, descreve a prática da santidade no dia-a-dia do povo.

SANTIDADE

Com base na lei levítica, todas as coisas eram divididas em sagrada e comum. O comum poderia ser dividido em puro e impuro. O puro tornava-se sagrado mediante a santificação e o impuro pela contaminação. O sagrado poderia ser profanado a tornava-se comum, ou mesmo impuro. O que era impuro poderia ser purificado e posteriormente consagrado para tornar-se sagrado. O apóstolo Paulo recorreu a estes conceitos quando escreveu que todos os seres humanos são impuros por consequência do pecado de Adão (Rm. 5:6-14). Mas o sacrifício redentor de Jesus purifica e santifica o pecador (1 Co. 6:9-11).

SACRIFÍCIO

Embora os sistemas sacrificiais entre os povos antigos tivessem a idéia de aplacar a ira dos deuses, o sistema dos hebreus era diferente, pois era revelado divinamente. Além disso, o sistema sacrificial dos hebreus apontava para a uma ética pessoal e comunitária elevada, e também para uma vida de santidade. De acordo com Levítico 17:11, a vida está no sangue, portanto o sangue no altar simbolizava a purificação da presença de Deus (Hb. 9:21-22). O propósito era preservar a santidade da presença de Deus no meio do povo. A descontaminação realizada por meio do sacrifício de sangue tornava o ofertante puro e permitia a reconciliação com Deus. Os sacrifícios de animais não eram realizados para a salvação dos pecados das pessoas, mas preservavam a santidade da presença de Deus no meio do povo e permitiam um relacionamento saudável entre Javé e o povo, pois o ritual era simbólico que revelava a atitude interna do ofertante. O propósito dos sacrifícios era também adorar a Deus pela sua presença entre o povo da aliança, e representava a santidade de Deus em contraste com o pecado humano. O ritual do sacrifício é a base do entendimento da obra redentora de Jesus, tendo sido reconhecido como o cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo (Jo. 1:29-34). Em outros trechos, a morte de Jesus foi entendida como o sacrifício oferecido de uma vez por todas pelos pecados da humanidade (Rm. 5:6-11; Hb. 10:10-12). O livro de Hebreus traz

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uma comparação entre o Dia da Expiação com a morte de Jesus (Lv. 16 <-> Hb. 9-10). Um destaque importante é que todos os sacrifícios de expiação mencionados em Levítico são para pecados cometidos "sem intenção", pois não havia qualquer sacrifício específico para pecados premeditados ou rebelião maliciosa.

DESCANSO SABÁTICO

A santidade do povo hebreu seria refletida também no calendário. Para facilitar o entendimento dos israelitas quanto à provisão de Javé suas festas seguiam o calendário agrícola (Lv. 23:4-44), mas a guarda do sábado introduziu o calendário religioso (Lv. 23:1-3). A guarda do sábado lembraria a Israel que Javé era o Criador (Ex. 20:8-11), além de santificar um tempo de adoração ao Senhor. O sábado lembraria ao povo a aliança com Javé e testificaria que a santidade se baseava em Deus e não na lei ou nos rituais (Ex. 31:12-17; Lv. 26:2). Na época de Jesus este conceito havia se perdido, pois o legalismo obscurecera seu verdadeiro significado (Mt. 12:1-4; Mc. 7:1-13). No diálogo com a mulher samaritana (Jo. 4:21-24) Jesus relembra o verdadeiro significado de um tempo separado de adoração ao Senhor, que não se restringe a lugares ou tempo, mas a hora é sempre agora. O princípio do sábado era aplicado também à terra, pois a cada 6 anos de plantio e colheita, a terra deveria descansar no sétimo ano. Isso simbolizava que Javé era o provedor de Israel, além do caráter social, pois os pobres poderiam colher livremente dos frutos da terra não cultivada (Ex. 23:11). De acordo com o profeta Jeremias foi o desrespeito às leis sabáticas que causaram a queda de Jerusalém e o exílio para a Babilônia (Jr. 25:8-14; 2 Cr. 36:17-21). O exílio foi castigo de Javé ao separar da Terra da Promessa o povo escolhido, justamente por negligenciar as leis relativas à terra que o próprio Deus dera a este povo.

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Introdução ao Livro de Números - Com quantos escravos se faz uma nação?

O livro de Números registra a peregrinação do povo de Israel no deserto, após o Êxodo do Egito rumo à Terra Prometida, tal qual um diário dos primeiros dias da aliança entre Javé e os hebreus. O nome hebraico do livro é "No deserto", tirado do primeiro versículo. O livro destaca a rebelião do povo e as provações durante a jornada no deserto. O nome "Números" vem da tradução grega do Antigo Testamento referente ao recenseamento do povo mencionado nos capítulos 1 e 26. Como acontece em Levítico, a expressão "O Senhor falou a Moisés", aparece em todos os capítulos do livro, o que leva os estudiosos a presumirem a autoria mosaica. Porém, alguns trechos narrando Moisés em terceira pessoa (Nm. 12:3; 15:22-23) sugerem que houve alguma edição posterior à morte de Moisés. Os trechos legislativos de Números procedem de Moisés durante os 38 anos no deserto (Nm. 33:38; Dt. 1:3), mas não se sabe ao certo se ele transcreveu as palavras de Deus, ou se um escriba o ajudou. Parece razoável supor que o Pentateuco foi compilado num livro de cinco volumes durante o tempo de Josué (Js. 24:31) e de Samuel (1 Sm. 3:19-21). Ao que parece Moisés redigiu um diário onde anotava os eventos importantes (Nm. 33:2), o que torna o livro de Números histórico, com certa característica pessoal. A narrativa da peregrinação pelo deserto abrange três momentos distintos:

● No Sinai - 1:1 a 12:16 - Desde o término do tabernáculo até o aparecimento da nuvem que os guiaria

● Em Cades - 13:1 a 22:1 - Os 38 anos de peregrinação pelo deserto. Primeira geração de hebreus após o Êxodo que vai do Sinai a Cades.

● Em Moabe - 22:2 a 36:13 - Os seis meses finais dos 38 anos de peregrinação. Segunda geração pós êxodo que vai das planícies de Cades às planícies de Moabe.

Estrutura de Números A divisão literária do livro de Números é a mais dificil do Antigo Testamento devido aos seus diversos padrões e formas literárias. Nem sempre é possível estabelecer uma

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unidade coesa para identificação da ordem e estrutura. O livro possui, além dos amplos trechos narrativos, muitas outras formas literárias, tais como:

● Listas de censos - 1:5-46; 3:14-39; 4:34-49; 26:5-51 ● Manual de organização do acampamento - 2:1-31 ● Regras religiosas - 3:40 a 4:33; 8:5-26; 18:1-32 ● Leis para sacrifícios e rituais - 5:1 a 7:89; 9:1 a 10:10; 15:1-41; 19:1-22; 28:1 a

30:16 ● Instruções para conquista a divisão da terra - 32:33-42; 34:1 a 35:34; ● Leis sobre herança - 36:1-12 ● Poesia - 21:14-15; 21:17-18; 21:27-30 ● Oráculos proféticos - 23:7-10, 18-24; 24:3-9, 15-24

Ainda que haja esta diversidade literária a conquista da terra prometida é o elemento unificador do livro. O quadro abaixo mostra uma proposta de divisão do livro:

I. A organização de Israel para a conquista da terra prometida

1:1 - 10:10

II. A rejeição da promessa divina de terra 10:11 - 14:45

III. A peregrinação fora da terra prometida: a jornada nas planície de Moabe

15:1 - 22:1

IV. A luta contra os obstáculos à terra prometida 22:2 - 25:18

V. Uma nova preparação para a conquista 26:1 - 36:13 Propósito e conteúdo O livro de Números, num primeiro momento, revela a fidelidade e misericórdia de Javé ante a rebeldia dos israelitas, além de revelar mais da sua natureza e caráter. As narrativas históricas de Números explicam a presença dos hebreus em Canaã, servindo como continuação de Êxodo e Levítico, além de fazer uma ponte entre as leis dadas no Sinai e a ocupação da Terra Prometida. Na preservação dos registros da fase inicial da aliança entre os hebreus e Javé, o livro também destaca os seguintes pontos:

