Severino - Educação, Sujeito e História

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 Texto introdutório do livro Educação, Sujeito e História, de Anton io Joaquim Se veri no Desde suas origens gregas, a tradição filosófica e cultural do Ocidente sempre priorizou a teoria ao se referir à signicação dos fenômenos e eventos da realidade. Teor ia entendida e exercida como simples jogo combinatório de idéias, dimensão privilegiada e prestigiada como uma esfera autônoma, desenvolvendo-se no mundo inteligível, como se fosse uma atividade situada numa dimensão qualitativamente superior às atividades práticas desenvolvidas no mundo sensível, marcadas pela contingência. Antropologicamente falando, o pensar humano surge como uma experiência de subjetividade, um exercício autônomo frente à vida prática. Mais ainda, como se antecedesse a ação 1 . Ao longo de sua experiência de quase três mil anos, de tanto privilegiar a atividade teórica, a filosofia ocidental acabou atribuindo-lhe muita autonomia na elaboração de seus produtos. Isso ocorreu porque o processo da subjetividade era visto como uma contemplação mental dos objetos. Daí a prevalência das idéias em relação a objetos e ações práticas. Por isso, apesar de a manifestação da educação ocorrer no plano concreto, tendeu-se a explicá-la a partir das idéias mediante as quais era representada. De modo especial diante de fenômenos como a educação, constata-se que seu significado (assumido como conteúdo mental e representação simbólica transposta da contemplação do real) é o resultado de um complexo processo de construção, realizado através da atividade prática, da qual a teoria é apenas uma dimensão. É a prática que constrói a educação assim como toda expressão da existência humana. Toda explicação teórica deve ter a condição prática como referência fundamental. Ao agir de modo pr ático para educar, o educador constrói a educação em sua condição real, compartilhando-a com os educandos. Não é só compartilhar através de um olhar intelectual comum, mas de uma incorporação mediante a prática. Como mediação privilegiada da educação, o 1  A epistemologia platônica é a expressão exemplar dessa concepção. Em que pese a ingenuidade que afinal ela acaba traduzindo, adquiriu intenso valor paradigmático, tal a força que sua representação exerceu ao longo do desenvolvimento da cultura ocidental. De acordo com o platonisrno, o mundo real, com tudo que o integra, é pálida cópia e precária imitação do mundo verdadeiro, que é o mundo das idéias, situado no plano puramente inteligível. Portanto, de seu ponto de vista, o mundo real é 0 mundo ideal (República, Fêdon, tópicos 73-77). Mas não cabe apenas ao realismo idealista exacerbado de Platão a responsabilidade pela atribuição da anterioridade da idéia à  pratica concreta. Todas as expressões metafísicas de feitio essencialista, como a filosofia aristotélica e tomista, incidem no mesmo erro, na medida em que toda ação prática deve fazer referência a uma entidade previamente  pensada, no caso, a es sência dos seres.

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Texto introdutór io do l ivro

Educação, Sujeito e História, deAnton io Joaquim Sever ino

Desde suas origens gregas, a tradição filosófica e cultural do Ocidente sempre priorizou a

teoria ao se referir à significação dos fenômenos e eventos da realidade. Teor ia entendida e

exercida como simples jogo combinatório de idéias, dimensão privilegiada e prestigiada como

uma esfera autônoma, desenvolvendo-se no mundo inteligível, como se fosse uma atividade

situada numa dimensão qualitativamente superior às atividades práticas desenvolvidas no mundo

sensível, marcadas pela contingência. Antropologicamente falando, o pensar humano surge comouma experiência de subjetividade, um exercício autônomo frente à vida prática. Mais ainda, como

se antecedesse a ação1.

Ao longo de sua experiência de quase três mil anos, de tanto privilegiar a atividade teórica,

a filosofia ocidental acabou atribuindo-lhe muita autonomia na elaboração de seus produtos. Isso

ocorreu porque o processo da subjetividade era visto como uma contemplação mental dos objetos.

Daí a prevalência das idéias em relação a objetos e ações práticas. Por isso, apesar de a

manifestação da educação ocorrer no plano concreto, tendeu-se a explicá-la a partir das idéiasmediante as quais era representada.

