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RELATÓRIO FINAL PÓS-DOUTORADO BOLSISTA: CECÍLIA ANTAKLY DE MELLO SUPERVISORA: MARIA DORA GENIS MOURÃO TÍTULO: “MOVIMENTO E ESPAÇOS URBANOS NO CINEMA MUNDIAL CONTEMPORÂNEO01 DE MAIO DE 2008 - 30 DE ABRIL DE 2011 ÍNDICE A) RESUMO DO PLANO INICIAL B) RESUMO DE ATIVIDADES NO PERÍODO C) DETALHAMENTO DOS PROGRESSOS REALIZADOS D) MOVIMENTO E ESPAÇOS URBANOS NO CINEMA CONTEMPORÂNEO E) BIBLIOGRAFIA E FILMOGRAFIA

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RELATÓRIO FINAL

PÓS-DOUTORADO

BOLSISTA: CECÍLIA ANTAKLY DE MELLO

SUPERVISORA: MARIA DORA GENIS MOURÃO

TÍTULO: “MOVIMENTO E ESPAÇOS URBANOS NO CINEMA MUNDIAL CONTEMPORÂNEO”

01 DE MAIO DE 2008 - 30 DE ABRIL DE 2011

ÍNDICE

A) RESUMO DO PLANO INICIAL

B) RESUMO DE ATIVIDADES NO PERÍODO

C) DETALHAMENTO DOS PROGRESSOS REALIZADOS

D) MOVIMENTO E ESPAÇOS URBANOS NO CINEMA CONTEMPORÂNEO

E) BIBLIOGRAFIA E FILMOGRAFIA

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A) RESUMO DO PLANO INICIAL E DAS ETAPAS JÁ DESCRITAS EM RELATÓRIOS ANTERIORES

A.1) PRIMEIRO ANO (2008-2009)

O projeto inicial de pesquisa de pós-doutorado apresentado à FAPESP em 2008 tinha

como objetivo investigar a relação entre cinema e cidade a partir de cinco filmes realizados

nos últimos 15 anos na cidade de São Paulo: Os 12 trabalhos (Ricardo Elias, 2006),

Antônia (Tata Amaral, 2006), Terra estrangeira (Walter Salles e Daniela Thomas, 1995),

O príncipe (Ugo Giorgetti, 2002) e O invasor (Beto Brant, 2007). A análise de cada filme

privilegiava um aspecto da relação entre cinema e cidade, e progredia através de cotejos

com outros filmes, de nacionalidades e momentos diversos, mas que dialogavam de forma

prolífica com os temas abordados. O principal intuito do trabalho era a geração de um

modelo original para o estudo da relação entre o cinema e a cidade, fruto de uma

abordagem comparativa que unia cidades e cinemas distantes em uma nova geografia.

Além disso, o trabalho cobria uma lacuna ao abordar aspectos do mais recente cinema de

São Paulo.

Os resultados dessa pesquisa, conforme previa o projeto inicial, seriam

apresentados na forma de cinco artigos de 5.000 palavras cada. Cada um desses artigos

teria como ponto central um aspecto da mobilidade e da instabilidade do espaço urbano

nas grandes cidades contemporâneas, observado em relação aos filmes paulistanos, mas

em diálogo com outros filmes e cidades. Em primeiro lugar, caberia abordar o próprio

“mover-se através da cidade”, a partir dos filmes Os 12 trabalhos, Os rebeldes do deus

néon (Ch’ing shaonien na cha, Tsai Ming-liang, 1992) e Caro diário (Caro diario, Nanni

Moretti, 1993); em seguida esse movimento seria discutido a partir da figura da mulher na

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cidade e da tensão espacial centro-periferia, a partir de Antônia, Up the Junction (Ken

