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SCINTILLA REVISTA DE FILOSOFIA E MÍSTICA MEDIEVAL

ISSN 1806-6526

Scintilla, Curitiba, vol. 2, n. 1, p. 1 a tanto, jan./jun. 2005

Faculdade de Filosofia São Boaventura - FFSB

Curitiba PR

2005

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Revisão e editoração: Enio Paulo Giachini Diagramação: Sheila Roque Capa: Luzia Sanches

Catalogação na fonte _____________________________________________________________ Scintilla – revista de filosofia e mística medieval. Curitiba: Faculdade de Filosofia São Boaventura, v.1, n.1, 2004- Semestral ISSN 1806-6526 1. Filosofia - Periódicos 2. Medievalística – Periódicos. 3. Mística – Periódicos. CDD (20. ed.) 105 189 189.5 ____________________________________________________________

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SUMÁRIO

EDITORIAL 7

ARTIGOS 9 A crítica de Scotus à teoria tomasiana da subordinação das ciências

Roberto Hofmeister Pich 11 A teologia e seu método no prólogo da Ordinatio de Duns Scotus

Sinivaldo S. Tavares 67 O conceito de pessoa

Constantino Koser, OFM 107

COMENTÁRIOS 131 Da pessoa

Hermógenes Harada 133

TRADUÇÕES 171 Da ecceidade ou do princípio de individuação

Duns Scotus 173 Como se deve seguir a Deus e do modo bom

Mestre Eckhart 177 Olivi, o mais velho representante escolástico do conceito hodierno de movimento B. Jansen, SJ 181

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EDITORIAL Enio Paulo Giachini (Editor)

Este vol. 2, n. 1 de Scintilla tem seu eixo central apoiado nalguns temas do pensamento Scotiano.

Escolhidas três clareiras de reflexão dentro das infindas sendas percorridas por Scotus, estas vão servir de luzeiro no direcionamento que o próprio Scotus procurou vislumbrar, seguir e indicar para o destino do humano: a) O estatuto de ciência e sua relação no plural, b) a teologia e seu método e c) o conceito de pessoa no âmbito da trindade.

Inicialmente um artigo de Roberto H. Pich traz esclarecimentos e abre espaço para se compreender a concepção scotiana de subordinação das ciências em geral, e especificamente se há subordinação entre a “nossa teologia” e a teologia de Deus ou dos bem-aventurados. A partir daí, trava-se um diálogo crítico com o conceito tomasiano da subordinação das ciências, o que vai evidenciar os critérios scotianos de conhecimento científico, em franco confronto com os aristotélicos. É aqui que Scotus rediscute o estatuto de ciência, fato que vai servir de base para novas posturas frente à tradição.

A partir do Prólogo da Ordinatio, Sinivaldo S. Tavares, brinda-nos com um artigo que versa sobre e a partir da peculiaridade do método científico da teologia, o que vale dizer, a especificidade de seu modo de pensar. Essa reflexão dimensiona naturalmente a relação entre os diversos saberes – redução, subordinação... – e o alcance da razão frente ao destino do homem e frente à revelação. De modo muito oportuno, convida a pensar o destino histórico da proposta scotiana de pensamento, sobretudo em tempos de esgotamento dos grandes projetos da modernidade.

É com bastante contentamento que a revista presenteia o leitor com um artigo inédito, póstumo, de Fr. Constantino Koser, sobre o conceito de pessoa no pensamento de Scotus. Segundo o autor, o conceito de pessoa insere-se no tema da Trindade, onde recebe sua caracterização peculiar. Aliás, segundo o autor, a concepção trinitária de Scotus tem uma relação direta com seu conceito de pessoa. É a peculiaridade de sua definição de pessoa que vai servir de pano de fundo para diferenciar seu pensamento do pensamento do Aquinate. Em diálogo aberto com sua cunhagem tradicional – Boécio, Agostinho, Ricardo de S. Vítor, Tomás de Aquino, A. de Halles, Boaventura –, Scotus pensa o conceito de pessoa como incomunicabilidade: pessoa é incomunicabilidade, que possui existência em uma natureza racional individual.

Partindo do conceito de modo, Weise, da 17a conversação espiritual, de Mestre Eckhart, Hermógenes Harada desenvolve um comentário sobre o conceito de pessoa. Ali, “Eckhart exorta com repetida e acentuada insistência que cada um dos seguidores de Cristo deve segui-lo a seu modo, no modo próprio de cada um. Aqui o modo próprio se refere ao próprio de cada um de nós, a saber, ao que há de mais ‘substancial’ em mim, à ‘pessoa’ de mim ou talvez digamos nós, hoje, ao meu Self ou Selbst”.

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ARTIGOS

(Sheila, Colocar no rodapé de cada artigo, dos comentários e das traduções a legenda

bibliog.: Scintilla, Curitiba, vol. 2, n. 1, p. tanto a tanto, jan./jun. 2005

A CRÍTICA DE SCOTUS À TEORIA TOMASIANA DA SUBORDINAÇÃO DAS CIÊNCIAS

Roberto Hofmeister Pich∗

INTRODUÇÃO

Scotus trata da subordinação das ciências na segunda “quaestio” da quarta parte do Prólogo à Ordinatio, a saber, “se [a teologia] tem uma relação de subordinante ou de subordinada para com alguma outra ciência”.1 O tratamento do tema é parte da sua análise do caráter científico da teologia, ou, mais exatamente, parte da sua teoria do conhecimento científico (“scientia”).2 Mesmo incluindo as demais fontes paralelas, a abordagem total é bastante breve.3

Na fonte principal, a abordagem formal scotista é conduzida por duas perguntas relativas à teologia. A obra do scotista João de Reading4 mostra que ambas as questões, ao menos nos círculos scotistas, apontam para duas tendências independentes da investigação do conceito de subordinação no início do século XIV. Na primeira, questiona-se se a teologia se relaciona com as ciências naturais – teóricas e práticas – como uma ciência subordinada ou subordinante.5 Esta pergunta tange a doutrina de Henrique de Gand sobre a função do conhecimento do objeto da teologia para o conhecimento de todo outro objeto natural conhecível.6 A segunda pergunta, se entre a “nossa teologia” e a teologia de Deus ou a dos bem-aventurados há uma relação de subordinação,7 diz respeito à teoria controversa de Tomás de Aquino sobre a subordinação das ciências, desenvolvida

∗ Doutor em Filosofia, professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUCRS.

1 Cf. Ordinatio prol. p. 4, q. 1-2, p. 141, n. 208.

2 Cf. Roberto Hofmeister PICH, Der Begriff der wissenschaftlichen Erkenntnis nach Johannes Duns Scotus, Capítulo VII.

3 Ord. prol. n. 214-216; Lect. prol. n. 119-121; Rep. par. prol. quaestiuncula 4, n. 16-17; Rep. I A prol. q. 2.

4 Cf. Steven J. LIVESEY, Introduction, in: Steven J. LIVESEY (ed.), Theology and science in the fourteenth century, Three Questions on the Unity and Subalternation of the Sciences from John of Reading’s Commentary on the Sentences, p. 37-8. 41s.

5 Ord. prol. n. 215-216.

6 Sobre o item do programa de Henrique de Gand para o entendimento da ciência da teologia em comparação com as demais, na Summa a. 7 q. 1-13, abordado por Scotus, cf. Christian TROTTMANN, Théologie et noétique au XIIIe siècle (VI - Henri de Gand, professionnalisation de la théologie), p. 167-8.

7 Ord. prol. n. 216 textus interpolatus a; Rep. par. prol. q. 2, n. 3-5; Ord. III d. 24, n. 2-3; Rep. par. III d. 24, n. 3-5.

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em função da teoria ainda mais controversa do caráter científico da “theologia viae”. Além desses caminhos de análise, foi tese de estudo recente do autor, sobre a teoria da subordinação scotista, a identificação de um tipo particular de ciência subordinada. Trata-se da ciência subordinada “quia” e “per experientiam”, que, baseada em elementos da epistemologia de Alhazen e de Rogério Bacon, invoca o conhecimento experimental certo e evidente dos princípios de uma demonstração na ciência da óptica (ou, então, numa ciência – intermediária – como a óptica), com independência da redução ao conhecimento matemático subordinante. Ali, ao final, sugere-se uma concepção não de todo aristotélica da subordinação, daí uma concepção não de todo aristotélica da cientificidade de um hábito do conhecimento.8

O presente estudo tem como objetivo descrever e analisar o conteúdo da resolução da segunda pergunta apontada acima. O título do ensaio deve, portanto, ser corrigido: não se trata de criticar a teoria tomasiana da subordinação como tal, mas sim a fundamentação de um único aspecto da mesma teoria: da suposição de que, entre a teologia de Deus e a dos bem-aventurados e a “teologia do caminho” pode haver uma relação de subordinação entre duas ciências. Pressuposto disso é que seja apresentada a concepção scotista básica acerca da subordinação das ciências e que seja circunstanciada a teoria específica de Tomás de Aquino (1. Depois, passo a expor os cinco argumentos scotistas contra toda possibilidade de se aceitar a subordinação pensada por Tomás de Aquino (2.1 até 2.5). O propósito disso, além de dar relevo a um tópico esquecido da teoria da ciência scotista, é fazer ver que a crítica categórica de Scotus é ilustrativa dos seus critérios de conhecimento científico. Ademais, voltando-se às premissas de Tomás de Aquino, parece possível afirmar que a avaliação scotista é, ao final, mesmo que em nada positiva, passível de ser entendida como de franca surpresa face às contradições que aquela subordinação acarreta (Conclusão).

1 SE A TEOLOGIA DO CAMINHO É SUBORDINADA A OUTRAS FORMAS DE TEOLOGIA9

Para a solução das questões específicas sobre a subordinação das ciências, Scotus tomou como suficiente expor uma concepção geral da mesma. Formalmente, ele avalia, assim, de modo sóbrio e rigoroso as características da teoria aristotélica da subordinação. O comentador Lychetus viu com razão, sobre Ord. prol. n. 214, que Scotus soluciona questões específicas por meio de duas condições essenciais da ciência subordinada.10 Nesta, o sujeito/objeto11 é tratado

8 Cf. Roberto Hofmeister PICH, Subordinação das ciências e conhecimento experimental: um estudo sobre a recepção do método científico de Alhazen em Duns Scotus, in: Luis Alberto DE BONI e Roberto Hofmeister PICH (eds.), A recepção do pensamento greco-árabe e judaico pelo Ocidente Medieval, p. 573-616.

9 Ord. prol. n. 216 textus interpolatus a; Rep. par. prol. q. 2, n. 3-5; Ord. III d. 24, n. 2-3; Rep. par. III d. 24, n. 3-5.

10 Cf. Franciscus LYCHETUS, Commentarius, in: Johannes DUNS SCOTUS, Opera omnia V.1: Ordinatio prologus. - Ordinatio I d. 7, p. 108, n. 1: „Hic Doctor intendit probare duo. Primum, quod Theologia in se non sit scientia subalternata, nec subalternans: & hoc patet per conditiones scientiae subalternatae“. Cf. também Quaestiones super libros metaphysicorum Aristotelis I q. 9, p. 175, n. 40: „(...): condicio una subalternatae scientiae est quod subiectum suum sit sub subiecto subalternantis, alia est quod scit ‘quia’, ubi superior scit ‘propter quid’, et a superiori accipit sua principia ad probandum conclusiones“.

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na medida em que está sob o sujeito/objeto da ciência subordinante. Disso segue-se, segundo Lychetus, que a ciência subordinada é menos geral e que, ao seu sujeito/objeto, deve ser acrescentada uma diferença acidental.12 Em segundo lugar, é condição necessária da subordinação que a ciência subordinada tome os seus princípios, ou ao menos uma das suas premissas, da ciência subordinante.13

Via de regra, ambas as condições são entendidas como necessárias para a subordinação. Porém, há um caso de vínculo entre ciências que faz notar que apenas a segunda condição é, de certo modo, necessária e suficiente. Em se dando a segunda condição, sabe-se que a primeira também se dá. Contudo, a primeira condição não é uma condição necessária e suficiente, pois ela não implica necessariamente a segunda. Assim é porque o sujeito/objeto de toda ciência específica, como a teologia, pode estar sob o sujeito/objeto da metafísica, a primeira ciência.14 Mesmo assim, isso não implica que cada ciência específica tome os seus princípios da ciência do ente enquanto ente.15

Assim, pois, para que ocorra um vínculo de subordinação entre duas ciências, é preciso haver o que Finkenzeller chamou de “relação causal na progressão do conhecimento”.16 Isso é garantido pela observação das duas condições scotistas explícitas. E, ao que tudo indica, segundo o entendimento aristotélico da subordinação é exatamente esta relação causal que é decisiva – como passagem causal, da parte do intelecto, da ciência subordinada para a subordinante.17 A interpretação de Finkenzeller está em concordância com a de O’Connor, a saber, que Scotus aceita o conceito de subordinação entre duas ciências, exatamente quando aquele que conhece a ciência subordinada (p. ex., a óptica) conhece também a ciência subordinante (p. ex., a geometria).18 Neste caso, um hábito

11 O uso das expressões “objeto” (“obiectum”) e “sujeito” (“subiectum”), nas partes terceira e quarta do Prólogo da Ordinatio, bem como em textos paralelos relativos ao caráter científico da teologia, constitui um tema à parte. Em muitos casos, como no ora discutido, elas são equivalentes, isto é, significam “objeto” (da “scientia” ou do “conhecimento científico”). Isso, porém, e num sentido relevante, nem sempre ocorre; cf. Edward D. O’CONNOR, The scientific character of theology according to Scotus, in: De doctrina Ioannis Duns Scoti, Vol. III, p. 11s e Roberto Hofmeister PICH, Der Begriff der wissenschaftlichen Erkenntnis nach Johannes Duns Scotus, especialmente o Capítulo IV.

12 Cf. Franciscus LYCHETUS, Commentarius, op. cit., p. 108, n. 1: „Nam scientia subalternata capit subiectum sub subiecto scientiae subalternantis: ita quod oportet, quod sit minus commune, & quod addat tali subiecto differentiam accidentalem; (...)“.

13 Ibidem: „(...); & quod accipiat principia sua a scientia subalternante, vel saltem aliquam praemissarum: (...)“. Estas duas condições essenciais são expostas detalhadamente em Roberto Hofmeister PICH, Subordinação das ciências e conhecimento experimental: um estudo sobre a recepção do método científico de Alhazen em Duns Scotus, in: Luis Alberto DE BONI e Roberto Hofmeister PICH (eds.), op. cit., p. 573s.

14 Ord. prol. n. 214; Lect. prol. n. 119; Rep. par. prol. quaestiuncula 4, n. 16. Cf. Ludger HONNEFELDER, Ens inquantum ens, p. 99-104.

15 Cf., por exemplo, Ordinatio prol. p. 4, q. 1-2, p. 146, n. 214: „(...), nulla tamen principia accipit a metaphysica, quia nulla passio theologica demonstrabilis est in ea per principia entis vel per rationem sumptam ex ratione entis“.

16 Cf. Josef FINKENZELLER, Offenbarung und Theologie nach der Lehre des Johannes Duns Skotus, p. 211.

17 Ibidem.

18 Cf. Edward D. O’CONNOR, The scientific character of theology according to Scotus, op. cit., p. 41-2. Cf. Ordinatio III d. 24, q. un., p. 485, n. 18: „(...): quia sicut principia sua essent in se principia, si possent reduci ad principia simpliciter prima, & nota ex euidentia terminorum; ita sunt modo, siue reducantur ab aliquo, siue non: sed sicut subalternata non esset scientia, nisi sua principia possent reduci in principia prima, nota ex euidentia terminorum, sic non est huic scientia, nisi

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cognitivo subordinado é uma ciência subordinada: aqui, o hábito cognitivo subordinado precisa – assim se confirma o evidencialismo19 da teoria scotista da ciência – necessariamente do conhecimento evidente das premissas “per se notae” no hábito subordinante.20 Com isso, Finkenzeller e O’Connor acentuam com razão, de acordo com o conteúdo de Ord. prol. n. 214-216, a condição necessária e suficiente da relação de subordinação entre duas ciências de acordo com Scotus, a qual encerra as duas condições apresentadas: subordinação significa que um determinado hábito cognitivo – a ciência subordinada – necessita do conhecimento evidente dos princípios de um outro hábito cognitivo – da ciência subordinante – como causa do conhecimento dos seus princípios.21

Num texto interpolado a Ord. prol. n. 216, Scotus afirma que as soluções apresentadas para as diferentes perguntas, em Ord. prol. n. 214-216, acerca da relação de subordinação entre a teologia e a metafísica e entre o hábito de uma qüididade vista intuitivamente na Palavra divina e uma ciência natural determinada – remissivas à primeira questão geral sobre a subordinação –, levam em consideração apenas a teologia em si.22 O foco da investigação, agora, se modifica. Pergunta-se se a “teologia do caminho” (“theologia viae”)23 não é subordinada à teologia dos bem-aventurados e à de Deus. Como já anunciado, investiga-se, no texto que segue, um aspecto da epistemologia do “nosso” saber teológico, isto é, a relação de subordinação entre a teologia do caminho e a dos bem-aventurados ou a de Deus,24 não a subordinação entre duas ciências naturais. Isso também significa, porém, que os argumentos correspondentes devem ilustrar as convicções filosóficas gerais de Scotus sobre a subordinação e o conhecimento científico.

Scotus se opõe à interpretação de que a teologia do caminho ou “nossa teologia” – como ciência, na concepção tomasiana – está sob a teologia de Deus ou a dos bem-aventurados.25 Tomás de Aquino, em seu comentário ao De Trinitate de iste possit eius principia reducere in principia prima, ex quibus demonstrantur, quod nunquam potest, nisi sciat subalternantem“. Cf. ibidem: „Ad secundum, concedo quod Perspectiua est scientia, & Perspectiuus est sciens. Sed cum dicis, quod aliquis potest esse Perspectiuus nesciens Geometriam; nego, quia nunquam est Perspectiuus, nisi sit Geometer“.

19 Cf. Ordinatio prol. p. 4, q. 1-2, p. 141, n. 208; cf. também Roberto Hofmeister PICH, Der Begriff der wissenschaftlichen Erkenntnis nach Johannes Duns Scotus, Capítulo VI e Conclusão.

20 Cf. Ordinatio III d. 24, q. un., p. 485, n. 18: „Et cum dicis, quod sunt distincti habitus, verum est: sed sicut non potest esse habitus ille, nisi causetur ex principiis Geometriae, non immediate, sed mediantibus conclusionibus ibi demonstratis ex principiis euidentibus; ita non potest esse habitus huic homini, nisi causetur in ipso ex principiis illis, quae habent certitudinem istam ex principiis primis, notis in scientia superiori. Sicut igitur in se non est illa scientia, nisi causetur a principiis superioribus, mediate tamen; ita nec isti est scientia, nisi causetur in ipso ex principiis, quae habent respectu sui intellectus euidentiam ex principiis superioris scientiae“.

21 Cf. Ordinatio prol. p. 4, q. 1-2, p. 148, n. 216: „Subalternatio autem requireret quod notitia principiorum scientiae superioris esset causa notitiae principiorum scientiae inferioris etc.“j

22 Sobre este conceito, cf. Ordinatio prol. p. 3, q. 1-3, p. 95, n. 141.

23 Neste contexto, ela significa o mesmo que „theologia nostra“.

24 Cf. Josef FINKENZELLER, op. cit., p. 211s.

25 Cf. Franciscus LYCHETUS, Commentarius, op. cit., p. 110, n. 1: „Hic Doctor recitat opinionem S. Thomae, qui dicit, quod Theologia nostra est scientia proprie dicta, & subalternatur Theologiae Dei, & beatorum. (...). Et modus ponendi S. Thomae potest reduci ad tria puncta, (...) videlicet quod scientiae etiam proprie dictae sunt in duplici ordine. Quaedam

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Boécio, relacionou, pela primeira vez, a teoria aristotélica da ciência subordinada à pergunta pelo caráter científico da teologia.26 Também com respeito à teologia, Tomás de Aquino aceita a determinação geral de que é válido para uma ciência que, de algumas verdades conhecidas, outras verdades ainda não conhecidas vêm a ser conhecidas.27 As ciências – também a teologia, na medida em que ela, de acordo com a constituição da potência cognitiva, inclui diferentes hábitos – estão numa dupla ordem de conhecimento dos princípios da demonstração. Algumas ciências, como, por exemplo, a aritmética e a geometria, alcançam em si mesmas o conhecimento dos princípios, por meio da união evidente e imediata dos termos simples. Outras ciências, como, por exemplo, a música e a óptica, partem de princípios conhecidos de modo evidente, que não são, porém, conhecidos “per se” nelas mesmas, mas sim numa ciência superior.28 Assim são as ciências subordinadas: elas pressupõem princípios que são conhecidos por si somente na ciência superior.29

Na “nossa ciência” da teologia (na teologia “ex parte nostra”), os artigos da fé revelados, os princípios da “nossa ciência” da teologia,30 são tomados da ciência de Deus ou dos bem-aventurados, na medida em que eles, na ciência da teologia no intelecto divino ou no intelecto dos bem-aventurados, são conhecidos por si.31 procedunt ex principiis in eisdem euidenter notis, sine recursu ad aliquam scientiam superiorem, (...)“.

26 Cf. Helmut HOPING, Weisheit als Wissen des Ursprungs. Philosophie und Theologie in der “Summa contra gentiles” des Thomas von Aquin, p. 89. Cf. também Christian TROTTMANN, op. cit. (V - Thomas d’Aquin, la théologie comme science subalternée à celle de Dieu), p. 125s; Aegidius MAGRINI, Ioannis Duns Scoti doctrina de scientifica theologiae natura, in: Antonianum, p. 58s. Tomás de Aquino foi o único autor do século XIII que comentou o De Trinitate de Boécio; cf. Carlos Arthur R. do NASCIMENTO, Introdução à leitura do Comentário de Tomás de Aquino ao Tratado da Trindade de Boécio, questões 5 e 6: divisão e modo de proceder das ciências teóricas, in: TOMÁS DE AQUINO, Comentário do Tratado da Trindade de Boécio – Questões 5 e 6, p. 11s; José Ignasi SARANYANA, Sobre el In Boethii De Trinitate de Tomas de Aquino, in: Albert ZIMMERMANN (Hrsg.), Miscellanea Mediaevalia 19 – Thomas von Aquin, p. 71s.

27 Cf. Sanctus THOMAS AQUINATIS, In librum Boethii De Trinitate expositio prooem. q. 2, p. 331, a. 2 in corp.: „Dicendum, quod cum scientiae ratio consistat in hoc quod ex aliquibus notis alia ignotiora cognoscantur, hoc autem in divinis contingat; constat quod de divinis potest esse scientia“. Cf. Martin GRABMANN, Die theol. Erkenntnis- und Einleitungslehre des hl. Thomas von Aquin auf Grund seiner Schrift „In Boethium de Trinitate“, p. 123s.

28 Cf. Sanctus THOMAS AQUINATIS, Summa theologiae I q. 1, p. 3, a. 2 in corp.: „Sed sciendum est quod duplex est scientiarum genus. Quaedam enim sunt, quae procedunt ex principiis notis lumine naturali intellectus, sicut arithmetica, geometria, et huiusmodi. Quaedam vero sunt, quae procedunt ex principiis notis lumine superioris scientiae: sicut perspectiva procedit ex principiis notificatis per geometriam, et musica ex principiis per arithmeticam notis“. Cf. ibidem, ad 1: „Ad primum ergo dicendum quod principia cuiuslibet scientiae vel sunt nota per se, vel reducuntur ad notitiam superioris scientiae“.

29 Cf. Ordinatio III d. 24, q. un., p. 477, n. 2: „Scientia subalternans habet principia immediata, & prima, quae non habent resolui nisi in terminos simplices notos ex euidentia rei in se: & ideo principia sunt nota propter quid ex terminis per se notis ex euidentia rei. Scientia autem subalternata non habet principia immediata, & prima resolubilia immediate in terminos simplices, notos ex euidentia rei: & ideo non sunt nota propter quid in scientia illa; sed in subalternante, in qua sunt conclusiones demonstratae: & ideo scientia subalternata accipit principia sua a scientia subalternante, & supponit ea esse vera, & sunt nota sibi, non propter quid“. Cf. Reportata parisiensia III d. 24, q. un., p. 516, n. 3: „Dicitur enim isti quod duplex est genus scientiarum. Quaedam enim sunt, quae procedunt ex principiis notis lumine naturali intellectus, sicut Arithmetica, & Geometria, & huiusmodi. Quaedam vero sunt, quae procedunt ex principiis notis lumine superioris scientiae, sicut Perspectiua procedit ex principiis notificatis per Geometriam, & Musica ex principiis notificatis per Arithmeticam. Et hoc modo sacra doctrina est scientia, vt dicunt, quia procedit ex principiis notis lumine superioris scientiae, quae scilicet est Dei, & Beatorum. Vnde dicunt quod sicut Musica credit principia tradita sibi ab Arithmetica, ita sacra doctrina credit principia reuelata a Deo. Ex isto dicunt Theologiam esse scientiam subalternatam scientiae Beatorum, & ita nunquam est nisi in viatore, in quo est & fides“. Cf. Steven J. LIVESEY, Introduction, in: Steven J. LIVESEY (ed.), op. cit., p. 34s.

30 Cf. Jean-Pierre TORRELL, Le savoir théologique chez saint Thomas, in: Revue Thomiste, p. 377-81.

31 Cf. Sanctus THOMAS AQUINATIS, Summa theologiae I q. 1, p. 3, a. 2 in corp.: „Respondeo dicendum sacram

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Apenas através da acepção deste conhecimento evidente, e exatamente esta é a intenção dos defensores da doutrina da subordinação da “nossa ciência” da teologia,32 a não-evidência dos princípios da teologia do caminho pode ser superada, assim como, desta forma – por crença! – seria superada a não-evidência dos princípios do músico em comparação com os do aritmético. A modo de pressuposição, pois, também a teologia do caminho pode corresponder às condições da teoria aristotélica da ciência. Na nossa teologia, os princípios teológicos em si evidentes são pressupostos e cridos, ou seja, são tomados por meio da fé numa autoridade verdadeira.33

Não se está dizendo, é claro, que o caráter científico da nossa teologia afirmado por Tomás de Aquino está de fato em concordância com as condições aristotélicas para o conhecimento científico. Os artigos da fé não possuem, na nossa teologia, a evidência do conhecimento dos princípios exigida, por exemplo, em Segundo analíticos I cap. 2 71b9-12. Os princípios da nossa teologia podem ser, contudo, segundo Tomás de Aquino, pontos de partida de uma suposta “ciência de conclusão que procede demonstrativamente”.34 Finkenzeller e Pannenberg apontam para o fato de que, mesmo na Ordem dos Dominicanos, já haviam se erguido, “no início do séc. XIV, dúvidas acerca da solução do grande mestre da Ordem”.35 Independente de referência a uma Ordem, insatisfação exemplar é a crítica de Pedro Auréolo à “teologia [científica] dedutiva” de Tomás de Aquino, concentrada nos artigos fundamentais da fé e no que, como novo conhecimento, pode ser derivado a partir deles como princípios. A teologia dedutiva aparece em divergência à “teologia explicativa”, um “habitus declarativus” dos artigos da fé e “apologético” ou “defensivus” da fé – poder-se-ia dizer: um hábito que é, ao mesmo tempo, “teologia fundamental” e “apologética”.36 Este último, sendo diferente do hábito da fé, busca trazer entendimento sobre o que já se crê, mas não no sentido de tomar os artigos da fé como premissas que levam a conclusões a serem mantidas na fé. Antes, o seu foco está nos próprios artigos, expondo a sua inteligibilidade, precisando os seus termos, neutralizando objeções,

doctrinam esse scientiam. (...). Et hoc modo sacra doctrina est scientia: quia procedit ex principiis notis lumine superioris scientiae, quae scilicet est scientia Dei et beatorum. Unde sicut musica credit principia tradita sibi ab arithmetico, ita doctrina sacra credit principia revelata sibi a Deo“.

32 Cf. Aegidius MAGRINI, Ioannis Duns Scoti doctrina de scientifica theologiae natura, op. cit., p. 59s.

33 Cf. Sanctus THOMAS AQUINATIS, In librum Boethii De Trinitate expositio prooem. q. 2, p. 331, a. 2 in corp.: „Et sic de divinis duplex scientia habetur. Una secundum modum nostrum, quae sensibilium principia accipit ad notificandum divina. Et sic de divinis philosophi scientiam tradiderunt, philosophiam primam divinam scientiam dicentes. Alia secundum modum ipsorum divinorum, ut ipsa divina secundum seipsa capiantur; quae quidem perfecte nobis in statu viae est impossibilis, sed fit nobis in statu viae quaedam illius cognitionis participatio, et assimilatio ad cognitionem divinam, inquantum per fidem nobis infusam inhaeremus ipsi primae veritati propter seipsam“. Cf. ibidem, p. 332, ad 5: „Ad quintum dicendum, quod etiam in scientiis humanitus traditis sunt quedam principia in quibusdam earum quae non sunt omnibus nota, sed oportet ea supponere a superioribus scientiis, sicut in scientiis subalternatis supponuntur et creduntur aliqua a superioribus scientiis subalternantibus; et huiusmodi non sunt per se nota nisi superioribus scientiis. Et hoc modo se habent articuli fidei qui sunt principia huius scientiae, ad cognitionem divinam, quia ea quae sunt per se nota in scientia quam Deus habet de seipso, supponuntur in scientia nostra; (...)“. Cf. Per Erik PERSSON, Sacra doctrina - Reason and revelation in Aquinas, (3 - Sacra doctrina and sacra Scriptura) p. 76-8.

34 Cf. Wofhart PANNENBERG, Wissenschaftstheorie und Theologie, p. 228.

35 Cf. Josef FINKENZELLER, op. cit., p. 201s e Wolfhart PANNENBERG, op. cit., p. 228.

36 Cf. também José Ignasi SARANYANA, Sobre el In Boethii De Trinitate de Tomas de Aquino, in: Albert ZIMMERMANN (Hrsg.), op. cit., p. 76.

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confirmando e adicionando argumentos.37 Nisso, Pedro Auréolo, como Godofredo de Fontaines, rejeita o parecer de que a nossa teologia, cujas premissas são verdades cridas, deva ser entendida como ciência. Godofredo de Fontaines havia diferenciado entre a “certeza de evidência”, que não pode ser encontrada na nossa teologia, e a “certeza de adesão” (“adhaesionis”), que pode ser encontrada na nossa teologia. A nossa teologia é semelhante a uma ciência apenas com respeito à certeza, não com respeito à evidência.38 Não havendo certeza de evidência, a teologia dedutiva não provê nenhum hábito distinto da fé. Aceita-se uma conclusão não-evidente e certa39 não por causa da dedução, mas sim porque se aceita a premissa cuja fonte cognitiva é a fé.40

A posição de Tomás de Aquino sobre a subordinação das ciências, particularmente sobre a nossa teologia como ciência subordinada, parece, assim, repousar em duas teses – a meu juízo, identificadas de modo idêntico por Scotus (cf. abaixo): (a) é possível reduzir a importância – ou: retirar a necessidade – do conhecimento evidente dos princípios, numa ciência subordinada, em relação à qual se julga haver uma subordinante; (b) o caráter científico de um saber se concentra no procedimento de obtenção de novos conhecimentos, isto é, na dedução de proposições conclusivas. De todo modo, vale indicar que outros aspectos importantes do debate histórico sobre o conceito de subordinação em Tomás de Aquino e da relação de subordinação entre a nossa teologia e a teologia dos bem-aventurados podem ser revisados em escritos de Antônio de Carlenis.41 A posição de Antônio de Carlenis, que, em grande medida, depende das interpretações de Herveu de Nedellec e Egídio Romano e, num sentido amplo, é uma tentativa de defender a concepção tomasiana, já pressupõe uma discussão

37 Cf. Stephen F. BROWN, Declarative and deductive theology in the early fourteenth century, in: Jan A. AERSTEN (Hrsg.), Miscellanea mediaevalia 26 - Was ist Philosophie im Mittelalter?, p. 652-3.

38 Ibidem, p. 650. 653. Cf. GODEFRIDUS DE FONTIBUS, Quodlibeta I-IV, in: M. DE WULF et A. PELZER (éds.), Les Quatre Premiers Quodlibets de Godefroid de Fontaines, IV, q. 10, p. 261: „Respondeo dicendum quod cum scientia sit habitus certus certitudine evidentiae et adhaesionis, fides autem sit habitus certus certitudine adhaesionis non evidentiae, (...). Sed fides habet certitudinem adhaesionis et caret certitudine evidentiae. Et ideo sicut irrationale est dicere quod ex principiis solum opinatis acquiritur certa scientia conclusionum ex ipsis elicitarum, ita etiam in proposito ex principiis creditis“. Cf. ibidem, p. 262: „Simile autem quod introducitur in argumento non valet, quia nullus sanae mentis intelligit quod scientia subalternata sit vere scientia et solum de suis principiis habeat opinionem recipiendo ea a scientia superiore et eis fidem opinatam adhibendo, eo quod a sapiente scientiae superioris sunt nota et tradita, quoniam quicquid ex principiis sic opinatis vel traditis eliceretur, cum non haberet certitudinem nisi in quantum in illa principia reduceretur, solum esset creditum vel opinatum etiam debilius quam ipsa principia. Ita ergo et in theologia“.

39 A certeza, no caso da teologia do caminho, é no máximo, na visão madura de Tomás de Aquino, o conhecimento certo dos artigos da fé à luz da graça divina que infunde a fé. No assentimento da fé infusa, opera-se como que um conhecimento preparatório imediato e a priori de Deus, que possibilita que os artigos da fé, conhecidos a posteriori pela pregação do evangelho, sejam vistos sob a verdade da sua origem objetiva e aceitos, pelo entendimento e pela vontade, em certeza objetiva suficiente. „Evidência“ – ou melhor: „certeza“ – em tal conhecimento é somente aquela da percepção da sua absoluta credibilidade na fé por Deus infundida, não aquela da percepção do conteúdo de um estado de coisas. A luz da fé infusa pode ser entendida como certa participação do ser humano no próprio autoconhecimento divino; cf. Ludger OEING-HANHOFF, Gotteserkenntnis im Licht der Vernunft und des Glaubens nach Thomas von Aquin, in: Ludger OEING-HANHOFF (Hrsg.), Thomas von Aquin 1274/1974, p. 117-20. Cf. também Johannes STÖHR, Die Theozentrik der theologischen Wissenschaftslehre des Hl. Thomas von Aquin und ihre Diskussion bei neuzeitlichen Kommentatoren, in: Albert ZIMMERMANN (Hrsg.), Miscellanea Mediaevalia 19 – Thomas von Aquin, p. 488-9.

40 Cf. Stephen F. BROWN, Declarative and deductive theology in the early fourteenth century, in: Jan A. AERSTEN (Hrsg.), op. cit., p. 653.

41 Cf. Steven J. LIVESEY, Introduction to Antonius de Carlenis O.P. Four questions on the subalternation of the sciences, in: Transactions of the American Philosophical Society, p. vii-xxxv.

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temática bastante evoluída entre a escola de Tomás de Aquino e a de Scotus, bem como um debate interno à Ordem dos Pregadores.42

No modo como Scotus apresenta a posição tomasiana, ela é provada como correta primeiramente porque não é contraditório à definição de ciência que, por exemplo, a “nossa ciência” da teologia como ciência subordinada possua princípios cridos43 e, por conseguinte, tenha parte na fé.44 Para a confirmação da posição tomasiana, são introduzidos por Scotus, em Rep. par. prol. q. 2 n. 3-4, Ord. III d. 24 n. 3 e Rep. par. III d. 24 n. 4-5, ainda outros argumentos. É dito, em segundo lugar, que a óptica enquanto óptica (“in quantum talis”) é uma ciência, a saber, uma ciência que o óptico enquanto óptico possui.45 Nisso, porém, o óptico não é ele mesmo um geômetra e somente pressupõe os princípios da geometria, os quais são conhecidos pelo geômetra: o óptico não conhece, assim, com evidência, daí “propter quid”, os princípios da sua própria ciência, mas apenas crê neles, e não sabe de que modo, dos princípios evidentes, podem ser deduzidas conclusões com evidência. Apesar disso, o óptico, que não é nenhum geômetra, possui, segundo Tomás de Aquino, o hábito da ciência da óptica.46 É de modo

42 Ainda sobre a defesa do caráter científico da nossa teologia como ciência subordinada junto a alguns dos primeiros tomistas, cf. ainda Jean-Pierre TORRELL, Le savoir théologique chey les premiers thomistes, in: Revue Thomiste, p. 26-8.

43 Cf. Reportata parisiensia prol. q. 2, p. 14, n. 3: „Dicunt quidem, quod de Deo sub ratione Deitatis scientia a viatore potest haberi, subalternata tamen scientiae Beatorum: & ideo non oportet quod principia eius hic sciantur, sed tantum quod credantur. Supponuntur enim manifesta in scientia subalternante. Et pro haec opinione arguitur sic: scientia subalternata est scientia; sed in quantum est subalternata supponit sua principia tanquam sibi credita, & in superiori scientia determinata: igitur non est contra rationem scientiae, quod principia eius sint tantum credita“. Cf. Reportatio parisiensis I A prol. q. 2. Cf. Reportata parisiensia III d. 24, q. un., p. 516, n. 3: „Ex quibus sequitur quod scientia subalternata potest stare cum fide respectu eiusdem, (...). Et secundum hoc possumus habere scientiam de credibilibus, quae praessuponit sua principia esse nota in alia scientia subalternante, quam habent Sancti in visione beata; sed primam habens Theologi viatores“. No resumo das três características da interpretação scotista do caráter científico da teologia do peregrino tomasiana feito por Lychetus, mostra-se, na exposição acima, a segunda característica: (2) O possível hábito teológico revelado ao peregrino não parte, „de lege communi“, de princípios que são conhecidos por si „primo modo“, na medida em que os artigos da fé, os quais são os princípios do hábito da nossa teologia, não são, no presente estado do ser humano, evidentes, mas sim apenas cridos. Cf. Franciscus LYCHETUS, Commentarius, op. cit., p. 110, n. 1: „Secundus punctus est, quod habitus Theologicus reuelatus possibilis viatori de lege communi non procedit ex principiis primo modo notis, quia articuli fidei, qui ponuntur principia dicti habitus, non sunt nobis in via euidenter noti, sed tantum crediti“.

44 Cf. Ordinatio III d. 24, q. un., p. 477, n. 2: „(...), quod etsi cum fide possit scientia esse de credibilibus, non tamen subalternans; sed subalternata tantum: (...). Scientia primo modo non stat cum fide, qualem habent Beati de credibilibus, quae nos credimus, & ideo non habent fidem, sed visionem, & cognoscunt propter quid: sed scientia subalternata scientiae Beatorum bene potest esse cum fide“. Cf. ibidem, n. 3: „Ad hoc arguitir sic, & rationes sunt aliquantulum taediosae in forma. Scientia subalternata, secundum quod subalternata, & sub propria ratione, qua subalternata, est scientia; sed inquantum subalternata supponit principia sua, & accipit ea a scientia subalternante; & ideo non habet principia nota sibi ex euidentia rei, & propter quid: igitur potest stare vera ratio scientiae subalternatae, quamuis supponat sua principia: igitur Theologia potest esse, & est vera scientia, quamuis ipsa credibilia, quae sunt principia eius, sint supposita, & non nota ex euidentia rei, & propter quid: in ipsa igitur stat Theologia, vt scientia subalternata sub propria ratione talis scientiae cum fide de eisdem“. Cf. também Reportata parisiensia III d. 24, q. un., p. 517, n. 4.

45 Cf. Ordinatio III d. 24, q. un., p. 477, n. 3: „Praeterea, Perspectiua, inquantum Perspectiua, & sub propria ratione sua est scientia: igitur Perspectiuus, inquantum Perspectiuus, reduplicando illud, quo formaliter denominatur, est sciens denominatiue a scientia Perspectiua: (...)“.

46 Cf. Reportata parisiensia prol. q. 2, p. 15, n. 3: „Item. Perspectiuus in quantum talis, est scientia, sed Perspectiuus inquantum Perspectiuus, non est Geometra; igitur potest quis esse Perspectiuus, licet non sciat sua principia, sed tantum credat ea, scilicet illa supponendo“. Cf. Reportatio parisiensis I A prol. q. 2. Cf. Ordinatio III d. 24, q. un., p. 517, n. 4: „(...); sed Perspectiuus inquantum huiusmodi, non habet principia euidentia ex terminis, nec inquantum talis, scit deducere ad euidentiam ex terminis; ergo aliquis potest esse simpliciter sciens, licet principia non sint sibi nota: aliquis enim potest esse Perspectiuus, licet non sit Geometer, (...)“. No resumo das três características da interpretação scotista do caráter científico da teologia do peregrino tomasiana feito por Lychetus, mostra-se, na exposição acima, a terceira característica: (3) o hábito da teologia revelada parte de princípios que são conhecidos por si „secundo modo“. A razão para tanto reside

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semelhante que se pode obter, no intelecto humano, a ciência da teologia. O hábito da teologia no intelecto humano crê nos seus princípios, pressupõe e toma os mesmos da ciência dos bem-aventurados, na qual eles são conhecidos a partir da evidência dos termos, por conseguinte “propter quid”. Apesar disso, na nossa teologia são tiradas conclusões, de acordo com Tomás de Aquino, a partir de princípios apreendidos sem evidência, dos quais é obtida uma ciência subordinada.47

A concepção tomasiana é ratificada, em terceiro lugar, com base numa passagem da Ética a Nicômaco VI cap. 3,48 segundo a qual é suficiente para a posse da ciência das conclusões que os princípios do hábito do conhecimento sejam conhecidos “de algum modo” (“aliqualiter”), isto é, mesmo como princípios cridos.49 De acordo com isso, é citado o comentário de Averróis (ou talvez de Eustrácio)50 sobre a obtenção suficiente de conhecimento dos princípios por meio de indução – a partir dos objetos sensíveis singulares para as essências e os princípios universais. Segundo tal comentário, o conhecimento assim obtido, com necessidade, é ciência e, sem dúvida, ciência de um outro tipo que a ciência (“alterius modi a scientia”) que é alcançada “por silogismo e demonstração”.51 Precisamente de acordo com este comentário (equivocado),52 conclui-se em Ord. em que as proposições da fé, nas quais o ser humano, no presente estado, crê, são evidentes na ciência de Deus e na ciência dos bem-aventurados. Por isso mesmo, o hábito da teologia revelada no intelecto humano – embora seja uma ciência subordinada – é uma ciência em sentido próprio. Cf. Franciscus LYCHETUS, Commentarius, op. cit., p. 110, n. 1: „Tertius punctus est, quod habitus Theologiae reuelatae, procedit ex principiis notis, secundo modo euidenter, quia articuli fidei, qui nobis in via sunt crediti tantum, in scientia vero Dei, & beatorum sunt euidenter noti. Ex istis elicitur, quod habitus Theologiae reuelatae in nobis sit scientia proprie dicta, subalternata scientiae Dei, & beatorum“.

47 Cf. Ordinatio III d. 24, q. un., p. 478, n. 3: „(...): igitur eodem modo potest aliquis habere Theologiam, quamuis supponat principia sua, & accipiat ea a scientia Beatorum, & non sint nota in ea ex euidentia terminorum propter quid, sed credita, & supposita tantum, & nota, quia non propter quia: possunt tamen ex eis deduci conclusiones, ex quibus habetur scientia subalternata, quae nunquam est nisi in viatore: igitur simul stant fides, & scientia de eisdem“.

48 No fundo deste argumento está, na verdade, ARISTOTELES, Nikomachische Ethik, in: Günther BIEN (Hrsg.), op. cit., VI cap. 3, 1139b32-35, p. 133-4: „Die Wissenschaft ist also ein Habitus des Demonstrierens; zu dieser Begriffsbestimmung möge man weiterhin noch alles andere hinzunehmen, was wir in der Analytik angegeben haben. Wo nämlich eine bestimmte Überzeugung [cursivo do autor] ist, und man die Prinzipien kennt, da ist Wissenschaft“.

49 Cf. Ordinatio III d. 24, q. un., p. 478, n. 3: „Praeterea, Philosophus 6. Ethic. cap. 4. dicit sic: Cum enim aliqualiter cognita, & credita sunt ipsa principia, &c. sufficit igitur secundum Philosophum, habere aliqualiter cognitionem de principiis, ad hoc quod aliquis sciat, & scientiam acquirat, deducendo conclusiones ex ipsis“. Cf. Reportata parisiensia III d. 24, q. un., p. 517, n. 5: „Confirmatur per Philosophum, & Commentatorem 6. Ethic. cap. 4 qui dicunt sic: Cum enim aliqualiter cognita, & credita ipsa sunt principia; sufficit ergo habere aliqualem cognitionem principiorum, vt habeatur scientia de conclusione“. Cf. Reportata parisiensia prol. q. 2, p. 15, n. 3: „Item, haec confirmatur auctoritate Philosophi 6. Ethic. c. 3. vbi vult quod ad scientiam habendam sufficit, quod principia sint aliqualiter nota: (...)“.

50 A pergunta pela identidade deste comentador é posta por Steven J. LIVESEY, Introduction, in: Steven J. LIVESEY (ed.), op. cit., p. 38, nota 64 (também p. 30, nota 31), com respeito à menção do mesmo argumento nos textos de João de Reading acerca da subordinação. 51 Cf. Ordinatio III d. 24, q. un., p. 478, n. 3: „Et Commentator vult, quod ad scientiam habendam sufficit inductio, quae est a singularibus ad vniuersale: & cognitis sic principiis vniuersalibus ex inductione, ex necessitate sequitur scientia: & dicit quod haec scientia sic habita, est alterius modi a scientia, quae habetur per Syllogismum, & demonstrationem: (...)“.

52 Sem dúvida, o conhecimento por indução, segundo Aristóteles, é diferente do conhecimento a partir de princípios universais, a saber, o conhecimento demonstrativo científico. Mas, a indução, pela qual os pontos de partida do silogismo são obtidos, não é entendida por Aristóteles como um tipo de „episteme“. Cf. ARISTOTELES, Nikomachische Ethik, in: Günther BIEN (Hrsg.), op. cit., VI cap. 3, 1139b25-31, p. 133: „Auch scheint jede Wissenschaft lehrbar und jeder Wissensgegenstand lernbar zu sein. Jede Lehre aber geht von vorher Erkanntem aus, wie wir in der Analytik dartun, sei es, daß sie sich der Induktion oder des Syllogismus bedient. Die Induktion ist auch Prinzip des Allgemeinen, der Syllogismus dagegen geht von dem Allgemeinen aus. Mithin gibt es Prinzipien als Prämissen des Syllogismus, die nicht wieder durch einen Syllogismus gewonnen werden. Mithin tritt hier die Induktion ein“. Cf. abaixo na Conclusão.

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III d. 24 n. 3 e Rep. par. III d. 24 n. 5, que, para Tomás de Aquino, é suficiente para uma ciência que os seus princípios sejam conhecidos “de algum modo”, isto é, que sejam cridos, pressupostos e, com isso, tomados a partir de uma ciência subordinante (“credita, & supposita, & accepta a superiori scientia”), na qual somente os mesmos princípios são conhecidos “propter quid”.53 Isso significa também, em Rep. par. prol. q. 2 n. 3, que não é necessário para a ciência que os princípios sejam mais perfeitamente conhecidos que as proposições conclusivas, motivo pelo qual um hábito como a nossa teologia, no qual os princípios não são mais perfeitamente conhecidos que as proposições conclusivas, é – ainda que para Aristóteles “somente em sentido acidental”54 – um conhecimento científico.55

2 CINCO OBJEÇÕES À TESE DA NOSSA TEOLOGIA COMO CIÊNCIA SUBORDINADA

Scotus apresenta, em Ord. prol. n. 216 textus interpolatus a, cinco objeções, que tanto contradizem a concepção segundo a qual a nossa teologia pode ser subordinada à teologia de Deus e à dos bem-aventurados e, por conseqüência, pode ser uma ciência,56 quanto a concepção segundo a qual fé e ciência sobre o mesmo podem coexistir.57 Para a seguinte exposição, eu me apóio também em passagens correspondentes em Rep. par. prol. q. 2 n. 4-5, Rep. I A prol. q. 2 e Ord. III d. 24 n. 4, nas quais cada um dos cinco argumentos é tratado mais detalhadamente do que no texto do Prólogo à Ordinatio. Após a exposição das objeções, será analisada a correção específica de Scotus às três estratégias argumentativas de Tomás de Aquino sobre a nossa teologia como ciência subordinada.