De modo especial diante de fenômenos como a educação, constata-se que seu significado

(assumido como conteúdo mental e representação simbólica transposta da contemplação do real) é

o resultado de um complexo processo de construção, realizado através da atividade prática, da

qual a teoria é apenas uma dimensão. É a prática que constrói a educação assim como toda

expressão da existência humana. Toda explicação teórica deve ter a condição prática como

referência fundamental.

Ao agir de modo prático para educar, o educador constrói a educação em sua condição real,

compartilhando-a com os educandos. Não é só compartilhar através de um olhar intelectual

comum, mas de uma incorporação mediante a prática. Como mediação privilegiada da educação, o

1 A epistemologia platônica é a expressão exemplar dessa concepção. Em que pese a ingenuidade que afinal ela acabatraduzindo, adquiriu intenso valor paradigmático, tal a força que sua representação exerceu ao longo dodesenvolvimento da cultura ocidental. De acordo com o platonisrno, o mundo real, com tudo que o integra, é pálidacópia e precária imitação do mundo verdadeiro, que é o mundo das idéias, situado no plano puramente inteligível.

Portanto, de seu ponto de vista, o mundo real é 0 mundo ideal (República, Fêdon, tópicos 73-77). Mas não cabeapenas ao realismo idealista exacerbado de Platão a responsabilidade pela atribuição da anterioridade da idéia à pratica concreta. Todas as expressões metafísicas de feitio essencialista, como a filosofia aristotélica e tomista,incidem no mesmo erro, na medida em que toda ação prática deve fazer referência a uma entidade previamente

 pensada, no caso, a essência dos seres.

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ensino não passa apenas informações, mas, sobretudo um procedimento. Mais que um discurso em

sentido estrito, as práticas do cotidiano educacional formaram um ethos, um modo de ser e de

viver.

 No entanto, a prática humana é opaca. Ela não se auto-esclarece apenas por efetivar-se.

Sendo humana, ela é intencional e se vincula a fins, muito além da eficácia mecânica. Ao ganhar

flexibilidade, não se submete mais à determinação de mecanismos rígidos dos instintos. Mas a

intencionalidade (significação conceitual e/ou valorativa que orienta nosso agir) que impregna a

 prática humana nem sempre é transparente; o mais das vezes, ela se camufla sob disfarces

ideológicos ou outras formas de alienação de tal modo que o sujeito, em sua cotidianidade, nem

sempre tem plena consciência do sentido de suas ações. Nosso agir social, embora não seja puro

instinto, é ambíguo quanto a sua gênese e fontes intencionalizantes. Suas fontes energéticas

encontram-se num emaranhado complexo de vetores orgânicos, psíquicos, sociais e culturais que

se amalgamam no âmbito de nossa subjetividade e quase nunca no plano consciente. Na maioria

das vezes, manifestam-se na homogeneidade do senso comum como consciência iludida e

ingênua.

 Não obstante, a prática humana precisa da teoria para se expressar significativamente. Ela

seria muda se não se exprimisse pelo pensamento e pelo conceito. O seu sentido não se revela

mecanicamente, mas só se dá a um sujeito que seja capaz de lê-lo. A teoria, em sentido amplo, é o

esforço de realizar essa leitura e explicitar o sentido imanente à prática. É o meio possível para a

leitura da realidade, para que ela possua algum sentido. Assim, as práticas concretas são a base do

fenômeno educativo e lhe dão realidade; mas a teoria dá configuração ao objeto como tal,

enquanto educação. A prática humana, em que pese a opacidade de sua gênese, só pode ser

esclarecida e significada pela lucidez da consciência e pela expressão  teórica da subjetividade.

 Não há outro caminho.

Portanto, a atividade teórica ganha sentido na medida em que se faz comointencionalização da prática, que opera quando efetiva o esclarecimento. No âmbito educacional, a

teoria tem por finalidade  esclarecer os elementos envolvidos na prática, dando-lhes sentido

norteador e referência do processo, evitando que a intervenção educativa se tome puramente

mecânica.

