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1 UNIVERSIDADE ESTADUAL DE GOIÁS UNIDADE UNIVERSITÁRIA DE JUSSARA LICENCIATURA EM HISTÓRIA BRUNO FELIPE DE SOUZA MOURA “SEGUNDA CONSIDERAÇÃO INTEMPESTIVA”: UMA INTERPRETAÇÃO ACERCA DA PERSPECTIVA DE HISTÓRIA COMO POSSIBILIDADE PARA A VIDA. JUSSARA-GO 2012

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE GOIÁS

UNIDADE UNIVERSITÁRIA DE JUSSARA

LICENCIATURA EM HISTÓRIA

BRUNO FELIPE DE SOUZA MOURA

“SEGUNDA CONSIDERAÇÃO INTEMPESTIVA”: UMA

INTERPRETAÇÃO ACERCA DA PERSPECTIVA DE HISTÓRIA

COMO POSSIBILIDADE PARA A VIDA.

JUSSARA-GO

2012

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BRUNO FELIPE DE SOUZA MOURA

“Segunda Consideração Intempestiva”: o conceito de história em

Nietzsche, uma interpretação acerca da perspectiva de história como

possibilidade para a vida.

Monografia apresentada ao departamento de

História como requisito parcial para obtenção do

título de Licenciatura em História, da Universidade

Estadual de Goiás: Unidade Universitária de

Jussara – Goiás, sob orientação do professor Esp.

Wilson de Sousa Gomes.

JUSSARA-GO

2012

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Dedico esta monografia à minha septuagésima quarta garrafa de vodca, saboreada avidamente

naquele chuvoso novembro de 2009, enquanto as ideias aqui expostas eram gestadas e nutridas.

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AGRADECIMENTOS

Pensei em não fazer aqui um texto metafórico, e creio que não consegui fugir deste

destino. Devo dizer que este trabalho é um ponto de parada, numa longa caminhada que

iniciei em 2007 e que não se finda aqui. Caminhando por esta estrada, tive a sorte de não estar

sempre sozinho, tampouco tive como apoio somente a força de minhas próprias pernas. Por

vezes foi preciso parar, e sentado no acostamento da vida decidir outros rumos, outras opções.

Noutras tantas ocasiões, quando ao seguir sentia que meu passo titubeava, contei com alguns

“braços fortes” que vieram ao meu auxilio. Por fim, aqui estou, e é necessário reconhecer a

importância daqueles que partilharam comigo um pouco destas “paisagens”, deste “mundo”.

Sem a figura do professor seria impossível qualquer tipo de formação. Como professor

e grande amigo, não poderia deixar de agradecer ao Professor Luiz Carlos Bento. Alguns

professores se limitam em nos ensinar o “conteúdo” e com isso conseguimos ir à formatura. O

professor Luiz se situa noutro grupo juntamente com aqueles que nos ensinam a “estudar”,

contribuindo assim para que consigamos a autonomia necessária ao verdadeiro crescimento e

a uma formação sólida. Ao professor Wilson de Souza Gomes agradeço pela paciência de

corrigir atentamente os textos por mim escritos, apresentando suas provocações e partilhando

comigo ao longo do ano de 2012 o desejo de ver materializada esta pesquisa. Ao professor

Aruanã Antonio Passos, meu agradecimento pela disposição de ler e avaliar o texto por mim

redigido. É de fundamental importância o engajamento destes profissionais, que nos

apontamentos e nos debates que conosco travam, contribui decisivamente para nosso

crescimento profissional e humano.

No entanto, nem só de universidade e universitários são feitas as monografias. O bar é

um templo, no qual por inúmeras vezes pude me reunir com as mais excepcionais

personalidades que ao longo da caminhada-existência pude encontrar. Meus irmãos Heiler A.

Konrad e Fernanda Fedrigo, quando a loucura se espreitava pela soleira da porta da frente,

vocês me resgataram pela porta do fundo. Quantas fugas protagonizamos? – não sabemos

dizer ao certo. Só sabemos que sem elas, teríamos sido prisioneiros de terríveis demônios e

titãs indestrutíveis – sobretudo daqueles titãs e demônios que se escondem atrás das arvores

invisíveis da existência. Vocês foram os braços com os quais eu contei. Júlio Cezar e Michael

Marques, quantas vezes vocês escutaram as coisas que aqui escrevi? Estimamos que seja um

numero entre 100 e 5000 vezes. Certamente que tem nestes escritos, muito de sua

contribuição que ao ouvir e debater diversos temas comigo contribuíram para que estas ideias

fossem gestadas.

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E à minha querida esposa, Maria Ângela, meu mais profundo agradecimento. A

palavra aqui é falha meu anjo! Você é a ‘única religião’ na qual consegui acreditar, pois a

partir de minha devoção a você consegui construir um projeto de existência. Um projeto

redigido não por uma única mão, mas por duas.

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Tremes carcaça?!- Pois tremerias ainda mais se soubesse para onde te levo!

(Nietzsche – A Gaia Ciência)

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RESUMO

Este trabalho busca, a partir da análise dos textos de Friedrich Nietzsche, expor uma

interpretação a respeito da perspectiva de história, como sendo uma possibilidade para a vida. Para

tanto, promovemos uma análise da Segunda Consideração Intempestiva – Da utilidade e

inconveniente da história para a vida em face de outros textos do autor, na tentativa de construir um

entendimento de como ele fundamenta sua crítica da modernidade a partir de uma severa objeção a

cultura e a ciência moderna, e a partir disso tece suas críticas a história do século XIX. Entendemos,

portanto, que o autor critica a história com o objetivo de evidenciar uma historiografia que, segundo

sua visão, não estaria de acordo com as necessidades vitais dos indivíduos modernos. Posicionando-se

como um autor extemporâneo, crítico de seu próprio tempo, Nietzsche ataca o sentido histórico que

domina a cultura oitocentista, a ideia de verdade, e a sobreposição da ciência e da história à vida. A

crítica de Nietzsche à história, no entanto, não almejava excluir estes estudos, mas sim, promover uma

reorientação dos seus objetivos que deveriam, na concepção do autor, servir a um projeto específico de

humanidade, ou servir a uma necessidade vital. Ao passo que na Segunda Consideração Intempestiva,

Nietzsche nos apresenta as características de uma historiografia que não está em consonância com as

necessidades vitais de sua época, ele exemplifica aquilo que seria uma historiografia pertinente na

“ruminação” dos valores morais promovida na Genealogia da Moral.

PALAVRAS – CHAVE: Nietzsche, História, Ciência, Intempestividade.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 10

CAPÍTULO I. FRIEDRICH NIETZSCHE, O AUTOR EXTEMPORÂNEO 12

1.1 A Biografia de Friedrich Nietzsche: Narrando o pensador da moral. 12

1.2 Friedrich Nietzsche e o panorama da Alemanha do século XIX: o contexto

intelectual e histórico das Considerações Intempestivas

18

1.3 Reconstruindo a época moderna a partir das Considerações Intempestivas 22

1.4 A “Segunda Consideração Intempestiva”, a construção de um pensamento que

se pretendia extemporâneo

30

CAPÍTULO II. POSSÍVEIS DIÁLOGOS ENTRE A FILOSOFIA

NIETZSCHIANA E A CRÍTICA À HISTÓRIA CONTIDA NA II

INTEMPESTIVA

39

2.1 A verdade no sentido extramoral e a história 39

2.2 A perspectiva de Nietzsche sobre a história como um “conhecimento” que

pode nos servir a partir da Segunda Consideração Intempestiva

47

2.3 A história em consonância com a vida: A genealogia da moral em face dos

pressupostos da Segunda Consideração Intempestiva

53

2.4 A lição da filosofia de Nietzsche: a perspectiva de história como fomento para

a ação criadora e a vida afirmativa

59

CONCLUSÃO 65

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 67

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LISTA DE ABREVIATURAS

SCI – Segunda Consideração Intempestiva

UIHV – Da Utilidade e Inconveniente da História Para a Vida

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INTRODUÇÃO

O presente estudo busca interpretar e analisar a obra de Nietzsche, com um enfoque

nos textos em que o autor discorre a respeito da história. Para tanto em nosso primeiro

capitulo buscamos a relação que Nietzsche mantém com sua época. Evidenciamos assim um

Nietzsche extemporâneo, que por criticar os paradigmas de sua época mantém uma relação

indissociável com esta mesma. Em nosso primeiro tópico A Biografia de Friedrich Nietzsche:

Narrando o filosofo da moral buscamos compor uma breve síntese da biografia de Friedrich

Nietzsche, filosofo alemão do século XIX, contando os fatos que compõem sua existência, as

datas de publicação de suas principais obras e um pouco das “problemáticas” que

alimentavam a reflexão do filósofo.

O segundo tópico traz por título Friedrich Nietzsche e o panorama da Alemanha do

século XIX: O contexto intelectual e histórico das Considerações Intempestivas. Neste

buscamos estabelecer uma análise da relação de Nietzsche e o século XIX. A partir desta

relação é que identificamos os termos sob os quais a filosofia de Nietzsche se torna

extemporânea, não no sentido de estar totalmente apartada de seu tempo, mas sim diante do

fato de que mantém com sua época uma relação crítica e negadora. Nietzsche, com suas

Considerações Intempestivas (1873-74) pretendia criticar a educação, ciência e cultura da

Alemanha oitocentista, e assim sendo, suas considerações se posicionam contra os

pressupostos de correntes de pensamento que na Alemanha contemporânea a ele eram de

grande importância.

O terceiro tópico denominado Reconstruindo a época moderna a partir das

Considerações Intempestivas busca “ver” a partir da obra de Nietzsche as características que

ele crítica na época moderna. Reconstruir as características da época moderna a partir das

obras do filosofo se torna possível a partir das severas críticas e objeções que ele faz a cultura

e às instituições modernas, não só nas Considerações Intempestivas, mas também em outras

obras escritas por ele.

O quarto tópico traz por titulo: “Segunda Consideração Intempestiva”, a construção

de um pensamento que se pretendia extemporâneo: o inconveniente da história para a vida a

partir de Nietzsche. Neste vamos abordar o texto Da Utilidade e Inconveniente da História

Para a Vida, e a crítica à história e cultura alemã neste contida. Situando-a na obra dentro da

obra de Nietzsche, e também evidenciando as características e os pontos específicos sob os

quais pesam a crítica empreendida por Nietzsche a história.

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O segundo capítulo traz uma análise mais aprofundada de temas apontados no

primeiro, tais como a relação entre história e verdade, a reconciliação entre história e arte

tendo em vista o ideal grego de cultura e a história em consonância com as necessidades vitais

de uma época. Discutimos estas problemáticas a partir do cruzamento da filosofia exposta na

Segunda Intempestiva com outros textos escritos por Nietzsche.

O primeiro tópico do segundo capítulo traz por titulo A Verdade no sentido extramoral

e a história. Neste pretendemos discutir a concepção de verdade defendida pelo autor no texto

A Verdade e a Mentira no Sentido Extramoral em face daquilo que foi dito na Segunda

Consideração Intempestiva a respeito do conhecimento científico, explorando as posições

defendidas pelo autor em vista da necessidade de uma ciência que fosse voltada para a vida.

O segundo tópico traz como titulo: A perspectiva de Nietzsche sobre a história como

um “conhecimento” que pode nos servir a partir da Segunda Consideração Intempestiva.

Neste apresentamos uma análise que parte do cruzamento da II Intempestiva com os

pressupostos contidos na obra A Origem da Tragédia no Espírito da Música, com o intuito de

esclarecer a relação entre ciência, história e arte no pensamento de Nietzsche.

O terceiro tópico relaciona a crítica a história contida na II Intempestiva e os textos de

A Genealogia da Moral. A forma como Nietzsche exemplifica a utilidade da história através

da ruminação dos valores morais modernos é destacada como sendo um contraponto para a

historiografia desvinculada das necessidades vitais de sua época evidenciada na Segunda

Intempestiva.

Por último, discutiremos como a filosofia de Nietzsche se posiciona a favor da ação

criativa e afirmativa na construção de indivíduos cujos projetos de humanidade podem ser, a

partir desta ética de ação, plenamente realizados. O ultimo diálogo estabelecido é entre os

pressupostos da Segunda Consideração Intempestiva e a ensinamento da superação

professado por Zaratustra, e a crítica imoralista e anticristã que se estrutura ao longo de toda a

obra Nietzschiana.

Deste modo é que pretendemos expor nosso estudo acerca da história como

possibilidade para a vida, a partir da obra de Friedrich Nietzsche.

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CAPITULO I. FRIEDRICH NIETZSCHE, O AUTOR EXTEMPORÂNEO.

Neste primeiro capítulo, buscamos apresentar nosso objeto, problemática e fontes. O

presente estudo pretende abordar a obra de Nietzsche para, a partir dela, discutir a perspectiva

desenvolvida pelo filósofo acerca da história enquanto possibilidade para a vida.

Principiamos, portanto, por narrar uma pequena biografia do autor, situando no espaço e no

tempo a vida e a obra de Nietzsche. O segundo tópico situa o autor num contexto maior, o

século XIX, tentando traçar uma relação entre esta conjuntura histórica específica e o

pensamento desenvolvido pelo autor em suas Considerações Intempestivas. No terceiro

tópico, empreende-se um esforço no sentido de evidenciar através dos próprios escritos de

Nietzsche uma conjuntura que ele pretendia criticar. Aprofundamos, portanto, no segundo e

no terceiro tópico a noção de um autor extemporâneo, posição assumida por Nietzsche na

análise crítica da época moderna. O quarto tópico se foca no texto central de onde parte nossa

investigação: A SCI. Neste, buscamos situá-la no contexto das quatro considerações e

exploramos um pouco das temáticas e conceitos nela trabalhados a respeito de história,

cultura e educação.

1.1 A biografia de Friedrich Nietzsche: narrando o pensador da moral

Em busca de compreender o conceito de história em Nietzsche, principiamos nossos

estudos por elaborar uma narrativa que aborde a vida e obra do pensador da moral. Nietzsche

nasceu em Roecken, Saxônia, no ano de 1844. Foi o primeiro filho de um casal luterano. Seu

pai, Karl Ludwig Nietzsche morreu prematuramente quando seu filho, Friedrich Nietzsche

tinha apenas cinco anos de idade. Tendo se tornado viúva, a senhora Franziska Nietzsche se

muda com seus filhos para a cidade de Naumburg, na Turíngia, no ano de 1850. Nietzsche

começa sua formação escolar nesta cidade, residindo numa casa onde, a exceção dele próprio,

somente havia mulheres. Esteve neste período cercado por sua família, mãe, irmã e algumas

tias. “Em Naumburg, [Nietzsche] recebe o ensino elementar. Sobressai-se como uma criança

de inteligência superior, apaixonada por livros e pela música, a qual, mais tarde, exercerá uma

decisiva influência em sua vida e em seu pensamento” (DIAS, 1991, p 20). Aos 14 anos

Nietzsche almejava seguir o caminho trilhado pelo pai, se tornando pastor e para tanto, como

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destaca Rosa Maria Dias (1991), ingressou no internato de Pforta – Escola que prezava por

uma formação para a vida religiosa.

Nietzsche seguiu uma disciplina severa imposta pelo internato sobre seus estudantes.

Seus estudos lhe permitiam acumular grande quantidade de conhecimentos, advindos da

leitura de diversos livros e do estudo das línguas sagradas, hebraico, latim e grego.

Nos três primeiros anos Nietzsche segue rigorosamente a disciplina do

internato. Considera-a um meio para formar homens completos, tanto

intelectual quanto fisicamente. Lê com a avidez de um erudito, estuda sem

descanso. A sede de conhecimento não lhe dá sossego. Aos poucos, porém,

passa a refletir sobre essa sua busca ávida de conhecimento: o que havia

lucrado com ela? Começa então a se dar conta de que todo o saber que

acumulara se achava dissociado da vida. Descontente, sonha com um tipo de

educação que não se afaste da vida. Admite que a árvore do conhecimento e

a árvore da vida não são a mesma, mas recusa a ideia de que devem estar

separadas. (DIAS, 1991, p. 21).

Como a citação nos aponta, percebemos em nosso autor que o conhecimento deve

estar de alguma maneira em consonância com a vida, com uma força vital. Nietzsche

desenvolve esta problemática em seus escritos posteriores, sendo que nas Considerações

Extemporâneas1 a questão da relação entre ciência enquanto conhecimento e vida tornam-se

central. Já a refletir sobre o sentido do conhecimento para a vida Nietzsche se aproxima da

arte dramática e da música, em especial o autor esboça grande interesse por música, literatura

e pela produção de textos que eram socializados num grupo de estudos criado por iniciativa

do próprio Nietzsche e de mais dois amigos. Com a fundação deste grupo de estudos é que,

aparecem os primeiros trabalhos do autor.

Rosa Maria Dias (1991) aponta 1861 como sendo o ano do aparecimento do texto

Destino e História2, que seria seu primeiro trabalho. Há outro texto também cunhado nesta

época no qual Nietzsche reconhece a “grandeza” de Hölderlin3, este traz por titulo: Carta a

um amigo em que lhe recomendo a leitura de meu poeta preferido. Tal texto era um trabalho

escolar, em cujo professor anotou: “desejaria dar ao autor o amigável conselho de se guiar por

1 Considerações Extemporâneas ou, Considerações Intempestivas – São sinônimos no dicionário de língua

portuguesa.

2 Diversos comentadores da Obra de Nietzsche apenas fazem alusão a este titulo sem adentrar em pormenores a

respeito do que seria tal obra. No entanto, numa das edições de Genealogia da Moral lançada pela companhia

das letras, e citada na bibliografia usada no presente estudo, temos ao fim apresentado um texto com o nome

Fado e História. Se trata de um texto sucinto no qual Nietzsche esboça problemáticas a respeito de “história” e

“destino” que ele desenvolveria mais adiante com maior maturidade e propriedade.

3 Poeta alemão (1770-1843).

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um poeta mais sadio, mais claro, mais alemão” (DIAS, 1991, p. 21). Decorre disso o fato de

que Nietzsche se diferenciava dos demais estudantes por seu gosto peculiar e, ainda jovem,

apresentava “preferências que não eram as mesmas de seus professores” (idem, ibidem, p..

21).

O próprio Nietzsche se pronuncia sobre este período dizendo:

Eu mesmo em grande parte fui encarregado de minha própria educação. Meu

pai morreu prematuramente: Faltou-me a direção firme e refletida de uma

inteligência masculina. Quando ao sair da infância sai do colégio de Pforta,

só conhecia um sucedâneo da educação paterna: a disciplina uniforme de

uma escola bem organizada. Mas essa rigidez quase militar, que destinada a

agir sobre a massa, trata o individuo de maneira fria e superficial, só fazia

com que eu me refugiasse em mim mesmo. Contra um regulamento cego,

preservei minhas aspirações e meus gostos particulares, vivi no culto secreto

de algumas artes, esforcei-me em quebrar o rigor de uma rotina inflexível,

entregando-me a busca exacerbada do saber universal e de suas alegrias. Por

pouco não me tornei músico [...]. Somente perto do final de minha

escolaridade em Pforta, observando-me, abandonei inteiramente a ideia de

uma carreira artística: esse lugar foi ocupado pela filologia (NIETZSCHE

apud DIAS, 1991, p. 23).

Já a refletir sobre o sentido da erudição pela erudição o filósofo segue para a

universidade, uma vez lá é que a filologia toma um lugar de importância na formação (e até

na futura filosofia) de Friedrich Nietzsche. Sua primeira obra, o Nascimento da Tragédia no

Espírito da Música tem muito de arte, mas se compõe quase que exclusivamente, segundo

Marton (1991), num trabalho de filologia. No ano de 1969, Nietzsche foi indicado para ocupar

o cargo de professor de filologia clássica na Universidade da Basiléia. Sua formação

universitária havia sido completada e ele “escolheu filologia apenas porque fora preciso

escolher uma especialização” (MARTON, 1991, p 13). Seu professor foi Ritshl4, e sua

formação foi como afirma Scarlet Marton (1991), digna de um “helenista eminente”. Nos

primeiros anos na universidade da Basiléia, os cursos ministrados por Nietzsche abrangem

temas ligados à cultura grega, poesia, tragédia e visão dionisíaca.