2.1 Primeiro contra-argumento: fé e ciência não concorrem58

(1) É possível ler, nos textos de Tomás de Aquino, a afirmação de que a ciência e a fé, como disposições de conhecimento sobre o mesmo objeto, não coexistem. Assim, o objeto de toda ciência é conhecido por meio da sua resolução nos princípios primeiros e evidentes, que se fazem presentes à potência do conhecimento. Correspondentemente, toda ciência é aperfeiçoada, como hábito

53 Cf. Ordinatio III d. 24, q. un., p. 478, n. 3: „(...): sufficit enim ad scientiam habendam, quod principia sint aliqualiter nota, vt scilicet sint credita, & supposita, & accepta a superiori scientia, in qua sunt nota propter quid: igitur Theologia est scientia, & in viatore est simul cum fide de credibilibus reuelatis“. Cf. Reportata parisiensia III d. 24, q. un., p. 517, n. 5.

54 Cf. ARISTOTELES, Nikomachische Ethik, in: Günther BIEN (Hrsg.), op. cit., VI cap. 3, 1139b34-35, p. 134.

55 Cf. Reportata parisiensia prol. q. 2, p. 15, n. 3: „(...): vbi etiam dicit Commentator quod principia fiunt nobis nota per inductionem: igitur non oportet ad scientiam habendam quod principia perfectius cognoscantur, quam conclusiones; igitur, &c.“. Cf. Reportatio parisiensis I A prol. q. 2. No resumo das três características da interpretação scotista do caráter científico da teologia do peregrino tomasiana feito por Lychetus, mostra-se, na exposição acima, a primeira característica: (1) não pertence à definição de ciência que ela possui princípios conhecidos de um modo evidente. Cf. Franciscus LYCHETUS, Commentarius, op. cit., p. 110, n. 1: „(...), & ex hoc elicitur Primus punctus, quod de ratione scientiae proprie dictae non est habere principia in eadem euidenter nota. (...).

56 Cf. abaixo, sob 2.2, 2.3 e 2.4, os contra-argumentos segundo, terceiro e quarto.

57 Cf. abaixo, sob 2.1 e 2.5, os contra-argumentos primeiro e quinto.

58 Ord. prol. n. 216 textus interpolatus a; Rep. par. prol. q. 2, n. 4-5; Rep. I A prol. q. 2; Ord. III d. 24, n. 4.

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da alma, na visão do seu objeto formal presente. Ao contrário disso, o objeto da fé não está presente à potência do conhecimento, razão pela qual tem de ser crido como presente. Quando o objeto não é visto como presente, ele não é apreendido por meio de um ato do conhecimento, mas sim por meio de um ato da fé.59

Contudo, quando Tomás de Aquino afirma que a teologia do caminho é subordinada à teologia dos bem-aventurados e à de Deus, ele se contradiz, uma vez que afirma que a teologia do caminho, isto é, uma ciência subordinada, na qual conclusões são tiradas com necessidade,60 concorre com a fé.61 A “sacra doctrina” corresponde manifestamente a um segundo tipo de ciência, apoiado em princípios que são visíveis apenas por meio da luz de uma ciência mais elevada, subordinante. A doutrina sagrada, uma ciência de conclusões, toma, pela fé, os seus princípios da ciência superior de Deus ou dos bem-aventurados,62 nas quais somente os princípios são conhecidos como tais, e não são cridos.

A premissa forte do primeiro argumento de Scotus é que uma ciência não pode ser um hábito de conclusões sem ser um hábito de princípios: não pode expressar cientificidade no procedimento demonstrativo e crença na verdade dos princípios. Isso tem de ser apontado na subordinação tomasiana. A obtenção estrita dos princípios, no sujeito, decide sobre a evidência do conhecimento todo. No que tange à forma argumentativa, as teses tomasianas sobre o caráter epistemológico da “sacra doctrina” estão em mútua contradição. Deste modo, a primeira objeção é um “argumentum ad hominem”. Isso fica evidente em Ord. III d. 24 n. 4, onde Scotus argumenta “primo contra opinantem”.63

2.2 Segundo contra-argumento: a unidade da ciência de Deus64

59 Cf. Sanctus THOMAS AQUINATIS, Quaestiones disputatae I - De veritate q. 14, a. 9, p. 297-8 in corp.: „Unde fidei obiectum est id quod est absens ab intellectu. Creduntur enim absentia, sed videntur praesentia (...), vel etiam res non apparens, id est res non visa: quia ut dicitur Hebr., XI, 1, fides est substantia sperandarum rerum, argumentum non apparentium“. Cf. ibidem, p. 298 in corp.: „Quandocumque autem deficiat ratio proprii obiecti, oportet quod actus deficiat; unde, quam cito aliquid incipit esse praesens vel apparens, non potest ut obiectum subesse actui fidei. Quaecumque autem sciuntur, proprie accepta scientia, cognoscuntur per resolutionem in prima principia, quae per se in visione rei praesentis perficitur. Unde impossibile est quod de eodem sit fides et scientia“.

60 Cf. ibidem, ad 3: „Nihilominus tamen inferior sciens non dicitur de his quae supponit, habere scientiam, sed de conclusionibus, quae ex principiis suppositis de necessitate concluduntur. Et sic fidelis potest dici habere scientiam de his quae concluduntur ex articulis fidei“.

61 Cf. Ordinatio prol. p. 4, q. 1-2, p. 148, n. 216 textus interpolatus a: „Haec de theologia in se. Sed quid de theologia viae? Essetne subalterna si talis notitia daretur alicui vel si est data? - Ad hoc dicunt quidam quod est subalterna; subalternatur enim scientiae Dei et beatorum. - Contra hoc arguitur, primo sic: isti alibi dicunt quod scientia non potest stare cum fide; sed, ut dicunt, quia est subalterna, stat cum fide; igitur stat, secundum eos, et non stat, igitur contradicunt sibi“. Cf. também Ordinatio III d. 24, q. un., p. 478, n. 4: „Contra istam opinionem, & primo contra opinantem: nam in 2.2. quaest. I. art. 5. vbi quaerit hoc ex intentione, dicit quod fides, & scientia non stant simul: sed Theologia, si inquantum subalternata scientiae Beatorum, sit vera scientia, & vt subalternata non sit nisi in viatore, tunc scientia sub propria ratione scientiae subalternatae stat cum fide in viatore, & de eisdem, scilicet creditis. Nec potest soluere contradictionem istam nisi in secunda secundae velit dicere, quod loquitur de scientia subalternante, non subalternata“.

62 Cf. Sanctus THOMAS AQUINATIS, Summa theologiae I q. 2, p. 3, a. 2 in corp.

63 Cf. Ordinatio III d. 24, q. un., p. 478, n. 4. Cf. Reportata parisiensia III d. 24, q. un., p. 517, n. 5: „Contra hanc opinionem arguitur, & primo contra dicentem. (...). Istud est contra eum, (...). Sed hoc non videtur esse verum secundum eum, quia ratio sua, per quam ostendit quod idem non potest esse scitum, & creditum ab eodem, concludit vniuersaliter de omni scientia, & vniuersaliter loquitur de omni scientia“.

64 Ord. prol. n. 216 textus interpolatus a; Rep. par. prol. q. 2, n. 4.

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(2) Além disso, a ciência do objeto “Deus”, sob a razão de deidade,65 só pode ser, logicamente, uma única. Por isso mesmo, segundo Scotus, não é o caso que também possa haver uma ciência subordinada da teologia – a “nossa teologia” como uma outra ciência do objeto “Deus”.66 O fundo desta objeção não é claro. LYCHETUS traz a informação de que “todos” afirmam que a ciência subordinada e a subordinante são duas ciências diferentes. (a) Elas se relacionam, a cada vez, a um diferente objeto (formal) e são, por isso mesmo, ao menos “objetivamente” (“obiectiue”; termo de Lychetus) diferentes.67 Por conseguinte, elas são diferentes tanto porque (b) partem de diferentes princípios (alcançando, então, diferentes conclusões) quanto porque (c) a ciência subordinante, em oposição à subordinada, demonstra pura e simplesmente “propter quid” a conclusão.68

O comentador Lychetus diz, com razão, que a teologia só pode ser, em cada intelecto, uma única ciência. Isso é coerente com o que foi exposto acima. Afinal, ela é – ou ao menos se apresenta logicamente como – o conhecimento de um único objeto “sob a mesma razão formal”.69 Exatamente o conhecimento de um objeto sob uma razão, através da qual todas as verdades do hábito do conhecimento estão contidas virtualmente no objeto a ser conhecido, constitui a unidade científica deste hábito.70 Scotus repete em Rep. par. prol. q. 2 n. 4 a definição segundo a qual todas as verdades teológicas por si conhecíveis estão contidas virtualmente no objeto “Deus”, sob a sua essência singular. Por isso, de “Deus” como tal, logicamente, só pode haver uma única ciência: cientificamente, o objeto primeiro “Deus” não pode ser conhecido sob outra razão que “haec essentia ut haec”.71

65 Cf. Reportata parisiensia prol. q. 2, p. 15, n. 4: „Contra. De Deo sub ratione deitatis non potest esse scientia nisi vnica: igitur non habet aliquam sibi subalternatam“.

66 Cf. Ordinatio prol. p. 4, q. 1-2, p. 148-9, n. 216 textus interpolatus a: „- Praeterea, scientia Dei non potest esse nisi una; igitur nulla potest esse subalternata“.

67 Cf. Franciscus LYCHETUS, Commentarius, op. cit., p. 110, n. 1: „Certum est apud omnes, quod scientia subalternans, & scientia subalternata sunt duae scientiae, quia alterius, & alterius subiecti, saltem obiectiue distincti“. Esta condição é acentuada por Roberto Grosseteste, no seu comentário aos Segundos analíticos, e é repetida pelo scotista João de Reading; cf., por exemplo, JOHANNES DE READING, Scriptum in I librum sententiarum - Prologus. qq. 6, 7, & 10, in: Steven J. LIVESEY (ed.), Theology and science in the fourteenth century, prol. q. 6, p. 106: „Item, de eodem obiecto, non potest esse scientia nisi unica; sed de Deo, quod est unum obiectum, est scientia beatorum, que non est subalternata. Ergo, cum subalternans et subalternata sint distincte scientie, non potest aliqua scientia esse subalternata de Deo ut de subiecto primo“. Cf. ibidem, p. 107: „(...) est Lincolniensis ut dictum est prius, capitulo 12, quia secundum eum, scientia subalternata addit condicionem in suo subiecto respectu subiecti subalternans. Ergo de eodem subiecto non possunt esse plures scientie quarum una est subalternans, et alia subalternata“. Cf. também acima, sob 1.

68 Cf. Franciscus LYCHETUS, Commentarius, op. cit., p. 110, n. 1: „Tum, quia ex aliis, & aliis principiis procedunt. Tum, quia subalternans demonstrat simpliciter propter quid, subalternata vero non“.

69 Ibidem: „Sed Theologia in quocumque intellectu est tantum vna scientia. Tum, quia vnius subiecti sub eadem ratione formali, &c. ergo non potest esse subalternata Theologiae beatorum, quia tunc essent duae scientiae distinctae, & sic essent distinctorum subiectorum“.

70 Cf. Reportata parisiensia prol. q. 2, p. 15, n. 4: „Probatio antecedentis; quaecunque virtualiter continentur in aliquo, primo pertinent ad illam scientiam, quae considerat subiectum illud sub illa ratione, qua virtualiter illa continet, (...)“.

71 Ibidem: „(...), sed omnia per se cognoscibilia de Deo continentur in ipso virtualiter sub ratione Deitatis: ergo de Deo vt sic non potest esse nisi vnica scientia, cum scientia sit de ipso sub aliqua ratione prima, qua virtualiter continet omnia per se scibilia de ipso: (...)“.

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Uma obscuridade que pode ser apontada, aqui, consiste em que, na objeção exposta, Scotus não diferencia qual é a razão de objeto a ser considerada em cada caso – na ciência da teologia subordinante e na “ciência” da teologia subordinada. A dificuldade se acentua, caso se pense nas concepções de objeto formal na discussão sobre o primeiro objeto e a sua razão na “nossa teologia” das verdades necessárias.72 Uma comparação entre aquela distinção e a presente objeção força concluir que, segundo Scotus, visto logicamente, a ambos os hábitos, diferentes somente em termos psicológico-cognitivos,73 tem de ser dada a mesma razão formal, seja se ela, a cada vez, é apreendida do mesmo modo ou não.74 Estar-se-ia, porém, no contexto desta objeção, incorrendo na confusão séria de tomar diferentes hábitos segundo diferentes capacidades psicológico-cognitivas como fundamento objetivo-formal da divisão entre ciência subordinante e ciência subordinada.

A relação de subordinação tomasiana entre a teologia de Deus e a dos bem-aventurados e a teologia do peregrino se mostra, ademais, equivocada já pelo fato de que, segundo o próprio Tomás de Aquino – e assim Scotus argumenta, pela segunda vez, “ad hominem” –, a unidade do hábito se fundamenta no primeiro objeto, a saber, no único aspecto formal que determina o caráter de objeto do objeto. Tudo o que é considerado na Escritura Sagrada (“sacra Scriptura”) e, a partir dali, na doutrina sagrada (“sacra doctrina”) como verdades teológicas é considerado na medida em que é revelado por Deus (“secundum quod sunt divinitus revelata”): esta é, segundo Tomás de Aquino, a razão formal comum da teologia do caminho, a qual determina o objeto deste hábito de conhecimento no seu caráter de objeto – isto é, Deus tomado em sua natureza mesma.75 A teologia no “nosso intelecto” não pode ser subordinada à teologia de Deus e à dos bem-aventurados – não há nenhum sentido lógico em se dizer isso, de acordo com a exposição mesma do “nosso” saber teológico. Só haveria sentido e possibilidade em tal hipótese, se se admitisse que ela significaria, então, a existência de duas ciências diferentes que se relacionariam, a cada vez, a um diferente objeto sob uma diferente razão formal. Essa condição, porém, não é cumprida nem pela “nossa teologia” nem pela “teologia em si”.

2.3 Terceiro contra-argumento: a subordinação segundo a razão de causa76

72 Ord. prol. n. 168; Lect. prol. n. 87-88. Cf. também Roberto Hofmeister PICH, Der Begriff der wissenschaftlichen Erkenntnis nach Johannes Duns Scotus, Capítulo IV, sob 4.1.3.

73 Isto é, o hábito da teologia no „nosso“ intelecto e o hábito da teologia no intelecto de Deus.

74 Cf. Reportata parisiensia prol. q. 2, p. 15, n. 4: „(...): & ideo nihil est dicere, quod de Deo sub ratione deitatis potest esse scientia aliqua: & tamen quod Theologia, quam nos habemus non sit de Deo: nam vnum sequitur ad aliud, cum de Deo non possit esse nisi vnica scientia, vt iam probatum est“. Cf. Reportatio parisiensis I A prol. q. 2.

75 Cf. Sanctus THOMAS AQUINATIS, Summa theologica I q. 1, p. 4, a. 3 in corp.: „Respondeo dicendum sacram doctrinam unam scientiam esse. Est enim unitas potentiae et habitus consideranda secundum obiectum, non quidem materialiter, sed secundum rationem formalem obiecti: puta homo, asinus et lapis conveniunt in una formali ratione colorati, quod est obiectum visus. Quia igitur sacra Scriptura considerat aliqua secundum quod sunt divinitus revelata, secundum quod dictum est, omnia quaecumque sunt divinitus revelabilia communicant in una ratione formali obiecti huius scientiae. Et ideo comprehenduntur sub sacra doctrina sicut scientia una“. Cf. Jean-Pierre TORRELL, Le savoir théologique chez saint Thomas, op. cit., p. 368-9. 372.

76 Ord. prol. n. 216 textus interpolatus a; Ord. III d. 24, n. 4; Rep. par. III d. 24, n. 6.

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(3) Na terceira objeção, afirma-se que, segundo a razão de causa, a ciência depende somente (a) do objeto, (b) do sujeito cognoscente (do intelecto)77 ou (c) da “luz” (isto é, da forma silogística e das premissas, “de acordo com alguns scotistas”).78 Em Ord. d. 24 q. un. n. 4, Scotus define que uma ciência depende essencialmente (“essentialiter”), como o causado da causa, apenas daquilo que é a sua causa de modo essencial: ela depende essencialmente apenas da potência (“ex potentia”) e do objeto, seja em si (“obiecto in se”) ou na espécie inteligível (“in specie sua”).79 Sob a exata pressuposição destas premissas, deve-se afirmar, repetindo o resumo de FINKENZELLER, que só há uma relação de subordinação “se, entre ambas as ciências, se dá uma relação causal essencial”.80 Considere-se a dependência causal de uma ciência quanto (a) ao objeto, (b) ao intelecto ou (c) à luz, resulta então que, com relação a (a), (b) e (c), o conhecimento dos bem-aventurados não possui nenhuma razão de causa para com o conhecimento do peregrino. Como em Ord. III d. 24 n. 4, é possível oferecer também quanto a Ord. prol. n. 216 textus interpolatus a o exemplo de que o conhecimento intuitivo do Deus trino, por parte dos bem-aventurados, isto é, da proposição “Deus é trino”, conhecida pelo conhecimento evidente dos termos, não é essencialmente a causa do conhecimento na “nossa potência cognitiva”, isto é, do “nosso hábito” da proposição “Deus é trino”.81 Com isso, a teologia dos bem-aventurados, segundo o critério da causa, não subordina a teologia do peregrino.

Scotus tem em vista, aqui, o argumento de Tomás de Aquino de que a ciência subordinada depende da subordinante porque o conhecimento dos princípios, na ciência subordinada, depende do conhecimento dos princípios na subordinante e os pressupõe. Scotus toma, em oposição a isso, que o conhecimento teológico revelado, no entendimento humano, não é causado pelo conhecimento teológico dos bem-aventurados – o conhecimento das verdades teológicas na intuição da essência divina, pelo intelecto dos bem-aventurados. Scotus afirma, com claro acento psicológico-cognitivo, que (a) o conhecimento científico dos bem-aventurados (“scientia illa Beati”), isto é, a verdade conhecida “Deus é trino”, não é – tampouco pode ser – o objeto “do meu conhecimento científico” (“scientia meae”).82 Aquilo que é, a cada vez, conhecido por um intelecto – por exemplo, os princípios da teologia como tais e com evidência, na teologia

77 Cf. Franciscus LYCHETUS, Commentarius, op. cit., p. 110, n. 1: „(...): Nulla scientia dependet ab aliquo vt a proximo, nisi ab obiecto suo de quo est, & intellectu, scilicet a quo, & in quo est, (...)“.

78 Ibidem: „(...), & lumine, id est, a forma syllogistica, & praemissis, vt quidam Scotistae exponunt de illo lumine“. Cf. Ordinatio prol. p. 4, q. 1-2, p. 149, n. 216 textus interpolatus a: „- Praeterea, scientia secundum rationem causae dependet nisi ab obiecto vel subiecto vel lumine; sed respectu intellectus viatoris visio beatorum nullam habet rationem causae; igitur etc.“

79 Cf. Ordinatio III d. 24, q. un., p. 478, n. 4: „Praeterea, contra opinionem in se, scientia non dependet essentialiter ab aliquo sicut causatum a causa, (non enim loquor de dependentia accidentis ad subiectum) nisi ab eo, quod est causa illius essentialiter: (...): quia scientia non dependet essentialiter nisi ex potentia, & obiecto in se, vel in specie sua: (...)“.

80 Cf. Josef FINKENZELLER, op. cit., p. 212.

81 Cf. Ordinatio III d. 24, q. un., p. 478, n. 4: „(...): sed notitia Beati, quam habet de Deo trino, & vno euidenter visio ex euidentia terminorum, non est essentialiter causa nostrae Theologiae: (...)“.

82 Ibidem: „(...): sed scientia illa Beati non est obiectum scientiae meae, ita vt cognita notitia eius cognoscam Deum trinum, & vnum: (...)“.

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dos bem-aventurados – não pode ser repassado a um intelecto como objeto de um outro intelecto.

Neste momento, pode-se perceber que, do ponto-de-vista psicológico-cognitivo, as três causas essenciais mencionadas acima estão intrinsecamente ligadas. Deve-se concluir, pois, que (b) a potência cognitiva que causa essencialmente a “scientia Beati” não pode ser a potência cognitiva da minha alma, por meio da qual a “scientia meae” é causada essencialmente. Tampouco é (c) a “luz” ou qualquer espécie inteligível do objeto pertencente ao conhecimento científico dos bem-aventurados a minha “luz” ou a minha espécie inteligível (o conhecimento habitual como “species”),83 por meio da qual tenho certo conhecimento de Deus, abstrativamente, “pro statu isto”. Scotus exclui toda possibilidade de que o conhecimento científico dos bem-aventurados seja “alguma coisa de mim” (“aliquid mei”), que possa ser a causa “do meu conhecimento científico” – do hábito da teologia “em mim” (“habitus in me”) –, segundo qualquer um dos tipos de causa essencial.84 Pode muito bem ser que a teologia do peregrino, na medida em que depende do “nosso intelecto” como causa essencial, dependa da vontade de Deus como de uma causa distante (“causa remota”). Porém, do conhecimento intuitivo – em princípio não-silogístico – dos bem-aventurados ela não depende em nenhum dos três casos acima.85

2.4 Quarto contra-argumento: a teologia do peregrino e a dos bem-aventurados se relacionam ao mesmo86

(4) Na quarta objeção, expõe-se o seguinte argumento:

- Premissa maior: A ciência subordinante não se relaciona, em sentido primeiro, às mesmas verdades ou aos mesmos predicados conhecidos aos quais a ciência subordinada se relaciona.87

Na premissa maior, Scotus não trata da relação entre a teologia de Deus ou a dos bem-aventurados e a nossa teologia, mas sim, em geral, da relação de subordinação entre duas ciências. Aqui, pressupõe-se que o objeto da ciência subordinante e o da subordinada pertencem ao mesmo gênero-sujeito, ainda que um seja o objeto em si e o outro seja o objeto “per accidens”.88 Por esta razão,

83 Ibidem: „(...): nec est potentia animae, nec species obiecti, (...)“. Cf. Reportata parisiensia III d. 24, q. un., p. 517, n. 6: „(...): sed notitia Beati, quam habet de Trino & vno, non est causa essentialiter Theologiae nostrae, quia nec est potentia intellectiua nostra, nec obiectum cognitum a nobis“.

84 Cf. Ordinatio III d. 24, q. un., p. 478, n. 4: „(...), nec aliquid mei, quod possit esse causa scientiae meae in aliquo genere causae, efficientis maxime, sicut modo loquimur: igitur habitus in me in nullo dependet, sicut a causa essentialiter a visione Beatorum: (...)“.

85 Cf. Franciscus LYCHETUS, Commentarius, op. cit., p. 110, n. 1: „Et debet addi de proximo, quia talis scientia dependet a voluntate diuina, vt a causa remota. Sed certum est, quod notitia Theologica nostra non dependet a visione beatorum, vt causa effectiua, nec vt ab obiecto, nec vt a lumine: quia talis visio non est forma syllogistica, vel praemissae“.

86 Ordinatio prol. n. 216 textus interpolatus a; Rep. par. prol. p. 2, n. 4; Rep. I A prol. q. 2.

87 Cf. Ord. prol. n. 216 textus interpolatus a: „- Praeterea, scientia subalternans non est primo de eisdem veritatibus vel praedicatis scitis (...)“.

88 Cf. acima na Introdução e sob 1.

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ambas as ciências são também diferentes, com base em princípios diferentes.89 Um motivo posterior, que aparece em Rep. par. prol. q. 2 n. 4 como argumento específico, mas em Ord. prol. n. 216 textus interpolatus a e Rep. I A prol. q. 2 pertence a este mesmo argumento, consiste em que as conclusões da ciência subordinante e as da subordinada são, a cada vez, diferentes.90 Que ambos os motivos para a diferenciação entre ciência subordinante e subordinada são vistos, em Ord. prol. n. 216 textus interpolatus a, no mesmo argumento, isso fica manifesto, quando Scotus afirma que a ciência subordinada começa ali onde a ciência subordinante termina. Deste modo, afirma-se que, entre os princípios da ciência subordinada se encontra uma conclusão da ciência subordinante, a qual, ela mesma, não pode ser conclusão alguma da ciência subordinada.91

- Premissa menor: A teologia do peregrino pode se relacionar às mesmas coisas (às mesmas verdades ou aos mesmos predicados conhecidos) às quais a teologia dos bem-aventurados se relaciona.92

Em Rep. I A prol. q. 2, Scotus afirma que a nossa teologia trata das mesmas verdades que a teologia dos bem-aventurados, mesmo que, talvez, não de todas.93 Quando, de fato, não de todas – o que tem de significar que os bem-aventurados, segundo o conteúdo específico, não segundo o primeiro objeto sob a sua razão própria, conhecem outras verdades sobre Deus –, isso ainda não significa que existe entre a nossa teologia e a dos bem-aventurados uma relação de subordinação. Neste caso, exige-se um outro argumento para a recusa da pretendida relação. Quando, portanto, um sujeito cognoscente conhece dez livros sobre assuntos da geometria – poder-se-ia formular o argumento dizendo “quando ele conhece dez livros de Tomás de Aquino” –,94 e um outro sujeito cognoscente conhece apenas cinco livros sobre tais matérias, não é de modo algum o caso que a ciência da geometria do segundo é subordinada à ciência da geometria do primeiro.95 Houvesse entre os dois hábitos, como partes demonstráveis da

89 Cf. Reportata parisiensia prol. q. 2, p. 15, n. 4: „Item secundo sic: scientia subalternata & subalternans non se extendunt ad aequalia scibilia, quia principia subalternatae sunt conclusiones in subalternante. Dicit etiam Philosophus I. Poster. text. 69. & in 1. Phys. & Commentator ibid. comment. 18. quod subiectum subalternatae se habet per additionem ratione scientiae subalternantis“.

90 Ibidem: „Similiter tertio sic, vt prius scientia subalternans & subalternata non sunt primo de eisdem conclusionibus; quia conclusiones in scientia subalternante sunt principia in scientia subalternata: sed Theologia nostra est de eisdem primo, de quibus est scientia Beatorum: (...)“.

91 Cf. Ord. prol. n. 216 textus interpolatus a: „(...), quia ibi incipit subalterna ubi desinit subalternans; (...)“. Cf. Reportatio parisiensis I A prol. q. 2: „Item scientia subalternans et subalternata non sunt primo de eisdem veritatibus praecise, nec conclusionibus scitis; quia conclusiones scientiae subalternantis sunt principia subalternatae“. Cf. Josef FINKENZELLER, op. cit., p. 214.

92 Cf. Ord. prol. n. 216 textus interpolatus a: „(...); sed haec potest esse de eisdem de quibus est scientia beatorum; igitur etc.“

93 Cf. Reportatio parisiensis I A prol. q. 2: „Sed theologia nostra est primo de eisdem de quibus est scientia beatorum, licet forte non de omnibus illis“.

94 Cf. Reportata parisiensia prol. q. 2, p. 15, n. 4: „(...): licet forte non de omnibus illis, sed hoc non facit quod ei subalternetur, si enim vnus sciat decem libros Thomae, & alius quinque, non propter hoc scientia sua subalternatur scientiae alterius: ergo, &c.“

95 Cf. Reportatio parisiensis I A prol. q. 2: „Sed hoc non facit quod eis non subalternetur. Si enim unus sciat 10 libros geometriae et alius 5, non propter hoc scientia scientis 5 subalternatur scientiae scientis 10. Similiter est in proposito, ut

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geometria toda, uma relação de subordinação, então, de qualquer maneira, isso teria de significar que a geometria subordinada seria conhecida por um idêntico sujeito cognoscente que, ao mesmo tempo, conheceria a ciência subordinante. Do contrário, o suposto hábito subordinado não seria, para este sujeito – e nele –, ciência subordinada alguma.

Que, porém, a premissa menor do argumento deve ser aceita, isso se prova até mesmo pela determinação formal do primeiro objeto da teologia e da sua razão, a cada vez com respeito a uma diferente constituição do intelecto, daí a um diferente hábito em termos psicológico-cognitivos.96 Num diferente modo cognitivo, daí como num diferente tipo de conhecimento, a teologia de Deus (não por demonstrações), a teologia dos bem-aventurados (por demonstrações, talvez numa forma não usual de discurso silogístico)97 e a nossa teologia (por demonstrações e por movimento do entendimento ou discurso silogístico comum, com base nas verdades reveladas) se relacionam com os mesmos predicados sobre o objeto “Deus” e as suas “partes subjetivas”.98 O mesmo é afirmado, de acordo com Scotus em Rep. par. prol. q. 2 n. 4, pelo próprio Tomás de Aquino – Scotus, assim, argumenta, pela terceira vez, “ad hominem” –, a saber, que o primeiro sujeito da nossa teologia é Deus sob a razão de deidade, não sob uma razão especial,99 motivo pelo qual também a nossa teologia, como a teologia de Deus e a dos bem-aventurados, considera todas as verdades contidas virtualmente sob o primeiro sujeito assim apreendido.100

- Finalmente, resulta a conclusão evidente: A teologia do peregrino não é subordinada à teologia dos bem-aventurados.

Os contra-argumentos dois e quatro provam essencialmente o mesmo: logicamente, a unidade de uma ciência depende do seu objeto formal primeiro. Ele não é distinto nas teologias envolvidas, portanto tampouco o são as proposições científicas conclusivas. Caso se fale de uma não-unidade de hábitos, esta será psicológico-cognitiva. E sugerir esta tem como conseqüência necessária a não-inteligibilidade da subordinação pretendida. Ponto específico do quarto contra-argumento é a idéia de que, mesmo havendo entre o hábito teológico dos bem-aventurados e o do peregrino uma diferença formal nas verdades conhecidas, isso não implica subordinação nem logicamente (não é preciso haver relação causal

quod Deus est trinus et unus et de aliis convenientibus deitati in quantum deitas. Ergo haec scientia nostra non est subalternata scientiae Dei et beatorum; ergo etc.“

96 Cf. Ordinatio prol. p. 3 e Lectura prol. p. 2.

97 Cf. Ordinatio prol. n. 209; Lectura prol. n. 108-110. Cf. Roberto Hofmeister PICH, Der Begriff der wissenschaftlichen Erkenntnis nach Johannes Duns Scotus, Capítulo VI, sob 6.3.

98 Cf. Franciscus LYCHETUS, Commentarius, op. cit., p. 110, n. 4: „(...), sed Theologia Dei, beatorum, & nostra, est praecise de eisdem praedicatis (licet nostra sit de eisdem per reuelationem, illa vero beatorum per demonstrationem, & forte etiam per discursum, sed illa quae est Dei, licet sit de eisdem simpliciter praedicatis, non tamen per demonstrationem, vt supra patuit) modo si nostra esset subalternata, non posset esse primo de eisdem praedicatis, siue proprietatibus“.

99 Cf. Ord. prol. n. 158-167; Lect. prol. n. 77-86; Rep. par. prol. q. 1, a. 4, n. 38-51; Rep. I A prol. q. 1, a. 4.

100 Cf. Reportata parisiensia prol. q. 2, p. 15, n. 4: „Sed secundum Thomam, subiectum in Theologia nostra est Deus, non sub speciali ratione, sed sub ratione deitatis, sic autem est subiectum Theologiae Beatorum; igitur Theologia nostra considerat omnia, quae virtualiter continentur in Deo, sicut scientia beatorum, igitur ad aequalia extenduntur, ergo, &c.“

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entre as proposições obtidas) nem, é claro, pela impossível relação de dependência epistêmica externa para com o conhecimento de um intelecto como de um outro.

2.5 Quinto contra-argumento: intuição evidente do objeto e fé no mesmo objeto não concorrem101

(5) Na quinta e última objeção, Scotus parte da seguinte premissa:

- Premissa maior: O que tem a ciência subordinada102 pode ter também a subordinante,103 como o que tem a ciência subordinante pode também ter a subordinada.104

Em princípio, não é afirmado que o sujeito cognoscente pode possuir – ou vir a possuir – cada um dos hábitos em diferentes momentos, embora isso seja verdadeiro. Antes, afirma-se que, de acordo com a concepção comum de ciência subordinada e subordinante, é evidente que ambos os hábitos são conhecíveis ao mesmo sujeito cognoscente. O que pode conhecer os princípios da ciência subordinante, este pode também conhecer a conclusão no mesmo hábito e, por conseguinte, um dos princípios da ciência subordinada: ele pode, com isso, conhecer as conclusões da ciência subordinada “propter quid”.105 Além disso, como já sugerido, nada se opõe à idéia de que aquele que (primeiramente) conhece a ciência subordinada pode conhecer (somente depois) a ciência subordinante. A razão para tanto é específica: em comparação com os princípios da ciência subordinada, os princípios da ciência subordinante são anteriores e “confusos” (mais universais), e princípios anteriores e “confusos” são conhecidos, na ordem de natureza do conhecimento intelectual, tanto pura e simplesmente (“simpliciter”) quanto ao ser humano (“nobis”), primeiramente. Na ordem de surgimento do conhecimento, eles são conhecidos, porém, somente depois.106

101 Ord. prol. n. 216 textus interpolatus a; Rep. I A prol. q. 2; Ord. III d. 24, n. 4; Rep. par. III d. 24, n. 6.

102 Isto é, toda e qualquer ciência subordinada natural.

103 Isto é, toda e qualquer ciência subordinante natural. Cf. Ordinatio prol. p. 4, q. 1-2, p. 149, n. 216 textus interpolatus a: „- Praeterea, habens scientiam subalternatam potest habere subalternantem; (...)“.

104 Cf. Reportatio parisiensis I A prol. q. 2: „Item, omnis habens scientiam subalternantem potest habere scientiam subalternatam; et e converso habens subalternatam potest habere, stante illa, scientiam subalternantem“. Cf. Reportata parisiensia III d. 24, q. un., p. 517, n. 6. Cf. Josef FINKENZELLER, op. cit., p. 213.

105 Cf. Reportatio parisiensis I A prol. q. 2: „Prima pars maioris probatur: quia si habet subalternantem habet principia et propter quid subalternatae tamquem conclusionum; ergo potest scire ista propter quid“.

106 Ibidem: „Secunda pars maioris probatur: quia sciens subalternatam scientiam potest naturaliter scire subalternantem, scilicet quia principia subalternantis sunt priora; et in intelligibilibus, priora et confusa sunt nobis notiora et prius nota, secundum Avicenna, I Metaphysicae: „Ens est nobis prius natum in sensibilibus modo, quia ibi posteriora nobis sunt magis nota“. Ergo habens hanc scientiam subalternatam de intelligibilibus potest naturaliter habere scientiam subalternantem, tamquam priorem naturaliter; sed hoc falsum est, quia tunc idem esset viator et comprehensor“. Cf. Ordinatio III d. 24, q. un., p. 479, n. 4: „Praeterea, omnis sciens scientiam subalternatam, quae est de intelligibilibus; potest scire, & subalternantem, quia principia subalternantis sunt priora: & in intelligibilibus, illa quae sunt priora simpliciter, sunt priora nobis, licet in sensibilibus non sint eadem priora simpliciter, & priora nobis, quia sensibilia posteriora sunt nobis magis nota: (...)“. Cf. Reportata parisiensia III d. 24, q. un., p. 517, n. 6: „Alia pars probatur, vt hic sciens subalternatam naturaliter potest scire subalternantem, quia principia subalternantis naturaliter sunt priora, & notiora nobis: in sensibilibus est e conuerso, quia sensibilia posteriora sunt nobis notiora“. Cf. Ordinatio prol. p. 4, q. 1-2, p. 149, n. 216 textus interpolatus a: „Maior patet quoad utrumque: primo, quia habens principia de conclusione potest scire conclusionem; similiter patet secundum, quia principia subalternantis sunt universaliora, et sic ordine cognitionis

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A segunda premissa do quinto e último argumento é a seguinte:

- Premissa menor: O que tem a suposta ciência subordinada da teologia do peregrino não pode ter a suposta ciência subordinante da teologia de Deus ou a dos bem-aventurados, como o que tem esta última também não pode ter aquela primeira.107

Assumindo-se que a teologia dos bem-aventurados é a teologia subordinante e a teologia do peregrino é a subordinada, esta acepção tem então de ser testada por meio da premissa necessária de que é epistemicamente impossível que o bem-aventurado e o peregrino tenham, ao mesmo tempo habitualmente, a cada vez, o outro conhecimento, mais exatamente a intuição evidente das verdades teológicas e a fé nas mesmas: tanto o bem-aventurado quanto o peregrino seriam, assim, “um que compreende [que tem saber proposicional evidente do seu objeto108] com fé” (“comprehensor cum fide”).109 A acepção acima é, por isso mesmo, falsa. E ela é ademais falsa porque o hábito dos bem-aventurados e o do peregrino pressupõem processos cognitivos diferentes, segundo os quais é impossível que sejam, segundo a natureza e/ou o tempo, tanto transferíveis um ao outro como de um e de outro quanto co-presentes numa relação de subordinação. O bem-aventurado não pode, primeiramente, possuir a ciência subordinante pela intuição evidente e, então, também, pela fé, a “ciência” subordinada, num conhecimento não-distinto e não-evidente do objeto teológico, conhecimento que, segundo o surgimento, é causado pela espécie sensível e pelo intelecto ativo.110 Por sua vez, o peregrino não pode possuir a “ciência” subordinada pela fé e, então, também a ciência subordinante pela intuição evidente, assim como os bem-aventurados a possuem.111 O que possui um dos dois hábitos envolvidos não pode, pura e simplesmente, possuir também o outro. Tampouco pode dizer, com sentido, que um é subordinado ao outro, como aquele que possui o hábito da geometria e o da óptica pode sim dizer que o hábito da óptica é subordinado ao da geometria.

intellectualis prius nota, quia ibi secundum huiusmodi non proceditur a magis notis sed a sensu“.

107 Ibidem: „(...); in proposito utrumque est impossibile; ergo etc.“ Cf. Reportatio parisiensis I A prol. q. 2: „Sed habens scientiam beatorum, ut visionem de Deo, non potest habere fidem de eo nec theologiam nostram; ergo haec non subalternatur illi“.

108 Sobre este sentido de „compreender“, cf. Roberto Hofmeister PICH, William E. Mann sobre a doutrina scotista da necessidade do conhecimento revelado: primeira consideração, in: Dissertatio, p. 185-220.

109 Cf. Ordinatio III d. 24, q. un., p. 479, n. 4: „si ergo haec scientia potest simul stare cum fide, sequitur quod aliquis potest scire scientiam subalternatam cum fide, & ita potest esse comprehensor ratione fidei simul stantis“. Cf. Reportatio parisiensis I A prol. q. 2: „(...); sed hoc falsum est, quia tunc idem esset viator et comprehensor“. Cf. Reportata parisiensia III d. 24, q. un., p. 517, n. 6. A descrição da premissa menor deste argumento em Edward D. O’CONNOR, The scientific character of theology according to Scotus, op. cit., Vol. III, p. 46, nota 159, é incorreta. A exatidão da interpretação de Edward D. O’Connor da crítica scotista à teoria da subordinação de Tomás de Aquino e ao caráter científico da „nossa teologia“ é prejudicada pelo fato de que o autor confunde os argumentos scotistas contra as teses de Tomás de Aquino com aqueles apresentados contra a doutrina de Henrique de Gand sobre a „luz intermediária“ do conhecimento teológico; cf. ibidem, p. 42-5.

110 Cf. Franciscus LYCHETUS, Commentarius, op. cit., p. 110, n. 5: „(...), sed Deus, & beatus non potest habere nostram Theologiam, quia nos solum obscure, & fide credimus, & Deus & beati clare vident, modo fides repugnant visioni (...)“.

111 Ibidem: „(...), neque e conuerso viator potest habere visionem de communi lege, ergo Theologia Dei, & beatorum non subalternat sibi Theologiam nostram“. Cf. Ordinatio prol. p. 4, q. 1-2, p. 149, n. 216 textus interpolatus a: „Minor etiam patet quoad utrumque membrum: sicut viator non potest clare videre, sic beatus non potest habere sensum“.

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- Novamente, resulta a conclusão evidente: A teologia do peregrino não é subordinada à teologia dos bem-aventurados.

CONCLUSÃO

Apesar das considerações de Scotus sobre o conhecimento científico “pelos sentidos e pela experiência”, em certas ciências subordinadas,112 vale como princípio geral da teoria scotista da subordinação que, sempre que numa ciência subordinada existirem princípios que não são conhecidos com evidência “per sensum et per experientiam”, é necessário que o sujeito cognoscente os reconduza a princípios evidentes anteriores: do contrário, o conhecimento obtido a partir de tais princípios não é ciência.113 Ademais, o conhecimento obtido na forma científica é evidente porque depende de princípios evidentes conhecidos pelo sujeito: mesmo que a evidência possa ser formalmente descrita – por critérios lógicos da união necessária de termos conhecidos como tais –, ela é propriedade objetiva do fundamento do conhecimento do sujeito. A requisição da evidência na ciência subordinada é, assim, conseqüência das requisições imprescindíveis de certeza e de evidência no conhecimento científico: sob todas as variações scotistas ao modelo de ciência aristotélico – sobretudo face ao lugar do contingente na ciência –, a certeza e a evidência permanecem como condições necessárias e suficientes do conhecimento científico proposto por Aristóteles.114 Certeza e evidência, na ciência, devem ser entendidas do seguinte modo:115

- (a) Ciência é um conhecimento certo (“cognitio certa”), sem engano e dúvida.116 Ele pertence, a partir de Rep. par. prol. q. 1 a. 1 n. 4, a toda “virtus intellectualis”, dado que uma virtude intelectual é uma perfeição do intelecto que o leva à atividade perfeita. A atividade perfeita do intelecto é o conhecimento certo do verdadeiro. Com isso, toda “virtus intellectualis” é um hábito por meio do qual a verdade é conhecida “determinate”. Face a esta definição, “opinião” (“opinio”), a atividade discursiva da potência cognitiva que produz certeza apenas por meio de probabilidade,117 e “conjetura” (“suspicio”), a atividade discursiva da potência cognitiva que produz certeza apenas por meio de inclinação a um de dois

112 Cf. acima a nota 8.

113 Cf. também Reportata parisiensia prol., q. 2, p. 15, n. 5: „(...); Vnde multa principia sunt simpliciter nota Perspectiuo, de quibus tamen nescit propter quid Si sint autem alia principia in subalternata, quae non sunt nota per sensum & experientiam, oportet quod sciat ea reducere in alia principia priora: illa ergo notitia, quae tantum per experientiam cognoscit ista, illa non est scientia“.

114 Cf. Roberto Hofmeister PICH, Der Begriff der wissenschaftlichen Erkenntnis nach Johannes Duns Scotus, Capítulo VI, sob 6.1 e 6.2, e Conclusão, sob 4.

115 Cf. Ordinatio prol. p. 4, q. 1-2, p. 141, n. 208: „Ad primam quaestionem dico quod scientia stricte sumpta quattuor includit, videlicet: quod sit cognitio certa, absque deceptione et dubitatione; secundo, quod sit de cognitio necessario; tertio, quod sit causata a causa evidente intellectui; quarto, quod sit applicata ad cognitum per syllogismum vel discursum syllogisticum“. Cf. também Reportata parisiensia prol. q. 1, a. 1, p. 2, n. 4: „(...), scientia est cognitio certa veri demonstrati necessarij mediati ex necessariis prioribus demonstrati, quod natum est habere evidentiam ex necessario prius evidente, applicato as ipsum per discursum syllogisticum“.

116 Cf. ARISTOTELES, Zweite Analytik, in: Hans Günter ZEKL (Hrsg.), op. cit., I cap. 2, 71b9-10, p. 314-5.

117 A saber, um tema dos Tópicos de Aristóteles.

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contrários,118 não são “virtutes intellectuales”.119 Tomo que a verdade ou uma proposição verdadeira do hábito da ciência é conhecida “determinate”, ou, segundo o princípio de bivalência, sob apenas um de dois valores de verdade possíveis,120 quando a união do sujeito e do predicado na proposição conclusiva de uma demonstração é conhecida com evidência e certeza por meio de um “princípio especial” (“principium speciale”) ou da definição essencial do sujeito a ser conhecido.121 Nesse sentido, o fundamento para a evidência e a certeza sobre uma proposição conclusiva reside nas premissas conhecidas com evidência e certeza,122 e, por esta razão, o hábito correspondente é uma “scientia”, e não um “syllogismus probabilis”.123

- (b) A ciência é causada por uma causa evidente à potência cognitiva. (No texto aristotélico, lê-se, é verdade, apenas “causa”, e não “causa evidente”).124 No Prólogo da Lectura, tem-se “por uma causa e pela evidência do objeto”, isto é, a causa do conhecimento científico, evidente à potência cognitiva, é o conhecimento evidente do objeto na forma de uma proposição imediata (“per se nota”) primeira.125 Por esta condição, assim Scotus em Rep. par. prol. q. 1 a. 1 n. 4, ciência (“scientia”) e entendimento (“intellectus”) das premissas imediatas são diferenciados. Enquanto o entendimento obtém evidência pelo conhecimento do

118 A saber, um tema da Retórica de Aristóteles; cf. Richard McKEON, Philosophy and the development of scientific methods, in: Journal of the History of Ideas, p. 10-11; Constantino MARMO, Suspicio: a key word to the significance of Aristotle’s Rhetoric in thirteenth century scholasticism, in: Cahiers de l’Institut du Moyen Âge Grec et Latin, p. 165-9. 187-91.

119 Cf. Reportata parisiensia prol. q. 1, a. 1, p. 2, n. 4: „Prima condicio scilicet, quod est cognitio certa, excludens omnem deceptionem, opinionem, & dubitationem, convenit omni intellectuali virtuti, quia virtus intellectualis est perfectio intellectus, disponens ipsum ad perfectam operatio intellectualis est cognitio veri certa, ideo omnis virtus intellectualis est habitus, quo determinate verum dicimus, propter quod, opinio & suspicio, quibus potest subesse falsum, non sunt virtutes intellectuales“.

120 Cf., por exemplo, Lectura I d. 39, q. 1-5, p. 481, n. 1: „Circa distinctionem trigesimam nonam quaeritur utrum Deus habeat determinatam cognitionem de rebus secundum omnem condicionem exsistentiae, ut secundum futuritionem“. Cf. A. VOS JACZN et alii, Lectura I d. 39 Commentary, in: A. VOS JACZN et alii, John Duns Scotus contingency and freedom - Lectura I 39, p. 45: „In this context ‘determinate’ means: bearing the truth-value ‘true’ or ‘false’“.

121 Cf. Ordinatio prol. p. 1, q. un., p. 53-4, n. 89: „Et in proposito exemplo adhuc patet propositum. Quia de homine scibile est quod est risibilis, numquam per hoc principium ‘de quolibet’ etc. potest plus inferri nisi ‘igitur de homine risibile vel non-risibile’. Altera igitur pars praedicati disiuncti numquam scietur de subiecto per hoc principium, sed requiritur aliud principium speciale, ut definitio subiecti vel passionis, quod quidem est medium et ratio ad sciendum ‘risibile’ determinate de homine“.