Loach, 1965) e Um gosto de mel (A Taste of Honey, Tony Richardson, 1961); em

terceiro lugar, o movimento ocorria de uma cidade para outra, suscitando questões sobre

tempo e espaço, identidade e memória em Terra estrangeira, Que horas são aí? (Ni

neibian jidian, Tsai Ming-liang, 2001) e Contra a parede (Gegen die Wand, Fatih Akin,

2004); em quarto lugar o movimento abordado seria o da própria cidade, em constante

modificação, instável e efêmera, conforme visto em O príncipe, A passarela se foi

(Tianqiao bu jianle, Tsai Ming-liang, 2002), Adeus, Dragon Inn (Bu san, Tsai Ming-liang,

2003) e Em busca da vida (Sanxia Haoren, Jia Zhang-ke, 2006); Por fim, havia a previsão

de um artigo que abordaria a cidade noir, exteriorizada e interiorizada, que oprime o

personagem num movimento persecutório e desordenado em O invasor, Sombras do mal

(Night and the City, Jules Dassin, 1950) e Batalha no céu (Batalla en el Cielo, Carlos

Reygadas, 2004). O projeto ainda ressaltava que os temas delineados estavam longe de

representar categorias estanques, interconectando-se e enriquecendo-se à medida que

avançavam. Desse modo, o trabalho trataria do movimento interno do filme através da

cidade, além de inspirar-se na justaposição e na conectividade essenciais ao espaço ao

sobrepor diferentes filmes e diferentes cidades em seu modelo de análise.

A inspiração inicial para o projeto de pesquisa vinha do retorno da cidade de São

Paulo às telas dos cinemas, observável principalmente nos últimos dez anos em

numerosas produções ávidas por exibi-la, percorrê-la, discuti-la. O cinema nacional

mostrou vigor em filmes como O invasor, Antônia, Os 12 trabalhos, Não por acaso

(Philippe Barcinski, 2006), Via láctea (Lina Chamie, 2007), Linha de passe (Walter Salles

e Daniela Thomas, 2008), entre tantos outros intimamente ligados à cidade, compondo

uma tendência que ainda não dava sinais de esmorecimento. Partindo-se da hipótese de

que o cinema é um meio que viaja no espaço do mundo e no espaço da tela, a trajetória

das imagens e sons de São Paulo se entrelaçava com outras trajetórias, outros espaços,

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outras cidades e outros cinemas. E era nesse entrelaçamento que o trabalho proposto

encontrava seu trajeto.

O projeto previa como embasamento teórico para esse estudo o reconhecimento,

a partir da década de 1970, do espaço como categoria organizadora, e da espacialização

como termo de análise e descrição da sociedade e culturas moderna e pós-moderna

(Foucault, 1967, Lury e Massey, 1991). Um conceito central para a pesquisa vinha de

Doreen Massey, geógrafa que identifica a cidade como uma forma intensa de

justaposições e simultaneidades, e acredita que o cinema, por ser um meio que viaja por

espaços diversos, molda-se perfeitamente a essas características espaciais.

A pesquisa iniciou-se em teoria no dia 01 de maio de 2008, mas conforme

explicado no primeiro relatório o termo de outorga foi assinado no dia 19 de junho de

2008, com vigência retroativa. Durante o primeiro ano de bolsa, as etapas previstas foram

cumpridas aproximadamente dentro do prazo, à exceção da redação final dos cinco

artigos. A primeira parte da pesquisa foi dedicada a uma extensa investigação bibliográfica

e fílmica. Como era de se esperar, pude detectar várias lacunas na bibliografia apresentada

com o projeto de pesquisa, e a versão contida no primeiro relatório já apresentava uma

lista substancialmente mais completa. A relação entre o cinema e a cidade foi, nos últimos

15 anos, objeto de sucessivas conferências em diversas partes do mundo. Um grande

número de livros foi editado, principalmente em língua inglesa ou francesa, durante esse

período (ver revisão bibliográfica na introdução da tese), além do tema ter sido objeto de

uma série de números especiais de revistas acadêmicas no campo do audiovisual, da

arquitetura e da geografia. Infelizmente as bibliotecas da Universidade de São Paulo e

outras bibliotecas públicas na cidade não dispõem de quase nenhum desses livros, e de

apenas alguns dos periódicos relevantes. Assim, senti a necessidade de adquirir muitos

livros através da internet, ou por ocasião da viagem ao Reino Unido em março de 2009,

ou ainda consultar artigos e capítulos através de ferramentas tais como o Google Books.

