Semana 17 -Teoria Das Nulidade - Gloeckner%2c Ricardo Jacobsen

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UIVERSIDADE FEDERAL DO PARAÁ – UFPR SETOR DE CIÊCIAS JURÍDICAS FACULDADE DE DIREITO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO – DOUTORADO RICARDO JACOBSE GLOECKER UMA OVA TEORIA DAS ULIDADES: PROCESSO PEAL E ISTRUMETALIDADE COSTITUCIOAL CURITIBA 2010

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Teoris das nulidades

Transcript of Semana 17 -Teoria Das Nulidade - Gloeckner%2c Ricardo Jacobsen

  • UIVERSIDADE FEDERAL DO PARA UFPR

    SETOR DE CICIAS JURDICAS

    FACULDADE DE DIREITO

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM DIREITO DOUTORADO

    RICARDO JACOBSE GLOECKER

    UMA OVA TEORIA DAS ULIDADES: PROCESSO PEAL E

    ISTRUMETALIDADE COSTITUCIOAL

    CURITIBA

    2010

  • UIVERSIDADE FEDERAL DO PARA UFPR

    SETOR DE CICIAS JURDICAS

    FACULDADE DE DIREITO

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM DIREITO DOUTORADO

    RICARDO JACOBSE GLOECKER

    UMA OVA TEORIA DAS ULIDADES: PROCESSO PEAL E

    ISTRUMETALIDADE COSTITUCIOAL

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Direito, Setor de Cincias Jurdicas da Universidade Federal do Paran, Como requisito parcial obteno do ttulo de doutor.

    Curso de Doutorado em Direito do Estado

    CURITIBA

    2010

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN UFPR

    SETOR DE CINCIAS JURDICAS

    FACULDADE DE DIREITO

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM DIREITO DOUTORADO

    RICARDO JACOBSEN GLOECKNER

    UMA NOVA TEORIA DAS NULIDADES: PROCESSO PENAL E

    INSTRUMENTALIDADE CONSTITUCIONAL

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Direito, Setor de Cincias Jurdicas da Universidade Federal do Paran, Como requisito parcial obteno do ttulo de doutor.

    Orientador: Prof. Dr. Jacinto Nelson de Miranda Coutinho

    Dr Clara Roman Borges

    1 Arguidor

    Dr. Luis Antonio Cmara

    2 Arguidor

    Dr. Aury Lopes Jnior

    3 Arguidor

    Dr. Fauzi Hassan Choukr

    4 Arguidor

    CURITIBA

    2010

  • Dedico este trabalho a Joseane

    cuja indemonstrabilidade de

    minha gratido no pode ser

    expressa seno na fractalidade

    das palavras. Para alm e

    atravs delas, todo meu amor,

    como se fora a nica dimenso

    do real...

  • Esta investigao seria insustentvel sem uma pessoa que a tornou possvel: Joseane, pelo

    amor e acima de tudo compreenso, que fazem de cada palavra por mim tecida uma

    declarao de amor! Obrigado por tudo!

    Me, pelo incentivo e a quem devo minha formao!

    Obrigado Ninha, pela costumeira e no menos importante responsabilidade pelo meu

    ingresso na seara acadmica, cujo trabalho um pequeno continuar...

    Obrigado Leandro, pela contnua e fraternal ajuda!

    Agradeo ao professor Dr. Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, a quem sou

    profundamente devedor. A importncia do professor para o aluno servir como a

    Referncia e manter-se assim, para que possam vir a ser... por isso seus alunos jamais

    deixam de ser alunos... somente assim possvel continuar...

    Agradeo ao prof. Dr. Aury Lopes Jnior quem, pacientemente, contribuiu para o

    desenvolvimento da pesquisa. Como em outro lugar j escrevi s um verdadeiro

    processualista, cuja seriedade em suas atividades inquestionvel. Se por um lado aprendi

    algo de processo penal ainda no Mestrado da PUC/RS em meio s orientaes, no menos

    verdade que diariamente levo adiante o principal legado daqueles tempos: o de que

    devemos constantemente aprender a desaprender...Obrigado pela valiosas lies e pela

    confiana imerecida!

    Minha gratido ao colega de longa data Jeferson Dutra, por ser um grande companheiro e

    amigo, pessoa da mais digna considerao!

    Minha profunda estima ao amigo e colega Augusto Jobim do Amaral, sem o qual seria

    impossvel em sua substancialidade, a pesquisa. Meus sinceros agradecimentos.

    Ao amigo Marco Antnio de Abreu Scapini, meus profundos agradecimentos pela amizade

    inabalvel.

    Aos colegas e amigos de doutorado, em especial Maurcio Dieter e Rafael Zanlorenzi, cujas

    valiosas lies soube guard-las.

    Ao amigo Rodrigo Moretto, pessoa de extrema generosidade e honestidade!

    Finalmente, meus agradecimentos aos colegas da Faculdade de Direito do IPA, alunos e

    todas aquelas pessoas que fazem parte diretamente deste trabalho, meus sinceros

    agradecimentos.

  • E eu estudei Direito, pois. Isso significou que

    nos poucos meses antes das provas, com rgio

    prejuzo dos nervos, eu alimentava o esprito

    literalmente de serragem, que alm do mais j

    tinha sido mastigada por mil bocas antes de

    mim (KAFKA, Franz. Carta ao Pai).

    Antes no saber nada do que saber muitas

    coisas pela metade! Antes ser louco por seu

    prprio critrio, que sbio segundo a opinio

    dos outros! (IETZSCHE, Friedrich. Assim

    Falou Zaratustra)

    El pienso, luego soy cartesiano queda

    invalidado; decir pienso es postular el yo, es

    una peticin de principio (BORGES, Jorge

    Luis. ueva Refutacin del Tiempo. In Otras

    Inquisiciones)

  • RESUMO

    A presente investigao pretende apresentar a teoria da invalidade no processo penal. A

    anlise do processo penal no Brasil comea com o desenvolvimento do que foi chamado

    de instrumentalidade constitucional do processo penal. Em palavras simples, isso

    significa que o processo penal necessita ter sua fundao na preservao dos direitos

    fundamentais do acusado. Alm disso, a fim de colocar o processo penal a servio dos

    direitos fundamentais, a reviso da teoria da invalidade precisa ocorrer. O sistema

    inquisitorial necessita de uma ilegalidade gentica para permitir a sua melhor

    funcionalidade. Esta ilegalidade uma das principais estruturas da teoria da invalidade

    no processo penal, permitindo uma relao entre o processo e a verdade. Ento, como

    uma conseqncia da mudana democrtica no Brasil, o processo penal precisa operar

    com uma nova teoria dos atos irregulares. Uma nova fundao da teoria das invalidades,

    baseada desde os direitos fundamentais, gerando uma nova espcie de princpios o

    principal objetivo do estudo.

    Palavras-chave: processo penal; teoria da invalidade; direitos fundamentais.

  • ABSTRACT

    The present investigation intends to present the invalidity theory on criminal procedure.

    The analysis of the criminal procedure in Brazil starts with the development of what

    was called constitutional instrumentality of the criminal procedure. In simple words, it

    means that criminal procedure needs to have its foundation in the preservation of the

    fundamental rights of the accused. Besides, in order to put the criminal procedure in

    service of the fundamental rights, the revision of the invalidity theory in criminal

    procedure needs to occur. The inquisitorial system needs a genetic illegality to permit

    his best functionality. This illegality is a major structure in the invalidity theory in

    criminal procedure, allowing a relationship between process and the truth. So, as a

    consequence of the democratic change in Brazil, the criminal procedure needs to

    operate with a new theory of the irregular acts. A new foundation of the invalidity

    theory based upon the fundamental rights of the accused, generating a new kind of

    principles is the mean goal of the study.

    Key Words: criminal procedure; invalidity theory; fundamental rights.

  • RESUME

    La presente investigacin pretende presentar la teora de la invalidad en el proceso

    penal. El anlisis en el proceso penal en Brasil empieza con el desenvolvimiento de lo

    que fue llamado instrumentalidad constitucional del proceso penal. En palabras simples,

    eso significa que el proceso penal necesita tener su fundacin en la preservacin de los

    derechos fundamentales de lo acusado. Adems de eso, para colocar el proceso penal a

    servicio de los derechos fundamentales, la revisin de la teora de la invalidad precisa

    ocurrir. El sistema inquisitorial necesita de una ilegalidad gentica para permitir su

    mejor funcionalidad. Esta ilegalidad es una de las principales estructuras de la teora de

    la invalidad en el proceso penal, permitiendo una relacin entre proceso y verdad.

    Entonces, como una consecuencia del cambio democrtico en Brasil, el proceso penal

    precisa operar con una nueva teora de los actos irregulares. Una nueva fundacin de la

    teora de la invalidad, basada desde los derechos fundamentales, generando una nueva

    especie de principios es el principal objetivo del estudio.

    Palabras-clave: proceso penal; teora de la invalidad; derechos fundamentales.