122 Cf. L.-M. DE RIJK, Einiges zu den Hintergründen der scotischen Beweistheorie: Die Schlüsselrolle des Sein-Könnens (esse possibile), in: Albert ZIMMERMANN (Hrsg.), Miscellanea Mediaevalia 20 - Die Kölner Universität im Mittelalter. Geistige Wurzeln und soziale Wirklichkeit, p. 181.

123 Cf. Allan B. WOLTER, The „theologism“ of Duns Scotus, in: Marilyn McCord ADAMS (ed.), The philosophical theology of John Duns Scotus, p. 216.

124 Cf. ARISTOTELES, Zweite Analytik, in: Hans Günter ZEKL (Hrsg.), op. cit., I cap. 2, 71b10-12, p. 314-5: „(...) -, wenn wir, erstens, die Ursache zu kennen meinen, deretwegen dieser Sachverhalt besteht - daß es eben dessen Ursache ist -, (...)“. Cf. Gérard SONDAG, Commentaire continu, in: Jean DUNS SCOT, La théologie comme science pratique (Prologue de la Lectura), p. 73.

125 Cf. Lectura prol. p. 3, q. 1, p. 39, n. 107: „Ad quam dicendum est quod est scientia quantum ad id quod perfectionis est in scientia. Nam, sicut patet ex definitione scientiae, scientia est cognitio certa, de necessariis, habita per causam et evidentiam obiecti et per applicationem causae ad effectum“.

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significado dos termos, a ciência obtém evidência pelos princípios conhecidos.126 A causa evidente à potência cognitiva consiste, aqui, numa premissa necessária,127 que pode ser entendida como um ponto de partida não-demonstrado de uma demonstração.128 Porém, deve ser dito que nem em Lect. prol. n. 107 nem em Ord. prol. n. 208 lê-se acerca de uma causa evidente e necessária, (ainda que este seja o caso em Segundos analíticos I cap. 2). Não se verifica, nesta descrição, uma ligação natural entre evidência e necessidade.129 Sob essas pressuposições, a interpretação dada por DE RIJK é correta, segundo a qual Scotus quer dizer com “causa” não “causa ontológica”, pela qual “aquilo que é significado pelo predicado da proposição conclusiva é atribuído ao sujeito e, por conseguinte, está contido nele”.130 Antes, com “causa” Scotus tem em vista “a conclusividade lógica”: a causa evidente conhecida pelo intelecto é “o fundamento lógico para o fato de que aquele que apreende a verdade das premissas (...) sabe que o predicado pertence ao sujeito”.131

Não é difícil ver, pois, de que modo as últimas premissas podem ser visualizadas na resposta definitiva de Scotus às estratégias argumentativas de Tomás de Aquino (cf. Rep. par. prol. q. 2 n. 3). Primeiro, Scotus confirma o parecer de que uma ciência subordinada é, como tal, uma ciência, mas não na medida em que nela os princípios do saber são (meramente) cridos.132 Somente quando os princípios do hábito do conhecimento são conhecidos com evidência ou “per experientiam” ou pela redução aos princípios do hábito superior é o caso que o hábito do conhecimento subordinado é uma “scientia”.133 É também simples perceber que o segundo argumento é inválido: as verdades da óptica enquanto óptica são tratadas numa ciência, mas não na medida em que os seus princípios são cridos, mas somente enquanto são conhecidos por experiência ou pelo conhecimento evidente dos princípios da ciência da geometria no intelecto do óptico-geômetra.134

126 Cf. Reportata parisiensia prol. q. 1, a. 1, p. 2, n. 4: „(...) distinguens scientiam ab intellectu principiorum, quia iste est veri habentis evidentiam ex terminis; (...): scientia est veri habentis evidentiam ex principiis“. Cf. também Reportatio I A prol. a. 1. Cf. Edward D. O’CONNOR, The scientific character of theology according to Scotus, op. cit., p. 4-5, nota 3; H. A. KROP, The self-knowledge of God - Duns Scotus and Ockham on the formal object of scientific knowledge, in: E. P. BOS and H. A. KROP (eds.), op. cit., p. 84.

127 Cf. Reportatio I A prol. a. 1: „(...), quod natum est habere evidentiam ab aliquo necessario prius evidente (...)“.

128 Cf. W. D. ROSS, Introduction, in: W. D. ROSS (text, introduction and commentary), Aristotle’s Prior and Posterior Analytics, p. 55s.

129 O significado desta observação para a teoria scotista da ciência só pode ser mostrado por meio de uma análise comparativa do conhecimento do contingente na teologia “in se”; cf. Roberto Hofmeister PICH, op. cit., Capítulos V e VI.

130 Cf. L.-M. DE RIJK, Einiges zu den Hintergründen der scotischen Beweistheorie: Die Schlüsselrolle des Sein-Könnens (esse possibile), in: Albert ZIMMERMANN (Hrsg.), op. cit., p. 180.

131 Ibidem, p. 180-1.

132 Cf. acima sob 1.

133 Cf. Reportata parisiensia prol. q. 2, p. 15, n. 5: „Per hoc patet ad rationes. Ad primam, quod subalternata in quantum talis est scientia; non quia tantum credit sua principia, sed quia nouit illa per experientiam, vel quia nouit ea reducere ad priora in scientia superiori“.

134 Ibidem: „Ad aliud, quod quamuis perspectiua in quantum perspectiua sunt, considerentur in scientia, haec tamen sola

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O terceiro argumento tomasiano, exposto em Rep. par. prol. q. 2 n. 3, Ord. III d. 24 n. 3 e Rep. par. III d. 24 n. 5, segundo o qual é suficiente para um hábito da ciência que os seus princípios sejam conhecidos “aliqualiter”, é igualmente inválido. Para tanto, analisa-se e, então, abandona-se, em Ord. III d. 24 n. 19 e Rep. par. III d. 24 n. 23, o comentário confirmativo sobre certa obtenção suficiente de conhecimento dos princípios científicos a partir do conceito de indução, por conseguinte a legitimidade da obtenção de um “tipo especial” de ciência.135 Scotus toma que a indução pode ser entendida de um duplo modo:

- (a) Por um lado, a indução, em concordância com Boécio, é um tipo de argumentação (“species argumentationis”). Segundo este primeiro modo, a indução não basta para o conhecimento científico. Numa tal “argumentação indutiva”, um objeto universal é conhecido pelo fato de que é deduzido a partir das coisas singulares.136 Porém, exatamente o procedimento contrário caracteriza uma dedução científica. Cientificamente (“scientifice”), segue-se antes a argumentação “todo todo é maior que as suas partes; portanto, este todo (é maior que as suas partes)” do que o contrário, isto é, “este e este todo todo (são maiores que as suas partes); logo, todo todo (é maior que as suas partes)”.137 Isso significa que a evidência dos princípios numa ciência – isto é, dos princípios evidentes já obtidos – não depende de modo algum dos objetos singulares. Ainda que não existisse nenhum objeto singular correspondente, haveria, não obstante isso, verdadeira ciência, uma vez que “scientia” é o conhecimento de objetos universais necessários. Os princípios de uma ciência são conhecidos exclusivamente pelos termos apreendidos, na medida em que os termos se fazem presentes ao intelecto: assim o intelecto dá assentimento a eles, e não por meio de argumentação indutiva. A definitiva resolução da certeza do conhecimento permanece neste conhecimento “per se”, ou seja, sustenta-se em que aquele é um tal entendimento e aqueles são tais termos (“ille est talis intellectus, & hi tales termini”).138

ratio non sufficit; nisi cognoscat Perspectiuus sua principia praedicto modo“. Cf. Reportata parisiensia III d. 24, q. un., p. 521, n. 22: „(...), & ideo cum dependeat a Geometria secundum principia sua, non erit Perspectiua scientia, nisi causetur a Geometria, & ideo nullus est Perspectiuus, vt sciens eam, sed vt credens eam tantum, nisi causetur notitia principiorum in illo, in superiori scientia“. Cf. Ordinatio III d. 24, q. un., p. 485, n. 18: „Et cum dicis, quod sunt distincti habitus, verum est: sed sicut non potest esse habitus ille, nisi causetur ex principiis euidentibus; ita non potest esse habitus huic homini, nisi causetur in ipso ex principiis illis, quae habent certitudinem istam ex principiis primis, notis in scientia superiori“. Cf. acima sob 1. Cf. JOHANNES DE READING, Scriptum in I librum sententiarum - Prologus. qq. 6, 7, & 10, in: Steven J. LIVESEY (ed.), op. cit., prol., q. 6, p. 108-9: „Ad aliud argumentum, cum dicitur perspectiva in quantum talis est scientia, concedo; et perspectivus in quantum talis est sciens. Et quando dicitur quod non est necessario geometer, dico quod vel novit reducere principium perspective in principium ex quo deducitur - in geometria -, vel novit illud per experientiam, vel saltem habita cognitione de subiecto eius quod est, probat ex illa ratione talis subiecti compositi conclusiones suas“.

135 Cf. acima sob 1.

136 Cf. Ordinatio III d. 24, q. un., p. 485-6, n. 19: „Ad Commentatorem dico, quod inductio potest accipi dupliciter. Vno modo prout est species argumentationis, secundum quod loquitur Boëtius de inductione. (...). Si primo modo loquitur Commentator. Dico quod inductio non sufficit ad scientiam: nec ideo scitur vniuersale, quia ex particularibus deducitur“.

137 Ibidem, p. 486: „Vnde magis sequitur scientifice, omne totum est maius sua parte, igitur hoc totum: quam e conuerso, scilicet hoc & illud totum, igitur omne“.

138 „Vnde euidentia principiorum in scientia non dependet ex singularibus: sed si nullum singulare esset, cum scientia sit necessariorum, adhuc staret vera scientia; sed principia sunt nota ex terminis apprehensis, secundum quod termini vltro se offerunt intellectui: & resolutio certitudinis stat in hoc, quod ille est talis intellectus, & hi tales termini“. Cf. também Reportata parisiensia III d. 24, q. un., p. 521, n. 23: „Vne haec vniuersalis: Omne totum est maius sua parte, est primo, & per se nota; nec assentio illi, quia assentio huic, hoc totum est maius sua parte. Ideo quando assentitur alicui primo principio, non assentitur illi per inductionem, isto modo sumendo inductionem“.

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- (b) Por outro lado, e isso deve valer como interpretação correta de Ética a Nicômaco VI cap. 3, a indução é entendida como a acepção dos objetos singulares por meio dos sentidos, a saber, como todo conhecimento que é produzido a partir dos sentidos, como o conhecimento dos princípios pelo intelecto humano, porque este apreende os termos (universais) dos princípios por meio dos sentidos.139 Aqui, assim continua o argumento em Rep. par. III d. 24 n. 23, a indução é originalmente necessária para o conhecimento dos princípios de uma determinada ciência, na medida em que ela é necessária para a apreensão dos termos – e isso também quando os sentidos se equivocam com respeito às coisas reais, singulares.140 Somente na medida em que as coisas singulares são apreendidas por meio dos sentidos o intelecto abstrai o universal e conhece, com isso, os termos, a partir dos quais, por meio do mesmo intelecto – não mais num processo indutivo pelos sentidos –, o conhecimento dos princípios é obtido.141 Esta segunda acepção de indução inclui, portanto, a função da “experiência” para o conhecimento dos princípios: a “empeiria” tem o seu lugar a partir da relação entre percepção e memória, como conhecimento do particular, em predicações elementares, e, depois, do universal contido no particular.142 Aqui, a experiência acaba sendo meio para a obtenção de intuições gerais: da reunião de uma quantidade relevante de lembranças (repetidas), obtidas pelas percepções sensíveis, a experiência originada leva aos primeiros termos gerais, iniciando o conhecimento universal e abstrato.143 A partir da experiência, fixa-se na alma a unidade formal indiferenciada de objetos múltiplos que se encontram de modo idêntico na experiência.144 Daí que dizer que os princípios da “arte” ou da “ciência” são conhecidos por indução, no contexto de Segundos analíticos II cap. 19, em concordância com Ética a Nicômaco VI cap. 3, não significa que o processo de

139 Cf. Ordinatio III d. 24, q. un., p. 486, n. 19: „Alio modo prout inductio dicitur omnis cognitio, quae oritur ex sensu, sicut principia cognoscimus, quia terminos apprehendimus per sensum“.

140 Cf. Reportata parisiensia III d. 24, q. un., p. 521, n. 23: „Sed secundo modo inductio est necessaria ad cognitionem principiorum, quatenus est necessaria ad apprehensionem terminorum, & licet tunc fuerit falsus, intellectus tamen cognoscit principium, & est de eo.“ Cf. Ordinatio III d. 24, q. un., p. 486, n. 19: „Si secundo modo loquitur, verum est, quod notitia principiorum dependet ex sensu (...)“. Cf. Quaestiones super libros metaphysicorum Aristotelis I q. 4, p. 108, n. 43-44: „(...) est considerandum quod a sensu, sive errante sive non, potest intellectus apprehendere simplicia et statim universalissima. Quia ad quamcumque apprehensionem sensitivam imprimuntur intellectui ens et res. Simplicibus apprehensis a sensu vero vel falso, propositiones fiunt virtute propria intellectus: primo de universalioribus, postea de aliis“. Cf. ibidem, p. 115, n. 66: „(...) quod sensus est necessarius propter notitiam terminorum. Unde universalia non cognoscuntur sine inductione, id est, sine cognitione alicuius singularis quod non cognoscitur sine sensu in sensibilibus. Ergo in illis, si deest sensus, deest scientia. Non oportet autem ‘inductionem’ accipere ibi pro specie argumenti“. Cf. também ARISTOTELES, Zweite Analytik, in: Hans Günter ZEKL (Hrsg.), op. cit., II cap. 19, 100b3-4, p. 520-3: „Klar denn also: Es ist uns notwendig, die allerersten (Ausgangsbegriffe) mittels Heranführung [„epagoge“] zu erkennen; (...)“; idem, Nikomachische Ethik, in: Günther BIEN (Hrsg.), op. cit., VI cap. 3, 1139b25-31, p. 133.

141 Cf. Reportata parisiensia III d. 24, q. un., p. 521, n. 23: „Vnde per inductionem, isto modo accipiendo eam, cognoscitur principium: quia accipiendo per sensum singularia, attrahit intellectus vniuersale, & cognoscit terminos, ex qua notitia principium cognoscitur: non tamen assentiendo per intellectum: quia aliquid sentitur per sensum“.

142 Gilles Gaston GRANGER, La théorie aristotélicienne de la science, p. 159, diferenciou um tratamento psicológico („vue psychologique“) da indução, como a atividade que permite passar da sensação à experiência, de um tratamento fenomenológico („vue phénoménologique“), em que a indução é a visão originária do universal no objeto da sensação.

143 Cf. ARISTOTELES, Metaphysik - Erster Halbband (Bücher I(Α) - VI (Ε)), in: Horst SEIDL (Hrsg.), Aristoteles’ Metaphysik, I cap. 1, 980b28ss, p. 4-5. Cf. F. P. HAGER, Empeiria, in: Joachim RITTER und Karlfried GRÜNDER (Hrsg.), Historisches Wörterbuch der Philosophie, Band 2, p. 453-4.

144 Cf. Oswaldo PORCHAT PEREIRA, Ciência e dialética em Aristóteles, p. 344-6, com referência a Segundos analíticos II cap. 19, 99b32ss.

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aquisição de princípios seja idêntico ao de formação de noções universais a partir da sensação (e da experiência que tem esta como base), mas trata-se de mostrar que “o conhecimento das proposições assumidas pela ciência como seus princípios é obtido, a partir de um conhecimento anterior fundamentado, em última análise, na sensação, através de um raciocínio epagógico ou indutivo que se pode assemelhar a (...) um processo indutivo mais simples que, partindo diretamente da sensação, leva [na experiência] os universais contidos nas formas sensíveis a fixar-se na alma”.145 Trata-se de um processo indutivo, em ambos os momentos, sendo impossível uma passagem do particular ao universal sem a indução e uma indução que não repouse na percepção sensível: por isso, cabe à “empeiria” fornecer os princípios de cada gênero de objetos.146 E ela oferece conhecimento do fato (“hoti”), mas nunca, como a arte e a ciência, que se relacionam somente com o universal, do porquê (“dioti”) de enunciados elementares.147 O conhecimento por indução, pois, não legitima a obtenção de um “tipo especial” de ciência.

Ainda contra a afirmação de que os princípios das ciências especiais podem ser conhecidos “aliqualiter”, Scotus reafirma em Ord. III d. 24 n. 19 e Rep. par. III d. 24 n. 23 que é num sentido restrito que o conhecimento dos termos basta para conhecer que certos princípios são primeiros e evidentes, isto é, princípios que fundamentam as proposições conclusivas necessárias da ciência. É necessário o conhecimento evidente dos termos sob as suas razões próprias. Sem dúvida, não é sempre necessário que os princípios da ciência sejam conhecidos de modo “distinto” e “imediato”. Em algumas ciências, como nas subordinadas, é apenas exigido que os termos dos princípios sejam conhecidos de um modo “confuso”. Exige-se, porém, que o conhecimento confuso (=conhecimento de princípios, cujos termos, ligados, são conhecidos de modo confuso) seja conduzido ao conhecimento distinto (=conhecimento de princípios, cujos termos, ligados, são conhecidos de modo distinto).148 Mais adiante, em Rep. par. prol. q.2 n. 3 e Ord. III d. 24 n. 19, Scotus chega a admitir que os princípios das ciências especiais podem ser conhecidos “aliqualiter”, se isso significa que são conhecidos de dois modos possíveis: (a) podem ser conhecidos com base num conhecimento confuso dos termos, em que “confuso” significa “específico”, e (b) podem ser conhecidos pela ciência da metafísica, num conhecimento “geral” absolutamente distinto dos

145 Ibidem, p. 347-8.

146 Ibidem, p. 348-9.

147 Cf. ARISTOTELES, Metaphysik - Erster Halbband (Bücher I(Α) - VI (Ε)), in: Horst SEIDL (Hrsg.), op. cit., I cap. 1, 981a24ss, p. 6-7. Cf. F. KAMBARTEL, Erfahrung, in: Joachim RITTER und Karlfried GRÜNDER (Hrsg.). Historisches Wörterbuch der Philosophie, Band 2, p. 609-10.

148 Cf. Ordinatio III d. 24, q. un., p. 521, n. 19: „Si secundo modo loquitur, verum est, quod notitia principiorum dependet ex sensu, tamen non sufficit quaecumque notitia terminorum ad hoc, quod cognoscantur principia esse prima, seu talia; ex quibus possit conclusio necessaria concludi, quae habet generare scientiam, sed requiritur cognitio terminorum sub propriis rationibus ex euidentia illorum: sed non semper immediate, & distincte, sed in aliquibus scientiis sufficit notitia terminorum confusa, sicut in subalternatis; sed requiritur quod eorum cognitio confusa possit reduci in distincta“. Cf. Reportata parisiensia III d. 24, q. un., p. 521, n. 23: „Et cum dicunt quod sufficit principia esse aliqualiter nota: dico quod oportet esse omnino ex terminis non confuse cognitis; quamuis in aliqua scientia, puta subalternata, non nisi ex terminis confuse notis principia sunt per se nota, vel saltem cognoscuntur ex terminis confuse notis: ita quod non sit necesse scire definitionem termini“.

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termos, mais perfeito porque da natureza categorial dos mesmos.149 Dos dois modos, os princípios das ciências especiais são conhecidos por si e com evidência.150

Finalmente, caso esta concepção comentada da subordinação segundo Scotus, com base na sua crítica à interpretação de Tomás de Aquino, for avaliada em comparação às fontes aristotélicas, creio que é manifesto que a interpretação scotista, como interpretação de Aristóteles, é mais sóbria e precisa. Na concepção exposta, Scotus se expressa, concordantemente, somente acerca da teoria-padrão de Aristóteles: ele não ultrapassa a extensão dos modelos aristotélicos de subordinação. Como interpretação da teoria-padrão aristotélica – da qual os demais argumentos contra a posição tomasiana não se desviam151 –, tomo a crítica scotista como justificada: a teoria tomasiana da subordinação, no contexto da relação entre a nossa teologia e a de Deus e a dos bem-aventurados, é inconsistente.152 Naturalmente, Scotus entende a teoria tomasiana da subordinação como reivindicando um entendimento fundamentalmente correto, daí uma aplicação fundamentalmente correta da teoria aristotélica. Esta é, ao menos, a interpretação mais óbvia da teoria tomasiana.153 Ainda assim, o juízo scotista sobre a versão de Tomás de Aquino tem algo de desconcertante. Afinal, Scotus, em três momentos, argumenta “ad hominem”154 e dá a entender que Tomás de Aquino, deixando-se de lado as divergências explicitadas, ensinou o mesmo que

149 Cf. Ordinatio III d. 24, q. un., p. 486, n. 19: „Similiter scientia naturalis, prout praecedit Metaphysicam, habet suos terminos confuse notos: sed Metaphysicus mediante definitione exprimit distincte notitiam illorum, & tunc est perfectior, quando est cum Metaphysica“. Esta é, a propósito, segundo Scotus, a intenção de Avicena na sua Metafísica I cap. 3, a saber, que a ordem da metafísica seja de tal modo entendida que ela é ensinada apenas após o conhecimento das ciências naturais: após a obtenção do conhecimento da metafísica, os princípios das ciências específicas precisam, porém, ser novamente demonstrados. Cf. Reporata parisiensia III d. 24, q. un., p. 521, n. 23: „Vnde omnis scientia partialis praecedens Metaphysicam ordine doctrinae, sic habet cognoscere sua principia ex cognitione confusa terminorum, sed post scientiam Metaphysicae cognoscuntur definitiones terminorum in scientiis particularibus, & principia eorum probantur per principia Metaphysicae. Et hoc est quod vult Auicenna in primo Metaphys. sua, cap. 3. quod ordo huius scientiae est, vt discatur post scientias naturales & disciplinationes; cum tamen principia iterum habeant probari per eam“.

150 Cf. Reportata parisiensia prol., q. 2, p. 15, n. 5: „Ad auctoritatem Philosophi dicendum quod dupliciter principia possunt esse nota. Vno modo notitia confusa, vt cum termini confuse apprehenduntur, & hoc sufficit ad notitiam principiorum in scientiis specialibus. Alio modo possunt principia cognosci notitia distincta, cum definitiones terminorum distincte cognoscuntur, & hoc conuenit per notitiam Metaphysicae, diuidendo & componendo: & ideo habita notitia Metaphysicae perfectius cognoscuntur principia cuiuslibet scientiae, quam nata sint cognosci sine illa, & per consequens habita Metaphysica perfectius habetur ista notitia, quam in quaelibet alia scientia“. JOHANNES DE READING, Scriptum in I librum sententiarum - Prologus. qq. 6, 7, & 10, in: Steven J. LIVESEY (ed.), op. cit., prol., q. 6, p. 109, inclui, entre os „princípios conhecidos „aliqualiter““, também os princípios que são conhecidos „per sensum et experientiam“: „Ad tertium, cum dicit quod principia sunt aliqualiter cognita, dico quod principia dupliciter possunt esse nota: vel per sensum et experientiam, vel ex confuso conceptu terminorum esse evidenter nota, vel possunt tertio esse nota per principia superioris scientie. Et unus istorum modorum requiritur ad scientiam habendam“.

151 Cf. acima em especial sob 2.1, 2.3 e 2.4.

152 Cf. acima sob 1.

153 Cf., por exemplo, Sanctus THOMAS AQUINATIS, Summa theologiae I q. 1, p. 3, a. 2 in corp.; idem, In librum Boethii De Trinitate expositio prooem. q. 2, p. 332, a. 2 ad 5. Se Tomás de Aquino entendeu o seu ensino, no contexto da teologia, como uma teoria da subordinação especial, não-aristotélica, tal como tomistas desde Herveu de Nedellec e Tiago de Metz acreditaram, permanece discutível. Porém, mesmo interpretações alternativas – também as de hoje – trazem, „exegeticamente“, resultados deveras tímidos. Cf. André HAYEN, La théologie aux XIIe, XIIIe et XXe siècles (suite), in: Nouvelle Révue Théologique, p. 120-9; C. DUMONT, La réflexion sur la méthode théologique II, in: Nouvelle Révue Théologique, p. 24. 27-8. 29-35; Jean-Pierre TORRELL, Le savoir théologique chez les premiers thomistes, op. cit., p. 26-8.

154 Cf. acima sob 2.1, 2.2 e 2.4.

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ele acerca da diferença entre fé e ciência e acerca do objeto formal único da teologia.155 Tomás de Aquino teria podido concluir pela impossibilidade da relação de subordinação entre a nossa teologia e a teologia de Deus e a dos bem-aventurados e teria podido abandonar o caráter científico da nossa teologia. Não significa isso que a teoria da subordinação tomasiana, desenvolvida para a teologia, é surpreendente porque internamente contraditória?

Neste estudo, não será mais possível ver a teoria tomasiana de outro modo. A visão que Scotus oferece é a de que ela não é inteligível segundo a “episteme” aristotélica estrita. Em sentido estrito, uma visão positiva à consistência da teoria tomasiana teria de implicar a inteira diluição do seu suporte aristotélico. Tome-se, assim, nos termos de Trottmann, que na teoria tomasiana a “ciência” da nossa teologia é um reflexo da ciência que Deus tem de si mesmo, como o imperfeito se assemelha ao perfeito, como a “nossa” participação imperfeita em Deus está para a participação beatífica: para a nossa teologia, a imperfeição dependente é um modo de ciência subordinada.156 Uma visão positiva à consistência da teoria tomasiana só não implica a diluição do seu suporte aristotélico se, é claro, o sentido estrito deste último não é aquele apresentado por Scotus. Saranyana, entre outros, sugere que Tomás de Aquino, consciente da “condição analógica” do conceito de “ciência”, buscou na propriedade definitória da ciência de ter acesso a verdades conhecidas a partir de outras verdades conhecidas – de ser um processo de obtenção de conclusões – o aspecto que pode ser predicado univocamente de todos os analogados.157 É possível também, como o mesmo Saranyana parece propor, que se deixe de lado a visão positiva à consistência da tese tomasiana na dependência de identidade a um sentido aristotélico estrito de ciência. Por que não crer que a subordinação tomasiana é, com plena consciência, um sentido novo de ciência, apenas aproximativo ao modelo de Aristóteles? A gramática do “conhecimento científico” teria de ser modificada para além (ou aquém) daquela de Scotus, em que uma ciência subordinada envolveria o aspecto epistemológico (e ontológico) da participação do ser humano em Deus, suposta a elevação humana à ordem sobrenatural, pela fé infusa, e o aspecto lógico da analogia de “ciência” como saber que procede para conclusões. Haveria, aqui, duas perspectivas complementares, em que a teologia é ciência analogicamente (um “argumentum fidei”) e participativamente (um “intellectus fidei”), não podendo, pois, existir sem a realidade da fé.158

Se neste último molde também a interpretação crítica de M.-D. Chenu se enquadraria, a de que a doutrina sagrada é, para Tomás de Aquino, não uma ciência aristotélica no sentido pleno dos Segundos analíticos (por razões profundamente conformes ao evidencialismo scotista, a saber, por causa do “postulado inviolável” de que “scientia procedit ex principiis per se notis”),159 uma

155 Cf. acima sob 2.1 e 2.4.

156 Cf. Christian TROTTMANN, op. cit., p. 155.

157 Cf. José Ignasi SARANYANA, Sobre el In Boethii De Trinitate de Tomas de Aquino, in: Albert ZIMMERMANN (Hrsg.), op. cit., p. 80.

158 Ibidem, p. 74-80.

159 Cf. M.-D. CHENU, La théologie comme science au XIIIe. siècle, p. 73. 90s.

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última leitura alternativa proporia algo mais ousado: a tese tomasiana preserva o sentido aristotélico estrito de ciência, a ser entendido de outro modo que o apresentado, e desenvolve a ciência para além do sentido estrito, em coerência com ele. Tem-se, de novo, a negação da tese da identidade da concepção tomasiana e aristotélica. Se Tomás de Aquino entendeu ciência como virtude epistêmica de perfeição, e aquela é assim um termo analógico, John I. Jenkins pode asseverar que isso permitiu desdobrar um mesmo conceito fundamental e aplicar “scientia” para hábitos epistêmicos como a ciência de Deus não discursiva e dos bem-aventurados intuitiva etc.160 Pensar o conhecimento científico como virtude epistêmica implicaria reconhecer o procedimento científico pela via do inquérito e da formação intelectual progressiva, tal como na atenção à estrutura argumentativa (da teologia), para a qual conta a função da autoridade na pressuposição e aquisição da ciência, logo também a submissão à instrução (divina e pelos bem-aventurados). Por isso mesmo, a subordinação da “nossa ciência” da teologia não é (a) pelo gênero-sujeito, mas sim (b) a modo de cognição, de instrução e pré-saber, a partir da ciência subordinante de Deus mesmo, transmitida pela revelação, para a aquisição discursiva do saber manifestado como necessário.161 Haveria vez, ainda, para que o projeto inteiro dos Segundos analíticos fosse pensado, então, nos termos de um fundacionalismo externalista de justificação de verdades da fé a partir da fé.162

A tese ousada de John I. Jenkins demandaria apreciação muito mais minuciosa. De momento, a sua proposição da continuidade profunda da ciência da nossa teologia, em Tomás de Aquino, com o conteúdo dos Segundos analíticos não me parece mais promissora que a premissa forte da concepção scotista: que o saber científico que se possui deve ser ele mesmo estritamente evidente e certo, do contrário não se o possui. A ciência estrita não está no fim do processo de obtenção do saber. Está ali desde o início, com o peso de uma tautologia: de que o saber científico estrito é sempre só o saber científico estrito.

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160 Cf. John I. JENKINS, Knowledge and faith in Thomas Aquinas, p. 56-66.

161 Ibidem, p. 66-77. 219s.

162 Ibidem, p. 185s, 215s.

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A TEOLOGIA E SEU MÉTODO NO PRÓLOGO DA ORDINATIO DE DUNS SCOTUS

Sinivaldo S. Tavares*

O presente ensaio foi se construindo em meio a duas grandes dificuldades. A primeira provém do próprio tema em pauta. Talvez não exista, em teologia, discurso tão árido quanto o que concerne à sua epistemologia. Discorrer acerca de seu método significa assumir o pesado ônus de sondar os pressupostos a partir dos quais a teologia se constrói. Implica ainda em indagar acerca do processo mesmo de constituição de seu discurso, desentranhando suas intrínsecas virtualidades e reconhecendo seus limites internos. Significa verificar se, de fato, o método adotado possibilita uma maior aproximação à realidade que se pretende indagar. Trata-se, na verdade, de uma incumbência árdua, porque endereçada à constituição íntima do discurso teológico, em sua estrutura e articulações fundamentais.

A segunda dificuldade fica por conta do autor escolhido. “Duns Scotus é um autor difícil para qualquer um, talvez – acrescenta É. Gilson com uma pitada de humor – o era até para si mesmo. Severo sem jamais perder o humor, áspero mais que rude, preciso mais que altivo, conduz seus leitores pelos labirintos da dialética aos termos que, ao invés de revesti-los, os despe”1. De fato, o estudo dos textos de Scotus exige, mais que paixão, muita paciência e, sobretudo, persistência... No entanto, ele nunca deixou de suscitar interesse em distintos âmbitos e, sobretudo em nossos dias, parece despertar uma atenção cada vez maior. São poucos, na verdade, os que ainda ousam duvidar da inusitada relevância de suas posições e da perene atualidade de seu pensamento.

Nossa exposição obedecerá quanto segue: após algumas considerações introdutórias acerca da metodologia de Scotus (I), abordaremos a questão da necessidade da revelação e das razões a favor de sua credibilidade (II); em seguida, analisaremos: as discussões acerca do objeto da teologia (III), a pergunta pela cientificidade da mesma (IV), a índole prática do saber teológico (V); ao final, recolheremos os principais resultados alcançados ao longo do ensaio (VI).

* Professor de Teologia Sistemática do ITF, Instituto Teológico Franciscano de Petrópolis, RJ.

1 É. Gilson, Jean Duns Scot. Introduction à ses positions fondamentales, Vrin, Paris 1952. Cf. ainda o que escreve L. Sileo na Apresentação da obra publicada sob seus cuidados: Via scoti. Methologica ad mentem Joannis Duns Scoti. Atti del Congresso Scotistico Intenazionale, Roma 9-11 marzo 1993, Vol. I, Roma 1995, p. IX: “Ler e estudar Scotus hoje não é muito menos fácil do que ontem. É, porém, sem dúvida uma ‘chance’ atraente. O ritmo veloz de sua página, o ir ao encalço de seus raciocínios que evoluem mediante silogismos, a inapreensibilidade da tese última de seus pensamentos [...] não dão trégua. Chegam a desencorajar. Sente-se como que preso pelo forte desejo de pausas, de narrações planas, recompensantes, como acontece lendo um Boaventura ou um Tomás de Aquino. Nada de tudo isso”.

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I

O Prólogo da Ordinatio revela um pressuposto escotiano de base, que praticamente o coloca, a pleno título, na aurora da Modernidade: seria mera presunção querer abordar de uma só vez os conteúdos próprios de uma disciplina e as questões relativas a seu método de pesquisa. Daí a razão de, no Prólogo precisamente, Scotus tratar as questões especificamente relacionadas com o método teológico. E o faz, adotando um percurso rigoroso e fecundo: partindo de uma análise minuciosa e rigorosa dos termos, ele busca atingir seu real significado e, mediante distinções sutis, indaga acerca da peculiaridade da teologia cristã.

Quanto à análise lingüística dos termos, Scotus se interessa de modo particular pela valência semântica dos mesmos. Com rigor e minúcia, analisa termos como: ratio, natura, opinio, scientia, argumentum, demonstratio... Todavia, cumpre salientar uma outra particularidade do método escotiano: esta semantização se efetiva no âmbito de uma fundamental bipolaridade, expressa numa série de pares de termos recíprocos: ratio-fides; naturale-supernaturale; opinio-argumentum; sapientia-scientia; persuasio-demonstratio; via-patria; viator-beatus; philosophi-theologi; pro statu isto-ex natura potentiae; ordinate-absolute; potentia-omnipotentia; finitas-infinitas2.

No que se refere à discussão acerca dos aspectos mais especificamente epistemológicos, o Doutor sutil põe questões de extrema relevância para o pensar teológico de seu tempo e que ainda hoje gozam de uma singular atualidade. Ele se pergunta, por exemplo, pelo estatuto epistemológico da teologia na sua intrínseca relação com as demais disciplinas. Em traços firmes e claros, salienta a importância de se partir da Revelação, lugar por excelência da teologia. Indaga acerca do objeto próprio da teologia e do âmbito de aplicabilidade de seus conhecimentos específicos. Não se furta ao debate em torno à questão, que há mais de um século ocupava o centro das atenções dos tratados escolásticos, ut theologia sit scientia. E o faz em meio a um confronto serrado com a concepção aristotélica de ciência bastante em voga nos círculos universitários de então.

O confronto acirrado com o pensamento de Aristóteles, nota característica da epistemologia escotiana, se revela particularmente condicionado pela condenação do bispo de Paris, É. Tempier, de 7 de março de 1277. Trata-se de um marco histórico referencial no que diz respeito às discussões acerca da epistemologia teológica naqueles idos. Com este Sillabus, o prelado parisiense submeteu nada menos que 219 proposições extraídas dos textos da Metafísica e da Física de Aristóteles e de seus intérpretes e comentadores árabes e latinos ao crivo da ortodoxia cristã3. O objetivo deste documento, cujo influxo se fez sentir muito além

2 A. Ghisalberti, “Metodologia del sapere teologico nel Prologo alla ‘Ordinatio’ di Giovanni Duns Scoto”, in Sileo (a cura di), Via scoti, pp. 276-277.

3 Para uma visão de conjunto das 219 proposições e para a análise de cada uma delas: cf. R. Hissette, Enquête sur les 219 articles condamnés à Paris le 7 mars 1277, Vander-Oyez, Louvain-Paris, Publ.

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do âmbito específico da Universidade de Paris, era rejeitar toda e qualquer afirmação que pudesse comprometer a onipotência de Deus. Deste modo, estas condenações oficiais salientaram a urgência de que alguns conceitos comumente usados em teologia fossem mais bem definidos.

Uma das maiores conseqüências desta condenação diz respeito justamente à maneira de se compreender a onipotência divina. De simples atributo divino que se refletiria na maravilhosa harmonia das criaturas, a onipotência divina passava a ser compreendida agora como aquela faculdade divina que produz, sem a presença ou a anuência de qualquer mediador, todo o produzível. Precisamente esta concepção de onipotência divina, em seu específico e intrínseco caráter de não demonstrabilidade racional, será defendida reiteradas vezes por Scotus. Ela se encontra intimamente ligada a duas teses escotianas: a natureza exclusivamente divina da theologia in se; e a infinitas como atributo peculiar da essência divina. Ambas de uma decisiva incidência tanto para a teologia quanto para a ética4.

O prólogo da Ordinatio possui algumas particularidades reveladoras da singularidade da impostação teológica de Scotus. Por ocasião do Congreso Escotístico Internacional de Oxford-Edimburg realizado em 1966, F. van Steenberghen se perguntava: “Em que medida Scotus é um espírito criativo, um pensador original irredutível às suas fontes? Em que medida depende, ao contrário, de suas fontes e qual é exatamente o débito dele para com as mesmas? [...] Um terço de século separa a morte de Tomás de Aquino e de Boaventura (1274) da de João Duns Scotus (1308). Este breve período é talvez o mais atraente da Idade Média para a história do pensamento, entre outros motivos porque este encerra a solução de um enigma à primeira vista desconcertante: mediante qual evolução doutrinal se passou das grandes sínteses elaboradas pelo Doutor Seráfico e pelo Doutor Angélico, à síntese, tão profundamente diversa de um e de outro, construída em alguns anos apenas pelo Doutor Sutil?”5. O autor não esconde sua perplexidade diante do fato de que um herdeiro do pensamento franciscano, permeado de influxos agostinianos, pudesse dar tanta importância a Universitaires 1977; Idem, “Etienne Tempier et les menaces contre l’étique chrétienne”, Bullettin de Philosophie Médiévale 21 (1979) 68-72; Idem, “Etienne Tempier et ses condamnations”, Recherches de Théologie Ancienne et Médiévale 47 (1980) 231-270; Idem, “Note sur la réaction ‘antimoderniste’ d’Etienne Tempier”, Bullettin de Philosophie Médiévale 22 (1980) 88-97. No tocante à influência e ao significado histórico do Silabo de Tempier: cf. L. Bianchi, Il vescovo e i filosofi. La condanna parigina del 1277 e l’evoluzione dell’aristotelismo scolastico, Lubrina, Bergamo 1990; L.J. Bataillon, “La crisi dell’università di Parigi alla luce dei sermoni universitari”, L. Bianchi – E. Randi, Filosofi e teologi. La ricerca e l’insegnamento nell’universitá Medievale, Lubrina, Bergamo 1989, pp. 193-208. No que concerne a Scotus e ao escotismo: cf. C. Balic, “Il decreto del 7 marzo 1277 del vescovo di Parigi e l’origine dello scotismo”, Tommaso d’Aquino nel settimo centenario. Atti del Congresso Internazionale (Roma-Napoli, 17/24 aprile 1974), Vol. II, Ed. Domenicane, Napoli 1976, pp. 279-285.

4 Cf. A. Ghisalberti, “Creatore e creatura in Giovanni Duns Scoto e Guglielmo di Ockham”, AA. VV., La creazione e l’uomo. Aprocci filosofici per la teologia, Ed. Messaggero, Padova 1992, pp. 95-110.

5 F. van Steenberghen, “La philosophie à la veille de l’entrée en scène de Jean Duns Scot”, in De doctrina J. Duns Scoti, I, Atti del Congresso Scotistico Intenazionale, Roma 1968, p. 65.

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Aristóteles e, sobretudo, na versão oferecida por Avicena, quando era a versão de Averróis a dominar o aristotelismo do século XIII. E é ainda o mesmo autor a salientar a peculiaridade da configuração cultural que foi se constituindo na segunda metade do século XIII: importância crescente do aristotelismo, influxos neoplatônicos e agostinianos e as condenações de Paris e de Oxford, em março de 1277. Ao final, conclui van Steenberghen: “É nesta atmosfera que o jovem franciscano João Duns Scotus deu seus primeiros passos em Filosofia e em Teologia. É nesta atmosfera que seu pensamento se formou e que ele fez suas opções fundamentais”6.

Naquele mesmo Congresso, E. Bettoni observava que

Duns Scotus escolheu a estrada mais difícil e mais generosa: aquela de tentar uma mediação entre as duas correntes antagonistas através de uma substanciosa e severa revisão crítica das argumentações elaboradas por uns e por outros como sustentação das respectivas teses. [...] Pensador robusto e de visão ampla, Scotus se propôs conscientemente relançar o pensamento cristão, desencalhando-o “das dificuldades” nas quais “tinha se encalhado” por aquela contraposição excessivamente rígida entre agostinismo e aristotelismo moderado de São Tomás na qual se dispersaram tantas energias nos últimos decênios do século XIII7.

Existiam, na verdade, três distintos modelos de razão que estabeleciam entre si um acirrado conflito hermenêutico: o modelo aristotélico-averroísta dos Mestres das Artes, o modelo aristotélico-tomista e o modelo boaventuriano da “razão cristã”, ambos defendidos pelos Mestres de Teologia. Em alternativa a estes três “modelos de razão”, Scotus teria proposto um quarto: o modelo “pro statu isto”8.

II

Na primeira questão do Prólogo, Scotus indaga acerca da necessidade, para o intelecto humano, na atual condição, de ser sustentado por uma doutrina revelada sobrenaturalmente. Trata-se da quaestio de methodo propriamente dita e, por isso mesmo, se encontra intimamente relacionada com as cinco partes que compõem o inteiro Prólogo: “Se é necessário ao homem, no presente estado, que alguma doutrina especial seja inspirada de modo sobrenatural, a qual, a saber, não fosse possível atingir pela luz natural do intelecto” (pars 1, q. unica, n. 1)9.

6 van Steenberghen, “La philosophie à la veille de l’entrée en scène de Jean Duns Scot”, p. 74.

7 E. Bettoni, “Duns Scoto nella Scolastica del secolo XIII”, in De doctrina J. Duns Scoti, I, Atti del Congresso Scotistico Intenazionale, Roma 1968, pp. 102.106.

8 Cf. O. Todisco, “Duns Scoto e o pluralismo epistemológico”, in L. Sileo (a cura di), Via Scoti, pp. 121-138.

9 “Utrum homini pro statu isto sit necessarium aliquam doctrinam supernaturaliter inspirari, ad quam videlicet non posset attingere lumine naturali intellectus”. [Os textos de Scotus, em Português, incorporados no corpo do estudo, são extraídos de J. Duns Scotus, Prólogo da Ordinatio (tradução, introdução e notas de Roberto Hofmeister Pich), Coleção Pensamento Franciscano V, EDIPUCRS/Editora Universitária São Francisco, Porto Alegre/Bragança Paulista 2003. Os textos originais, em Latim, citados nas notas de rodapé,

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A própria formulação da questão, com base nos termos específicos empregados, é índice da exigência de uma maior clareza com respeito, de um lado, às formas de conhecimento aplicadas pela teologia e, de outro, aos níveis do discurso teológico. As formas de conhecimento dizem respeito ao âmbito das verdades doutrinais que são passíveis de serem conhecidas e explicadas. Este âmbito pode ser alcançado com a luz da razão ou mediante a revelação sobrenatural.

Com respeito aos níveis do discurso teológico, Scotus propõe uma primeira distinção, apta a captar o problema na sua distinta evolução, entre a condição atual do ser humano (pro statu isto) o estado do ser humano liberto ou em vias de se libertar dos vínculos que atualmente condicionam sua inteligência e sua vontade. O pro statu isto, neste caso, resulta decisivo com respeito ao nível do saber e, por esta razão, constitui-se numa instância de método. À diferença de Boaventura e de Tomás, Scotus não atribui ao pecado original a explicação única do fato de que o ser humano não consiga realizar todas as virtualidades naturais de seu intelecto nem satisfazer seu próprio desejo. Além da paena peccati originalis também a naturalis concordia potentiarum animae in operando10 concorre para a existência deste status. A natureza humana não se submete, na sua opinião, a uma leitura unívoca e niveladora como aquela que insiste em interpretar tudo à luz do pecado original.

O pro statu isto se torna importante chave de leitura da presente questão, por salientar, de forma contundente, a historicidade da condição humana. Ele é índice de que a razão humana não é como era, nem será jamais como é. A condição presente é precária tanto em relação à condição originária quanto em referimento à final. A razão é autônoma sim, mas não auto-suficiente. A razão pro statu isto não exprime, a rigor, todo o seu potencial cognoscitivo. Não faz parte da razão “ex natura potentiae”. Para Scotus, o ser humano não deve ser posto no centro de uma hierarquia natural: abaixo das potências angélicas e acima dos animais por ser capaz de transcender o sensível. O ser humano, ao contrário, encontra seu verdadeiro lugar ao situar-se no centro da história da salvação, no seio da qual ele se descobre titular e co-responsável. Ao invés, portanto, de ser considerado segundo os termos de natureza e segundo a lógica da necessidade, o ser humano deve ser concebido à luz do binômio bíblico da queda e da promessa de resgate. Também por esta razão, o ser humano se sente incapaz de realizar plenamente a vocação à qual é destinado.

Scotus pondera que a descrição da atividade da razão feita por Aristóteles ressente de um limite: precisamente o de ter confundido o fato com o direito, o ser com o dever ser e, conseqüentemente, o ter reivindicado a autonomia da razão e a índole abstracionista do processo de conhecimento. Por nada conhecer acerca do pecado original (“nihil scivit de peccato illo”), o Estagirita interpreta uma situação histórica em termos naturalistas e, portanto, segundo a lógica da foram extraídos de I. Duns Scoti, Opera Omnia. I. Ordinatio. Prologus (studio et cura Commissionis scotisticae ad fidem codicum edita, praeside P. Carolo Balic), Civitas Vaticana 1950.]

10 Cf. Ordinatio I, d. 3, q. 3, n. 187.

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necessidade. Ao admitir que o ser humano não dispõe de outra via que aquela abstrativa, Scotus salienta que esta é expressão da nossa historicidade. O processo abstrativo resulta infinitamente distante das efetivas exigências do espírito humano (ex natura potentiae).

Scotus conclui, portanto, afirmando que a razão filosófica é parcial e provisória com respeito às efetivas aspirações do ser humano nas atuais condições históricas. É esta a principal razão pela qual, consciente das implicações gnoseológicas, Scotus abre o Prólogo da Ordinatio sustentando a necessidade, nas atuais condições, “aliquam doctrinam supernaturaliter inspirari”. A esse respeito, escreve O. Todisco:

Com este modelo de razão pro statu isto, Scotus provoca uma autêntica crise epistemológica, analisando com rigor a racionalidade filosófica em relação ao efetivo poder da razão e elaborando uma diversa racionalidade teológica. A lógica da “ratio pro statu isto” não é a “logica fidei”, a qual é situada historicamente e colocada em um cenário temático inédito e original. A razão é autônoma, com estratégias argumentativas próprias, em grau de transcender o horizonte da experiência sensível, mas ao mesmo tempo estruturalmente incapaz tanto de contradizer quanto de fundar as superiores verdades de fé11.

Scotus afirma a radical alteridade entre os espaços do saber racional e do saber teológico. Esta alteridade é fundada na mesma descontinuidade que existe entre abstrato e concreto, natural e sobrenatural, graça e natureza. “Concedo que Deus é o fim natural do homem, mas não [um fim] que deve ser naturalmente alcançado, mas sim sobrenaturalmente. E isto prova a razão seguinte, sobre o desejo natural, a qual concedo” (pars 1, q. unica, n. 32)12.

O limite da descrição aristotélica da natureza humana, assumida pelos mestres das Artes, não pode ser diluído ou ignorado. O ônus do pensamento pesa com gravidade sobre o destino do ser humano, sem exprimir, porém, suas originárias e mais genuínas potencialidades. À luz do “status iste”, o ideal aristotélico do “bíos theoretikós” não pode mais ser proposto como ideal da perfeita maturidade humana. O saber racional resulta precário como precária também é a condição na qual os seres humanos se encontram historicamente.