● A santidade de Javé ● A pecaminosidade do homem ● A necessidade da obediência a Javé ● As consequências da desobediência ● A fidelidade à aliança estabelecida no Sinai ● A presença de Javé entre o povo da aliança ● Soberania de Javé entre as nações

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O livro de Números apresenta uma espécie de treinamento divino para que um povo, formado por ex-escravos, se tornasse a nação de sacerdotes estipulada na aliança (Ex. 19). Javé usou as dificuldades no deserto para que o povo se habituasse às batalhas que enfrentariam na conquista da terra prometida e se organizassem em um exército ordenado e poderoso. Além disso, o livro narra a dura experiência de desobedecer às ordens do seu Redentor, servindo como material didático às futuras gerações de hebreus. Números também destaca que, durante este treinamento, Javé foi o provedor fiel dos israelitas ao guiá-los pelo deserto como a coluna de nuvem e fogo, ao supri-los materialmente e protegê-los (10:11 - 14:45; caps. 16 e 17; 20 a 25; 27:12-23; 31:1-33:49).

OS RECENSEAMENTOS

Os recenseamentos eram muito comuns no Antigo Oriente Médio para fins de: 1) Contar os homens aptos para a guerra - Nm. 1:3 2) Distribuição das tarefas do clã e no serviço religioso - Nm. 3:4 3) Cobrança de impostos - Ex. 30:11-16 Com relação ao número de israelitas contados, tendo por base apenas os homens com mais de 25 anos, numa interpretação literal, a população de Israel chegaria ao montante de 2 a 3 milhões de pessoas. Esta quantidade é sustentada pelo fato da população de Israel crescer numa taxa muito maior que os egípcios e também à promessa feia a Abraão sobre sua grande descendência (Gn. 12:2). Porém, o ambiente pouco propício do deserto para a reprodução humana, e a incapacidade dos israelitas para expulsarem todos os cananeus nos levam a interpretar estes de forma não literal. Alguns estudiosos sugeriam que se tratava da lista de recenseamento de Davi colocada no lugar errado, mas este teoria já não conta com tanto apoio. Outros ainda sugerem que se trata de uma figura de linguagem épica exaltando os feitos de Javé. A hipótese mais provável hoje é que devido à falta dos sinais vocálicos na escrita hebraica traduziu-se erroneamente a palavra clã, grupo ou tribo para milhares. Logo, ao invés de lermos milhares o correto seria grupos de pessoas, o que reduz a estimativa da população para algo em torno de 400 mil indivíduos, que ainda torna a narrativa coerente com o relato bíblico sobre o tamanho de Israel ante as outras nações (Ex. 23:29; Dt. 7:1-7).

AS PROVAÇÕES

A provação é um tema exaustivamente repetido no Pentateuco. Desde o Éden até Abraão, de Jacó a José, Javé sempre testou a fé de seus escolhidos. Em Números, o propósito de Javé, ao testar o povo, era humilhar e ensinar os hebreus a depender totalmente dele, além da obediência aos mandamentos da aliança. O ensinamento consistia, sobretudo, em mostrar-lhes a verdadeira condição de seus corações e o quanto Javé era misericordioso. Segundo o Novo Testamento, Jesus também foi provado em todas as áreas nas quais somos tentados, para que pudesse ser o sumo sacerdote que se identifica conosco (Hb.

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4:14-16). Tiago confirma este ensino ao escrever que Deus prova os seres humanos com o objetivo de aprovar a fé e desenvolver um caráter santo (Tg. 1:2-4), e não para reprovar a fé ou direcionar para o mal (1:12-15).

A REVELAÇÃO DE DEUS E A CULTURA

O livro de Números registra a tratativa de Javé com a cultura humana. Ao estabelecer as cidades de refúgio, por exemplo, os culpados de homicídio não intencional tinham uma alternativa para fugir da ameaça de vingança que o parente mais próximo do morto pudesse realizar (Nm. 35:9-28). Este conceito era um avanço ético considerável para as sociedades do Antigo Oriente Médio. Outro exemplo de ética e moral elevados da sociedade israelita em relação às outras culturas foi a decisão de Moisés sobre a herança das filhas de Zelofeade (Nm. 27:1-11). Ele havia morrido sem deixar herdeiros masculinos, e apenas homens, até aquele momento, também em outras culturas, poderiam ser herdeiros de bens e terras. Esta lei elevou a posição das mulheres na sociedade hebraica, algo inédito na cultura oriental, indicando a fidelidade de Javé com relação à terra prometida (Nm. 33:50 - 36:1). Por outro lado, Javé procurou condicionar sua revelação aos padrões culturais humanos ao utilizar sua linguagem e padrão dos documentos legais e ao realizar o recenseamento, que eram modelos culturais antigos já estabelecidos. Estes casos demonstram que Javé respeita a cultura humana e não a anula, porém existem casos que não dependem da cultura quando a obediência à aliança está em jogo.

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Introdução ao Livro de Deuteronômio - A nova geração

Ao contrário do que o nome, vindo do grego, sugere Deuteronômio não se trata de uma segunda lei, mas é uma recapitulação, para a nova geração pós-êxodo, sobre os ensinos da lei que Javé dera ao povo hebreu por intermédio de Moisés. Durante trinta e oito anos os israelitas ficaram em Cades-Barnéia, no deserto de Parã, e puderam entrar na terra da promessa somente quando a primeira geração do Êxodo havia morrido. Escrito pouco antes da morte de Moisés, o livro fornece uma retrospectiva do que acontecera com a geração anterior e adequa os ensinos do Livro da Aliança para a geração atual e possibilita a renovação da aliança. O livro de Deuteronômio segue a estrutura dos antigos tratados dos povos do Antigo Oriente Médio, logo podemos notar a unidade de conteúdo do livro e estabelecer sua data de composição no período Mosaico, ou seja, o segundo milênio a.C. A tabela abaixo mostra a estrutura dos antigos Tratados dos povos do Oriente Médio, e a comparação com a Aliança entre Javé e os hebreus.

Tratados Antigos

Descrição Aliança Referência

Título Identifica o autor, a parte superior, e seu direito do tratado

Título Dt. 1:1-5

Prólogo histórico

Mostra o cuidado da parte superior com o subordinado no passado e este relacionamento entre as partes envolvidas

Prólogo Dt. 1:6 - 3:29

Leis Obrigações dadas pela parte superior que deveriam ser obedecidas pelo subordinado

Leis e estipulações

Dt. 4 - 26

Instruções de conservação e Garantias/Leitura Dt. 27:2-3

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Bençãos e maldições

leitura pública

Maldições prescritas contra os que desobedecem e a reação da divindade

Bênçãos e Maldições

Dt. 28

Deuses convocados para testemunhar o juramento de ambas as partes

Testemunhas Dt. 31 e 32

De acordo com a tabela acima, os tratados da antiguidade eram divididos em:

● Introdução: apresentando o narrador ● Prólogo histórico sobre a bondade da parte superior, o senhor e suserano. ● Os detalhes do que era esperado do subordinado ● Ordens sobre a conservação e armazenagem do tratado e suas leituras periódicas ● Lista de testemunhas para o tratado, geralmente alguma divindade ● Maldições ou bênção de acordo com a obediência do subordinado

Em Deuteronômio Javé é apresentado como o superior autor da aliança. O prólogo do tratado registra a ação redentora de Javé com os israelitas ao livrá-los da escravidão no Egito. Por isso Javé tem o direito de fazer estipulações ao povo, a parte subordinada do tratado. Estas estipulações estão descritas nos capítulos 4 a 26 abrangendo grande parte do livro. O item do tratado que corresponde à garantia e conservação está registrada no capítulo 27:2-3, que diz ao povo para erguer pedras e escrever a lei nelas assim que chegassem à Terra Prometida. No capítulo 28 estão registradas as bençãos e maldições do tratado, e, nos capítulos 31 e 32 encontram-se as testemunhas, que inclui um cântico de Moisés que servirá de juramento a Javé. Estrutura de Deuteronômio O livro de Deuteronômio pode ser dividido em três grandes discursos de Moisés, conforme abaixo:

