Segredos no Jardim da Casa Grande Barras Amarelas: apresentação de Lúcia Barros

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Texto de apresentação da obra

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  • 1

    Segredos do Jardim da Casa Grande de Barras Amarelas

    (Apresentao)

    Boa tarde a todos, colegas de mesa (e de palco), colegas de trabalho, todos os presentes.

    Hoje um dia especial para a Raquel e por isso ela quis rodear-se de amigos, de familiares e de

    companheiros de trabalho. E por isso que estamos aqui: para partilhar deste momento.

    Obrigada, Raquel.

    Falar de literatura para a infncia sempre um prazer, falar de uma obra que retoma

    personagens com as quais j criamos laos, que nos convida para a casa dos livros, e que

    encerra segredos um prazer ainda maior.

    Em relao autora do texto, que muitos de ns conhecemos a ouvir de falar de literacia e de

    literacias, tem vindo a demonstrar, atravs dos seus passeios pelos bosques da fico (citando

    Humberto Eco ao referir-se Literatura) e com este j l vo quatro - que para fazer leitores

    preciso escolher menus variados, ter em conta os diferentes paladares, e vemos, por isso,

    emergir de cada um dos seus livros diferentes temas, diferentes olhares, e at diferentes

    literacias, como veremos mais adiante.

    E por falar em passeios, gostava de partilhar um pequeno poema de Joo Pedro Msseder,

    que, por sintetizar to bem a mensagem desta obra, quase dispensaria esta apresentao.

    Passeio A tlia, o choupo, a oliveira, O sobreiro, a cerejeira, Mais o pltano, o ulmeiro, O cipreste, a nespereira... Eu que ainda no conheo O nome de cada rvore Passeio por entre as slabas Escutando o rumor das folhas, Sentindo a seiva correr No tronco de cada palavra.

    (O Guardador de rvores, 2009)

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    Este trabalho, escrito pela Raquel e ilustrado pela Carla Nazareth, sob a capa (ou a copa) de

    uma histria (de uma boa histria, bem contada) faz brotar das suas pginas (ou dos seus

    ramos) um conjunto de saberes, de ensinamentos, e, sobretudo, de questes para refletir.

    Contada em dois planos narrativos, o texto retoma elementos da obra que a precedeu,

    Episdios da vida de um jovem gato, como a menina dos caracis, a casa grande de barras

    amarelas, a lembrana do Branquinho e das Princesas, a Lua e vai-se desenrolando entre o

    cantinho da biblioteca e o jardim da casa grande de barras amarelas, em dois planos diegticos

    distintos, que se vo cruzando e fundindo medida que os segredos vo sendo revelados.

    Neste jardim convivem harmoniosamente as grandes rvores como o choupo-rei, protetor do

    jardim, a oliveira, guardi da casa, o velho e sbio carvalho, pltanos, pinheiros, a macieira que

    enche a despensa e a pereira que no deu peras, a figueira, o damasqueiro, a romzeira estril

    e a tangerineira raqutica, o solanum e o cer, buganvlias atrevidas, rosas, narcisos, orqudeas,

    azleas e crisntemos, hortnsias e belas-emlias, margaridas, dentes-de-leo, alfazema,

    funcho e salsa, escalnias, loendros e agapantos, tuias e relva e ainda mais algumas espcies

    do reino vegetal.

    Um passeio pela botnica? Tambm. Pois, como disse o saudoso Manuel Antnio Pina, a

    literatura tornou-se hoje numa espcie de pedreira onde escavam quase todos os saberes. E

    legtimo que a literatura alargue o saber enciclopdico do leitor. Mas a histria deste jardim

    muito mais do que uma visita guiada ao mundo das plantas, acima de tudo uma grande

    metfora sobre a vida em sociedade e o lugar do homem no universo.

    Quer na sua componente textual, quer na pictrica, esta obra encontra eco numa das

    principais tendncias atuais da literatura para a infncia: a temtica ambiental e ecolgica.