Scotus defende, no fundo, a pluralidade dos saberes cuja autonomia se efetiva na crescente fidelidade de cada saber a seus próprios princípios (“iuxta propria principia”). Em nome da afirmação da autonomia relativa dos saberes, ele condena toda espécie de intromissão de um saber no âmbito do outro. De um lado, ele rejeita a interpretação de Aristóteles feita pelos Mestres das Artes por representar uma mistura de filosofia grega e cosmovisão religiosa muçulmana. Pois, devido à interpretação religiosa de Aristóteles feita por seus intérpretes árabes (Averróis e Avicena), o pensamento autêntico do Estagirita se encontra

11 Todisco, “Duns Scoto e il pluralismo epistemologico”, 126.

12 “Concedo Deum esse finem naturalem hominis, sed non naturaliter adipiscendum sed supernaturaliter. Et hoc probat ratio sequens de desiderio naturali, quam concedo”.

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numa situação de verdadeiro comprometimento. De outro lado, Scotus também não aceita a utilização que alguns teólogos faziam de doutrinas filosóficas para fundamentar suas posições teológicas. É o caso, por exemplo, do procedimento de Henrique de Gand, teólogo de tendência agostiniana, no tocante à questão acerca da necessidade da Revelação. Pois, em tal caso, ao utilizarem doutrinas filosóficas que dão margem à rejeição das argumentações teológicas, os teólogos acabam dando razão aos filósofos. Esta questão de tamanha importância com respeito à relativa autonomia das instâncias metodológicas, não escapa à análise do Doutor sutil13.

Em nome da auto-suficiência da razão, os Mestres das Artes rejeitavam a teologia enquanto ciência. Esta pretensão avançada por eles se fundamenta na afirmação de que o objeto do intelecto humano é o ente enquanto ente. “O primeiro objeto natural do nosso intelecto é o ente enquanto ente; logo, o nosso intelecto pode naturalmente ter um ato acerca de todo e qualquer ente” (pars 1, q. unica, n. 1)14.

Trata-se da questão da univocidade do ente ou ainda da espessura da metafísica. Scotus não concede à metafísica o status de saber entre os demais saberes nem de um super-saber que antecipe ou contenha, ainda que virtualmente, todos os outros saberes. Enquanto lugar de inteligibilidade do real, a metafísica é um saber pressuposto a todas as ciências, uma vez que, na opinião de Scotus, os termos específicos das ciências não são plenamente disponíveis ao conhecimento humano, nem seus princípios completamente entendidos sem a metafísica. A rigor, a metafísica não se ocupa nem do ente criado, nem do ente in-criado. E isto justamente por ser lugar das condições transcendentais dos entes.

Scotus oferece alguns reparos com relação à interpretação que Averróis tinha oferecido às obras de Aristóteles e que tinha inspirado as opções filosóficas fundamentais dos Mestres das Artes. Critica de modo contundente o filósofo árabe por ter considerado Deus como objeto da metafísica. Assim fazendo, ele acabou, de um lado, reduzindo a teologia à condição de uma simples fábula e, de outro, tratando a metafísica como um apêndice agregado à física. Nesse contexto, Deus é apresentado como causa primeira, garante e sustentáculo do inteiro edifício do mundo físico. Atribui-se a Deus o fato de ser o princípio e o fim da ordem harmoniosa do universo. Insiste Scotus em afirmar que os mestres das Artes acabaram concebendo Deus como “natura”, cuja ação, por ser “natural”, obedece ao ritmo da própria necessidade, justamente por não terem concebido como objeto próprio da teologia o ser enquanto infinito. Por esta razão, o teólogo deverá sempre recordar ao filósofo que ele se confunde seja quando alarga seu objeto às

13 Cf. L. Iammarrone, Giovanni Duns Scoto metafisico e teólogo. Le tematiche fondamentali della sua Filosofia e Teologia, Miscellanea Francescana, Roma 1999, pp. 5-20; J. Andonegui Gurruchaga, Teologia como ciência práctica em Escoto (Pars Dissertationis), Ed. Antonianum, Roma 1985, pp. 21ss.

14 “Primum obiectum intellectus nostri est ens in quantum ens; ergo intellectus noster potest naturaliter habere actum circa quodcumque ens”.

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dimensões do ser infinito seja quando o reduz às dimensões do primeiro motor15. É sobre esta base que o doutor sutil procede, então, à des-fisicização da metafísica mediante a des-teologização da metafísica. E concebe esta dúplice operação como pressuposto imprescindível à des-metafisização da teologia.

É verdade que a razão é ordenada à totalidade do real, mas é também verdade que, na atual condição (pro statu isto), “naturaliter et ex causis naturalibus” não pode colhê-lo na sua densidade ontológica. Ela revela, ao contrário, uma congênita aspiração a ser transformada e, portanto, inserida numa condição que transcende aquela atual sem, no entanto, se contrapor nem se sobrepor a ela. “O homem naturalmente deseja aquele fim que tu chamas de sobrenatural; portanto, ele está naturalmente ordenado àquele fim” (pars 1, q. unica, n. 23)16. A natureza mesma do ser humano revela uma interpelação de fundo na direção de um ulterior cumprimento não alcançável naturalmente. A resposta a este interrogativo último torna-se objeto de discussão criando as condições para a singular relevância da controvérsia entre filósofos e teólogos (controversia inter philosophos et theologos), formulada nos seguintes termos:

É vista nesta questão, a controvérsia entre filósofos e teólogos. Os filósofos defendem a perfeição da natureza e negam a perfeição sobrenatural; os teólogos, entretanto, reconhecem a deficiência da natureza, a necessidade da graça e a perfeição sobrenatural (pars 1, q. unica, n. 5)17.

A controversia inter philosophos et theologos, nota característica do Prólogo da Ordinatio, constitui o diferencial da abordagem escotiana. Ela é índice da fidelidade de Scotus a seu tempo e, conseqüentemente, responsável em grande parte pela originalidade do pensamento do ilustre franciscano escocês. A abordagem desta controvérsia, como nota É. Gilson, é de extrema importância e, por isso mesmo, deve ser corretamente interpretada18. Fala-se explicitamente de controvérsia entre filósofos e teólogos e não numa oposição entre filosofia e teologia. O que está em jogo, portanto, não é nem a contraposição entre dois princípios incompatíveis nem o desacordo entre duas posições irredutíveis. Trata-se de um debate entre dois grupos de professores: os Mestres das Artes e os Mestres de Teologia.

O que Scotus faz é refletir sobre as incidências no âmbito da epistemologia teológica de um conflito histórico que se estava efetuando naqueles idos. Os

15 É. Gilson, “Les maîtresses positions de Duns Scot d’aprés le Prologue de l’Ordinatio”, Antonianum 28 (1953) 15-16.

16 “Homo naturaliter appetite finem illum quem dicis supernaturalem, igitur ad illum finem naturaliter ordinatur”.

17 “In ista quaestione, videtur controversia inter philosophos et theologos. Et tenent philosophi perfectionem naturae, et negant perfectionem supernaturalem; theologi vero cognoscunt defectum naturae et necessitatem gratiae et perfectionem supernaturalem”.

18 Cf. Gilson, “Les maîtresses positions de Duns Scot d’aprés le Prologue de l’Ordinatio”, 7-10.

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Mestres das Artes eram os professores daquelas ciências consideradas propedêuticas à teologia. Eles se dedicavam à tarefa de preparar bem os estudantes que eram os eventuais candidatos ao estudo da teologia. Eram mestres na arte da Gramática (ler e interpretar bem), da Retórica (falar bem) e da Dialética (convencer bem). Ler e interpretar bem, falar bem e saber persuadir eram requisitos fundamentais para o estudo da teologia, enquanto saber que, sobretudo, preparava profissionais da pregação cristã.

Com o passar do tempo, estes profissionais e mestres das Artes foram se organizando e começaram a reivindicar a própria autonomia. Não queriam mais se sujeitar à condição de mestres de um saber meramente instrumental à teologia, considerada regina scientiarum. Para tanto, muito contribuiu o pensamento de Aristóteles, que foi se tornando cada vez mais acessível através, sobretudo, dos comentários de Averróis e de Avicena. Os textos do Estagirita ofereciam a estes mestres um excelente instrumental apto a compreender todo o scibile na sua complexidade. Deste modo, em nome da autonomia do saber puramente racional, a tradição cristã vai sendo paulatinamente abandonada19.

Na condução do debate entre os dois grupos de professores, Scotus testemunha uma admirável honestidade intelectual. Em primeiro lugar, ele se preocupa em não atribuir aos filósofos, seus interlocutores, nada além do que eles tivessem formalmente ensinado. Em segundo lugar, o Doutor sutil se posiciona no interior do debate como teólogo e, desde o início, argumenta como teólogo, vale dizer, a partir das premissas de fé: “Donde estas razões aqui formuladas contra ele [Aristóteles] têm uma outra premissa, crida ou provada a partir do que é crido; por isso mesmo, não são senão persuasões teológicas, a partir do que é crido para o que é crido” (pars 1, q. unica, n. 12)20. Não que ele se oponha ao conhecimento racional. Ao contrário, ele até utiliza a técnica dos filósofos, colocando as demonstrações da razão a serviço das persuasões da fé. E isto porque firmemente convencido de que o teólogo, além das fontes do filósofo, dispõe ainda da certeza proveniente da fé.

Que a controvérsia não seja um conflito necessário entre filosofia e teologia, reforça ainda mais a urgência de se indagar acerca do porquê da mesma. Como autêntico teólogo, mais do que pinçar possíveis erros de seus interlocutores, o interesse de Scotus é, ao contrário, desentranhar e explicitar o princípio sujacente à posição defendida por eles. Na sua opinião, eles confundiram a natureza humana pro statu isto, tomando-a pura e simplesmente por seu estado natural. A crítica que Scotus move aos filósofos, seus interlocutores, é a de terem sido

19 No tocante à evolução do pensamento ocidental entre fins do século XII e princípio do século XIII, seja-nos permitido remeter ao que escrevemos em “Um novo método em teologia: a ‘Escola Franciscana’ ”, in S. Costa – A.C.L.F. Silva – L.R. Silva, A Tradição Monástica e o Franciscanismo. Atas do Ciclo realizado no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, entre os dias 7 e 11 de outubro de 2002, Rio de Janeiro 2003, pp. 39-48; aqui 40-42.

20 “Unde istae rationes hic factae contra impsum alteram praemissam habent creditam vel probatam ex credito; ideo non sunt nisi persuasiones theologicae, ex creditis ad creditum”.

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vítimas de um dúplice equívoco: não terem tomado consciência que o intelecto humano não estava mais na sua condição originária e que a graça pode elevar o ser humano a uma perfeição ainda maior. Ambas as teses estão intimamente ligadas por serem, na verdade, reciprocamente complementares.

Ao sustentar a tese do pro statu isto, Scotus não pretende diminuir a natureza humana, mas, ao contrário, entende restituí-la na sua grandeza maior, que é a de ser o que ela é em si, não o que o pecado e demais limites fizeram dela. Para que o ser humano seja capaz da perfeição sobrenatural prometida por Deus, faz-se necessário, na opinião de Scotus, que sua natureza seja outra, em todo caso, mais nobre que aquela que lhe é atribuída pelos filósofos. Adverte-se uma confirmação mútua entre a doutrina acerca da finalidade última do ser humano e a doutrina do pecado original. Neste contexto, o doutor sutil insere no seu discurso o conceito de sobrenatural. Destinando o ser humano a um fim sobrenatural, Deus deve tê-lo criado naturalmente capaz deste mesmo fim.

Diminuir a natureza é, paradoxalmente falando, considerá-la à maneira dos filósofos: tomar sua condição presente por sua natureza mais própria, porque originária, atribuindo ao intelecto a apreensão única e exclusiva dos seres sensíveis mediante o processo de abstração. São os teólogos, na verdade, a exaltar ao máximo a natureza humana na medida em que descobrem a perfeição da natureza intelectual que, em meio às imperfeições próprias do seu estado atual, é capaz de uma finalidade sobrenatural, concebida como oferta gratuita de Deus.

A posição de Scotus de que a aspiração do ser humano a um fim sobrenatural é estabelecida naturalmente necessita de uma maior elucidação para que se evite todo e qualquer equívoco na sua interpretação. Este “naturaliter appetere” um fim sobrenatural, de um lado, está ligado à harmonização entre os dois níveis. Pois sobrenatural e natural não se contrapõem nem se anulam. Também não se comportam entre si como instâncias paralelas nem sobrepostas. Na verdade, enquanto intimamente inter-relacionados, sobrenatural e natural se potenciam reciprocamente. De outro lado, o “appetitus naturalis” não compromete, nem prejudica, a gratuidade da livre manifestação do supernaturalis.

Aqui, Scotus opera uma rigorosa análise semântica dos termos, com o objetivo de precisar bem o caráter sobrenatural da Revelação, mediante uma sutil distinção. Em primeiro lugar, a Revelação é sobrenatural porque se refere a um agente sobrenatural que transmite uma série de conteúdos, cujo conhecimento resulta indispensável ao ser humano, e que não lhe seriam acessíveis mediante outras vias que não a da Revelação sobrenatural. Não se trata, neste caso, de uma violência infligida à natureza humana pelo sobrenatural. Pois este não lhe comunica algo de exterior ou de acrescentado, como uma espécie de apêndice. Não se está diante de um desnível de inclinação formal, porque “o intelecto possível é naturalmente aperfeiçoado por todo e qualquer conhecimento e está

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naturalmente inclinado a todo e qualquer conhecimento” (pars 1, q. unica, n. 60)21. O desnível existente se refere, outrossim, à natureza do intelecto que produz o conhecimento revelado no sujeito que recebe. Este conhecimento revelado é sobrenatural enquanto “é gerado por algum agente que não é apto a mover naturalmente o intelecto possível a tal conhecimento” (pars 1, q. unica, n. 60)22.

O caráter sobrenatural da Revelação se dá, ainda, com respeito aos conteúdos relativos ao objeto conhecido. Scotus traz como exemplo a proposição “Deus est trinus”. Proveniente da Revelação, esta proposição se refere à essência divina tomada na sua máxima extensão e na sua irredutível peculiaridade. E, enquanto tal, não pode ser conhecida pelo intelecto humano. Por isso, o Revelador substitui a essência divina pela enunciação (complexum) que resulta, portanto, num conhecimento imperfeito dessa mesma essência, objeto da Revelação. Por esta razão, a enunciação é um conhecimento obscuro e parcial.

Emerge, deste modo, o caráter intrinsecamente processual do conhecimento humano acerca das verdades sobrenaturais. A constatação de que tais verdades são inesgotáveis se deve, além da vontade do Revelador, ao modo próprio de conhecer do ser humano caracterizado pela incapacidade sua de possuir um conhecimento evidente das verdades reveladas. Em tal caso, lhe é consentido de poder dar seu assentimento ao agente sobrenatural.

Além do mais, esta sutil distinção entre natural e sobrenatural assume uma particular eficácia operativa no âmbito da epistemologia teológica. O caráter sobrenatural da Revelação não é concebido pelo Doutor sutil como um evento que faça violência à natureza. Ao contrário, ele a eleva à sua perfeição máxima, na medida em que possibilita que a natureza se autotranscenda. Violência à natureza seria confinar a potência intelectiva humana dentro dos angustos limites de um conhecimento direcionado unicamente às essências abstratas e aos entes materiais. Ao defender a capacidade do intelecto de ser movido a conhecer a totalidade dos entes, do “ens inquantum ens”, Scotus potencia ao máximo as virtualidades intrínsecas ao intelecto humano.

O intelecto humano não se sente constrangido a renunciar às suas prerrogativas naturais, uma vez que a cooperação do agente sobrenatural não se dá mediante uma intervenção violenta do Revelador. Scotus responde à objeção de uma eventual intervenção exterior por parte do Revelador, resgatando a doutrina da “potentia oboedientialis”. Ele a concebe como aquela intrínseca disposição a tornar-se o que Deus eventualmente poderá querer que esta se torne. Trata-se, na verdade, de uma disposição passiva que abre espaço e, neste sentido, torna possível uma espécie de ampliação das faculdades cognoscitivas humanas até à

21 “intellectus possibilis quacumque cognitione naturaliter perficitur et ad quamcumque cognitionem naturaliter inclinatur”.

22 “generator ab aliquo agente quod non est natum movere intellectum possibilem ad talem congnitionem naturaliter”.

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visão beatífica. E tudo isso é experimentado como expressão da incomensurável gratuidade do dom de Deus.

Não é, portanto, inconveniente que a potência seja naturalmente ordenada a um objeto que não pode naturalmente atingir a partir de causas naturais, assim como [não é inconveniente que] toda e qualquer [potência] a partir de si somente está ordenada [a um ato] e, contudo, sozinha não pode atingi-lo (pars 1, q. unica, n. 92)23.

Acrescentemos, ainda, uma ulterior precisação tipicamente escotiana. O conhecimento especulativo do metafísico verte sobre a totalidade da realidade enquanto esta é passível de ser conhecida (scibile). Pois, trata-se, no fundo, de um conhecimento abstrativo que atinge o ser apenas numa acepção generalíssima. A razão pode, no máximo, alcançar um “conceito confuso” de Deus como ser supremo. Nunca chegará, porém, a conhecer sua essência. O ser divino, na sua peculiaridade pessoal, permanece objeto específico da teologia24. Pois, na verdade, a essência mesma de Deus só poderá ser alcançada e expressa na fé, na qual Deus mesmo se anuncia em liberdade.

Na segunda parte do Prólogo, Scotus indaga acerca da suficiência da Sagrada Escritura no tocante ao labor teológico: “Pergunta-se se o conhecimento sobrenatural necessário ao peregrino é suficientemente transmitido na Escritura sagrada” (pars 2, q. unica, n. 95)25. Em seguida, ele propõe dez argumentos em prol da credibilidade da Revelação. Estas motivações por ele aduzidas assumem um visível caráter apologético e, por esta razão, devem ser concebidos numa dúplice vertente: confutação dos erros e convencimento à fé. Os dez argumentos aduzidos vertem acerca de: prenunciação profética, concordância das Escrituras, autoridade dos escritores, diligência dos recebedores, racionalidade dos conteúdos, irracionalidade dos erros, estabilidade da Igreja, limpidez dos milagres, testemunhos dos não-fiéis e eficácia das promessas.

O que salta aos olhos ao longo desta argumentação escotiana acerca da credibilidade da proposta de salvação contida nas Escrituras sagradas é sua grande sensibilidade no tocante à questão hermenêutica26. Isto naturalmente, segundo a consciência possível e os critérios que a exegese bíblica da época lhe consentiam. Todavia, em Scotus transparece já a consciência da

23 “Non est igitur inconveniens potentiam, esse naturaliter ordinatam ad obiectum ad quod on potest naturaliter ex causis naturalibus attingere, sicut quaelibet ex se sola ordinatur et tamen non potest sola attingere”.

24 Cf. Ordinatio, Prologus, pars 1, q. unica, nn. 79-82. 25 "Quaeritur utrum cognitio supernaturalis necessaria viatori sit sufficienter tradita in sacra Scriptura".

26 Cf. A. Ghisalberti, “Giovanni Duns Scoto e la scuola scotista”, in G. D’Onofrio (direzione di), Storia della Teologia nel Medioevo. III. La teologia delle scuole, Piemme, Casale Monferrato 1996, p. 340-344.

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imprescindibilidade da interpretação dos textos sacros no que concerne à elaboração do discurso teológico.

III

Do ponto de vista metodológico, existe uma relação estreita entre a discussão acerca do objeto da teologia e a questão da cientificidade de seu saber. O que torna um saber rigorosamente cientifico é a proporcionalidade entre o objeto a ser indagado e o sujeito que conhece. A ciência se dá, portanto, quando são satisfeitas as exigências de clareza e de exaustividade provenientes do intelecto humano. A partir deste pressuposto, o Doutor sutil opera uma ulterior distinção entre theologia in se e theologia nostra. O objeto próprio da teologia seria, rigorosamente falando, a essência divina propriamente dita, vale dizer, a “deitas sub ratione deitatis” e, somente neste caso, constituir-se-ia em objeto proporcionado ao intelecto divino. A perfeita mediação entre sujeito que conhece e objeto a ser conhecido só será, portanto, alcançada através do conhecimento do intelecto divino, único lugar onde se dá a theologia in se. Conseqüentemente, é deste conhecimento que está em Deus (theologia in se) que procede a nossa teologia (theologia nostra).

Scotus é claro ao afirmar que objeto da teologia divina é Deus. Quanto a nós, não podemos possuir um conhecimento teológico igual ao de Deus. Por isso mesmo, devemos nos satisfazer com a nossa teologia: o conhecimento que nossa inteligência pode alcançar acerca de Deus (“secundum capacitatem intellectus nostri”)27. Ele propõe um exemplo que ajuda a compreender esta distinção. Para alguém que conheça seus princípios, a geometria é uma ciência. Para um outro que não os conheça, este saber não será ciência, mas uma fides, um fiar-se do saber, da ciência de um outro acerca da geometria. Deste modo, um fiar-se deste outro que lhe revela, permite-lhe conhecer a geometria. Processo idêntico se verifica no ser humano viator, que conhece o saber teológico acerca de Deus, fiando-se daquilo que o próprio Deus revela de si. Está instituído assim o primado da Revelação em âmbito teológico.

A nossa teologia também tem por objeto primeiro Deus. No entanto, como para nós Ele não é uma realidade evidente e imediada (“sed quia illud non est nobis evidens”), também não pode ser imediatamente conhecido por nós (“immo non est nobis notum”). Recorda Scotus que somente Deus é conhecido por si mesmo de maneira totalmente natural e necessária. Objeto primeiro da teologia nossa é, segundo Scotus, o Ens infinitum. Este é o conceito mais perfeito que, mediante nossa capacidade intelectiva, podemos alcançar em relação ao objeto primeiro da teologia. “Este primeiro [objeto] é o ente infinito, porque este é o conceito mais perfeito que podemos ter daquele que é em si o primeiro sujeito” (pars 3, q. 3, n. 168)28.

27 Cf. Ordinatio, Prologus, pars 3, q. 3, n. 168.

28 “Illud primum est Ens infinitum, quia iste est conceptus quem possumus habere de illo quod est in

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Também com relação à inclusão de verdades contingentes na nossa teologia, Scotus assevera que o objeto primeiro da theologia de contingentibus é a essência divina. Para Deus e para os bem-aventurados a essência divina, enquanto objeto primeiro da teologia divina, é uma visão imediata. Neste sentido, ele discorda de Boaventura e também de Roberto Grossateste para os quais Cristo é o “primum subiectum theologiae contingentis”. Scotus é da opinião que, por pressuporem a doutrina trinitária, a pessoa e a obra de Jesus não podem ser objeto primeiro da teologia. O mistério da Trindade santíssima constitui um objeto mais amplo e pressupõe a realidade de Cristo. A nossa teologia não consistirá, em primeiro lugar, num discurso “de Christo”, mas, sobretudo, “de Deo ut communis est tribus personis”29.

Esta distinção entre o sujeito da teologia e seu objeto constitui uma das notas características da epistemologia escotiana. Na teologia divina e na teologia dos bem-aventurados, sujeito e objeto coincidem, mas na nossa teologia, não. E isto porque, na condição “pro statu isto” direcionada à inteligibilidade em geral, falta-nos a intuição da essência divina; conseqüentemente, o objeto da teologia será forçosamente um conceito abstrato que substitua a intuição divina. Trata-se de uma exigência intrínseca ao caráter unívoco da teologia escotiana. Enquanto unívoca, nossa teologia deve se dar o objeto próprio que seja o substituto conceitual, o mais perfeito possível, da intuição da essência divina que nos falta. Duas são as questões derivadas que, segundo Gilson, merecem nossa particular atenção: o lugar da teologia e seu objeto específico30.

Scotus situa a nossa teologia acima da metafísica e abaixo das Escrituras sagradas, da teologia dos bem-aventurados e da teologia divina. Este específico lugar implica em limites, embora estes mesmos limites lhe garantam um objeto próprio e, conseqüentemente, a possibilidade de obter dele um conhecimento positivo. Neste sentido, a teologia de Scotus constitui uma reação à teologia tomista da analogia31.

Scotus põe l’ens infinitum como objeto da nossa teologia, no sentido que tudo nela se refere a ele. Não que a nossa teologia possa se deduzir desta noção. Gilson considera o n. 168 do Prólogo da Ordinatio uma autêntica chave de volta do inteiro edifício teológico construído pelo doutor sutil, atestando quanto segue:

Nada de original, para um teólogo da Idade Média, ensinar que Deus é infinito, mas enquanto atribui à nossa teologia o ens infinitum por objeto, Duns Scotus parece ser um caso único. [...] o mais importante é que o mesmo teólogo que centralizou sua doutrina na noção de ser infinito tenha ao mesmo tempo querido assegurar-nos um conhecimento positivo. De qualquer modo, podemos estar

se primum subiectum”.

29 Cf. Ordinatio, Prologus, pars 3, q. 3, n. 176.

30 Cf. Gilson, “Les maîtresses positions de Duns Scot d’aprés le Prologue de l’Ordinatio”, 11-13.

31 Cf. Gilson, “Les maîtresses positions de Duns Scot d’aprés le Prologue de l’Ordinatio”, 11.

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certos de tirar do eixo a teologia de Duns Scotus, cada vez que, por uma razão qualquer, a organizarmos em torno de outra coisa que não seja o ser que tenha a infinitude por singularidade. Este ser é Deus, mas o é somente na medida em que o modo da infinitude o singulariza32.

Neste sentido, resulta decisivo o seguinte texto de Scotus:

porque, segundo a sua razão própria, parece ser mais atual em si aquilo ao qual mais repugna a comunicabilidade a muitos, para fora; mas, à essência de si mesma repugna a comunicabilidade a muitos, para fora, e a nenhuma propriedade atributiva, a não ser na medida em que é desta essência, ou idêntica a esta essência enquanto infinita (pars 3, q. 3, n. 163)33.

O Deus da revelação é singularizado mediante o modo de infinitude. Só falamos de Deus enquanto infinito. Ele é caracterizado pela infinitude. Buscando determinar exatamente a relação entre a “essentia” e a ”infinitas” divinas, Scotus concebe esta última não propriamente como um atributo do ser infinito, mas como um modo do ser divino. Em Scotus, percebe-se que a essência divina tende a ser absorvida na infinitas, quase como se tivéssemos que dizer não que o ser de Deus é infinito, mas, ao contrário, que Deus é a própria infinitude. “Toda a teologia do mestre – escreve Gilson – sugere que o Deus do qual ele fala é menos um ser infinito do que o infinito do ser. O Prólogo da Ordinatio, que introduz sucessivamente as noções fundamentais, é, portanto, outra coisa que o pórtico deste vasto edifício. Ele não o precede, ele o funda, e é um erro fatal, sob o pretexto de apresentar Duns Scotus sob uma ordem sistemática, de redistribuir as matérias do Prólogo em capítulos ulteriores onde elas estariam mais bem localizadas. Duns Scotus introduziu estas noções no momento e no lugar que convinha a seu desígnio: é verdadeiramente pelo Prólogo da Ordinatio, na ordem mesma em que ele foi composto, que o estudo da teologia do mestre deve começar”34.

Todas estas pontualizações e distinções de Scotus são, na verdade, índice do seu rigor ao abordar estas questões relativas à epistemologia teológica. Scotus conclui, afirmando o singular valor das Escrituras sagradas no processo de constituição da nossa teologia e também da teologia dos bem-aventurados. O fim e o limite delas reside na própria vontade de Deus que se revela e tal revelação se dá mediante as Sagradas Escrituras. “A nossa teologia, portanto, não trata de fato senão destes [conhecíveis] que estão contidos na Escritura e destes que podem ser evocados a partir deles” (pars 3, q. 3, n. 204)35.

32 Gilson, “Les maîtresses positions de Duns Scot d’aprés le Prologue de l’Ordinatio”, 12.

33 “Illud secundum suam rationem propriam videtur esse actualius in se cui magis repugnat communicabilitas ad plura ad extra; sed essentiae de se repugnat communicabilitas ad plura ad extra, et nulli proprietati attributali nisi quatenus est istius essentiae, vel idem isti essentiae in quantum infinitae”.

34 Gilson, “Les maîtresses positions de Duns Scot d’aprés le Prologue de l’Ordinatio”, 13.

35 “Igitur theologia nostra de facto non est nisi de his quae continentur in Scriptura, et de his quae possunt elicit ex eis”.

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IV

Em seguida, Scotus põe a questão da cientificidade da teologia, submetendo-a ao crivo das quatro condições requeridas por Aristóteles nos seus Analíticos Posteriores: que seja um conhecimento certo, sem engano nem dúvida; que se refira a um objeto necessário, não fortuito ou contingente; que seja produzido por uma causa evidente ao nosso intelecto; que seja aplicado ao conhecido mediante silogismo ou mediante discurso silogístico36. No que se refere às três primeiras condições também a teologia poderia ser arrolada entre as demais ciências. Não podemos dizer o mesmo no tocante ao último requisito. Devido ao fato de não se admitir em Deus qualquer variação ou incremento de perfeição no conhecimento é que seria excluída do discurso teológico toda espécie de argumentação silogística que pudesse dar a idéia ou de um progresso no saber ou de uma passagem da potência ao ato no entendimento divino.

Surge, ademais, uma nova dificuldade. Não é dito que todas as verdades contidas na teologia sejam necessárias. Também existem verdades contingentes que estariam incluídas, sobretudo, na theologia nostra uma vez que todos os artigos de fé acerca da encarnação, por exemplo, se referem a dados históricos e, portanto, são contingentes. Mas, as verdades contingentes estão também presentes na teologia dos bem-aventurados, mais especificamente naqueles conhecimentos que se referem às relações divinas ad extra. E como já tivemos ocasião de assinalar, as verdades contingentes contrastam, segundo Aristóteles, com o caráter de necessidade do objeto científico. Estariam assim solapadas as bases que justificam a cientificidade da teologia?

Demonstrando uma vez mais ser possuidor de um raciocínio deveras sutil, Scotus tenta solucionar este impasse mediante uma nova distinção, desta vez no âmbito da theologia nostra, entre theologia necessaria e theologia de contingentibus. Um ser cuja singularidade consiste na própria infinitude não é necessário senão para consigo mesmo; “ad extra” ele é livre. Esta contingência não pertence ao ser enquanto ser, mas ao ser enquanto infinito.

Digo que a teologia não contém somente [verdades] necessárias, mas também contingentes. E isto fica evidente, porque todas as verdades sobre Deus, seja como trino, seja sobre alguma pessoa divina, nas quais ele é comparado para fora, são contingentes, como [os enunciados] que Deus cria, que o Filho se encarnou, e outros semelhantes. Todas as verdades sobre Deus, porém, como trino ou como uma pessoa determinada são [verdades] teológicas, porque são concernentes a nenhuma ciência natural; portanto, as primeiras partes integrais da teologia são duas, a saber, as verdades necessárias e as contingentes (pars 3, q. 3, n. 150).

Scotus recorda que pode se dar um conhecimento sobre um objeto necessário que seja, por sua vez, intrinsecamente contingente e, por isso, será relegado ao

36 “quod sit cognitio certa, absque deceptione et dubitatione: secundo, quod sit de cognito necessario; tertio, quod sit causata a causa evidente intellectui; quarto, quod sit applicata ad cognitum per syllogismum vel discursum syllogisticum”.

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esquecimento. Em contraposição, pode haver um conhecimento certo e evidente e, portanto, perene acerca de algo contingente. Neste último caso, o conhecimento resulta, do ponto de vista formal, mais perfeito que no primeiro caso, onde o conhecimento produzido era sobre um objeto necessário. A peculiaridade do conhecimento teológico se encontra mais nesta segunda via. Embora discorra acerca de verdades contingentes, a teologia obedece às condições de um conhecimento certo, evidente e perene.

Mas o contingente, enquanto diz respeito à teologia, é apto a ter um conhecimento certo e evidente e, no que concerne à parte da evidência, perpétuo. Isto fica evidente, porque todas as [verdades] teológicas contingentes são aptas a serem vistas no primeiro objeto teológico e, no mesmo, é apta a ser vista a conjunção daquelas verdades contingentes (pars 4, qq. 1 e 2, n. 211)37.

Embora Scotus tenha se prodigado em desentranhar a peculiaridade do método empregado pela teologia, suas conclusões a respeito não parecem tão resolutivas. É por esta razão que ele prefere justificar a cientificidade da teologia recorrendo a uma outra concepção de ciência, oferecida pelo mesmo Aristóteles na sua Ética a Nicômaco. Ali ciência é contraposta a opinião (dóxa). A teologia se constituiria, então, mediante um procedimento que, mesmo incluindo verdades contingentes, é capaz de alcançar o verdadeiro de modo determinado através de conhecimento certo, evidente e perene. Porque, na verdade, somente a teologia conhece o contingente mediante sua inteligibilidade própria de contingente, na medida em que o conhece na sua intrínseca relação a seu objeto que é o ser infinito e, portanto, livre38.

A distinção entre teologia divina e nossa teologia foi determinante para que Scotus pudesse justificar o caráter científico da teologia. Por se distinguir do saber das demais ciências por excesso e não por defeito, a teologia seria mais bem caracterizada por sabedoria (“magis proprie potest dici quod theologia est sapientia”)39. Percebe-se nesse procedimento de Scotus a superação daquela atitude comum a praticamente todos os mestres de teologia do século XIII com respeito à epistemologia teológica.

Na segunda questão da quarta parte do Prólogo, Scotus se pergunta pela especificidade da relação da teologia para com as demais ciências, numa explícita referência à doutrina da subalternação proposta por Tomás de Aquino e Henrique de Gand40. O sistema tomista da subalternação dos saberes se fundamenta sobre

37 “Sed contingentia ut pertinent ad theologiam nata sunt habere cognitionem certam et evidentem et, quantum est ex parte evidentiae, perpetuam. Hoc patet, quia omnia contingentia theologica nata sunt videri in primo obiecto theologico, et in eodem nata est videri coniunctio illarum veritatum contingentium”.

38 Gilson, “Les maîtresses positions de Duns Scot d’aprés le Prologue de l’Ordinatio”, 14.

39 Ordinatio, Prologus, pars 4, q. 1, n. 213.

40 Tomás de Aquino, Summa theologiae, I, 1, 3; Henrique de Gand, Summa quaestionum ordinariarum, a. 7, q. 5.

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a convicção de que a razão natural é capaz não só de alcançar as verdades naturais contidas na Revelação. Mas, se sustentada e potenciada pela fé, ela pode chegar a penetrar no âmbito mesmo das verdades reveladas, e produzir um saber segundo os cânones da ciência aristotélica. Sob este pressuposto, a teologia não só representa o aperfeiçoamento das demais ciências, mas ela se constitui propriamente em autêntico saber, na medida em que se caracteriza como verdadeira “scientia conclusionum”: suas conclusões provêm dos artigos de fé, considerados como seus primeiros princípios.

Não existe, portanto, uma fratura entre conhecimento racional e ciência das coisas divinas41. Embora, “in rebus divinis deficiens est”42, a razão está à altura de reconduzir a totalidade do saber a uma unidade fundamental. A unidade da verdade e a unidade do saber constituem uma única realidade, pois se a verdade é uma, também os saberes o são ou, ao menos, deveriam ser. Desse modo, “cum gratia non tollat naturam, sed perficiat, oportet quod naturalis ratio subserviat fidei”43. Estão postas assim as bases para a justificação da teologia enquanto saber que, subalternando a si os demais saberes, não se deixa, ao contrário, subalternar por nenhum deles.

Com razão, referindo-se à posição de Scotus com relação a esta específica questão, Gilson afirma ter ele interrompido a lua de mel entre filosofia e teologia44. Ele, de fato, problematiza a subordinação tomista dos saberes. Se a proposta de Tomás com relação as distintos saberes é subordiná-los segundo uma rígida hierarquia que vai do menos ao mais, e que culmina na teologia, a tese de Scotus resulta diametralmente oposta vindo a constituir-se numa posição autenticamente pluralista e, neste sentido, radicalmente alternativa.

Não existe, para Scotus, uma continuidade entre a “logica rerum” e a “logica fidei”. E é justamente esta descontinuidade que funda a irredutível alteridade entre filosofia e teologia. As relações entre razão e fé não se dão segundo o modelo de uma complementaridade linear: de um lado, a razão é o pressuposto necessário da fé e, por isso, a prepara, e, de outro, a fé pressupõe a razão e, portanto, a completa. O Deus da Revelação, professado pelos teólogos, descortina um

41 Escreve Tomás, no seu De veritate, q. 14, a. 9, ad 3: “Ille qui habet scientiam subalternatam non perfecte attingit ad rationem sciendi, nisi in quantum eius cognitio continuatur quodammodo cum cognitione eius qui habet scientiam subalternantem” . Colocamos em itálico o verbo continuatur pois, na nossa opinião, na medida em que ele alude ao potenciamento das faculdades humanas por parte da fé e da teologia, ele exprime o diferencial desta proposta tomista.

42 Tomás de Aquino, Contra Gentiles I, c. 2.

43 Tomás de Aquino, Summa theologiae, I, q. 1, a. 8, ad 2.

44 Escreve É. Gilson, no seu La philosophie au Moyen Âge, deuxième édition, Paris 1962, pp. 601-602: “Após 1277, o andamento do pensamento medieval na sua complexidade se encontra mudado. Após uma breve lua de mel, teologia e filosofia se dão conta que o seu matrimônio tinha sido um erro. Aguardando a separação física que não demorará muito, procede-se à separação dos bens. Cada uma se reapropria de seus problemas e impede a outra de dar importância a isso”.

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cenário novo que coloca em crise o horizonte mesmo da razão. Neste sentido, tem razão Gilson ao afirmar que, segundo o doutor sutil, “na sua essência mesma, vale dizer, como intelletctus fidei, ela [a teologia] é de uma outra ordem que não a ciência, porque seu objeto não é geral e que, a título de causa livre, Deus é princípio, não conclusão”45.

Andando à raiz da questão, Scotus denuncia o caráter de necessidade presente na posição defendida por Tomás com respeito à relação entre a potência criadora de Deus e o mundo das criaturas. Aqui, precisamente, encontramo-nos no coração desta oposição entre a perspectiva hierárquica de Tomás e a pluralista de Scotus. Ambos são concordes na afirmação da absoluta transcendência de Deus com respeito às criaturas. O dissenso entre eles reside propriamente na demarcação do espaço no interior do qual esta mesma transcendência é colocada e salvaguardada. A afirmação tomista da centralidade da essência divina não possibilita, na opinião de Scotus, a emergência da novidade do mundo ideal e, portanto, não afirma a originalidade das criaturas singulares. De fato, Tomás afirma a unidade fundamental entre o projeto ideal que a potência criadora de Deus traduz em ato e o conhecimento que Deus tem de sua própria essência enquanto conhecida.

Para Tomás, portanto, a contingência diz respeito unicamente à tradução em ato das idéias divinas e não, por exemplo, ao próprio mundo ideal que compartilha a imutabilidade e a eternidade, próprias da essência divina46. A este respeito, escreve O. Todisco: “Ora, que as idéias sejam ‘racionais’ não quer dizer que não sejam ou não possam ser fundamentalmente contingentes. O problema não se refere à racionalidade da trama ideal, mas sim sua índole. Enquanto não se subtrai a essência divina da sombra da multiplicidade das idéias e não se salvaguarda a originalidade das criaturas, Scotus não se considera satisfeito. O transcender-se ao necessitarismo pagão, realizado por Tomás, não lhe parece suficientemente radical”47.

Nesta perspectiva aberta pelo Deus onipotente da Revelação, a razão é por assim dizer desmascarada, na medida em que ela se revela como que presa à cadeia causal no interior de uma lógica da razão natural, de matriz aristotélica, totalmente vinculada ao necessitarismo pagão. Neste sentido, a razão humana se traduz num verdadeiro obstáculo epistemológico, na medida em que impede de pensar acerca do Deus onipotente da Revelação. Em nome de uma radical defesa do pluralismo irredutível dos saberes, a crítica de Scotus constitui não tanto uma reação ao

45 Gilson, “Les maîtresses positions de Duns Scot d’aprés le Prologue de l’Ordinatio”, 15.

46 Escreve Tomás na Summa theologiae I, q. 14, n. 8: “Non igitur propterea effectus, voliti a Deo, eveniunt contingenter, quia causae proximae sunt contingentes; sed propterea quia Deus voluit eos contingenter evenire, contingentes causas ad eas praeparavit”.

47 Todisco, “Duns Scoto e il pluralismo epistemologico”, 133.

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aristotelismo quanto uma proposta alternativa ao ideal tomista da subordinação da filosofia à teologia.

Scotus é taxativo ao afirmar que a teologia não depende de nenhuma outra ciência (“haec scientia nulli subalternatur”). Nem sequer depende da metafísica que, por ter como objeto o ente em geral, poderia de algum modo incluí-la. Nenhum princípio metafísico, nem o próprio ser ou qualquer seu derivado, pode ser útil a demonstrar as verdades teológicas (“nulla tamen principia accipit a metaphysica”). O teólogo não dispõe de outra coisa a não ser da palavra divina, que nos é oferecida mediante os textos sacros, e do conceito abstrato do ser infinito. Admitir estas subalternações seria fatal para a teologia uma vez que implicaria na renúncia a seu próprio objeto.

De outro lado, a teologia também não subalterna a si alguma outra ciência (“non subalternat”), pois, na verdade, as ciências não recebem da teologia os princípios sobre os quais se orientam (“quia nulla alia accipit principia ab ipsa”)48. Escreve A. Ghisalberti:

À teologia competem notas intrinsecamente positivas do conhecimento do homem, enquanto que não lhe dizem respeito características como: a necessidade do objeto conhecido, a discursividade, a subalternação, que vertem sobre as modalidades do conhecer humano pro statu isto e não decidem acerca do conhecimento enquanto tal49.

Se, por um lado, Scotus tece severas críticas à subalternação das ciências, por outro lado, também não defende a proposta boaventuriana de uma razão “naturaliter christiana”, no interior da qual a “ratio humana” é potenciada pela “ratio fidei”, mediante a iluminação divina. Enquanto “medium omnium scientiarum”, o Verbo encarnado é também o centro do real e, enquanto tal, funda a relação entre as demais ciências e a teologia segundo o conhecido axioma da “reductio artium ad theologiam”. Não se trata apenas “de um uso cristão da razão, mas de um uso da razão cristã, de uma razão que se reconhece verdadeira somente porque nela reside o único verdadeiro mestre, o Verbo, a verdade mesma, princípio e fundamento tanto da revelação quanto da razão”50. Em nome da irredutível diversidade de âmbitos e de métodos entre filosofia e teologia, Scotus problematiza também a “reductio” boaventuriana direcionando sua crítica a duas teses, que se encontram na base do modelo de uma razão intrinsecamente cristã: a centralidade do Verbo divino encarnado e a doutrina da iluminação.

No primeiro caso, Scotus salvaguarda a transcendência de Deus e a absoluta originalidade das criaturas. Defende a independência e originalidade de cada

48 Cf. Ordinatio, Prologus, pars 4, q. 2, n. 214.

49 Ghisalberti, “Metodologia del sapere teologico nel Prologo alla ‘Ordinatio’di Giovanni Duns Scoto”, 288.

50 T. Gregory, Mundana sapientia. Forme de conoscenza nella cultura medievale, Ed. di Storia e Letteratura, Roma 1992, p. 64.

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criatura com respeito à essência divina, afirmando a inteligibilidade intrínseca do singular como tal e não a intrínseca inteligibilidade do mundo ideal e das criaturas. No segundo caso, com traços firmes e claros, afirma que o intelecto humano é capaz de verdade e que, portanto, não carece da iluminação divina para alcançá-la51.

Scotus é pela pluralidade e, conseqüentemente, pela autonomia relativa dos distintos saberes. Não significa que entre eles deve haver oposição ou estranhamento. Assim fazendo, ele liberta o horizonte epistemológico de qualquer preocupação reducionista na direção da multiplicação dos saberes, construídos “iuxta propria principia”. Saber e verdade constituem-se num binômio no seio do qual se consuma o empenho de toda autêntica busca.

V

Ao final do Prólogo, Scotus se pergunta acerca da peculiaridade da teologia enquanto ciência: se a teologia é uma ciência especulativa ou prática52. O que decide a respeito do caráter prático ou especulativo da teologia não é propriamente o seu conteúdo mais ou menos abstrato, ou, ao contrário, mais ou menos concreto. O critério epistemológico adequado a discernir o peculiar caráter da teologia é, na verdade, sua finalidade específica.

E a finalidade específica da teologia, segundo o Doutor sutil, é o agir concreto do ser humano, direcionado à própria salvação mediante o mandamento do amor a Deus e ao próximo. Ele recorda que a finalidade do saber especulativo é a verdade, enquanto que a finalidade do saber prático é o agir humano. Por esta razão, a teologia se constitui em scientia practica e em sapientia, pois de fato sua intenção é conduzir o ser humano ao amor de Deus e dos seres humanos e, portanto, à salvação eterna. Para sustentar sua tese, Scotus cita dois passos escriturísticos: um extraído da Epístola aos Romanos: “Finis legis est dilectio” (Rm 13, 10); e outro do evangelho de Mateus: “In his duobus mandatis universa lex pendet et prophetae” (Mt 22, 40).

Que a teologia seja considerada uma ciência prática não significa que ela seja priva de especulação e que, por esta razão, seja unicamente voltada à ética e ao comportamento humano. Scotus enfatiza que, aperfeiçoado pelo conhecimento teológico-revelado, o intelecto humano conhece Deus como alguém que deve ser amado (“apprehendit Deus ut amandus”). Com base nas pressuposições seguintes: que o fim último do ser humano é o objeto primeiro da teologia e que os princípios oriundos deste fim último, num intelecto criado, são princípios práticos porque regulam seu agir, só nos resta concluir que os princípios da teologia dizem

51 Para uma análise mais detalhada da crítica de Scotus a ambas as teses de Boaventura, consulte-se com proveito o que escreve O. Todisco em “Scoto e il pluralismo epistemológico”, pp. 134-137.

52 Cf. Ordinatio, Prologus, pars 5, q. 1, n. 217.

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respeito à práxis, ao agir humano e, portanto, também suas conclusões são, para todos os efeitos, práticas.

Visto que o primeiro objeto da teologia é o fim último [Deus], e os princípios no intelecto criado assumidos pelo fim último são princípios práticos, os princípios da teologia, logo, são práticos; logo, também as conclusões são práticas (pars 5, q. 2, n. 314) 53.

A finalidade precípua da teologia não é tanto aumentar o saber puramente especulativo quanto retificar o agir e potenciar ao máximo o amor. Deste modo, identificando a felicidade com a “dilectio, quae vere est praxis”54, Scotus rompe com uma tradição milenária. E assim fazendo, opera em teologia a passagem da razão pura para a razão prática, de modo tal que a teologia encontre na ética sua realização mais plena. Para exemplificar sua tese da teologia como saber prático, Scotus retoma a proposição “Deus deve ser amado” (“Deus est amandus”) para dizer que a mesma não se constitui em uma verdade prática (“um verum practicum”) plena se não é completada pela pergunta acerca daquele pelo qual Deus deve ser amado: a vontade humana, uma vez que Deus não deve ser amado por um ser privo de razão (“Deus a bruto non est amandus”)55.