● Primeiro discurso de Moisés: Dt. 1:1 - Dt. 4:43 ● Segundo discurso de Moisés: Dt. 4:44 - Dt. 28:68 ● Terceiro discurso de Moisés: Dt. 29 e 30 ● Últimas palavras de Moisés: Dt. 31 a 33 ● Transição para Josué: Dt. 34

Além disso, os capítulos 6 a 26 de Deuteronômio, que tratam sobre as leis para o povo da aliança, podem ser agrupados de acordo com a estrutura dos dez mandamentos, de acordo com a estrutura abaixo:

1º Mandamento - autoridade divina - Dt. 6 – 11

2º Mandamento - Dignidade divina - Dt. 12

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Não terás outros deuses diante de mim Incentiva o amor e obediência a Deus e apresenta formas de como agir para este fim. A eleição de Israel por Deus o torna digno de respeito.

Não farás para ti nenhuma imagem de escultura O uso de um santuário central impediria os israelitas de usar os santuários cananeus e preservaria sua prática religiosa e ensino. Javé não deveria ser adorado como os deuses cananeus, no qual os cultos eram interesseiros e manipuladores. A adoração a Javé não deveria ser manipuladora e interesseira, mas ser genuína e ter seu lugar devido.

3º Mandamento - Compromisso com a divindade - Dt. 13:1 - Dt. 14:21

4º Mandamento - Direitos da divindade - Dt. 14:22 - 16:17

Não tomarás em vão o nome do Senhor teu Deus. A conduta cotidiana reflete o compromisso com a fé em Javé. Por isso os capítulos 13 e 14 dão exemplos concretos de conduta que o israelita que leva Deus a sério teria. Deus não perdoaria quem não o levasse a sério, logo o povo também deveria agir da mesma maneira.

Lembra-te do dia de sábado para santificá-lo Javé, como libertador do povo de Israel, merece toda honra. Portanto é esperado de seu povo lhe dediquem seus bens e liberdade, que devem ser estendidos a outras pessoas, e vai além do sábado. Este trecho dará exemplos práticos de como isso deve ser feito.

5º Mandamento - Autoridade humana - Dt. 16:18 - 18:22

6º ao 8º Mandamentos - Dignidade humana - Dt. 19-21; 22:1-23:14; 23:15 - 24:7

Honra teu pai e tua mãe Este trecho procurar enfatizar a autoridade humana para garantir a preservação da aliança, cujo ensino começa no lar com a autoridade dos pais. Porém o texto coloca outras autoridades no processo de instrução da aliança: juízes, reis, profetas e sacerdotes.

Não matarás. Não adulterarás. Não furtarás Este é o trecho mais difícil de harmonizar com os dez mandamentos. Mas, de forma geral, este trecho trata sobre a dignidade da existência humana, onde as mortes causadas pela guerra não se incluem neste contexto. A essência da natureza do povo também deveria ser preservada, assim como ninguém deveria se misturar no casamento de seu próximo, fios e plantas não deveriam ser misturados. Por último,

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este trecho trata sobre a dignidade da pessoa. Deuteronômio deixa claro que não se rouba apenas bens materiais, mas o roubo da liberdade ou do amor próprio é tão destrutivo quanto o furto dos bens materiais, pois ameaça e tira a dignidade de uma pessoa.

9º Mandamento - Compromisso com a humanidade - Dt. 24:8-16

10º Mandamento - Direitos humanos - Dt. 24:17 - 26:15

Não darás falso testemunho contra teu próximo Devemos tratar o próximo com sinceridade. A confiança mútua é o resultado de levar o compromisso com a aliança a sério.

Não cobiçarás coisa alguma que pertença a seu próximo Este trecho sugere que os direitos individuais devam ser protegidos, pois os hebreus não deveriam desejar nada que fosse do seu próximo.

Propósito e conteúdo O livro de Deuteronômio abrange os seguintes assuntos:

● O local de adoração de Javé ● As leis organizadas de acordo com os dez mandamentos ● O nome de Deus ● O amor e obediência a Javé, Deus da aliança.

LEI

No Antigo Oriente Médio, os povos tinham muita dificuldade para entenderem e decifrarem a vontade de seus deuses. Porém, para o hebreu este problema não existia, pois seu Deus decidira se revelar a eles, e usou a lei para mostrar o que se requeria deste povo escolhido. Logo, para o hebreu a lei era a demonstração da graça de Javé. A lei era um prazer, não um fardo. No NT Paulo se coloca contra os judeus que tentaram fazer da lei um meio de salvação e não de revelação graciosa de Javé.

O SANTUÁRIO

O tabernáculo, bem como o templo, representava a presença de Deus entre o povo no Antigo Testamento. Os hebreus tinham apenas um único Deus, logo para enfatizar este conceito teológico, o culto foi centralizado para garantir a prática religiosa correta.

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TEOLOGIA DA HISTÓRIA

Javé se revelou ao povo hebreu em eventos históricos, isso fica claro no prólogo do tratado da aliança. A revelação de Javé foi histórica e envolvia uma resposta do povo não apenas o conhecimento intelectual. Além disso, os eventos históricos registrados em Deuteronômio tem caráter didático para a nova geração, que deveria aprender com os erros dos seus antepassados antes de entrarem na terra prometida.

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Introdução aos livros históricos do povo da aliança

Até este momento, estudamos, no Pentateuco, as ações de Deus desde a criação do mundo até a iminência da entrada do povo hebreu na terra prometida. Na Bíblia hebraica os livros de Josué, Juízes, I e II Samuel e I e II Reis pertencem à divisão dos "Profetas Anteriores", ou seja, os hebreus consideram muito mais seu conteúdo teológico do que seu perfil histórico. Este conjunto de livros abrangem sete séculos de história do povo a aliança, começando pelo chamado de Josué (Js.1:1-2) até a libertação do rei Joaquim de Judá (2 Rs. 25:27). O restante dos livros, Rute, I e II Crônicas, Esdras, Neemias e Ester estão na divisão chamada de "Escrituras". A história deuteronomista

Alguns estudiosos identificaram que os padrões que se repetem nos livros considerados históricos (Josué a II Reis) seguem as determinações do livro de Deuteronômio a respeito do local de culto, forma de culto, modo de vida e, sobretudo a fidelidade do povo com relação à aliança entre Javé e o povo de Israel. Por isso, costumam chamar este período de história deuteronomista. A obediência à aliança traria bençãos (Dt. 28), porém a desobediência levaria o povo à perda da terra prometida (Dt. 30). Veja abaixo algumas expressões que se repetem nos livros que conhecemos por históricos:

● "os israelitas fizeram o que o Senhor reprova" - em Juízes; ● "andaram nos caminhos de Jeroboão" - em Reis

Os discursos que relembrar a redenção do povo do Egito e as obras de Deus entre o povo também são recorrentes em todos estes livros. Observe o padrão em cada um dos textos relacionados abaixo:

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● Deuteronômio 4; ● Josué 23; ● Juízes 2:11-23; ● 1 Samuel 12; ● 2 Samuel 7; ● 1 Reis 8; ● 2 Reis 17:7-23