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Minha preocupação era estar ciente não apenas do importante histórico da relação entre

cinema e cidade na teoria do audiovisual, como também dos mais recentes avanços e

abordagens sobre o tema. Além disso, tratando-se de uma investigação com forte caráter

interdisciplinar, a pesquisa bibliográfica avançou por áreas tais como a arquitetura e a

geografia, com um destaque para questionamentos acerca da noção de espaço. Nesse

período inicial realizei também uma detalhada análise textual de todos os filmes do

projeto.

A segunda fase iniciou-se no final de setembro de 2008, durante a qual realizei

leituras de livros e artigos sobre o tema, além da visualização de filmes. Após esse período

o projeto inicial passou por uma primeira mudança com a exclusão do quinto tema de

análise, que previa uma abordagem da cidade noir a partir dos filmes O invasor, Sombras

do mal e Batalha no céu. No lugar, julguei mais adequado empreender uma análise dos

filmes Não por acaso de Philippe Barcinski (2007) e Marcas da vida de Andrea Arnold

(Red Road, 2006), a partir do tema do controle espacial da cidade por câmeras de

segurança e de controle do trânsito.

O primeiro relatório apresentou o esboço de uma introdução teórica que dava

conta dos principais temas abordados na pesquisa, quais sejam, a relação entre o cinema e

a cidade e a questão do realismo. Situava assim os filmes analisados dentro do panorama

do “retorno ao real”, observado tanto na produção quanto no renovado interesse teórico

pelo tema a partir de meados dos anos 1990. Esse reencontro com o realismo se dava em

grande parte através de um reencontro com a cidade real da locação, ou com o corpo da

cidade. Nessa introdução, teci também alguns comentários acerca de traços familiares que

sugerem uma tendência, quiçá um ciclo, desse novo cinema de São Paulo, distinto do

cinema paulistano da Vila Madalena dos anos 1980 (o último ciclo de filmes com

características comuns produzido na cidade).

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Durante o primeiro ano da pesquisa realizei uma série de atividades junto ao

Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da ECA/USP, que significaram uma

importante expansão dos meus interesses teóricos. Conforme já mencionado nos

relatórios anteriores, destaco minha participação em um grupo de estudos sobre o “filme-

ensaio”, sob coordenação do Prof. Dr. Ismail Xavier. No segundo semestre de 2008 tive

também a oportunidade de ministrar aulas no curso da Profa. Dra. Maria Dora Mourão,

Montagem/Edição I, oferecido aos alunos do segundo ano da graduação do curso de

Audiovisual da ECA-USP. Ainda em 2008, apresentei comunicação no XII Encontro

Internacional SOCINE em Brasília, abordando o ciclo dos spiv films, que se desenvolveu

na segunda metade da década de 1940 no Reino Unido.

Em março de 2009 viajei para a Inglaterra com recursos da reserva técnica

referente ao primeiro ano de bolsa (2008/09), onde apresentei duas palestras: a primeira

no Birkbeck College, Universidade de Londres, no dia 12 de março de 2009, intitulada

“Woman and the Urban Landscape in A Taste of Honey, Up the Junction and Antônia”,

que correspondia ao segundo artigo do projeto original; a segunda, na School of Modern

Languages and Cultures, Centre for World Cinemas, Universidade de Leeds, no dia 17 de

março de 2009, intitulada “The Body of the City within the British Social Realist

Tradition”, uma reflexão acerca do corpo da cidade como índice realista a partir de filmes

da tradição social realista inglesa. Ambas as apresentações, com duração de uma hora,

foram excelentes oportunidades para divulgar minhas idéias no exterior diante de uma

audiência diversificada de estudantes e professores, e ensejaram debates enriquecedores.