  • SUMRIO

    ITRODUO.......................................................................................................01

    1. PROCESSO PEAL E DIREITOS FUDAMETAIS: ITRODUO ISTRUMETALIDADE COSTITUCIOAL DO PROCESSO PEAL...08

    1.1 Processo e Instrumentalidade: identificao preliminar da temtica de estudo........08

    1.2 A Particular Instrumentalidade do Processo Penal...................................................16

    1.3 A Natureza Jurdica do Processo Penal (?) Reviso de Algumas Premissas

    Fundamentais............................................................................................................34

    1.3.1 O Processo Como Contrato e Quase-Contrato....................................................38

    1.3.2 Bulow e o Processo Como Relao Jurdica: a aplicabilidade civilstica do

    conceito...............................................................................................................42

    1.3.3 Goldschmidt e a Situao Jurdica: incorporando a complexidade ao processo

    penal refutao de conceitos civilsticos e assuno de uma teoria do processo

    penal....................................................................................................................52

    1.3.3.1 As Crticas a Goldschmidt..................................................................................63

    1.3.3.1.1 Rosenberg e a Ruptura da Unidade Processual.............................................64

    1.3.3.1.2 Satta e a Patologia Processual.......................................................................66

    1.3.3.1.3 As Crticas de Jaime Guasp e Pedro Aragoneses .........................................67

    1.3.3.1.4 As Crticas de Rosemiro Pereira Leal...........................................................70

    1.3.3.1.5 As Crticas de Francesco Invrea...................................................................71

    1.3.3.1.6 Calamandrei e as Crticas a Goldschmidt.....................................................73

    1.3.3.1.7 As Crticas de Liebman.................................................................................77

    1.3.3.2 Goldschmidt, Um Maestro do Liberalismo Processual.......................................81

    1.3.3.2.1 Carga e Processo Penal.................................................................................84

    1.3.4 Couture, Guasp, Fairen Guilln - o Processo como Instituio: da insuficincia

    do conceito de instituio para abarcar a complexidade das formas

    processuais..........................................................................................................88

    1.3.5 Fazzalari e o Processo Como Procedimento em Contraditrio..........................98

    1.4 A Relao Entre O Sistema Acusatrio e a Forma Processual: ou da norma

    forma.......................................................................................................................108

  • 1.5 O Processo Penal e os Sistemas Processuais...........................................................118

    1.6 Processo Penal e Sistema Inquisitorial: ncleo fundante e princpios

    informadores...........................................................................................................128

    1.6.1 A Crena e o Religare: entre Lacan e Gil ........................................................144

    1.6.2 O Princpio da Neutralidade do Inquisidor......................................................153

    1.6.3 O Princpio da Concentrao das Atividades de Acusar e Julgar....................158

    1.6.4 A Verdade e o Seu Papel Fundamental na Fundao do Processo

    Inquisitorial.......................................................................................................176

    1.6.5 A Tortura Como Meio de Prova: aspectos essenciais entre o modelo acusatrio e

    o modelo inquisitorial.......................................................................................194

    1.6.6 A Concepo Ontolgica do Delito e significante essenciais da ordem do

    discurso.............................................................................................................202

    1.6.7 Decisionismo e Cultura do Arrependimento? Delao Premiada, Colaboradores

    Confession Revival........................................................................................207

    2 ITRODUO AO ESTUDO DAS FORMAS PROCESSUAIS: PROBLEMAS

    FUDAMETAIS DE UMA TEORIA GERAL DAS ULIDADES.................216

    2.1 Possvel Falar-se Contemporaneamente em Uma Teoria Geral das Nulidades dos

    Atos Processuais?..........................................................................................................216

    2.2 Fragmentos Histricos: pontos de apoio.................................................................226

    2.3 Os Princpios Gerais da Teoria das Nulidades.......................................................231

    2.3.1 e Pas de ullit Sans Grief ou Instrumentalidade das Formas........................232

    2.3.2 e Ps de ullit Sans Texte...............................................................................246

    2.3.3 Princpio da Causalidade......................................................................................255

    2.3.4 O Princpio da Convalidao do Ato Processual Penal Defeituoso.....................265

    2.3.5 Princpio do Interesse...........................................................................................277

    2.4 A Transposio Civilstica de Conceitos Gerais da Teoria das Nulidades ao Campo

    do Processo Penal..........................................................................................................282

    2.5 Perspectivas Tericas da Teoria das Nulidades......................................................290

  • 2.5.1 Nulidade Como Vcio do Negcio Jurdico Processual Penal.............................294

    2.5.2 A Nulidade Como Sano Processual..................................................................300

    2.5.3 A Nulidade Como Ato Jurdico Invlido.............................................................309

    2.5.4 A Doutrina do Tipo Processual e Constitucional.................................................319

    2.6 Anulabilidade e Inexistncia dos Atos Processuais: duas categorias frustradas.....325

    2.7 Nulidade Relativa....................................................................................................334

    2.8 A Nulidade Absoluta...............................................................................................343

    2.9 Ato Irregular............................................................................................................350

    2.10 Os Efeitos do Ato Jurdico Irregular: a nulidade e a ilicitude dos atos processuais

    defeituosos.....................................................................................................................352

    2.11 Proibio de Proteo Deficiente e as Gradativas Eroses aos Limites Prova:

    novamente a verdade real?............................................................................................365

    2.11.1 A Teoria dos Frutos da rvore Envenenada e suas Limitaes.........................384

    2.11.2 O Princpio da Proporcionalidade......................................................................389

    2.11.3 Limitao da Fonte Autnoma (Independent Source Limitation)......................388

    2.11.4 Limitao da Boa-F (Good Faith Limitation)..................................................391

    2.11.5 Limitao da Descoberta Inevitvel (Inevitable Discovery)..............................398

    2.11.6 Limitao da Descontaminao (Purged Tainted Limitation)...........................403

    2.11.7 Limitao da Destruio da Mentira do Acusado.............................................406

    2.11.8 Limitao da Teoria do Risco............................................................................408

    2.11.9 Limitao da Plain View Doctrine ou Teoria dos Campos Abertos..................409

    2.11.10 A Renncia do Acusado..................................................................................410

    2.12 Prova Ilcita: golpe de cena e eficientismo na persecuo penal..........................411

    3 UMA OVA TEORIA DAS ULIDADES O PROCESSO PEAL E SUA

    ADEQUAO ISTRUMETALIDADE COSTITUCIOAL DO PROCESSO

    PEAL...............................................................................................................................420

    3.1 A Instrumentalidade do Processo Penal: legitimao desde os direitos fundamentais do

    acusado: a forma e a proteo do equilbrio processual......................................................420

    3.2 Por Uma Teoria Integrada das Nulidades e da Ilicitude dos Atos Processuais

    Irregulares...........................................................................................................................433

  • 3.3 Princpios Reitores da Teoria das Nulidades no mbito Processual Penal: a natureza

    dplice das normas relativas forma..................................................................................434

    3.4 Nova Teoria das Nulidades: construo de um novo sistema principiolgico luz da

    instrumentalidade constitucional do processo penal...........................................................446

    3.4.1 O Princpio da Nulidade Absoluta dos Atos Processuais Penais: independncia de

    argio de prejuzo e a recusa instrumentalidade das formas.........................................447

    3.4.2 Nulidade Relativa e Precluibilidade de Sua Arguio: entre a flexibilizao das

    formas e a rigidez garantstica.............................................................................................453

    3.4.3 Nulidade Relativa e Sanabilidade: imperfeio do ato processual e sua manuteno no

    processo penal.....................................................................................................................460

    3.4.4 A Necessidade de Demonstrao de Prejuzo na Nulidade Relativa: inadequao

    metodolgica ao processo penal..........................................................................................467

    3.4.5 Nulidade Relativa e Comportamento Processual da Parte Interessada: dependncia da

    atuao jurisdicional arguio das partes?.......................................................................476

    3.4.6 Relativizao da Forma e Degenerao Inquisitria: a instrumentalidade como

    acessoriedade da forma ao projeto substancialista..............................................................480

    3.4.7 O Princpio da Estrita Jurisdicionalidade no Marco da Teoria das Invalidades:

    refutao concepo instrumentalista-funcional-teleolgica do processo penal..............493

    3.5 Princpio da Inutilizao do Ato Processual Nulo........................................................500

    3.6 Princpio da Precluso Probatria: limites produo da

    prova....................................................................................................................................508

    3.7 Princpio da Escusa Absolutria (Proibio da Declarao de Nulidade do Ato

    Processual Nos Casos de Absolvio)................................................................................518

    3.8 Princpio da Prevalncia das Nulidades Legais taxatividade temperada...................532

    3.9 Limitao Alegao de Invalidade Processual pelo Ministrio Pblico....................543

    3.10 Princpio da Extensibilidade Jurisdicional: as nulidades na investigao

    preliminar............................................................................................................................550

    3.11 Nulidade Como Categoria nica: abandono da inexistncia dos atos processuais e das

    irregularidades.....................................................................................................................560

    3.12 Orientao Normativa das Formas Processuais: repensando o processo penal no marco

    de um modelo acusatrio ou inquisitorial minimizado.......................................................564

  • 3.13 Concretizando a Base Principiolgica das Nulidades: demonstrao de viabilidade da

    nova teoria das nulidades: a ttulo de sugesto legislativa (?)............................................573

    COCLUSO.......................................................................................................578

    REFERCIAS....................................................................................................584

  • ITRODUO

    O presente estudo possui como norte a discusso acerca da contempornea teoria do

    ato processual penal irregular. Teoricamente, a teoria das nulidades representa uma sntese

    entre aquela concepo de invalidade que determina os defeitos dos atos jurdicos em geral

    e a sua recepo pelo sistema inquisitorial.

    Esse caldo cultural que (ainda) implementa uma lgica inquisitorial depe em

    desfavor de inmeras garantias estabelecidas na Constituio da Repblica, alm de

    comprometer a dialtica acusatria. A garantia elementar estrutura processual penal,

    revestida pelo conceito de forma1, desempenha uma funo destacada na reduo da

    irracionalidade do poder punitivo. Todavia, a forma do ato processual, apesar de se

    perfectibilizar em um dos elementos centrais do princpio da estrita jurisdicionalidade,

    norte da instrumentalidade constitucional do processo penal, pode ser facilmente deturpado,

    inviabilizado, escamoteado. O primado da forma, que nas lies de Binder2 constitui um

    escudo protetor contra a arbitrariedade estatal, quando desprovida de qualquer ligao

    proteo de princpios fundamentais, obstaculiza o aparecimento e eficcia daquilo que

    justamente deveria ser sua ateno principal: a violao do equilbrio processual.

    A forma serve proteo de princpios fundamentais. Todavia, na lgica que

    governa o sistema inquisitorial, a forma desvela-se apropriada para preservao do ritual,

    to importante ao mesmo. Ou, quando necessrio, desrespeit-la. Percebe-se que o modelo

    inquisitorial permite a flexibilizao da forma, ora permitindo uma aplicao rigorosa dos

    requisitos dos atos processuais, ora criando-se excees aos mesmos requisitos. Cuida-se

    do que posteriormente ser identificado como amorfismo do sistema inquisitrio (Cordero).

    Assim que se pode utilizar a forma contrariamente aos interesses do acusado (forma como

    contragarantia).

    Analisando-se o sistema de nulidades sob a tica do processo acusatrio e demais

    garantias implementadas pela Constituio da Repblica verifica-se que a proteo da

    forma pela forma coloca em xeque muitos desses princpios. Razovel durao do processo, 1 A forma, em matria penal, a garantia necessria de uma justia exata, esclarecida e imparcial. Por isso adaptada defesa do direito individual em luta com o interesse social. GARRAUD, Ren. Trait Thorique et Pratique DInstruction Criminelle et de Procdure Pnale. p. 426. 2 BINDER, Alberto. Introduo ao Direito Processual Penal.