Portanto, podemos verificar que a mensagem deuteronomista se repete em diferentes momentos da história do povo de Israel, onde a padrão de reprovação é dado por Jeroboão, que não fez o que Javé estipulara na Aliança. Em contrapartida, o padrão de aprovação é o rei Davi, que centralizou o local de adoração em Jerusalém, de acordo com Dt. 12 e seguiu as estipulações da aliança. Durante este período houve intensa atividade profética, que mostram a paciência e fidelidade de Javé à aliança estabelecida com os hebreus. História teológica Nós costumamos estudar história de um ponto de vista linear, ou seja, um princípio, meio e fim. Porém, no Antigo Oriente Médio o tempo cronológico não parecia ser importante, pois os povos antigos costumavam marcar a história por eventos cíclicos, que se repetiam. Tudo era visto com uma visão sobrenatural dos fatos, por isso era muito comum a estes povos viverem presos a rituais e encantos, pois seus deuses eram inconstantes e vingativos. Portanto, para afastar maus presságios ou eventos ruins, estes povos praticavam a magia e encantamentos, já que tudo em sua história era visto sob o prisma sobrenatural pela ação dos seus deuses. Os israelitas estavam proibidos de praticar a magia e encantamentos, já que seu Deus, Javé, era constante e imutável e, portanto nenhuma surpresa atingiria os israelitas. Todo o padrão estava definido pela aliança e pela lei, ou seja, a obedi6encia gera benção e a desobediência gera maldição. Além disso, os eventos climáticos eram controlados por Javé, o Deus único, logo os israelitas não precisariam de nenhum ritual para que ele mandasse chuva, ou ventos ou sol. Desta forma, teologia e história de unem no estudo do Antigo Testamento baseados na aliança entre Javé e seu povo, este é o fundamento da teologia e história deuteronômica. Aplicação para a Igreja contemporânea Devemos ler a história de Israel sob o ponto de vista teológico, ou seja, a ação de Deus entre seu povo com fim de instrução e auto-revelação de Deus. Muito embora sermões e lições citando os bons exemplos das pessoas que viveram neste período sejam válidos, na realidade a ênfase deve ser dada a Deus, pois

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ele é a figura central, não os personagens apresentados. A revelação apresentada nos livros que cobrem este período é de Deus e não a de Davi, Sansão, Elias ou Josias. Não devemos tentar buscar ensinamentos com base na vida de Saul ou de Eliseu, mas procurar os padrões de Deus para seu povo com base na aliança estabelecida entre eles. Então, nos próximos estudos, que abrangerão os livros históricos, passaremos a observar o seu prisma teológico e não apenas histórico. Estudaremos também o papel de Deus na história e não a ação das pessoas separadas da revelação de Deus entre o povo da aliança.

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Introdução ao Livro de Josué - Com o pé na promessa

O livro de Josué retoma a narrativa de Deuteronômio, quando Moisés, impedido de entrar na Terra da Promessa (Dt. 32:48-52), é substituído por Josué como novo líder do povo de Israel (Dt. 31:23). Josué é um personagem importante na história da nação de Israel, pois é lembrado como auxiliar de Moisés (Dt. 31:11), um dos doze espias (Nm. 14) e como general de sucesso (Ex. 17). Por isso, durante a condução do povo à entrada na Terra Prometida, o livro recebe corretamente seu nome, porém devemos nos atentar que o livro trata sobre Deus e suas obras e não sobre Josué. Apesar de haver muitas teorias sobre a composição deste material, este estudo aborda a teoria da data mais antiga para os registros contidos neste livro. Há algumas razões para isso:

● Josué 16:10 relata que os cananeus não foram expulsos de Gezer e "até hoje" vivem no meio do povo de Efraim. Porém I Reis 9:16 diz que o faraó conquistou Gezer e matou todos os cananeus que viviam ali. Isto indica que Josué foi escrito antes da época de Salomão.

● Josué 8:32 sinaliza a presença de escribas no povo de Israel, e não há razao para não admitir que o próprio Josué tenha feito estes registros.

● O período do profeta Samuel é outra possibilidade, pois o amplo uso da expressão "até hoje" sugere que tenha havido um espaço de tempo entre os fatos narrados e o registro escrito.

Embora o livro de Josué narre a conquista da Terra Prometida (Js. 21:43-45), o relato feito em Juízes 1:1 deixa claro que havia muito ainda a ser feito. O que deve ser entendido à luz do contexto histórico é que Deus cumpriu sua promessa de colocar Canaã sob controle israelita, pois as principais nações que a ocupavam foram derrotadas e expulsas. É importante destacar que neste período histórico houve um vácuo de poder nesta região. Tanto os egípcios quanto o povo hitita estavam enfraquecidos pelas longas batalhas que travaram, e não havia ainda outra nação poderosa para tomar o controle da região. O império assírio viria a ter proeminência apenas dali a alguns séculos, portanto o

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povo de Israel pôde, neste intervalo, tomar a terra de Canaã de nações mais fracas, que não ofereciam uma resistência inabalável. Estrutura de Josué O livro de Josué mantém o foco na aliança de Javé com o povo hebreu, conforme o texto em 1:2-6, e pode ser dividido da seguinte maneira:

● O chamado de Josué - 1:1-9 ● A entrada na terra - 1:10-5:12 ● A conquista da terra - 5:13-12:24 ● A divisão da terra - 13:1-22:34 ● Os últimos dias de Josué - 23:1-24:33

A primeira parte do livro relembra o povo sobre a fidelidade e obediência que deveriam prestar a Deus. Na segunda parte, conta-se em detalhes a estratégia dos espias em Jericó, porém não pela estratégia em si, mas para revelar o que Deus já havia estabelecido: "o Senhor entregou a terra em nossas mãos" (2:24). A terceira parte do livro é a mais conhecida, pois relata as batalhas que os israelitas enfrentam para a conquista da terra. Entretanto, o que deve ser destacado que neste trecho é que Javé lutará capacitará o povo hebreu na conquista. É Javé quem dá a vitória ou a derrota, conforme o relato do capítulo 7. Neste episódio o compromisso com a aliança é ensinado de maneira assustadora. A quarta parte é a maior, e relata a divisão da terra entre as tribos de Israel. É a maior parte do livro pois demonstra em detalhes o cumprimento da promessa de Deus em relação à aliança estabelecida com o povo hebreu. A quinta e última parte narra os dias finais de Josué e a renovação do pacto em Siquém. Propósito e conteúdo Nos relatos da conquista no livro de Josué podemos encontrar os seguintes temas:

● A fidelidade de Javé no cumprimento de suas promessas ● A importância da obediência à aliança ● A conquista e divisão da terra

Embora o livro cite com muita frequência o nome de Josué, os relatos nele contidos não são sobre Josué. O livro também não trata sobre as estratégias militares envolvidas na conquista de Canaã, pois o texto deixa claro que toda estratégia veio de Javé.

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Portanto, o livro tem a intenção de transmitir a ideia de que Javé comanda seu povo e cumpre suas promessas, a despeito do comprometimento do povo com a aliança firmada.

A ALIANÇA E A TERRA

A terra representa de forma visível a eleição de Israel por Javé e a concretização da aliança firmada com seu povo. Josué segue a teologia de Deuteronômio quando estabelece a terra como benção de Javé aos hebreus. A terra tinha um papel fundamental no Antigo Testamento pois, sempre que o povo merecia castigo, a ameaça era a perda da terra e sua expulsão. O livro de Josué mostra de forma brilhante a promessa de Javé se cumprindo, quando mostra detalhadamente a divisão da terra entre os israelitas.

CONSAGRAÇÃO À DESTRUIÇÃO

A consagração à destruição em Josué também é encontrado em Deuteronômio (Dt. 7:1-11 e 20:10-18) e instituída em Josué 6:17-19. O termo se refere à consagração de pessoas, cidades e coisas para serem destruídas quando da invasão pelo povo de Israel. Este processo causa certo embaraço sob o ponto de vista ético-cristão, porém os textos deixam muito claro as ordens de Deus para sua efetivação. O que devemos considerar é o Antigo Testamento trata o juízo de Deus sob a justiça retributiva, e esta era executada por meio de outros povos. Ou seja, Javé usou o povo de Israel para executar seu juízo sobre as nações cananéias de acordo com Deuteronômio 9:5. Outro motivo para a execução da sentença de consagração a destruição era a resistência à ação de Javé conforme os textos de Js. 9:1-4, 10:1-5 e 11:1-5. O Novo Testamento expande este conceito, quando cita que o único pecado imperdoável é a blasfêmia contra o Espírito Santo, ou seja, a resistência máxima à ação de Deus, que leverá o indivíduo à separação eterna de Deus.