Na tentativa de salientar a originalidade de Scotus na defesa da teologia como ciência prática, assim se exprime O. Todisco:

Imersa no panorama descortinado pelo Deus amor e onipotência (duas dimensões que Scotus une, mas que na história sucessiva serão não só separadas, mas contrapostas), a razão é solicitada a dar-se conta de que, se na origem do real, além do intelecto pensante, existe a vontade que doa, o real, mais que um effectum, é um volitum, e o ser, mais que ato, é dom. A esta lógica não se tem acesso mediante a razão especulativa, mas através da razão prática, no sentido que se constata, não se deduz nem se induz o fato que exista algo e que seja isto e não aquilo, assim e não de outra forma. Tudo aparece vinculado a uma decisão, cuja índole, à luz da Encarnação e da inteira história da salvação, resulta substanciada pela absoluta gratuidade. Ora, se o mundo é um volitum e o ser, antes de ser ato, é dom, faz-se necessário aproximar-se do ser partindo da lógica do dom, sem encaixá-la na lógica necessitarista do ser. A lógica do dom possibilita um vigor anterior e ulterior com respeito àquela do ser, porque estimula a pensar para agradecer e não para dominar; para mergulhar na vontade insondável de Deus, e não para encontrar o fundamentum inconcussum, graças ao qual considerar-se patrões do real56.

53 “cum primum obiectum theologiae sit finis ultimus, et principia in intellectu creato sumpta a fine ultimo sunt principia practica, ergo principia theologiae sunt practicae”.

54 Cf. Ordinatio, Prologus, pars 5, q. 2, n. 303.

55 Cf. Ordinatio, Prologus, pars 5, q. 2, n. 336.

56 Todisco, “Duns Scoto e il pluralismo epistemologico”, 144.

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Todas estas distinções sutis acompanhadas por minuciosas precisações podem parecer-nos demasiadamente excessivas. No entanto, elas são o índice da preocupação escotiana por salientar a íntima relação entre discurso teológico e destinação última do ser humano, núcleo da revelação escriturística e da pregação cristã57. “Sic homo esset unum bonum brutum!” Esta conhecida exclamação de Scotus revela, na verdade, a impaciência do doutor sutil frente à tendência intelectualista que predominava, em seu tempo. Em meio àqueles intermináveis debates acerca da imagem do ser humano e de suas potencialidades, manifestava sua firme convicção de que o ser humano não é seu intelecto, nem muito menos que a verdade intelectual é sua mais nobre realização.

VI

Gostaríamos de recolher, agora, os principais resultados de nosso estudo, reunindo-os em torno a três eixos fundamentais: a peculiaridade do raciocínio escotiano, a originalidade de sua posição enquanto defensor da pluralidade e autonomia dos saberes e o destino histórico da posição defendida pelo Doutor sutil.

Em primeiro lugar, gostaríamos de salientar a peculiaridade de seu raciocínio no ato mesmo de refletir teologicamente. Fizemos menção, na introdução, ao que diz Gilson a propósito do modo típico de Scotus desenvolver suas reflexões teológicas. O conhecido medievalista salientava seu peculiar modo de desvestir as palavras e de conduzir seus leitores pelos labirintos da dialética. Como tivemos ocasião já de salientar, as reflexões do Prólogo da Ordinatio revelam sobremaneira as invectivas escotianas direcionadas a uma rigorosa e minuciosa análise semântica dos termos tomados não singularmente, como era de se esperar, mas numa intrínseca reciprocidade com seus termos correlatos. A peculiaridade da análise de Scotus reside propriamente na preocupação em compreender cada termo numa íntima e recíproca relação com seu correlato, desentranhando, deste modo, uma série de binômios, no interior dos quais um termo só se torna verdadeiramente compreensível à luz do outro e vice-e-versa.

Este rigoroso processo de semantização é acompanhado por uma série de distinções meticulosas, conduzidas a termo por Scotus com tamanha sutileza, a ponto dele, a pleno direito, ser cognominado de “Doutor sutil”. A introdução de distinções é de fundamental importância para a crítica que Scotus move contra todos aqueles virtuosismos da inteligência, típicos do contexto cultural em que operava. Ninguém como ele, talvez, tenha se esmerado tanto na arte de bem distinguir. Sabemos todos, quão importante é saber distinguir, sobretudo, quando a intenção é desvencilhar-se dos inúmeros equívocos provocados por situações em que predomina a confusão. O Doutor sutil não sucumbe, todavia, à tentação de se refugiar nas ilusórias regiões dos mais diversos partidarismos. Não permite que suas minuciosas distinções degenerem em separação. Revela uma particular

57 Cf. A. Marchesi, “Filosofia e Teologia in Giovanni Duns Scoto”, in A. Ghisalberti (a cura di), Giovanni Duns Scoto: filosofia e teologia, Edizioni Biblioteca Francescana, Milano 1995, 37.

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vigilância com relação a toda absolutização de partes, em detrimento da complexidade do todo. Tais distinções estão a serviço, em primeiro lugar, da explicitação das diversas dimensões que são responsáveis pela complexidade do real. Uma vez explicitadas, e respeitadas cada uma na sua mais genuína peculiaridade, tais dimensões são compostas segundo uma tal convergência de modo a exprimir no melhor dos modos o real na sua irredutível complexidade. Todo o persistente empenho de Scotus por distinguir as várias dimensões só faz explicitar a íntima e intrínseca inter-relação que vigora entre as diversas facetas que compõem o real. Em suma, Scotus não se perde no emaranhado das distinções como se estas constituíssem uma espécie de labirinto, mas, ao contrário, quanto mais ele busca desvelar as sutis dimensões do real, emergem mais nitidamente ainda suas intestinas articulações. Pois, de fato, a comunhão só é possível em meio às imprescindíveis distinções e por seu intermédio.

Portanto, através de uma meticulosa análise semântica dos termos e de uma rigorosa e sutil arte de bem distinguir, Scotus inaugura um processo que se revela altamente crítico com relação a tudo o que encontra diante de si como tese explicitamente afirmada ou ainda como pressuposto implícito a tais afirmações. Assim fazendo, ele exercita ao máximo a razão justamente no que ela possui de mais próprio. Pois, afinal, a inteligência não é um fim em si mesmo, mas o meio para se atingir o verdadeiro fim ao qual o ser humano se descobre destinado. E este processo de autêntica desconstrução constitui o caminho privilegiado para que o ser humano se abandone à escuta, na espera de que algo lhe possa ser dado. Este árduo processo mediante o qual a razão dá o melhor de si, desfrutando ao máximo suas intrínsecas virtualidades, culmina na espera despretensiosa pelo dom inaudito da Revelação. Este paradoxal movimento que toca as mais recônditas profundezas da razão, para poder assim deter-se às portas do Inefável, poderia ser descrito em termos de uma autotranscendência do pensamento. Este se encontra, na verdade, perpassado de cima em baixo por algo que o atrai e o seduz, mas que, em contrapartida, ele não pode objetivar nem mesmo abraçar. Resta-lhe apenas a possibilidade de potenciar ao máximo sua disposição a acolhê-lo generosamente. É o espaço da acolhida da Revelação como oferta gratuita e inusitada. E se a razão humana não é capaz de alcançar, por si só, as verdades, todavia, ela pode recebê-las quando estas lhe são reveladas. Estão assim, por um verso, interditadas todas aquelas ilusórias tentativas de acesso direto e imediato entre o intelecto humano e a essência divina. Mas, por outro, instaura-se definitivamente a imprescindibilidade da mediação das Escrituras sagradas no processo de conhecimento do verdadeiro Deus. E isto porque Deus nos criou como seus interlocutores, como pessoas capazes de acolher suas palavras, de poder corresponder a seus desígnios.

No cume deste inteiro processo deparamo-nos com a posição alternativa de Scotus: ele se revela um autêntico defensor do pluralismo epistemológico. Num contexto fortemente caracterizado por afirmações que beiravam, às vezes, à absolutização de partes em detrimento do conjunto, cuja relação da teologia com as demais ciências era, na melhor das hipóteses, concebida a modo de “reductio” ou ainda de “subalternatio”, quando não em termos de “exclusão recíproca”,

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Scotus propõe com traços firmes e claros a autonomia dos distintos saberes num horizonte cultural marcado por uma sadia pluralidade. Este contexto caracterizado por um sadio respeito pela diversidade não impede Scotus de salientar os limites históricos da metafísica grega e árabe, como também não o impossibilita a assumir sem maiores delongas o caráter nitidamente positivo do saber teológico. A nossa teologia só pode conhecer a essência divina porque Deus, na sua infinita condescendência, agraciou-nos com as Escrituras divinamente inspiradas. Estão postas, desta forma, as bases para a afirmação da Revelação como lugar primordial da teologia. A afirmação da relativa autonomia entre os distintos saberes, ademais, torna inadmissível qualquer tentativa de intromissão recíproca. É imprescindível que cada saber permaneça circunscrito ao âmbito que lhe corresponde sem ceder à tentação sempre presente de extrapolar o próprio horizonte epistemológico.

Concebida desta forma, talvez se compreenda porque a posição de Scotus tenha sido sufocada, alguns anos mais tarde. E isso não se deu sem graves conseqüências para o ulterior desfecho não apenas do endereço inaugurado por ele, mas para os destinos históricos da inteira cultura ocidental. Trata-se da complexa questão que indaga acerca do destino de Scotus e de seu vigoroso pensamento. A “epistemologia débil” de Scotus será deixada de lado – para não dizer, implicitamente condenada – pelo papa João XXII ao excogitar três decisões, todas elas direcionadas à extrema tentativa de operar a reunificação cultural e política da Cristandade: a proposta da “epistemologia forte” de Tomás, a beatificação do Doutor angélico em 1323 e a abertura do processo contra Ockham. De fato, um pensamento que defende com tamanha clareza a pluralidade epistemológica e a autonomia dos saberes não podia, de forma alguma, servir de justificação ideológica àquela específica unidade cultural intencionada por João XXII. Seu sucessor, Clemente VI prosseguirá sem maiores delongas o mesmo caminho, endereçando à Universidade de Paris, em 1346, uma famosa carta na qual exortava os professores de teologia a ater-se, em seus cursos acadêmicos, a Aristóteles e a seus intérpretes mais autorizados. Encontramo-nos na aurora do processo crescente de “tomistização” da teologia.

Na introdução chamávamos a atenção para o crescente interesse que, em nossos dias, tem despertado o pensamento de Scotus. Nosso tempo parece marcado pela experiência da dissolução dos grandes sistemas, pela delegitimação das grandes narrativas, pelo desencanto frente aos grandes projetos construídos sobre a razão, que parecia constituir um sólido alicerce. Chega-se a falar em pós-Modernidade como termo apto a exprimir o total desencanto frente a todas as grandes pretensões totalizantes e excessivamente pretensiosas da Modernidade. Denominador comum a todos os projetos da Modernidade seria propriamente a “epistemologia forte”: racionalista e naturalista. Por esta razão, poder-se-ia dizer que a Modernidade nasce e se desenvolve num viés oposto àquele inaugurado por Scotus, em fins do século XIII e inícios do século XIV.

Na tentativa de legitimar uma epistemologia forte, Descartes redimensionará aquela onipotência divina, tornando-a funcional aos desígnios humanos. E assim, escapando ao abismo da dúvida universal, à qual aquela imagem conduzia,

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Descartes transformará aquele Deus onipotente de fonte de contingência radical em garante da estabilidade legal do mundo e do poder veritativo das faculdades humanas. Estamos na Modernidade. De fato, esta nasce com o Deus matemático e geômetra de Galilei; com o Deus garante e veraz de Descartes; com o Deus moralmente necessitado a criar o melhor dos mundos possíveis, de Leibniz; ou, com uma metáfora compreensiva de uma época, com o Deus relojoeiro de Newton. Estamos na Modernidade, não porém com Scotus mas contra Scotus, porque aquele Deus não é o interlocutor de um diálogo mas o garante de um poder, não desestabiliza os saberes a fim de que o homem, apesar da fadiga da pesquisa, se entregue à sua vontade, mas lhes oferece segurança e, fundando-os, os sacraliza58.

Estaríamos, de fato, presenciando uma configuração cultural mudada na qual estariam sendo recriadas aquelas condições propícias à aceitação da proposta do Doutor sutil? Estaríamos, finalmente, mais predispostos a acolher o modelo defendido pelo ilustre pensador escocês: de uma sadia pluralidade dos diversos saberes mediante um processo de profundo respeito pela autonomia de cada um deles? Ou será que estas incipientes, embora ousadas, indagações acerca da atualidade da proposta do Doutor sutil não passariam de mais uma entre tantas expressões de anacronismo, que a história tem registrado com grande desconfiança e não menor desdenho?

58 Todisco. “Duns Scoto e il pluralismo epistemológico”, p. 147. Ainda com relação a esta mesma questão, leia-se com proveito o que escreve Todisco em “Scoto tra medioevo e modernità”, in O. Todisco, Giovanni Duns Scoto. Filosofo della liberta, Edizioni Messaggero de S. Antonio, Padova 1996, pp. 85-93.

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O CONCEITO DE PESSOA*

Constantino Koser, OFM*

Os antigos concílios definiram que em Deus há três pessoas na unidade de natureza. Não deram, porém, uma definição dogmática sobre o conceito de Pessoa ele mesmo, não o fixaram, quanto aos seus elementos, com a infalibilidade com que o tinham fixado como próprio para significar o que em Deus é trino. As circunstâncias de então, as controvérsias doutrinárias e as dificuldades da Igreja reclamavam que se fixasse: o que faz com que Deus seja Deus é a essência, natureza, substância (ousia, physis) – e tudo isto em Deus é rigorosamente, matematicamente, numericamente um. A trindade está nas pessoas (hypóstasis, prósopon – persona, suppositum).

A falta de uma definição de pessoa, que à primeira vista é bastante estranha e contrária ao uso dos teólogos, os quais supõem cada qual o seu conceito de pessoa nas antigas definições, aparece claramente atestado por S. Agostinho, que certamente sabia o que significavam as definições, uma vez que era contemporâneo das grandes controvérsias trinitárias, que precederam os concílios de Constantinopla (381) e Éfeso (431); não teve em mãos as definições deste concílio, pois faleceu em 430; os “15 libri de Trinitate” foram terminados em 416, mais ou menos; nas retratações, escritas no fim da vida, nada mudou a respeito do conceito de pessoa. Examinando a terminologia, diz: o que os gregos chamaram de “hipóstase – substância” os latinos chamaram de “pessoa” (De trin. Lib. VII, cap. 7). Indagando em seguida qual o sentido do termo, não dá nenhuma explicação que vá além de fixação de termos (cf. De Trin. Lib. VII, cap. 7-12): não se encontra nem mesmo o resquício de uma definição metafísica do conceito de pessoa. A “Summa Summarum” de quanto pôde dizer está nesta frase:

Dizendo que os três em Deus são uma essência, e um Deus, porque não dizemos também que são uma pessoa, mas dizemos que são três pessoas? O único motivo parece ser que nos decidimos a reservar ao menos um termo para exprimir o sentido em que dizemos existir Trindade, pois sem isto não teríamos resposta quando nos perguntam: três o quê? (De trin. Lib. VII, cap. 11).

Lembra que não faz tanto tempo assim que se começou a reservar este termo para esta significação, quando antes se supunham outros sentidos.

Depois de S. Agostinho multiplicaram-se as reflexões sobre o conceito de pessoa e hoje em dia é dos mais tratados na filosofia. No entanto, se aplicássemos à

* Escrito inédito de Fr. Constantino Koser, como parte de um livro ou estudo sobre o conceito da Trindade em Duns Scotus.

* Franciscano da Ordem dos Menores, foi professor de teologia sistemática em Petrópolis de 1943 a 1950, fez especialização em teologia em Freiburg nos anos de 1950 a 1953 e retomou o ensino em Petrópolis de 1954 a 1963. Eleito ministro geral da Ordem, dirigiu a mesma no período de 1967 a 1979, emprendendo projetos e reformas que mereceram comparações aos feitos de Boaventura, quando ministro geral.

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Santíssima Trindade os sentidos em que o termo é tomado nas filosofias modernas, chegaríamos às heresias antigas do triteísmo, do monarquianismo, do sabelianismo, do subordinacionismo, do arianismo e a muitas novas. Fala-se de “pessoa” e pensa-se numa realidade de ordem psicológica, que existe em certos indivívuos humanos, faltando em outros; outras vezes pensa-se numa realidade de ordem moral, identificando-se “pessoa” com livre arbítrio ou com o seu uso forte e decidido, dizendo que certos indivíduos desenvolveram sua “personalidade”, outros não; outras vezes pensa-se numa realidade de ordem física, identificando-se os conceitos de “pessoa” e de “indivíduo”, ao menos quando se trata de naturezas racionais. Para aplicação na Ssma. Trindade, porém, só pode servir um conceito de origem metafísica. Segundo Boécio, nesse nível se deve dizer que a substância individual de uma natureza racional é pessoa: “persona est rationalis naturae individua substantia” (De duabus naturis, cap. 3). Santo Tomás soube introduzir as necessárias distinções na análise desta definição, a fim de evitar a heresia, de que em Deus a natureza, enquanto natureza – substância, natureza, essência formalmente –, é pessoa (cf. Sent. I, d.25, q. 1, art. 2; S. Theol. I, 29,3; de Pot. q. 9, a.3 – para omitirmos as conceitualizações das questões disputadas De verbo incarnato, e que não concordam com esta definição). Supondo-se, como supunha S. Tomás, que nossos conceitos, para serem aplicados a Deus, devem ser considerados análogos por analogia de proporcionalidade e que por isso o que lhes corresponde em Deus é essencialmente diferente, havendo apenas uma semelhança indeterminável e impossível de ser abstraída do conceito, nada impede de admitir estas distinções e diferenças, sem abandonarmos o conceito.

Ricardo de S. Vítor, antes de S. Tomás, havia tentado modificar os termos da definição de Boécio, a fim de adaptá-la melhor ao mistério trinitário. Não dizia que a pessoa é a substância, mas transferia o constitutivo da pessoa para o campo existencial: ser pessoa é um modo de existência. Esse modo se caracteriza pela propriedade de ser de tal modo “in se” e fechado sobre si mesmo, que uma comunicação deste modo a outros indivíduos é impossível. Assim introduziu a idéia da incomunicabilidade no conceito de pessoa. Pessoa, para ele, é um modo incomunicável de uma natureza existir – e por sinal cabe só a naturezas racionais. Porque definiu o conceito diretamente para o mistério trinitário, formulou do seguinte modo: “Pessoa é a existência incomunicável da natureza divina” (persona est divinae naturae incommunicabilis existentia, cf. De Trin., lib. IV, cap. 22). Será então que em Deus existem três existências? Não é este o sentido da definição ricardiana; antes: não existem em Deus três existências, mas três modos de existir. Nem por isso cai na heresia do modalismo, pois afirma que esses três modos são simultâneos e eternos, intradivinos e não manifestações para fora. Nem por sombra pensou em modos sucessivos e passageiros. Esta definição de Ricardo de S. Vítor foi adotada por Alexandre de Hales e por São Boaventura.

Duns Scotus a tomou como ponto de partida e é tudo que tem em comum com Ricardo. Preocupou-se demoradamente com a comunicabilidade, tentando determinar melhor o sentido deste elemento da definição. Como se vê, situou-se numa linha de evolução diferente da de S. Tomás – mas pelas análises a que

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procedeu acabou também bastante distanciado de Ricardo de S. Vítor, Alexandre de Hales e S. Boaventura. Sua doutrina trinitária em todos os pormenores supõe o conceito de pessoa que elaborou. É de uma coerência impressionante com a sua definição. Daí nascem quase todas as diferenças de doutrina entre tomismo e escotismo. Aliás, os teólogos costumam proceder deste modo, uns com maior coerência, outros com coerência precária: isto é, de partirem de um conceito de pessoa e de interpretarem os dogmas trinitários em função deste conceito. Não se pode, pois, incriminar Duns Scotus de ter feito a mesma coisa. Mas, para entender corretamente o seu pensamento trinitário, ninguém pode passar-se de acompanhá-lo nas análises por vezes muito subtis do conceito de pessoa. Isto justifica a relativa largueza que concedemos nestas páginas a estas análises.

As reflexões de Duns Scotus sobre o conceito de pessoa partem da definição de Ricardo de S. Vítor, e aí começam no ponto em que este, na definição boeciana, substitui a palavra “substância” por “existência”. Duns Scotus admite como certo que, quando alguém diz “pessoa”, pensa numa natureza racional individualizada. Acontece, no entanto, que dizendo “pessoa” não se visa esta natureza racional individualizada “in recto” e formalmente. Pelo contrário, pensa-se que esta natureza racional é “possuída” e isto “por alguém”. Este “alguém” é a pessoa e cabe-lhe “incomunicabilidade”. A esta altura diz Duns Scotus:

Tenho minhas dúvidas sobre se o termo “pessoa” significa a existência como formalmente idêntica com a incomunicabilidade, ou se é assim que “pessoa” propriamente só significa a “incomunicabilidade”, e a existência só entra no conceito como designativo do modo de possuir a existência. Se assim for, a definição deverá ser: pessoa é incomunicabilidade, que possui existência em uma natureza racional individual.

Persona non tantum dicit incommunicabilitatem, sed dat intelligere naturam intellectualem in qua est, sicut individuum in natura communi. Dubito tamen, si dicat existentiam formaliter cum duplici incommunicabilitate, aut dicat tantum formaliter incommunicabilitatem, et existentiam in concreto tanquam modum habendi naturam, ut sit sensus: persona est incommunicabilis habens existentiam in natura intellectuali” (Oxon., lib. I, d.23, q.un., n.5, ed. Vivès, vol. X, 261b).

Nas obras de Duns Scotus não se encontra mais nada a respeito deste ponto, que, levado avante, parece que teria sido muito fértil. Em todo caso, sobrepôs-se ele mesmo à dúvida aqui acusada, supondo sem mais uma diferença entre pessoa e existência. Isto já se vê pelo modo de distinguir pessoa e individualidade.

Individualidade e personalidade não se identificam, pois que em Deus são três as pessoas, não há, porém, três indivíduos. É do domínio comum que Duns Scotus elaborou uma doutrina própria sobre a individualidade e sobre o princípio de individuação. Seria de esperar que tivesse aplicado os conceitos respectivos à doutrina trinitária. Não se encontra, porém, uma aplicação explícita e “ex professo” em suas obras, apenas considerações ocasionais. A diferença entre individualidade e personalidade para ele está nisto: cabe incomunicabilidade diferente e maior à pessoa. Para ele, a individualidade está constituída pela “haecceitas”. Isto significa que uma substância, seja material, seja espiritual, se individualiza pelo fato de ser “haec”, não por “materia signata”. Se o fato de ser

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“haec”, a “haecceitas” é “quaedam entitas positiva actualis” para além da substância completa, é um problema discutido entre os escotistas, havendo os que interpretam o mestre num sentido, outros noutro. Para a doutrina trinitária, esta controvérsia entre escotistas não é de importância. O que importa é que pela “haecceitas” a substância se individualiza e adquire uma certa incomunicabilidade, que, porém, formalmente não pertence à essência, mas precisamente ao indivíduo como tal. A esta espécie de incommunicabilidade Duns Scotus dá o nome de “incommunicabilitas ut quod”. Lychetto explica o sentido desta locução: “Significa que (na linha descendente dos conceitos, em direção ao particular) nada existe de inferior, do qual se poderia predicar “in recto” (aquilo que está individualizado), assim como se diz: “isto é aquilo” (Vivès, vol. VIII, 589). Neste sentido os indivíduos não admitem uma predicabilidade, pois que não se pode aplicar a sua noção a algo que na linha dos conceitos tenha uma extensão menor, exatamente porque cabe rigorosamente só a um único “quod” – e assim possui a incomunicabilidade.

Acontece, porém, que a hipóstase ou em natureza racional a pessoa não é o ser individual da natureza respectiva, mas se distingue da “haecceitas” respectiva: “Neque se habet natura ad suppositum sicut ‘quo’ ad ‘quod’” (Scotus, Ordin. Lib. I, dist. 2, pars 2, q.1, n. 378, ed. Vaticana, vol. II p. 345 lin.1). A prova inconcussa dessa asserção é um dogma: na Encarnação uma natureza humana perfeitamente individualizada é realidade sem ser pessoa humana (Scotus, Quodl., 19, art. 2, n.17, Ed. Vivès, vol. XXVI p. 286b). Por aí se vê que a diferença entre individualidade e personalidade não é só de ordem lógica, mas também de ordem ontológica, e que conseqüentemente, também a incomunicabilidade “ut quo” é da ordem ontológica.

Mas na individualidade trata-se só de incomunicabilidade “ut quod”, pois a revelação do mistério da encarnação e da Ssma. Trindade mostra que a natureza individualizada, sem quebra desta incomunicabilidade “ut quod”, é comunicada: uma vez duas naturezas individualizadas a uma pessoa, outra vez uma natureza singular, a três pessoas. Vê-se que existe uma comunicabilidade dentro da incomunicabilidade “ut quod”. A incomunicabilidade da pessoa se avantaja à da individualidade pelo fato de lhe caber ainda esta outra incomunicabilidade que falta à individualidade: a pessoa é incomunicável “ut quo” et “ut quod” (Scotus, Ordin., lib. I, dist. 2, parte 2, q.1, n. 378, ed. Vaticana, vol. II p. 345, linhas 1-9; Quodl. 19, n. 13, ed. Vivès, vol. XXVI, p. 279a). E é assim que a pessoa se distingue da individualidade.

Distingue-se também da natureza, muito embora coincidam pessoa e natureza “realiter” no “suppositum per se” (Quodl. 19, n.11, Ed. Vivès, vol. XXVI, p. 277-8). “Suppositum per se” é a personalidade que corresponde à natureza em questão (loc. cit. e também ibid. n.21). Muito embora coincidam assim “realiter” natureza e pessoa no “suppositum per se”, não se identificam inteiramente. É que a pessoa não se constitui como pessoa pela natureza – exemplo: “este homem não é pessoa por ser homem” – mas pelo “quo” próprio da pessoa: “Este homem é pessoa por ser pessoa, pela ‘suppositalitas’” (Ordin., lib I, dist. 2, parte 2, q.1, ed.

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Vaticana, vol. II, p. 345, lin. 1-9). Esta incomunicabilidade “ut quo”, pois, distingue a pessoa tanto da natureza, quanto da individuação da natureza.

A dupla incomunicabilidade, “ut quo” e “ut quod”, é para Scotus o elemento distintivo da pessoa. Volta a estas duas incomunicabilidades todas as vezes que deseja determinar exatamente o que vem a ser pessoa. O que significam? Não é fácil apanhar bem o seu sentido, exatamente porque a formulação é negativa. O que interessa é surpreender o elemento positivo que está escondido na negação. Duns Scotus aplica o constitutivo da pessoa tentando formular positivamente o que há na incomunicabilidade e enumera dois modos de comunicabilidade.

1. Algo pode ser comunicado predicando o conceito superior do inferior – ou, dizendo as coisas na ordem do ser: pode ser comunicado totalmente. Assim se predica a “animalidade” da “humanidade” e deste modo está o “animal” no “homem”: inteiramente. Este modo de comunicação tem seu limite extremo exatamente no indivíduo, e por isso o indivíduo é incomunicável nesta linha de comunicação: aí está a incomunicabilidade “ut quod”. Dir-se-á mais exatamente: esta é uma das espécies da incomunicabilidade “ut quod”, pois que neste sentido se predica e é própria formalmente do indivíduo como tal, não da pessoa – e a pessoa também possui uma incomunicabilidade “ut quod”, mas de sentido diverso.

2. Algo pode ser comunicado como forma e acontece então que o que recebe é aperfeiçoado por aquilo que recebe, tornando-se, porém, essencialmente outra coisa em união com o que recebe: um “ens tertium”, diferente tanto daquilo que se comunica quanto daquilo a que é comunicado. É esta a comunicabilidade “ut quo”. Nesse sentido a individualidade, ou melhor, o indivíduo pode ser comunicado à pessoa, a natureza por sua vez pode ser comunicada assim tanto ao indivíduo, quanto à pessoa. A pessoa ela mesma porém não pode ser comunicada assim, e por isso lhe cabe a incomunicabilidade “ut quo”, unida à incomunicabilidade “ut quod” (Scotus, Oxon., lib. I, dist. 23, q.un., n.4 e 6; Quodl. 19, n. 13). Assim se entrevê o que há de positivo na formulação negativa da incomunicabilidade.

Com isso, porém, o conceito de pessoa ainda não está perfeitamente delimitado. Duns Scotus lembra que a alma de alguém que morreu e ainda não ressuscitou de fato não está comunicada nem “ut quod”, nem “ut quo” – sem que por isso seja pessoa. Para ser pessoa, pois, não basta a simples incomunicabilidade “ut quod” e “ut quo” de fato, é preciso que acresça ainda a “aptitudo non dependendi”, ou a incomunicabilidade apptitudinal. Esta incomunicabilidade, diz Duns Scotus, pode ser designada de “inclinatio ad oppositum” ou “aptitudo ad contrarium”, isto é, onde existe só a aptitudinal, existe simultaneamente a inclinação para ser comunicado (cf. Quodl. 19, n.19, ed. Vivès, vol. XXVI, p. 287-8). O conceito da “aptitudinalitas” não está sendo muito usado na neoescolástica, conquanto tenha sido de grande importância no período áureo. Para interpretar corretamente este termo, antes de mais nada é preciso não confundi-lo com mera possibilidade. O que é “aptum” para alguma coisa possui uma disposição interna para aquilo para que é “aptum” – o que não se dá necessariamente com o mero possível. O “non-aptum” por sua vez não só carece desta disposição interna, mas até possui uma disposição

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contrária àquilo de que se diz “non-aptum”. O ato correspondente neste caso só pode ser conseguido com violência. Em terminologia teológica moderna diríamos que aquilo para o que alguma coisa é “non-aptum” só pode ser conseguido por meio de intervenção preternatural ou mesmo sobrenatural. A incomunicabilidade aptitudinal significa não só a possibilidade de ser incomunicável, mas uma disposição interna para a incomunicabilidade. Esta incomunicabilidade aptitudinal por si só, sem a atual, por sua vez não basta para que haja pessoa, como se vê no exemplo da natureza humana individual em Cristo: possui a incomunicabilidade aptitudinal, não porém, a atual; Antes está atualmente comunicada ao Verbo Divino. Só onde convergem simultaneamente ambas estas incomunicabilidades existe pessoa (Quodl. 19, n.19, ed. Vivès, vol. XXVI, p. 287-8).

Resumindo, vemos que para que haja pessoa é necessário que se verifique a incomunicabilidade “ut quo” e “ut quod”, e ambas tanto aptitudinais como atuais. Para que haja pessoa, pois, é necessário que estejam realizadas quatro incomunicabilidades, e nenhuma pode faltar sob pena de não estar realizada a pessoa: a incomunicabilidade “ut quo” aptitudinal e atual, e a incomunicabilidade “ut quod” aptitudinal e atual.

Duns Scotus menciona ainda uma quinta incomunicabilidade que designa como “negatio possibilitatis dependentiae” ou “communicationis” (Quodl. 19, n. 19, loc. cit.). Diz que esta consiste na “repugnantia ad actum opositum” (loc.cit.). Dos textos que seguem nesta questão quodlibetal 19, vê-se que se trata no caso da negação de potência obediencial para a comunicação (cf. loc. cit. n. 20). Também esta incomunicabilidade pode ser “ut quo” e “ut quod”. Não é da pessoa em geral, mas só da pessoa em Deus: é o característico da pessoa divina enquanto divina. Em pessoas criadas não pode existir esta incomunicabilidade suprema, pois que estas estão sempre sujeitas ao poder soberano de Deus (loc.cit. n. 19-20).

É preciso prestar atenção para não perder de vista o sujeito da incomunicabilidade. Por vezes se tem a impressão de que os autores a atribuem à natureza como sujeito, entendendo que a natureza se torna pessoa pela incomunicabilidade. Isto, porém, não é o que Duns Scotus ensina. Segundo ele, a natureza que é pessoa está tão longe de ser incomunicável que de fato está comunicada tanto “ut quo” quanto “ut quod” – e isto à pessoa. No caso pois existe também a comunicabilidade aptitudinal e atual sob ambos os aspectos – as quatro comunicabilidades opostas diametralmente às quatro incomunicabilidades que caracterizam a pessoa. A incomunicabilidade cabe exclusivamente ao “quo persona est persona”, não à natureza. Só se pode predicar da natureza enquanto esta é possuída pela pessoa e enquanto nela está a pessoa, não “in recto”, e muito menos formalmente. Quando se fala de incomunicabilidade, pois, pensa-se no “quo persona est persona”, a natureza está apenas conotada (cf. l Oxon. Lib.I, dist. 23, q.un., n. 7, ed. Vivès, vol. X, p. 265; Cf. tb. o comentário de Lychetto para esta passagem, loc. cit.).

Firmada esta doutrina, indaga-se: a quinta incomunicabilidade, a da “negatio possibilitatis dependendi”, que Duns Scotus diz caber só à pessoa divina, também

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se entende “persona quo persona”, ou neste caso a incomunicabilidade se refere à natureza? A pergunta nasce da dificuldade de pensar numa comunicação, mesmo sobrenatural, de uma pessoa a outra, na ordem metafísica em que aqui se fala de comunicação. No caso da união hipostática da natureza humana de Cristo ao Verbo não se trata duma comunicação de uma pessoa a outra, exatamente porque o dogma ensina que em Cristo não existe pessoa humana. Este exemplo, pois, não pode explicar nem provar a possibilidade de comunicação de uma pessoa a outra de modo preternatural ou sobrenatural. O fato de a pessoa estar constituída de quádrupla incomunicabilidade parece excluir necessariamente a comunicabilidade, mesmo pela potência obediencial. Não resta dúvida de que existe potência obediencial de ser supressa uma pessoa e a natureza despersonalizada “per se” ser personalizada “in altera”. Não se trata então de uma comunicação da pessoa, mas da natureza. Assim parece que a “negatio possibilitatis dependendi” existe também para a pessoa criada. Duns Scotus de fato só atribui esta última incomunicabilidade à pessoa divina, não à criada. Na frase em questão, passa insensivelmente da pessoa divina para a natureza criada (sola persona divina habet incomunicabilitatem primo modo (negatio possibilitatis dependendi)... natura autem creata, licet in se subsistat, non tamen aliquid habet intrinsecum, per quod impossibilile sit eandem dependere; et ideo sola persona divina habet propiam personalitatem completam, natura vero creata personata in re, non habet” (loc. cit. n. 20)). Assim parece que há uma incoerência nesta determinação do sujeito da incomunicabilidade no sentido de “negatio possibilitatis dependendi”.

Como quer que seja, Duns Scotus é explícito em ensinar que as quatro outras incomunicabilidades se referem de fato à pessoa enquanto pessoa, e não à natureza. E é explícito também em exigir para o caso de Deus ainda a quinta incomunicabilidade, a “negatio possibilitatis dependendi”.

A pessoa em seu constitutivo formal é apenas incomunicabilidade? Duns Scotus faz explicitamente esta pergunta e responde: “A pessoa não é só incomunicabilidade, mas dá a entender ((connotat) também a natureza intelectual em que está...” e segue o texto, em que manifesta a sua dúvida, sobre se o constitutivo da pessoa se identifica formalmente com a existência, ou se de per si só significa a incomunicabilidade, conotando a existência concretamente como o modo de possuir a natureza. Se assim for, resulta como definição da pessoa: “Persona est incommunicabilis habens existentiam in natura intellectuali” (Oxon. Lib. I, dist. 23, 1.un, n. 5, ed. Vivès, vol. X, p. 261b).

Se abandona aqui a questão da identificação ou distinção entre pessoa e existência, não abandona tão depressa a questão do elemento positivo, constitutivo da pessoa. Afirma explicitamente que a pessoa se constitui por um elemento positivo, que porém não pode ser reduzido a conceito comum universal, por se tratar de um singular absoluto, tanto que por exemplo o positivo constituinte da pessoa do pai difere do positivo consituinte da pessoa do filho. O “quo persona est persona” portanto é um elemento positivo (Oxon. Lib. I, dist. 23, q.un.; dist. 25, q.un. n. 1-2). Nessa questão da Ordinatio o ser pessoa para Duns Scotus não é

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apenas a negação da comunicabilidade, mas um elemento “ante omnem actum intellectus”, “aliquod quod est in re”. Destas considerações pode-se tirar a conclusão de que a incomunicabilidade quádrupla não é propriamente o constitutivo da “persona ut persona”, mas uma propriedade decorrente do constitutivo – o constitutivo ele mesmo seria outro, algo “ante omnem actum intellectus” e que possui existência real, “aliquod quod est in re”, sem que possa ser formulado em conceito unívoco. Uma doutrina aparentemente diversa se encontra no Quodlibet 19. Declara explicitamente que a incomunicabilidade aptitudinal e atual pode estar concretizada sem suporte positivo, e que isto de fato se dá na pessoa criada. Deduz isso do que se observa na união hipostática (cf. n. 19). Na pessoa divina, porém, onde à quádrupla incomunicabilidade acresce ainda a “negatio possibilitatis dependendi”, conforme doutrina também explícita de Duns Scotus, a incomunicabilidade não pode estar concretizada sem um elemento positivo de suporte: “Nulli simpliciter repugnat esse communicabile, nec tamquam communicabile dependere, nisi sibi sit simpliter proprium aliquod positivum, quod sit ratio repugnantiae communicabilitatis et dependentiae” (loc. cit. n. 20). Como porém só as pessoas divinas possuem esta quinta incomunicabilidade, só elas possuem um elemento positivo e só elas não são apenas a negação da comunicabilidade e comunicação:

Sola persona divina habet incommunicabilitatem primo modo, quia entitatem aliquam intrinsecam simpliciter propriam, per quam sibi repugnat posse communicari... et ideo sola persona divina habet propriam personalitatem completam... (loc. cit. n. 20).

As duas exposições parecem contraditórias. Mas observando melhor percebe-se que o Quodlibet é uma explicitação da Ordinatio e que não há oposição de doutrina. É que na Ordin. Liv. I, d.e 3 Duns Scotus se refere exclusivamente à pessoa divina e não trata da pessoa criada.

Conforme o Quodlibet 19, a pessoa criada não possui elemento positivo, mas está na simples e chã incomunicabilidade quádrupla – a pessoa divina, porém, se constitui por um elemento positivo, suporte da quádrupla incomunicabilidade, mais a “nagatio possibilitatis dependendi”.

Resumo da doutrina de Duns Scotus sobre o conceito de pessoa. A definição que encontramos em Duns Scotus é: “Persona est incommunicabilis habens existentiam in natura intellectuali” (Oxon. Lib. I, dist. 23, q.un. n. 5 ed. Vivès, vol. X, p. 261b). Comparando as várias definições de pessoa que exerceram profunda influência, notamos a seguinte marcha evolutiva: “Persona est substancia...” (Boécio), “Persona est existentia...” (Ricardo), “Persona est incommunicabilis habens existentiam... (Duns Scotus). Os elementos comuns às três definições são: “natura rationalis individua”. Tanto em Boécio, quanto em Ricardo nota-se a luta pela definição, mas os autores conseguem resolver-se e apresentar a sua definição sem hesitações. Em Duns Scotus esta luta aparece mais claramente, e do conjunto dos textos pode-se tirar a conclusão de que a luta para ele não terminou: refletiu muito, pesquisou, analisou, objetou, respondeu objeções – e por fim não conseguiu um resultado suficientemente uniforme e completo. Não conseguiu uma noção de pessoa comum a Deus e à criatura – não atingiu o

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conceito “simpliciter simplex” de pessoa. Sua mira era conseguir um conceito que em nada colidisse com os dogmas trinitários e cristológicos e que também estivesse em conformidade com o que se observa na criatura. Não podia satisfazer-se com menos, sem renegar a sua doutrina da univocação de quarto grau para todos os conceitos capazes de serem aplicados a Deus e às criaturas. Considerando todo o conjunto de seus enunciados respectivos, não se pode dizer que encontrou o que procurava. Os elementos de valor estável, em sua doutrina sobre o conceito de pessoa parecem ser os seguintes:

1. os aprofundamentos das relações de identidade e distinção dos conceitos de natureza, indivíduo e pessoa;

2. a enumeração, definição e distinção das várias incomunicabilidades que devem competir à pessoa;

3. os pensamentos sobre a “negatio possibilitatis dependendi”, que só pode competir à pessoa divina;

4. a asserção de que a pessoa em Deus é constituída por um elemento positivo, sujeito das cinco incomunicabilidades – sem que exista a possibilidade de abstrair para este elemento positivo um conceito universal;

5. a distinção entre os conceitos de pessoa e existência.

A “NON-IDENTITAS FORMALIS”

A doutrina da “non-identitas formalis” – assim dizia Duns Scotus, e não “distinctio formalis”, como depois disse a escola – é de importância capital para a doutrina trinitária, e ao lado do conceito de pessoa e da univocação de quarto grau está por assim dizer onipresente nas considerações do Subtil. Trata-se duma doutrina metafísica extraordinariamente complexa e não é possível fazer dela aqui uma exposição exaustiva. Limitamo-nos por isso à análise duma passagem, em que o próprio Duns Scotus explicitamente e “ex professo” aplica esta distinção ao mistério trinitário. Aí colheremos informações suficientes para compreender o seu pensamento trinitário.

A ponderação de que parte nessa passagem da Ordin. Lib. I, dist. 4, é a seguinte:

Não parece inteligível que a essência não esteja multiplicada e as hipóstases sejam várias se não se admitir uma distinção qualquer entre a razão constitutiva da essência e a das pessoas. Sendo necessário afirmar a possibilidade (simultânea dos dados indicados), é necessário refletir sobre essa distinção.

Non enim videtur intelligibile quod essentia non plurificetur et supposita sint plura, nisi aliqua distinctio ponatur inter rationem essentiae et rationem suppositi. Et ideo ad salvandam istam compossibilitatem praedectam, oportet videre de ista distincione (Ordin. Lib. I, dist. 2, parte 2, q.1 ed. Vaticana, vol. II, n. 388, p. 349).

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Logo a seguir formula a sua sentença, mas com extremos de reserva:

E dito sem afirmar e sem prejuízo de sentença melhor, que a razão pela qual o suposto é formalmente incomunicável, e a razão da essência enquanto essência devem admitir uma distinção que preceda qualquer ato de intelecção criada ou incriada”

Et dico sine assertione et prauidicio melioris sententae, quod ratio qua formaliter suppositum est incommunicabile, et ratio essentiae ut essentiae habent aliquam distinctionem praecedentem omnem actum intellectus creati et increati (Ordin. Lib. II, dist. 2, parte 2, q.1, n.389, p. 349).

É preciso dar o devido realce à fórmula: “ante omnem actum intellectus creati et increati”. Duns Scotus com estas palavras diz com clareza insofismável que a distinção em que pensa deve estar “in re” e que não nasce da ação intelectual do sujeito pensante, não é uma distinção de razão. Com isso se distancia clara e decididamente da “distinctio rationis cum fundamento in re”. A fórmula do “ante omnem actum intellectus” é a chave para toda a doutrina que é conhecida sob o nome de distinção formal. Cumpre notar ainda a reserva com que se exprime: “sine assertione et praeiudicio melioris sententiae”. Na “Lectura”, anterior à Ordinatio, não se exprimira assim com reserva, mas dissera afoitamente: “... quia sic esse intellectus meus no dubitat...” (Ordin. Loc. cit. ed. Vaticana, loc. cit., nota).

Que argumentos tinha Duns Scotus para asseverar uma distinção “ante omnem actum intellectus” entre a essência e as pessoas divinas? Vejamos primeiro as suas formulações, depois expliquemos.

A primeira hipóstase possui formal ou realmente algo de comunicável, do contrário não poderia comunicar; possui também uma realidade incomunicável, do contrário não poderia ser pessoa positivamente numa entidade real. Entendo o “realmente” no sentido de que não se origina de nenhum modo de inteligência atuada, mas que esta entidade existiria aí, mesmo se nenhum intelecto estivesse atuado. É isso o que chamo de “esse ante omnem actum intellectus”. – Ora, não pode acontecer que uma entidade seja comunicável antes de qualquer ato da inteligência... e outra entidade seja incomunicável antes de qualquer ato da inteligência... se não houver, também antes de qualquer ato de inteligência, uma distinção entre esta e aquela realidade. Logo...

Primum suppositum formaliter vel realiter habet entitatem communicabilem, alioquin non posset eam communicare; habet etiam realitatem incommunicabilem, aliquin non posset esse positive in entitate reali suppositum. Et intelligo sic “realiter” quod nullo modo per actum intellectus considerantes, immo quod talis entitas esset ibi, si nullus intellectus consideraret, dico esse ante omnem intellectum. – Non est autem aliqua entitas ante omnem actum intellectus ita quod non per actum intellectus, communicabilis, ita scilicet quod sibi contradicat communicari, nisi ante omnem actum intellectus, hoc est, non praecise per intelligere, sit alique distinctio inter hanc entitatem et illam; ergo... (Ordin. Lib. I, dist. 2, parte. 2, q.1, ed. Vaticana, vol. II, n.390, p. 349-350).

Cumpre observar que Duns Scotus não deixa nenhuma dúvida sobre a sua doutrina, quanto a isto: não se trata duma distinção de razão, nem mesmo com fundamento “in re”, mas trata-se duma distinção objetiva, existente mesmo que não haja nenhuma atividade intelectual. Analisemos o argumento. Deus Pai possui algo que pode ser comunicado, a saber, a essência divina. "Possuir algo" aqui significa um dado objetivo “transcendental”, no sentido de existência propriamente

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dita e não só pensada. No mesmo sentido há também o que não pode ser comunicado, isto: a personalidade, o "ser Pai", o "não ter origem em nenhum sentido”. Isto são dogmas. Ora, não pode o mesmo dado simultaneamente ser comunicável e incomunicável - e como a essência divina é simples, o “simil” necessariamente deve ser tomado em sentido rigoroso. Logo deve haver uma distinção entre estes elementos. Como, porém, a comunicabilidade e incomunicabilidade existem antes de, e independente de qualquer ato de pensamento ("ante omnem actum intellectus”), segue que também a distinção entre os elementos deve ser anterior a qualquer ato de pensamento.

Uma segunda prova apresenta Duns Scotus: afirmando-se que no Pai entre paternidade e essência divina antes de qualquer ato de pensamento não há distinção, então segue que no Pai não existe nada que não seja comunicável, uma vez que a essência é comunicável. Disto segue então que ou o Pai comunica ao Filho a Paternidade ou que a Paternidade não é um dado de ordem objetiva ("Si dicas, quod ante omnem actum intellectus Patris non est ibi aliqua distinctio, sed est entitas omnino unius rationis, et ita nullam entitatem positivam in se habet Pater quam non communicat Filio: ergo communicat ei paternitatem sicut essentiam" [Ordin. lib. I, dist. 2, parte 2, q. 1, ed. Vaticana vol. II, p. 391, p. 350). O argumento é tão claro em seus elementos, que não necessita de explicação.