  • 2

    princpio da presuno de inocncia, contraditrio e ampla defesa podem ser vilipendiados

    justamente pela obedincia a uma teoria das nulidades formal e privatstica, como tratada

    pela maioria da doutrina3. Por exemplo, a nulidade relativa cujo prejuzo deve ser alegado

    pelo ru, compatvel com o princpio de presuno de inocncia? Como se separar o

    prejuzo da teoria da prova?

    Portanto, o estudo proposto justifica-se como uma tentativa de (re)visitar o Direito

    com os olhos tambm orientados a uma fundamentao que filtre elementos que to

    somente pertenam seara do processo penal. Para tanto, preciso considerar que

    importantes elementos para essa empreitada se encontram em campos de saberes diversos

    do direito e processo penal. Alicerando-se na antropologia, filosofia do Direito, sociologia,

    foroso concluir que ele (Direito), no pode ser apartado do todo. Dessa forma,

    obliterada, que o pensamento jurdico ensimesmado representa um perigo. Para a

    sociedade e para o prprio Direito, como um efeito autofgico desencadeado por essa

    postura de monovalncia discursiva.

    De outro lado, importante frisar que ao tema exposto no dado o destaque devido

    pela doutrina nacional, requerendo, para tanto, um aprofundamento terico. Mais

    especificamente, no mbito da dogmtica ptria, o direito processual penal deixado de

    lado. Esquece-se que somente atravs do processo que a pena, sano drstica, pode

    adquirir legitimidade. No processo penal que se tornam cristalinas as mazelas que recaem

    sobre o acusado. Nele que se fazem ainda mais concretas as suas misrias, o suplcio que

    desde o primeiro momento caracterstica do mbito penal, lio desde h muito referida

    por Carnelutti4.

    Assim, resgatando a teoria do processo penal como situao jurdica - de James

    Goldschmidt, que traduz o processo como guerra - muito combatida e preterida pela

    teoria de Blow5, do processo como relao jurdica, que se torna visvel o que est to

    somente implcito: o fato de o processo penal ser dinmico, tal como a sociedade. preciso

    resgatar uma teoria bastante criticada e por vezes mal compreendida, a fim de que muitas

    questes tornem-se pertinentes. Entre elas sem dvida est a questo dos direitos

    3 Cf GRINOVER, Ada Pellegrini FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES FILHO, Antonio Magalhes. As ulidades no Processo Penal. 4 CARNELUTTI, Francesco. Las Miserias del Proceso Penal. 5 BLOW, Oskar von. La Teora de las Excepciones Dilatorias y los Presupuestos Procesuales.

  • 3

    fundamentais do acusado frente teoria geral do processo, mormente no que diz respeito

    teoria das nulidades no processo penal.

    A construo privatstica do processo e da teoria das nulidades encontrou respaldo

    no modelo inquisitivo de processo penal. Maximizar o primado da forma, alienada da

    proteo de qualquer preceito fundamental garante a construo do mundo onrico e das

    cabalas intuitivas, cuja ateno j havia sido chamada por Cordero6. Finalidade processual,

    proteo do sistema, construo de um objeto cuja pretenso punitiva. Eis alguns dos

    fatores ligados teoria das nulidades cuja inconsistncia conceitual, luz da

    instrumentalidade constitucional do processo, salta aos olhos.

    Voltando construo terica do maestro do liberalismo processual - James

    Goldschmidt - at o presente momento incontestada, a no ser por contra-argumentaes

    superficiais e laterais, preciso, nessa senda, ajustar as contas7 com uma teoria que foi

    praticamente desdenhada pela dogmtica processualista da poca, rano que sobrevive at

    os dias atuais. Necessrio retomar as proposies alinhavadas por Goldschmidt para se ter a

    notcia de que o processo por definio o setor mais importante para o acusado e,

    paradoxalmente, aquele que menos recebe ateno.

    Deslocar a ateno do processo dos deveres processuais para as cargas como

    imperativos de interesse da prpria parte8 se torna curial. Analisar a teoria das nulidades

    conjuntamente com a teoria da prova e das cargas; verificar em que momentos um princpio

    fundamental resta maculado pelo mero descumprimento da forma; estabelecer limites

    decretao da nulidade, principalmente quando o acusado no d causa irregularidade do

    ato; evitar que a anulao de um ato torne a situao processual do acusado mais grave.

    Esses so alguns pontos, meramente exemplificativos, que no obtm resposta satisfatria

    por parte da dogmtica processual penal ptria.

    Assim, religar pontos da teoria do processo penal e reconstruir o sistema de

    nulidades a partir de uma tica voltada instrumentalidade constitucional do processo

    penal encontra amparo nessa resignao da doutrina e prtica processuais para com o

    6 CORDERO, Franco. Procedimiento Penal. t. 1. 7 Trata-se de uma analogia ao pensamento de Umberto Eco referente Idade Mdia: A Idade Mdia inventa todas as coisas com as quais ainda estamos ajustando contas... ECO, Umberto. Dez Modos de Sonhar a Idade Mdia. in Sobre os Espelhos e Outros Ensaios. p. 78. 8 GOLDSCHMIDT, James. Principios Generales del Proceso: problemas jurdicos y polticos del proceso penal. Buenos Aires: Europa-Amrica, 1935.

  • 4

    modelo vigente. Assim, o exame da forma processual, que deve ser revisado, optando-se

    por um mecanismo de proteo mais rigoroso quanto s garantias e mais criterioso quanto

    ruptura da forma pela forma, configura o ncleo da investigao. Em sntese apertada,

    nesses termos que adquire relevncia a presente investigao. Em um primeiro nvel

    enfrentando, com o auxlio da interdisciplinaridade, questes emergentes do

    desenvolvimento histrico-cultural do processo penal e, de outro, resgatando uma teoria de

    extrema importncia que restou margem da discusso terica do direito processual penal:

    a teoria da situao jurdica, que possibilita uma reconstruo liberal9 do processo penal.

    Num segundo momento, tratando da teoria da forma processual a partir do enfrentamento

    dos sistemas processuais para posteriormente apresentar uma nova teoria das nulidades.

    Justificada a relevncia do estudo, atravs do trabalho procurou-se relacionar o

    processo penal o que se pode denominar de instrumentalidade constitucional do processo

    penal. Para alm, no primeiro captulo do estudo partiu-se para a discusso acerca das

    teorias que procuram explicar a natureza jurdica do processo. A concepo mais difundida,

    a do processo como relao jurdica guarda especial relao com a ideologia da defesa

    social, o que permitir o desenvolvimento de uma teoria das nulidades que nutre especial

    predileo pela corrupo da forma. Apresentar a dinmica do processo em detrimento de

    uma esttica processual foi a tarefa executada neste segundo captulo. No por puro

    exerccio acadmico. Pensar a forma processual a partir de uma dinmica trar severas

    alteraes para a proteo dos direitos fundamentais do acusado. Assim, desta maneira,

    recorreu-se principalmente s lies de Goldschmidt e Fazzalari a fim de se encontrar solo

    frtil para uma teoria das nulidades que se aproxima de uma oxigenao constitucional.

    Alm disso, no captulo I a fim de se aprofundar o estudo das nulidades recorreu-se

    ao conceito de sistemas processuais. Torna-se imprescindvel para uma devida

    conformao constitucional da teoria das nulidades uma investigao que centralize este

    modelo terico junto de sua matriz epistemolgica. Assim as coisas, a contraposio entre

    sistema acusatrio e inquisitrio procurou ser sistematizada a partir de determinados

    aspectos epistmicos desta distino. Desta arte, ao revs de se alicerar a distino sistema

    acusatrio e inquisitrio com base em modelos ideais, com caractersticas bem delimitadas,

    9 O termo empregado no sentido de Goldschmidt e nada tem a ver com sua acepo em termos de economia e mundo globalizado em suas novas vertentes.

  • 5

    preferiu-se a montagem dos sistemas a partir de um construto epistemolgico. A partir de

    ento foi possvel a verificao da forma processual e o papel que representa em um e outro

    modelo de sistema. Parece infrutfero, como si acontecer com a grande maioria da

    doutrina ptria salvo raras excees tratar da teoria das nulidades como se se tratasse de

    um corpo terico dcil e neutro. Qualquer teoria das formas guardar uma ntima

    conexo com a problemtica dos sistemas processuais e sua respectiva conformao. Por

    esta razo que a teoria das nulidades deve ser pensada em consonncia com os sistemas

    processuais penais.

    A conformao da teoria das nulidades a partir dos sistemas processuais permite-se

    entender como se consolidou no processo penal uma forma hbrida, pela justaposio de

    conceitos privatsticos que aderiram perfeitamente ao funcionamento do sistema

    inquisitorial. Para se pretender uma teoria das formas processuais no subserviente ao

    sistema inquisitorial, foroso reconhecer-se a insuficincia dos atuais princpios

    informadores da teoria das nulidades.

    Num segundo captulo apresenta-se um novo objetivo. Esta tarefa de examinar os

    postulados contemporneos que permitem a construo da teoria das nulidades foi o objeto

    desenvolvido neste ponto. Assim, a pretenso a ser exercida neste momento foi a de

    explicar os princpios fundamentais que atualmente compem a teoria da invalidade.

    Demais disso, procurou-se tambm examinar a teoria da prova ilcita, que guarda estreita

    relao com a teoria das nulidades. Assim, como objetivo geral do captulo procurou-se

    explicar os fundamentos principiolgicos e epistemolgicos da contempornea teoria das

    nulidades, procurando-se, medida do possvel, traar a crtica a tais postulados tendo

    como filtro a instrumentalidade constitucional do processo penal.

    Saliente-se que a opo por uma anlise meramente principiolgica possui sua razo

    de ser. A primeira justificativa baseia-se na limitao do objeto de estudo. Instruir uma

    rediscusso completa das normas reguladoras da teoria das nulidades foge ao escopo da

    empreitada. At mesmo pelo fato de que as normas que regulam as nulidades, no processo

    penal brasileiro so produtos da ideologia da defesa social que radicalizada ao mximo,

    permitiu um cdigo de processo penal maximizador da razo de Estado em detrimento dos

    direitos individuais.