A intencionalidade supera a transitividade da prática. Esta, por ser dependente das

mediações objetivas, corre o risco de se efetivar de modo automático mediante o jogo das forças

transitivas da naturalidade dos mundos físico-biológico ou sócio-cultural. Daí a exigência daintervenção significadora da prática simbólica da consciência cognoscitiva e avaliativa, a qual

instaurará o sentido da prática. Por isso, a educação só é humanizadora se for intencionalizada

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 pelo conhecimento e pela valoração, desde que referidos à significação apreendida na existência

histórico-social.

Ciência e filosofia, as duas modalidades de conhecimento mais desenvolvidas na cultura

ocidental, participam da construção do conceito da educação, pois elaboram sua intencionalidade e

significação. Trata-se do investimento global da atividade cognoscitiva com vistas a estabelecer as

referências norteadoras da prática educacional, tal como planejada e executada pelas sociedades

históricas.

Atribuir hoje essa responsabilidade à filosofia exige que, à luz do seu desenvolvimento, se

defenda o papel intencionalizador da razão. Caso esta seja assumida como o núcleo do sujeito

capaz de construir, mediante diferentes modalidades de conhecimento, o significado conceitual

das coisas, ao longo do tempo histórico em que se realiza a cultura, tenha-se claro que não se trata

de uma trajetória harmoniosa nem conduzida pela força transcendental de uma necessidade

determinística. É, sim, um processo sinuoso, crivado de obstáculos e com resultados marcados

 pela ambigüidade. Uma situação complexa na ciência se toma muito mais delicada no caso da

filosofia, solo da tarefa mais crucial: elucidar o sentido da existência. O ato de conhecer é

comparável à situação de um piloto de avião voando em condições precárias. Quando a

visibilidade é pouca, ele pode conduzir a aeronave por meio de instrumentos, sem sair da rota nem

correr risco de erros graves. Mas, quando se trata de guiar a sua vida, dando-lhe um norte a partir

da intencionalização de sua ação prática, o sujeito nunca se encontra em “céu de brigadeiro” e seu

vôo não é feito à plena luz do mundo das idéias, nem automaticamente. O vôo do espírito se faz

em meio à neblina, nunca escapa às brumas! O erro do Iluminismo foi considerar que a razão

eliminaria todo traço de trevas. Clareia, sim, mas é uma claridade refratada na neblina e ofuscada.

Platão simplificou nossa condição em sua Alegoria da Caverna. É verdade que, pelo

exercício do conhecimento intelectual, o espírito sai da caverna. Mas fora dela não está sob plena

luminosidade! No lado de fora, a luz do Sol se mistura às brumas.Assim, a transparência dos atos relacionados à subjetividade não é absoluta. Merleau-

Ponty tem razão ao considerar que o conhecimento humano, mesmo o mais lúcido, nunca

consegue eliminar certa ambigüidade. Essa convicção é uma marca forte em quase todas as

expressões da filosofia contemporânea, chegando até a uma postura  cética e pessimista. Esta se

contrapõe ao otimismo do pensar iluminista e procura legitimar-se como recusa da modernidade e

afirmação da pós-modernidade.

Paira no ar aguda consciência do drama da contingência humana e das limitações de seu poder mais específico: a utilização da subjetividade racional. Ao longo de sua história como

construtor do conhecimento, o sujeito não transita apenas por caminhos suaves, balizados por

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conquistas e consolidações, mas também por fracassos. O mais terrível é que o inimigo maior da

razão não se encontra fora dela. Ao longo de sua trajetória, desde quando foi observada, a

racionalidade humana encontra o maior obstáculo em seu interior, sendo freqüentemente derrotada

 por si mesma numa implacável luta contra a desrazão.

Por isso, a construção do conhecimento - que deveria intencionalizar a existência humana

na dimensão teórica e nas aplicações éticas, políticas ou pedagógicas - é atravessada por percalços,

num caminhar repleto de promessas e de tantas desilusões. O absurdo sempre afronta o lógico:

isso faz com que muitos, como os filósofos arqueo-genealógicos, afirmem que o desenvolvimento

do humano tem história, mas não tem lógica.