Mais complexo é o terceiro argumento. Duns Scotus parte da seguinte consideração: na origem do Filho o Pai, "origine prius”, conhece tanto a natureza divina quanto o "quo suppositum est suppositum". Conhece a natureza divina como comunicável, conhece o elemento constitutivo da pessoa como incomunicável. Ora, admitido isto, existem duas possibilidades: 1. o pai conhece estes dois dados como objetos de formalidade distintas, ou 2. como o mesmo objeto formal sob modos diferentes de intelecção. Uma terceira possibilidade não existe. Suponhamos o caso de o Pai conhecer a essência divina e o constitutivo da hipótese como formalmente idênticos e as distinções como resultantes dos modos diferentes de intelecção, que seguiria? Neste caso entre os dois dados não poderia existir maior distinção que por exemplo entre Deus e divindade, isto é, entre o concreto e o abstrato em Deus. Neste caso, porém, também não seria possível que o Pai conhecesse o constitutivo formal da hipóstase como incomunicável e a natureza como comunica, pois que estes dois atributos são objetivos, não resultam apenas de modos de conhecer. Ora, o conhecimento que o Pai tem em qualquer hipótese é a simples verdade. E seguiria, então, que ou a hipóstase seria comunicável ou a essência incomunicável - não poderia a essência ser comunicável e a hipóstase incomunicável. A conclusão, pois, seria que a trindade de pessoas na unidade de essência seria impossível, com o que se evidencia o erro da hipótese feita. Pelo que só resta a outra suposição, o Pai conhece a essência divina e o constitutivo formal da hipóstase como objetos formais distintos. Uma vez que isto deve ser assim e de fato assim é, pode-se continuar a refletir do seguinte modo: Deus Pai ou Deus simplesmente também só possui conhecimento intuitivo, pois que o conhecimento abstrativo, qualquer seja, é imperfeição. Ora, um conhecimento intuitivo, desde que seja verdadeiro como deve ser o de Deus, corresponde perfeitamente àquilo que o objeto é em si e

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como existe de fato. Um objeto, porém, pode ser conhecido intuitivamente de modo imediato em si mesmo, ou então em outro objeto que o contém de modo eminente (eminenter) . Por isso os objetos conhecidos intuitivamente como formalmente diferentes ou são tais que um contém o outro de modo eminente (eminenter continet), ou cada qual dos objetos é termo do ato de intelecção em si mesmo imediatamente. Vistos e admitidos estes dados, cumpre considerar que nas hipóstases divinas nada do que as constitui formalmente pode estar de modo eminente em outro objeto (non continentur in aliquo eminenter), pois neste caso nada mais seriam que ser comunicado, quando são exatamente o contrário. Por isto não podem ser conhecidas em conhecimento intuitivo de outro objeto que as contenha eminentemente - tal objeto não existe. Logo, tudo o que constitui as hi-póstases divinas em sua realidade formal e que perfaz objeto formal de conhecimento intuitivo é termo da intuição como objeto em si mesmo imediatamente. Isto, porém, é exatamente a proposição de que antes de qualquer ato intelectual são distintas (habent aliquam distinctionem ante omnem actum intellectus) (cf. Ordin. lib. 11 dist. 2, parte 2, q. 1, n. 390-394, ed. Vaticana vol. II p. 349-352).

Estas considerações e os argumentos feitos, pois, levam à conclusão de que entre a essência e as hipóstases divinas deve existir uma diferença “ante omnem actum intellectus”, isto quer dizer: uma diferença que não se funda no sujeito pensante, mas nos dados existenciais transcendentes.

Que distinção será esta? É evidente que não pode ser distinção real, pois que esta supõe coisas distintas, o que a simplicidade divina exclui. Não se pode dizer que as hipóstases são cada qual uma “coisa” e a essência divina “coisa” também. Disto resultaria que em Deus existem quatro “coisas” e em última análise chegar-se-ia a afirmar a existência de quatro deuses. Nem se pode pensar numa distinção de coisas potenciais de “coisas” que não sejam reais, uma vez que em Deus não existe nenhuma potencialidade (loc. cit. n. 400, ed. Vaticana, vol. II, p. 355).

São Boaventura, refletindo sobre esta distinção, deu-lhe o nome de distinção de razão (cf. sent. Lib. I . dist.5, art.1,q.1, ed. Quarachi, vol. I, col. 113a; dist. 26, art. un., q.1, ad. 2, ed. Quaracchi vol. I, col 453a; dist. 45, art. 2, q.1, i.c, ed. Quaracchi, vol. I, col. 804ab). Duns Scotus comenta esta terminologia dum modo bastante estranho. Diz: “ratio” nestas passagens não significa a atividade mental mas a “quidditas rei”, enquanto é objeto da inteligência. “Distinctio rationis, pois, neste caso significaria “distinctio quiditatis rei secundum quod quidditas est obiectum intellectus" (Scotus, loc. cit. n. 401, ed. Vaticana vol. II, p. 355).

Segundo Duns Scotus, poder-se-ia dar à distinção entre a essência e as pessoas divinas também o nome de “distincio virtualis” (loc. cit. n. 402). Esta locução em Duns Scotus tem um sentido diferente daquilo que significa no tomismo. Para o Subtil, significa uma diferença “ante omnem actum intellectus”, enquanto que para os tomistas significa uma diferença “post actum intellectus". Vê-se que o termo é praticamente equívoco, e mais: significa não apenas coisas inteiramente distintas,

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mas até opostas. Por que Duns Scotus deu tal sentido à locução? Diz que onde se verifica a distinção questionada, os objetos diferentes não são “res et res”, mas "una res habens virtualiter sive praeeminenter quasi duas realitates, quia utrique realitati ut est in illa una re competit illud quod est proprium principium tali realitati ac si ipsa esset res distincta..." (loc. cit. n. 402).

Conquanto não considere erradas as expressões “distinctio rationis” e “distinctio virtualis", no sentido em que as interpretou, acha contudo que não são muito apropriadas para designar a distinção existente entre a essência e as pessoas divinas. Por isto as rejeita e procura uma expressão mais adequada. Chama a atenção para os vários graus de unidade, ou mesmo espécies de unidade: ”unitas aggregationis ... ordinis ... per accidens ... per se ... simplicitatis” (loc. cit. n. 403). Graus ou espécies semelhantes também existem para a identidade, e quando se fala em identidade não se pensa necessariamente e sempre na formal. Para que haja identidade formal, estabelece as seguintes condições: “Voco autem identitatem formalem [illam] ubi illud, quod dicitur sic idem, includit illud cui dicitur sic idem in ratione sua formali quidditativa per se primo modo” (Loc.. cit. n. 403). O “per se primo modo" se refere ao "estar incluído". Para exemplificar: deste modo o universal está incluído no particular, o predicado assim está incluído no sujeito e o sujeito no predicado quando se trata de definições propriamente ditas. Incluído “per se", numa formalidade, portanto, está aquilo que faz parte de sua definição essencial. Incluído “per se primo modo" está alguma coisa em outra, quando o predicado não encerra em sua significação nada que não exista no sujeito. Incluído “per se secundo modo", quando a significação do predicado ultrapassa a do sujeito. Explicados assim os termos, vê-se que para a identidade formal Duns Scotus reclama o seguinte: 1. os dois elementos, dos quais se afirma, devem pertencer um à essência do outro; 2. na proposição em que é afirmada, o predicado, com seus elementos materiais e formais, deve estar inteiramente contido no sujeito; 3. os dois pontos mencionados devem ser assim por necessidade essencial e por essência.

Fixados estes conceitos, pode-se fazer a aplicação a Deus. É um fato que todos concedem que a definição essencial de Deus não pode conter a definição formal das propriedades da hipóstase e que a definição da hipóstase não inclui os elementos formais da definição essencial da essência. Só assim se pode compreender que “ante omnem actum intellectus” a realidade que é essência é comunicável, enquanto a hipóstase enquanto hipóstase é incomunicável. Só assim se compreende que “esse essenciae” exato e formal não é o “esse hypostaseos” exato e formal. Com outras palavras: entre essência divina e hipóstase não existe uma identidade que corresponda aos elementos necessários para a definição da essência divina e hypostase.

De tudo isto segue que se deve admitir entre essência e hipóstase em Deus uma distinção, e que a distinção que provém do pensamento não basta para satisfazer as condições vistas. Como a distinção real também não pode ser admitida, é necessário recorrer a uma terceira espécie de distinção. Na Escola Escotista esta recebeu o nome de “distinctio formalis”. Duns Scotus pessoalmente não usou esta

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terminologia e se exprimiu com extremos de cuidado. "É melhor dar preferência à formulação negativa, isto é: “isto não é formalmente idêntico”, em vez de dizer: “isto se distingue assim e assim” (loc. cit. n. 404). Suas preocupações, porém, foram ainda mais subtis. Indagou: "Não será coerente dizer: essência divina e hipóstase divina não são formalmente idênticas, logo são formalmente distintas?” (loc. cit. n. 405). E respondeu: "Não, isto não é coerente, porque a formalidade é afirmada numa e negada na outra" (loc. cit. n. 405), e entre o “nada” e o “algo” propriamente não se pode dizer que há diferença, pois que a distinção é uma relação que reclama dois extremos e não pode existir se um dos extremos não existe – e o “nada” não existe.

Concluindo, diz Duns Scotus:

Breviter dico, quod in essentia divina ante omnem actum intellectus est entitas “a” (ratio qua formaliter suppositum est suppositum) et entitas “b” (ratio essentiae ut essentiae), et haec formaliter non est illa, ita quod intellectus Patris considerans “a” et considerans “b”, non habet ex natura rei unde ista compositio sit vera: “a” non est formaliter “b”, non autem praecise ex aliquo actu intellectus circa “a” et “b” (loc. cit. n. 406).

Que se há de pensar de tudo isto? Em todo caso não se poderá deixar de "tomar em consideração o modo extremamente diferenciado e reservado com que Duns Scotus se exprimiu. As tentativas de refutação, feitas no decorrer dos séculos, não atenderam às formulações subtis e às distinções extremamente delicadas, supondo uma doutrina bem rudimentar e pouco diferenciada. Para discordar, é preciso antes de mais nada alcançar o ponto em que Duns Scotus se situa. E situa-se, como se viu, mais que tudo na análise do “fundamentum in re", tão pouco analisado entre os que afirmam a “distinctio virtualis" no sentido tomista. Não será que, analisando o "fundamentum in re" com mais cuidado, se chega a afirmações ao menos bem mais próximas das de Duns Scotus, do que as que costumam ser feitas?

Uma questão grave que se justifica é: e a simplicidade infinita de Deus? Duns Scotus não perdeu de vista esta verdade em suas investigações sobre a distinção entre essência e hipóstase em Deus. Procedeu da seguinte maneira: é um fato indiscutível que também para o conhecimento intuitivo de Deus existe em Deus algo que é comunicável e o que não é comunicável. Como a ciência intuitiva de Deus corresponde à objetividade e não nasce de abstração, segue que estas diferenças devem existir “in re", no próprio objeto, e não podem derivar do sujeito pensante. Estas diferenças, porém, levam necessariamente à afirmação de que em Deus o que é comunicável e o que é incomunicável não é formalmente idêntico, pois que do contrário ou a ciência divina estaria labutando em erro ou não seria ciência intuitiva. Disto segue, como conclusão indeclinável, que a essência divina não é formalmente idêntica às pessoas divinas. Constando isto, e constando simultaneamente a simplicidade infinita de Deus, segue que estes dois dados não podem colidir. “Ista autem non identitas formalis stat cum simplicitate Dei, quia hanc differentiam necesse est ponere inter essentiam et proprietatem, sicut supra d. 2, q. un. ostensum est" (Ordin., lib. I. dist. 8, q. 4, n. 21, ed. Vivès, vol. IX, p. 667a); nesta distinção oitava, aliás, Duns Scotus prova que esta “non

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identitas formalis” existe também entre os atributos essenciais de Deus e que por conseguinte é um erro atender a simplicidade divina de tal modo que se oponha a esta distinção.

CONCLUSÃO

Para completar o quadro da doutrina trinitária de Duns Scotus, muitos outros pontos deveriam ser mencionados. Mais que tudo – como foi frisado logo de início – teria sido necessário mencionar, ponto por ponto, os argumentos do Subtil, pois que neles mais do que tudo está a sua originalidade, está a sua doutrina trinitária. Para a finalidade deste resumo, porém, basta o que ficou dito. Percebe-se quanto o conceito de pessoa e a doutrina da “non-identitas formalis” estão onipresentes em todos os pormenores desta doutrina e quanto são aplicados com coerência.

Dever-se-ia escrever um tratado sistemático da doutrina trinitária com os muitos elementos que Duns Scotos legou à posteridade. Ele mesmo não elaborou um tratado sistemático, mas ajuntou questão a questão, assim como apareciam a propósito dos temas tratados pelo mestre das sentenças ou como lhe eram propostos nas questões quodlibetais. Talvez também se abstivesse propositalmente de escrever um tratado sistemático, por estar convencido demais do caráter fragmentário da revelação neste assunto. Legou não só questões resolvidas, deixou muitas sem solução e outras vezes rasgou horizontes ainda não explorados. Os escotistas terão levado avante as pesquisas do mestre de sua escola? Quanto conhecemos os tratados trinitários escotistas, temos a impressão de que se viram acuados à defensiva, sem conquistarem a oportunidade de elaborações positivas, não apologéticas. Em suas apolologias do mestre nem sempre foram felizes. Não atenderam suficientemente à coerência do pensamento, puseram-se a defender pormenor após pormenor, enganando-se não raras vezes e tomando como afirmação de Duns Scotus o que ele de fato não afirmou. Outras vezes transformaram em tese o que ele tinha aventado apenas como hipótese de trabalho. Para escrever um tratado sistemático de doutrina trinitária, segundo Duns Scotus, antes de mais nada será necessário voltar ao próprio texto do mestre e aferir com ele tudo quanto a escola escotista afirma. Em seguida, retomar o fio da pesquisa, onde Duns Scotus o largou e tentar seguir pelos caminhos por ele indicados. Ver-se-á depois até que ponto o caráter fragmentário da revelação permite um conjunto sistemático. Nisto, porém, será necessário cultivar também o espírito crítico do Subil, para não acontecer que demos passe livre a doutrinas modalistas ou triteístas – como tantas vezes aconteceu durante o decorrer da história

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COMENTÁRIOS

DA PESSOA

Hermógenes Harada*

INTRODUÇÃO

É bem conhecida a definição de pessoa, de Boécio: persona est naturae rationalis individua substantia.1 Pessoa aqui se refere ao indivíduo humano, portanto ao ser do homem.

A respeito dessa definição, Tomás de Aquino diz ser ela aplicável também às três pessoas da Santíssima Trindade, contanto que se entenda rationalis como intellectualis e individua como incommunicabilis.2 Nessa perspectiva a definição soaria: persona est naturae intellectualis incommunicabilis substantia.3 Pessoa aqui se refere às pessoas da Santíssima Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo. Portanto ao ser de Deus num sentido todo próprio, a ser explicitado mais tarde, no fim do comentário.

A seguir, tentemos comentar a 17ª conversação espiritual4 de Mestre Eckhart, intitulada: Como deve o homem manter-se em Paz, quando não se encontra em penoso labor externo, que Cristo e muitos santos tiveram; como o homem,<então>5 deve seguir a Deus.6 Só que o que segue como comentário tem pouco a ver com comentário, pois o seu modo de proceder é em várias reflexões que são excursos, a modo de hipóteses, como um divagar para dentro de pressuposições, presumivelmente pré-jacentes sob os termos usados pela

* Pesquisador da Faculdade de Filosofia S. Boaventura.

1 Pessoa é substância individua da natureza racional.

2 Tomás de Aquino, S. theol. Ia, q. 29,a.3, ad 4.

3 Pessoa é substância incomunicável da natureza intelectual.

4 Reden der Unterweisung (conversações instrutivas), traduzido em Mestre Eckhart, O livro da Divina Consolação e outros textos seletos. Petrópolis: Vozes, 1991, como Conversações espirituais. Cf. também Scintilla, n. 1, jan.-jun.04, p. 155s.

5 Os textos alemães de Eckhart são em alemão medieval (Mittelhochdeutsch), que na edição moderna de suas obras foram vertidos em alemão atual. Os sinais de inclusão <...> indicam que as palavras ali cercadas foram acrescentada, ou para suprir lacunas ou para melhorar a fluência atual da linguagem, por ocasião dessa versão.

6 Wie sich der Mensch in Frieden halte, wenn er sich nicht in äusserer Mühsal findet, wie Christus und viele Heilige sie gehabt haben; wie er Gott <dann> nachfolgen soll.

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definição acima mencionada da pessoa, e então a partir dali tentar ler a 17ª conversação espiritual de Eckhart, ouvindo a ressonância de fundo, ontológica, das suas exortações espirituais-morais, digamos ônticas.

Mas, diante desse texto de Eckhart, pergunta-se de imediato: o que tem a ver esse texto com a definição de pessoa de Boécio e de Sto. Tomás? A implicação desse texto com a definição de pessoa, embora Eckhart não use a palavra pessoa no texto em questão, está presumivelmente justificada pelo fato de Eckhart exortar com repetida e acentuada insistência que cada um dos seguidores de Cristo deve segui-lo a seu modo, no modo próprio de cada um. Aqui o modo próprio se refere ao próprio de cada um de nós, a saber, ao que há de mais “substancial” em mim, à “pessoa” de mim ou talvez digamos nós, hoje, ao meu Self ou Selbst.

Nessa 17ª Conversação, Eckhart descreve frustração e desânimo usuais das pessoas, seguidoras de Cristo, quando se descobrem medíocres, ao se compararem com Ele e com os santos, seus discípulos extraordinários. E segue o texto:

1 TEXTO

Por isso, essas pessoas, quando no Seguimento se acham deles tão desviados, se consideram longe de Deus, a quem elas não poderiam seguir.

Ninguém, jamais, deve fazer tal auto-avaliação! O homem de modo algum deve se considerar longe de Deus, nem por causa de quebraduras, nem por causa de fraquezas, nem por nada, seja o que for. E por mais que tuas grandes transgressões tenham te arrastado a vaguear longe de Deus, tu deves acolher a Deus como próximo a ti. E há um grande mal nisso de o Homem deslocar a Deus para longe de si; pois, seja que o homem ande longe ou perto de Deus: Deus jamais vai para longe, ele permanece com constância bem perto e se não puder ficar dentro, ele se cola à porta e dela não se afasta.

Assim também é com o rigor do Seguimento. Observa em que pode consistir nesse caso o teu Seguimento. Tu deves conhecer, deves ter percebido em que és exortado por Deus da maneira mais forte; pois de nenhum modo os homens são chamados a Deus em um caminho, como diz São Paulo <1Cor 7, 24). E tu, se achas que o teu caminho, o mais próximo não corre sobre muitas obras exteriores e sobre grande e penosa labuta ou privações – nas quais, nesse caminho, também como tal não se coloca tanto acento, a não ser que para isso o homem seja propriamente impelido por Deus, e que tenha a força, para realizar tal coisa retamente sem o distúrbio errante da tua interioridade –, se tu, portanto, de tudo isso, nada encontras em ti, então estejas totalmente em paz e nisso não te deixes importar muito.

Poderias sem dúvida dizer: Se não há nisso importância, por que então assim o fizeram nossos antepassados, muitos santos?

Assim, pondera, pois: Nosso Senhor lhes deu esse modo, e também a força para assim agir, a ponto de eles manterem esse modo até o fim, e justamente ali, nisso, ele encontrou sua complacência junto deles; é ali, nisso que eles deviam alcançar o que é o melhor de si. Pois Deus não atou a salvação dos homens a certo modo especial. O que um modo tem, isto não o tem o outro modo; o poder de realização, porém, Deus proporcionou a todos os

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modos bons, e não é negado a nenhum modo bom, pois um bem não é contra o outro. E por isso a gente devia perceber por si que não se age retamente se, ao ver ocasionalmente um homem bom ou dele ouvir falar, o avaliar como inteiramente perdido, por não seguir o modo da gente. Se não agrada à gente o seu modo, então não se leva em conta o seu bom modo nem sua boa disposição. Isto não é justo! No modo das pessoas deve-se atentar mais a isso que elas possuem uma boa intenção, e que não desprezam o modo de ninguém. Não pode cada um particular ter somente um modo, e não podem todos os homens ter somente um modo, nem pode um homem ter todos os modos nem cada modo de um homem.

Cada qual guarde o seu bom modo e todos <outros> modos ali dentro e empuxe no seu modo todo o bem e todos os modos. Troca do modo faz o modo e o humor instáveis. O que um modo te pode dar, isto podes também alcançar no outro modo, enquanto ele é bom e louvável e tem somente a Deus em vista. Além disso, não todos os homens podem seguir um caminho. Assim o é também com o Seguimento do rigoroso teor de vida daqueles santos. Deves certamente amar tal modo, e ele te pode agradar, sem que tu precises segui-lo.

Mas poderias dizer: Nosso Senhor Jesus Cristo tinha sempre o supremo modo; ao qual devemos seguir constantemente por causa da retidão.

Isto é certamente bem verdade. A Nosso Senhor devemos seguir como convém e, no entanto, não em cada modo. Ele, Nosso Senhor jejuou 40 dias; jamais, porém, deve-se empreender em segui-lo nisso. Cristo fez muitas obras na intenção de que devamos segui-lo espiritual e não corporalmente.

Por isso, devemos ser aplicados para que o possamos seguir no modo espiritual, pois ele tinha mais em vista o nosso amor do que as nossas obras. Nós devemos cada vez segui-lo no próprio modo. Como, pois?

Ouve: em todas as coisas! - Como e em que modo? – Assim como eu já o disse muitas vezes: eu considero uma obra espiritual como muito melhor do que uma corporal.

Como?

Cristo jejuou 40 dias. Nisso o sigas, assim a ponto de observares a que estás bem mais inclinado ou pronto: sobre isso concentra-te e com acuidade fica de olho em ti mesmo. Muitas vezes convém te afastares disso mais e sem pré-ocupação, do que te privares totalmente de todas as comidas. Assim, também te é muitas vezes mais difícil silenciar uma palavra do que abster-te simplesmente de toda a fala. E deste modo pesa muitas vezes muito mais aceitar uma pequena palavra de ofensa de pouca importância do que talvez admitir um pesado golpe, para o qual a gente se tinha prevenido, e nos é às vezes mais difícil deixar algo pequeno do que algo grande, e erigir uma pequena obra do que uma que se tem por grande. Assim, pode o homem na sua fraqueza seguir muito bem a Nosso Senhor e não pode nem precisa se considerar afastado longe dele.

2 COMENTÁRIO

2.1 Indivisibilidade e incomunicabilidade

Com uma proibição incisiva, Eckhart não nos permite avaliar o ser do relacionamento entre Deus e criatura, introduzindo na compreensão dessa

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partícula conjuntiva “e” distância de separação. Antes, o seu modo de falar é o de nos incentivar a compreender relação Deus-criatura como radicalização cada vez mais intensa de união, união essa que, a partir de Deus é tão séria que é imediatez e totalidade ab-soluta:

Ninguém, jamais, deve fazer tal auto-avaliação! O homem de modo algum deve se considerar longe de Deus, nem por causa de quebraduras, nem por causa de fraquezas, nem por nada, seja o que for. E por mais que tuas grandes transgressões tenham te arrastado a vaguear longe de Deus, deves, acolher a Deus como próximo a ti. E há um grande mal nisso de o Homem deslocar a Deus para longe de si; pois, seja que o homem ande longe ou perto de Deus: Deus jamais vai para longe, ele permanece com constância bem perto e se não puder ficar dentro, ele se cola à porta e dela não se afasta.

Proximidade-imediatez: communicatio e praticipatio

Essa ab-soluta proximidade de Deus da sua criatura, considerada a partir de Deus, se chama communicatio (comunicação). Trata-se da comunicação, a saber, da incondicional doação de si de Deus, do ser de Deus à criatura. Como Deus é o ser, ipsum esse (o próprio ser), a plenitude do ser, de tal sorte que fora, ao lado, para além ou para aquém Dele em se dando a si todo, nada há que seja ser, sugere a pergunta: como é possível, pois que haja criaturas como entes? As criaturas, que realidade possuem, se fora de Deus não pode ser senão nada? Como, porém, os entes criados são, constituindo a imensidão do universo criado, é necessário permitir que elas sejam de algum modo. Assim, atribuímos às criaturas uma entidade, mas entidade de participação no ser de Deus. Participação significa ter parte, tomar parte.

Usualmente se diz que esse binômio communicação-participação é para não se cair no panteísmo, ao falar do relacionamento Deus e criatura. Certamente, o medieval cuidava com muito rigor que a explicação do relacionamento Deus e criatura fosse livre de panteísmo. Mas esse cuidado não significava de modo algum o receio de aproximar Deus demasiadamente da criatura, mas pelo contrário o medo de afastá-lo, a Ele e a criatura, do ser próprio da proximidade, da imediata intimidade sui generis desse relacionamento inominável. O medo do pensamento medieval expresso no combate ao panteísmo é o receio de reduzir o sentido do ser próprio da realidade chamada Deus-criatura a um outro sentido do ser, inadequado e impróprio ao seu nível de intensidade, inconveniente ao da região das substâncias simples. Nesse sentido, para o medieval, o problema do panteísmo parece surgir somente se não se tiver suficiente sensibilidade ontológica, i.é, senso de diferenciação pelo sentido do ser operante na fala do relacionamento Deus e criatura. Se o sentido do ser ali operante for o do ser na acepção do ser físico-coisal quantitativo, então o relacionamento entre Deus como o ser absoluto e a criatura como o ser em parte resulta na relação de coisa e coisa, cuja diferença é apenas de quantificação, o todo de um lado e o em parte, de outro. Aliás, numa tal colocação, de modo algum se dá relação, muito menos, relacionamento, pois tanto Deus como criatura são reduzidos à coisa, de tal sorte que aqui nem sequer dá-se o toque “entre” coisa e coisa. Esse modo de o homem se entender, e a tudo quanto de alguma forma está referido a ele é resultado da

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dominação de um determinado sentido do ser, denominado coisal, a partir e dentro do qual o homem se posiciona como esta coisa-sujeito e agente da relação que ele lança sobre aquela coisa-objeto chamado Deus, do cujo ser ele, o homem, participa. Como ser aqui é entendido como ser-coisa, coisa aqui e coisa lá, por mais que se diga serem diferentes, a coisa divina e a coisa criatural, esta coisa, finita e aquela infinita etc., são feitas do mesmo elemento. Surge a perspectiva do panteísmo que na realidade deveria ser chamado de panrealismo.

Repetindo com outras palavras: os termos communicatio e participatio são termos usados pelo pensamento medieval para viabilizar a proximidade do relacionamento Deus-criatura, salvaguardando a absoluta alteridade de Deus, a sua aseidade; o reconhecimento do a priori de que o seu ser é a plenitude do ser, de tal modo que “fora” de Deus não há ser, nem sequer nada, enquanto este ainda de alguma forma pode ser predicado pelo verbo ser.7 Mas ao mesmo tempo, com essa afirmação, sob o termo participatio, tenta-se salvaguardar a in-seidade da criatura, e evitar que criatura seja apenas um prolongamento de Deus. A criatura é um ente in se, não in alio, embora seja totalmente ab alio e não a se como Deus. Nesse sentido, criatura não é o ser de Deus, nem Deus o ser da criatura, não porque ela é finita e Deus infinito, mas porque o sentido do ser aqui operante não faz jus nem a Deus nem à criatura. Nessa estranha situação expressa nos termos Communicatio e participatio não se trata, como há pouco foi dito, do medo do panteísmo. Antes é medo de ser entendido como panteísmo, não porque não guarda a distancia entre Deus e criaturas, mas porque uma tal igualação coisificante de dois entes, a partir e dentro de um sentido do ser de densidade bem rarefeita, é inadequada para uma igualdade absoluta entre Deus e criatura, cuja proximidade e imediatez de Deus na criatura e da criatura em Deus somente pode ser realidade num sentido do ser, cuja palavra originária diz pessoa.8

Segundo a observação de Sto. Tomás, mencionada no início desse comentário a definição de Boécio – persona est naturae rationalis individua substantia –

7 A partir de Deus, ele é todo o ser, de tal modo que se “fora de Deus ainda houver algo que seja ser, ou esse ente não é senão apenas uma quimera ou Deus não é Deus. As criaturas seriam nessa perspectiva como palavras que saem da boca de Deus, é de Deus: comunicação de Deus.

8 Aqui pessoa não deve ser entendida como sujeito, mas sim como o ontologicum, o sentido do ser que inaugura uma dimensão do ser, cuja intensidade e pregnância do ser deixa ser de modo mais claro e evidente o próprio dos entes pertencentes à região do ser das assim chamadas substâncias simples ou dos espíritos. Se, porém, não tematizamos o sentido próprio do ser denominado pessoa, e permanecemos sempre de novo debaixo da conotação do ser da entificação coisal, podemos raciocinar: se aqui Deus é tudo e nós nem sequer “parte” como um ente em si fora de Deus, talvez houvesse uma única possibilidade de criatura ser, em sendo como Ele, doação absoluta de si inteira e totalmente no receber. Isto significaria que participar do ser de Deus não é outra coisa do que ser pura e simplesmente nada a não ser apenas pura recepção, a tal ponto de aqui não há um sujeito que recebe, mas apenas o receber. Mas um tal receber seria então não algo fora de Deus mas sim um momento da própria doação absoluta de si que é Deus. A situação aqui é um tanto estranha. Pois no pensamento medieval, somente Deus é, no sentido de ser ele ipsum esse, i. é, Deus e ser coincidem. Se é assim, o que são criaturas? Se são só em parte, como é possível que de alguma forma sejam como participantes, existentes fora de Deus, diferentes Dele. E, se são, há somente um modo de ser, a saber, uma parte, um momento, um algo Dele, Nele...

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aplicada às pessoas divinas, pode ser modificada pela sugestão de Sto. Tomás em: persona est naturae intellectualis incommunicabilis substantia. Em Boécio: substância individua se refere às criaturas. Em Santo Tomas: substância incomunicável se refere a Deus, não enquanto natureza, mas enquanto pessoa. Examinemos brevemente em que consiste a individualidade do indivíduo e da sua individuação, e em que consiste a incomunicabilidade da pessoa divina e da sua processão. Pois aqui no termo “pessoa” aparece a conotação da indivisibilidade9 e incomunicabilidade,10 como nitidez da perfilação da substância enquanto ens in se, de tal modo que nessa definição da pessoa se acentua mais a distância do que a proximidade no relacionamento Deus e criatura.11

Indivisibilidade ou incomunicabilidade se referem ao uno

Para que aqui possamos ver a diferença entre substantia individua e substântia incommunicabilis é necessário evitar três equívocos. O primeiro é de identificar o indivíduo do pensamento medieval como um momento pontualizado de funções de um conjunto, dentro do sistema das ciências naturais físico-matemáticas, onde o sentido do ser ali operante reduz toda e qualquer realidade à realização da classificação generalizante funcional, quantitativa físico-matemática. O segundo é, a partir do primeiro equívoco, pensar que a ordenação medieval do universo em intensificações do ser nas “graduações”, ou melhor, nas ordens de esferas de entificações, portanto a ordenação do universo em gênero, espécie e indivíduo a modo da definição essencial da árvore porfiriana, não é outra coisa do que uma modalidade antiquada da classificação generalizante, funcional, quantitativa físico-matemática, sem perceber que se trata de dois modos de “classificação” bem diversos. Assim, na ordenação das esferas das diferentes intensidades de ser, a saber, da esfera da substância material (o ente sem vida como pedra, metal), da esfera da substância vivente (os vegetais), da esfera da substância sensível (os animais), da esfera da substância racional (homem) não se percebe a diferença ôntico-ontológica da intensidade de ser na escalação da qualificação de ser das esferas.12 E o terceiro é, já dentro da ordenação medieval a modo da árvore

9 Pessoa como substância indivisível, da natureza racional, i.é, do homem (criatura).

10 Pessoa como substância incomunicável, da natureza intelectual, i.é, do Filho Unigênito do Pai. Os medievais caracterizavam a imagem e semelhança de Deus na alma, referindo a memória ao Pai, intelecto ao Filho e vontade (coração, afeto) ao Espírito Santo.

11 Talvez uma vez a partir e dentro do ontologicum, i. é, do sentido do ser próprio dessa dimensão em questão no nosso comentário, portanto do sentido do ser pessoa, indivisibilidade e incomunicabilidade da inseidade substancial, longe de ser distanciamento, é propriamente a condição da possibilidade de proximidade, de uma proximidade tal que Eckhart chama sem mais de igualdade.

12 Assim, colocam-se pedra, planta, animal e homem como entes (substâncias), um ao lado do outro, em diferentes conjuntos, como gênero, espécie, cada qual contendo os indivíduos correspondentes do conjunto, lançando sobre os diferentes conjuntos uma lógica de divisão, em cuja razão classificatória, o conteúdo como tal apenas funciona como elemento de delimitação quantitativa da ordenação em maior ou menor extensão lógica, a modo de conjunto de funcionalidade a modo quantitativo físico-matemático. Com isso se misturam dois modos bem diferentes de classificação, de sorte que não se está nem na “classificação” funcional

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porfiriana, entender a palavra substantia da expressão substantia individua e a palavra substantia da expressão substantia incommunicabilis como se fossem unívocas. Com outras palavras, esquecer que a ordenação a modo de Porfírio, somente diz respeito às substancias compostas, e que nas assim chamadas substâncias simples a intensidade do ser que qualifica o ente em questão entende o indivíduo, não como um caso da realização da espécie, e esta do gênero, mas como universal, cuja densidade faz coincidir espécie “indivíduo” com espécie, de tal modo que essa universalidade singular caracteriza a ordem dos entes não “materiais”.

Examinemos brevemente na ordenação dos entes denominados substancias compostas13 em que consiste e o que significa a individuação. Repetindo, a ordenação das esferas dos entes, substâncias compostas, se escala, iniciando de baixo em:

1) a substância dos entes simplesmente ocorrentes ou não vivos (coisas físico-materiais físicas, p. ex. pedra, metal etc.: = espécie ínfima substância que é também gênero para a espécie superior próxima vivente) e o seu modo de ser: ocorrer; 2) a substância dos entes vivos (coisas vegetais, p. ex. plantas: = espécie vivente e ao mesmo tempo gênero para espécie superior próxima animal) e o seu modo: viver (vivere). Aqui se inclui de algum modo a substância dos entes sensíveis (coisas animais, p. ex. gatos, pássaros = espécie animal e ao mesmo tempo gênero para espécie superior próximo homem) e o seu modo: = vivenciar ou sentir; 3) a substância dos entes racionais (coisas humanas, p. ex. homens, mulheres, crianças etc. = espécie supremo homem) e o seu modo: = conhecer. Nas três modalidades de “ser” substância – substância coisal (1), substância vivente (2), substância racional (3) – o termo substância parece ser unívoco, mas se bem examinado é em cada nível na escalação da ordenação, diferente quantitativa moderna, nem na ordenação essencial da intensidade do ser, medieval.

13 Como é usualmente conhecido, o universo medieval apresentava-se em ordenações da intensidade de ser que partindo de Deus (ens a se, absoluto e infinito), a fonte da possibilidade de ser e a plenitude absoluta de ser (Deus ipsum esse) formava algo como cascata de ser, em diferentes esferas ou níveis da intensidade de ser, até alcançar a esfera, a mais longínqua e diluída do ser, a saber, o mundo dos entes materiais sem vida, que por sua vez por assim dizer se esvai na pura possibilidade de ser denominada prima matéria ou nada. Essa “realidade” última da Criação ou do universo criado era descrita como “feita” “ex nihilo sui et subiecti” a saber, do nada de si e do substrato anterior prévio. Essa pura possibilidade de ser era também denominada de “potentia oboedientialis”. A totalidade dessas ordenações se constituía em duas grandes regiões do ser, que vistas na ordem ascendente, eram 1. a região das substâncias compostas, a saber: esfera a) da substância material sem vida (pedras, metais etc.); b) da substância viva (vegetais); c) da substância dotada de sensibilidade (animais); d) da substância dotada de racionalidade (homens, animal rationale). 2. a região das substâncias simples ou dos espíritos: esfera a) dos nove coros dos anjos na sua hierarquia ascendente b) Deus. Nessa ordem dos entes do universo medieval o Homem pertencia tanto à região das substâncias compostas como à das substâncias simples. E enquanto pertencente à região das substâncias simples, o que o caracteriza especificamente, a saber racionalidade (ratio, rationale) se escalonava na intensidade da perfeição do ser e recebia então na dinâmica ascendente como animus (alma), intellectus, mens (spiritus). Essa posição do homem por assim dizer no meio da graduação das ordenações do ser como que mediando a região de cima (das substâncias simples) com a região de baixo (das substâncias compostas) e vice-versa era devida à doutrina da encarnação. Homem aqui era entendido a partir e dentro do ser do Mistério da Criação, interpretado como Mistério da Filiação divina: a saber, Jesus Cristo, Deus feito Homem e Homem feito Deus.

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essencialmente. Na passagem de um nível para outro, não se dá apenas um acréscimo de uma qualidade diferencial específico, a uma substância-bloco, fixa, mas se dá uma transmutação substancial qualificativa no ser, a modo de “subsunção” da ordem inferior pela superior. Há ali na escalação das ordenações em diferentes níveis ascendentes e descendentes, um movimento da dinâmica de qualificação do ser.14 Assim, a substância-coisa da espécie-ínfima ocorre como gênero na espécie superior-vivente, para ser qualificada por diferença específica-vivente, embora na descrição da sua “composição” soe como ajuntamento de uma especificação a um genérico, está ali não como uma classe mais geral em vista de uma especificação mais delimitada do campo de extensão geral, mas sim de um movimento de gênesis (daí o termo gênero) donde brota, cresce e se consuma uma totalidade própria na sua perfilação. Nesse sentido o termo espécie pode e deve ser lido aqui como intensidade da presença como perfil do seu esplendor (esplendor da face, beleza). Portanto a “lógica” da escalação não é classificação do mais geral para o mais específico e então terminar no indivíduo como o extremo de delimitação ou vice-versa, do indivíduo para o mais geral, e do geral específico para o geral o mais extenso na abrangência, com o mínimo de conteúdo. Portanto, na escalação da ordenação das esferas das substâncias compostas a modo porfiriano, no pensamento medieval, trata-se de um movimento de essencialização que continua na ordenação das esferas das substâncias simples até culminar no Ente, que é em si e a partir de si simplesmente a plenitude do ser, denominado Deus. Trata-se, pois, do movimento da concreção dinâmica da imensidão, profundidade e da vitalidade, denominado pelos medievais de Obra máxima da Criação.

Dentro dessa perspectiva o que significa substantia individua, o indivíduo?

Indivíduo significa propriamente indivisível. A essa impossibilidade de dividir, opomos a divisibilidade, a possibilidade de dividir. E entendemos por dividir, partir, separar uma parte da outra, fazer em pedaços. Essa ação de dividir parte do que é aparentemente uno, em seus componentes, e se não forem componentes, em pedaços, até que não se possa mais dividir, pois se chegou ao último elemento nuclear, ao derradeiro “átomo”.15 Aqui podemos logo perceber que esse modo de divisibilidade e indivisibilidade pertence ao modo de ser acima descrito como o primeiro equívoco. O segundo equívoco era de pensar que esse modo de ser físico-matemático fosse uma versão modernizada, cientificamente mais limpa do modo de ser físico-corporal, ainda subjetivo e antiquado da ordenação do ser no

14 Por isso a expressão substância composta não é muito adequada para indicar essa implicação na escalação da qualificação no ser.

15 Se entendermos a realidade a partir e dentro da realização sob o sentido do ser do físico-matemático das ciências naturais modernas, a coisa entendida como quantidade e quantificações sempre é divisível infinitesimalmente. De tal sorte que na direção do máximo e do mínimo se abre total indeterminação em indefinido. Aqui não pode aparecer uma realidade e realização do tipo “totalidade”. Se nessa dimensão físico-matemático podemos de alguma forma pontualizar estaticamente o ente como algo, é porque delimitamos a extensão quantitativa, de aqui até aqui, e criamos a possibilidade de dentro desse trecho delimitado estabelecer medida válida em si, conforme a delimitação.

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pensamento medieval, a esfera a mais elementar, a ínfima da substância composta coisal. Para os medievais, nessa esfera, no entanto, os entes subsistentes sem-vida, p. ex., pedra, possuem peso, tamanho, densidade etc., que podem ser medidos em números, “matematicamente”, mas aqui peso, tamanho, densidade não são no seu ser reduzidos à pura “quantidade” matemática a modo das ciências naturais físico-matemáticas, mas são tomados concretamente dentro da experiência de uso, a partir e dentro e a modo de uma existência artesanal.16 Como é aqui, nessa perspectiva concreta da experiência do mundo circundante no uso e na vida, o que chamamos de gênero, espécie e indivíduo, p. ex. no mundo das pedras? A espécie pedra aparece sob a denominação de a pedra. E o indivíduo é denominado esta, aquela pedra.17 Aqui a pedra, a espécie é denominada universal. E esta pedra ou aquela pedra, o indivíduo é denominado singular. O relacionamento do universal para com o singular e vice-versa é bem diferente do do geral ou comum para com o individual ou particular. Trata-se de outro teor do ser. Aqui é preciso ser vista a diferença no teor do ser, portanto a diferença do sentido do ser operante em cada nível da intensificação do ser na escalada da ordenação dos entes no seu ser. Aqui, quanto mais elevado for o nível do teor do ser na dimensão a que pertence um ente, tanto maior é o teor da imensidão, profundidade e liberdade do seu ser, que aparece na densidade, envergadura e na qualificação do modo de ser de uma “totalidade”, denominada uno em se tratando do universo criado; e no “modo de ser” dentro da vida interna de Deus uno-e-trino de Um, por Eckhart, cuja vigência unitiva é oculta, retraída, mas se desvela como dinâmica do intercâmbio das três pessoas divinas, acima designadas de incomunicáveis. Esse “modo de ser” da intensificação no ser se chama universalidade. Uni-versal significa vertido, virado, convergido ao uno ou ao Um e designa a intensidade do ser, e não generalidade em oposição a particularidade.

Excurso ilustrativo:

Tentemos “ver” o universal à mão de um texto que descreve como um artesão “viu” a obra perfeita, antes de ela estar diante dele como realização da realidade.

16 Aqui a medição “métrica”, mesmo usando-se matemática, não significa que o sentido do ser dominante nesse uso dos números e da sua medição seja o do físico-matemático no sentido hodierno das ciências naturais. A medição concreta em números, operante no rigor de exatidão artesanal nas construções dos medievais, pode ser por assim dizer a experiência concreta pré-científica, no uso e na vida, a partir da qual incoativamente as ciências naturais físico-matemáticas podem grosso modo ter tirado provisoriamente os conceitos fundamentais da sua construção do saber como do seu “positum”. Mas na medida em que a construção se afasta desse início, pode ter sofrido uma modificação na intencionalidade, de tal sorte que o que vem à fala como medida destacada de exatidão objetiva físico-matemática se torna a medida básica de toda e qualquer objetividade e exatidão, da realidade como tal.

17 Aqui deve-se evitar a compreensão classificatória usual a modo “semi”-lógico-matemático de “a pedra” na acepção de “pedra em geral”, e de “esta ou aquela pedra” na acepção de “uma das pedras, em particular, individual”. Deve-se evitar também a compreensão de a pedra como a representação abstraída a modo indutivo das pedras individuais.

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O texto é do pensador chinês Chuang-tzu, e se intitula O entalhador de madeira, na tradução de Tomas Merton18:

Khing, o mestre entalhador, fez uma armação para sinos,/De madeira preciosa. Quando terminou,/Todos que aquilo viram ficaram surpresos. Disseram/Que devia ser obra dos espíritos./ O

Príncipe de Lu disse ao mestre entalhador:/ “Qual é o seu segredo?”

Khing respondeu: “Sou apenas operário:/ Não tenho segredos. Há só isso:/ Quando comecei a pensar no trabalho que me ordenaste/Protegi meu espírito, não o desperdicei/ Em ninharias, que não vinham ao caso./ Jejuei, a fim de pôr/Meu coração em repouso./ Depois de jejuar três dias,/ Esqueci-me do lucro e do sucesso./ Depois de cinco dias/Esqueci-me do louvor e das críticas./ Depois de sete dias/Esqueci-me do meu corpo/Com todos os seus membros./ “Nesta época, todo pensamento de Vossa Alteza/E da Côrte (?) se esvanecera./ Tudo aquilo que me distraía do trabalho/Desaparecera./ Eu me recolhera ao único pensamento/Da armação do sino. “Depois, fui à floresta/Ver as árvores em sua própria condição natural./ Quando a árvore certa apareceu a meus olhos,/ A armação do sino também apareceu, nitidamente,/ Sem qualquer dúvida./ Tudo o que tinha a fazer era esticar a mão/E começar. Se eu não houvesse encontrado essa determinada árvore/Não haveria/Qualquer armação para o sino.“O que aconteceu?/ Meu próprio pensamento unificado/Encontrou o potencial escondido na madeira;/ Deste encontro ao vivo surgiu a obra/Que você atribuiu aos espíritos” (XIX, 10).

Todo fazer do artesão era desprender-se de tudo quanto não era apenas a pura disposição de deixar ser. Assim, tornou-se límpida e pura transparência do receber. Esse vazio, essa suspensão, plena de acolhida, é o pensamento.19 Nessa aberta do receber se dá o que os medievais chamavam de materia ou potentia20 (a árvore certa) e simultaneamente forma ou actus (o aparecer da armação do sino nitidamente)21. Materia e forma e potentia e actus na sua simultaneidade é modo de expressar a dinâmica “una” do vislumbre da totalidade (eîdos) que se manifesta como arquétipo, como exemplar, uni-versal de toda e qualquer individuação desse

18 MERTON, Tomas, A via de Chuang Tzu. 4ª edição, Petrópolis: Vozes, 1984, p. 158-160. Chuang-Tzu significa Mestre Chuang. Seu nome é Chuang Chou. Pouco se sabe da sua vida. É um dos maiores pensadores chineses do Taoísmo, do século III/IV antes de Cristo. Natural de Sung, viveu pouco depois de Mêng-Tzu. Seus escritos estão reunidos no livro intitulado Chuang-Tzu, nei, wai p’ien (Escritas internas e externas de Chuang-Tzu). A Tradição atribui a autoria de nei p’ien a Chuang-Tzu e de wai-p’ien a seus discípulos. Cf. FEIFFEL, Eugen. Geschichte der chinesischen Literatur. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1959. p. 47.

19 Cf. razão, intelecto, Vernünfticheit, Vernunft na reflexão a seguir.

20 Hýle, matéria-prima – potentia oboedientialis, a concreção do receber.

21 Não é assim que primeiro ou simultaneamente aparece a árvore e depois ou simultaneamente a armação do sino. A nítida autopresença da armação do sino na sua perfilação concreta é o a priori que determina o material certo para a configuração certa e a maneira de como conduzir a confecção para o seu vir à fala individualizada dessa perfilação concreta. Os gregos chamavam essa perfilação concreta a priori de eidos, que não é idéia, muito menos representação, mas a dinâmica energética do ser consumado (dýnamis, enérgeia, entelécheia): a obra.

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protótipo. Aqui, portanto, a espécie (eidos) é vislumbre da totalidade, cuja medida é a plenitude da unidade da possibilidade consumada no e do todo.22 Nesse sentido, repetindo o que já dissemos acima, universal significa literalmente virado, concentrado na acolhida do uno: universo. A espécie, o eidos, o universal como perfilação compacta, concreta e coerente do ser todo no seu assentamento, na sua insistência na auto-presença do ser, é o que o medieval chamava de substância. Essa subsistência na plenitude do ser é que era captada como coisa indivisível, individua.

Assim, individual, indivisível não tem própria e primariamente a conotação de atômico, fechado em si, portanto também incomunicável, mas sim da consumação da plenitude do todo no seu ser. Assim entendido o “indivíduo”, para o medieval, o universal e o “individual” coincidem, dizem o mesmo. Para não confundir esse modo de ser uno, virado, concentrado no uno do todo, portanto do “indivíduo” com o particular oposto ao geral da nossa classificação hodierna usual, usemos para esse tipo próprio do “individual” o termo singular. Desse modo, o universal e o singular coincidem.

O Universal singular: a qualificação no ser

Acima na nota 15 dissemos que no universo medieval distinguimos a região das substâncias compostas e a região das substâncias simples. Se caracterizarmos a dinâmica da escalação ascendente dessas ordenações como crescimento na intensificação do ser, percebemos que aqui, os termos intensificação, intensidade não podem ser com rigor entendidos como sinônimos de aumento quantitativo, graduação, potencialiazação energética ou escalada de força. Mas como entender o aumento, a intensificação de outro modo? Costumamos responder: tratas-se não de quantidade, mas sim de qualidade do ser. Como, porém, entender o aumento, a graduação, a escalada de qualidade? É possível colocar as qualidades a modo de uma escalação de aumento ou de diminuição a modo quantitativo? Qualidades não constituem cada qual uma totalidade de tal modo que não é possível falar de aumento gradual de uma qualidade para uma outra? Aumento ou diminuição só é possível, não entre as qualidades, passando-se de uma para a outra gradualmente, mas apenas há aumento ou diminuição dentro de uma mesma qualidade, não no sentido de quantificação, mas no sentido de limpidez, claridade e pureza do quilate de qualidade em tornar-se ela mesma, sem mistura com uma outra dimensão que não seja a dela. Quando na ordenação das esferas do ser do universo medieval falamos de intensificação ou aumento do ser, devemos entender “intensidade”, “crescimento”, “escalação” do ser no sentido acima insinuado da qualificação. E no entanto, embora não entre aqui a quantificação, há

22 Não se deve representar aqui o todo ou a totalidade como soma das partes ou conjunto de múltiplas entidades, mas sim como intensidade da consumação, da “compactidade”, “concretude” e “coerência” da identidade como autopresença de si a partir e dentro de si mesmo, como assentamento, insistência no ser. Nesse sentido pertencem essencialmente à totalidade, a imensidão, profundidade e originariedade.