    No, no se trata de uma lio sobre a importncia das rvores e das plantas, mas antes de um

    convite a refletir sobre as atitudes e os gestos quotidianos que, em nome do progresso e da

    produtividade, ameaam e destroem o equilbrio do universo em geral, e da vida em sociedade

    em particular. Falamos de Ecoliteracia: dizem-nos A. M. Ramos e Rui Ramos, a este respeito,

    que um indivduo possuidor de ecoliteracia capaz de se relacionar com o ecossistema de

    forma harmoniosa e sustentvel: respeitador das outras existncias para alm da sua, numa

    perspetiva de longo prazo, procurando compreender de forma to abrangente quanto

    possvel (ou de forma to ecolgica quanto possvel) os elementos do mundo com os quais

    interage, assumindo plena responsabilidade de suas atitudes e aes. (projeto alocado no

    CIEC)

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    Esta tarefa no parece, contudo, revelar-se muito fcil, pelo menos na opinio do velho

    carvalho. De facto, contra um machado, uma motosserra, um trator, um homem que corta

    tudo e uma mulher cheia de energia, que pode uma rvore fazer?

    No plano emprico difcil, com efeito, imaginar uma resposta, mas no plano ficcional, no

    reino dos mundos possveis que a literatura, at as rvores e as plantas so capazes de dar

    lies D. Constana que tem a mania da mudana, e cuja preocupao reside sobretudo na

    poupana (de gua, de adubo, de manuteno) e ao sr. Corta-Tudo que no se cansa de fazer

    justia ao seu epteto, obedecendo s ordens da patroa (e, claro, no descurando os seus

    interesses, pois dos pltanos ao atrelado novo, quase nem demos conta).

    E as lies que o jardim resolve dar a esta dupla imbatvel - ou o susto de morte que lhe

    querem pregar- (que do corpo ao captulo 7) deleitam o pequeno leitor com o prazer da

    marotice, trazendo leveza, aventura e humor obra. E estes sero os segredos apenas

    partilhados com o leitor, pois jamais a D. Constana e o Sr. Corta-Tudo contaram, a quem quer

    que fosse, que foram inexplicavelmente atirados ao cho, ou encerrados um dia inteiro numa

    sebe misteriosa, ou escondidos entre uma montanha de mas, ou perseguidos e mordidos

    por vespas e atirados ao lago dos sapos Ningum soube, s o leitor, o Mozart, e as crianas

    que acompanhavam o relato da menina dos caracis.

    Mas a natureza sbia , acima de tudo Me, (outra das grandes mensagens aqui veiculadas) e

    me no guarda rancor, e talvez tenha sido por isso que, apesar de tudo tenha decidido

    salvar a D. Constana com o sumo da tangerina da tangerineira raqutica. (Que afinal sempre

    tinha algum prstimo). Mas desse segredo nem a D. Constana sabe, apenas o leitor, e apenas

    o leitor atento s piscadelas de olho que a autora lhe vai dando ao longo da obra.

    Desta obra podemos dizer ainda que prev distintos leitores, sem idade predefinida. Tanto se

    destina ao leitor em construo, que ficar com vontade de desvendar outros segredos

    indiciados nesta histria, como ao leitor experiente, capaz de pr em perspetiva, de cruzar a

    mensagem com os seus intertextos, no apenas leitores, mas de conhecimento do mundo e da

    vida, podendo gerar / provocar alguns efeitos secundrios.

    E eu elencava, agora, alguns desses possveis efeitos secundrios, colaterais, (tambm

    chamados de efeitos perlocutivos, na literatura):

    Tal como acontece no Jardim da casa grande de barras amarelas, quando um sentimento

    estranho o invade (no captulo 5, que ouvimos ler h pouco), nesta obra tambm no parece

    acontecer nada de especial...