  • 6

    Uma segunda justificativa se faz necessria. O principal objetivo de uma nova teoria

    das nulidades permitir o pensamento inovador, criador, avesso aos autoritarismos. Desta

    maneira, ao revs de uma mera renovao legislativa, o objetivo desenvolvido partiu das

    bases epistemolgicas que daro sustentao nova teoria das nulidades.

    Isso posto como tarefa final e derradeira, demonstrada a insuficincia da atual teoria

    das nulidades e a sua imprestabilidade como ferramenta de controle do poder punitivo, o

    objetivo foi tentar apresentar uma nova teoria das nulidades, expondo-se princpios e

    caractersticas das nulidades que melhor se afiguram ao sistema acusatrio ou, numa

    empreitada mais modesta, que permitem uma minimizao do modelo inquisitorial.

    Expostos os objetivos tratados ao longo do captulo, cumpre, para finalizar a

    presente introduo, que se procurou, mediante uma anlise interdisciplinar, consolidar a

    investigao, sem descurar de saberes outros que se fazem necessrios boa compreenso

    do processo penal contemporneo.

    A realizao da investigao centrou-se principalmente, na reviso bibliogrfica de

    obras literrias que tratam dos diversos temas que compem o estudo. Assim,

    exemplificativamente, obras provenientes da Sociologia, Filosofia, Direito e Processo

    Penal, Teoria do Direito, Antropologia e ainda setores outros que se fizerem necessrios ao

    exame do estudo, comporo o embasamento terico a partir do qual ser examinado o

    problema de pesquisa.

    Dentro da perspectiva interdisciplinar, as obras consultadas, nacionais e

    estrangeiras, seguiram as quatro principais categorias que formam o corpo da investigao.

    Essas categorias podem ser elencadas como: processo, ato processual, nulidades, direitos

    fundamentais. A partir delas que a produo de autores como Franco Cordero, Leo

    Rosenberg, James Goldschmidt, Luigi Ferrajoli, Eugenio Ral Zaffaroni dentre a literatura

    estrangeira e, entre a literatura nacional, Aury Lopes Jr., Salo de Carvalho, Jacinto Nelson

    de Miranda Coutinho, etc., cristalizou o quadro terico de base.

    Partindo-se da instrumentalidade constitucional que se abordou como referido, o

    processo penal. Como modelo ideal de correo do direito existente10, o garantismo penal

    servir como um filtro a fim de se estabelecer o grau de irracionalidade no e do processo

    penal brasileiro. Voltando-se aos direitos fundamentais do acusado, ser indispensvel

    10 BOBBIO, Norberto. Prlogo. In FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razn: teora del garantismo penal. p. 15.

  • 7

    ferramenta para examinar os mecanismos de limitao do poder estatal11. A partir desse

    marco que ser realizado o contraponto terico de (re)construo do processo penal,

    fulcrado especialmente na proposta de uma poltica criminal minimalista e na

    (re)orientao do mesmo com base em garantias mnimas, imprescindveis a um Estado

    Democrtico de Direito.

    Uma anlise crtica do processo penal se faz necessria para um diagnstico de

    como as teorias dominantes, nesse campo, se encontram demasiado fechadas para poder

    avaliar em que p anda as condies sociais e de que maneira processo penal e sociedade

    acabam interagindo. A inexistncia de deveres processuais entre as partes, heuristicamente

    concebida por Blow, a perspectiva dominante que entende pela existncia de uma relao

    jurdica processual, fruto de uma teoria geral do processo desempenha um papel

    fundamental na ausncia de questionamentos mais profundos sobre o tema. A teoria das

    nulidades, arquitetada sob um modelo privatstico, regida por categoriais intransponveis ao

    domnio do processo penal so alguns dos objetos a serem examinados. Tendo como

    escopo final uma possvel conteno do poder estatal.

    Importante referir, por fim, que a investigao e as obras consultadas seguem um fio

    condutor, definidor da abrangncia do estudo, a saber: o tratamento jurdico-penal do ato

    processual defeituoso. Assim, os conceitos de validade/invalidade, que predominaram na

    teoria geral do direito, mormente a partir do positivismo jurdico, expandindo-se para os

    demais campos do saber jurdico passam a ser contemplados como uma categoria relevante

    para a concretizao do estudo: atravs dele que questes como risco processual, processo

    penal e direitos fundamentais sero entrelaados e examinados.

    Desta forma, uma vez presentes todos esses elementos que se tornou possvel a

    consolidao do objetivo geral da investigao, concretizados a trs tempos: a) verificar a

    leso a direitos fundamentais do acusado diante da atual estrutura da teoria das nulidades;

    b) demonstrar a incapacidade de tal teoria em se adequar instrumentalidade constitucional

    do processo penal E, finalmente c) reestruturar a teoria das nulidades a partir de uma teoria

    do processo penal voltada sobre a instrumentalidade constitucional.

    11 En esta perspectiva el modelo penal garantista equivale a un sistema de minimizacin del poder y de maximizacin del saber judicial, en cuanto condiciona la validez de las decisiones a la verdad, emprica y lgicamente controlable, de sus motivaciones. FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razn: teora del garantismo penal. p. 22.

  • CAPTULO I - PROCESSO PEAL E DIREITOS FUDAMETAIS:

    ITRODUO ISTRUMETALIDADE COSTITUCIOAL DO PROCESSO

    PEAL

    O presente captulo tem por objetivo central apresentar as bases epistemolgicas das

    quais partir o estudo. Assim sendo, antes mesmo de se ingressar na teoria das nulidades

    objeto do captulo seguinte, foroso alicerar-se o processo penal em sua estrutura

    constitucional.

    Desta arte, a empreitada que ser realizada daqui para diante ter como fio condutor

    a possibilidade de pensar democraticamente o processo penal. Para tanto, o conceito de

    instrumentalidade constitucional do processo ser imprescindvel. Demais disso, ser

    preciso ainda, apresentar as principais teorias que procuram explicar a natureza jurdica do

    processo bem como apresentar as matrizes dos sistemas processuais, a fim de tornar o

    exame da teoria da invalidade mais proveitoso.

    Assim apresentados sucintamente os escopos do captulo, chega-se ao conceito de

    instrumentalidade, que inaugura o captulo.

    1.1 Processo e Instrumentalidade: identificao preliminar da temtica de estudo

    Existe uma estrita e necessria interconexo entre o que se pode definir processo, objeto

    da presente investigao e sua instrumentalidade. Relao que se nutre reciprocamente, que

    se complementa, se deixa orientar por uma cumplicidade mtua, enfim, que se torna

    paralelamente, como um objeto e sua sombra, impossvel de ser fracionada, sem

    comprometer a qualidade do estudo.

    A advertncia inicial se faz relevante, no no intuito de se evitar responsabilidades ou

    apontar o desvelamento de uma relao cuja pretenso de verdade, to totalizante quanto

    cega, tornaria incua cada tentativa de reconstruo de uma caminhada gradativa, pelos

    obscuros campos do processo e sua existncia. Assim as coisas, a jornada que aqui se

    pretende levar adiante se inicia pela demonstrao de que a identificao de categorias

    como processo e instrumentalidade no pode ser haurida sem tambm se tecer

  • 9

    consideraes sobre o pano de fundo processual: os direitos do acusado, protagonista por

    excelncia do dinamismo processual e sua cadeia de significantes, que fluem no

    caleidoscpio em que chances, perspectivas e expectativas de uma sentena favorvel ou

    desfavorvel acompanham o reger das formas1.

    Caracterizar o processo como mecanismo dotado de instrumentalidade no tarefa das

    mais simples. A diagnose desta bvia embora no menos complexa caracterstica do

    processo exige no mnimo, cautela. Todavia, antes de se examinar a instrumentalidade

    especfica do processo penal, se assim se pode denominar tal estruturao, faz-se mister

    entender o porqu de tal instrumentalidade desempenhar inegvel amparo teortico, cujas

    conseqncias recobrem o andar processual de um lado e, de outro, como podem trazer

    implicaes para a dialtica processual, principalmente sobre os direitos do acusado.

    Iniciar o estudo do processo como um exame sobre a sua instrumentalidade diz respeito,

    sobretudo reflexo que se faz sobre a sua legitimao2. Em primeiro lugar, com isso

    afastamo-nos das perguntas pelo princpio, pela causa e pela origem. Em segundo, perquirir

    a sua legitimao , nessa senda, questionar sobre a sua justificativa, como o desenrolar de

    um processo, nos quais seus elementos componentes dialogam, numa espiral a qual no se

    anuncia a chegada da sntese perfeita. A dialtica sem sntese (Merleau-Ponty) na qual se

    move o presente estudo pretende recorrer o campo normativo do processo, sem descuidar

    de suas bordas, algumas obscuras outras j visivelmente preenchidas pelo jogo dos signos.

    Nesse caso, ilustrar o primeiro captulo tambm referendar alguns apontamentos

    realizados na Introduo. O principal deles situa-se, derradeiramente, no plano da

    interdisciplinaridade, do interstcio entre cincia (!?) e mito (?), da conjuno do

    metabolismo desconstrutivista com a pregnncia da falta, do vazio, enfim, daquilo que no

    da ordem do racional embora no possa se dar a no ser como linguagem.

    1 Utilizam-se aqui as categorias de James Goldschmidt acerca do processo como situao jurdica. No momento, entende-se contraproducente ingressar no mbito tcnico de tais categorias. Deixemo-las para mais adiante, quando a sim ser examinada a obra do maestro do liberalismo processual penal, nos dizeres de Calamandrei. 2 Prefere-se, na esteira de Vattimo, o termo legitimao, prprio da modernidade, ao termo fundamento j que segundo o autor, este representativo da metafsica. Ainda segundo Vattimo, a metafsica pode ser reconhecida como a filosofia da histria, predominantemente ilustrada, que deposita na razo uma espcie de crena sobre seu progressivo esclarecimento. O historicismo corresponde assim, ltima grande metafsica objetivista. Segundo Heidegger, de maneira diversa embora complementar, a metafsica traduziria o verdadeiro por aquilo que se d ante os olhos, mantendo-se com carter estvel e de uma vez por todas definido. VATTIMO, Gianni. ihilismo y Emancipacin: tica, poltica, derecho. Barcelona: Paids, 2004. p. 175-177.