A História nos últimos milênios apóia tal ceticismo. Apesar dos investimentos e avanços

da intervenção racional sobre as mediações do destino da espécie, a cultura contemporânea mostra

um saldo em que a desrazão parece vencer; a humanidade não consegue conduzir sua existência

referindo-se a significações que correspondam a uma maior humanização. O espetáculo que a

sociedade se oferece neste início de terceiro milênio ocidental é uma exposição em carne viva da

derrota do senso racional frente a desmandos de toda ordem. A barbárie está levando a melhor

sobre a civilização, uma possível organização racional da sociedade. Quando a economia se guia

sobretudo pela insondável “mão invisível do mercado”, percebe-se a prevalência da

irracionalidade. Como é possível a razão destruir sua única referência cabível? De que valeria esse

maravilhoso equipamento da subjetividade se acabássemos desfigurados por ele? 

A convivência dos homens entre si e com a natureza mostra-se insustentável e ameaça

acuar o espaço pessoal de existência digna. Os indícios de uma androidização da espécie

aumentou nas últimas eras, ao mesmo tempo que os processos da produção e distribuição de bens

atiram segmentos enormes no limbo da exclusão, condenando-os à inanição. Não mais se

verificam circunstâncias conjunturais, mas processos estruturais, nos quais alguns setores jogam

com plenos poderes e fria lucidez. Nessa entropia, a civilização se tomou barbárie e a lógicaracional se fez irracional idade. Ser racional é a última característica da lógica do mercado!

Os homens dispõem apenas da razão para enfrentar e reorientar essa situação de acordo

com alguma intencionalidade. Essa razão, que responde pela enlouquecida corrida rumo à barbárie

total, é a única ferramenta da espécie para construir a civilização. Só o conhecimento poderá

esclarecer-nos e apresentar significações para redirecionar nossa prática, mediadora da existência,

 potencializando as dimensões humanizadoras.

A educação é radicalmente vinculada ao conhecimento e se toma sua mediadora paraintencionalizar a prática humana. Daí sua importância para a existência e a imperiosa necessidade

de se transformar a estratégia pedagógica em esforço de universalizar o poder intencionalizador do

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conhecimento, de modo que todos os sujeitos se dêem conta dos sentidos que redicionariam sua

ação na linha de maior humanização.

Sendo a única via para significar a ação construtora da História, o conhecimento se firma

como índice de transcendência no seio de sua total imanência. O modo de existir do homem,

imerso nas condições objetivas, impele-o a ultrapassar essas condições, na medida em que as

nomeia, re-significa e articula no desencadeamento e execução de sua ação prática.

Assim, toda explicação formulada pela subjetividade racional esbarra na radical

contingência do conhecimento, em sua historicidade. A imanência denuncia, como petulância

arbitrária, qualquer pretensão ao conhecimento trans-histórico, bem como a verdades definitivas e

referências absolutas.

Essas limitações não eliminam o compromisso de praticar uma “transcendência histórica”,

investir na construção de verdades provisórias, explicitar valores para legitimar finalidades

datadas participando da construção de sentido. Se ao conhecimento humano é vedado o acesso a

qualquer verdade trans-histórica, não lhe é impossível estabelecer saberes históricos como

referência para sua prática, definindo rotas em nosso vôo por entre brumas. Tal vôo não só não é

impossível, mas é necessário, apesar das limitações.

A presente reflexão assume essa premissa. A filosofia deve ser praticada oportuna e

inoportunamente, ciente de seus condicionamentos.  No caso da Filosofia da Educação,

compromete-se na elucidação do sentido da estratégia pedagógica do conhecimento.

Pretendo ex plicitar o papel da filosofia no processo de educação, conceitualmente e em seu

 pleno significado, bem como o sentido de uma Filosofia da Educação e sua contribuição ao

compreender o significado do processo educacional. É sob a modalidade filosófica que   o

conhecimento realiza essa tarefa.

Referencia bibliográfica

SEVERINO, Antônio Joaquim. Educação, sujeito e história.  São Paulo: Olho d’Água,2001, p. 7 – 13.