A.2) SEGUNDO ANO (2009-2010)

Com a renovação da bolsa de pós-doutorado a pesquisa ganhou mais fôlego e maior

escopo. O segundo ano iniciou-se em maio de 2009 e durou até abril de 2010. Nesse

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período a pesquisa amadureceu e se transformou, conforme detalhado no segundo

relatório. Durante a finalização da redação dos artigos, e após as apresentações no exterior

e no Brasil, nas quais pude discutir a pesquisa com um público maior, senti a necessidade

de uma segunda reavaliação do projeto original. As modificações propostas foram

aprovadas através do segundo relatório, incluindo a mudança de título, que passou de

“São Paulo e a Viagem do Olhar: O Corpo da Cidade no Cinema” para “Movimento e

Espaços Urbanos no Cinema Mundial Contemporâneo”. Seis elementos principais

justificavam essa reavaliação e a importância da extensão da bolsa, quais sejam: (1) a

necessidade de uma pesquisa que desse conta não apenas da relação entre cinema, cidade

e o realismo de um modo geral, mas também do paradigma neo-realista, central para

qualquer discussão envolvendo o uso da cidade real no cinema. (2) A diferença de

envergadura das obras analisadas, que acabou acarretando uma minimização do espaço

dedicado a alguns dos filmes paulistanos, e ao cinema de São Paulo como base da

pesquisa. (3) A necessidade de uma periodização mais rígida, o que me levou a focar a

pesquisa em filmes realizados nas décadas de 1990 e 2000, mas sem perder de vista o

paradigma neo-realista e a importância de outros filmes urbanos na história do cinema

mundial e da cinematografia paulista de um modo geral. (4) A necessidade de uma maior

coerência teórica entre os temas abordados na pesquisa, o que levou à eliminação do

artigo dedicado exclusivamente à presença da mulher no espaço urbano, cuja base teórica,

a questão do gênero, estava deslocada da discussão maior acerca do movimento no espaço

urbano e do cinema como arte espacial. (5) Um aumento considerável da forma de

apresentação dos resultados finais da pesquisa, passando de cinco artigos para uma tese, a

ser publicada em forma de livro no Brasil em 2012/3 e possivelmente no Reino Unido em

2013/4.

No segundo ano de bolsa apresentei duas comunicações na Escola de

Comunicações e Artes da USP, a primeira em um seminário no Departamento de

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Cinema, Rádio e Televisão, e a segunda na “1ª Semana de Pesquisa ECA/USP”, ambas

excelentes oportunidades para a discussão do projeto. Apresentei também palestras sobre

cinema chinês no Instituto Confúcio na UNESP e sobre cinema inglês no XIII Encontro

Internacional da SOCINE, realizado na ECA/USP, São Paulo. Nesse período co-organizei o

livro Realism and the Audiovisual Media (com Lúcia Nagib) para a editora Palgrave

Macmillan (Reino Unido), uma contribuição importante e inteiramente original dentro da

pesquisa contemporânea sobre realismo. Para o livro, co-assinei a introdução e contribuí

um capítulo dedicado ao telefilme Up the Junction. Publiquei o artigo “Free Cinema: O

Elogio do Homem Comum” na Significação: Revista de Cultura Audiovisual número 29.

Participei como ouvinte de um curso na Cinemateca Brasileira sobre a cidade no cinema,

e do Seminário Internacional “Retornos do real: cinema e pensamentos contemporâneos”

(UFRJ). Por fim, em 2009 ministrei aulas esporádicas em três cursos diferentes na

ECA/USP, a saber, “Montagem I”, “Montagem II” (graduação) e “O filme ensaio no

cinema moderno e contemporâneo” (pós-graduação).