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constantemente onipresente em todas as escalas, qualitativamente diferentes do ser, algo como vigência ou presença que caracteriza um modo todo próprio de identidade e diferença, tratado na escolástica medieval sob a denominação da questão da univocitas et analogia entis.

Deixando para mais tarde a questão da identidade da onipresença do ser em todas as esferas dos entes na sua diferença qualitativa, cada vez como ser de cada esfera, observamos como é o relacionamento do universal e do singular nas esferas do ser da região das substâncias compostas. Na esfera das substâncias materiais-físicas, p. ex. temos o universal a pedra. O indivíduo é esta pedra. Aqui, nesse nível da intensidade do ser, a pedra só se torna presente, somente é como esta pedra. Portanto a pedra e esta pedra não são duas coisas, uma ao lado, dentro, acima ou a baixo da outra. A pedra-e- esta-pedra é o mesmo. No entanto, a coincidência aqui se dá como repetição23 da tentativa sempre renovada de esgotar a intensidade uni-versal como esta, aquela individualidade. Nesse nível do ser, no indivíduo a pregnância da uni-versalidade se apresenta mais rarefeita. Essa rarefação é o que aparece como a diferença específica dessa esfera na “qualificação” da substância como morto, sem vida. O mesmo modo de ser da coincidência se dá nas outras esferas das substâncias compostas, portanto, na esfera da substância vivente; na da substância dotada de sensibilidade, e até certo ponto na da substância dotada da racionalidade. Só que na medida em que cresce a intensidade do ser, portanto, como vida, sensibilidade e racionalidade, o indivíduo de cada uma dessas esferas cresce na pregnância do uni-versal, de tal modo que a coincidência universal-individual se torna cada vez mais imediata, direta como “indivisibilidade compacta”. E nesse sentido a possibilidade da reprodução dos indivíduos no nível do ser da pedra é maior do que p. ex. no nível do ser da planta; desta, maior do que no animal, deste maior do que no homem.24 Isto significa que quanto menos pregnância da presença do universal no indivíduo, tanto mais universal e indivíduo aparecem por assim dizer “separados”, e o universal como geral e o indivíduo como particular. E quanto menos pregnante, ou mais rarefeita a presença do universal no indivíduo, tanto mais a indivisibilidade ou incomunicabilidade, ou melhor, a unicidade, a singularidade do indivíduo é relativa e rarefeita, possui menos “assentamento” em si mesma, é menos “substancial”. O que equivale a dizer que quanto mais pregnante, mais coerente a presença do universal no indivíduo, tanto mais a incomunicabilidade ou a unicidade singular do indivíduo é absoluta, está mais assentada em si mesma, é mais substancial. Se continuarmos esse modo de ver a coincidência do universal e indivíduo, da mais relativa para cada vez menos relativa até à absoluta, agora para dentro da região das substâncias simples, portanto no reino dos espíritos, podemos dizer que

23 Podemos exemplificar esse estado-de-coisa numa experiência da criatividade. Quando a inspiração é rarefeita e pouca, o que vem à fala é também apoucado, de sorte que sua reprodução se torna como que repetição em série, sem a pregnância do próprio, do único e necessário.

24 A superioridade numérica da repetição aqui indica a rarefação da intensidade da presença do ser. Ou melhor, dito de outro modo, a rarefação da pregnância do ser que aparece na maior ou menor possibilidade numérica de repetição constitui as diferenças das esferas na ordenação da região das substâncias compostas.

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quanto mais se ascende na ordenação da intensidade do ser e se aproxima do ser por excelência que se chama Deus, tanto mais intensa a identidade do universal com indivíduo (singular), de tal sorte que na região das substâncias simples não há mais nem universal que de alguma forma saiba à generalidade, nem indivíduo que saiba à particularidade ou individualidade, mas ali o ente é cada vez totalidade, plenitude do seu ser, portanto é simplesmente uni-verso ou uni-versal, o que equivale a dizer é simplesmente singular, único, cada vez. Aqui, o ente é o em-sendo-cada vez totalidade,25 todo um mundo ab-soluto na unicidade, no uno da sua propriedade, única, plena, consumada.

Recordemos aqui a definição de Boécio da pessoa: naturae rationalis individua substantia. E a sua aplicação às pessoas da Santíssima Trindade na formulação sugerida por Santo Tomas é: persona naturae intellectualis incommunicabilis substantia. E dentro da perspectiva do que viemos falando nos Ex-cursos, perguntemos como devemos entender a indivisibilidade e a incomunicabilidade.

Usualmente entendemos o caráter próprio do indivíduo como indivisível. E entendemos o pré-fixo in como não, como negação. Assim não-divisível ou não-dividido insinua uma representação de algo compacto a modo de um bloco duro, difícil ou impossível de ser partido. Essa compactidade sugere a dificuldade ou impossibilidade de partilhar, de dar ao outro algo de si, portanto de não-comunicável, de incomunicabilidade. Essa imagem de compactidade quantitativa coisal é projetada p. ex. numa obra de arte, quando dizemos: essa obra é indivisível, não é reproduzível, não se pode repetir, é singular. E cometemos aqui o equívoco de pensar que o característico da intensidade e pregnância da totalidade é a compactidade-bloco, esquecendo-nos de que um bloco quantitativo material jamais é indivisível, pois por mais que se atomize um bloco sempre é possível ser dividido infinitesimalmente.

As colocações acima feitas nos Ex-cursos, porém, nos mostram que quanto mais se cresce na intensidade do ser, digamos, “qualitativamente”, cresce a compreensão da totalidade em todas as direções, no sentido de imensidão, profundidade, originariedade, vitalidade, sensibilidade, interioridade e liberdade. Assim, em vez de fixação e dureza compacta sem vida de coisa, aumenta o volume e a qualificação na mobilidade, finura, complexidade, diferenciação de estruturação, na coerência interna, possibilidade da generosa e cordial partilha, livre, sem constrangimento. Com outras palavras quanto mais se ascende na escala da ordenação dos entes em direção à região das substâncias simples o significado do indivíduo se afasta da acepção de duro, imóvel, compactidade de amontoação, de não-partilhável, para indicar cada vez mais a intensidade, a grandeza, a subtileza e vigência criativa e livre de ser, portanto o aumento da unidade da dinâmica de difusão generosa e livre, portanto o aumento da comunicabilidade. Dito de outro modo, isto significa que quanto mais se intensifica na qualificação do ser, tanto mais a indivisibilidade significa intensidade,

25 Insistindo, cf. a nota acima 19.

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coerência, unidade da fidelidade e autocomprometimento na doação de si, na comunicação, portanto da comunicabilidade. Tentemos entender nessa perspectiva a definição: Persona est naturae rationalis individua substantia.

2.2 O racional e o intelectual

Os adjetivos racional e intelectual na sua acepção usual se referem à faculdade chamada razão dentro da classificação tradicional das faculdades da alma em razão, vontade e sentimento. Sem negar que em Eckhart o racional e o intelectual possam se referir também à razão como uma das faculdades da alma e de suas ações, primariamente o racional e o intelectual dizem respeito ao ser ou ao modo da intensidade e qualificação do ser no nível da esfera Homem (animal ou ânimo racional).

Racionalidade e intelectualidade como qualificação da intensidade do ser

Nessa perspectiva, racional e intelectual devem ser entendidos ontologicamente e não tanto onticamente. Assim, racional e intelectual primeira e primariamente significam o específico, o próprio ser do homem, aquilo que perfaz a diferença essencial, i. é, substancial da sua natureza, i. é, da sua nascividade originária. Como tal, nesse sentido ontológico sob o termo razão ou intelecto estão subsumidas as três faculdades do homem de conhecer (razão ou inteligência), de querer (vontade), de sentir (sentimento).26

26 No pensamento medieval a definição do homem é “animale rationale”, animal racional. Ratio, Racional, aqui, primariamente, não tem tanto a ver com a nossa razão na acepção do “racionalismo”, mas muito mais com Verbum, que é tradução do Lógos e Nõus gregos. E animale não se refere ao bruto, ao bicho, mas sim a animus, a dinâmica vital do vivente sensível. Animale rationale é na realidade a tradução latina da determinação do ser do homem, em grego, tò zõon lógon échon: o vivente atinente a lógos. Isto significa: a vigência, a animação, cuja vitalidade é ser pertença, atinência fiel e obediente a Lógos é o que perfaz a essência, o ente, ou melhor o em-sendo chamado Homem. Esse ser do homem se formula onticamente como: o vivente que tem a linguagem. Linguagem aqui não tanto meio de comunicação, mas mais originariamente a potência da dinâmica criadora em trazer à fala, à concreção, o eclodir do mundo. E Lógos aqui entendido mais na acepção arcaica de ajuntamento, acolhida, colheita. Essa significação de colheita, acolhida aparece na conotação existente no termo alemão Vernunft, no alemão medieval de Eckhart vernünftiheit, cujo significado vem do verbo vernhemen que mais do que tomar, agarrar “ativo”, acena para o “passivo” receber, colher, dispor-se a acolher. Ratio, rationale portanto diz respeito à vida do homem, à sua essência, ao seu ser, a saber: disposição de acolhida, prontidão obediente e fiel de recepção. Dentro dessa perspectiva podemos interpretar o intellectus do pensamento medieval como potência ou disposição, o ânimo cordial de intelligere. Intelligere se lê inter-legere e de imediato significa ler entre linhas. Na palavra portuguesa ler (em alemão lesen) está a mesma raiz do verbo grego légein (=leg-: ajuntar, colher). E “entre linhas” conota o médium, o inter-meio, a saber, o “espaço” livre, a aberta, a partir e dentro da qual se estruturam as “coisas” que nos vêm ao encontro. Nesse sentido, intelligere, intellectus, intellectualis significam acolher, acolhida, receber, recepção da abertura a partir e dentro da qual nasce, cresce e se consuma a totalidade de um mundo. Por isso o destaque que se dá aqui na definição da pessoa, da natureza racional e intelectual não tem muito a ver com racionalismo ou intelectualismo, muito menos com “cartesianismo!”, mas com um determinado nível da intensidade do ser. Em vez de questionar se aqui se trata da prioridade do intelecto ou da vontade ou do coração, fosse talvez mais útil perguntar: nesse nível da intensidade do ser denominado natureza humana (aqui ânimo racional ou intelectual = lógos, nõus) como seria onticamente o que denominamos na psicologia popular de razão,

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Olhemos, agora numa visão panorâmica o todo da ordenação do universo no pensamento medieval, estruturado em duas grandes regiões dos entes na escalada da intensificação qualitativa do seu ser, a saber em região das esferas das substâncias simples e compostas. E tentemos localizar o Homem nessa escalação. De imediato percebemos que ele ocupa o lugar de destaque, no meio, entre as duas regiões. O Homem, na direção ascendente da escalação na intensificação do ser, iniciando-se da substância-morta, pertence à região das substâncias compostas, e ocupa a esfera suprema dessa região “inferior”, onde a vigência do ser dessa região é a mais intensa. E ao mesmo tempo, na sua identidade que o diferencia de outros entes da região das substâncias compostas, pertence ao e se torna, digamos, partícipe do modo de ser da substância simples, não propriamente à sua esfera ínfima, mas digamos a um feixe vertical ascendente de implicação entificante que partindo da “substância”-nada27, coisa, vira vida, depois ânimo-sensibilidade e alma, e por fim ânimo-racional, e na racionalidade, se adentra para dentro da região “superior” das substâncias simples, perfazendo-se na escalação ascendente de intensificação no ser da sua racionalidade como alma, espírito, intelecto e mente (mens), através da qual penetra para dentro do abismo da possibilidade de ser denominado Deus28. Isto significa que o Homem se estende no seu ser desde a matéria-prima até Deus, não apenas somente até, mas muito mais, a saber para dentro do abismo do ser de Deus, para dentro do abismo da vida íntima, para dentro da interioridade de Deus que nos vem ao encontro, i. é, se desvela como a dinâmica da estruturação do enigma das três pessoas e uma natureza de Deus, portanto do Mistério da santa unidade-trina. Isto significa por sua vez que é no Homem, pelo Homem e através do Homem que vem à luz a vigência da plenitude do ser que se torna presença em Deus-Homem-Universo, denominada pelos medievais de Opus maximum: Creatio, obra máxima da Criação. Se porém o Homem per-faz o espaço livre, a aberta que perpassa desde a realidade e realização ínfima até para dentro da suprema e para além da suprema realização da realidade, nele podemos encontrar um fio condutor que perpassa toda a Criação e adentra o abismo da interioridade do ser de Deus. Esse fio condutor se chama natura rationalis e quando se é subsumido para dentro da interioridade do ser de Deus se transforma em natura intellectualis, termos usados pela definição da pessoa em Boécio e da sua aplicação às pessoas da unidade trina de Deus. No extremo ínfimo desse fio condutor encontramos a matéria-prima que se denomina potentia oboedientialis. E no “extremo” supremo dentro do abismo da interioridade divina encontramos o Verbo, a pessoa Filho, cuja natureza é divina-humana como Deus feito Homem e Homem feito Deus no mistério da encarnação. E lá onde o ser humano (todos os homens), portanto o homem na sua humanidade, i. é, a natureza humana é tocada vontade e sentimento como faculdades da alma?

27 A saber, matéria-prima como nada “criada” como pura possibilidade da potentia oboedientialis.

28 Cf. uma expressão como a da obra de São Boaventura: Itinerarium mentis in Deum. E observemos também o seguinte: o que denominamos a região das substâncias compostas não é outra coisa do que o homem e seu mundo vital circundante, que nele, através dele e para ele ali está como elementos constituintes do homem, e nessa pertença, como seu prolongamento, participando da sua sorte e da sua realização.

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pela natureza divina, nesse toque e na sua recepção, nessa unidade na “plenitude” singular, a natureza divina e natureza humana coincidem, e o quilate, a cristalização dessa comunicação absoluta é dita pelo nome Filho, pessoa. Essa parte do ser humano, em participando da mesma sorte do Filho de Deus encarnado, na linguagem de Eckhart a parte suprema da alma que também pode ser chamada de espírito, é assinalada como puro ou supremo intelecto. Se, agora, entendermos o termo intelecto como acima tentamos interpretar, a saber como Vernünfticheit, como pura e absoluta disponibilidade de receber, e também interpretamos a matéria-prima como potentia oboedientialis, e esta também como pura disponibilidade de receber, então finalmente encontramos um denominador comum para caracterizar o quê ou melhor o como desse fio condutor que perpassa de baixo a cima o todo do universo-Criação, o qual poderemos definir como a disposição pura, límpida, grata e cordial de receber: a alegria e liberdade de receber.

O racional e o intelectual significam essencialmente recepção

Receber é um termo correlativo ao dar, como o são os binômios esquerda-direita, em cima-embaixo, desvelado-velado. E na Tradição cristã, na qual Eckhart se acha como medieval, o binômio receber-dar, uma vez referido a Deus e ao seu opus maximum, a Criação, está intimamente ligado a Filiação divina e esta ao Nascimento do Filho Unigênito do Pai, portanto, à processão das pessoas divinas. E o que procede do Pai e Filho se chama Espírito Santo, que é caracterizado como Amor. Nessa Tradição medieval Criação significa no fundo Filiação, e Filiação significa comunhão no Amor. Assim, seguindo a usual Tradição cristã, também Eckhart define a essência, o âmago visceral de Deus, a deidade, como amor. O termo usado no alemão medieval de Eckhart para Liebe (amor) é Minne. A palavra Minne possui parentesco com o grego ménos (= sentido), mimnéskein (recordar-se), com latim memini (lembrar-se), mens (mente), monere (admoestar). A raiz indogermânica men que está em todas essas palavras significa pensar. Pensar, aqui, é estar suspenso, solto-disposto na espera, de vivo coração. Nessa acepção do termo pensar como a liberdade de disposição da cordial jovialidade, Minne conota o ter presente viva e amorosamente na mente29, sem cessar, recordar, i. é, avivar de novo no e do âmago do ser a cordialidade amorosa. Ceia íntima, recordando e comemorando um encontro amoroso se diz em alemão Minne trinken (beber a Minne).30 Originariamente, Minne designava amor misericordioso, de diligente cuidado, i. é, o amor de predileção e benevolência interpessoal de tu para tu. Assim Minne era uma palavra boa para indicar a intimidade do nobre enamoramento em total doação ardente de corpo e alma no

29 mens, -tis; nõus, mente é o nível de liberdade, o mais alto no ser humano, o seu ápice, no e através do qual o ser humano é tocado por Deus e penetra para dentro de Deus. Cf. Itinerarium mentis in Deum, São Boaventura.

30 Em grego é agapé, a ceia do encontro de amor, termo assumido pelo cristianismo para indicar o amor de doação livre e cheio de bem-querença de si de Deus; em latim charitas e dilectio e lembra a última ceia de Jesus no NT, na qual lavou os pés dos apóstolos. 

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encontro entre Homem e Mulher: o amor esponsal. E dali Minne começou a ser usada na “mística” dos cavaleiros medievais do século XII/XIII, para indicar o protótipo da paixão nobre de dedicação no amor de um cavaleiro para com a mulher amada, a sua dama. Era o mais intenso móvel de busca para um cavaleiro medieval a incentivá-lo a realizar atos heróicos a serviço e para a honra da sua senhora, a quem doava a vida e o ser como à sua Rainha e Senhora.31 A partir dessa acepção cavaleiresca do amor, a palavra Minne entra no uso da Mística medieval cristã, numa acepção ainda mais radicalizada de doação, nobreza e intimidade, paixão e finura como Gottesminne32 e se tornou a tonância de fundo da assim chamada Brautmystik (a mística esponsal).33

Portanto, o caráter comum e unitário do fio condutor que perpassa todo o universo medieval assinalado há pouco como receber deve ser compreendido totalmente na sonoridade do toque, da percussão da” realidade” disso que Eckhart denomina de Minne. Assim a Minne, o amor misericordioso, de diligente cuidado, i. é, o amor de predileção e benevolência inter-pessoal de encontro, tu a tu, a Misericórdia é médium, onde se deve entender o quê e o como da “definição” da pessoa. Aqui todas essas palavras referentes ao Amor, principalmente à Misericórdia, jogadas assim, nada dizem, se não as examinamos com cuidado, rigor e discrição, de que se trata no pensamento de Eckhart, principalmente quando ele fala do inter-relacionamento intra-trinitário, no nascimento do Filho, do Pai. Deixemo-las assim, pois fazê-las ressoar, não tanto psicologicamente, mas “ontologicamente”, seria uma tarefa impossível para esse comentário. E, no entanto, apesar de toda essa limitação, mesmo apenas assim referidas à Minne, que assim nada diz, suponhamos a esta como o tom fundamental a toar no fundo do sentido do termo receber, a dinâmica inter-pessoal da Minne, e examinar brevemente como ligar esse receber com a compreensão da pessoa nas suas definições.

Segundo o que foi dito acima, o modo de ser receber atravessa de baixo a cima, desde a matéria-prima, o nada criado enquanto potentia oboedientialis, até o modo de ser do Filho Unigênito no nascimento, ao proceder do Pai. A cada momento dessa escalada, se olharmos por assim dizer horizontalmente, se espraia a imensidão da dinâmica criativa do receber, fazendo surgir, crescer e se consumar cada vez todo um mundo de entificações que formam os entes de uma determinada intensidade do ser. E todos esses entes são como que faíscas, constelação das constelações de eclosões, como rebentos da gratuidade e generosidade de ser. Acima dissemos que receber é correlativo ao dar. Na escalação dessa ordenação do universo medieval, no entanto, parece existir somente o receber em potencialização e qualificação cada vez mais imensa, profunda e criativa, de tal sorte que sempre de novo nos vem à mente a pergunta:

31 As gestas e as canções da gesta.

32 Gottesminne, o Amor de Deus, primeiramente no sentido do genitivo subjetivo e depois no do genitivo objetivo, i. é, amor que Deus tem para conosco e do amor que nós temos, tendo como “objeto” a Deus.

33 Cf. São Francisco de Assis e o seu esponsal com a Senhora Pobreza; cf. São Bernardo de Claraval.

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receber, pois não; mas receber o que e de quem? A tentação é estabelecer uma lógica de ordenação no receber e no dar dizendo: a esfera de baixo recebe da esfera próxima superior até subir para dentro da dimensão Deus; e a partir de Deus, descendo, a dimensão de cima, dá à dimensão próxima inferior. Mas dá e recebe o quê? Porque acima dissemos que a tonância, a sonoridade na qual se dá o receber é o Amor-Misericórdia, a Minne, a tendência lógica da resposta seria: dá e recebe no Amor, vida, ser, graça, filiação, existência etc. Como todas essas palavras a essa altura da reflexão estão como que suspensas no toque da percussão do sentido do ser do Amor, da Minne, deixemos aqui tudo suspenso, a modo de um lusco-fusco, e nos concentremos numa hipótese que nos faz suspeitar que aqui, nesse universo medieval-cristão tanto dar como receber, portanto o binômio dar-receber, estão em suspensão no médium do receber todo único e singular, acenado no modo de ser do Filho Unigênito do Pai, encarnado em e como Jesus Cristo, e nele, por ele e através dele, “re-encarnado” em todos, i.é, em cada um dos entes humanos, e neles, por eles e através deles “re-re-encarnado” em todos os entes sensíveis, viventes, e coisais, estatuindo o Reino uni-versal da disponibilidade grata, generosa do receber, como da pré-ferência do receber como liberdade de ser. Essa liberdade de ser se diz, no pensamento de Eckhart, o Desprendimento, em alemão Abgeschiedenheit. Mesmo que aqui quase tudo esteja um tanto vago, ou melhor, não propriamente vago, mas suspenso, percebemos que há predominância do receber, há prioridade, preferência do receber em retraimento do dar. E surge a suspeita: não poderia ser assim que em Ekhart o que ele chama de Minne, saber, misericórdia não é um modo de amar todo próprio, absolutamente singular, portanto, uma difusão generosa da comunicação de doação de si, que é incomunicável, por ser tão próprio, tão ele mesmo que é desprendido de tudo, mesmo também de dar-se, a ponto de em se dando tudo, toda inteira e incondicionalmente se retrai como que recebendo o ser recebido como doação feita a ele como esmola?

A receptibilidade como pregnância essencial do ser e sua estruturação

Tentemos agora embora de modo formal, examinar melhor o movimento do dar e receber como se dá na estruturação do universo em duas regiões, em região das substâncias compostas e em região das substâncias simples. 1) Na região das substâncias compostas começa-se na esfera da substância sem vida com “receptividade” como passividade, onde não há no “padecer” nenhum movimento de dar-se do e no receber. Mas na medida em que se sobe na escalação da intensidade do ser, a passividade passa na substância vivente, e depois dela na substância animal, do apenas “padecer” para disposição de receber, onde começa o movimento de dar-se do e no receber, de tal modo que o dar-se passa a ter predominância no homem como animação racional, i. é, o dar-se um sentido do ser a si mesmo (saber) e se produzir como realização desse sentido do ser (querer). Essa predominância pode crescer de tal modo que no homem o dar-se pode ir eliminando cada vez mais o receber, para se transformar na autodoação de si a si mesmo, a partir e dentro de si, na autonomia absoluta de autocausação como causa sui, a ponto de não haver mais composição binômica do receber e dar, mas apenas o dar, pura e simplesmente, de modo que o próprio dar-se é

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dado, num movimento assintótico de querer o querer do seu querer. Esse modo de ser puro ato é atribuído à substância simples. Aqui a pessoa coincide com o eu super-acionado como sujeito e agente do seu próprio ser. No entanto, esse tipo de escalação da intensificação do ser, na potencialização predominante do dar, em diminuição do receber, para culminar na autonomia da causa sui, seria para o medieval uma errância, a saber de qualificar o ser do homem e a fortiori das substâncias simples (espíritos) com o modo de ser das substâncias compostas emprestado da esfera ínfima no nível de ser: com o modo de ser da coisa, na sua quantificação. Aqui o pensamento medieval parece ser muito mais diferenciado e subtil, mesmo na região das substâncias compostas, quando processa a escalação qualificativa do ser na sua intensidade constitutiva das esferas das substâncias compostas: esfera da coisa, esfera da vida, esfera da sensibilidade, esfera da racionalidade. Mas em que sentido mais diferenciado e subtil? No sentido de o relacionamento do receber e dar, não se processar simplesmente nem no movimento unilateral, nem no bilateral, portanto da dominância do receber ou do dar, nem na simultânea dominância do receber e dar, deixando intacto e fixo o sentido do receber e dar, mas sim num movimento digamos espiral de contínua transformação qualitativa tanto do sentido do receber como do dar, de tal sorte que esse movimento espiral pode ser circum-scrito da seguinte maneira: 1) Receber como pura passividade onde o sentido do receber não contém a dinâmica da insistência nem da a-seidade, possibilidade de ser atuado, dependência total de uma outra dimensão que possui mais in-seidade e a-seidade. 2) No vivente o receber contém em si maior intensidade do dar-se, iniciativa e inventibilidade de buscar; 3) no animal esse auto-receber recebe e dá o dar e o dar recebe e dá o receber e nessa mútua implicação do receber e dar, como que do fundo desse movimento espiral se intensifica um receber todo próprio, que impregna e ao mesmo tempo libera o dar e receber como receber cada vez mais gratuito, cordial e uno, numa doação total e solta à disponibilidade obediente da liberdade de acolher. Se observarmos essa circunscrição um tanto desengonçada do movimento de dar e receber, não mais unilateral nem bilateral, mas espiral, percebemos de imediato que estão em jogo três “momentos”, e isto quanto mais se ascende nas esferas das substâncias simples. Até em Deus esses três momentos aparecem na dinâmica da vida una e trina de Deus como três pessoas da SS.Trindade. Temos assim no movimento 1) o receber, 2) o dar, 3) o receber o receber e o dar. Esse último receber que é receber o receber e receber o dar num modo de receber que se afunda cada vez mais para dentro do ponto de fuga do movimento centripetal e cetrifugal da espiral vem à fala como do princípio, do abismo de onde e dentro do qual se articulam os três momentos acima mencionados, em cuja dinâmica faz saltar de cada instante e cada estância do movimento espiral eclosão de um modo de ser, cada vez plena, intacta, na medida plena da intensidade do ser a que pertence. O ponto de fuga desse movimento espiral na direção ascendente de e para dentro do abismo da recepção se dá na dinâmica do movimento como o fator unitivo de todos os pontos desse movimento como Unitivo, como Um.

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2.3 Pessoa e retraimento

Mas o que tem tudo isso a ver com pessoa? Com naturae rationalis individua substantia? Com naturae intellectualis incommunicabilis substantia? Se traduzirmos agora os termos natura, substantia, rationalis, intellectualis, individua, incommunicabilis e substantia, conforme o que até agora nessas reflexões viemos desviada e indevidamente amontoando sobre eles, podemos talvez quem sabe circum-screver de um modo um tanto esdrúxulo e enrolado a definição de Boécio e de Sto. Tomás mais ou menos da seguinte maneira: no ser humano falamos de pessoa quando a sua natureza, i. é, o seu ser dinâmico na sua nascividade, se torna pura e limpidamente ela mesma, vindo a si como o que ela sempre foi, é e será, a saber, a pura disponibilidade de ser o receber, e assim surge, cresce e se consuma numa plenitude de acolhida, bem assentada nela mesma, não avoada, não espúria, mas reta, de pé na consistência da sua identidade como pura recepção, portanto como subsistente em si, sem fragmentação, sem parcialização, mas na unidade em si sem divisão: natura (nascividade) rationalis (pura receptividade e acolhida no ser) substantia (assentamento na própria identidade) indivisa ou incommunicabilis (destacada como perfilação e nitidez da auto-identidade). Falamos de Pessoas no ser divino, quando nos referimos na vida da intimidade abissal da sua deidade à nitidez e perfilação da sua subsistência constante, toda própria na nascividade única e na singular novidade da Filiação Divina, da processão do Filho do e no Pai e processão do Espírito Santo do e no dar-se e receber-se de ambos na concreção do movimento do dar e receber que se manifesta na mútua implicação das pessoas divinas. Mas nessa concreção cada vez mais intensa, cordial e gratuita de receber que na mútua implicação das três pessoas divinas se perde num retraimento cada vez mais profundo para a interioridade de si mesma, se desvelando como a dinâmica unitiva cada vez mais una a se ocultar como Um, na linguagem de Eckhart se acena para um receber cuja atividade, cuja doação se perfaz em nada poder, nada querer, nada saber, nada ser, nada se exigir a não ser límpida e unicamente se doar sempre mais incondicional e gratuitamente, a tal ponto de, em se doando total e inteiramente, nada reter para si, e como si, nada ter de próprio, a não ser apenas estar na disponibilidade de receber e acolher o dom de ser recebido a quem se doa: esse retraimento e aniquilação de si, essa Abgeschiedenheit, permite que como essa humilde e pobre presença oculta na sua receptividade inominável possa ser cada vez, sempre de novo e sempre novo o instante da vitalidade e vigência da criatividade, em toda e cada entificação, desde o ente supremo deus, até o ínfimo pó da materialidade de um excremento, tornando-se livremente o como de cada ente, constituindo a jovialidade do modo de ser de cada ente. Essa grandeza de ser no ocultamento, essa Agbeschiedenheit é o pudor e a modéstia da finura e delicadezas de um Deus, cuja divindade se chama deidade, e que em Eckhart recebeu o nome de Minne, a Misericórdia, realizada como obra máxima da sua criatividade como Uni-verso, Criação, denominado Mistério da encarnação.

Depois de todo esse falatório desajustado e desajeitado acerca do que supostamente está ali como a paisagem de fundo da fala de Eckhart na sua orientação espiritual n. 17, possamos talvez compreender por que Eckhart acentua

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com tanta insistência que se há de conservar sempre de novo o modo de cada um de nós como a medida apropriada do seguimento de Cristo. A seguir, apenas repitamos aqui algumas partes do restante do texto que não foi diretamente comentado, para apenas pinçar alguns termos, agora já dentro e na perspectiva do que foi refletido e exposto como o fundo da paisagem do texto de Mestre Eckhart.

O uno inominável, a Abgeschiedenheit e o como de cada ente como pessoa

Eckhart fala a mim que leio seu texto, na 2ª pessoa do singular: tu. Isto significa que o que aqui é dito possui uma grande proximidade comigo, de tal sorte que se me torna um dever, uma tarefa o que ali me é dito, a saber conhecer e perceber em que consiste no meu caso o meu Seguimento e descobrir o como, o meu modo em que sou chamado por Deus de modo mais próximo e mais forte. Pois Deus não chama a ninguém de um modo geral, não há um caminho geral, mas sim para cada um e cada vez o seu um, único ou singular caminho. Esse caminho é cada vez o modo próprio que é dado a cada um como o seu caminho o mais próximo. Portanto, o que me importa, i.é, o que me conduz para a realidade de mim mesmo é o como, é o modo meu próprio, lá onde Deus me toca, na imediatez e proximidade, a ponto de, se ele não puder entrar porque eu não o deixo, fica colado à porta, à espera da primeira chance de estar mais junto de mim. A paz eu só a tenho nesse modo meu próprio, pois só lá é que eu tenho o toque de Deus e eu sou eu mesmo na verdade, de tal modo que se eu almejo coisas maiores para mim, ou sinto-me obrigado a buscar determinadas medidas superiores, devo somente examinar se sou propriamente impelido por Deus, e que tenha a força, para realizar tal coisa retamente sem o distúrbio errante da minha interioridade.34

A seguir, respondendo a uma objeção – “Tu poderias sem dúvida dizer: Se não há nisso importância, por que então assim o fizeram nossos antepassados, muitos santos?” – insiste na importância decisiva de o homem permanecer junto da interioridade de si mesmo, usando a palavra modo para designar a subsistência enucleada, lá onde o ser do homem se consuma numa perfilação na nitidez e transparência da sua igualdade com Deus, portanto como pessoa. Diz pois Eckhart:

Assim, pondera, pois: Nosso Senhor lhes deu esse modo, e também a força para assim agir, a ponto de eles manterem esse modo até o fim e justamente ali, nisso ele encontrou sua complacência junto deles; é ali, nisso que eles deviam alcançar o que é o melhor de si. Pois Deus não atou a salvação dos homens a certo modo especial. O que um modo tem, isto, não o tem o outro modo; o poder de realização, porém, Deus proporcionou a todos os modos bons, e não é negado a nenhum modo bom, pois um bem não é contra o outro. E por isso a gente devia perceber por si, que não se age retamente, se, ao ver ocasionalmente um homem bom ou dele ouvir falar, o avaliar como inteiramente perdido, por não seguir o modo da gente. Se não agrada à gente o seu modo, então não se leva em conta o seu bom modo nem sua boa disposição. Isto não é justo! No modo das pessoas deve-se atentar mais a isso que eles possuem uma boa intenção, e que não desprezam o

34 Paz significa então estar assentado no modo próprio seu, recebido de Deus, e esse assentamento no que é o seu próprio é a interioridade.

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modo de ninguém. Não pode cada um particular ter somente um modo, e não podem todos os homens ter somente um modo, nem pode um homem ter todos os modos nem cada modo de um homem.

Cada qual guarde o seu bom modo e todos <outros> modos ali dentro e empuxe no seu modo todo o bem e todos os modos. Troca do modo faz o modo e o humor instáveis. O que um modo te pode dar, isto podes também alcançar no outro modo, enquanto ele é bom e louvável e tem somente a Deus em vista. Além disso, não todos os homens podem seguir um caminho. Assim o é também com o Seguimento do rigoroso teor de vida daqueles santos. Deves certamente amar tal modo, e ele te pode agradar, sem que tu precises segui-lo.

Mas poderias dizer: Nosso Senhor Jesus Cristo tinha sempre o supremo modo; ao qual devemos seguir constantemente por causa da retidão.

Isto é certamente bem verdade. A Nosso Senhor devemos seguir como convém e, no entanto, não em cada modo. Ele, Nosso Senhor, jejuou 40 dias; jamais, porém, deve-se empreender em segui-lo nisso. Cristo fez muitas obras na intenção de que devamos segui-lo, espiritual e não corporalmente.

Por isso, devemos ser aplicados para que o possamos seguir no modo espiritual, pois, ele tinha mais em vista o nosso amor do que as nossas obras. Nós devemos cada vez segui-lo no próprio modo. Como, pois?

Ouças: em todas as coisas! - Como e em que modo? – Assim como eu já o disse muitas vezes: eu considero uma obra espiritual como muito melhor do que uma corporal.

Como?

Cristo jejuou 40 dias. Nisso o sigas, assim a ponto de observares a que tu estás bem mais inclinado ou pronto: sobre isso concentra-te e com acuidade fica de olho em ti mesmo. Muitas vezes convém te afastares disso mais e sem pré-ocupação, do que te privares totalmente de todas as comidas. Assim, também te é muitas vezes mais difícil silenciar uma palavra do que abster-te simplesmente de toda a fala. E deste modo pesa muitas vezes muito mais aceitar uma pequena palavra de ofensa de pouca importância do que talvez admitir um pesado golpe, para o qual a gente se tinha prevenido, e nos é às vezes mais difícil deixar algo pequeno do que algo grande, e erigir uma pequena obra do que uma que se tem por grande. Assim, pode o homem na sua fraqueza seguir muito bem a Nosso Senhor e não pode nem precisa se considerar afastado longe dele.

Observemos nesse texto que o modo, o como não é mais entendido como acidente, como acréscimo à substância, mas indica propriedade, não no sentido de “acidente essencial” mas do ser próprio, ser ele mesmo, em pessoa, no que é a entranha-âmago da sua identidade: o próprio seu. Aqui a substância não é mais um bloco em si fixo, fechado, indivisível, mas nascividade (natureza) sempre de novo surgente, a se consumar na eclosão da dinâmica de ser, como possibilidade de ser “novo mundo”, bem assentado, bem percutido a partir e para dentro da recepção do toque da inominável discrição continente da Abgeschiedenheit, colada em toda parte, à imediatez, à proximidade cada vez mais.

Finalizando essa longa e esdrúxula reflexão-comentário podemos definir a pessoa como: o ser do Homem enquanto a nascividade receptiva da disposição pura, grata e cordial, levada à límpida e bem assentada consumação de ser a própria

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disponibilidade receptiva do Filho unigênito do Pai, no seu nascimento do Pai e no Pai; e nesse nascimento divino, o homem no seu ser pessoa nasce como filho no Filho e deixa nascer crescer e consumar-se todo o universo, cada ente na sua entificação, em milhões e milhões de possibilidades variegadas, de sorte que tudo seja um na repercussão do toque no modo-retraimento da Deidade de Deus, da Abgeschiedenheit. Por isso:

Ninguém, jamais, deve fazer tal auto-avaliação! O homem de modo algum deve se considerar longe de Deus, nem por causa de quebraduras, nem por causa de fraquezas, nem por nada, seja o que for. E por mais que tuas grandes transgressões tenham te arrastado a vaguear longe de Deus, deves acolher a Deus como próximo a ti. E há um grande mal nisso de o Homem deslocar a Deus para longe de si; pois, seja que o homem ande longe ou perto de Deus: Deus jamais vai para longe, ele permanece com constância bem perto e se não puder ficar dentro, ele se cola à porta e dela não se afasta.

CONCLUSÃO

Talvez esgotados que estamos pela algazarra desse falatório sobre pessoa e sua intimidade como abismo de Abgeschiedenheit de um Deus, que na sua absoluta “transcendência” se torna Homem, i. é um “non aliud”35, possamos ouvir tudo isso, com alívio, na sobriedade simples do pudor de uma fala “pagã” acerca do seu princípio vital, a mais originária e excelente:

Mestre Tung Kwo perguntou a Chuang: “Mostre-me onde pode o Tao ser encontrado”. Respondeu Chuang Tzu: “Não há lugar onde ele não possa ser encontrado”. O primeiro insistiu: “Mostre-me, pelo menos, algum lugar precioso onde o Tao possa ser encontrado”.

“Está na formiga”, disse Chuang. “Está ele em algum dos seres inferiores?” “Está na vegetação do pântano”. “Pode você prosseguir na escala das coisas?” “Está no pedaço de taco”. “E onde mais?” “Está no excremento”. Com isto, Tung Kwo nada mais podia dizer.

Mas Chuang continuou: “Nenhuma de suas perguntas é pertinente. São como perguntas de fiscais no mercado, controlando o peso dos porcos, espetando-os nas suas partes mais tenras. Por que procurar o Tao examinando ‘toda escala do ser‘, como se o que chamássemos ‚mínimo‘ possuísse quantidade inferior do Tao? O Tao é grande em tudo, completo em tudo, universal em tudo, integral em tudo. Estes três aspectos são distintos, mas a Realidade é o Uno. Portanto, vem comigo ao palácio do Nenhures onde todas as muitas coisas são uma só: Lá, finalmente, poderíamos falar do que não tem limites nem fim. Vem comigo à terra do Não-Agir: O que diremos lá – que o Tao é a simplicidade, a paz, a indiferença, a pureza, a harmonia e a tranqüilidade? Todos esses nomes deixam-me indiferente. Pois suas distinções desapareceram. Lá minha vontade não tem alvo. Se não está em parte nenhuma, como me aperceberei dela? Se ela vai e volta, não sei onde repousa. Se vagueia, ora aqui, ora ali, não sei onde terminará. A mente permanece instável no grande vácuo. Aqui, o saber mais elevado é ilimitado. O que concede às coisas sua razão de ser, não pode limitar-se pelas coisas. Assim, quando falamos em ‘limites‘, ficamos presos às coisas delimitadas. O limite do ilimitado chama-se ‘plenitude‘. O ilimitado do

35 Non aliud é nome dado por Nicolau de Cusa à Deidade, i. é, ao Deus da Abgeschiedenheit, a acenar para uma radicalidade de retraimento que em sendo outro (aliud) é tão outro que nem sequer se pode dizer dele que é outro, e isso de tal modo que ele é na discrição da sua presença oculta o como de todas as coisas.

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limitado chama-se ‘vazio‘. O Tao é a fonte de ambos. Mas não é, em si, nem a plenitude, nem o vazio. O Tao produz tanto a renovação quanto o desgaste, mas não é nem um, nem outro. O Tao congrega e destrói. Mas não é nem a Totalidade, nem o Vácuo.”

Mas, talvez, essa mesma toada “oriental” da imensidão silenciosa e silenciada que não é nem imenso, nem vácuo, nem totalidade, nem sequer nada, é entoada pelo som medieval “ocidental” do absoluto, no retraimento da sua Abgeschiedenheit como sonância e dissonância agraciadas de um cântico finito, cuja melodia sai arranhada, esfregando-se dois galhos secos, nas mãos também secas de um pobre-medievo que nada quer, nada sabe, nada tem, nada pode e nada faz a não ser a louvação da misericórdia, “personalizada” como a Senhora Pobreza, hino pátrio da Terra, onde todas as coisas são pessoas e “brincam” como irmãs e irmãos do mesmo Pai36, a baila jovial da Terra dos Homens:

Altíssimo, onipotente, meu Senhor etc. (Cântico do irmão sol).

36 Enquanto lermos esse n. 17 das Reden der Unterweisung como conversas de uma orientação espiritual, não surgem problemas especulativo-ontológicos. Pois, hoje, entendemos o espiritual como índice da área da região do ente subjetivo-interior, portanto não há questão da ordem do ser no aspecto denominado ora ético, ora espiritualista, ora psicológico-moral. Nesse sentido de conversas espirituais, as instruções de Eckhart seriam conselhos piedoso-práticos para orientar o comportamento de seus discípulos. Mas o pensamento medieval se rege por um princípio ontológico que diz: natura sequitur esse. A natureza, i. é, a vigência, a dinâmica de um ente segue o esse, i. é, o ser. Primeiro ser, e a partir do ser, se dá a atuação, a dinâmica do ser, i. é, a natureza. Com outras palavras, esse e natura dizem o mesmo, mas uma vez, focalizado no seu ser e outra vez, na sua atuação essencial. Isto significa que, em última instância, o que vale examinar é a ordem do ser, em todas as atuações, atividades, relacionamentos etc. do homem, sejam eles essenciais ou acidentais; o que deve ser visto é o ser como a priori, i. é, em primeiro lugar, não simplesmente como o primeiro instante de uma compreensão, mas sim como o horizonte da captação do todo da paisagem da realidade, a partir e dentro da qual se dão as manifestações do homem, seja a respeito de si, seja a respeito dos entes que não são ele. Com outras palavras, a compreensão real dessa conversação espiritual n. 17 de Eckhart depende de, e já pressupõe a pré-compreensão do ser que pré-jaz como o fundo da acima mencionada proibição incisiva, na qual Eckhart não nos permite avaliar o ser do relacionamento entre Deus e criatura, introduzindo na compreensão dessa partícula conjuntiva “e” distância de separação. A questão é portanto especulativo-ontológico, diz respeito ao ser do relacionamento Deus-e-criatura, a saber, ao ser Deus, ao ser criatura e ser relação Deus-e-criatura. É nessa perspectiva que se move o nosso comentário.

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TRADUÇÕES

(SHEILA, esse primeiro texto, latim e tradução, favor colocar em duas colunas paralelas – latim de um lado, português do outro)

DE HAECCEITATE, SEU DE PRINCIPIO INDIVIDUATIONIS*

Duns Scotus

Et si quaeras a me quae est ista “entitas individualis” a qua sumitur differentia individualis, estne materia, vel forma, vel compositum, respondeo:

Omnis entitas quidditativa – sive partialis, sive totalis – alicuius generis, est de se indifferens “ut entitas quidditativa” ad hanc entitatem et illam, ita quod “ut entitas quiditativa” est naturaliter prior ista entitate ut haec est, – Et ut prior est naturaliter, sicut non convenit sibi esse hanc, ita non reputgnat sibi ex ratione sua suum oppositum; et sicut compositum non includit suam entitatem (qua formaliter est “hoc”) in quantum natura, ita nec materia “in quantum natura” includit suam entitatem (qua est “haec materia”), nec forma “in quantum natura” includit suam.

Non est igitur “ista entitas” materia vel forma vel compositum, in quantumquodlibet istorum est “natura”, – sed est ultima realitas entis quod est materia vel quod est forma vel quod est compositum; ita quod quodcumque commune, et tamen determinabile, adhuc potest distingui (quantumcumque sit una res) in plures realitates formaliter distinctas, quarum haec formaliter non est illa; et haec est formaliter entitas singularitatis, et illa est entitas res, sicut possunt esse realitas unde accipitur genus et realitas unde accipitur differentia (ex quibus realitas specifica accipitur), – sed sempre in eodem (sive in parte sive in toto) sunt realitates eiusdem rei, formaliter distinctae.

(Haecceitas) illa forma est, qua totum compositum est hoc ens; ista autem est ultima adveniens omnibus praecedentibus. – Non potest intelligi haecceitas ut universale; igitur nec natura speciei includens, cum ipsa haecceitas de se sit haec; igitur impossibile est intelligere naturam specificam ut universale.

DA ECCEIDADE OU DO PRINCÍPIO DE INDIVIDUAÇÃO

* Ioannis Duns Scoti. Opera omnia VII. Vaticano: Typis Polyglottis Vaticanis, 1973. Ordinatio II, dist. 3, pars 1, q. 5-6, p. 483s.

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Se me perguntares o que é esta entidade individual da qual se origina a diferença individual, se é matéria, forma ou um composto, respondo:

Toda entidade quiditatita, quer parcial quer total, de qualquer gênero, como entidade quiditativa, é por si indiferente a esta ou àquela entidade, de forma que como entidade quiditativa é naturalmente anterior a esta entidade, enquanto esta é esta aqui; e enquanto é naturalmente anterior, assim como não lhe convém ser esta, da mesma forma não lhe repugna por sua razão seu oposto. E como o composto, enquanto natureza, não inclui sua entidade (pela qual formalmente é isto) da mesma forma a mesma matéria, enquanto natureza, não inclui sua entidade (pela qual é esta matéria), nem a forma enquanto natureza inclui a sua.

Portanto, esta entidade não é matéria, forma ou composto enquanto cada um deles é natureza – mas é a última realidade do ser que é matéria ou que é forma ou que é composto; assim, qualquer coisa que é comum e todavia determinável também pode ser distinguida (contanto que seja uma coisa) em muitas realidades formalmente distintas, das quais esta formalmente não é aquela: e esta formalmente é uma entidade da singularidade e aquela é uma entidade formalmente da natureza. Essas duas realidades não podem ser coisa e coisa (res et res), como pode ser realidade donde se recebe o gênero e a realidade, donde se recebe a diferença (das quais se recebe a realidade específica) – mas sempre no mesmo (quer na parte quer no todo) são realidades da mesma coisa, formalmente distintas.

A haecceitas é aquela forma pela qual todo composto é este ser; esta porém é a última que vem depois de todos os outros precedentes. A haecceitas não pode ser compreendida como universal; por isso, não inclui a natureza da espécie, já que a própria haecceitas por si é esta; por isso, é impossível compreender a natureza específica como universal.