SOBERANIA DIVINA

Não há como tirar o elemento sobrenatural do livro de Josué sem comprometer sua teologia. Assim como Êxodo, Josué destaca a intervenção divina na história para cumprimento do seu propósito. Os acontecimentos descritos não são ocorrências casuais dos deuses, como na literatura politeísta pagã. O livro de Josué, depois de quatrocentos anos, culmina com o cumprimento da promessa feita a Abraão, um imigrante vindo da Mesopotâmia para Canaã, que forma uma pequena família, e

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recebe a promessa de que todas estas terras seriam de sua grande descendência.

SOLIDARIEDADE COMUNITÁRIA

O trecho de Josué 7 nos conta acerca do juízo executado sobre Acã e toda sua família, pois ele havia desobedecido as ordens dadas quando houve 36 baixas de Israel na batalha de Ai. Para nossa mentalidade individualista isso parece injusto, mas o conceito de identidade coletiva era muito forte em Israel. Este conceito fica evidente na lei do levirato (Dt. 25:5-10) e do resgate de terras (Lv. 25) onde a família desamparada do clã recebia auxílio. Entretanto, da mesma forma onde o clã era abençoado por causa de um membro, todo clã também sofreria se um membro desobedecesse as estipulações da aliança. O objetivo era eliminar toda continuidade da desobediência, além de punir todos aqueles que, embora não sendo culpados, partilhavam do mesmo ideal do desobediente.

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Introdução ao Livro de Juízes - O círculo vicioso

Ao final da vida de Josué, quando houve a renovação da aliança com o povo em Siquém, os hebreus se comprometeram em obedecer todos os preceitos de Javé, e jamais trocariam ao Senhor por outros deuses. Porém, da mesma maneira registrada em Deuteronômio 30, o texto de Josué 24:16-20 nos conta que havia uma desconfiança quanto à firmeza do compromisso assumido pelos israelitas. O povo de Israel não expulsara todos os antigos povos da terra de Canaã, e, além disso, eles ainda aprendiam como viver como uma nação unificada, e não mais como um grupo de tribos, ou clãs. Este intervalo entre o período da entrada do povo israelita em Canaã até o estabelecimento de uma monarquia é conhecido como período dos Juízes, que dá nome ao livro objeto deste estudo. Foi um período difícil, onde Javé enviou libertadores, ou juízes, ao povo quando a extinção estava próxima. A expressão recorrente no livro de Juízes, "Naquela época não havia rei em Israel" (17:6; 18:1; 19:1; 21:25), leva alguns estudiosos a datarem a composição do livro no período monárquico, embora existam algumas narrativas que parecem ser contemporâneas aos eventos registrados. O livro está estruturado de acordo com a teologia deuteronomista, ou seja, a fidelidade à aliança, já estudada em outras ocasiões. Com isso entendemos que o livro foi composto durante vários séculos, e provavelmente compilado pelo profeta Samuel. Isso não representa nenhum impedimento em relação à inspiração bíblica, pois o Livro de Salmos foi composto sob as mesmas circunstâncias. O período dos juízes está situado na Idade de Ferro I dos arqueólogos, pois os relatos no livro citam carros com ar de ferro dos cananeus (1:19; 4:3) e de Sísera (4:13). A soma total dos períodos de guerras e descanso relacionados em juizes é de 410 anos. Porém, este número é alto e não corresponde à arqueologia, logo alguns estudiosos supõem que alguns dos relatos do livro são sobrepostos (cf. 10:7) e não uma ocorrência em sequência, embora Juízes 11:26 afirme que os israelitas estavam em Canaã há pelo menos 300 anos.

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Durante este período houve muitos conflitos em torno das principais rotas comerciais e portos da região, porém o narrador de Juízes parece desconsiderar este contexto, pois está mais interessado nos aspectos teológicos da história, daí a menção à teologia deuteronomista sobre o livro de Juízes. Estes conflitos levaram ao desgaste das nações mais poderosas do período, tais como os egípcios e os assírios. Isso abriu um vácuo de poder no antigo Oriente Médio, permitindo que povos menos influentes como os filisteus, pudessem exercer o controle da região, levando aos conflitos com o povo hebreu. Estrutura de Juízes O livro está estruturado no relato cíclico conforme apresentado na figura 01. O livro pode ser dividido literariamente da seguinte maneira:

● Fracasso na expulsão dos cananeus - 1:1 - 2:5 ● Ciclo de apostasia - 2:6 - 16:31 ● Depravação total do povo de Israel - 17:1 - 21:25

A primeira parte do livro demonstra a incapacidade dos hebreus de expulsarem

todos os povos cananeus. Como consequência, Israel foi influenciado por suas práticas pagãs que o levou à apostasia.

A segunda parte do livro destaca o ciclo vicioso do pecado do povo ao livramento de Javé. É importante notar que, neste ciclo, não há nenhuma menção ao

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arrependimento. Há 6 ciclos completos de pecado e livramento descritos entre os capítulos 3 e 16. Cada ciclo começa com a seguinte fórmula: "os israelitas fizeram o que o Senhor reprova", conforme vemos em 2:11; 3:7; 4:1; 6:1; 10:6; 13:1. A terceira parte encerra o livro demonstrando que, a despeito de todos estes ciclos e livramentos de Javé, o povo não foi capaz de estabelecer um padrão social justo, ético e moral. O livro termina com um relato deprimente e uma nota melancólica sobre a opção pela monarquia, que, no pensamento do livro de Juízes, não seria um sistema opressor, mas facilitador para que o povo fizesse aquilo que Deus aprova. Propósito e conteúdo O livro de Juízes trata dos seguintes princípios:

● Os ciclos do período dos juízes ● A desobediência do povo à aliança ● Justiça e graça de Deus ● O papel do Espírito do Senhor nos juízes ● Provisão divina ao envir os libertadores

Os relatos de Juízes explicam os acontecimentos entre a entrada do povo de Israel em Canaã e a monarquia davídica. Séculos de apostasia terminaram com o estabelecimento da monarquia. As narrativas dos juízes tentam explicar as razões do povo não ter desfrutado das bênçãos da aliança. Ou seja, este problema não fora causado por Javé, mas pela deslealdade do povo para com a aliança. As narrativas também mostram que a injustiça era o resultado da desobediência dos israelitas, que, a princípio, parecem fazer menção à monarquia, uma vez que a liderança tribal não foi capaz de manter a união do povo com Javé. Este contraste é percebido nos relatos do livro dos Reis, onde o autor afirma que Davi "fizera o que o Senhor aprova" (I Rs. 15:5).

LIDERANÇA CARISMÁTICA

Os líderes, também chamados de juízes, não eram eleitos, nem herdavam suas funções, mas espontaneamente se apresentavam conforme a necessidade, por isso, podemos dizer que Javé os levantara para esta função. Embora tenham a nomenclatura de juiz, sua função primordial era militar, mas podemos inferir que a justiça que buscavam era com base na libertação dos israelitas da opressão sofrida por outros povos. Também não há menção de qualquer função espiritual por parte dos juízes, ou seja, eles não tinham ligação com o tabernáculo, nem incentivavam o povo a voltarem-se para Javé. Os juízes nem mesmo tinham um padrão ético-moral elevado; em várias ocasiões conferimos que suas ações, muitas vezes, não condizia com a lei da aliança: Gideão adorou o manto sacerdotal que fizera (8:27), Jefté sacrificou a própria filha (11:30-40) e Sansão se envolveu com mulheres filistéias (caps. 14-16). A intenção do texto não é mostrá-los como modelos espirituais, mas destacar que a libertação foi possível, pois Deus estava com eles. O fato de muitas vezes agirem sem ética não significa que não

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tenham tido fé, e embora a Bíblia não expresse aprovação por seus atos a libertação foi possível, pois a tarefa do juiz era libertar o povo, mediante a capacitação dada por Javé.