  • 10

    Retornando ao tema em apreo, o estudo da instrumentalidade do processo penal no

    pode ser equiparado ao questionamento pelo princpio. Isto pelo fato de que o princpio

    uma proposio de onde se podem extrair outras, muito embora no seja passvel de

    regressar a outras proposies que lhe do sustentao lgica3. O princpio sempre um

    ponto de partida. Desta concluso, por bvio, se constata que a instrumentalidade do

    processo no se confunde com um princpio qualquer, seja ele orientador, nuclear ou

    perifrico. Oferecer a equiparao de um princpio orientador para a instrumentalidade

    processual seria, na melhor tradio metafsica, conceber o processo como um universal,

    apesar das advertncias que remontam a Kierkegaard4 e o nascimento do existencialismo.

    De que maneira seria possvel arraigar o processo num princpio de ordem universal, sem,

    contudo desprezar sistemas, culturas jurdicas e sentidos normativos diversos? evidncia,

    o processo no se legitima a partir de um princpio de ordem kantiana, se por este conceito

    pudermos traduzir um elemento cuja transcendncia dote de validade universal determinada

    pretenso5. Conclusivamente, resta o rechao idia de se buscar em um princpio a noo

    de legitimao do processo penal.

    Seguindo os passos na direo de uma construo normativa do processo penal, a

    instrumentalidade do processo, nesse nterim, da mesma maneira que restou demonstrado

    na anlise da categoria princpio, no pode ser confundida com a sua causa. A causa pode

    ser compreendida como um nexo explicativo de um fato. No pode, contudo, exercer-lhe a

    justificativa, muito menos lhe oferecer suporte de direito para o que pretende explicar. A

    causa responde pergunta do como. Ao se tratar de uma noo explicativa para um

    determinado processo ou evento, da as cincias ditas naturais responderem sua exigncia

    de racionalidade munidas da causa (processos fsicos e matemticos), esta categoria, para o

    estudo em comento no pode oferecer mais do que uma noo vaga e imprecisa, para no

    falar em inadequada para o Direito. O sentido jurdico, movido em meio a imperativos

    normativos e no processos lgico-causais, responderia seus problemas no mbito do

    dever-ser e no do ser. Se se aceitar que a lgica ou at mesmo a metodologia jurdica no

    3 Cf CONCHE, Marcel. O Fundamento da Moral. So Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 20. 4 Nossa poca tem sido incansvel no desejo de conferir sentido universal a tudo. Com que af, com que perseverana tantas vezes vemos um mistagogo espiritual qualquer pronto a prostituir uma mitologia inteira para extrair, de cada mito, por meio de profundo golpe de vista, caprichosos acordes em sua harmonia?. KIERKEGAARD, Soren. O Conceito de Angstia. So Paulo: Hemus, 2007. p.93. 5 Cf KANT, Immanuel. Crtica da Razo Pura. 4 ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1997.

  • 11

    so meros reflexos de processos naturais, bem crvel que o termo imputao6 desenvolva,

    na seara dogmtica, importantes conseqncias para o processo penal. De fato, o conceito

    de nexo causal pouco destaque adquire no plano processual, gerido via de regra por

    categorias que recebem impulso to somente da normatividade jurdica, no encontrando

    simulacros ou elementos sgnicos que traduzam a idia de um objeto existente,

    inconfundvel, universal, nos mesmos termos que a metafsica da presena contribuiu para

    incrementar uma falsa noo de totalidade. Pelo contrrio, o processo penal se erige em to

    somente mais uma categoria artificial dentre outras, posto que o que seria o Direito seno

    uma linguagem artificial?7 Ao se pensar o Direito e o processo penal distante das

    concepes que procuram enquadr-lo como um objeto passvel de ser encontrado,

    domesticado e reduzido a signos convergentes e afeitos a uma idia de sistematicidade, com

    isso se quer dizer que a linguagem, que representa o mundo e os limites8 que constituem o

    processo nada mais so do que smbolos fugazes. O simulacro e sua repetio governam

    suas entranhas, movidas algumas vezes pela racionalidade, por outras, por aquilo que da

    ordem do incontrolvel ou do incomensurvel. Nessa esteira, verifica-se que a causa de

    existncia do processo no pode ser entabulada como sua instrumentalidade.

    Ademais, concebendo-se o processo nesta mesma trilha, nota-se que o conceito de

    instrumentalidade no pode ser analisado como a referncia origem. A categoria de

    origem responde pergunta do quando. Perseguir a origem se debruar sobre os

    estilhaos, rastros, que se sabem movedios e nas mais das vezes inacessveis. Mediante a

    procura pela origem promove-se uma busca pela reconstruo, at se chegar a um momento

    6 Para se ter noo da importncia que o termo assume, muito embora no coincida semanticamente com o conceito de imputao desenvolvida por Kelsen, basta analisar-se, exemplificativamente, o panorama que a teoria da imputao objetiva desenvolve, nutrida principalmente a partir dos antecedentes de Hnig e Larenz. Note-se, en pasant, que o conceito de imputao foi vital no escopo de superao, no mbito da teoria geral do delito, da teoria causalista da ao, firmada a partir de postulados meramente lgico-causais, como o prprio nome est a indicar. Demais disso, o prprio conceito de estruturas lgico-reais de Welzel, o antecedente para o conceito de ao, no permite dispensarem-se critrios de imputao, ao contrrio da lgica consequencialista da estrutura Liszt-Beling entre outros desenvolvimentos subseqentes. Crimes omissivos e culposos nada mais so do que a resposta, em termos de reflexividade dogmtica, do critrio de imputao levados necessidade de ordem normativa no plano sistemtico da teoria finalista da ao. Para um panorama da teoria da imputao objetiva e sua similaridade com a teoria finalista da ao, em termos de adequao fundacional Cf ROXIN, Claus. Funcionalismo e Imputao Objetiva no Direito Penal; GRECO, Luis. Um panorama da Teoria da Imputao Objetiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. 7 Essa pergunta j foi anteriormente levantada por autores da expresso de Franco Cordero e Luigi Ferrajoli, com a qual no s concordamos como tomamos como ponto de partida. 8 Esta idia tomada de Wittgenstein, em Suas Investigaes Filosficas. Cf WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigaes filosficas. 4 ed. Petrpolis: Vozes, 2005.

  • 12

    primevo, geralmente tratado pela antropologia como mito9. No raro a inacessibilidade

    originria da origem, que no representa uma tautologia paralisante, mas todo o contrrio:

    da ordem da pregnncia e criatividade, gerando certo mal-estar para fenmenos que, luz

    do historicismo, perdem fora racional-explicativa para algumas propenses10 ainda no

    refutadas (a lgica conjuntural da cincia11), representa a advertncia nietzschiana

    consumada. No Aforismo 44 de Aurora, Nietzsche12 afirma: com a penetrao na origem

    aumenta a insignificncia da origem. nesse entrecruzamento entre o arcano e o

    aportico, entre o profano e o sagrado que a narrativa mtica surge como distribuio

    temporal, como nomeao de um significante primeiro, geralmente (para no dizer

    absolutamente) da ordem do interdito13. E ao se falar em interdito a concluso que pode ser

    extrada a de que onde aquele aparece, surge da mesma forma um desejo travado e

    limitado14. No existe origem possvel para alm do significante e do rastro: a origem

    um arqui-rastro, que fundamenta a prpria possibilidade do aparecer e do significar na

    ausncia de origem 15. E justamente esta opo, a proibio do incesto que constitui o

    9 Cf LEVY-STRAUSS, Claude. O Pensamento Selvagem; PAZ, Octavio. Claude Levy-Strauss ou o ovo Festim de Esopo. So Paulo: Perspectiva, 1977. 10 Utiliza-se aqui o termo propenso no mesmo sentido atribudo a POPPER, Karl. Un Mundo de Propensiones. Madrid: Tecnos, 2000. 11 A lgica do trial and error, que anuncia uma cincia j consciente de seus limites, a impossibilidade da certeza pode ser verificada em POPPER, Karl. A Sociedade Aberta e Seus Inimigos. v.1 e 2, 3 ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1987. 12 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Aurora: reflexes sobre os preconceitos morais. So Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 41-42. 13 FREUD, Sigmund. Totem e Tabu. Rio de Janeiro: Imago, 1998. Aqui se pode ventilar algumas relaes entre o mito e a negatividade. Por que a passagem da natureza cultura, nos termos de Levy-Strauss representada a partir de um no? Que poder exerce o no a ponto de servir como momento fundacional? O interdito aquilo que possibilita a cultura. No possvel a cultura sem o no, que serve como limite, como significante primeiro, dos quais decorre tudo o mais. O no faz a ciso, absolutamente necessria entre o que representativo da natureza (por excluso) e da ordem do cultural (invocado mediante a mesma excluso) e que vem tona num segundo momento reflexivo, fundando sem ser remetido a uma causa ltima causadora. O sujeito se constitui na linguagem e esta opo que no pode mais ser reconstituda, nem tampouco ser reconstituda, com um voltar atrs. A imerso na linguagem no permite um retorno a um estado anterior, cuja conseqncia seria uma autonegao. Caso contrrio, estaramos diante de uma meta-linguagem, o que advertidamente Lacan demonstrou como impossvel. De fato como assevera Lebrun acerca do sistema linguageiro, nesse lugar que, precisamente, se manter o pai. Tambm nesse lugar que os homens coletivamente designam os mitos. Entendamos estes ltimos precisamente como uma maneira de fazer entrar na linguagem o que no pode ser apreendido nela, como uma maneira de colonizar essa hincia. Alis, funo da mitologia assegurar uma espcie de genealogia, reconstituir com palavras a questo sempre irresolvel da origem. LEBRUN, Jean-Pierre. Um Mundo Sem Limite: ensaio para uma clnica psicanaltica do social. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2004. p. 30. 14 ROSA, Alexandre Morais da. Deciso Penal: a bricolage de significantes. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 05. 15 AGAMBEN, Giorgio. Estncias: a palavra e o fantasma na cultura ocidental. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007. p. 247.

  • 13

    sujeito (Lacan), a partir de sua imerso e inafastabilidade do seu prprio ser (a linguagem,

    ao constituir o sujeito, agencia verdadeira estrutura componente, da ordem do ser).

    obviedade, a instrumentalidade do processo no pode se dar como sua origem. No se trata

    aqui de fazer decorrer o processo de algo que lhe antecede. A problemtica se encontra

    envolta do ponto de justificao, que oferecido pela legitimao. Da a pergunta

    inevitvel: que se pode entender por legitimao?