Em 1870 é declarada a guerra franco-prussiana, Nietzsche alistou-se e participou como

enfermeiro. “sua participação na guerra é curta: enviado a França cuida dos feridos em

Estrasburgo e Metz, e ao fim de um mês, contrai difteria e disenteria” (MARTON, 1991, p

13). Diante disso, Nietzsche volta à Alemanha, a guerra fixa em Nietzsche algumas ideias a

respeito do estado e da cultura, que seriam em seu entender “polos antagônicos e até

adversários: um vive às expensas do outro” (idem, ibidem, p. 13). As meditações que faz

4 Friedrich Wilhelm Ritschl, segundo Rosa Maria Dias (1991), professor de Nietzsche.

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neste período o levam a cunhar seu primeiro livro O nascimento da tragédia no espírito da

música (1871), que é o primeiro de uma série de obras a serem escritas pelo autor e

publicadas na maioria das vezes as próprias custas, diante da renuncia por parte dos editores

em publicar sua filosofia.

Como destacou Scarlet Marton (1991), nesta primeira obra publicada, Nietzsche traz

consigo a marcante influencia de duas pessoas: Schopenhauer5 e Wagner

6. Estas duas

personalidades serão figuras marcantes nos escritos que compõem as Considerações

Intempestivas (1874-1875). A terceira destas considerações traz por titulo Schopenhauer

Educador, e a quarta: Richard Wagner Bayreuth. As outras duas dizem respeito a David

Strauss, o devoto e o escritor e Da utilidade e inconveniente da história para a vida7. Logo,

“as Considerações Intempestivas são, todas elas, belicosas. As duas primeiras atacam a

cultura alemã da época; as ultimas atentam para os prenúncios da nova cultura. Essa é a

questão fundamental de toda a obra de Nietzsche” (MARTON, 1991, p. 30).

A partir de 1873, Nietzsche esteve doente, sentia dores de cabeça frequentes. O

recebimento, em 1878, do texto final da ópera Parsifal, enviada como correspondência a

Nietzsche por Richard Wagner, marca o rompimento da amizade entre ambos. Também em

1878, o texto: Humano, demasiado humano - um livro para espíritos livres8 foi publicado. Tal

obra em questão causa uma série de reações diversificadas por parte de alguns intelectuais da

Alemanha:

Erwin Rohde mostra-se consternado; Malwida não pode esconder seu

embaraço. Overbeck, Rée, Hillebrand e Peter Gast, por outro lado, são

pródigos em elogios. No entanto, o elogio maior vem da parte de

Burckhardt: ‘Seu livro é uma contribuição para a independência do

espírito’(MARTON, 1991, p. 38).

Por ocasião do lançamento desta obra Nietzsche se vê atarefado com o seu trabalho e

de algum modo sempre doente. Em 1879 ele se demite do posto que ocupava na

Universidade. Diante disso “concedem-lhe uma pensão de quatro mil francos por ano”

(MARTON, 1991, p. 38), e com tal quantia, o filósofo se manterá e custeará o lançamento de

5 Filósofo Alemão e autor de O mundo como vontade e representação e outras obras.

6 Compositor e dramaturgo Alemão (1813-1883).

7 Quatro textos que compõem as Considerações Intempestivas, neles Nietzsche almejava trazer para o debate

uma serie de temas polêmicos na Alemanha contemporânea a ele.

8 Uma das obras centrais de Nietzsche, dividida em nove capítulos que se ocupam de temas como moral,

religião, arte, estado e mulheres.

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muitos de seus livros. Apesar de seu “estado de saúde desesperador”, Nietzsche escreve

Miscelânea de Opiniões e Sentenças9, O Andarilho e a Sua Sombra

10. E inicia neste período,

aquilo que vários de seus biógrafos chamam de Errança, uma vez que não se prende mais a

uma única localidade, viajando por várias cidades enquanto redige seus livros. Ainda que

doente, viaja e escreve. Em 1881 publica Aurora, e de acordo com Rosa Maria Dias (1991)

em agosto, estando à beira do lago de Silvaplana tem a “revelação” do Eterno Retorno.

No ano seguinte, Nietzsche publica as quatro primeiras partes de A Gaia Ciência11

. E

em 1883 redige já em janeiro a primeira parte de Assim Falou Zaratustra12

. As outras duas

partes deste livro seriam redigidas até o ano de 1884, e diante da recusa do editor em publicá-

las “com suas próprias economias, manda imprimir 40 exemplares da quarta parte de

Zaratustra e não consegue reunir sete nomes interessados em ler o livro” (DIAS, 1991, p. 12).

Para Além do Bem e do Mal também seria publicado em 1886 a partir do custeio do próprio

Nietzsche.

Em 1887, Nietzsche redige o Niilismo Europeu e publica Para uma Genealogia da

Moral. O ano de 1888 é muito produtivo, neste período Nietzsche escreve: O Caso Wagner13

,

O Crepúsculo dos Ídolos14

, O anticristo15

, e Ecce Homo16

. A doença, que desde 1973 estivera

9 Trata-se de uma coleção de aforismos sobre variados temas reunidos numa única obra, são temas recorrentes a

moral, a arte, e a ciência, temas estes que sempre aparecem nos livros publicados pelo autor após as

Considerações Intempestivas (1873).

10 Semelhante a Miscelânea de opiniões e sentenças, se trata de uma coleção de aforismos com variados temas,

dentre eles destacamos uma peculiaridade da obra: Nietzsche traz aforismos com os nomes dos principais

pensadores e artistas anteriores e contemporâneos a ele. Nestes podemos ver uma espécie de doxografia cunhada

por Nietzsche a respeito da obra de diversos outros pensadores e compositores.

11 Obra tomada como importante referencia para a compreensão dos temas ligados a historia no presente estudo,

A Gaia Ciência, ou o “alegre saber” se trata de uma das mais conhecidas obras de Nietzsche, sendo esta a

primeira obra a trazer o anuncio da morte de Deus. Os temas centrais da obra são moral, ciência, arte e religião.

12 Livro escrito em prosa, narrando às historias vividas e listando os discursos do personagem Zaratustra, cujo

principal objetivo no livro é anunciar o “sentido da terra”, o super-homem Nietzschiano. Obra capital do autor,

este livro traz ilustrado os principais conceitos desenvolvidos por Nietzsche ao longo de suas obras: O Eterno

Retorno, O Super-Homem e a Auto-superação de si.

13 Livro que reúne os escritos de Nietzsche referentes a Richard Wagner, compositor e dramaturgo alemão do

século XIX. As obras, no entanto, não se tratam de autobiografias. Nietzsche fala de Wagner, somente para a

partir disso poder discorrer sobre arte e cultura alemã do século XIX.

14 Reunião de textos cujos temas variam desde os “ideais ascéticos” até a filosofia socrática.

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presente, leva Nietzsche a um colapso em 1889. Ele sofre uma “crise de demência em Turim.

É levado para a Basiléia e internado na clínica psiquiátrica” (DIAS, 1991, p. 13). Em 1890

Nietzsche deixa a clínica psiquiátrica. Nesta época, estando sob os cuidados da mãe e da irmã,

Nietzsche conheceu aquilo que Scarlet Marton (1991) diz ser a “deturpação” vinda depois do

“descrédito”. Sua irmã Elizabeth Foster Nietzsche o ajuda a organizar algumas publicações,

ela “queria levar a crer que conhecia as intenções dele melhor do que ninguém” (MARTON,

1991, p. 91). Mesmo com o falecimento de Nietzsche ocorrido na cidade de Weimar no ano

de 1900, sua irmã continuou a organizar e publicar seus aforismos, em alguns volumes

conhecidos como seus escritos póstumos.

Se o pensamento de Nietzsche se conserva intempestivo ou extemporâneo como o

adjetivou Scarlet Marton (1991), devemos ter um determinado cuidado: Não se deve

confundir extemporaneidade ou intempestividade com alguma espécie de anacronismo. O

dicionário de língua portuguesa define “extemporâneo” como “que vem fora do tempo;

inoportuno.” (FERNANDES, 1997). Marton (1991, p. 10) nos diz que “extemporaneidade não

significa anacronismos... nem dons proféticos, mas apenas certa maneira de se relacionar com

o presente”, neste sentido é que, desde 1900, ano de seu falecimento Nietzsche tem sido

retomado, revisitado e discutido. Suas ideias passaram pelo século XX, suscitando diversas

discussões e fundamentando outras tantas filosofias. “Com os anos, multiplicam-se as

interpretações de sua filosofia. Alguns fazem dele o precursor do nazismo, outros o critico da

ideologia, no sentido marxista. Há os que o consideram um cristão ressentido e os que veem

nele o inspirador da psicanálise” (MARTON, 1991, p. 10). No presente estudo, cuja pretensão

é discutir a concepção que o autor desenvolve acerca da história enquanto conhecimento

entende-se que o “que Nietzsche diz não constitui um discurso autônomo e independente, mas

um discurso mesclado a um tempo e a um espaço determinados, inserido num contexto

preciso” (Idem, Ibidem, p. 10).

Com isso, um estudo que pretende abordar qualquer tema correlato à filosofia de

Nietzsche, nos remete a um olhar sobre o panorama histórico diante do qual Nietzsche produz

suas obras, em especial: a SCI, cujo período de formulação compreende aos primeiros anos da

15

Obra na qual Nietzsche se posiciona contra o cristianismo tal como ele é praticado pelos cristãos ao longo dos

séculos, denunciando na pratica destes a dissimulação dos valores e a proliferação de uma moral do

ressentimento.

16 Autobiografia de Nietzsche. O autor julga ser necessário fazer uma balanço daquilo que publicou, e do sentido

extemporâneo de seu pensamento. No livro, comenta as principais obras por ele escritas e as intenções que as

geraram.

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18

produção intelectual do autor. Diante de tal questão, seguimos a apresentar o panorama

histórico da Alemanha do século XIX, bem como sua relação com a produção da II

Consideração Intempestiva. Objetivamos com isso demonstrar como o século XIX e sua

conjuntura histórica específica se relaciona diretamente com as problemáticas abordadas por

Nietzsche em sua obra, em especial, as Considerações Intempestivas cujo objetivo era criar

uma grande polêmica em torno de temas como educação, história e cultura.

1.2 Friedrich Nietzsche e o panorama da Alemanha do século XIX: o contexto intelectual e

histórico das Considerações Intempestivas

A sociedade na qual Friedrich Nietzsche viveu, era a sociedade da época moderna,

herdeira do Iluminismo e solo onde se desenvolveram correntes como a Filosofia da História

e o Historicismo Alemão. Nietzsche foi o autor de uma extensa produção filosófica, publicada

nos anos que se seguiram a 1870 como apontamos acima. Seu período de produção coincide,

portanto, com aquele que, segundo Bourdé & Martin (1983), a história ganhando cada vez

mais importância, se institui como disciplina científica autônoma. Segundo Lefranc (2008) II

Consideração Intempestiva, tem origem no século do historicismo alemão. Num contexto

onde os postulados científicos que permeiam as investigações históricas variavam entre a

história erudita, o positivismo e o historicismo. Frente a isso, pretendemos, neste subtópico,

abranger o contexto histórico da criação da obra Nietzschiana, em especial das suas

Considerações Intempestivas.

É buscando pelas correntes de pensamento que se mantinham ou se desenvolviam ao

longo do século XIX que pretendemos colocar a prova a tese de que o discurso de Nietzsche é

“mesclado a um tempo e a um espaço determinados, inserido num contexto preciso”

(MARTON, 1991, p. 10). No intuito de evidenciar tal nuance, investigamos os

acontecimentos históricos que se sucederam na Alemanha do século XIX. Nossa intenção

aqui é demonstrar como os assuntos abordados nas polêmicas considerações de Nietzsche

sobre Educação, Cultura e História, ligam as intenções do filósofo a uma conjuntura, a uma

época especifica da história alemã.

Segundo Gardiner (1974, p. 3), “o século dezessete europeu foi predominantemente

um século de progresso nas ciências físicas”. Foram estas que promoveram os importantes

desenvolvimentos em infraestrutura típicos da Revolução Industrial. Segundo o mesmo autor,

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decorre da influência das ciências físicas o desejo de conseguir nas investigações científicas

em geral, o rigor e a exatidão engendrados pelas ciências físicas e matemáticas. Desenvolveu-

se a partir disso uma corrente de pensamento que acreditava ser possível, através da correta

interpretação do passado, isolar leis universais para se compreender o processo do

desenvolvimento histórico. Este era um modo de conseguir a exatidão, a lei deveria ser geral e

universal.

Diante dos aspectos apontados acima, temos o momento da Filosofia da História17

que

procura por leis que possibilitem enquadrar o desenvolvimento humano. “Através de uma

compreensão correta do passado, se tornará possível controlar fenômenos sociais de um modo

semelhante ao que torna o cientista físico capaz de dominar a natureza” (GARDINER, 1974,

p. 6). A filosofia da história contribuiu para legar importância às investigações históricas ao

instituir que através destas investigações seria possível entender as leis, que, ainda segundo

Gardiner (1974) só poderiam ser conhecidas recorrendo-se aos fatos da história humana. De

acordo com Bourdé & Martin (1983, p. 40) Kant, Hegel e Comte, se inserem neste contexto

de filosofia da história, e tem como característica comum, o fato de que suas investigações

privilegiaram todo “gênero”, em detrimento das individualidades. Logo, quando Nietzsche

crítica duramente a História feita nos moldes hegelianos em sua II Consideração

Intempestiva, podemos dizer que sua crítica se dirige ao conjunto de características que Hegel

tinha em comum com estes filósofos da história, no que diz respeito às Leis gerais em

detrimento dos individualismos e da ideia de processo ou progresso continuo da história.

Além disso, interpretar a história como um processo no qual o progresso é continuo, segundo

Nietzsche (2003) fomenta nos sujeitos modernos a ideia de que eles são epígonos, frutos da

árvore do desenvolvimento.

Com a crescente importância legada as investigações históricas, com o passar dos anos o

desenvolvimento de uma concepção de que a história necessitava de um método orientador

das suas produções se firma dentre os eruditos que se dedicavam aos estudos históricos, “as

origens da escola metódica dos historiadores profissionais, muitas vezes chamada positivista

se esclarecem mais se nos virarmos para os eruditos dos anos 1700” (BOURDÉ & MARTIN,

17

Segundo Pecoraro (2009), o termo filosofia da história foi citado pela primeira vez pelo filosofo francês

Voltaire em 1765. Sendo, portanto, atribuída a ele a autoria do termo que foi empregado posteriormente por

diversos autores como Patrick Gardiner (1974) para englobar o conjunto de investigações cujas características

teleológicas e escatológicas buscavam extrair da história um sentido de desenvolvimento, não só acerca do

passado e do presente, mas também para prever a partir da mesma constância ou lei, um desenvolvimento futuro

da sociedade.

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20

1983, p. 40). Seguindo esses aspectos, ao longo do século XIX é que historiadores

profissionais surgem e a história se institui enquanto ciência e os intelectuais da história

refletem sobre um método regulador da prática do historiador, e assim a “filosofia da história”

dá lugar as a concepções de intelectuais como Droysen18

e outros, como Wilhelm Dilthey, que

alguns autores como Cambi (1999, p. 505) aponta como sendo um “fundador do historicismo

e teórico da autonomia das ciências do espírito”.

O historicismo, que se desenvolve ao longo do século XIX é a resposta às necessidades

criadas pela emergência da sociedade burguesa, tal como nos mostrou Martins (2002, p. 03)

ao salientar que foi necessária “uma nova forma da consciência histórica” para explicar essa

nova realidade sociopolítica instaurada nos anos que se seguiram a Revolução Francesa.

Pois bem, neste contexto não se pode isolar cada característica e engessá-la em sua

corrente específica. De acordo com Bourdé & Martin (1983, p. 40-150), características da

filosofia da história perduram na forma historiográfica e de maneira visível até pelo menos

metade do século XX. Quando Nietzsche (2003) critica a ciência e a história do século XIX, o

autor não se posiciona contra uma única corrente. Sua crítica abarca tanto características da

filosofia da história que perduraram na historiografia, como a ideia de processo histórico e

progresso, como também a pretensão do historicismo de fazer da história uma disciplina

cientifica.

Segundo Marton (1972) Nietzsche é um extemporâneo. E, no sentido em que ela o

aponta, dizer que Nietzsche é extemporâneo equivale a dizer que ele se posiciona “contra seu

tempo”. E se ele se conservou extemporâneo em sua Segunda Intempestiva, isso pressupõe a

ideia de que sua crítica se dirige as características institucionalizadas por várias correntes que

se influenciam mutuamente desde o século XVII, culminando no século XIX a situação na

qual a história tendo ganhado crescente importância, e as investigações históricas tendo

alcançado um volume sempre crescente, Nietzsche identifique no excesso de história um dos

vícios da cultura moderna. Segundo o próprio Nietzsche é isso que ele faz em sua II

Consideração Intempestiva, ou seja, “interpretar como um mal, uma enfermidade e um vício”

(NIETZSCHE, 2008, p. 16), algo de que os seus contemporâneos do século XIX eram

orgulhosos – seu sentido histórico.

Para Marton (2001),

18

Segundo MARTINS (2002) Droysen, historiador alemão do século XIX, teria elaborado uma concepção da

história como ciência, uma vez que seu pensamento abrangeu não a história enquanto processo, qualidade típica

do filosofo da história, mas sim a história enquanto conhecimento, portanto uma teoria da história propriamente

dita.

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21

Analisar as ‘ideias modernas’ é justamente um dos propósitos que o filosofo

se coloca em grande parte de seus escritos. Nelas, denuncia o procedimento

dos ressentidos, crítica a imposição do que é uniforme, ataca o reino do

animal de rebanho. (MARTON, 2001, p. 188).

Cabe destacar algumas expressões utilizadas pela autora acima: “procedimento dos

ressentidos” diz respeito, a moral de cunho cristão, que na visão de Nietzsche (1998, p. 17 –

47) na sua gênese se opôs a moral aristocrática, formulando para esta um contraponto para as

ideias de “bom” e “mal”, a partir da introdução de um novo parâmetro – as ações egoístas e

não egoístas. A moral dos ressentidos, de cunho cristão, através dos ideais de liberdade, e

igualdade teria supervalorizado aquilo que é uniforme, igual, ou seja: os valores morais

modernos não criam seres excepcionais, mas fomentam um modelo de formação que impõe a

nivelação, o reino do animal de rebanho. Segundo Marton (2001, p. 188) o que se almejava

com os ideais defendidos pela revolução francesa eram a nivelação gregária, e assim a

Revolução Francesa seria a filha do cristianismo, pois quer criar através da uniformidade um

reino do “animal de rebanho”. Para Nietzsche, de alguma forma, o Iluminismo, a Revolução

Francesa e a Ascensão da Burguesia, bem como a história cientifica defendida pelo

historicismo, teriam produzido um efeito negativo sobre a cultura moderna que se relaciona

com este nivelamento, ou massificação.

Segundo Matos (2001) a crítica radical de Nietzsche a modernidade abarcaria desde o

cristianismo até o historicismo, passando também pela educação e cultura típica do século

XIX.

Nietzsche opta por elaborar uma crítica radical, recusando-se a realizar uma

nova revisão do conceito de razão, destituindo, assim, a dialética do

iluminismo. Volta-se contra a metafísica, denunciando a proliferação de

conceitos. Crítica o cristianismo e o identifica como cúmplice de um

abstracionismo que esvaziou tudo quanto é essencial. Rebela-se contra a

educação e a cultura, e chama a atenção para a deformação historicista da

consciência moderna (MATOS, 2001, 131).