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COMO SE DEVE SEGUIR A DEUS E DO MODO BOM*

Mestre Eckhart

O homem que quer começar uma nova vida deve ir ao seu Deus e dele desejar, com grande força e com toda devoção, que lhe disponha o melhor de tudo e que seja o mais amável e o mais digno, e nisso ele não queira nem tenha em mente nada de seu a não ser a bem amada vontade de Deus e nada mais. E então o que Deus lhe dispor, que o receba imediatamente de Deus, considerando-o como o seu melhor, estando nisso plena e totalmente satisfeito e em paz.

E embora depois disso outro modo possa agradar-lhe mais, ele deve pensar assim: Deus te concedeu esse modo, e para ele é o melhor. Disso ele deve confiar em Deus e deve recolher todos os modos bons nesse modo e nele e conforme ele tomar todas as coisas, sejam como forem. Pois o que Deus fez e deu de bom em um modo, isso pode ser encontrado também em todos os bons modos. Pois em um modo devem-se tomar todos os bons modos e não a característica do modo. Pois o homem deve fazer cada vez uma, não pode fazer todas as coisas. Ele deve ser cada vez um, e nesse um devem-se tomar todas as coisas. Pois que o homem queira fazer tudo, isso e aquilo, e largar de seu modo e tomar o modo de um outro, que por agora lhe agrada muito mais, na verdade isso cria grande instabilidade (unstaeticheit). Pois antes tornar-se-ia perfeito o homem que deixasse o mundo de uma vez em uma ordem, do que aquele que sempre estivesse passando de uma ordem para outra, por mais santa que fosse esta; isso por causa da mudança do modo. Que o homem tome um bom modo, permanecendo sempre nele, recolhendo nele todos os bons modos, e considere que foi aceito por Deus. Não comece hoje uma coisa, amanhã outra, e que fique tranqüilo de que com isso nada estará perdendo. Pois com Deus nada se pode perder; assim como Deus não pode perder algo, tampouco nós, com Deus, poderemos perder algo. Por isso toma um de Deus, recolhendo nisso todo o bem.

Mas se acontecer de não concordarem (vertragen) muito, a ponto de um não admitir o outro, que isso seja para ti um sinal seguro de que não é de Deus. Um bem não é contrário a outro; pois, como disse Nosso Senhor: “Todo e qualquer reino dividido nele mesmo deve perecer” (Lc 11,17); e também disse: “Quem não está comigo está contra mim, e quem não recolhe comigo, este dispersa” (Lc 11,23). Que isso seja para ti, portanto, um sinal seguro de que se um bem não admite outro bem ou até um bem menor ou o destrói, isso não é de Deus. Deveria trazer algum benefício (bringen) e não destruir.

Assim se pode resumir com uma simples palavra: não há qualquer dúvida de que o bom Deus aceita a cada homem em seu melhor.

* ECKHART. Meister Eckharts Traktate. Herausgegeben und übersetzt von Joseph Quint. Stuttgart: W. Kohlhammer Verlag, 1963. n. 22, p. 284-290. Tradução de Enio Paulo Giachini.

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Isso é certamente verdadeiro, e ele jamais acolhe um homem que se encontra no chão, o qual ele gostaria de ter encontrado em pé, pois a bondade de Deus tem em mente todas as coisas no seu melhor.

Foi perguntado por que então Deus não recolhe as pessoas que ele sabe que deverão afastar-se (vallen) da graça do batismo, para que morram na infância antes de chegarem ao discernimento (bescheidenheit), visto que sabe que eles deverão cair e não mais se levantar – isso seria seu melhor?

Então eu disse: Deus não é o destruidor de nenhum bem, antes é um aperfeiçoador (vollbringer)! Deus não é um destruidor da natureza, mas um aperfeiçoador. Tampouco a graça destrói a natureza, antes aperfeiçoa-a. Se Deus destruísse a natureza assim em seu começo, então ela sofreria violência e injustiça; isso ele não faz. O homem possui uma vontade livre, com a qual pode escolher bem e mal, e para seu mau agir Deus dispõe-lhe a morte, para seu bem agir, a vida. O homem deve ser livre e um senhor de todas as sua obras, intacto e invicto. Graça não destrói a natureza, ela aperfeiçoa-a. A glória não destrói a graça, aperfeiçoa-a, pois a glória é a graça perfeita. Em Deus portanto nada há que destrua qualquer coisa que possua algum ser (wesen), antes ele é um aperfeiçoador de todas as coisas. Portanto não devemos destruir nenhum bem, mesmo que pequeno, nem destruir um modo pequeno por um grande, mas antes devemos aperfeiçoá-lo ao mais elevado grau.

Assim relatou-se de um homem que deveria começar do começo uma vida nova, e eu disse então desse modo: que em todas as coisas o homem deveria tornar-se um buscador de Deus e um homem que encontra Deus todo o tempo e em todos os lugares e junto a todas as pessoas em todos os modos. Nisso pode-se progredir (zuonemen) todo o tempo sem interrupção e crescer e jamais cessar de progredir.

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OLIVI, O MAIS VELHO REPRESENTANTE ESCOLÁSTICO DO CONCEITO HODIERNO DE MOVIMENTO

B. Jansen S.J., em Valkenburg (Holanda)*

1. A explosão fulminante das ciências naturais nos séculos XVI e XVII possui poucos paralelos na história. Séculos de predomínio de especulações, sobretudo na física e astronomia, no espaço de pouco tempo, deram lugar a teorias totalmente opostas, baseadas na observação e no cálculo exato. Basta pensar em nomes como Copérnico, Kepler, Galilei, Huyghens, Descartes, Boyle, Pascal, Newton. Mesmo deixando de lado as intuições geniais e criativas, esse progresso representou acima de tudo o emprego da matemática no esclarecimento de processos da natureza e a introdução do experimento empregado de modo sistemático e ciente de seus objetivos em lugar da especulação apriórica anterior, em resumo, devido ao novo método exato de trabalho.

Até há poucos anos estávamos comumente acostumados (cf. POGGENDORFF, 1879) a ver essa transformação como algo que surgiu quase que de repente. Parecia ser excluída a hipótese de que esses grandes inventores e descobridores devessem muitos de seus argumentos também ao seu universo anterior. Isso se aplica propriamente a Galilei, o qual sabia apresentar o resultado de seus empenhos tomando o cuidado que aparecessem dentro de uma luz agradável. Em relação a esses homens, pensava-se do mesmo modo como se pensava em relação aos fundadores da filosofia moderna: Descartes, Espinoza, Leibniz, Locke. Como Atenas, da cabeça de Zeus, esses sistemas pareciam ter nascido de seu espírito, prontos e acabados. Essas concepções só puderam se manter por tanto tempo porque a consideração historial das ciências encontrava-se ainda encravada em seus inícios, porque o tempo da passagem ou Renascença ficara para trás, inexplorado, ainda como um período cultural obscuro, isso porque sobretudo a escolástica cristã ainda era desprezada como uma parte da medievalidade obscura e reacionária por amplos círculos setoriais da ciência.

Esses tempos passaram. Os séc. XIX e XX tornaram-se, de modo destacado, a época da consideração histórica. A investigação erudita ocupou-se detidamente com o ideal da ciência e as produções e desempenhos da renascença. Por fim, aos olhos de uma mente imparcial, que pensa historicamente a escolástica, não é preciso nenhuma outra recomendação: suas produções filosóficas e teológicas estão, na sua maioria, diante de nós como um livro aberto.

E justo essa mesma consideração histórica provou, de acordo com as fontes, como era de se esperar segundo leis psicológicas válidas em geral, que a guinada

* Philosophisches Jahrbuch, Band 3, Fulda: Fuldaer Actierndruckerei, 1920. p. 137-152. Tradução da equipe de editoria da Revista.

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nas ciências naturais, especialmente na astronomia, matemática e mecânica, não foi um processo de desenvolvimento repentino, mas um processo orgânico preparado há séculos. Nesse processo, gênios como Galilei precisaram empenhar-se com decisão para descobrir, reunir e levar ousadamente a impor-se de modo vitorioso tudo que já estava latente, em devir e disperso. Deve-se grande mérito ao Professor de física em Bordeaux, Pierre Duhem, recentemente falecido, haver investigado, penetrando a época medieval adentro, os primórdios das modernas concepções físico-matemáticas, tudo fundamentado com rico material impresso e material não impresso, e trazendo à luz com isso resultados surpreendentemente novos e valiosos (DUHEM, 1906-13)1.

2. O ponto donde parte o desenvolvimento moderno e onde se encontram de imediato os representantes da antiga e da moderna corrente refere-se à natureza do movimento. A teoria aristotélico-medieval2 distingue sobretudo movimentos naturais e violentos (motus naturalis et volentus). A causa do primeiro encontra-se inteiramente no corpo movido, no appetitus innatus ou na vis innata, portanto, numa tendência inata para determinado lugar. Tomada concretamente, a força natural é a gravidade ou a leveza; um corpo pesado possui seu lugar natural embaixo; um leve, em cima. Por isso, a queda de um corpo pesado para baixo e a ascensão de um leve para cima é um movimento natural; para ambos, o princípio adequado desse movimento encontra-se neles mesmos.

Todos os movimentos pelos quais os corpos são deslocados deste seu lugar natural são movimentos violentos. Esses só se estabelecem e duram apenas enquanto uma força exterior atuar sobre eles. Então uma pedra lançada para cima ainda voa para mais longe quando já abandonou a mão que a lançou, assim afirma Aristóteles que é o ar movimentado que toma a pedra e a leva consigo para frente3.

Ao lado dessas duas concepções essenciais da teoria aristotélico-medieval do movimento, cite-se ainda um ponto subordinado, a saber, que essa teoria conhece uma composição de movimento natural e violento; tal é por exemplo o movimento impulsionado pela pressão ou propulsão provocada pela queda de uma pedra. Então discute-se se o ar, que em si não é nem pesado nem leve e que por isso pode apoiar tanto o movimento dos corpos pesados quanto dos leves, é necessário para o movimento natural. Aristóteles não lança a pergunta, mas

1 Paralelamente a ele, encontram-se muitos outros trabalhos, que o Überweg-Baumgartner cita na 10. edição (Berlim, 1915) do Grundrisses der Geschichte der Philosophie (p. 99 das indicações de referências) . Cf. H. Wieleitner, Das Gesetz vom freien Fal in der Scholastik, bei Descartes und Galilei, in: Ztschr. f. math. u. naturwiss. Unterricht, 45 (1914), p. 209-228; O mesmo, em: Bibliotheca mathem. 13 (1912-13), p. 115-145 e 14 (1913-14, p. 193-243. Baumgartner reelaborou exemplarmente os resultados de Duhem no esquema citado.

2 Nossa apresentação precisaria mostrar que Poggendorf em sua reprodução da concepção aristotélico-escolástica (219) não tem clareza.

3 De coelo, III, 2, 301b 16 sqq.

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segundo seus princípios precisa negá-la. De ambos os comentadores aristotélicos mais importantes da parte dos árabes e dos escolásticos cristãos, Tomás nega-a, enquanto Averróis confirma-a. Nesse caso, o Aquinate é o mais cuidadoso e conseqüente, e ao explicar Aristóteles nesse sentido, ele encontrou o fato básico histórico4.

Aristóteles manifesta-se por diversas vezes sobre esse ponto na Física, assim no livro 2 e no livro 4. A melhor explanação está no De coelo III 2 301b 16 sqq., onde ele trata ex professo do movimento natural e violento. Transponho a passagem assim como a seguinte, de Tomás, pois é só pela comparação com ela que se pode apreender plena e perfeitamente o moderno no conceito de movimento de Olivi.

É, portanto, manifesto que todo corpo tem necessariamente um peso ou uma leveza definidos. Porém, posto que natureza é um princípio de movimento, presente nele mesmo, e força é um princípio de movimento, presente em outro, enquanto outro, e movimento é sempre ora conforme a natureza (kata physin) ora por coação (biaios), um (movimento) que é conforme a natureza, como para baixo o é para uma pedra, será meramente acelerado devido a uma força, enquanto um (movimento) que é contra a natureza o será completamente pela força.

Em ambos os casos é necessário o ar como instrumento, pois acontece de este ser ora leve, ora pesado. Assim, enquanto leve, faz mover-se para cima, sendo impelido e tomado pelo princípio, a partir da força, e enquanto pesado, para baixo. De tal maneira, pois, que se transmitem impregnando-se em cada um dos dois. Por isso, aquele que (é movido) pela força, se move mesmo quando não acompanhado do que o colocou em movimento. Se, pois, este não estivesse presente no corpo, a força não seria um movimento. E o movimento que é conforme à natureza de cada um dos dois pode se dar do mesmo modo.

Tomás reproduz a visão aristotélica com sua clareza característica. Mas o fato de que no comentário (GRABMANN, 1914, p. 36s) sobre esse tema ele não se refere apenas historicamente mas também reproduz sua própria opinião pode ser deduzido de passagens exemplares de outras obras, independentemente do estilo literário de seus comentários5.

Por primeiro mostra que os corpos naturais possuem movimentos naturais, depois mostra que possuem gravidade e leveza (levitas), às quais se inclinam para seus movimentos naturais (lect. 5). Os princípios do movimento natural aplicam-se de acordo com a gravidade e a leveza... Contudo, se diferenciam do movimento natural e violento segundo seus princípios. Por isso em primeiro lugar define os princípios de cada um dos movimentos e afirma que a natureza é o princípio do movimento que existe naquele que é movido. A força porém, isto é, a potência que move pela violência é o princípio do movimento que existe em outro, enquanto é outro. É movimento conforme a natureza, cujo princípio encontra-se nele mesmo que se move, mas não só o princípio ativo, como

4 O próprio Duhem não compreendeu bem e de forma clara o ponto de vista aristotélico. Assim ele afirma (II 189): “Segundo a dinâmica de Aristóteles, tanto a produção como a conservação de todo movimento supõe a ação continuada de um motor distinto da coisa movida”; de modo semelhante, outras passagens (II 192, III 263). Nesse ponto Duhem desconhece a diferença entre movimento natural e violento. O que ele afirma acima vale somente para o último.

5 De coelo lib. III.

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também o passivo. O que, na verdade, é a potência, pela qual algo é naturalmente suscetível da moção de outro. Por isso quando os corpos inferiores são movidos pelos corpos superiores não é movimento violento, mas natural, porque nos corpos inferiores há uma aptidão natural de seguir os movimentos dos corpos superiores. Porém, o movimento violento existe quando o princípio do movimento provém de fora, como quando o homem arremessa um corpo pesado para cima, no qual não existe nenhuma aptidão natural para tal movimento. Mostra, portanto, conseqüentemente como a violência se mescla com o movimento natural. Com efeito, quando o movimento que é natural a algum corpo, como na pedra há movimento natural para baixo, a potência que move violentamente torna, por vezes, mais veloz...

Mostra como o ar serve a cada um dos movimentos. Primeiramente como serve ao movimento violento, em segundo lugar como serve ao movimento natural. Afirma, portanto, em primeiro lugar que a força do motor violento usa ar como um instrumento para ambos, isto é, para o movimento para cima e para o movimento para baixo. O ar, porém, nasceu para ser leve e pesado... Na verdade o ar é pesado para o fogo, para a água, porém, e para a terra é leve; mas a água é certamente leve para a terra, para o fogo, contudo, e para o ar é pesada. Desse modo pois o ar, enquanto é leve, determina o movimento violento, que é para cima, assim, porém, enquanto se move e enquanto a potência do motor violento for o principio. O movimento, contudo, que é para baixo determina o que é pesado. Com efeito, a força do motor violento a modo de algum impulso, transmite o movimento a cada um, isto é, ao ar movido para cima e ao corpo pesado como a pedra, por exemplo... Não se deve, porém, compreender que a força do motor violento imprime à pedra, que se move pela violência, alguma força pela qual se mova, como a força que gera imprime a forma ao gerado que origina o movimento natural... Portanto o motor violento imprime à pedra apenas o movimento; o que na verdade acontece enquanto a toca... cessando o motor violento, o ar movido por ele impulsiona a pedra mais longe... Se não existisse um tal corpo, como é o ar, não existiria movimento violento. Disso segue-se que o ar é instrumento necessário do movimento violento e não apenas por ser eficiente.

Mostra como o ar serve ao movimento natural e afirma que o ar promove do mesmo modo o movimento natural de cada um dos corpos como também o movimento violento, quer dizer, enquanto por sua leveza ajuda para o movimento que é para cima, por seu peso, para o movimento que é para baixo. Contudo, pode haver uma dúvida se o ar serve ao movimento natural dos corpos pesados e leves por necessidade (ex necessitate) ou apenas por ser eficiente. Averróis, porém, determina que também atende ao movimento natural por necessidade... E assim segue-se que o ar não é necessário para o movimento natural por necessidade como no movimento violento (lect. 7).

3. A mecânica moderna compreende a natureza do movimento de modo bem diverso. Ela não reconhece nenhuma diferença entre movimento natural e violento. Ela jamais vê a causa da mudança no estado de um corpo, seja movimento ou repouso, no próprio corpo movido, mas exclusivamente numa influência de fora, na força que provém do movente. Por essa força o corpo movido recebe um determinado estado de movimento, um montante de movimento (mv). Esta é a base imediata do movimento. Nesse estado de movimento – o mesmo vale para o do repouso – sem uma influência de fora, o corpo movido se mantém estável por si, até que uma nova força atue sobre ele a partir de fora e modifique esse estado de movimento (lei da inércia). Assim distingue-se imediatamente o conceito moderno de movimento, do conceito aristotélico-medieval pela causa do movimento ou a força, que se encontra sempre fora do corpo movido, e em segundo lugar pelo estado de movimento ou pela base imediata do movimento, que se encontra plenamente no corpo movido e

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por isso se mantém estável independentemente de toda outra influência exterior. A respeito dos outros princípios da mecânica, como por exemplo, o movimento propulsionado, podemos deixar de lado aqui, visto que estamos às voltas apenas com o conceito de movimento.

Foram precisos naturalmente séculos até que se formulassem as leis modernas com a agudeza e a exatidão de hoje. Mesmo em Galilei, muita coisa está ainda obscura, como por exemplo, ele ainda não conhece a lei da inércia em toda sua generalidade, mas restringe-se a falar da permanência do movimento que segue em linha horizontal.

Para nossa consideração histórica, que busca locupletar os resultados da investigação que se deu até o presente e perseguir a linha de desenvolvimento que vai até e ultrapassa o século XIII ainda precisamos explanar rapidamente até que ponto chegou o desenvolvimento das concepções modernas no século XIV. Com isso então teríamos alcançado os pontos de conteúdo necessários para poder constatar qual o valor da teoria do movimento de Olivi, de que logo se tratará, e seu distanciamento do século XIV. Quem abriu caminho para a dinâmica moderna dessa época foi Duridan6, falecido em 1360; recebe plena acolhida e posterior desenvolvimento em Alberto de Sachsen e Nicolaus de Oresme, dos quais representa escolarmente sobretudo a Alberto. Seu conteúdo principal é: o conceito moderno de movimento, como foi apresentado anteriormente, a lei de inércia e o movimento propulsionado (1 = ½ t2)7. Apesar disso, essa época ainda não conhece a queda livre, que representa pois um caso especial do movimento uniforme propulsionado. Mas permanece sobretudo a diferença entre movimento natural e violento, porque os nominalistas ainda não conheciam a força da gravidade e por isso faziam remontar o movimento natural à gravidade e leveza inatos, exatamente como Aristóteles8.

Passando pelo século XIV, Duhem persegue a assim chamada teoria do impetus, o que coincide com o ímpeto ou momento de Galilei e com a quantité de mouvement de Descartes9, portanto com o conceito moderno de movimento apresentado acima, até alcançar o neoplatônico monofisita e comentador de Aristóteles Johannes Philoponos de Alexandria, lá pelo ano de 550. Esse contradiz a teoria aristotélica e desloca o fundamento do movimento para uma energeia nos

6 Duhem III 34, 54.

7 Ainda Cajetan von Thiëne (morto em 1465), que se coloca decididamente a favor da teoria do impetus (Duhem III 105) e sustenta a lei do movimento do tempo (Zeitweggesetz) de Oresme (Duhem III 503, 581), propõe, apesar disso e exatamente como Olivi (morto 1298), a velha teoria da gravidade e leveza (Duhem III 105-106). Marsilius von Inghen (morto em 1396), discípulo de Alberto de Sachsen, quem mais divulgou a dinâmica de Buridan, fala apesar disso como Olivi de impetus naturalis et violentus (Duhem II 195).

8 Duhem I 111s.

9 Duhem I 145s.

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próprios corpos10. Por meio de uma tradução, de Michal Scottus em 1217, da teoria dos planetas do Astrônomo Abü Ishäk-al Bitrüschi (lat. Alpetragius, por volta de 1200), a teoria do impetus ali defendida chegou pela primeira vez ao conhecimento do Ocidente cristão, entre outros, por Rogério Bacon, Alberto Magno e Tomás de Aquino11, os quais a rejeitaram12.

Nas últimas décadas do século foi amplamente discutida13. Duhem assinala em conclusão e meio indiretamente o ano de 1277 como o ano em que o Bispo Tempier de Paris condenou oficialmente 219 teses aristotélico-averroístas, como sendo o ano de nascimento da moderna ciência da natureza. Mas se ela já encontrou iniciadores nessa época, o próprio Duhem não confirma; com certeza, ele não pôde indicar nenhum nome concreto. Só através de conclusões retrospectivas se poderia indicar de modo provável que pela virada do século se encontraram representantes dessa teoria. Assim, o escotista Walther Burleigh14, morto após 1343, descreve que o movimento propulsionado foi esclarecido através da nova teoria do impetus. Em todo caso, de modo algum pode-se indicar o franciscano Richard Middletown – em quem se pensava em primeiro lugar pelo fato de no restante se apresentar como um espírito progressista e se ocupar15 com questões físicas, plenamente de acordo com o espírito dos irmãos de ordem, voltadas mais para o lado do empirismo – como representante da teoria do impetus. A passagem citada por Duhem16 fala simplesmente de motus naturalis no sentido de Aristóteles; ela apenas destaca que a causa do movimento não possui seu acento no lugar natural, como outros ensinaram, mas no próprio movimento dos corpos.

II. Aqui inicia-se de modo surpreendentemente fecundo a teoria do movimento de Petrus Johannis Olivi (1248 ou 1249-1298). Apresento por primeiro suas

10 Sobre Philoponus, cf. o excelente artigo “Um predecessor de Galilei no séc. VI”, do conhecido pesquisador de Galilei Emil Wohlwill, em: Physicalische Zeitschrift, 7, Leipzig, 1906, p. 23-32. Wohlwill apresenta extensivamente o moderno na teoria do movimento de Philoponus. Mostra que em Hipparch (140 a.C.) podem ser demonstrativamente encontrados pela primeira vez elementos do conceito moderno de movimento. Duhem III p. VI, 34, 62, 256; II 189-191.

11 Coment. in libros De coelo et mundo, lib III, lect. 7. A citação foi apresentada acima.

12 Duhem II 191s; III 34.

13 Duhem II 421s, 412; também a refutação feita por Tomás faz provavelmente isso, Alberto de Sachsen refuta com o próprio Buridam as objeções de S. Tomás (Duhem II 194).

14 Duhem I 130.

15 Duhem II 442s.

16 Eis aqui, pois, segundo me parece, o que é preciso ser dito – diz Richard (segundo Duhem II 422), depois de ter refutado outras teorias –: embora os diversos elementos tenham sido determinados por aquilo que os engendrou nos movimentos que lhes são naturais, é por sua própria força e (não mais) pela participação de alguma influência insistente em seus lugares naturais que eles executam os movimentos determinados pela causa geradora (em: II libr. Sent. Dist. XIV, art. 3 q.4).

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explanações sobre o impetus ou o conceito moderno de movimento, procurando apresentar em seguida o significado histórico das mesmas.

1. No decorrer dos longos anos de trabalho do Codex Vat. Lat. 1116 me chamou a atenção simplesmente a comparação recorrente do movimento próprio do corpo arremessado, para o esclarecimento de verdades abstratas, das quais o universo do pensamento de Olivi é tão rico, sem que de algum modo eu tivesse tirado conclusões de uma teoria científica que estivesse na base dessa comparação. Foi só através do interesse vivo pelas contribuições de Duhem que adquiri uma postura intelectual correta. Deste modo, foi há pouco tempo que tive acesso à redação definitiva do texto manuscrito para a impressão que se inicia por agora.

Na Quaestio 31: “Se tudo o que se deduz da potência da matéria é mais segundo suas essências ou segundo as razões seminais”, na solução da objeção 22, discute-se o problema do surgimento da alma animal, que não é criada de imediato mas é gerada pela vis formativa (força formativa). Surge a dificuldade de se saber como pode a vis formativa, concretamente, o ovo feminino e a semente masculina, que são liberados do organismo, gerar um ser vivo. Olivi responde: “a força formativa só age como força instrumental de algum agente principal”. Esse pensamento deve ser melhor compreendido através de uma comparação. Por isso Olivi prossegue logo de imediato: “como, a seu modo, o impulso ou as inclinações dadas aos arremessados pelos arremessadores movem os próprios arremessados também na ausência dos que arremessam”.

Nessas palavras encontra-se claramente expresso o conceito moderno de movimento. O assim chamado movimento violento, de que se trata aqui, não é mais referido à influência de meios exteriores, o ar, mas a um estado de movimento interior: “impulsos ou inclinações dadas aos arremessados movem os próprios arremessados”. Esse estado se mantém mesmo sem outra influência do movente: “movem os próprios na ausência dos arremessadores”. Nessa expressão está contida a concepção hodierna de permanência do estado de movimento (lei de inércia), embora ainda não seja expressa claramente.

A modernidade da idéia de impetus contida aqui ganha ainda mais destaque quando se compara essa passagem com a doutrina de Tomás referente a esse assunto. Ele trata exatamente do ponto: “como o ar serve ao movimento violento”. Ele afirma: “Não se deve, porém, compreender que a força do motor violento imprima à pedra, que se move pela violência, alguma força pela qual se mova, pois desse modo o movimento violento viria do princípio intrínseco, o que é contra a razão do movimento”. Olivi diz exatamente o contrário: o movente dá ao objeto movido um impulso ou uma inclinatio, que o move e quiçá “na ausência dos que arremessam”.

Esse “mover na ausência dos que arremessam” ganha de novo sua significação plena só através de sua contraposição com a velha teoria que exige sempre um contacto com o motor (tactus motoris): “portanto o movimento violento imprime à pedra apenas movimento, que certamente acontece, enquanto a toca”, mas visto

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que pela experiência a pedra segue adiante pelo ar, o mesmo deve tocá-la: “o ar movido por ele [arremessador] projeta mais longe a pedra... e isso, enquanto durar a força do primeiro motor... e disso se segue que o movimento violento move a pedra pela força do ar”.

A contraposição se acentua ainda mais pela comparação que Tomás faz surgir com o esclarecimento supra: “como a força daquele que gera imprime a forma ao gerado, que segue o movimento natural”. Justo a mesma comparação que a de Olivi! Só que enquanto Olivi estabelece uma igualdade plena entre ambos os casos, a saber, o processo generativo e o movimento violento, Tomás acentua sua desigualdade. Uma nova demonstração, portanto de que Olivi afirma o que Tomás combate. Quase que somos impelidos a admitir que na composição dos dois casos Olivi tinha Tomás diante dos olhos ou que talvez os representantes da teoria do impetus tinham em mente a mesma de modo genérico pela comparação com o processo de geração. Com isso ter-se-ia esclarecido literariamente do melhor modo a obviedade e o ocasional (Gelegentlich) em que Olivi se reporta a um novo conceito de movimento numa questão totalmente alheia.

Agora pois importa encontrar novas passagens representativas e sobretudo constatar se Olivi não defendia quem sabe ex professo a mesma teoria na apresentação de sua teoria do movimento. Propus-me portanto a investigar com precisão as questões 23-30 nessa perspectiva. De fato, a questão 29, “se o movimento provém imediatamente do motor”, contrapõe agudamente os dois pontos de vista. O fato de que eu ainda não percebera isso antes, provém da formulação do pensamento que usa de muitas perífrases para descrever o conteúdo objetivo do problema e com isso só o deixa compreender claramente a quem, de algum modo, já está familiarizado com a constituição lingüística da nova teoria. Foi o que me tinha proporcionado a q. 31.

Olivi continua:

Sétimo, ao terceiro quesito alguns quiseram dizer que o movimento provém imediatamente do motor. Outros, porém, querem que, primeiro, haja alguma conformidade ou impressão pelo motor em movimento, por essa impressão se produz no mesmo sucessivamente inclinação para o limite do movimento, a isso porém, segundo eles, segue-se imediatamente o movimento. Os terceiros são os que concordam com os do meio em tudo, porque pertence ao movimento durar na ausência do motor; quando porém o movimento só pode existir estando presente o motor, então afirmam que o movimento segue imediatamente a primeira impressão dada pelo motor, de tal modo que não é necessário interpor alguma outra inclinação.

Em outros tratados que escrevi sobre Olivi chamei a atenção expressamente para o fato de que, para a discussão do problema, ele fornece antecipadamente panoramas históricos detalhados sobre o estado do mesmo, o que para o pesquisador de história da filosofia medieval pode representar um reservatório rico de achados. Isso se confirma aqui. Caracterizam-se claramente os diversos partidos, os primeiros são os aristotélicos, os dois seguintes são os modernos. Ainda mais interessante é que na caracterização dos últimos chama-se a atenção para os aspectos tateantes, inconclusos e cambiantes, sempre pertencentes aos

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novos em seu nascimento e em sua juventude, enquanto que os aristotélicos encontram-se na clareza plena, como vimos em Tomás.

Quando nessa questão Olivi apresenta os dois pontos de vista aparentemente apenas como referência, fica evidente a partir da Quaestio 31 que ele sustenta a teoria do impetus. Mas independente disso, uma comparação com a situação de outras questões mostra que via de regra primeiro ele apresenta a opinião dos adversários e depois a sua, para no fim dissolver os fundamentos das primeiras como objeções. É exatamente assim que ele procede aqui. Primeiro ele apresenta a opinião de Aristóteles, depois as outras, para depois refutar os fundamentos da primeira.

Somos impelidos a perguntar por que o segundo e terceiro pontos de vista são distintos: enquanto o último parece falar apenas do motus violentus, o segundo tem em vista também o motus naturalis. Em todo caso, em sua concepção unitária, pela qual ele trata de todo movimento, esse aproxima-se mais da concepção hodierna do que o último. E se não houvesse a contraposição da teoria medieval da gravidade e da distinção ali referida do motus naturalis e violentus, mantida também pelo Olivi, estaríamos tentados a empregar a teoria do impetus também ao motus naturalis. Todavia, o novo conceito de movimento é expresso de modo claro em ambos os pontos de vista.

Olivi apresenta aí os fundamentos dos três pontos de vista, onde se pode perceber de imediato que, agora, ele reconhece ainda apenas dois partidos, de certo porque ele considera que a diferença entre os outros e os terceiros, o que toca o núcleo da questão, e sobretudo frente aos primeiros, está desaparecendo: “Os seguintes, porém, foram levados a pôr a impressão antes do movimento”, afirma ele lapidarmente. Assim é de grande importância histórica o fato de que a argumentação demonstrativa dos aristotélicos não é feita de maneira limpidamente tética e positiva mas um tanto polêmica. É o que mostra a vivacidade da discussão ali referida, o que demonstra indiretamente que a nova visão já possuía adeptos.

Primeiro – começa a primeira demonstração dos aristotélicos – “os primeiros são movidos por parte do motor. Como, pois, sua força motiva está presente ao móvel e é suficiente para mover tão bem como também para influir em sua espécie, parece que tão bem poderia por si imediatamente causar o movimento como também por meio de influência. Por isso é supérfluo colocar dois ou mais onde é suficiente um”.

Segundo – esse argumento tem em vista de modo ainda mais polêmico o conceito moderno de movimento, quando distingue nitidamente entre os moventes exteriores (da força) e o estado do movimento como o fundamento imediato do movimento – “são movidos da parte da influência: pois causar movimento e mover o móvel é a mesma coisa. É justamente este o ponto negado pela teoria do impetus, enquanto requer uma causa ou força exterior para toda e qualquer mudança de movimento, mas deixa o estado do movimento, instalado

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pela força, permanecer constante depois da influência, enquanto distingue claramente entre ambos – “se portanto essa influência causa o movimento – de outro modo pois não se segue necessariamente para ela –: portanto ela mesma moverá o móvel. Mas tudo isso é verdadeiro movimento; portanto ela mesma será um verdadeiro movimento do móvel; o que parece absurdo”. Esse “absurdum” é de fato o verdadeiro.

Segue-se a solução adequada: “Para o primeiro afirmam: porque a força do motor não está de tal modo intrínseca ao móvel nem é atual e formal aplicação do móvel para o termo do movimento, como é a impressão injetada pela força do motor no móvel” – recorda o conceito hodierno de força – por isso a força do motor no móvel não é suficiente para causar o movimento sem o influxo de sua impressão. Contudo a primeira proposição pela qual se afirma que a força do motor está tão bem presente e é suficiente para mover bem como para influenciar, é falsa, como aparece das razões apresentadas em favor da outra posição.

“Quanto ao segundo afirmam que a primeira é falsa. Pois o causar movimento não é sempre o mesmo que o mover tomado propriamente; pois da leveza do fogo não se diz que move propriamente o fogo para cima, embora cause seu movimento, nem a inclinação dada à pedra pelo projetor afirma projetar ou mover a pedra – de certo inclinatio data (inclinação dada) é tomado ativamente, isto é, a força que coloca a pedra em movimento; cf. a solução da oitava objeção –, embora cause seu movimento. Com efeito, propriamente não se chama movimento a não ser àquele que transmite impressão no móvel pela qual o mesmo se move”. A concepção apresentada aqui destaca-se agudamente da aristotélica e aproxima-se muito do ponto essencial da mecânica hodierna, segundo a qual cada movimento é causado por uma força que atua a partir de fora, mas que depois é absorvido pelo próprio corpo como um estado duradouro.

“Terceiro: são movidos da parte do próprio movimento, porque o movimento por sua natureza não é determinado para que necessariamente se siga a predita influência. De outro modo deveria assemelhar-se a si mesmo como suas causas imediatas antes que do motor principal, cujo contrário é claro. Portanto parece que possa ser causado pelo motor como também pela predita influência”. ... De fato, a mecânica afirma o que aqui é combatido, que justo a causa imediata do movimento não é o movente exterior ou a influência de sua força, mas o estado do movimento no corpo movido.

Por isso – na oitava objeção – essa inclinação, como não é imediatamente transmitida pelo motor, será necessário tirá-la da potência da matéria e deste modo, em conseqüência, pelo movimento. Disso, porém, se seguem duas conclusões contra o proposto. Segue-se, portanto, que antes do movimento será o movimento e assim ao infinito. Segue-se também que depois da influência seguirá imediatamente o movimento e que isso não pode seguir imediatamente, porque o movimento não poderá seguir a não ser que antes o móvel seja inclinado para o próprio movimento e assim apenas mediatamente. Como a própria inclinação se faz pelo movimento, imediatamente se seguirá a influência do movimento.

Quanto ao oitavo afirmam que dupla ou tripla é a inclinação do móvel para o limite do movimento. A primeira é a mesma coisa que o primeiro ímpeto dado ao móvel quase

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agindo ou agitando o próprio móvel. E essa é uma simples ação e pode ser chamada de inclinação atual ou operacional. A segunda é quase habitual e lançada por primeira; essa é aquela que na ausência ou distancia do projetor causa o movimento da projeção da pedra ou da flecha. – A terceira inclinação não tem importância.

Assim, toda a argumentação dos aristotélicos denuncia o caráter polêmico, a aguda contraposição com adversários e quiçá com os defensores do conceito hodierno de movimento. Equipara-se nisso à apresentação do motus violentus em Tomás, que também deixa transparecer claramente uma visão polêmica: “o motor violento imprime à pedra apenas movimento”, afirma-se enfaticamente, depois de ter dito logo antes: “não se deve, portanto, compreender que a força do motor violento imprima à pedra alguma força pela qual se move”.

Na solução da oitava objeção, com a mesma exatidão e clareza como na primeira citação que foi retirada da questão 31, diz-se que a causa do assim chamado movimento violento, que inicia o processo, encontra-se fora do corpo movido: “o ímpeto dado ao móvel quase agindo ou agitando o próprio móvel... a segunda lançada pela primeira”. Nesse ponto os aristotélicos concordam com seus adversários. Ao contrário disso, negam ainda mais expressamente o segundo elemento – basta conferir a citação tirada de S. Tomás. O fundamento imediato do movimento é um estado interior, um princípio interior: “habitual... que causa o movimento da projeção. Tomás afirma: não se deve, portanto, entender que a força do motor violento imprima à pedra, que se move pela violência, alguma força pela qual se mova; pois dessa forma o movimento violento existiria por princípio intrínseco, o que é contra a razão do movimento”. Esse estado do movimento se mantém por si, sem posteriores influências de fora: “na ausência ou distância do projetor causa o movimento”. Por fim, através da indicação do corpo determinado (lapidis vel sagittae) diz-se de modo ainda mais claro que o que se afirmou vale para o movimento violento. A pedra já se encontrava antes em Tomás, pedra e seta parecem ser os exemplos sempre recorrentes na escola.

Na explanação da outra perspectiva, da teoria do impetus, a qual reproduz a convicção de Olivi, chama logo a atenção que a argumentação começa com verdades fatuais. Entre os oito fundamentos, os três primeiros, de natureza um tanto duvidosa, são extraídos da experiência. A tendência de tomar a experiência como conselheira chama a atenção frente ao apriorismo conceitual aristotélico na teoria do movimento.

A primeira fundamentação soa assim:

Em primeiro lugar, pela experiência que vimos nos arremessos e em todos aqueles que por nós ou por outros são movidos por impulso. Vemos, pois, nesses que em primeiro lugar são impelidos e inclinados para certa meta do lugar, antes de serem movidos localmente. Donde acontece que algumas vezes são impelidos e contudo o movimento local não se segue, como aparece num mui valoroso impulsionador de uma grande nave ou de um grande monte.

O segundo argumento soa assim:

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Da experiência das formas da luz ou da cor e semelhantes, que ora deixam de existir pela ausência da irradiação, ora por sua presença aparecem e se mantêm. A geração pois dessas formas não é propriamente movimento, até são causas dos movimentos, ou seja da rarefação e calefação ou de alguma outra alteração. Disso, por assemelhação, se conclui que outros movimentos são causados por algumas primeiras impulsões ou semelhantes do próprio motor.

Para a compreensão da quarta demonstração há que se notar que, como foi explanado na q. 24 e q. 27, o motus é idêntico com a forma acidental atuada no corpo movido por influência de um agente exterior17. Soa assim: “Quarto: porque o movimento não provém radicalmente do motor, mas antes provém do próprio móvel. Contudo se se deduzisse do motor, então seria mais algum influxo derivado ou impresso pelo motor no móvel. Isto, porém, porque não sai radicalmente do motor, não parece poder ser feito ou causado por ele senão por aquilo que radical e diretamente sai ou flui dele”. Esse pensamento expressa claramente que o fundamento imediato do movimento está no próprio corpo movido e que ele não coincide com a causa do movimento ou com o movente exterior.

Na linha das concepções ali referidas, ambas as argumentações seguintes pressupõem que “as primeiras impressões dos agentes se originam num momento”.

Sétimo: porque o radical aparecimento do movimento da matéria móvel prova que o movimento não é causado senão pela união natural da matéria do próprio móvel com a imediata e intrínseca causa do seu movimento e por alguma conseqüência natural do movimento para sua causa intrínseca e imediata; de acordo com isso provamos que o habitual propósito ou a habitual mudança provém de nossa potência volitiva através de ato volitivo intrínseco à própria potência, por aquilo que o próprio ato é o mesmo que a atual aplicação da própria potência para aquele objeto em que pelo habitual propósito permanece habitualmente aplicada; Por isso é necessário que alguma habitual aplicação se dê ao móvel para que alguma forma provenha dele mesmo. Ou o movimento é o mesmo que a forma sucessivamente tirada do móvel e que permanece após o movimento, ou não. Consta que o movimento é algo formal tirado da potência móvel. Contudo, se realmente é a mesma coisa que a forma provinda do movimento ou no movimento, então mais forte e claramente se convence que o movimento não é a primeira impressão feita pelo móvel no motor.

Também a questão 27 – “se o movimento é a mesma coisa que a forma, que provém pelo movimento” – contém passagens pertinentes aqui, como... “ao impulso dado à matéria segue-se o movimento... a matéria com o movimento se dá através da força do agente... no movimento local o próprio ser-em-que (esse ubi) ou a própria existência local não é tal coisa que possa ser dada ao móvel pela simples influência; é necessário, porém, que sua produção sempre se inicie pela própria coisa localizada; ele mesmo porém em-que (ubi) se origina pelo fato de a coisa localizada ou local ser aplicada a tal lugar”, e depois, “o motor move o

17 Walther Burleigh caracterizou-a como gravitas accidentalis (Expositio in octo libros Physicorum. Veneza: 1491, p. 227, col. E). Cf. Duhem I 110, 114s, 130; III 89.

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móvel por seu impulso” e por fim, “o movimento não se origina pela simples influência do agente, mas antes pelo impulso do móvel”.

Na q. 24 “se a forma ou a primeira impressão e semelhança do agente provém da potência do seu sujeito” significa: “as impressões dos agentes são aquilo que por primeiro é feito pelo agente no paciente e através disso é movido para a forma; ...o paciente não é movido pelo agente para a forma que deve ser tirada a não ser através da inclinação ou do impulso, através do qual o paciente é inclinado e impelido para a meta ou forma que deve ser introduzida pelo movimento, como vimos nos arremessados”.

Em todas essas citações chama muito a atenção e aparece sempre em primeiro plano o impulsus como verdadeiro suporte da grandeza do movimento, exatamente como nos nominalistas do século XIV e em Leonardo da Vinci.

Ao contrário, tanto Olivi quanto os séc. XIV e XV não conheceram a força da gravidade moderna, como ele afirma noutro lugar também na distinção de movimento natural e violento e explica o primeiro através da gravidade e leveza conata aos corpos. Foi só no séc. XVI e XVII respectivamente que surgiu a idéia da unidade de todos os movimentos. Assim aparece na composição da segunda passagem, citada a partir da q. 24: “como vimos nos arremessados e no movimento dos elementos, em que os movimentos se seguem quase por repercussão natural para as inclinações naturais ou impulsos dados a eles pelo gerador, que são a gravidade e a leveza e desse modo o movimento dos arremessados segue necessariamente para o impulso ou inclinações violentas dadas pelo que arremessa”. E na questão 27 se diz que “os elementos pela gravidade e leveza permanecem em seus lugares, como se diz que por elas se movem para seus lugares”.

Como vemos, a lei da inércia e o conceito moderno de força encontram-se na base do conceito oliviano de movimento, são também mencionados seguidamente sem ser claramente formulados. Por fim, em Olivi não encontramos qualquer traço de uma teoria do movimento propulsionado, que surgiu através dos aristotélicos, por exemplo S. Tomás, pela ação conjunta de movimento natural e violento, enquanto que Buridan explica-a em sentido totalmente moderno e que pelo que já atestou acima o testemunho de Burleigh já fora explicada por outros por meio do impetus. O decisivo e moderno em sua teoria do movimento é então ele ter esclarecido o assim chamado movimento violento no sentido do conceito hodierno de força e da lei da inércia, fazendo-os remontar a um estado de movimento interior, provocado por uma influência do movente, e que o mantém constante no corpo movido independentemente da continuidade de sua atuação.

2. Depois de termos estabelecido a situação factual segundo as fontes, abordemos agora a significação histórica da mesma.

Primeiro há um nexo profundo e íntimo entre a recepção da teoria moderna do impetus e a tomada de posição frente à autoridade de Aristóteles. Aquela se

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impõe naquelas cabeças que se posicionam frente a ela de maneira livre ou que a combatem, como é o caso de Ockham, Buridan e outros nominalistas, enquanto que justo os aristotélicos mais fiéis, os árabes Avicena e Averróis, os escolásticos Alberto magno, Tomás e Egídio Romano eram contra ela.

Em toda alta estima que dedica oportunamente à superioridade do Estagirita, Olivi se mantém numa autonomia e independência verdadeiramente franciscano-democrática frente a ele. Nisso seu modo de expressar-se assume naturalmente o tom de um temperamento forte: “embora sua autoridade me desagrade muito – com horror de sua autoridade – se assim pensa.... diabolicamente pensa” (q. 33) – “aquela argumentação de Aristóteles não é boa, embora intelectos lisonjeiros tenham a ele como seu deus e julguem aquela ou qualquer outra razão sua ótima, mesmo sofística, isto é, como se escrita ou composta pelo deus deles” (q. 26) – “posto que ele mesmo entendesse assim, ele mesmo não é o deus de nosso intelecto a quem devamos crer como regra infalível, como fazem eles, que são da estirpe do Anticristo” (q. 22). Esses protestos são muito recorrentes. Noutro lugar expressa o princípio absolutamente verdadeiro num tom exemplar: afirmar que Aristóteles disse isso não representa nenhuma argumentação filosófica; que se exponha seus fundamentos, depois queremos examiná-los e se forem plausíveis os aceitamos, se não, deixemo-los de lado.

Enquanto que seguindo os resultados das investigações de Duhem não se encontrou nenhuma testemunha que constatasse com certeza se a nova teoria do movimento já tinha adeptos antes de 1300, Olivi atesta expressamente que existiam, e mais, que havia duas correntes dos mesmos. Desse modo, fixa-se agora com certeza um nome, a saber, o de Olivi, como um representante historicamente demonstrável da teoria do impetus. É claro que ele não foi o primeiro a produzir essa concepção. Isso resulta, independente das reportações de Duhem, de suas próprias exposições. Sua argumentação, por exemplo, não oferece nenhum novo ponto de vista autônomo, mas é no fundo apenas uma descrição precisa, detalhada da própria teoria. E visto que, além do mais, Olivi pertence à escola franciscana da corrente conservadora e quiçá à segunda geração dos discípulos de S. Boaventura, isso acaba talvez lançando uma luz também sobre Richard Middletown, que em 1283 foi um dos sensores da teoria da alma de Olivi, e sobre outros franciscanos pré-escotistas, e talvez também sobre Scotus, cujos discípulos Bassoli e Walther Burleigh falam a respeito dessas teorias, e sobretudo Ockham já as conserva18.

Assim pois o desenvolvimento histórico da nova mecânica aparece cada vez com mais clareza, mostrando ser assim natural e orgânico. Por certo também segundo as explanações e relatos de Olivi, o século XIV ultrapassou em muito o século XIII, tanto em seus resultados positivos como no método, que frente ao método na

18 Duhem II 192s.

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maioria conceitualmente abstrato é empreendido por Olivi de modo muito mais concreto19.

Apesar disso, tomado de modo puramente principial, o passo da teoria aristotélica do movimento para a teoria do impetus é muito mais ousada, difícil e fecunda do que aquela da teoria do impetus para o movimento propulsionado. Esse passo já fora dado pelo século XIII. Por volta do final do século XV o famoso dominicano Dominicus Soto observa a queda livre dos corpos. Com isso já ingressamos na época do pleno desdobramento das leis modernas do movimento, que encontrou seu desfecho brilhante depois de Kepler e Galilei pela constatação newtoniana da gravidade unitária que domina a totalidade do mundo. Junto com isso também a mecânica moderna – cujos princípios condicionam essencialmente o grande avanço na física especial, na astronomia e em outros ramos das ciências naturais – segue as leis comuns de um desenvolvimento humano paulatino e sem grandes saltos, partindo de pequenos começos até alcançar desempenhos dignos de admiração.

Referências

DUHEM. Ètudes sur Lèonard de Vinci. Ceux qu’il a lus et ceu qui l’ont lu. 3.vol. Paris, 1906-13.

GRABMANN, M. Les commentaires de S. Thomas sur les ouvrages d’Aristote. Louvain: 1914.

POGGENDORFF, J.C. Geschichte der Physik. Leipzig, 1879.

19 Veja-se por exemplo os questionamentos em Buridan (Duhem III 35s).

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