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    Apenas assistimos problematizao de questes sociais atuais como a emigrao, a noo de

    produtividade e a competitividade;

    Nesta obra no parece acontecer nada de especial...

    Apenas se enquadra numa das principais tendncias temticas da Literatura infantil e juvenil

    contempornea: a temtica ecolgica e ambiental;

    Nesta obra no parece acontecer nada de especial...

    Apenas vemos emergir das suas pginas um vasto leque de saberes enciclopdicos ligados no

    apenas botnica, como podem sugerir as primeiras linhas, mas tambm mitologia, ao

    patrimnio popular, arte e at economia domstica.

    Nesta obra no parece acontecer nada de especial...

    Apenas pisca o olho s representaes da famlia, especialmente ao papel da mulher, que

    outra das tendncias recentes na Literatura para a infncia.

    Nesta obra no parece acontecer nada de especial...

    Apenas o convvio harmonioso de dois planos narrativos onde a menina de caracis (j

    chegou?) assume o papel de contadora, qual Xerazade, no para poupar a sua vida, mas para

    fazer nascer outras vidas: as dos leitores.

    Nesta obra no parece acontecer nada de especial...

    Apenas espreitam de todo o lado, ou, melhor dizendo, metem nariz em todo o lado,

    expresses da sabedoria popular capazes de, por d c aquela palha, fazer tempestades num

    copo de gua, pensar com os seus botes ou rir a bandeiras despregadas. E permitido, desde

    que no fim fique tudo num brinquinho.

    Nesta obra no parece acontecer nada de especial...

    Apenas tropeamos, a cada recanto do jardim, em palavras de poesia vestidas que ora

    barbeiam pinheiros que querem ser respeitveis, ora emprestam magnlias s senhoras

    chiques do bairro, ora levam beijos da chuva.

    Nesta obra no parece acontecer nada de especial...

    Apenas se questiona o lugar da beleza, da sensibilidade, da tica, da arte, da literatura nas

    nossas vidas. Parece haver lugar para todos os seres e alimento para as diferentes fomes.

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    Nesta obra no parece acontecer nada de especial...

    Apenas levantada a grande questo, a mais importante de todas: qual o lugar do homem no

    universo, qual o meu lugar neste imenso ecossistema onde coexistem todos os seres?

    No parecia, realmente, acontecer nada de especial nesta obra, mas isso era s at ser

    folheada e lida, nas linhas e nas entrelinhas... no parecia de facto acontecer nada porque a

    ligao entre os diferentes ingredientes est to harmoniosa que nem damos pelos efeitos,

    no parecia acontecer nada porque natural sentirmo-nos uma pea da engrenagem aqui

    montada, pois como refere uma estudiosa desta rea (Ren Lon, 2005) Quer se trate de

    mitos, de contos e de outros textos do nosso patrimnio cultural, ou de textos mais

    contemporneos, os livros so histrias de seres humanos, contadas por seres humanos para

    outros seres humanos; abordam temas e preocupaes universais; propem uma viso do

    mundo e transmitem valores. Destinam-se pessoa humana, ao ser metafsico que h em

    cada um, ao seu imaginrio, sua sensibilidade, sua tica, sua inteligncia. Mesmo que

    os protagonistas sejam rvores.

    E agora que todos fomos alertados para os efeitos secundrios (ou colaterais) da leitura desta

    obra, o desvendar dos segredos do jardim da casa grande de barras amarelas ser da

    responsabilidade de cada um.

    Quanto a mim, que tive o privilgio de ler antes de ser livro, e de me apropriar dos segredos

    antes da sua revelao, e para quem fcil seguir viagem com a lua e plantar-se noutro

    bosque de fico, s me resta agradecer o bilhete, aguardar o regresso do Branquinho, da sua

    descendncia, e notcias deste jardim que a lua salvou.

    Esperamos por todos eles no prximo livro.

    Obrigada.

    Lcia Barros

    Vila Praia de ncora, 28 de novembro de 2015