A educação burguesa busca formar a todos com um determinado nível de cultura e

esse, necessário para que o indivíduo possa desempenhar suas funções no mercado de

trabalho ou no Estado. Tal “educação” tem como principais características o seu viés

profissionalizante e seu utilitarismo. Em seu livro Ecce Homo (s/ ano), Nietzsche deixa clara

a temática a qual se dedicavam as quatro Considerações Intempestivas. Elas têm o objetivo

atacar a cultura moderna, e tendo em vista que para Nietzsche cultura e educação não são

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coisas separadas, as suas considerações antes de tudo afirmam um ideal de formação humana,

em detrimento do ideal burguês de cultura e educação.

As quatro Intempestivas são belicosas de princípio ao fim. Mostram que eu

não era nenhum ‘João sonhador’, que me dá prazer desembainhar a espada –

e talvez ainda que a sabia perigosamente empunhar. O primeiro ataque

(1873) incidiu na cultura alemã, que nessa altura eu já desdenhosamente

olhava com um desprezo implacável. Sem sentido, sem substância, sem

meta: uma simples ‘opinião pública’. (NIETZSCHE, s/data, p. 63).

E exatamente pelo fato de se pretender atacar a cultura alemã é que nas II e III

Considerações Intempestivas, que Nietzsche se delonga a analisar educação. Rosa Maria Dias

(1991), em seu livro Nietzsche Educador, deixa clara a proximidade e a relação estreita que

Nietzsche faz entre educação e cultura. Ademais, sendo ele um grande estudioso da Grécia

pré-socrática, almejava superar os valores burgueses sobre o qual estava assentada a educação

e consequentemente a cultura moderna.

Como destaca Meyer (1990) Nietzsche ao defender tais ideias se posiciona contra as

“consequências da ascensão da burguesia”, a qual ele identificava como sendo uma classe de

“filisteus”. Sobre esta expressão cabe esclarecer algumas definições - Scarlet Marton destaca

que filisteu era a palavra utilizada nos meios acadêmicos universitários para designar pessoas

que por serem estritos cumpridores das regras e leis, execravam a liberdade gozada pelos

acadêmicos. “o filisteu era uma personagem de bom-senso, inculta em questões de arte e

crédula na ordem natural das coisas. Usava o mesmo raciocínio para abordar as riquezas

mundanas e as riquezas culturais” (MARTON, apud DIAS, 1991, p. 29). Há ainda outra

característica: Os filisteus da Cultura, apesar de não serem cultos, tinham a ilusão de o serem.

A pedagogia oitocentista criava, portanto, não o homem singular, mas sim uma massa de

“filisteus cultos”. No campo pedagógico, e com o fim de possibilitar a implantação de seu

projeto de cultura Nietzsche defende um modelo pedagógico embasado na crítica da

modernidade e inspirado no modelo fornecido pela Grécia pré-socrática.

Com Friedrich Nietzsche, delineiam-se no plano pedagógico uma crítica a

tradição educativa e a proposta de uma nova Paidéia dirigida para a

superação da concepção Greco cristã para dar corpo aos valores do super-

homem, do trágico e do niilismo, delineando um novo modelo de civilização

(CAMBI, 1999, p. 504).

O próprio Nietzsche não se priva de criticar a educação moderna, quando a evolução dos

argumentos listados no texto da Segunda Intempestiva, o permitem fazê-lo. Diz ele que “o

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alemão não tem cultura por que, em virtude de sua educação, não pode ter” (NIETZSCHE,

2008, p. 119). Nas Considerações Intempestivas temas como Ciência, História, Educação,

Arte e Cultura aparecem juntos, justamente por que na crítica Nietzschiana da modernidade

eles são indissociáveis.

Vemos assim um autor que mantém associações entre sua filosofia e sua época, e,

sobretudo, é desta maneira que o discurso de Nietzsche é “mesclado a um tempo e a um

espaço determinados, inserido num contexto preciso” (MARTON, 1991, p. 10). A crítica de

Nietzsche a história ocupa um lugar no conjunto dos argumentos que ele constrói contra toda

a cultura e ciência moderna. A SCI, argumenta sobre o uso e o desuso da história, tendo em

vista uma severa objeção ao paradigma de ciência moderno.

Já em outro texto, Ecce Homo Nietzsche diz: “A segunda Intempestiva (1874) traz à

luz o que há de perigoso, de torturante e envenenador da vida na nossa forma de cultivar a

ciência”. E se o autor assim o faz, devemos entender que seu modo de filosofar a

marteladas19

, quebra algo para possibilitar a construção de algo ainda mais aprimorado num

constante processo de superação e criação. De maneira mais geral, portanto, entender as

Considerações Intempestivas, e em especial o texto de UIHV, tendo em vista sua época é,

sobretudo evidenciar a afirmação e a existência de um projeto Nietzschiano de cultura, que

como destacou Rosa Maria Dias (1991), visa uma cultura alemã que seja propicia a “reflexão,

ao espírito critico e a atividade criadora” (DIAS, 1991, p. 8).

A afirmação deste projeto se dá diante da crítica aguçada das correntes de pensamento,

e dentre estas aquela que levou a história a ocupar o lugar de ciência do homem, e também

instituições educativas da Alemanha do século XIX, que em sua tarefa de ensinar passam para

as gerações mais jovens uma virtude que Nietzsche na SI identifica como um vício: O excesso

de história, e o sentido histórico que da ao homem moderno a justiça pautada em sua

objetividade. Mais uma vez o pensamento de Nietzsche aparece, como destacou Marton

(1992), mesclado a um tempo, e sobretudo inserido em um contexto especifico.

Quando Nietzsche se diz extemporâneo, portanto, ele somente se caracteriza como tal

uma vez que se posiciona contra seu próprio tempo e assim, “está, pois, em condições de

questionar a cultura filistéia que lá julga encontrar” (MARTON, 2001, p. 41). Em geral toda a

sua obra obedece a este principio, de reavaliar e criticar a modernidade. Em especial as

Considerações Intempestivas, ou Extemporâneas (como alguns tradutores insistem em chamá-

19

Tal como vemos exposto no subtítulo da obra O Crepúsculo dos Ídolos – ou como filosofar a golpes de

martelo.

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las) trazem a marca desta iniciativa crítica que pretendia defender uma cultura renovada, em

suma, um projeto nietzschiano de cultura.

1.3 Reconstruindo a época moderna a partir das Considerações Intempestivas

É possível ver a modernidade e o século XIX a partir de uma leitura atenta das

Considerações Intempestivas e do cruzamento desta com alguns outros textos redigidos pelo

próprio Nietzsche, tais como a Genealogia da Moral e A Gaia Ciência, onde o autor faz

transparecer não só algumas características da conjuntura histórica inerente a modernidade,

mas também crítica e propõe um projeto de cultura em detrimento da cultura moderna. “Ver”

a época moderna através dos apontamentos feitos por Nietzsche em tais obras se trata de

engendrar uma reconstrução que necessariamente se dá a partir de dois elementos, a cultura e

a educação, que criaram um tipo humano especifico, o homem moderno ao qual Nietzsche

dirige suas críticas ao longo de toda a sua obra filosófica.

De fato não somos os primeiros a tentar ver o conjunto de fenômenos sociais e

históricos que chamamos de modernidade a partir da obra de Nietzsche. Empreenderemos

aqui, um esforço semelhante ao que foi empreendido por Junot Cornélio Matos (2001), em

um trabalho acerca das críticas nietzschianas à modernidade. Diz ele que é possível

demonstrar a “filosofia de Nietzsche como uma das possibilidades de leitura da modernidade”

(MATOS, 2001, p. 129). Para este autor em especial, se torna possível efetivar tal esforço a

partir dos escritos de Nietzsche, uma vez que este, enquanto filósofo extemporâneo,

desenvolveu seu pensamento no sentido de “voltar-se para o que é inatural e de combater, em

si, o espírito do tempo” (MATOS, 2001, p. 130). Em outras palavras, é possível ver a época

moderna a partir dos escritos de Nietzsche por que este os compõe exatamente para criticá-la.

Na SCI em especial, na quarta parte do texto, Nietzsche ao argumentar acerca da

necessidade de se reconciliar o conhecimento histórico com uma necessidade vital, define

uma série de características que permitem reconstruir um pedaço da modernidade, em especial

o século XIX, a época, que segundo Nietzsche (2003), é dominada por um excesso de história.

Tal fenômeno resulta, segundo o autor, numa série de consequências incididas na cultura

alemã oitocentista. Tais consequências, são perpetuadas por uma educação massificante, que

de acordo com o exposto em Schopenhauer Educador (2007), teria abandonado o ideal de

formação humana em prol de indivíduos “medianos”, instruídos para o mercado de trabalho.

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Em sua II Consideração Intempestiva, mais precisamente, na quarta parte de seu texto,

ele faz ao leitor um convite: “lancemos rapidamente um olhar sobre o nosso tempo! Nós nos

assustamos, recuamos diante dele: Para onde foi toda a clareza, toda a naturalidade e pureza

daquela ligação entre vida e história” (NIETZSCHE, 2003, p. 32). Ora, o tempo de Nietzsche

é exatamente o século que busca fazer da história uma ciência. E, no entanto, na visão de

Nietzsche tornar a história uma ciência e buscar interpretar o conhecimento acerca do passado

do homem de maneira científica, acarretaria num perigo eminente: a institucionalização de

uma cultura essencialmente interior, onde a ciência é feita em nome do acúmulo de

conhecimento científico e não de acordo com a necessidade vital de um povo ou de uma

época.

Na sua II Consideração Intempestiva, Nietzsche (2003) critica o acúmulo de

conhecimentos históricos sem que estes vivifiquem uma ação vital. Tal acúmulo de erudição,

na visão do autor é infecundo pois, não ajuda na difícil tarefa de demonstrar como a ideia de

verdade é um preconceito de ordem moral que faz com que o conhecimento cientifico seja

supervalorizado, como a única perspectiva correta.

O que é, portanto, a verdade? Uma multidão movente de metáforas, de

metonímias, de antropomorfismos, em resumo, uma soma de relações

humanas, figuras e relações que foram poética e retoricamente elevadas,

transpostas, enfeitadas e que, depois de um longo uso, parecem a um povo

firmes, canônicas e constrangedoras” (NIETZSCHE, 2007, p. 84).

A ideia de verdade do conhecimento científico dá ao homem moderno a autoridade de

se posicionar como juiz frente às outras épocas, por isso em sua crítica Nietzsche desconstrói

a ideia de verdade, e faz a relação entre a verdade, a objetividade e a justiça na concepção do

homem moderno. Nietzsche (2003) diz que para o cientista moderno ser objetivo é estar

neutro, e a objetividade é uma garantia de validade do conhecimento histórico. E se o

conhecimento objetivo (verdadeiro) do passado torna o homem mais justo, o sentido histórico

moderno impulsiona o homem moderno a uma erudição desenfreada20

. O homem de cultura

na modernidade é o homem do sentido histórico, o homem do “vir a ser”, pois a própria

20

Temos diversos exemplos de considerações sobre o conhecimento cientifico em textos da A Gaia Ciência

(2006) do aforismo 343 ao 383. E o livro Humano, demasiado humano (2007), traz toda uma sessão na qual

discute a “alma dos artistas e dos escritores”. Tais leituras complementam nossa interpretação das considerações

intempestivas. A crítica de Nietzsche, expressa nas Considerações Intempestivas não aparece como sendo uma

crítica “a uma perspectiva”, mas sim como uma crítica a adoção de uma única perspectiva, verdadeira e objetiva,

desconsiderando-se assim as outras possíveis interpretações e perspectivas.

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cultura histórica é dominada por este excesso da história que a tudo desmistifica, e enquadra

num conceito, numa interpretação objetiva.

Qualquer nova produção humana, que se apresente ao homem moderno é

imediatamente posta sobre análise, para que dessa se extraia um nexo de sentido histórico. O

homem moderno julga desta forma, de maneira quase que exclusivamente histórica,

recorrendo aos fatos passados. Uma vez procedendo assim, toda a análise empreendida pelo

homem moderno esta pautada na autoridade do sentido histórico, e por isso ele se conserva

justo em seu juízo.

Assim nada mais consegue agir sobre elas [as personalidades modernas];

pode haver algo bom e justo, como ato, como poesia, como música:

imediatamente, o oco homem da cultura lança o seu olhar para além desta

obra e pergunta pela história do autor. Tendo este autor já criado muitas

obras, é imediatamente obrigado a já ter esclarecido o curso prévio e o curso

ulterior presumível de seu desenvolvimento, é imediatamente colocado ao

lado de outros artistas e comparado com eles, é dissecado, esfacelado em

função da escolha de seus material, do seu modo especifico de tratá-lo. Em

seguida, ele é uma vez mais recomposto, advertido e corrigido no todo. A

coisa mais espantosa possível pode acontecer, a horda dos homens

historicamente neutros já está sempre a postos para visualizar o autor a uma

distancia considerável. (NIETZSCHE, 2003, p. 46).

A neutralidade que a objetividade do conhecimento científico de um fenômeno exige,

desfaz qualquer possibilidade de aquele fenômeno gerar no individuo moderno uma ação

segundo a concepção do autor da citação, que é a de que se algum fenômeno é compreendido

e julgado historicamente ele está “morto” para aquele que o conheceu. Segundo Nietzsche

(2003) Isso se da diante do fato de que compreendê-lo é antes de tudo, permanecer neutro

frente a ele, pois deixá-lo inculcar qualquer tipo de ação recairia num subjetivismo a ser

evitado em nome da cientificidade da análise que se planeja engendrar.

A modernidade é então, inconfundível em duas de suas características: Seu sentido

histórico e sua cultura essencialmente histórica, onde o ponto de vista histórico do “vir a ser”

e a perspectiva do conhecimento científico objetivo são supervalorizados. “Um espetáculo tão

inabarcável não foi visto por nenhuma geração, tal como agora a ciência do vir a ser

universal, a história, mostra” (NIETZSCHE, 2003, p. 32). Uma cultura essencialmente

histórica, tal como a moderna cria tipos humanos cujo interior se encontra em conflito com o

exterior. Seu conhecimento não se reflete em ações, mas os inibe, em nome da neutralidade

própria ao homem objetivo e justo.

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Seria esta, portanto, a principal característica do tipo humano moderno? Nas palavras

do próprio Nietzsche (2003, p. 33) “a estranha oposição entre uma interioridade a qual não

corresponde a nenhuma exterioridade e uma exterioridade à qual não corresponde a nenhuma

interioridade – uma oposição que os povos antigos não conheciam”. É nesta característica,

portanto, que a modernidade se faz conhecer. Para se entender melhor tal oposição, convém

notar aquilo que o autor entende por cultura.

Cultura, portanto, para Nietzsche (2003) se trata da maneira como um determinado

indivíduo exprime em ações artísticas, literárias, ou num modo de vida, seus pensamentos. É

algo visível por manter harmonia entre o interior e o exterior do individuo, de seus

pensamentos e sua ação. Pensando isso na escala de um povo, temos certa uniformidade

estilística, uma vez que os pensamentos comuns são expressos em manifestações comuns a

todos do grupo. Um povo que tem uma cultura “só deve ser em toda a realidade uma única

unidade vivente e não esfacelar-se tão miseravelmente num interior e um exterior, em

conteúdo e forma” (NIETZSCH, 2003. p. 35-36). A esta unidade estilística a cultura moderna

não conservou. E é nesta ausência de peculiaridades que reside a característica da cultura

moderna, os alemães mesmos, como destaca Nietzsche estavam a andar, vestir e morar como

os franceses, numa espécie de imitação arbitrária ao princípio de cultura acima descrita.

Isso mina qualquer pretensão de uma unidade cultural coesa própria de uma nação de

personalidades fortes. Justamente na época em que os alemães acabavam de alcançar sua

unidade nacional, fazia-se sentir na Alemanha um enfraquecimento de suas manifestações

culturais, resultante de um desdém para com a forma, em detrimento do conteúdo. Na forma,

os alemães não são alemães autênticos:

Façamos um passeio por uma cidade alemã – toda convenção, comparada

com a peculiaridade nacional das cidades estrangeiras mostra-se aqui

negativamente, tudo é incolor, gasto, mal copiado, negligente. Cada um age

a sua vontade, no entanto, não uma vontade forte, rica em pensamentos, mas

segundo as leis que prescrevem a pressa universal e, então, a busca geral por

comodidade (NIETZSCHE, 2003, p. 37).

A época moderna é a época da pressa, isso contribui para uma “perca da

peculiaridade” em nome dessa mesma pressa universal, do ritmo acelerado de uma vida

urbana, industrializada e fabril. O pensamento alemão, que se pretendia alemão em oposição

ao Francês, não gera uma “forma alemã” em oposição a uma “forma francesa”. Logo, a

oposição entre cultura alemã e francesa não se sustenta mais, foram ambos “nivelados” e

segundo Nietzsche (2003) sua forma já não expressa mais diferenciações.

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A cultura é essencialmente interior, e sendo esse não um problema alemão, mas sim da

modernidade e da cultura moderna, tanto alemães como franceses se vestem com trajes

produzidos na Inglaterra, ao estilo inglês...

Uma peça de roupa cuja invenção não quebra a cabeça, que não demanda

tempo algum para ser vestida, ou seja, uma peça de roupa tomada por

empréstimo do estrangeiro e copiada da maneira mais descuidada possível,

vale imediatamente para os alemães como uma contribuição para o vestuário

nacional (NIETZSCHE, 2003, p. 37)

No entanto, numa cultura onde a forma não reflete o conteúdo, como podemos notar

os sinais de “evaporação” do próprio conteúdo? – decorre da dicotomia entre forma e

conteúdo, o fato de que, segundo Nietzsche (2003) não se pode mais precisar, se o alemão do

século XIX, tem realmente uma cultura, se ele tem realmente um interior, ainda que este não

se reflita numa forma exterior. A unidade alemã, unidade num sentido que Nietzsche diz ser

“supremo”, por ser a “unidade do espírito e da vida alemã” (NIETZSCHE, 2003, p. 40) só

seria possível com a aniquilação da oposição entre forma e conteúdo.

É neste intuito que Nietzsche se posiciona contra a cultura moderna, e se posiciona

contra os excessos de sentido histórico, próprios desta cultura moderna. Toda a II

Consideração Intempestiva representa um repúdio à cultura moderna e das consequências que

a pretensão de objetividade cientifica tem na personalidade do individuo moderno. Segundo

Rosa Maria Dias (1991), tendo em vista que a educação e a cultura não são coisas distintas

para Nietzsche, qualquer problema na cultura de um povo tem seu correlato na educação.

Talvez por isso, Nietzsche tenha dispensado tanta atenção ao problema da educação alemã no

século XIX. Se a cultura moderna padecia de um excesso de história, a educação tinha

perdido seu ideal de formação humana, em prol da extensão de criar seres massificados,

medianos para ocupar cargos no estado ou no mercado de trabalho.

A ascensão da burguesia provocou tal virada pedagógica especialmente no século

XIX, e muitas pessoas tiveram acesso ao ensino, pois certo grau de formação era necessário

para desempenhar as novas funções que agora surgiam num novo modelo de sociedade, cada

vez mais tecnológico e urbano. A esse modelo massificado de educação e o seu tipo humano

mediano, Nietzsche contrapõe um dever: “a humanidade tem o dever de trabalhar sem cessar

em produzir grandes homens; é sua tarefa, ela não tem outra” (NIETZSCHE, 2007, p 67). Na

modernidade, a cultura é segundo Nietzsche (2007, p. 67-99) reduzida à servidão, ao egoísmo

da classe dos comerciantes, e ao egoísmo do estado. Desta aliança, surge um tipo humano

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sábio (por possuir cultura geral) dócil, útil ao comerciante e ao estado, pois consome os

produtos que fazem o comerciante lucrar, e obedecem as leis do estado.