    O fundamento, nas lies de Conche16, pode ser descrito como o Princpio. Com isto

    se quer referir ao fato de que este incondicional. Seria a configurao de um princpio

    reitor dos outros princpios. Em outras palavras, trata-se daquilo que legitima, justifica,

    fornece as bases de determinado conceito ou categoria. A incondicionalidade do

    fundamento se d no momento em que sua legitimao no depende de outros fatores os

    quais estariam submetidos, por seu turno, a razes diversas que em ltima instncia

    remeteriam a novas legimitaes, num processo infindvel. Aqui, surge uma das facetas,

    qual Hidra de Lerna, a justapor cadeias infindveis de graus racionalizantes, tendentes ao

    infinito. Como no famoso trilema de Munchausen, o retorno ao infinito aparece para

    denunciar as metanormas que grassam pontos cruciais e orbitais da racionalidade,

    insistentemente incorporada mediante artifcios da modernidade (a racionalidade

    estruturada a partir do binmio: tese x anttese, positivo e negativo, etc., esquecendo-se da

    complexidade que paira sobre o enfeixar caracterstica da terceiridade).

    Via de conseqncia, a instrumentalidade do processo se caracteriza como seu

    fundamento 17. No entanto, resta ainda um ponto a ser discutido. Por instrumentalidade se

    pode entender a caracterstica do processo para a aplicao do Direito18. Em termos amplos,

    a instrumentalidade do processo corresponde caracterstica que o torna uma pea

    dinmica, a fim de dar vida ao direito material. No processo penal, esta caracterstica se

    acentua de tal maneira, a ponto de se poder afirmar que o direito penal possui uma

    dependncia umbilical deste.

    A instrumentalidade do processo penal assume contornos tcteis de mais fcil

    visualizao, no momento em que se traz colao o seu princpio norteador. Se no direito

    16 CONCHE, Marcel. O Fundamento da Moral. p. 26-27. 17 Em outras palavras, legitimao. 18 A instrumentalidade do processo no significa que ele seja um instrumento a servio de uma nica finalidade, qual seja, a satisfao de uma pretenso (acusatria). LOPES JNIOR, Aury. Introduo Crtica ao Processo Penal (Fundamentos da Instrumentalidade Garantista). Rio de Janeiro: Lmen Jris, 2004.p. 08.

  • 14

    penal a pedra de toque, seu leitmotiv pode ser concebido como a garantia da legalidade

    (nulla poena sine lege), no processo penal o fundamento se repete. Aqui, a nortear a

    estrutura processual se encontra o princpio da necessidade do processo19 em relao pena

    (Gmez-Orbaneja). Trata-se do princpio de que no h pena sem processo. Evidentemente,

    isto encontra suas razes conjugadas ao princpio da presuno de inocncia (ningum pode

    ser considerado culpado antes do trnsito em julgado da sentena condenatria in dubio

    pro reo).

    Portanto, se o processo o caminho necessrio para a aplicao da pena, que se torna

    absolutamente viciada sem que seja percorrido todo o iter, pode-se vislumbrar o processo

    como um instrumento indispensvel ao sistema punitivo. No entanto, no esta mera

    caracterstica de ser um instrumento para a aplicao da pena que o legitima. Sua

    legitimidade (sua instrumentalidade) nada significa se no estiver preocupada com outro

    aspecto a ser examinado.

    Sabe-se que o fenmeno punitivo est associado figura do poder. Poder e punio so

    elementos interligados. O sistema penal fruto de dispositivos de poder, que compem

    uma rede, constituindo-se num dos mais facilmente perceptveis de seus ns. Com efeito,

    assim como a sociedade composta de aparelhos, dispositivos, malhas de poder que

    percorrem a sociedade sob uma forma capilar (Foucault), o poder no se basta a si mesmo.

    A tendncia do poder exaurir seus limites, romper suas barreiras, enfim, ultrapassar todos

    os obstculos a si impostos20. Como afirma Schmidt, el poder estatal se coloca frente a los

    individuos en forma drstica y peligrosa. Todo manejo del poder envuelve la posibilidad de

    abusos 21.

    A legitimidade ou a instrumentalidade do processo penal assume relevncia, ento, no

    como a face aparente e inexata de sua existncia, erigida a vetor principal, como insiste em

    sua grande maioria, a doutrina. A instrumentalidade do processo penal somente assume sua

    19 De acordo com Pisapia o processo penal seria o meio necessrio e indefectvel para a aplicao da lei penal substancial, afrimando-se no sentido de que a pena no pode ser aplicada se no atravs do processo. PISAPIA, Gian Domenico. Appunti di Procedura Penale. v I. Milano: Cisalpino-Goliardica, 1973. p. 44. Tambm Conso e Gallo traam o princpio da necessidade como distintivo da esfera cvel e penal, medida que a nota da necessariedade vem a distinguir o processo penal do processo civil contencioso. GALLO, Marcello, CONSO, Giovanni. Istituzioni di Diritto e Procedura Penale. Milano: Giuffr, 1964. p. 05. 20 BOBBIO, Norberto. Prlogo. In FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razn: teora del garantismo penal. Madrid: Trotta, 2004. 21 SCHMIDT, Eberhard. Los Fundamentos Tericos y Constitucionales del Derecho Procesal Penal. Buenos Aires: Lerner, 2006. p. 26.

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    legitimidade quando associada preservao dos direitos fundamentais22 do acusado. Em

    outras palavras, se o poder tendente expanso, cabe ao processo limitar tal poder

    punitivo, de molde a minimizar ao mximo os riscos de leso aos direitos primordiais do

    acusado. Desta arte, o termo instrumentalidade aqui tratado como instrumentalidade

    constitucional do processo. A sua legitimao se encontra respaldada no momento em que

    tenciona evitar que a vontade de punir estatal produza violaes queles direitos que o

    prprio Estado se obrigou no-ingerncia. A esfera do indisponvel, aquilo que o Estado

    no pode tocar (os direitos fundamentais de liberdade) configura um dos pontos cardeais do

    processo, cuja existncia deve necessariamente impedir atos arbitrrios do poder punitivo

    estatal.

    Da mesma forma como o direito penal constitui uma garantia, o processo penal tambm

    assume este prisma. Desde Von Lizst (o direito penal como a Carta Magna do Delinqente)

    a Dorado Montero (o direito penal protetor dos criminosos), o processo penal deve tratar de

    relaes despticas, nas quais o primado da hipossuficincia23 estabelece um vnculo

    indecomponvel com os direitos fundamentais e o papel que desempenham para a

    sustentao democrtica de determinado Estado. Quer dizer que a preservao dos direitos

    fundamentais do hipossuficiente guarda estreita relao com o grau de democracia de

    determinado Estado. Por isso nos dizeres de Goldschmidt24, o processo penal como um

    termmetro, capaz de medir o grau de elementos corporativos ou democrticos de um

    Estado. Para alm, o processo penal, nas lies de Winfried Hassemer25 constitui direito

    constitucional aplicado.

    22 O termo direitos fundamentais ser utilizado aqui via de regra no sentido de direitos de liberdade, aqueles deveres de no-ingerncia estatal, verdadeiras obrigaes de no-interferncia do Estado em certas esferas de liberdade dos indivduos. Com isso no se est aqui propondo um retorno teoria liberal dos direitos fundamentais. Todo o contrrio. Por se dar o campo de estudo em matria na qual assume primordialidade tais direitos, no se v aqui razo alguma para iniciar investigao que examine os direitos sociais e transindividuais, que pouco contribuiria para acurar a temtica enfrentada. 23 A relao de hipossuficincia resta muito bem demonstrada por CARVALHO, Salo de. Pena e Garantias. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. 24 Los principios de la poltica procesal de una nacin no son otra cosa que segmentos de su poltica estatal en general. Se puede decir que la estructura del proceso penal de una nacin no es sino el termmetro de los elementos corporativos o autoritarios de su Constitucin. GOLDSCHMIDT, James. Principios Generales del Proceso: problemas jurdicos y polticos del proceso penal. Buenos Aires: Europa-Amrica, 1935. 25 Boa parte da doutrina aponta que este pensamento remonta o de Henkel, embora utilizado por Hassemer. Cf HASSEMER, Winfried. Crtica al Derecho Penal de Hoy. Bogot: Universidad Externado de Colombia, 2001. Cf HASSEMER, Winfried. Introduo aos Fundamentos do Direito Penal. Porto Alegre: SAFE, 2005. Cf HASSEMER, Winfried. Trs Temas de Direito Penal. Porto Alegre: AMP: Escola Superior do Ministrio Pblico, 1993.

  • 16

    A sua legitimao, desde o espectro aqui alicerado, assume uma conotao protetiva

    daquele que, num paralelo, no pender de foras a serem medidas no jogo processual, desde

    j, numa presuno no sujeita a inverso, mais fraco em relao ao Estado. Ademais, se

    os direitos fundamentais podem ser descritos como componentes do ncleo do Estado

    Democrtico, o processo penal deve, por assim dizer, ser concebido como o instrumento

    mximo de sua realizao, proteo, maximizao.

    Esta a razo pela qual o processo, em que pese as inexatas concepes difundidas e

    alastradas em mbito dogmtico, que o consideram como motor da punio, podem ser

    consideradas como totalitrias e antidemocrticas. De fato, como legitimar a

    instrumentalidade do processo penal se este serviria apenas para punir? Em outras palavras,

    para que necessitaria o Estado do processo to somente para punir? Se o Estado, detentor

    do poder punitivo almejasse a punio, bastaria uma imediata e sumria demonstrao de

    poder em face do hipossuficiente para que a sano fosse ento aplicada. Todavia, num

    Estado Democrtico, no qual at mesmo o lupus artificial necessita de legitimidade para seu

    agir, bem crvel que o exerccio do poder deve estar condicionado a algum tipo de forma.

    Tal forma, como escudo protetor contra a arbitrariedade (Binder) o processo.

    Em sntese, a instrumentalidade do processo penal a que corresponde sua legitimao,

    trata-se da proteo dos direitos fundamentais do hipossuficiente. O processo penal forma

    e medida da resistncia aos avanos do poder, na inteno de preservao de direitos

    inalienveis e no passveis de flexibilizao.

    1.2 A Particular Instrumentalidade do Processo Penal

    Como exposto ao incio do presente captulo, o termo instrumentalidade aqui

    empregado cinge-se ao processo de legitimao que o processo penal deve adquirir no

    cerne do Estado Democrtico de Direito26 correspondente preservao dos direitos

    fundamentais do acusado.