ESPÍRITO DO SENHOR

O Espírito do Senhor tem um papel fundamental no livro de juízes, pois representa o sinal de que Javé estava com eles. Não podemos presumir que os antigos hebreus tivessem a mesma compreensão que temos do Espírito Santo como pessoa da Trindade, pois este conceito se apresentou a nós como consequência da revelação progressiva de Deus na história. Outro ponto que merece destaque é a compreensão entre batismo do Espírito Santo e capacitação pelo Espírito do Senhor. A capacitação pelo Espírito não implica em regeneração de vida como o NT ensina, pois servia apenas a um propósito muito específico, e, após o cumprimento da missão deixava o juiz. O Espírito dava autoridade momentânea para o juiz convocar os exércitos para as batalhas, uma ez que não havia uma autoridade central para isso. Logo, quando alguém conseguia reunir o povo para uma missão específica ficava claro para todos que Javé estava com ele.

APOSTASIA

Os relatos de Josué e juízes nos deixam em dúvida sobre como os israelitas puderam desprezar tudo que Javé fizera por eles anteriormente. Porém devemos destacar que o monoteísmo era exclusividade de Israel, que se iniciou no Sinai. O monoteísmo era uma visão radical da divindade, pois não estava subordinado a nada e ninguém, além de ser autônomo e não ser manipulado por nenhum tipo de ritual de culto. Nas religiões do Oriente Médio Antigo os deuses eram contatados por rituais de fertilidade e sacrifícios humanos e se manifestavam nos fenômenos naturais. Não tinham um padrão ético elevado, pois refletiam a própria natureza humana, além de dependerem dos humanos para a realização de suas tarefas; logo isso gerava a manipulação da divindade. O povo de Israel era um ajuntamento de clãs e não estava preparado para fazer um ajuste tão drástico em sua forma de pensar e se relacionar com a divindade, por isso foram muito influenciados pelo paganismo cananeu, chegando a tratar Javé como uma das divindades pagãs Cananeia, conforme os profetas indicaram muitos séculos depois.

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Introdução ao Livro de Rute - Nem tudo está perdido.

A história narrada no livro de Rute se passa na época dos juízes, que, como estudamos anteriormente, foi uma época de apostasia e descaso com Javé e sua aliança. O livro de Rute apresenta o caminho oposto do livro de juízes, pois mostra a lealdade uma moça moabita para com Noemi, sua sogra israelita, e seu Deus. Os moabitas eram descendentes de Ló, sobrinho de Abraão (Gn. 19:37). Eles ocupavam o território a leste do Mar Morto, e, na época da peregrinação dos hebreus no deserto, eles demonstraram agressividade a Moisés e ao povo (Nm. 21 - 25). Apesar de Rute constar logo após o livro de juízes em nosso cânon, na Bíblia hebraica este livro situa-se na seção dos Escritos, portanto, não é considerado parte da história deuteronomista. O livro começa dando a entender que o período dos juízes passara, ou seja, as narrativas se passam no período dos juízes, porém foram escritas durante a monarquia, pois a genealogia, no fim do livro, sugere que os leitores conheciam o rei Davi. Embora as narrativas nos levem ao tempo dos juízes, não há como ter certeza se a história de Rute, a moabita, se encaixa neste período. A narrativa em Juízes 3, nos diz que Eúde expulsara os moabitas de Israel, portanto a história de Rute não cabe nesta época. Logo, se a genealogia está completa, os acontecimentos podem estar situados na época de Jefté, no século XII a.C. A riqueza de diálogos e a construção dos personagens levaram alguns estudiosos a classificar o livro de Rute como um conto, o que não elimina o caráter e a precisão histórica do livro. Estrutura de Rute O livro de Rute está estruturado como um espelho, ou seja, os elementos finais da história espelham os elementos iniciais, trazendo-lhes uma solução. O livro pode ser dividido da seguinte maneira:

● Migração e tragédia da família de Elimeleque - 1:1:5

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● O retorno para Belém - 1:6-22 ● Rute encontra Boaz - 2 ● O plano de Noemi - 3 ● Casamento de Rute e Boaz - 4:1-17 ● Genealogia de Davi

De acordo com a estrutura espelho do livro, o capítulo 1 espelha o 4, pois no capítulo 1 o desespero de Noemi se torna em alegria por um filho no capítulo 4. Os capítulos 2 e 3 são correspondentes em virtude dos diálogos entre Rute e Noemi e entre Rute e Boaz. O desfecho no capítulo 4, ao espelhar o capítulo 1, só foi possível graças aos desfechos dos diálogos dos capítulos intermediários. Propósito e conteúdo O livro de Rute menciona os seguintes conceitos:

● A Fidelidade e lealdade de Deus ● A lealdade em um ambiente de apostasia ● O legado dos ancestrais do rei Davi ● O Conceito do Resgatador

O período dos juízes, sem sombra de dúvida, representou um momento muito negativo no que se refere à fidelidade à aliança por parte do povo de Israel. O livro de Rute mostra o contraste entre os grandes heróis do período dos juízes com uma simples família israelita. Foi justamente de uma dessas famílias em apuros que a fé em Javé foi preservada, e de onde veio o maior dos reis de Israel: Davi. Javé preservara esta família para manter seu nome em Israel, para mostrar sua lealdade e fidelidade à aliança realizada séculos antes.

O RESGATADOR

Se um homem morresse sem deixar filhos, seu irmão deveria se casar com a viúva e era obrigado a gerar um filho em nome do seu falecido irmão. Este sistema é chamado de levirato, e é descrito com detalhes em Deuteronômio 25:5-10. Este sistema preservaria as famílias, que não teriam um fim repentino. O costume do levirato também incluía o direito ao resgate de terras, conforme prescrito em Levítico 25:25-31; 47-55. A terra vendida a alguém poderia ser resgatada, comprada de volta por alguém da família. Estes costumes tinham o propósito de preservar as famílias e a terra, duas questões centrais da aliança. O resgatador era um intermediário para readquirir as bênçãos em risco e serve de exemplo para a Graça de Deus. O Novo Testamento aplica este conceito à ação de Cristo para com a Igreja.

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HESED

O termo hesed se refere à lealdade de Javé com sua aliança. Algumas traduções da Bíblia usam misericórdia, outras preferem a palavra bondade para designar a hesed de Deus. No livro de Rute, a hesed de Javé é demonstrada tanto vertical, quanto horizontalmente. No plano horizontal, o compromisso de Rute com sua sogra em 1:16-17 é um exemplo da bondade e misericórdia. É justamente esta característica que chama a atenção de Boaz em 2:12 por Rute, onde a hesed que ele também demonstra por Rute é louvada em 2:20. No plano vertical a hesed de Javé é descrita em 1:8-9, que levará ao casamento de Boaz e Rute no capítulo 4, onde a misericórdia de Javé se manifesta no resgatador de Noemi. A conclusão do livro é que a misericórdia de Javé se manifesta na misericórdia de uns pelos outros, que culmina em seu louvor e adoração, contrastando com o livro de Juízes pela falta de lealdade à aliança.

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Introdução ao Livro de Samuel - O homem governa?