Essa guinada pedagógica apontada acima nos auxilia, na tarefa de reconstruir a o

panorama histórico de Nietzsche e é justamente com ela que nos evidencia uma sociedade

herdeira do ideal de igualdade defendido na Revolução Francesa. É justamente tal crítica a

educação que nos evidencia também, a ascensão da burguesia, que levou a necessidade de

uma nova tomada de consciência histórica, necessidade que, segundo Martins (2002) se

desdobrou na corrente historicista do século XIX.

Em que a evidência de uma cultura essencialmente histórica nos ajuda a reconstruir o

panorama histórico no qual se insere a obra de Nietzsche? Tal evidência nos mostra uma

cultura herdeira de uma acepção teleológica dos fatos históricos, evidencia inegável que a

época moderna não se desvencilhou dos preconceitos de ordem moral que regem a concepção

de “verdade” e “objetividade” do conhecimento cientifico, tendo em vista que para Nietzsche

este não representa mais que um antropomorfismo21

.

A concepção de que o mais justo é aquele que possui mais objetividade, favorece a

erudição pela erudição em detrimento da ideia de que o conhecimento tem que estar a serviço

de uma necessidade vital. Nas considerações intempestivas, Nietzsche se coloca como sendo

o polêmico critico de todo o conjunto dessas características “modernas”. Ideias essas que são:

a massificação dos indivíduos em detrimento de um ideal de formação humana, a ciência em

detrimento da vida, e o excesso de história.

O que defende o autor frente a tais fatos? Que a ciência seja feita em virtude das

necessidades vitais dos indivíduos, de um povo e de uma época. A história em excesso criava

problemas, mas tendo em vista que a história é imprescindível para o agir humano, esta deve

estar a serviço da desconstrução da ideia de verdade a qual está ligada a ciência moderna,

inclusive a história em sua pretensão a objetividade. O projeto de cultura que Nietzsche quer

construir leva em consideração que o homem de ação na modernidade necessita da história

para realizar em sua humanidade forma plena:

O homem de ação já liga sua vida à razão e aos conceitos para não ser

levado pela corrente e para não se perder a si mesmo, o sábio constrói sua

cabana bem perto da torre da ciência para poder ajudá-la e para encontrar

proteção para si próprio sob o baluarte existente (NIETZSCHE, 2007, p. 90).

21

Expressão utilizada no texto Introdução teorética sobre a verdade e a mentir ano sentido extramoral para

demonstrar como uma interpretação molda o signo interpretado de acordo com o intelecto daquele que

interpreta.

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Diante do apresentado na citação, é perceptível que para poder construir a reforma de

cunho imoralista de que a modernidade necessita, a ruminação dos valores morais parte de

uma iniciativa do próprio cientista que se volta contra a ciência, do historiador que se utiliza

da história para reconciliar a história e a vida, e consequentemente a ciência e a vida. Com

isso, podemos ver que Nietzsche não exclui os estudos históricos em face da filosofia ou de

qualquer outra forma de pensamento, mas sim o coloca numa outra perspectiva que não visa

dar ao homem moderno a sensação de ser epígono. O homem deve se entender como sendo

um caminho22

para a produção de algo que mais aprimorado.

Seguindo esses aspectos, na II Consideração Intempestiva, segundo White (1995) não

tivemos um exemplo de historiografia voltada para as necessidades vitais de seu tempo. De

acordo com este autor, Nietzsche nos da este exemplo em uma obra posterior: A Genealogia

da Moral. A batalha de Nietzsche contra ciência sem vivificação e contra os excessos da

história, que é feita sem um vinculo com as necessidades vitais dos indivíduos modernos se

apresenta de maneira contundente no texto UIHV, onde o autor delineia a tese extemporânea

de que o excesso de história é prejudicial a vida.

1.4 “A Segunda Consideração Intempestiva”, a construção de um pensamento que se

pretendia extemporâneo

No período que vai de 1873 a 1876, Nietzsche publica quatro textos, que ficaram

conhecidos como Considerações Intempestivas. O objetivo destes textos era chamar a atenção

dos alemães contemporâneos a Nietzsche para polêmica que o autor criou em torno de alguns

temas específicos relacionados com sua época, em suma, toda a obra, embora esteja dividida

em quatro textos distintos, gira em torno de um eixo temático: Educação e cultura na

Alemanha oitocentista. Cada um destes quatro textos, no entanto, tem um titulo e um recorte

próprio.

O próprio Nietzsche justifica os recortes escolhidos para suas considerações em sua

autobiografia publicada alguns anos depois, segundo o autor, a primeira das Considerações

Intempestivas, intitulada David Strauss, o devoto e o escritor, representa o primeiro ataque,

22

Caminho – palavra utilizada meteforicamente para expressar em Assim Falou Zaratustra a missão do homem

de se auto superar num constante processo de aprimoramento que daria origem ao super-homem nietzschiano.

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diz ele: que em “(1873) incidiu na cultura alemã”. A Segunda consideração, cuja problemática

suscitou a presente pesquisa, se configura num ataque feroz ao paradigma de ciência moderna.

Jean Lefranc (2008) nos deixa claro o propósito desta consideração, tendo em vista os

elementos de seu titulo: Da utilidade e Inconveniente da História Para a Vida. Destaca o

autor, que o propósito primordial da consideração de Nietzsche não é debater os avanços da

história, ou mesmo “uma metodologia da ciência histórica”. Tampouco Nietzsche teria

objetivado com este texto se deter na questão do “devir das sociedades humanas”

(LEFRANC, 2008, p. 288), por outro lado é posto que os estudos históricos ganhassem

grande impulso e importância no decorrer do século XIX, a ponto da cultura moderna poder

ser adjetivada como “essencialmente histórica”. A SCI é, portanto, o texto no qual Nietzsche

discute do ponto de vista da cultura os efeitos da dominação de um ponto de vista

essencialmente histórico.

A Terceira consideração, bem como a quarta e última, se serve de um exemplo

pessoal, para a partir daí, estabelecer a crítica a educação e a cultura da Alemanha do século

XIX. Nestas, portanto, Nietzsche fala de Artur Schopenhauer, em Schopenhauer Educador

(2008), e de Richard Wagner em Wagner em Bayreuth (2007). E com isso, somos remetidos a

refletir sobre o motivo que Nietzsche os cita, no intuito de estimular discussões acerca da

cultura e educação alemãs, logo temos:

Na terceira e quarta Intempestivas, enquanto indícios de um conceito mais

elevado de cultura, do restabelecimento do conceito de ‘cultura’, opõem-se

duas figuras do mais duro egoísmo, autodisciplina, tipos extemporâneos par

excellence, cheios de soberano desprezo perante tudo o que à sua volta se

chama ‘império’, ‘cultura’, ‘cristianismo’, ‘Bismarck’, ’êxito’ –

Schopenhauer e Wagner. (NIETZSCHE, s/data, p.59)

Justifica o autor que ambos Schopenhauer e Wagner tratam de personalidades

extemporâneas por excelência. Ser extemporâneo, ou intempestivo foi, por sinal, a posição

adotada por Nietzsche ao escrever suas quatro considerações. Extemporâneo no sentido de

que o filósofo se posiciona contra o seu próprio tempo, mesmo que sua obra se mostre,

exatamente por isso, indissociável da época a que pertence, no caso, a Alemanha do século

XIX.

Nietzsche é intempestivo por que sua análise se posiciona contra o paradigma de sua

época. Especificamente na Segunda Intempestiva – Da Utilidade e Inconveniente da História

Para a Vida (2003), texto no qual o autor se demora a analisar e criticar a história tal como

ela era feita e difundida na Alemanha do século XIX, destaca-se que o texto começa por dar

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testemunho de tal intempestividade adotada nestes escritos, quando o próprio Nietzsche diz

querer expor “por que a história, precioso supérfluo do conhecimento e artigo de luxo, devem

ser seriamente, segundo as palavras de Goethe, objeto de ódio”. Ao produzir um livro que

descaracteriza uma concepção comum aos seus contemporâneos é que Nietzsche se faz

extemporâneo, ou inatual, ou ainda póstumo.

Sua análise parte de seu tempo, mas está contra este. De acordo com Lefranc (2008),

se Nietzsche se posiciona de tal maneira, devemos entender que seu objetivo não é excluir os

estudos históricos. O próprio autor, por várias vezes se utilizou de investigações históricas

para compor seus livros, a exemplo de Genealogia da Moral, ou mesmo O anticristo. A

história que deve ser tomada por objeto de ódio é justamente a história “própria a todo

historicismo” (LEFRANC, 2008, p. 288) 23

, ou ainda, como o próprio Nietzsche (2008, p. 43)

destacou “essa história compreendida hegelianamente” (NIETZSCHE, 1989). Há obviamente,

na visão do autor, certa continuidade no historicismo de práticas que se iniciaram no período

iluminista e é ai que reside sua crítica a essa corrente da história.

Tal crítica dirigida à história feita na Alemanha contemporânea a Nietzsche, se dirige

antes de tudo aos postulados instituídos por uma corrente de pensadores que se estende de

Platão, passando por Kant, Hegel e por fim, influenciando a historiografia oitocentista, que

segundo Bourdé & Martin (1983, p. 40) se juntam num único conjunto de pensadores

teleológicos. Certas continuidades e rompimentos são evidenciáveis ao longo do

desenvolvimento que levou a história a se firmar como ciência. Nietzsche parece dirigir sua

crítica, sobretudo às noções de “história universal e processo histórico” e “progresso” que na

23

A esta altura se torna imprescindível esclarecer o sentido desta crítica Nietzschiana ao “historicismo”. De

maneira geral, os comentadores de Nietzsche não esclarecem qual concepção de historicismo ou época especifica

do historicismo Nietzsche está criticando. Jean Lefranc (2008) se limita apenas em dizer que o autor se dirige ao

historicismo. Martins (2002) esclarece que historicismo não é uma exclusividade da Alemanha do século XIX,

mas sim um fenômeno mais amplo que abrangeu toda a Europa e que influenciou até mesmo autores brasileiros

como Varnhagen. Seria o iluminismo uma forma de consciência que abarca as transformações socioeconômicas

advindas como consequência da Revolução Francesa. Somente na segunda metade do século XIX é que ocorre a

institucionalização do historicismo entre os intelectuais e isso contribui para que os limites formais da história

sejam delineados de forma mais precisa. Qual historicismo Nietzsche critica? Na Segunda Intempestiva (2003)

evidencia-se que Nietzsche critica o historicismo no que tange ao fato de que recebe ele influências diretas de

Hegel e se torna, portanto, uma corrente de cunho moralizante e idealista. Não obstante a isso, Nietzsche (2003)

critica firmemente a pretensão de fazer da história uma ciência. Segundo Bittencourt (2009), o excesso de

sentido histórico originário na filosofia da história, seria institucionalizado através da pretensão historicista de

fazer da história uma ciência.

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visão do autor, advinham de Hegel e da forte influência que a filosofia deste conservava

dentre os intelectuais alemães.

Semelhantes considerações acostumaram os alemães a falar de um “processo

universal” e a justificar sua própria época, vendo nela o resultado necessário

desse processo universal. Semelhantes considerações destronaram outras

potências intelectuais, a arte e a religião para colocar em seu lugar a história,

enquanto é o ‘conceito que se realiza a si mesmo’, enquanto é ‘a dialética do

espírito dos povos’ e o ‘julgamento da humanidade’(NIETZSCHE, 2008, p.

97).

Na própria citação Nietzsche critica a justificação de sua própria época através de um

processo universal, como se o homem moderno fosse o fruto de um desenvolvimento, o

estágio supremo desse desenvolvimento. O autor também destaca que tal perspectiva tem se

sobreposto a outras perspectivas como a arte e a religião, que no século XIX estão sendo

substituídas pelo sentido histórico, o processo que a tudo explica.

Diante disso, Nietzsche identifica em Hegel aquilo que Bourdé & Martin (1983, p. 40)

chamou de “pensamento teleológico”, algo que liga as concepções de Platão e de toda uma

corrente de pensadores que não conseguiam se desvencilhar de noções de providencialismo e

progresso contínuo rumo a um fim. Estas noções, muito próximas de uma moral

essencialmente cristã, serão objeto de grandes críticas ao longo de todo o texto que compõe a

II Consideração Intempestiva. O próprio Nietzsche diz: “A vinda do senhor! O processo!

Levar a salvação! Quem, pois, não ouve ali voz da cultura histórica, voz que só conhece a

palavra devir” (NIETZSCHE, 2008, p.105).

Embora com um tom de ironia por parte do autor, percebemos o relacionar da noção

de progresso as noções religiosas e Nietzsche diz “para me expressar do ponto de vista cristão

diria que o diabo governa o mundo e que é o mestre do sucesso e do progresso. Em todas as

potencias históricas, o cristianismo é a verdadeira potência” (NIETZSCHE, 2008, p. 111). O

processo contínuo e o progresso em relação com a história são colocados assim, como sendo

uma acepção cristã. Pode-se identificar nestas breves criticas presentes na SCI o escopo de

uma posição exaustivamente defendida por Nietzsche enquanto filosofo: o imoralismo24

.

24

O próprio Nietzsche se dava o apelido de filosofo imoralista, pois travava contra a moral de cunho cristão um

grande e polêmico duelo. Ressalta Lefranc (2008) que justamente neste ponto Nietzsche se difere de

Schopenhauer, uma vez que mesmo se declarando ateu, Schopenhauer não defendeu uma “nova moralidade” em

oposição a moralidade de cunho crista. Nietzsche desenvolve todos os seus livros no intuito de o fazê-lo. Aurora,

por exemplo, é um livro destinado a delinear o surgimento de uma nova moralidade.

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Criticando a ideia de processo histórico como sendo uma coisa “apocalíptica”, e

tipicamente “cristã”, Nietzsche parte da ideia de que a ciência e a objetividade cientifica tal

como eram praticadas em sua época não estariam desvencilhados de preconceitos de ordem

moral, e sobretudo, de noções da moral de cunho cristão. Lefranc (2008, p. 129), relaciona o

esforço empreendido por Nietzsche em suas genealogias a uma busca pelas dissimilações

promovidas pela moral cristã, em suma se posicionando contra a moral moderna. Nietzsche

aparece, para Jean Lefranc (2008), como imoralista. No entanto, retomando, prestando-se a

criticar noções e características próprias a Hegel o filósofo-extemporâneo se sobressai, pois

como destaca Bourdé & Martin (1983, p. 48) “Hegel pertence inegavelmente ao mundo do

Aufklarung”, e como tal representa o “modo de pensar” de todo um conjunto de filósofos e

até de historiadores, levando em consideração a autonomia alcançada pela história no decorrer

do século XIX.

Em suma, segundo Bourdé & Martin (1983, p. 44 – 150), da história erudita ao

historicismo propriamente dito, as investigações históricas ganharam cada vez mais

importância, na tanto na França quanto na Alemanha. Tendo em vista que a priori não havia

um principio metodológico único durante a escola erudita, o grande fluxo de trabalhos,

investigações e monografias não tinham uma metodologia comum. Ao longo do

desenvolvimento da escola metódica, o método se torna uma grande preocupação uma vez

que este é o orientador da pratica do historiador, que agora aparece como um ofício.

É assim que vemos transposta a época em que a história era feita por qualquer erudito

que por ela apresentava afinidade, o historiador agora se torna uma personalidade de grande

prestígio. A “preocupação escrupulosa de exatidão e a prudência no julgamento” (BOURDÉ

& MARTIN, 1983, p. 75) são, portanto, as virtudes exaltadas do historiador no século XIX.

Este é o homem que julga segundo os fatos passados para possibilitar uma política de ação no

presente e com isso, Nietzsche não deixa de se referir ao historiador em sua SCI como sendo

o “virtuoso histórico do presente” ( NIETZSCHE, 2003, p. 50), para demonstrar como a tarefa

de julgar com o sentido histórico adquire ares de importância ao longo do século XIX.

O trabalho do historiador mantém constante escrúpulo de exatidão por que permite

tomada de consciência histórica. Para Agner Heller (1993) “consciência histórica” pode ser

traduzida pelos questionamentos “de onde viemos, o que somos, e para onde vamos?”

(HELLER, 1993, p.15), uma vez que diversas respostas podem ser obtidas destes

questionamentos, existem diversas formas de consciência histórica. Com tal elemento, o

oficio do historiador, no século XIX está, assim, ligado à produção de uma consciência

histórica específica, seja a consciência ligada à afirmação dos estados nacionais ou ainda a

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ascensão da burguesia. E no historicismo em especial, “o passado humano aparece a luz de

ideias, que, como forças intelectuais de socialização humana, constituem história como um

construto coerente de sentido na sequência temporal do agir humano que modifica o mundo”

(MARTINS, 2002, p. 14), e nesta busca de sentido para orientar o agir, a partir dos fatos

passados, o historiador aparece como figura-chave que deve manter a virtude se ser exato,

portanto, objetivo.

Nietzsche deixa clara sua opinião a respeito dessa pretensão de objetividade reclamada

pelo historiador na prática de seu oficio. Diz o autor

Voltemo-nos para uma das forças muito celebradas do homem moderno com

a pergunta, alias constrangedora, se ele tem o direito de se denominar, por

sua conhecida objetividade, forte, isto é, justo e em grau mais elevado do

que o homem de outra época (NIETZSCHE, 2003, p. 47).

Tendo chamado atenção para este assunto em especial, Nietzsche em tom de ironia

faz-se supor que o homem moderno pense ser forte por ser justo. Seria, segundo o filósofo,

um erro a pretensão do homem moderno a justiça inspirada na objetividade do seu julgamento

histórico25

. Quem julga historicamente, não deixa de instrumentalizar, a fim de engendrar tal

julgamento a valores morais. Em seu livro Aurora (2008), ao fazer alusão aos valores de bom

e de mal, Nietzsche critica os homens contemporâneos a ele, em sua pretensão de acreditar

conhecer mais a respeito destes valores. “Os sábios tem razão quando pensam que os homens

de todas as épocas imaginavam saber o que era bom e o que era mau. Mas é um preconceito

dos sábios acreditarem que agora estamos mais bem informados a respeito do que em

qualquer outra época”. (NIETZSCHE, 2008, p. 27). A moral pode, portanto ocultar erros de

julgamentos secularizados.

Num texto intitulado Introdução Teorética Sobre a Verdade e a Mentira no Sentido

Extramoral, datado do verão de 1873, Nietzsche coloca em cheque a ideia de verdade, diante

do fato de que a moral, enquanto convenção gregária fixa o valor de uma verdade do ponto de

vista da preservação dos outros indivíduos. A verdade apareceria então “como uma conclusão

de paz” (NIETZSCHE, 2007, p. 51). Em suma, como o próprio Nietzsche salienta na II

Consideração Intempestiva julgar algo a luz dos acontecimentos históricos, seria o mesmo

que destruir ou desfazer a esfera de ilusão, a atmosfera única onde este algo poderia

prevalecer.

25

A relação estabelecida por Nietzsche (2003) entre verdade, objetividade e Sentido Histórico, transparece

novamente aqui. As questões relativas à verdade serão debatidas de maneira mais aprofundada no tópico 2.1.

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Ainda assim o homem moderno dirige suas aspirações para aquilo que ele chama de

verdade. “Não apenas como conhecimento frio e sem consequências, mas como uma juíza que

ordena e que pune” (NIETZSCHE, 2003, p. 50). Ainda segundo Nietzsche (2003, p. 50),

objetividade histórica seria “a mensuração de opiniões e feitos passados a partir das opiniões

mais disparatadas do momento”, por outro lado, tudo que não obedece as normas canônicas

ditadas pelas opiniões populares, é subjetivo, e assim, o historiador se anula de modo que

permaneça neutro diante do passado que considera.