    26 En trminos generales el proceso se puede considerar como un instrumento, si se quiere algo sofisticado, de control social. GUARNIERI, Carlo; PEDERZOLI, Patrizia. Los Jueces y la Poltica: poder judicial y democracia. Madrid: Taurus, 1997. p. 105.

  • 17

    Nos dizeres do prprio Ferrajoli existe uma tendncia do poder em se livrar das

    amarras jurdicas, fazendo-se invisvel, deslocando-se para fora das sedes institucionais27.

    Esta tendncia do poder em se justapor e se cristalizar, na falta de limites, em formas

    absolutas, caracteriza um dos traos indelveis dos regimes autocrticos.

    O primeiro aspecto de uma instrumentalidade do processo penal remete questo

    do limite, bem verdade. A segunda, paradoxalmente, reside na falta, remisso originria da

    inevitabilidade do abandono da relao causal28. No entanto, salientadas tais caractersticas,

    possvel afirmar-se que as caractersticas do processo penal no se encontram esgotadas

    nestes traos. Para alm, a instrumentalidade do processo penal, nos termos aqui

    alavancados pode ser construda em moldes semelhantes ao do garantismo de Ferrajoli29, a

    partir de um modelo corretivo da arbitrariedade, decorrente da anttese liberdade x poder

    penal.

    Com relao ao primeiro aspecto, o do limite, afigura-se imprescindvel o

    apontamento que faz, por exemplo, Rui Cunha Martins, ao analisar o que denomina de

    esttica do limite30. Embora esteja reportando-se teoria do Estado, o alicerce do

    pensamento de Martins pode nos ser til no momento. Isto porque o fenmeno punitivo

    constitui uma das formas da chamada violncia institucionalizada e como tal necessita do

    desvelamento das metamorfoses pelas quais passa o Estado. Ademais, o conceito de limite

    se torna relevante, pois justamente ele quem determina uma das mais importantes

    distines para a teoria do direito: aquela entre poltico e jurdico. O Direito, na origem

    desta posio, aparece sempre como um limite ao poder 31. Ao lado do limite exsurge a

    figura da ilimitao. Ilimitao que justamente a marca do poder, sempre tendente a

    27 FERRAJOLI, Luigi. Prlogo a la Edicin Espaola. In Derecho y Razn: teora del garantismo penal. p. 10. 28 A causalidade dos princpios da ordem do Real, eis que inexistem condies de enunciao de alguma relao de causalidade clssica (causa e efeito), mas o encontro com o impossvel, com a falta. ROSA, Alexandre Morais da. Deciso Penal: a bricolage de significantes. p. 112. 29 O termo garantismo empregado por Ferrajoli, em trs acepes. A primeira delas entende o garantismo como um modelo normativo de direito, responsvel pela correo do ordenamento jurdico-penal, a partir de seu construto heurstico. A segunda acepo concebida como uma teoria crtica do direito, que rompe com o dogma positivista da validade enquanto existncia da norma jurdica, para traar um contorno diverso da matria, destinando o termo vigncia para tal designao. A terceira e ltima acepo do termo garantismo versa sobre um modelo de filosofia do direito e crtica da poltica, baseada, sobretudo na separao entre direito e moral. Para uma abordagem destas trs esferas vide a seo V do livro Direito e Razo. FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razn: teora del garantismo penal. p.851-854. 30 CUNHA MARTINS, Rui. Estado, Tempo e Limite. In Revista da Histria das Idias. Vol. 26. p. 309. 31 BINDER, Alberto M. Introduo ao Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Lmen Jris, 2003. p. 26.

  • 18

    extravasar. A transgresso outra figura do limite que trabalha em prol da ilimitao32. O

    poder penal cuja tendncia expansiva e ilimitada encontra na figura da transgresso

    (geralmente de direitos e garantias fundamentais) o seu suporte diferencial relativo ao

    desvio, responsvel pela engrenagem estatal que corresponde violao dos direitos dos

    sujeitos e que, como tal, aparece na teoria do poder como algo necessrio, inerente

    dinmica do maquinrio punitivo. Aqui, como bem apontado por Foucault33, a gesto

    diferencial das ilegalidades e o tratamento do Estado para determinadas espcies da

    criminalidade emergem como algo funcionalmente adequado sociedade. O abuso por

    parte do poder punitivo, nesta senda, no pode ser considerado, como faz boa parte da

    criminologia tradicional, como algo extraordinrio, anormal ou brbaro. O funcionamento

    da justia penal baseia-se e tem como sustentculo esta constante tenso entre a limitao

    estatal e a tendncia transgresso, figura da ilimitao. Como destaca Martins34, existe

    uma pulso centrpeta do limite, que significa que as fronteiras trabalham para dentro.

    As fronteiras nada mais so do que faces do centro. Transportando-se este pensamento

    relativo ao Estado para a criminologia, possvel chegar-se concluso de que a

    delimitao do poder as reas de fronteira outro semblante do centro. O poltico,

    assim, constitui outra face do jurdico e vice-versa. Esta zona fronteiria, que se caracteriza

    como uma espcie de fundo alucinatrio da crena 35 principalmente permeada pela

    teoria da pena, que torna maleveis os discursos jurdicos e polticos. Desta maneira, apesar

    da existncia de uma relao estreita entre pena e processo36, a instrumentalidade do

    processo penal no pode atender s teorias absolutas ou relativas da pena, preferindo-se, a

    fim de delimitar o campo jurdico e o poltico, a concepo agnstica. As teorias da pena

    so marcas indelveis da ilimitao37. Relacionadas tambm, a mais uma grande questo

    que o garantismo no consegue responder: os espaos irredutveis de disposio.

    32 CUNHA MARTINS, Rui. Estado, Tempo e Limite. In Revista da Histria das Idias. Vol. 26. p. 310. 33 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o nascimento da priso. 34 CUNHA MARTINS, Rui. Estado, Tempo e Limite. In Revista da Histria das Idias. Vol. 26. p. 317. 35 CUNHA MARTINS, Rui. Estado, Tempo e Limite. In Revista da Histria das Idias. p. 318. 36 O processo, como instituio estatal, a nica estrutura que se reconhece como legtima para a imposio da pena. LOPES JNIOR, Aury. Introduo Crtica ao Processo Penal (Fundamentos da Instrumentalidade Garantista). p. 03. 37 A ilimitao a possibilidade sempre em aberto de que ocorram todas as diversas figuras do limite, em regime de potencial absoro de todas elas da demarcao, da transgresso, do impulso centrpeto e interior, da ilimitao propriamente dita e de todos [sic] as entidades que nelas se fundamentam dos Estados, inclusive, tambm eles absorvidos, mais que diludos, sob a forma de imprio. CUNHA MARTINS, Rui. Estado, Tempo e Limite. In Revista da Histria das Idias. p. 325.

  • 19

    Esta expanso do poder judicial38, em face do declnio do patriarcado nas

    sociedades ps-industriais39 responsvel por uma minimizao dos espaos de deciso

    institucionais, o que demanda uma segunda problematizao a ser extrada do conceito de

    limite: trata-se da necessidade de se (tentar) controlar (mesmo que precariamente) o

    processo de judicializao40. Esta tarefa cujo incessante incremento legislativo e uma

    perceptvel demanda pelo reencontro com o terceiro (nomeadamente o juiz, numa falsa

    pressuposio de que este possa realmente constituir terceiridade) destina a borrar as

    fronteiras entre legislao, jurisdio e administrao41. Justamente a temperana entre as

    esferas poltica e jurdica acaba sendo dilapidada, expropriada por uma vontade de ascese

    como instncia ltima, como a panacia para os males que afligem a sociedade. A extenso

    dos poderes judiciais e as funes que passam a ser desempenhadas pelo juiz dependem

    significativamente das distintas formas de limitao42. A forma instrumental do processo

    ganha aqui corpo, justificada pelas barreiras opostas poltica. Uma vez mais o papel das

    garantias43 e direitos fundamentais e principalmente pela concepo de instrumentalidade

    que se lhe atribua fundamental para o desenvolvimento conclusivo desta questo44.

    Conceber o processo penal como instrumento de aplicao da pena45 ou ento, como limite

    38 Esta judicializao acaba por impor uma verso penal a qualquer relao poltica, administrativa, comercial, social, familiar e at amorosa doravante descodificada na perspectiva binria e redutora da relao vtima/agressor. GARAPON, Antoine. O Guardador de Promessas: justia e democracia. Lisboa: Instituto Piaget, 1996. p. 24. 39 Cf MELMAN, Charles. O Homem Sem Gravidade: gozar a qualquer preo. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2003. 40 GUARNIERI, Carlo; PEDERZOLI, Patrizia. Prefacio. In Los Jueces y la Poltica: poder judicial y democracia. p. 09. 41 GUARNIERI, Carlo; PEDERZOLI, Patrizia. Los Jueces y la Poltica: poder judicial y democracia. p. 21. 42 GUARNIERI, Carlo; PEDERZOLI, Patrizia. Los Jueces y la Poltica: poder judicial y democracia. p. 107. 43 Para uma relao entre direitos e suas garantias, importante a definio de Ferrajoli, para quem Los derechos fundamentales, de la misma manera que los dems derechos, consisten em expectativas negativas o positivas a las que corresponden obligaciones (de prestacin) o prohibiciones (de lesin).Convengo em llamar garantias primarias a estas obligaciones de reparar o sancionar judicialmente las lesiones de los derechos, es decir, las violaciones de suas garantias primarias. FERRAJOLI, Luigi. Derechos Fundamentales. In _______. Los Fundamentos de los Derechos Fundamentales. Madrid: Trotta, 2001. p. 26. 44 O pensamento clssico oficial, apesar de romper com o barbarismo do processo penal, instaurar regime de legalidade e humanizar a pena, no deixa de apresentar um ncleo ideolgico anti-iluminista (ou uma confuso ps-iluminista entre direito e moral) calcado nos princpios ideolgicos da Defesa Social, representado, principalmente, no que Alessandro Baratta denomina de princpio do bem e do mal. CARVALHO, Salo de. Pena e Garantias. p. 58. 45 O primeiro e mais sensvel efeito da adoo do modelo penal de garantias a negao, a priori, das teorias de preveno especial positiva (ressocializadoras) como argumento justificacionista da pena, e, posteriormente, das prprias justificaes jurdicas s sanes. CARVALHO, Salo de. Pena e Garantias. p. xxv.