Na Bíblia hebraica, os livros de I e II Samuel formam um único livro, e, neste estudo, vamos tratá-lo desta maneira. O livro de Samuel faz a ponte entre o período dos juízes e o estabelecimento da monarquia em Israel, abrangendo os reinados de Saul e Davi, seus dois primeiros reis. Os acontecimentos narrados se situam entre a metade do século XI a.C. até o século X a.C., porém, alguns estudiosos estabelecem a redação do livro muito tempo após os fatos ocorridos, mas, temos boas razões para dizer que a redação é contemporânea aos acontecimentos descritos no livro, uma vez que a corte dispunha de um arquivista real e de um secretário (cf. 2 Sm. 20:24-25). Os fatos ocorridos com Samuel e Saul abrem o livro de Samuel, que se fecha com a compra feita por Davi do campo de Araúna, que seria o futuro terreno onde Salomão, seu filho, edificaria o Templo de Jerusalém. O enredo principal fica por conta de Davi, que luta para constituir e manter a nação de Israel. Neste período, as nações mais poderosas do Antigo Oriente Médio, Egito e as nações mesopotâmicas, não estavam em condições de combates externos. Por isso, alguns povos de menor expressão no cenário palestino, puderam avançar em busca de novos territórios. Foi nesta ocasião que os filisteus atacaram Israel de forma consecutiva, sendo combatidos pelo rei Saul, que morreu em uma das batalhas, e foram expulsos por Davi. A partir daí Davi conseguiu expandir as fronteiras do reino de Israel na região Palestina por meio de batalhas e tratados. Estrutura de Samuel O livro de Samuel está dividido da seguinte maneira:

● Histórias de Samuel - 1 Sm. 1:1 - 4:1a ● Histórias da Arca da Aliança - 1 Sm. 4:1b - 7:2 ● A instituição da monarquia e reinado de Saul - 1 Sm. 7:3 - 15:35 ● A Ascensão e reinado de Davi - 1 Sm. 16:1 - 2 Sm. 5:10 ● Os sucessos de Davi e a consolidação do reinado - 2 Sm. 5:11 - 9:13

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● Os fracassos de Davi e a dificuldade de manter o poder - 2 Sm. 10:1 - 24:25 Os primeiros capítulos tratam da apresentação de Samuel, a condição deplorável do período dos juízes (Eli e seus filhos - I Sm. 2:12ss) e marca a transição entre este período e a monarquia em Israel. Este período termina com a tomada da Arca da Aliança pelos filisteus. No mundo antigo a vitória de um exército sobre outro indicava o poder e a vitória do deus do exército vencedor sobre o deus do exército perdedor. Logo, a conclusão era que Dagom, o deus filisteu, era mais poderoso do que Javé, o deus de Israel. Os capítulos 5 e 6 de I Samuel registram fatos que desmentem essa teoria, pois, mesmo capturada, a Arca ainda representava a presença de Javé, e as pragas enviadas sobre o povo filisteu mostraram que, embora o povo de Israel tivesse perdido a batalha, Javé não fora derrotado pelos filisteus. A narrativa com o retorno da Arca faz menção Êxodo. A Arca permaneceu em um alojamento temporário durante todo reinado de Saul, e só voltou a ter uma posição de destaque quando Davi a levou para Jerusalém (2 Samuel 6), sugerindo que, tanto Samuel quanto Saul são personagens que indicam a transição para o período de ouro de Israel com o rei Davi, além de indicar a importância da Arca da Aliança. Samuel atuava como profeta e sacerdote, além de juiz de Israel. Mas, apesar do poder político que possuía, não era rei. Após a vitória sobre os filisteus (I Sm. 7), e a reconquista dos territórios que haviam sido perdidos, cresce o clamor popular por um rei, pois o povo entendeu que nem Samuel, já idoso, nem seus filhos poderiam manter Israel na posição que ocupava naquele momento. A alusão à frustração de Samuel com relação à nomeação de um rei pode indicar que ele se considerasse apto à esta posição (I Sm. 8:4-5). Nas narrativas da monarquia unida (Saul, Davi e Salomão) o livro de Samuel apresenta como estrutura narrativa a função do rei, suas qualidades e sucesso e, por fim, seus fracassos e conquistas. No caso de Saul, ele é retratado muito mais como um juiz do que como rei, de acordo com o episódio ocorrido em Jabes-Gileade (I Sm. 11). Porém, Saul não tinha firmeza espiritual nem um conhecimento consistente de Javé, afinal mal haviam saído dos quatrocentos anos de apostasia no período dos juízes. Entretanto Deus esperava de um rei muito mais do que de um juiz, e Saul não cumpriu essas exigências. O capítulo 12 conclui que, o povo, ao escolher para si um rei, estava, na verdade, rejeitando o governo do próprio Deus. O povo pensava que a ausência de um rei os faria perder as batalhas pela permanência na terra prometida. O texto mostra que, independente das falhas e fracassos de Saul, Deus estava disposto a dar a ele uma chance de desenvolver seu potencial. Isso nos ensina que Deus executa seus propósitos a despeito das falhas das pessoas que ele chama e convoca. Os capítulos 13 a 15 vão apontar as falhas de Saul, que são anteriores ao seu relacionamento de Davi. O autor tem esse cuidado para mostrar que não foi Davi quem desqualificou Saul, mas ele próprio. O caso do sacrifício oferecido por Saul demonstra sua incapacidade de tomar decisões sábias em momentos difíceis, qualidade de um verdadeiro rei. Ao fazer o sacrifício Saul agiu conforme o modelo monárquico cananita, isto é, onde o rei também possui o ofício de sacerdote. Os capítulos 14 e 15 continuam revelando a incapacidade de Saul de tomar decisões, e isto levou Deus a mandar Samuel ungir Davi como futuro rei de Israel. Daqui para frente a

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narrativa se volta para Davi e mostra como ele, mesmo sendo predestinado ao reinado, não tomou o trono de Saul. A narrativa apresenta três fatores para comprovar isso:

● A hostilidade de Saul - Foi sempre Saul quem iniciou os confrontos com Davi. ● A ausência de vingança por parte de Davi - Davi teve duas oportunidades claras de

matar Saul, mas não o fez (I Sm. 24 e 26). ● As afirmações de inocência de Davi no texto - Estas declarações são feitas por:

Samuel (I Sm. 28:16-18); Abigail (1 Sm. 25:30); Jônatas (I Sm. 19:4-5, 20:14-15, 22:16-18); e pelo próprio Saul (I Sm. 20:31, 24:16-22, 26:21-25)

Os sucessos de Davi são descritos em II Sm. 5 - 9. Este trecho mostra a instituição de Jerusalém como nova capital quando a Arca da Aliança é trazida e restaurada à sua função. Este texto mostra como Davi firmou o trono de Javé em Jerusalém (capítulo 6) e, como Javé firmou o trono de Davi (capítulo 7) por meio da sua aliança. Os capítulos 10 a 20 focalizam a família de Davi e como seu pecado causou a tragédia que se instaurou até o fim de sua vida. Dificilmente pode ser casual a perda de quatro dos seus filhos (seu filho com Bate-Seba, II Sm. 12; Amon, 2 Sm. 13; Absalão, II Sm. 18 e Adonias I Rs. 2) após Davi ter decretado a restituição redobrada quando da acusação apresentada pelo profeta Natã a Davi. A aliança e a unidade do reino estavam em perigo por consequência dos erros de Davi, mas a narrativa mostra que Deus, apesar dos erros de Davi, ainda o apoiava, mesmo que outras pessoas estivessem contra ele. Os capítulos 21 a 24 focalizam a ação divina contra Davi por meio de fome e praga, mas ainda sim mostram como Deus o apoiou, deu-lhe vitória (II Sm. 22) e firmou sua aliança com ele (II Sm. 23:1-7). Propósito e conteúdo Apesar da ênfase histórica, o principal objetivo do livro de Samuel é teológico, isto é, ele não foi redigido para documentar a história propriamente dita, mas para mostrar como se deu a aliança com o Rei Davi e como a autoridade divina é obedecida ou desobedecida, bem como suas consequências.