Ora, se não há uma verdade que não seja ilusória em face dos valores morais que a

sustenta, o que é exatamente a objetividade histórica? “isso seria uma mitologia, e, além

disso, uma mitologia muito ruim” (NIETZSCHE, 2003, p 52). São nesses termos que o autor

aproxima o trabalho do historiador com uma arte, a dramaturgia, que livre de regras canônicas

permaneceria livre para esteticamente produzir “boa mitologia”. A objetividade histórica para

Nietzsche só seria possível enquanto uma espécie de “crença na verdade”, e na busca por ela o

cientista estaria empenhando um grande esforço na busca da “quadradura do círculo” 26

.

A desconstrução não finda neste ponto específico, Nietzsche parece se opor a qualquer

juízo empático que o historiador possa empreender na compreensão dos fatos passados,

atacando mais uma vez qualquer possibilidade de juízo histórico. E com isso faz transparecer

que a história, ao dar exemplos, impede o homem de exercer originalidade e criatividade

própria.

Aquele que não ousa mais confiar em si mesmo, mais involuntariamente,

para sentir, pede um conselho a história: Como devo sentir aqui? Torna-se

palatinamente, por pusilaminidade, um ator, e desempenha um papel, na

maioria das vezes até mesmo muitos papéis e, por isso, cada um deles de

maneira muito ruim e superficial (NIETZSCHE, 2003, p. 45).

Quem julga pedir conselhos a história, mesmo que através de analogia e empatia,

imita. O projeto cultural que Nietzsche defende, em detrimento da cultura essencialmente

histórica mantém dos poetas e filósofos românticos o ideal de gênio. Ou, como o próprio

Nietzsche (2008) chamou em Schopenhauer Educador, o homem de exceção. Lefranc (2008)

em seu Compreender Nietzsche fala de uma nostalgia da Grécia antiga por parte de Nietzsche

e de outros anteriores e contemporâneos a ele. Nietzsche mesmo se consagrou enquanto

helenista convicto depois ter tido como professor Ritshl. E na conclusão de sua ideia a

26

Fazendo uso aqui de uma expressão utilizada por Jörn Rüsen, em sua obra História Viva. Uma vez que aquilo

que define o círculo é a ausência de vértices ou lados, é um esforço vão buscar pela quadradura do círculo.

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37

respeito desta nostalgia quanto ao ideal grego de cultura e formação, Jean Lefranc (2008)

sintetiza a grande parte da crítica a modernidade empreendida por Nietzsche na SCI.

Avançar tornando-se cada vez mais grego não equivale a adquirir sempre

mais conhecimento histórico sobre a Grécia sem outra nostalgia que a do

saber: “ser grego” é ascender à vontade grega, enquanto viva, “na sua

carne”, e não em espírito como um fantasma evocado pelo idealismo.

(LEFRANC, 2008, p. 50)

Na contramão de toda estranheza suscitada por este fato, é justamente nos

conhecimentos históricos a respeito dos gregos que Nietzsche busca uma solução para o que

ele chamou de “instrução sem vivificação” (NIETZSCHE, 2003, p.5), e que é o mal da

ciência moderna. Sendo a cultura grega aos olhos de Nietzsche um exemplo de cultura vivaz,

o autor parece conclamar a juventude a superação deste niilismo criado pela cultura

essencialmente histórica. E esse niilismo alimentado pela dicotomia existente entre um

interior rico em conhecimentos, mais que não se reflete num exterior igualmente rico em

ações advindas destes conhecimentos.

Logo, temos no apresentado acima que muito daquilo que Nietzsche apontou em suas

primeiras obras, e em especial em suas Considerações Intempestivas. Tais apontamentos se

encontram mais delineados em obras posteriores. White (1995), por exemplo, busca entender

o pressuposto na SCI como sendo um pensamento que Nietzsche começou a construir na obra

Nascimento da Tragédia e que somente se delineia com contornos palpáveis em Genealogia

da Moral. Isso por que o autor não dá em sua SCI um exemplo do que seria uma

historiografia consonante com as necessidades vitais de uma época. Sendo a genealogia da

moral um trabalho de investigação pelos valores morais, temos que Nietzsche (1998) nos dá

neste o exemplo que faltou na SCI.

O fato é que, de algum modo, os textos de Nietzsche podem conservar um diálogo que

não se prende a cronologia inerente a eles. Nos que diz respeito à SCI. A crítica de Nietzsche

a História nos evidencia um olhar extemporâneo sobre a história tal como ela era entendida e

praticada pelos homens da modernidade e do século XIX. A história própria do século XIX,

fomentando ideias de cientificidade e objetividade foi alvo de duras críticas nos textos que

compõem a SCI, pois objetividade seria uma posição de neutralidade para garantir exatidão e

engendrar julgamentos históricos. A própria ideia de verdade é criticada e revista por

Nietzsche (2006) em seus textos. A objetividade e aliada ao excesso de conhecimentos

(erudição) provocam a dicotomia entre interior (rico) sem um exterior (forma) equivalente, e

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isso por sua vez seria a ciência sem vivificação que “paralisa a atividade” a qual Nietzsche

(2008, p. 15) se presta a descaracterizar ao longo dos argumentos posteriormente expostos.

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CAPITULO II. POSSÍVEIS DIÁLOGOS ENTRE A FILOSOFIA NIETZSCHIANA E

A CRÍTICA À HISTÓRIA CONTIDA NA II INTEMPESTIVA.

Neste capítulo, partimos do pressuposto de um Nietzsche extemporâneo. A partir do

qual promovemos o cruzamento da SCI com outros textos de Nietzsche. Pretende-se assim,

evidenciar como o referido autor fez da história o tema de diversos debates ao longo de toda

sua bibliografia. No primeiro tópico, discutiu-se a forma como Nietzsche entende uma

“verdade”, como sendo um preconceito de ordem moral. O segundo tópico busca evidenciar a

perspectiva epistêmica de Nietzsche, discutindo como o autor vê a relação entre história e

arte. O terceiro tópico busca demonstrar como Nietzsche busca reconciliar a história com as

necessidades vitais da época moderna, empregando-a na tarefa de possibilitar a “ruminação”

dos valores morais vigentes. Por fim, no quarto tópico, engendrou-se uma discussão a respeito

de como a filosofia de Nietzsche busca se apropriar da história como conhecimento

perspectivo, para que este sirva a vida, fortalecendo-a e criando, a partir disso o impulso de

auto superação necessário ao surgimento do super-homem.

2.1 A Verdade e a Mentira no Sentido Extramoral.

A partir da leitura de um dos escritos de Nietzsche, denominado Introdução teorética

sobre a verdade e a mentira no sentido extramoral (2007), a relação entre história e verdade

pode se tornar mais clara, dado o sentido que a análise nietzschiana toma desde a SCI. O texto

se inicia por analisar a pretensão humana de produzir conhecimento a partir de seu intelecto,

capacidade esta que o diferencia dos animais. Segundo Nietzsche (2007) a pretensão do

homem de a partir de seu intelecto conhecer cientificamente a todas as “verdades” a respeito

do universo e da natureza é uma pretensão ilusória, diante do fato de que o homem é

contingente e que sua vida representa um infinitesimal pedaço do todo que representa o tempo

natural. Assim, “houve eternidades em que ele [o intelecto humano] não existiu e, se o mesmo

acontecesse agora, nada se passaria. De fato, não há para esse intelecto uma missão mais vasta

que ultrapassasse a vida humana” (NIETZSCHE, 2007, p. 79).

Defrontar-se com essa pretensão é, segundo Nietzsche, uma evidência do egoísmo e da

arrogância do homem, que assim como uma mosca, insignificante em sua pequenez, tem a

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partir de sua própria perspectiva a sensação de que o mundo gira em torno de si. A capacidade

de conhecer algo fez com que o homem se “inchasse” e se iludisse diante da perspectiva de

que o real existe para ser por ele desvendado. Segundo Nietzsche (2007, p. 79) o efeito mais

direto do fato do homem possuir um intelecto conhecedor do mundo que o cerca, é o estado

de ilusão. Ainda assim, o intelecto tem desempenhado uma função de grande importância na

delicada tarefa de perpetuar a espécie humana, uma vez que tendo sido dotado de um intelecto

superior aos dos outros animais, o homem compensa a ausência de um aparato biológico que

o coloque em pé de igualdade frente aos outros animais, que sendo predadores naturais

possuem de mandíbulas e garras perigosíssimas.

É, portanto, no uso de seu intelecto que o homem subsiste, usando para isso de

mecanismos de dissimulação, e então vaidoso de seu intelecto se recusa a agir como os

demais animais, para quem a lei do mais forte decide aquele que prevalece. Passa então a

viver em sociedade por “necessidade”, pois essa, o oferece maior proteção, medo e tédio,

pois:

Quer existir social e gregariamente, tem necessidade de concluir a paz e

procura de acordo com isso, que pelo menos desapareça de seu mundo o

mais grosseiro bellum omnium contra omnes (guerra de todos contra todos).

Esta conclusão de paz traz com ela algo que se assemelha ao primeiro passo

em vista da obtensão desse enigmático instinto de verdade. Quer dizer que

está agora fixado o que doravante deve ser “verdade, o que quer dizer que se

encontrou uma designação das coisas uniformemente válida e obrigatória e a

legislação das coisas uniformemente válida e obrigatória e a legislação da

linguagem fornece até mesmo as primeiras leis da verdade: de fato, aqui

nasce pela primeira vez o contraste entre a verdade e a mentira.”

(NIETZSCHE, 2007, p. 81).

Notem que a distinção aqui diz respeito à “verdade e mentira” e não “bom e mau”.

Teria a verdade se fixado a partir da necessidade que o homem demonstra de conviver social e

gregariamente? Sobre os valores de bom e mau, Nietzsche discorre em A Genealogia da

Moral apresentando conclusões diferentes acerca do surgimento destes valores. Toda verdade

então, se justifica por uma convenção social, um valor comum a todos de um grupo que o

baseia na conservação de todos: os mais fortes e também os mais fracos. Tal valor comum é

traduzido numa legislação vigente no grupo social. Pois bem, a verdade então, se distingue da

mentira somente numa relação intrínseca com os valores morais. Desta forma, se uma pessoa

diz ser rica, ao passo que a sociedade na qual ele está inserido sabe de sua situação

paupérrima, esta pessoa é automaticamente excluída dos círculos de confiança, já que faltou

com a verdade.

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Logo, a verdade, segundo Nietzsche (2007), é estabelecida pela maioria, enquanto

valor e “é apenas neste sentido que o homem quer a verdade: ele ambiciona as consequências

agradáveis da verdade, aquelas que conservam a vida; para com as verdades prejudiciais e

destrutivas ele está até mesmo hostilmente disposto” (NIETZSCHE, 2007, p. 82). Então o

homem é feliz em sociedade a partir do momento em que se esquece do fato de que a verdade,

enquanto convenção gregária é ilusória, e, portanto, só se diferencia da mentira no tocante a

aceitação perante o grupo. Não é a primeira vez que a “felicidade” esta condicionada a uma

situação de “esquecimento”. Tal relação persiste na filosofia Nietzschiana desde as

Considerações Intempestivas (2008, p. 24-25) onde Nietzsche deixa clara a relação entre

felicidade e esquecimento se servindo para isso de exemplos práticos, tal como o do “homem

apaixonado” que se encontra num estado de anulação do passado em prol de um futuro que

ele almeja. Mais adiante retomaremos a relação entre verdade e felicidade trabalhada por

Nietzsche. Diante disso, chegamos à questão de retórica, onde defender um ponto de vista

como sendo verdadeiro é justificar:

O que é, portanto, a verdade? Uma multidão movente de metáforas, de

metonímias, de antropomorfismos, em resumo, uma soma de relações

humanas, figuras e relações que foram poética e retoricamente elevadas,

transpostas, enfeitadas e que, depois de um longo uso, parecem a um povo

firmes, canônicas e constrangedoras: as verdades são ilusões que

esquecemos o que são, metáforas que perderam seu cunho e que a partir de

então entram em consideração, não mais como moeda, mas como metal

(NIETZSCHE, 2007, p. 84).

Ser verdadeiro é empregar metáforas que todos empregam, ou que todos aceitam. A

verdade mais uma vez é posta a prova do valor aceito por todos. É, portanto, em virtude dos

costumes repetidos e dos valores cultivados através dos séculos e que o homem tem tomado

uma argumentação como verdadeira, se esquecendo de que a verdade pode esconder por sua

relação com os valores morais uma mentira disfarçada. Segundo Nietzsche (2007), o

conhecimento científico enquanto verdade é, assim, um antropoformismo daquilo que é real

em si. E isso é outra evidencia de que o intelecto com a capacidade de conhecer dotou o

homem de egoísmo e arrogância, ao fazer ciência, o homem nada mais faz do que ligar todo o

que existe na realidade a sua volta a si mesmo.

Se afirmarmos, portanto, que um camelo é um mamífero depois de observá-lo e listar-

lhe as características, corpo coberto de pelos, glândulas mamárias, vivíparo, isso é cientifico e

é verdade. No entanto, o conceito mamífero é um antropormofismo por que só se constitui

enquanto uma humanização da realidade que cerca o homem. “Como o astrólogo que observa

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as estrelas a serviço dos homens e em conexão com sua felicidade ou infelicidade, semelhante

pesquisador considera o mundo inteiro como ligado aos homens” (NIETZSCHE, 2007, p. 86-

87). E também, “não é senão pelo fato de que o homem se esquece como sujeito e como

sujeito da criação artística, que vive com algum repouso, alguma segurança e alguma

coerência” (NIETZSCHE, 2007, p. 87). O mundo empírico, portanto “é o mundo

antropormófico” de que o homem se apoderou para poder edificar seus conceitos.

O cientista, mantém neste panorama uma estreita relação com a verdade. Ele pode, por

outro lado, desconfiar da verdade que a razão construiu através da ciência, pois estando a

ideia de verdade diretamente ligada ao valor moral vigente a esta “verdade cientifica”, sobre a

qual o homem quer construir um novo mundo, são impostas outras tantas “verdades”, que

Nietzsche diz ser de uma “espécie totalmente diferente”. Numa concepção de ciência

moderna, falando do que Gardiner (1974) chama de filosofia da história, poderíamos ter a

continuidade de uma acepção medieval de Deus, o providencialismo. Não por que o conceito

científico realmente não pretendesse apreender uma verdade filosófica em sua argumentação,

mas também e primordialmente, por que os valores morais em voga na Europa moderna,

segundo Nietzsche (2006) eram essencialmente cristãos o que induz a verdade científica a

noção de providencialismo.

Segundo Lefranc (2008, p. 126), a filosofia de Hegel, por exemplo, manteve intacta

certa relação com providencialismo e teologia: “a questão teológica na filosofia de Hegel é

notória”. Diante disso, a verdadeira guerra do cientista não deve ser contra a mentira, mas

contra a moral,

O homem de ação já liga sua vida à razão e aos conceitos para não ser

levado pela corrente e para não se perder a si mesmo, o sábio constrói sua

cabana bem perto da torre da ciência para poder ajudá-la e para encontrar

proteção para si próprio sob o baluarte existente, E necessita dessa proteção,

por que há forças temíveis que exercem continuamente pressão sobre ele e

que opõem à “verdade” cientifica “verdades” de uma espécie totalmente

diferente, dos tipos mais disparatados. [...] Procura um novo domínio para

sua atividade e outro leito de escoamento, e os encontra no mito e

especialmente na arte” (NIETZSCHE, 2007, p. 90).

Como podemos perceber, há uma pretensão de colocar a ciência para resolver o

problema da ciência. O sábio não se oporia diretamente a “verdade” do cientista, mas,

encontrando proteção para si sob o “baluarte existente” poderia procurar outro leito de

escoamento, uma fuga. Tal refúgio contra o torpor advindo da torre da ciência seria o mito e a

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arte27

. E neste reencontro com a arte, e como o mito, o homem então se vê em uma situação

de encantamento com o sentido que apreende das coisas reais, ou seja, vê as coisas reais

serem apreendidas pelo espírito de uma maneira clara. O homem neste estagio de

reconciliação com a arte e com o mito, como formas de construir sentido, “não é conduzido

por conceitos, mas por intuições” (NIETZSCHE, 2003, p. 90-91). São tais intuições que

permitem a este individuo reavaliar o valor comumente atribuído as verdades construídas

pelas ciências, em vistas dos valores vigentes.

Segundo Nietzsche (2007, p 90) tal forma de conduta proporciona ao individuo novos

antroporfomismos diferentes daqueles pregados pelos habitantes da “torre da ciência”,

verdades construídas sob outro cânone, sobre outras perspectivas. O homem científico assim

passa a ser o “homem racional” cujas verdades cientificas o são assim, para o “homem

intuitivo”, apenas uma perspectiva dentre outras tantas possíveis.

Assim, Nietzsche busca estabelecer a relação da verdade e da felicidade, tendo em

vista o perspectivismo que suas ideias fomentam. E numa posição cética por parte de

Nietzsche (2007) frete ao fato da ciência garantir ao homem a felicidade através da verdade, o

autor contrapõe o “homem científico” sendo “conduzido por conceitos e por abstrações, só se

defende contra a infelicidade, sem nem mesmo conseguir a felicidade” (NIETZSCHE, 2007,

p. 92) ao “homem intuitivo”. Mas destaca que este último não é mais feliz que este primeiro.

Sua apreensão do mundo, no entanto, o permite construir uma nova interpretação e

significação do real a sua volta, esta apreensão do mundo se aproxima daquilo que Nietzsche

define por amor fati28

, no que diz respeito ao fato de que,

O homem intuitivo recolhe logo, a partir de suas intuições, ao lado da defesa

contra o mal, uma iluminação de brilho contínuo, um desabrochar, uma

redenção. É verdade que sofre mais violentamente quando sofre: sofre

mesmo mais frequentemente porque não consegue tirar lições da

experiência, recai sempre no sulco em que já caiu. É tão irrazoável na dor

27

Neste ponto, devemos notar que o contraponto dado por Nietzsche a cultura moderna carregada de sentido

histórico, foi justamente a cultura grega pré-socrática. Para o autor, parece não haver diferença entre o sentido

fornecido pelo mito, e o sentido fornecido pela ciência. São discursos, e enquanto discursos não se sobrepõem.

Como a ciência se pretende enquanto discurso verdadeiro, este reencontro do cientista com a arte e o mito

aparece como sendo o exato momento em que o torpor e a dissimulação promovida pela ideia de verdade se

desfaz.

28 Amor ao fato. Se trata de uma espécie da apatia ou de consciência tranquila frente as vicissitudes próprias do

existir. Cristoph Türke (2001) trabalha tal conceito num artigo que engloba a arte cinematográfica e a afirmação

da vida representada pelo conceito de Amor Fati na obra Nietzschiana.

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como na felicidade, grita alto e fica desconsolado. (NIETZSCHE, 2007, p.

92-93)

Eis na última frase, no recair sobre o “sulco em que já caiu” uma afirmação da vida como

ela é em suas vicissitudes, tal afirmação é nada mais que o amor ao fato. Isso, no entanto, é

uma posição adotada que gera uma mudança de personalidade especifica. O autor ainda

compara as duas posições, dizendo que o homem intuitivo e o homem racional podem dividir

a mesma época, é então que lista as consequências criadas pelas duas posturas distintas sob a

personalidade daqueles que a adotam.