  • 20

    ao poder poltico46 (a pena fundamentalmente conceito poltico e no jurdico, como

    leciona Tobias Barreto) significa assumir uma posio de limitao ao poder judicial ou

    sua ampliao desmesurada47. Da que as formas inquisitoriais de processo encontram nas

    novas formas de administrao de justia penal campo frtil para a propagao de institutos

    que ampliam as funes acusatrias tributveis aos rgos de magistratura48.

    Assim, possvel determinar, segundo o conceito de instrumentalidade haurido

    junto s bases epistemolgicas de uma determinada cultura jurdica aqui a continental

    se esta instrumentalidade corresponde aplicao da pena ou pelo contrrio, se limitativa

    desta.

    No Brasil, predomina a formulao que concebe a instrumentalidade em ntido

    carter tico-poltico, minando justamente a idia de limitao do poder estatal. Assim, por

    exemplo, Dinamarco sustenta o carter tico do processo, criticando a existncia de

    nveis intolerveis de prevalncia do princpio dispositivo, em pleno Estado

    intervencionista 49. Alm disso, esta instrumentalidade guarda estreita relao com o

    conceito de forma processual50. A relativizao das formas, aliada ampliao dos espaos

    de poder judicial constitui inegvel pea de engrenagem de um processo penal pautado por

    46 A instrumentalidade do processo penal o fundamento de sua existncia, mas com uma especial caracterstica: um instrumento de proteo dos direitos e garantias individuais. uma especial conotao do carter instrumental e que s se manifesta no processo penal, pois trata-se de instrumentalidade relacionada ao Direito Penal, pena, s garantias constitucionais e aos fins polticos e sociais do processo. o que denominamos instrumentalidade garantista. LOPES JNIOR, Aury. Introduo Crtica ao Processo Penal (Fundamentos da Instrumentalidade Garantista). p. 10. 47 En todo caso, se perciba o no, hoy las democracias se encuentran ante el juez poltico. As el problema de su responsabilidad se agudiza. GUARNIERI, Carlo; PEDERZOLI, Patrizia. Los Jueces y la Poltica: poder judicial y democracia. p. 165. 48 Son poderes que pueden derivar de la tradicin inquisitoria en el proceso, que con frecuencia perdura ms all de las formas concretas o del hecho de que, en pases como Francia e Italia, el juez y el fiscal pertenezcan al mismo cuerpo. GUARNIERI, Carlo; PEDERZOLI, Patrizia. Los Jueces y la Poltica: poder judicial y democracia. p. 166. 49 DINAMARCO, Cndido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 12 ed. So Paulo: Malheiros, 2005. p. 41. Ainda: Sua natureza instrumental impe que todo o sistema processual seja permeado dessa conotao, para que realmente aparea e funcione como instrumento do Estado para a realizao de certos objetivos por ele traados; com o aspecto tico do processo no se compadece o seu abandono sorte que as partes lhe derem, ou uma delas em detrimento da mais fraca, pois isso desvirtuaria os resultados do exerccio de uma atividade puramente estatal e pblica, que a jurisdio. DINAMARCO, Cndido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. p. 64. 50 Segundo Dinamarco, no uso de uma concepo tica e substancialista de processo, o juiz criar modos de tratar a prova, de colher a instruo ou de sentir as pretenses das partes: interrog-las- livremente, dialogar com elas e permitir o dilogo entre elas ou delas com as testemunhas, visitar o local dos fatos, ou examinar coisas trazidas com sinais ou vestgios de interesse para a instruo; permitir que argumentem a qualquer tempo e lhes dirigir perguntas ainda quando declarada finda a instruo e tudo sem as formas sacramentais do processo tradicional. DINAMARCO, Cndido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. p. 156.

  • 21

    parmetros de eficincia51, compondo uma dimenso eticizante de sistema punitivo52, no

    sentido hegeliano de um Estado tico. Obviamente, esta dimenso de um Estado tico deu

    azo para que se consolidassem, durante o sculo XXI, formas estatais de esmagamento e

    compresso da diferena. Neste sentido, no parece fantasiosa a advertncia de

    Goldschmidt, de que o processo penal o termmetro que aponta o grau de elementos

    democrticos ou autoritrios de um determinado Estado.

    Retornando-se instrumentalidade do processo, percebe-se que no se pode auferi-

    la nem avali-la a partir de um lcus neutro do discurso. preciso assumir uma

    determinada concepo de processo, para que a partir de ento as conseqncias de tal

    postura possam trazer todos os seus efeitos. Com o constitucionalismo ps-guerra e com a

    assuno da Constituio da Repblica condio de validade das demais normas

    (movimento este que se d precisamente a partir de Kelsen53, que estabelece as bases

    epistemolgicas para que a Constituio da Repblica assuma este ranking) se encontra

    alicerada a primeira categoria fundamental para a contempornea teoria da Constituio da

    Repblica. No entanto, no basta que a Constituio da Repblica seja elevada a um status

    hierarquicamente superior. Passo decisivo para uma eficcia constitucional plena se deu

    com o denominado ps-positivismo e a preocupao para com os princpios, que se

    consolidam como normas54.

    Logicamente, se a Constituio da Repblica, que disciplina via de regra a imensa

    gama de princpios jurdicos do Estado Democrtico de Direito depositria de uma srie

    de normas, no mais pode ser considerada como mera coadjuvante, carta de intenes ou

    mesmo documento poltico e programtico, identificado como o conjunto dos valores de

    determinada sociedade. Certamente, a diferena ontolgica esculpida por Alexy, que

    51 Exemplo disso pode ser encontrado em Dinamarco, para quem relativizar as nulidades eis a chave instrumentalista a ser inteligentemente acionada por juzes empenhados em fazer justia, sem o comodismo intelectual consistente em apoiar-se no formalismo e esclerosar o processo. DINAMARCO, Cndido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. p. 157. 52 O formalismo e lentido dos procedimentos, associados estreiteza da via de acesso ao Poder Judicirio e impunidade consentida pelos tribunais nestes tempos de verdadeira neurose em face da violncia urbana, so fatores de degradao da legitimao do poder perante a sociedade brasileira contempornea. DINAMARCO, Cndido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. p. 171. 53 Cf KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6 ed. So Paulo: Martins Fontes, 1998. Cf KELSEN, Hans. Teoria Geral das ormas. Porto Alegre: SAFE, 1986. 54 Cf ALEXY, Robert. Teora de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estdios Constitucionales, 1993. GARCA DE ENTERRA, Eduardo. La Constitucin Como orma y el Tribunal Constitucional. 3 ed. Madrid: Civitas, 1994. HESSE, Konrad. A Fora ormativa da Constituio. Porto Alegre: SAFE, 1991.

  • 22

    estabelece os princpios e regras como espcies de normas contribuiu significativamente

    para que a Constituio da Repblica pudesse assumir-se como pice do ordenamento,

    suplantando e debelando a posio positivista, que distinguia normas e princpios,

    relegando-os a um papel secundrio, geralmente da ordem da integrao e colmatao das

    lacunas.

    Retornando-se ao processo penal e sua instrumentalidade, o papel central assumido

    pela Constituio da Repblica no diverso. Nesta que se encontram positivadas a

    imensa maioria das garantias processuais penais. E se de fato assim , a instrumentalidade

    do processo no pode ser outra, pena de se subverter a mxima piramidal kelseniana, que

    aquela advinda da prpria Constituio da Repblica. Desta arte, fala-se, na esteira de Aury

    Lopes Jnior, de instrumentalidade constitucional55. Esta instrumentalidade

    constitucional no quer dizer outra coisa que o processo penal contemporneo somente se

    legitima medida que se democratizar e for devidamente constitudo a partir da

    Constituio 56.

    A instrumentalidade do processo penal comea a ser construda a partir do que

    Ferrajoli denomina de estrita jurisdicionalidade. Antes mesmo de ingressar mais

    profundamente nesta categoria, preciso uma parada mais detida nos pressupostos

    epistemolgicos do garantismo. O primeiro deles dirige-se fundao de um

    conhecimento jurisdicional oposto ao autoritarismo judicial. Este aspecto cognoscitivo

    do Direito constituiria uma das metas do modelo corretivo do Direito proposto por

    Ferrajoli. O modelo penal garantista trata da minimizacin del poder y de maximizacin

    del saber judicial, en cuanto condiciona la validez de las decisiones a la verdad, emprica y

    lgicamente controlable, de sus motivaciones57. Um segundo aspecto, no to relevante

    para o desfecho da presente investigao quanto o primeiro, diz respeito filosofia do

    direito, num sentido valorativo e poltico, da justia penal mais especificamente o

    problema da pena. Um terceiro fundamento epistemolgico do garantismo penal radica-se

    na teoria da validade e no seu imbricamento a um modelo constitucional de legalidade58.

    55 LOPES JNIOR, Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. v. I. 56 LOPES JNIOR, Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. v. I. p. 08. 57 FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razn: teora del garantismo penal. p. 22. 58 FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razn: teora del garantismo penal. p 23.

  • 23

    Os princpios garantistas, portanto, so concebidos como esquemas identificadores

    de graus de irracionalidade penal. Tendentes, nesta senda, a servir de parmetro

    relativizao da arbitrariedade. Evidentemente, possvel, como estampa Ferrajoli59,

    reconhecerem-se dois momentos fundadores deste sistema: num primeiro plano, a prpria

    definio legislativa do delito e em um segundo, a sua comprovao emprica

    (jurisdicional). No primeiro plano situam-se as garantias penais e no segundo as

    processuais60.

    Pela extenso da presente investigao, to somente ser examinado este segundo

    espectro. O cognitivismo processual e a estrita jurisdicionalidade correspondem seara

    delineada naquele referido segundo ponto. O princpio da estrita jurisdicionalidade requer,

    por seu turno, duas condies de consubstanciao. A primeira delas pode ser concebida

    como verificabilidade ou refutabilidade das teses acusatrias61, que significa a proibio de

    um juzo apodtico. Trata-se de um controle emprico submetido verificao/refutao que

    se consolida mediante a remisso da assertiva acusatria a um teste de procedncia, jungida

    teoria da prova. Como corolrio desta postura, Ferrajoli adota, em rechao

    epistemologia inquisitria, a verdade processual em detrimento da substancial ou material.

    Apesar de o presente tpico versar to somente sobre a estrita jurisdiciona