A ARCA DA ALIANÇA

A arca da aliança era o objeto religioso mais importante de Israel, pois representava a presença de Deus no meio do seu povo. Os ídolos foram proibidos na religião israelita para evitar-se a manipulação da divindade pelas pessoas, entretanto a arca, por vezes, passou pelo mesmo problema. Lemos no relato de I Samuel 4 que os filhos de Eli tentaram usá-la para esta finalidade, pois, em tese, a divindade israelita não se deixaria capturar pelos inimigos. Javé, entretanto, não se deixa manipular, então a arca não foi capturada, mas deixou Israel (1 Samuel 4:21). A autonomia da arca, que operava somente por ordem de Javé, foi provada

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quando ela retornou a Israel numa carroça sem condutor (I Samuel 6:10-16). A arca não deveria ser tratada apenas como uma relíquia, os episódios da praga entre os filisteus (I Samuel 5), das mortes em Bete-Semes por sua profanação (I Samuel 6:19-20) e o castigo de Uzá (II Samuel 6) mostram que Javé se manifestava por meio da arca independentemente de qualquer ritual humano. Por isso, sua instalação em Jerusalém, por ocasião da conquista de Davi, não foi um mero ritual, mas sim a aprovação divina do reinado de Davi. O Salmo 78 dá detalhes sobre a teologia da arca.

MONARQUIA

A monarquia em Israel era uma premissa divina (Jz. 8:23; I Sm. 8:7). O rei deveria manter a justiça, o padrão ético do decálogo. No período dos juízes Javé convocava um libertador sob demanda para executar este propósito, porém o povo considerava a monarquia mais durável, desta maneira não haveria a necessidade de esperar um próximo libertador. Não havia nada de errado em pedir um rei, pois era propósito de Javé que isso acontecesse (Dt. 17:14-20). Porém, foi a expectativa do povo de achar que o rei teria sucesso onde Deus não tivera que recebeu sua reprovação de Javé. Veja em I Samuel 8:20 a perspectiva do povo sobre o primeiro rei de Israel e compare com o relato apresentado em I Samuel 17. A conclusão é que o rei não lutou as batalhas pelo povo, mas o Senhor venceu a batalha pelas mãos de Davi. Inclusive a recompensa que Saul oferece para quem lutar prova sua indisposição à luta. O verdadeiro rei entendia que quem luta e vence é o Senhor, portanto a monarquia não substituía o governo de Deus, mas representava sua própria atuação no meio do povo.

A ALIANÇA DAVÍDICA

A aliança de Javé com Davi é um tema importante no Antigo Testamento, e suas implicações o transcendem, por isso temos de analisar três aspectos dessa aliança: a) A promessa de Javé a Davi - A promessa de Javé feia a Davi é semelhante à promessa feita a Abraão. A tabela abaixo demonstra isso:

Promessa Abraão Davi

Tornar o nome famoso Gn. 12:2 2 Sm. 7:9

Dar terra Gn. 12:7 2 Sm. 7:10

Segurança Gn 12:3 2 Sm. 7:10-11

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De acordo com a tabela acima verificamos que a promessa de Javé a Davi é englobada pela promessa feita a Abraão, havendo uma espécie de subordinação daquela a esta. A partir de 2 Sm. 7:12 temos uma distinção da promessa feita a Davi, quando menciona-se que o descendente de Davi seria seu sucessor, ainda que haja certa semelhança com a promessa de descendentes feita a Abraão. A descendência de Davi teria a oportunidade de ocupar o trono sucessivamente. Embora a Bíblia mencione que esta aliança seria eterna, fica claro que, no caso da quebra desta aliança por parte do homem Deus também estaria desobrigado de cumprir sua parte. Para outros exemplos do uso do termo "para sempre" veja os seguintes textos: 1 Sm. 1:22; Dt. 15:17; Jr. 17:4. A promessa continha o aspecto da disciplina e não da rejeição como fora com Saul (2 Sm. 7:14). O texto de 2 Sm. 7:29 demonstra que Davi entendeu os termos da aliança quando pediu que Javé abençoasse sua descendência continuamente. b) A natureza da aliança - O texto de 2 Samuel 7 não impõe condições à aliança davídica, mas observamos em outros textos que esta aliança estava sujeita à renovação de tempos em tempos, apresentando um caráter condicional: 1 Reis 2:4; 1 Reis 6:12; 1 Reis 9:4-5. Em 1 Reis 8:25 Salomão declara ter conhecimento da cláusula condicional da aliança feita a Davi. Este textos comprovam que o termo "para sempre" deve ser entendido como indefinido, isto é, por tempo indeterminado. Os registros bíblicos nos dão conta de que a promessa a Davi foi cumprida, mas, dali para frente caberia a seu filho cumprir sua parte neste acordo. c) Os impactos da aliança - A aliança foi anulada com a desobediência de Salomão? O texto de 1 Reis 11:32-39 trata sobre este assunto. Aqui vemos a bondade e graça de Deus, pois Salomão poderia ter seu reinado terminado, mas Javé, por amor a Davi, permitiu que Salomão fosse até o fim. Em 1 Reis 11:38 um acordo semelhante foi feito com Jeroboão, e aqui temos a reafirmação da promessa feita a Davi (ver 2 Crônicas 21:7 e Salmos 89) e o despontar da esperança messiânica, que traria a restauração da aliança davídica. Jeremias 33:14-22 é o texto no Antigo Testamento que tratará de forma mais clara sobre este tema: o messias que trará a renovação da aliança davídica. Durante todo este tempo não houve mais um rei davídico no trono de Israel, e o Novo Testamento reconheceu em Jesus o descendente de Davi que traria esta renovação, conforme Mateus deixa claro em seu evangelho. Ao satisfazer as condições que o Messias deveria ter, Jesus abre o caminho para o reino que será eterno.

AVALIAÇÃO DE SAUL

Saul é conhecido em seu reinado, especialmente durante o destaque que o texto dá a Davi, como alguém invejoso e atormentado. Entretanto nem sempre ele foi assim. A Bíblia o descreve antes de seu reinado como alguém tímido, sincero e agradável, ou seja, o tipo de pessoa que todos escolheriam para ser rei. Em 1 Samuel 10:10 temos a informação de que o Espírito do Senhor o capacitou para reinar em Israel, contudo, em 1 Samuel 16:14 o Senhor retirou seu Espírito de Saul, que perdeu a capacidade divina de governar ao não tomar boas decisões e não preservar a justiça.

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Porém, antes mesmo do Senhor ter tirado seu Espírito de Saul, podemos verificar que nem tudo estava bem com ele, pois, mesmo sendo sincero, sua espiritualidade era superficial. Ele mostrou isso quando desconsiderou a função de Samuel (1 Samuel 9:10-15). Temos este veredito também no episódio que ele oferece o sacrifício antes da batalha (13:8-12), e no qual deixa de executar o rei Agague (15:13-35). Quando, ao final de sua vida, Saul recorre à médium de En-Dor (1 Samuel 28), fica provado que ele nunca entendeu alguns princípios fundamentais da teologia hebraica. Provavelmente Saul jamais entendeu que Javé era diferente dos deuses cananeus, que se deixavam manipular pelo sistema religioso. Ele não era diferente em nada de um israelita comum desta época, embora o rei, como representante de Javé ao povo, deveria ser diferente.

AVALIAÇÃO DE DAVI

A tendência natural ao lermos os relatos bíblicos é desprezar a Saul e, em consequência desta reprovação, aprovar incondicionalmente a Davi. É certo que a percepção teológica de Davi era muito mais aguçada que a de Saul, contudo devemos saber que Davi cometeu erros gravíssimos. Davi deixava-se levar pelo momento, sem refletir em suas consequências. A tabela abaixo ilustra bem este fato.

Pecado Consequência Referência

Mentira Morte de inocentes 1 Samuel 21-22

Raiva Risco de assumir o trono 1 Samuel 25

Conspiração internacional Morte de civis 1 Samuel 27

Cobiça Adultério e Assassinato 2 Samuel 11

Negligência paterna Desunião familiar 2 Samuel 13 e 14

Orgulho Devastação da nação 2 Samuel 24 A despeito de todos esses erros, a Bíblia mostra o quanto Davi amava a Deus e fora leal com ele. A Bíblia mostra seu profundo arrependimento e o quanto ele prezava as leis de Javé. Por isso a opinião equilibrada do escritor dos livros de Samuel sobre Davi é prova de que estamos todos sujeitos ao pecado e à falta de bom senso, porém a devoção e o amor de Davi a Javé e sua Lei eram o seu diferencial.