Perante a mesma desgraça, como é diferente o estoico, instruído pela

experiência e dominando-se por meio de conceitos! Ele que normalmente, só

procura sinceridade, verdade, liberdade diante das ilusões e proteção contra

as surpresas enganosas, ele põe agora na infelicidade a obra prima da

dissimulação como o outro na felicidade; não possui um rosto humano

móvel e animado, mas traz de certo modo, uma máscara com traços

dignamente proporcionados, não grita e não altera o tom da voz: quando uma

tempestade se abate sobre ele, encolhe-se sob seu manto e se afasta com um

passo lento sob aguaceiro. (NIETZSCHE, 2007, p. 93)

Assim pretende Nietzsche demonstrar busca pela verdade é um esforço vão. E que

discutir a verdade, é um exercício que deve ser feito em face dos valores morais vigentes.

Uma verdade que não é aceita pela maioria não é uma verdade, é uma posição refutada e não

aceita. Decorre disso que segundo Nietzsche (2007) não existe uma “verdade” no sentido em

que a tradição idealista desde Platão tentou construir para o termo “verdade” e o autor assume

perante esta corrente, uma posição perspectivista. E por isso demonstra como o homem

científico movido pela razão apreende suas “verdades cientificas”, e como o “homem

intuitivo”, mais ligado à arte e ao mito, apreende suas “verdades”.

Segundo Nietzsche (2007), o homem intuitivo não mascara sua sensação de niilismo

frente às verdades de que dispõe e que por isso sua personalidade não reflete nenhuma

oposição entre o interior e o exterior. A arte e o mito estão ligados à construção de uma

personalidade propícia a ação, e isso faz uma ligação fecunda com aquilo que foi debatido na

SCI em matéria de ciência, cultura e história.

Isso é algo que necessita ser aqui debatido, tendo em vista uma periodização da obra

de Nietzsche, que antes de discutir história, na sua SCI, compôs uma obra cujo tema foi à arte

e o mito na Grécia antiga. Falamos de O Nascimento da Tragédia no Espírito da Música

(1871) que, diga-se de passagem, é um trabalho cuja investigação emprega métodos muito

semelhantes ao da investigação histórica. Obviamente que a crítica de Nietzsche a história,

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que então não visava excluir os estudos históricos da cultura moderna, mas apenas,

redirecionar seu foco para possibilitar um reencontro com a arte e o mito, ao denunciar que a

ciência além de não garantir a felicidade nesta vida contingente humana, criava seres de

personalidade fraca, para quem o sofrimento tinha um peso amortecedor, ao passo que o mito

e a arte, ao suscitar os sonhos fomentavam as paixões e o agir, proporcionando ao homem

uma propensão a criação artística como forma de vida.

Tomar, portanto o passado histórico como algo que pudesse apreender algo válido e

universal era um exercício fútil segundo a filosofia Nietzschiana. Tal como demonstramos na

discussão acima, levando em consideração o perspectivismo nietzschiano, o conhecimento do

passado poderia gerar tantas interpretações quanto fosse o número de indivíduos que sobre ele

se debruçassem. Basta lembrar, neste sentido, da diferença entre o homem intuitivo e o

homem racional quando ao fato de conservarem uma visão diferenciada quanto à existência e

utilidade das verdades e do sentido fornecido por elas. Logo,

O escopo de Nietzsche era destruir a crença num passado histórico no qual

os homens pudessem aprender qualquer verdade única e substancial. Para

Nietzsche, como para Burckhardt, havia tantas “verdades” acerca do passado

quantas fossem as perspectivas a respeito dele. (WHITE, 1995, p. 340).

Além disso:

Os homens encaravam o mundo por ópticas que se harmonizavam com os

propósitos que os motivavam; e exigiam diferentes visões da história para

justificar os vários projetos que deviam empreender a fim de realizar

plenamente sua humanidade. Basicamente, portanto, Nietzsche dividia as

maneiras como os homens encaravam a história em dois tipos. Um tipo

negador de considerar o passado; e um tipo afirmador da vida (Idem,

Ibidem).

Ora, assim sendo, o conhecimento histórico como sendo uma perspectiva que depende

dos projetos que os indivíduos traçam para realizar plenamente sua humanidade, pode ser

visto sob duas égides, o que por sinal, se trata do exato exercício que Nietzsche empreendeu

na SCI, ou seja, quando o conhecimento histórico está a serviço de uma força criadora, ele

serve a vida. Quando se apresenta como um entrave, se trata, portanto de uma dominação da

vida pela história e pelo sentido histórico que é característica do homem moderno, e que o

leva a tudo conhecer e com nada se encantar, a ponto do seu saber se desvencilhar da vida no

que diz respeito a ação, para a realização de um “projeto de humanidade” que se efetue

plenamente.

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De acordo com os pressupostos Nietzschianos, é justamente neste ponto que a cultura

moderna peca, ao valorizar em demasia a perspectiva cientifica, e fazer com que esta se tome

proporções grandiosas e pretensões universais, de modo que a outra perspectiva seja refutada

por uma maioria e por suas verdades calçadas pelos valores morais vigentes. Assim, contra o

sentido histórico moderno Nietzsche almeja contrapor outras forças: “é necessário opor aos

efeitos da história os efeitos da arte e é somente quando a história suporta ser transformada

em obra de arte, tornar-se um produto da arte, que pode conservar instintos e talvez até

mesmo despertar instintos” (NIETZSCHE, 2008, p. 82), assim é que a II Consideração

Intempestiva se intercala com a construção de uma ideia de verdade cientifica, tendo em vista

os efeitos desta na cultura, e em consequência disso, também sobre os indivíduos humanos e

suas atividades cotidianas, na busca pela realização plena de seu “projeto de humanidade”.

Nietzsche, portanto, não acusa o excesso de história de promover ilusão, ele lista uma

forma de ilusão que fomenta a criação de personalidades mais fortes, em detrimento de outras

tantas ilusões que não o fazem. Hayden White (1995, p. 354) diz que seu interesse ao

promover tais discussões era “pela concepção de Nietzsche de como o pensamento histórico

pode contribuir para a introdução da nova era e pelo que ele acreditava que fosse necessário

para dar ao pensamento histórico o poder libertador da arte trágica”. E assim sendo, segundo

White (1995, p. 354-355) a “Genealogia”, enquanto trabalho cuja metodologia se aproxima

inegavelmente de métodos de pesquisa histórica aparece como uma arma contra o engano

promovido pelos valores modernos, na busca por uma reconciliação com o ideal grego de

cultura.

Dependendo da maneira pela qual olhamos para o passado, podemos encarar o futuro

de uma maneira afirmadora e heróica ou “entrar nele recuando” (WHITE, 1995, p. 356.).

Tendo em vista o peso que o passado pode representar no agir humano, o esquecimento é

louvado na II Consideração Intempestiva como uma força criativa. A esta capacidade de

esquecer, Nietzsche faz menção no texto de UIHV, chamando-a nestes de Força Plástica “para

poder determinar esse grau e, por meio deste, os limites onde o passado deve ser esquecido,

sob pena de tornar-se o coveiro do presente, seria necessário conhecer exatamente a força

plástica de um homem” (NIETZSCHE, 2008, p. 22).

O autor acima citado destaca ainda que nunca houve momento de felicidade que viesse

desacompanhado de uma boa dose de esquecimento, demonstrando como o excesso de

sentido histórico pode contribuir para a construção de personalidades mais fracas, diante do

fato de que estas se encontram em estado de desencantamento para com as coisas que lhe

cerca. Nietzsche (2008, p. 113) chega a chamar essa situação na qual se encontra o homem

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moderno de “abandono da personalidade ao processo universal”. Mediado então por sua força

plástica, o homem moderno pode ter uma relação fecunda para com o conhecimento histórico.

“Pois precisa do serviço da história, [...] só o excesso da história é prejudicial a vida”

(WHITE, 1995, p. 357). E é neste sentido que entendemos as três acepções sob as quais a

história é útil ao homem, e propícia ao se agir criativo.

Na II Consideração Intempestiva, Nietzsche (2008) diz que o homem necessita dos

serviços da história sob a forma monumental, antiquada ou tradicionalista e crítica. Vemos

transparecer também aqui uma posição perspectiva, pois o homem de ação pode se beneficiar

da história de diferentes maneiras de acordo com suas necessidades vitais. Em suma, em

momento algum, enquanto filosofo Nietzsche está a tomar a história por desnecessária, ele

apenas denuncia que a forma com que o homem se relaciona com o conhecimento histórico

pode, ou não, ser profícua, do ponto de vista da sua necessidade vital, e de sua ação criadora.

Segundo Hayden White (1995, p. 364) na SCI, Nietzsche teria se limitado a dizer “o

que não seria uma historiografia criativa, a serviço da vida”, e para tanto, definiu ele as

características historiografias praticadas na modernidade. Nietzsche conferiu ao historiador a

autoridade de a partir de sua perspectiva e sensibilidade adaptar uma obra historiográfica as

necessidades vitais de seu tempo, e em si tratando da doença histórica da qual padece a

modernidade, o próprio Nietzsche ao produzir um trabalho histórico o fez, em atenção a

necessidade moderna de desmistificar e reavaliar os seus valores morais. Foi assim que surgiu

A Genealogia da Moral (ano), que de acordo com Hayden White (1995, p. 364) teria

“praticamente encerrado sua carreira”.

2.2 A perspectiva de Nietzsche sobre a história como um “conhecimento” que pode nos servir

a partir da Segunda Consideração Intempestiva

.

Para entender a perspectiva de história em defendida por Nietzsche como uma

possibilidade para a vida, antes de tudo, se torna necessário uma análise de como Nietzsche

opôs ao espírito apolíneo, uma concepção dionisíaca. Entender tal proposição por parte do

autor seria compreender como o autor contrapõe a ciência moderna (exageradamente

apolínea) uma reconciliação com a arte (dionisíaco). Por consequência, nos servindo dos

textos da SCI, podemos enquadrar a crítica a ciência histórica Nietzschiana nesta perspectiva,

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uma vez que o “excesso” de sentido histórico, evidenciado pelo autor, é justamente uma

sobreposição do espírito apolíneo sobre o dionisíaco.

Para Marton (2001, p. 54), Nietzsche convida a arte a se conciliar com a filosofia para

que ao pensamento seja acrescida uma atitude. Tal reconciliação da arte com a ciência assim

como a vemos a partir da perspectiva epistêmica de Nietzsche desde a SCI, é colocada ao

longo das posteriores obras do autor como sendo uma questão de “saúde” 29

, pois a arte estaria

a restaurar e conservar a saúde de um povo, perdida na dicotomia existente entre um interior

rico que não se reflete numa forma exterior igualmente rica, ou nas palavras de Nietzsche

(2003, p. 33) “uma interioridade que não corresponde a nenhuma exterioridade”. A arte seria

ao mesmo tempo o antídoto e o remédio, pois ao passo que restauraria a saúde ao individuo,

“conservar instintos e até despertá-los” (NIETZSCHE, 2003, p. 59), também reconciliaria a

ciência e a vida, e por consequência, história e vida.

É o que podemos evidenciar a partir da própria SCI. Nesta o autor evidencia o

problema da história. Em sua crítica elenca argumentos contra a objetividade reivindicada

pela “história ciência” que ao se pretender objetiva mata a possibilidade do acontecimento

histórico transmitir ao seu conhecedor uma vontade, que gere uma ação prática. Isso seria

aquilo que Nietzsche chama de supersaturação da modernidade pela história. Nietzsche

(2003) defende mais de uma vez que a arte ou o mito 30

sejam retomados na modernidade

como uma espécie de “salvador” da supersaturação da modernidade pela história e pela

ciência.

Somente através de tal atuação verdadeira, a penúria, a miséria interior do

homem moderno vira a tona e, no lugar daquela convenção e daquela

mascarada amedrontadas e encobridoras, a arte e a religião poderão

finalmente entrar em cena como as verdadeiras salvadoras, a fim de cultivar

conjuntamente uma cultura que corresponda as verdadeiras necessidades, e

não apenas ensine - como a cultura geral de hoje - a nos iludirmos quanto a

estas necessidades e a nos tomarmos, por meio delas, mentiras ambulantes.

(NIETZSCHE, 2003, p. 43).

Ora, a uma cultura que ilude ao construir a noção de que apenas a perspectiva objetiva

e cientifica é verdade, e que por isso propicia um exacerbado acumulo de conhecimentos

29

Tal metáfora fisiológica se encontra no texto de A Genealogia da Moral.

30 Nietzsche formou, desde a universidade, um grande apresso pela cultura Grega pré-socrática. Diz ele no texto

de O Crepúsculo dos Ídolos que em sua época de maior vitalidade, os gregos produziram musica e mito. E em

sua época de decadência, produziram filosofia. Mito para Nietzsche aparece como sendo uma forma de

expressão cultural e artística da visão de mundo e da forma de pensamento grega pré-socrática.

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desvencilhados de qualquer utilidade do ponto de vista vital, Nietzsche (2003) contrapõe,

como podemos ver na citação acima, uma reconciliação com a arte, unicamente por que

ciência, metafísica, e arte são diferentes formas de discurso cujo único objetivo seria propiciar

confiança na vida, em outras palavras, sentido existencial. Nada há de verdade em um tipo

especifico que dê a este maior validade em face de outros.

Para Nietzsche “a metafísica, a moral, a religião, a ciência - são tomadas em

consideração nesse livro apenas como diferentes formas da mentira: Com seu auxí1io

acredita-se na vida. A Vida deve infundir confiança”. (NIETZSCHE, 1999, p. 47). De

maneira geral, tal desdém para com a ideia de um discurso científico que se sobrepõe, por ser

verdadeiro, a outras formas de explicações da realidade prevalece também na SCI. Ainda

neste texto, ao falar da pretensão de objetividade da história, Nietzsche argumenta que

enquanto discurso (ainda que discurso científico), a história não se sobrepõe a outras formas

de explicação como fornecedora de sentido. Diz ele: “Isso [a história tal como é feita na

Alemanha do século XIX] seria uma mitologia, e, além disso, uma mitologia muito ruim”

(NIETZSCHE, 2003, p. 52).

Sendo a história comparada a mitologia ela não é capaz de construir “verdades” que se

oponham a “arte” ou a “mitologia” dentro de uma dicotomia verdade-mentira. Toda esta

questão recai numa discussão imoralista, pois a ideia de verdade, como já foi explicitada no

tópico anterior é tida como um preconceito de ordem moral na obra de Nietzsche. Segundo

Nietzsche (2003, p. 52), apesar de toda a pretensão de objetividade, o trabalho do historiador

não seria diferente do trabalho do dramaturgo. O trabalho de ambos se assemelha, pois, são

responsáveis por imaginar e conceber os fatos como se fosse uma pintura, uma imagem e isso

exigem certo “impulso artístico”.

O artista (dramaturgo) somente o faz de maneira mais livre, ao passo que o historiador

se submete a regras e a métodos que visam garantir a objetividade dos resultados, e com isso

apenas consegue tornar seu trabalho uma obra de qualidade inferior, ou como o próprio

Nietzsche (2003, p. 52) insiste em dizer, uma “mitologia ruim”. Historiador e dramaturgos

permanecem assim separados, cientista e artista conservam entre si uma distancia fomentada

pela ideia de verdade. O historiador na modernidade, como nos aponta Nietzsche (2003),

ainda se coloca incessantemente a buscar por novos objetos, e a estender seu olhar de cientista

para onde quer haja a um devir o que gera uma hipertrofia da história (erudição excessiva).

Em suma, Nietzsche (2003), em sua SCI é categórico ao afirma que a “história

ciência” somente será capaz de despertar no individuo uma ação, ou estará em consonância

com as necessidades vitais de um individuo ou uma época a partir do momento em que esta se

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reconciliar com a arte. “A história é o oposto da arte e somente se a história suporta converter-

se em obra de arte, ou seja, tornar-se pura forma artística ela pode, talvez, conservar instintos

e até despertá-los” (NIETZSCHE, 2003, p. 59). Para compreender tal relação entre ciência e

arte e por consequência evidenciar de maneira mais profunda a perspectiva epistêmica de

Nietzsche, se torna necessário entender como Nietzsche contrapõe ao espírito apolíneo, aquilo

que ele chamou de dionisismo31

.

Tais conceitos aparecem trabalhados na primeira obra publicada de Nietzsche, O

Nascimento da Tragédia no Espírito da Música, nesta Nietzsche contrapôs ao otimismo

Socrático (científico – apolíneo) outra força, a Tragédia (Arte – dionisíaca). Para o filosofo,

Sócrates32

inaugura as práticas que na modernidade culminam na “hipertrofia” dos domínios

da ciência.

Que se tome claramente consciência como desde Sócrates, o mistagogo da

ciência, as escolas filosóficas foram se substituindo uma a outra como as

ondas, como a ânsia de saber se expandiu nos países mais longínquos como

uma universalidade imprevista, como a ciência conduziu em alto-mar os

espíritos mais dotados como se se tratasse de uma verdadeira vocação, sem

que jamais, desde então eles pudessem ser completamente desviados dela,

como esta universidade do saber encerrou uma única rede de conhecimento o

globo terrestre inteiro, até mesmo com um olhar sobre as leis de todo o

sistema solar; que se apresente tudo isso, e inclusive a pirâmide

assombrosamente alta do saber atual, sem que se possa ser impedido de ver

em Sócrates a vidada, o pivô do que é chamado história universal.

(NIETZSCHE, apud, LEFRANC, 2008, p. 65).

Sócrates é apontado no livro O Crepúsculo dos Ídolos como sendo um Decadent33

,

ainda que este pertencesse ao universo grego, para Nietzsche ele figura como sendo um

divisor de concepções. Ele marca a sobreposição do apolíneo (razão) por sobre o dionisíaco

(arte/mito). Desde Sócrates, como uma sucessão ininterrupta de correntes se manteve o

escopo da ciência, e Sócrates representa esse marco ente aqueles que são pré-socráticos e

31

Apolo e Dioniso, que Segundo Brandão (1995) são importantes divindades gregas, são utilizados por

Nietzsche enquanto analogia para traduzir as formas de criação artística na Grécia pré-socrática.

32 Filosofo grego – Ensinava em praça publica empregando para isso o método maiêutico, que consistia em

dirigir perguntas ao interlocutor até fazê-lo admitir seu erro. Foi condenado a morte pela acusação de corrompe a

juventude Ateniense. Conhecemos sua filosofia somente por que Platão, seu discípulo fez dele o personagem

principal de suas obras.

33 Vocábulo do idioma francês que equivale a “decadente”. Palavra amplamente utilizada por Nietzsche para se

referir a Sócrates em um texto intitulado “O Problema de Sócrates”, constante aqui na bibliografia reunido a

outros textos de autoria de Nietzsche sob o titulo de Os Pensadores – Nietzsche.

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51

aqueles que vieram depois dele. Em suma, Sócrates se liga ao problema da ciência moderna

em Nietzsche por que ele é o primeiro a se reter exclusivamente em “questões propriamente

humanas, [que em suma são] as questões da moral” (LEFRANC, 2008, p. 66). Jean Lefranc

(2008, p. 66), comentador da obra de Nietzsche, atenta para a relação entre ciência e arte na

modernidade, tendo em vista os estudos feitos por Nietzsche da Grécia antiga pré-socrática.

Este autor diz: “a tese de Nietzsche será exatamente que a ciência, a ciência mais moderna,

aquela que se passa por desinteressada, a mais objetiva, também supõe uma “crença” de

ordem moral”.

A questão de ordem moral que a ciência moderna supõe é a pretensão de verdade

(objetividade) para os antropomorfismos (conceituações) promovidos pelos cientistas

modernos. E Sócrates representou para Nietzsche um exemplo de “crença” na “verdade” de

uma proposição filosófico-metafísica que levou um homem a aceitar passivamente sua

sentença de morte, tal como nos mostra Lefranc (2008, p. 60 – 66). Em suma, uma vez que

Sócrates representa esse marco divisor de períodos, o plano de redenção da ciência moderna

arquitetado por Nietzsche a partir da conciliação entre ciência e arte (apolíneo e dionisíaco)

ele se lança para um período anterior a Sócrates.

A Origem da Tragédia no Espírito da Música tem um recorte temporal atento a esta

questão, uma vez que neste trabalho Nietzsche se propõe a vasculhar analisar e interpretar a

arte e o pensamento pré-socrático. Para White (1995, p. 345), Nietzsche reconhecia nesta obra

que “os gregos tinham sido os primeiros a reconhecer quanto a vida humana dependia das

faculdades mitopéicas do homem, de sua capacidade de se dedicar a um sonho de saúde e de

beleza em face de sua própria aniquilação eminente”. Como O Nascimento da Tragédia tem

por objetivo apontar em Sócrates a guinada rumo a uma forma cientifica-moral de explicar a

vida humana, toda esta obra representa também uma análise histórica de como o “sentido

histórico” se sobrepõe a “arte”, separando, a partir da revolução socrática, aquilo que na

modernidade Nietzsche pretende reconciliar: a ciência e a arte.

Depois de analisar ao longo de seu livro a arte trágica e a conjugação de aspectos

dionisíacos e apolíneos, Nietzsche encerra seu livro evidenciando esta tese. Segundo White

(1995, p. 344), “o nascimento da tragédia encerra-se com uma análise da oposição do “senso

histórico” à consciência “mítica”. Nietzsche queria libertar o homem não do mito, mas das

“ilusões” de que a “história” ou o “processo histórico” era representante”. Em sua perspectiva

epistêmica, Nietzsche não busca, portanto, fundamentar a ideia de uma Ciência que se

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sobreponha a outras formas de explicação da realidade34

. Pelo contrário, sua tese é de que

somente a partir de uma reconciliação com a arte, a ciência seria capaz de transmitir ao

individuo uma predisposição para a ação, uma força criativa que impulsione o individuo a

criar coisas novas e se impelir para o futuro com maior vontade e de forma afirmativa. A essa

“nova” ciência, renovada a partir da ciência moderna, Nietzsche chama de o “Alegre saber”

expressão que se tornou o subtítulo de A Gaia Ciência (2006).

É justamente pelo dialogo que conserva O nascimento da Tragédia (1999) com a

Segunda Consideração Intempestiva (2003), que Nietzsche aponta nesta última os gregos

(especialmente os pré-socráticos) como sendo o povo cujo “sentido histórico” não prevaleceu

por sobre outras forças, como a arte. Também os destaca enquanto sendo a cultura que apesar

dos perigos se conservou autêntica frente os perigos, a partir de um perspicaz uso de forças

apolíneas e dionisíacas.

Houve séculos em que os gregos se encontravam diante de perigo

semelhante aquele no qual nos encontramos, a saber: o da inundação pelo

estranho e pelo passado, perecer junto a “história”. Eles nunca viveram em

uma orgulhosa inviolabilidade por muito tempo, sua “cultura” foi muito mais

um caos de formas e conceitos estrangeiros, semitas, babilônicos, lídios,

egípcios, e sua religião era uma verdadeira batalha entre os deuses e todo o

Oriente: mais ou menos semelhante como agora a “cultura alemã” e a

religião são, um caos em si cheio de lutas entre todos os estrangeiros e todo

o passado. (NIETZSCHE, 2003, p. 98)

Ao caos apontado aqui por Nietzsche, temos a desorganização e a desordem típica de

Dionísio, a esta, no entanto o grego contrapõe Apolo. Pensamento e forma aparecem assim

consonantes e não há nesta cultura a dicotomia moderna interior versus exterior.

Entretanto, graças à sentença apolínea, a cultura helênica não se tornou

nenhum agregado. Os gregos aprenderam palatinamente a organizar o caos

conforme se voltam para si de acordo com a doutrina délfica, ou seja, suas

necessidades autenticas e deixam morrer as aparentes. Desta feita, eles se

apossaram novamente de si mesmos, não permaneceram por muito tempo os

herdeiros, os epígonos sobrecarregados de todo o Oriente; Eles se tornaram

eles mesmos, depois de um lento combate consigo e por meio da

interpretação pratica daquela sentença, os mais felizes enriquecedores e

proliferadores do tesouro herdado e os primogênitos e modelos de todos os

povos e cultura vindouros. (NIETZSCHE, 2003, p. 98-99)

34

Em um texto denominado A Arte em “O Nascimento da Tragédia” datado de 1888, Nietzsche diz que

metafísica, moral, religião e ciência são tomadas no livro O Nascimento da Tragédia apenas como formas

diferenciadas de mentira, que auxiliam o homem a acreditar na vida. Elas devem, portanto, estar a serviço desta

ultima.

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Nietzsche demonstra assim, na conclusão do problema exposto na SCI como os gregos

são um “modelo” de superação pela arte do problema que acomete a modernidade. Todo o

problema tratado nesta consideração se encontra resumido nas duas citações acima,

demonstrando como os gregos de forma perspicaz resistiram à imposição do sentido histórico,

do acúmulo de coisas e épocas estrangeiras em si e superaram assim o problema de uma

cultura sem forma. Os gregos foram exatamente por isso mais autênticos, qualidade que

Nietzsche não consegue ver na cultura moderna.

Desde O Nascimento da Tragédia persistiu em Nietzsche o marco da cultura grega que

em sua época de “saúde” produziu arte e mito, e em sua decadência produziu “filosofia” 35

.

Na concepção de Nietzsche (1999, p. 47), para resolver o problema da existência, da vida o

homem “precisa, mais do que outra coisa, ser artista”. A arte é a fuga, é a redenção e o

refugio. “Ela [a arte] é a grande possibilitadora da vida, a grande aliciadora da vida, o grande

estimulante da vida”. Essa é a lição que tomamos ao cruzarmos O Nascimento da Tragédia, e

a SCI. Através disso, podemos também evidenciar a perspectiva epistêmica de Nietzsche, que

não defende uma história-ciência, tampouco pretende que esta seja subjulgada pela arte. Mas

diante do exposto acima, nivela arte, ciência, metafísica e religião e os subjulga à vida. A

tarefa destes seria justificar a própria vida e não dominá-la e não miná-la, tal como é o caso da

crítica a história contida na Segunda Consideração Intempestiva (2003).

2.3 A história em consonância com a vida: A genealogia da moral em face dos pressupostos

da Segunda Consideração Intempestiva.

O exercício de superação para o qual Nietzsche conclama a juventude parece exigir

desta que ela se coloque na situação de criador de novos valores a partir de novas

experiências, nas palavras do próprio autor “se opor ao que apenas sempre repete o já dito, o

já aprendido, o já copiado”, como veremos a seguir, na opinião de Nietzsche para que isso

aconteça, uma revisão dos valores morais precisa ser engendrada. Segundo Foucault (1979, p.

26 - 27), diante dos pressupostos da filosofia Nietzschiana, se lançar para o futuro de forma

35

Tese defendida no texto O Problema de Sócrates. Consta nas referencias sob o titulo de Obras Incompletas

(1999).

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criativa, exige do individuo que este não se prenda a nada de forma “absoluta”, e que tome

por perspectivo até mesmo aos valores morais vigentes.

Isso é uma alegoria para cada individuo entre vós cada um precisa organizar

o caos em si. De modo que se concentre em suas necessidades autenticas.

Sua sinceridade e seu caráter vigoroso precisam se opor ao que apenas

sempre repete o já dito, o já aprendido, o já copiado. Assim ele começara a

compreender que a cultura também pode ser outra coisa do que decoração

da vida, o que no fundo significa ainda sempre dissimulação e disfarce; pois

todo adorno oculta o adornado. Assim se desvelara o conceito grego de

cultura (NIETZSCHE, 2003, p. 99).

Esta citação pertence à conclusão da SCI, Nietzsche tendo com sua argumentação

desconstruído muito daquilo que o seu século era orgulhoso, conclama a juventude a

reorganizar o caos, a reconstruir o que foi desconstruído a partir de necessidades autenticas.

Contra tudo que o autor identificou como infecundo na cultura moderna, ele elege a cultura

grega como antídoto. Sobretudo para o excesso de história que Nietzsche não identificou

nesta ultima, que era um exemplo de cultura “sem dentro e sem fora, sem dissimulação e

convenção, com uma unanimidade entre vida, pensamento, aparência e querer”

(NIETZSCHE, 2003, p. 99).

Nestes termos é que o autor, para descaracterizar o paradigma de ciência moderno,

critica a história. E criticando a história, se mostra nostálgico de uma cultura onde o sentido

histórico não crie dicotomias pautadas na erudição pela erudição, negligenciando assim a

vivência (experiência) e, para usar as palavras de MARTINS (2002, p. 14.), o “agir humano

que modifica o mundo”.

O homem que está predisposto a agir, e a criar, consegue retirar da história uma

utilidade. LEFRANC (2008) diz que é somente em face dos pressupostos historicistas que

devemos entender as três formas listadas por Nietzsche, referentes a maneira na qual a história

pode ser útil ao homem de ação.

Para o homem que age, uma força é essencial para preveni-lo do excesso de história.

Nietzsche denomina tal força de força plástica, e é ela quem determina em que grau o passado

pode agir sem se tornar “coveiro do presente” (NIETZSCHE, 2003, p. 10). Em alguns

homens, tal capacidade de esquecer e se desvencilhar do peso do passado é tal ínfima que um

único fato tido por este como prejudicial é capaz de colocá-lo numa situação de

intranquilidade quanto ao presente e ao futuro. O homem possuidor de força plástica, essa

capacidade de mediar o uso do passado como direcionador da ação no presente, este conserva

perante as injurias e injustiças do passado um determinado “bem estar e uma espécie de

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consciência tranquila” (NIETZSCHE, 2003, p. 10). Entendemos a força plástica como uma

capacidade de esquecer o passado na medida em que isso é útil ao individuo e seus objetivos,

que são projeções futuras que, no entanto, necessitam de ações no tempo presente. NETO

(1989, p. 351) afirmou que “a história algema o homem ao passado, que como um fantasma,

assombra e perturba a paz do presente. É, então, fundamental aprender a esquecer”. Munido,

portanto da capacidade de esquecer, na medida em que o passado pode se tornar prejudicial, o

individuo pode se servir dos serviços da história sob três perspectivas: Monumental,

Tradicionalista e Crítica.

Não significa evidentemente que é necessário se prender a uma destas visões, nem

tampouco devemos tentar medir o valor de uma frente a outra, a exemplo de como a história

crítica garantiria maior objetividade do que a história monumental. Sobre a pretensão de

busca por objetividade, já discorremos anteriormente. Como destaca NETO (1989, p. 360),

os três tipos de história listados acima estão ligados “a diferentes tipos de necessidades

vitais”, e, portanto, para o homem que sofre e necessita de libertação, somente uma postura

critica diante do passado é verdadeira. Ao passo que para o homem pragmático e de ação

somente a perspectiva monumental poderia ter valor. Trata-se em suma das varias

perspectivas interpretativas suscitadas pela contemplação do passado e de como o homem

pode colocá-las a serviço de suas vivências.

Desta forma a história deixa de apenas desconstruir a paixão do homem pela ação, ao

tomar os atos passados do homem como objeto de estudo científico, e passa a alimentá-la e

fomentá-la.

Portanto Nietzsche estabeleceu bem depressa, desde a Segunda Intempestiva

o vinculo entre o historicismo, a pesquisa do ponto de vista histórico, ultimo,

absoluto, e o positivismo, a pesquisa da objetividade cientifica. Trata-se

sempre de uma recusa do perspectivismo, da “infinidade” do perspectivismo

para instalar-se num além que escapa de todo colocar em perspectiva; assim

nem o historicismo hegeliano ou positivista da “cultura histórica”, nem

geralmente o ideal cientifico moderno podem evitar uma postulação

teológico-metafísica, que eles no entanto estão persuadidos de terem

rejeitado. (LEFRANC, 2008, p. 291).

Em seu conjunto, a Segunda Intempestiva se constitui como uma crítica as

características da ciência moderna, e não somente a história. Nietzsche lista em sua crítica da

história, a veemente reprovação de elementos constituintes da filosofia da história, do

historicismo e do positivismo. Busca a partir disso reestabelecer, a partir de uma crítica dos

valores modernos, uma cultura nos moldes daquela identificada por ele na Grécia antiga, onde

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conhecimento e ação não estavam dissociados e não havia nenhuma dicotomia entre um

interior/exterior. Quanto à ciência, ela deve se reconciliar com a arte, proporcionando ao

homem a possibilidade de subverter o pessimismo característico na modernidade, não por um

otimismo, mas por um otimismo trágico. Segundo LEFRANC (2008, p. 93), tendo rompido

com Schopenhauer, o filósofo pessimista, Nietzsche se pergunta se “não é ele mesmo o

primeiro filosofo trágico, o sucessor direto dos pré-socráticos”. A guerra de Nietzsche, é,

portanto contra a moral de cunho cristão como pode-se comprovar através da leitura de suas

obras posteriores às Considerações Intempestivas, e neste contexto estas quatro

considerações, na pretensão de se construir um pensamento extemporâneo, podem ser vistas

como sendo apenas uma batalha, num conflito maior.

Pois bem, é neste conflito contra a moral que Nietzsche instrumentaliza a história de

uma maneira que esta estará em consonância com as necessidades vitais de sua época, no caso

a época moderna. Para o autor, a principal necessidade moderna era a “transmutação de todos

os valores” que permite ao homem engendrar um processo de auto-superação que daria

origem ao Übermesh (super-homem) previsto por Zaratustra. Nas palavras de Ferez (Apud

NIETZSCHE, 1999, p. 11): transmutação de todos os valores seria: “uma saída das mentiras

de dois mil anos” esta traria consigo “o novo homem que se situa para além do próprio

homem”. No livro Assim Falou Zaratustra (ano) um aforismo traz uma analogia para o

problema da ruminação dos valores morais, que compara esse exercício com o ruminar das

vacas. Estas comem toda a sorte de alimento durante o dia, porém, a noite tal alimento retorna

para uma remastigação, para uma segunda seleção. Esta “remastigação”, esta “segunda

seleção” precisa acontecer, segundo Nietzsche (2011), com os valores morais.

A Genealogia da Moral faz esta tarefa, “rumina” aquilo que de os homens acreditaram

ser mais pétreo e verdadeiro, portanto, inquestionável: Os valores morais. Esta tarefa era uma

tarefa árdua e perigosa. Nietzsche parecia ter consciência disso, escreveu ele como epigrafe a

um capitulo no qual falava de moral em A Gaia Ciência (2006) a seguinte epígrafe: “tremes

carcaça? – Tremerias ainda mais se soubesse para onde te levo”. A investigação histórica

contida em A Genealogia da Moral procura pela “origem” das ideias de bom e mau. Nisso

temos em Foucault (1979) o que representaria a pesquisa genealógica na obra de Nietzsche

revisita as discussões feitas pelo autor a respeito do sentido histórico na SCI.

O objetivo de Foucault é se desviar de um possível mal entendido, de achar que a

crítica contida naquela obra de Nietzsche visasse excluir os estudos históricos em prol de

qualquer outra forma de saber científico, ou expressão artística. Foucault conclui que o uso da

pesquisa genealógica, enquanto pesquisa de “sentido histórico” por Nietzsche não se compõe

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numa contradição explicita por que o autor se serve do sentido histórico para a partir dele

demonstrar como superar a hipertrofia da Ciência no século XIX. Ou seja, “o sentido histórico

escapara da metafísica para tornar-se um instrumento privilegiado da genealogia se ele não se

apoia sobre nenhum absoluto” (FOUCAULT, 1979, p. 27). A genealogia é, portanto, como

aponta o próprio Nietzsche (2003, p. 69) no oitavo capítulo da SCI a história a resolver o

problema da própria história.

No prefácio da genealogia da moral temos exposto o objetivo do livro e da pesquisa

genealógica. Tal objetivo mantém o evidencias da intenção de vivificar a cultura moderna

livrando-a da ciência sem vivificação. Tanto Foucault (1979, p. 26), quanto White (1995, p.

364) identificam na Genealogia dos valores morais promovidas por Nietzsche um exemplo do

que seria uma “supra-história” tal como Nietzsche a define na SCI. “Denominamos supra-

histórico um tal ponto de vista, porque alguém que o assume não poderia mais se sentir de

maneira nenhuma seduzido para continuar vivendo e colaborando com o trabalho da história”

(NIETZSCHE, 2003, p. 14). Definitivamente, então Nietzsche nos aponta uma forma sobre a

qual a história poderia estar a serviço da vida, e atenta às necessidades vitais da época

moderna.

Em A Gaia Ciência (2006), Nietzsche descreve em um aforismo aquilo que seria uma

história “para aqueles que gostam de trabalhar”36

. A história segundo ele ainda não se teria

atentado para coisas que a história deveria tomar por objeto. Segundo Nietzsche (2006, p. 45),

tudo aquilo que poderia dar “cor a existência” não teve ainda uma “história”. Lista ele alguns

temas que poderiam ser objeto de uma história: A consciência, a avidez, a vontade, piedade e

crueldade. Obviamente que, como ressalta Foucault (1979, p. 30) a “história efetiva” para

Nietzsche seria aquela que não teme ser “um saber perspectivo”. Tendo apontado alguns

temas que careciam de uma história, Nietzsche aponta um de seus objetivos “seria outro

trabalho determinar o que há de errôneo em toda justificação e em todos os juízos morais

produzidos até o presente” (NIETZSCHE, 2006, p. 46). A este trabalho Nietzsche se dedicou

em seu livro A Genealogia da Moral.

Em tal obra Nietzsche questiona o valor da moral, demonstrando seu caráter

dissimulador e ilusório, o filosofo pretendia demonstrar que mesmo a moral era apenas mais

uma forma de “mentira” 37

, equivalente a arte e a metafísica, e que sua única função era

justificar a vida.

36

Este é o título do aforismo nº 7, de A Gaia Ciência, Ed. Escala, 2006.

37 Preceito encontrado no texto “A Arte em O Nascimento da Tragédia” datado de 1888.

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[o problema de A Genealogia da Moral] Tratava-se, em especial, do valor

do “não-egoísmo”, dos instintos de compaixão, abnegação, sacrifício, que

precisamente Schopenhauer havia dourado, divinizado, idealizado, por tão

longo tempo que afinal eles lhe ficaram como “valores em si”, com base nos

quais ele disse não à vida e a si mesmo. Mas precisamente contra esses

instintos manifestava-se em mim uma desconfiança cada vez mais radical,

um ceticismo cada vez mais profundo! Precisamente nisso enxerguei o

grande perigo para a humanidade, sua mais sublime sedução e tentação — a

quê? ao nada? —; precisamente nisso enxerguei o começo do fim, o ponto

morto, o cansaço que olha para trás, a vontade que se volta contra a vida, a

última doença anunciando-se terna e melancólica: eu compreendi a moral da

compaixão, cada vez mais se alastrando, capturando e tornando doentes até

mesmo os filósofos, como o mais inquietante sintoma dessa nossa

inquietante cultura europeia; como o seu caminho sinuoso em direção a um

novo budismo? a um budismo europeu? a um — niilismo? (NIETZSCHE,

2009, p. 03)

Como podemos ver os valores morais, e os preconceitos deles advindos, aceitos até

mesmo dentre os filósofos, era objeto do ceticismo de Nietzsche. Ao fim da citação o filosofo

faz menção ao Niilismo, situação da qual a Europa moderna era refém, por que sua ciência

dava ao tipo humano moderno a sensação de ser epígono. O “olhar cientifico moderno” ao se

dirigir para outras épocas não visa inspiração para a ação criativa, mas sim faz um balanço

“apocalíptico” de todas as épocas passadas. Este é o niilismo causado pelo excesso de sentido

histórico, pois, segundo Nietzsche (2009, p. 7), ninguém na modernidade leva a sério “o mais

da vida”, no caso, as “vivências”. Estas se perderam na erudição pela erudição, “nosso tesouro

está onde estão as colmeias de nosso conhecimento”. Nietzsche prevê a superação deste

niilismo mantido pelo sentido histórico, mas assume uma posterior recaída noutro niilismo,

que implicaria a acepção do Eterno Retorno38

do mesmo e do Amor Fati. Jean Lefranc (2008,

p. 188-201) defende uma relação próxima entre niilismo e vontade de poder. O instinto

criador em Nietzsche adviria da aceitação do eterno retorno e da necessidade de auto

superação, condições para o surgimento do super-homem. O niilismo europeu, comparado por

Nietzsche a um budismo europeu precisava ser superado, por que representava um entrave a

ação criativa humana. Nesse ponto, tais pressupostos fazem relação direta com toda a

problemática trabalhada ao longo deste estudo. No entanto, a superação deste niilismo

europeu não representa o fim de todo niilismo, mas sim o inicio de outro.

38

Principio divulgado por Zaratustra em Assim Falou Zaratustra (ano), segundo o qual tudo há de retornar

eternamente ao que já foi. Tal conceito revela uma concepção de tempo em Nietzsche, centrada não na evolução

temporal cronológica, mas no momento e no instante.

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Para Hayden White (1995), existe um Nietzsche-imoralista que desde A Origem da

Tragédia no Espírito da Música compôs uma crítica à forma como a cultura moderna se

inundou de preconceitos de ordem moral. “Na opinião de Nietzsche a cultura europeia

alcançaria os limites exteriores de sua própria alienação. Alguma coisa fora conquistada; a

vontade tinha sido salva, ainda que só para o vazio” (WHITE, 1995, p. 377.). A genealogia

dos valores morais promovida por Nietzsche tinha como objetivo, para utilizar das palavras de

Foucault (1979), denunciar a origem histórica “baixa” 39

dos valores morais, ao passo que o

próprio Nietzsche (2009, p. 07) reconheceu que em sua juventude creditou a Deus a origem

destes valores. Em suma, tal obra simboliza a história a resolver o problema da história na

cultura moderna, representa um chamado a uma “consciência histórica nova” (WHITE, 1995,

p. 377). Segundo White (1995), temos no “novo historicismo” projetado por Nietzsche a

superação do problema do sentido histórico na modernidade, tendo em vista a necessidade de

reconciliar ciência e vida.

2.4 A filosofia de Nietzsche, o que fortalece e enfraquece a vida: a história como fomento

para a ação criadora e a vida afirmativa.

Toda a crítica Nietzschiana da história exposta anteriormente, se dava no sentido de

possibilitar a redenção do homem moderno do niilismo que se via inundado de uma ciência

que não estaria em consonância com uma corrente de vida. Dizia Nietzsche na SCI (2008, p.

15) que há uma maneira de se encarar e fazer história segundo o qual o futuro se “estiola”. A

SCI propõe argumentar contra esta forma de fazer história em prol de uma forma

historiográfica que se reconcilie com as necessidades vitais dos indivíduos, ou de uma época.

É neste sentido que Nietzsche busca fazer a Genealogia dos valores morais. Como vimos é a

partir do nosso autor a história para resolver o problema da história. É, em suma, um exemplo

de como a história poderia ser encarada ou feita em consonância com as necessidades vitais

dos indivíduos modernos contemporâneos a Nietzsche.

Segundo White (1995, p. 339), para Nietzsche, a ciência deveria estar em consonância

com um projeto de humanidade especifico. Em suma o problema da história em Nietzsche

39

Frase encontrada no texto Nietzsche e a Genealogia, in: A Microfísica do poder (1979). Diz ela: “Todo

começo histórico é baixo”.

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60

gira em torno de como “aplicar as ideias históricas a finalidades criativas” (WHITE, 1995, p.

339). Pois, pode-se então listar uma forma de encarar e fazer a história que constrói seres

humanos “fortes”, e um tipo que constrói seres humanos “fracos”40

. De forma geral, essa

dicotomia é encontrada em toda a filosofia Nietzschiana desde O Nascimento da Tragédia, e

persiste nas Considerações Intempestivas uma vez que estas são a tentativa de construção de

uma cultura forte e vivaz, em oposição ao conjunto de fenômenos que Nietzsche identifica

como sendo a cultura alemã moderna41

.

No que diz respeito a história especificamente, segundo White (1995), a tal dicotomia

entre uma duas formas de história é evidente:

Nietzsche dividia as maneiras como os homens encaravam a história em dois

tipos: um tipo negador da vida, que pretendia encontrar o único modo

eternamente verdadeiro, ou “correlato”, de considerar o passado; e um tipo

afirmador da vida, que estimulava tantas visões decibéis da história quantos

projetos houvesse de alcançar uma consciência de si nos seres humanos

individuais. (WHITE, 1995, p. 340).

Como foi demonstrado nos tópicos anteriores, Nietzsche (Genealogia da Moral)

enquanto filósofo imoralista, se coloca a criticar e reavaliar o valor da moral vigente na

Alemanha do século XIX. Para Nietzsche (2007, p 17), adviria de um preconceito de ordem

moral a “crença” na “verdade” dos conhecimentos científicos, construídos sobre o pilar da

objetividade. No entanto, devemos explicitar tal crítica da ideia de verdade, dentro da filosofia

Nietzschiana não reside apartada de uma posição anticristã. Posição esta que foi adotada por

Nietzsche em diversos textos e aforismos, mas que aparece de forma mais delineada em O

Anticristo (1888).

Segundo White (1995, p. 340) “o desejo de acreditar que havia uma única ideia

eternamente verdadeira ou correta da história era, na opinião de Nietzsche, outro vestígio de

nossa necessidade cristã de acreditar no único Deus verdadeiro”. A crítica de Nietzsche a

ciência moderna, e em consequência a crítica nietzschiana da história, estaria assim

indissociável de uma ideia muito bem desenvolvida nos últimos textos de Nietzsche: A ideia

40

Lefranc (2008) busca desvencilhar a oposição forte e fraco utilizada por Nietzsche de concepções darwinistas.

Devemos entender tais oposições aqui tendo em vista a objeção que a filosofia nietzschiana faz da religião cristã

que criou, a partir de valores morais específicos, um tipo humano que Nietzsche diz ser fraco, ou decadente.

41 Em inúmeros aforismos ele criticou a cultura alemã, em A Gaia Ciência (2006), transparece melhor tal crítica

especificamente no aforismo 357, onde o autor se pergunta sobre “o que é ser alemão”.

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61

de que uma forma efetiva de fazer a ciência promoveria um processo de auto superação

humana, e que tal processo de superação poderia dar origem ao Super-homem Nietzschiano.

O conceito de Super-homem em Nietzsche aparece de forma mais explicita em Assim

Falou Zaratustra (1882-1885). Julião (2000, p. 204-205) defendeu em sua tese que na obra

Assim Falou Zaratustra a missão de Zaratustra era justamente espalhar o ensinamento da

superação de si. E tal doutrina, possibilitaria aos homens as condições para que se tornassem

aquilo que eles realmente eram: Uma ponte entre os macacos e o super-homem

Nietzschiano42

.

A dinâmica do mundo se dá, devido a uma relação orgânica entre a ideia de

superação e de contradição, ou seja, todas as coisas se encontram numa

relação de disputa umas com as outras, em busca do domínio, da

intensificação, do aumento, em ultima instancia, da superação. É desse modo

que se encontra o mundo de Zaratustra, é nesse contexto de contradições que

se desdobra a ação dramática do tornar-se o que se é. (JULIÃO, 2000, p.

205).

Assim, sendo no contexto geral da obra Nietzschiana a superação do niilismo europeu,

na modernidade seria uma decorrência da crítica dos valores morais de cunho cristão. Pode-se

por mais de uma vez tirar testemunho disso dos aforismos escritos por Nietzsche. Em A Gaia

Ciência (2006), por exemplo, ele diz: “Viver, isso significa, portanto: Não ter piedade dos

moribundos, dos miseráveis, dos anciãos? Ser assassino sem cessar? – E no entanto, o velho

Moisés disse: “não matarás.” (NIETZSCHE, 2006, p. 62). Nestas palavras, o autor se serve

de uma analogia para identificar nos “moribundos”, “anciãos” e “miseráveis” os

representantes da profissão de uma moral de cunho cristão no meio social. Podemos ver

explicito o “chamamento para a ruminação dos valores” no anuncio da morte de Deus.

Uma vez que Deus está morto, não há mais além, não há mais consolo ou espera. O

homem necessita de auto afirmar-se enquanto criador de valores. No aforismo 125 de A Gaia

Ciência um homem louco com uma lanterna em pleno dia balbuciava seus lamentos pela

perca da divindade:

42

Tese anunciada pelo próprio Zaratustra ao discursar em praça publica na primeira parte de Assim Falou

Zaratustra. No entanto, como a plateia se encontrava a esperar pelo show circense que se aproximava, ninguém

deu ouvidos as ideias professadas por Zaratustra em seu discurso sobre o homem e sua condição. Como o

homem teria evoluído de um primata (macaco), um processo continuo de autosuperação seria capaz de dar

origem a uma outra espécie, tão mais aprimorada em relação ao homem moderno, quanto este o é em relação ao

primata primordial.

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62

Para onde foi Deus? – exclamou – É o que vou dizer. Nós o matamos –

vocês e eu! Todos nós, nos somos os seus assassinos! Mas como fizemos

isso? Como conseguimos esvaziar o mar? Quem nos deu uma esponja para

apagar o horizonte? Que fizemos quando desprendemos esta terra da

corrente que a ligava ao sol? Para onde vai agora? Para onde vamos nos?

Longe de todos os sóis? Não estamos incessantemente caindo? Para diante,

para trás, para o lado, para todos os lados? Haverá ainda um acima e um

abaixo? (NIETZSCHE, 2007, p. 129-130)

Fazendo ainda muitos questionamentos em relação a como o homem se comportaria,

ou como o homem obteria sentido existencial sem o aporte que representava a divindade, o

homem louco não encontra dentre todas as pessoas que o assistiam nenhum que reagisse

positivamente a suas interrogações. Conclui, Nietzsche (2007, p. 129-130), através desta

analogia que a revelação da morte de deus é estranha aos ouvidos de seus contemporâneos

que se encontravam ainda sobre a sombra de um Deus que havia morrido. Deus estava morto,

mas os homens ainda precisavam lidar com sua sombra, que poderia ainda por um tempo

incerto iludir os homens de sua existência. Esta sombra poderia ser a moralidade de cunho

cristã? Em suma: podemos ver explicitamente que é contra tal moralidade que Nietzsche luta

em absoluta maioria dos textos que escreveu.

Ora, tudo isso visava uma nova ética, uma superação do niilismo europeu em favor de

um modo de vida afirmativo e livre. Não há um “além-vida” na filosofia nietzschiana, e

segundo Lefranc (2008) o seu conceito de Eterno Retorno define uma concepção de tempo

pautada no “momento”. Para Nietzsche o homem deveria viver de modo que pudesse desejar

viver novamente, e novamente. Eternamente e, sempre como se tudo tivesse que retornar.

Uma espécie de ética para a ação que não abre espaço para o arrependimento ou remorso dos

atos passados. Segundo Julião (2000, p. 206), o eterno retorno é o pensamento central da

terceira parte de Assim Falou Zaratustra e Zaratustra-Nietzsche busca “apresentá-lo como o

pensamento mais elevado que permite a superação da “virtude de rebanho” e do niilismo

como determinante do sentido histórico em favor de uma vontade livre e afirmativa, que quer

sempre o mais elevado como forma de sua expressão” (JULIÃO, 2000, p. 206). É a partir da

superação do niilismo moderno que a modernidade chegaria, segundo a filosofia nietzschiana,

a efetivar seu um projeto de humanidade pleno43

.

43

Nietzsche desenvolve através do conceito de super-homem, uma acepção do que seria o tipo humano pleno.

Lefrac (2008) lista algumas características inerentes ao super-homem: A primeira delas seria que ele não existe

dentre os europeus contemporâneos a Nietzsche. Seria falha, portanto, qualquer tentativa de encontrar o super-

homem em personalidades como Napoleão. A personalidade do Super-homem Nietzschiano é marcada pelo

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Assim temos que, é justamente na problemática da superação do niilismo europeu na

modernidade que reside o papel da “história efetiva”, enquanto perspectiva para a vida.

Quando Nietzsche (2003, p.10) diz que o homem necessita saber em que grau a história deve

ser esquecida para não se tornar caveira do presente ele queria destacar justamente que do

ponto de vista da ação, do “fazer” a história “havia só o presente. O homem está sozinho nele,

e arca com a responsabilidade de viver todo presente como se este devesse ser sua eternidade”

(WHITE, 1995, p. 378). Quando o homem moderno não liga o “conhecimento” que dispõe a

uma “vivência”, a uma “experiência” ele se coloca contra qualquer processo de criação que

seja efetivo.

Segundo Julião (2000, p. 206) Nietzsche estava atento a isso ao tecer suas críticas a

ciência moderna que representaria um entrave a isso, pois o homem moderno não poderia

encontrar o sentido da existência na ciência uma vez que ele reside justamente na vida. “A

vida humana contem seu eterno movimento de criação e destruição, prazer e dor, alegria e

sofrimento, bem e mal, pois o sentido dela não será encontrado em nenhum outro lugar que

não seja nela mesma” (JULIÃO, 2000, p. 206).

Agir é necessário e é partindo desse pressuposto que a ciência precisa se reconciliar

com a arte no intuito de fomentar no homem uma intenção para a ação. A história mesma, só

serviria ao “homem de ação”. “A história é pertinente ao vivente” (NIETZSCHE, 2003, p.

17). As três formas listadas por Nietzsche (2003, p. 17 – 18), história monumental, antiquada

e crítica, indicam uma posição perspectiva por parte do autor, pois somente a partir de uma

necessidade vital, de um projeto de realização humana é que o indivíduo se apropriaria do

passado numa destas formas. Somente assim a história poderia parecer verdadeira para o

individuo, a partir de sua perspectiva. E é por isso que se pode encontrar tantas perspectivas

de história verdadeiras quanto existem projetos diferentes de realização humana. Segundo

Neto (1989, p. 361) A história somente seria útil, ao quando é subjetiva, e isso justifica a

crítica de Nietzsche (2003, p. 45-46) a objetividade e neutralidade do cientista-historiador.

Esta posição estaria contra qualquer propriedade criativa do conhecimento histórico.

Não é possível valorar diferentemente os três tipos de história a não ser que se assuma,

enquanto homem que vive e que precisa da história apara a sua vida, uma das três posições.

Em outras palavras, para o homem de ação a história monumental não só é a melhor história,

como é a única que faz algum sentido; para o homem que gosta de venerar e conservar o

desprezo para com a “moral de rebanho”, valores morais vigentes, e por um individualismo marcante. Em suma,

estaria ele distante da humanidade como um todo.

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passado, a única história “verdadeira”, a única história adequada é a tradicionalista; e para o

homem que sofre, apenas a história crítica serve. (NETO, 1989, p. 360). Somente como

conhecimento perspectivo é que a história poder servir a vida. Nietzsche, no entanto, jamais

pretendeu dizer que a história não é necessária. O filosofo se limitou a dizer que seu excesso

se torna um inconveniente. Porém, a história é necessária a todos os indivíduos e é, sobretudo,

fecunda ao ser tomada pelo “homem de ação” para afirmar a vida.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nietzsche enquanto filosofo extemporâneo, criticou de maneira contundente sua

época. Ele se posiciona em sua análise de maneira cética contra os valores morais modernos, e

contra a educação e a cultura tal como elas eram praticadas na Alemanha oitocentista.

Enquanto filósofo, ele se mostrou como sendo um critico ferrenho da ciência moderna, e a

partir das objeções que lançou contra esta, criticou também a história.

Em toda sua obra Nietzsche falou, direta ou indiretamente, de história. Em UIHV

temos uma objeção a historiografia moderna, que contribuía para a manutenção de uma

cultura dicotômica onde um interior rico não se refletia numa forma exterior igualmente rica.

Começando por este ponto, Nietzsche alarga sua crítica aos pressupostos de correntes como a

filosofia da história em moldes hegelianos e o historicismo alemão. A ideia de progresso na

história e processo histórico é vista pelo autor como indicio cristão que prevalece na forma de

pensar a ciência nos moldes hegelianos.

São os postulados da filosofia da história que contribuíram também para a

supersaturação da época moderna pela história, pois foi exatamente esta correte que viu na

história um meio de se chegar às leis gerais do desenvolvimento do espírito humano. No

século XIX, o historicismo tenta fazer da história uma ciência, e Nietzsche vê nesta pretensão

uma institucionalização das práticas historiográficas que deterioravam a cultura moderna a

partir do domínio do sentido histórico.

Nietzsche denuncia assim uma historiografia que era feita sem vivificação, totalmente

desvinculada com a necessidade de ação. Conhecer era o mais importante, e as vivências eram

deixadas de lado em prol da ciência histórica. Conhecer cientificamente um fenômeno no

âmbito da história é destruir toda a predisposição que este pode inculcar no individuo para a

ação. Conhecer cientificamente algo, no âmbito da ciência histórica é ser neutro. Nietzsche,

no entanto não planejava com tal denuncia excluir os estudos históricos.

Na Genealogia da Moral, o autor faz a ligação de sua crítica a história oitocentista com

uma forma na qual a história está em consonância com as necessidades vitais de uma época.

Toda a filosofia nietzschiana tem um cunho imoralista, e nesta obra o autor se utiliza de uma

investigação genealógica para expor aquilo que os valores morais têm de dissimulador e

ilusório desde sua gênese.

A revisão, ou ruminação dos valores morais está posta em face da necessidade de se

promover um resgate da situação de niilismo em que a cultura e os indivíduos modernos

estavam mergulhados. Há em Nietzsche um projeto de cultura orientado para a criação de

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seres capazes de realizar plenamente sua humanidade. A superação de si é uma postura

fundamental para que a ética niilista moderna seja reconfigurada de modo a dar origem a estes

tipos humanos plenos.

Nietzsche em suas obras filosóficas deixou clara a transitoriedade do homem, que a

partir do exercício de auto superação constante colocaria fim a sua espécie na criação de uma

outra espécie, que o autor chamou de super-humanidade. Em suma: se trata de imperativo

ético, pois o super-homem Nietzschiano é um ser que se encontra apto a se desvincular de

toda a moral de cunho religioso, e a de todas as forças gregárias niveladores, para afirmar sua

vontade de viver sua vida eternamente, ou seja, de eternamente retornar.

Diante de tudo isso, podemos ver que a crítica Nietzschiana da história está atenta para

uma questão em especial: como o conhecimento histórico poderia fomentar a ação criativa? A

objeção do autor a modernidade atentava para este ponto especifico, de que o sentido histórico

incentivava mais a imitação e a copia de exemplos já atestados pela história do que a própria

vivência, afirmativa e criativa. É esta a lição que se podem apreender da grande análise feita

por Nietzsche em toda a sua obra.

Ao longo da história, sua filosofia vem sendo revisitada por diversos pesquisadores,

com o intuito de analisar e discorrer sobre diversas questões. Instrumentalizar o conhecimento

histórico para a ação é uma problemática muito atual nos círculos acadêmicos universitários.

Mesmo uma simples aula de história deve levar em consideração tais reflexões, pois afinal,

para que se ensina história? Podemos através dela tanto fomentar a ação criativa e afirmativa

das gerações mais jovens, quanto incentivar a imitação e a cópia de modelos já atestados.

A contribuição de Nietzsche aos historiadores e professores de história em geral é

incontestável neste ponto. Neste trabalho apresentamos aquilo que é a partir de nossa

interpretação a perspectiva de Nietzsche a respeito da história como possibilidade para a vida.

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