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B) RESUMO DE ATIVIDADES NO PERÍODO

O terceiro ano de bolsa se iniciou em maio de 2010. Nesse período a bibliografia e a

filmografia passaram por algumas atualizações, e suas versões finais estão incluídas nesse

relatório; o projeto passou por uma reformulação final (detalhada no item “C”), devido ao

contato com novas fontes bibliográficas e fílmicas durante os períodos de estágio no

exterior; apresentei seis comunicações no exterior e três comunicações no Brasil;

publiquei em Taiwan um texto sobre cinema brasileiro; na Inglaterra um capítulo de livro;

submeti à publicação na Inglaterra dois artigos e um capítulo de livro; terminei a redação

da tese; além de outras atividades descritas abaixo, organizadas por subitens.

B.1) ESTÁGIOS NO EXTERIOR

B.1.1) TAIWAN E CHINA

SCHOOL OF FILM AND NEW MEDIA

GRADUATE INSTITUTE OF FILMMAKING

TAIPEI NATIONAL UNIVERSITY OF THE ARTS, TAIWAN

Supervisão: Prof. Daw-Ming Lee

Período: 14 Abril / 23 Maio 2010

De 14 de abril a 23 de maio de 2010 fui recebida como Pesquisadora Visitante na Taipei

National University of the Arts (國立臺北藝術大學), Taiwan (Formosa). O principal

motivo da viagem era realizar pesquisa sobre o diretor taiwanês Tsai Ming-liang e sobre o

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cinema taiwanês em geral, com ênfase nos filmes realizados em locação na cidade de

Taipei. Fui recebida pelo Prof. Daw-Ming Lee, chefe da “Escola de Cinema e Novas

Mídias” desta Universidade. Descreverei a seguir as principais atividades realizadas

durante meu período em Taiwan:

a) Fiquei hospedada no campus da Universidade no bairro de Guandu, Taipei, em

um prédio destinado a pesquisadores visitantes e professores, com total acesso a

facilidades tais como uma excelente biblioteca, restaurantes e ginásio de esportes.

Na “Escola de Cinema e Novas Mídias” recebi um escritório com computador e

internet, assim como apoio administrativo dos funcionários.

b) Na Escola tive à minha disposição a coleção de Vídeos e DVDs, com excelente

infra-estrutura para visualização. Lá pude assistir a uma variedade de filmes

taiwaneses indisponíveis no Brasil, tais como (a tradução, quando existir, está

principalmente em inglês visto que a maioria não possui título em português):

Liang Xiang Hao (Lee Hsing, 1961), Zao An Taipei (Good Morning Taipei, Lee

Hsing, 1979), Ke Nu (Oyster Girl, Lee Hsing, Lee Chia, 1963), Yang Ya Ren Jia

(Beautiful Duckling, Lee Hsing, 1965), Re Dai Yu (Tropical Fish, Chen Yu-hsun,

1995), Feng Gui Lai de Ren (Os garotos de Fengkuei, Hou Hsiao-hsien, 1983), Jia

Zai Taipei (Home Sweet Home, Pai Ching-jui, 1970), Taipei Zhi Chang (A

Morning in Taipei, Pai Ching-jui, 1964), Guang Yin de Gu Shi (In Our Time,

various, 1982), Er Zi De Da Wan Ou (The Sandwich Man, various, 1983), Haijiao

Qi Hao (Cape No. 7, Wei Te-sheng, 2008), Ting Shuo (Hear Me, Cheng Fen-fen,

2009), Monga (Doze Niu, 2010), entre muitos outros. Pude também contar com o

apoio e a orientação dos professores Daw-Ming Lee e Peggy Chiao – esta uma das

principais figuras do cinema taiwanês, conhecida como a “madrinha” do novo

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cinema dos anos 1980 – que foram instrumentais ao recomendarem artigos e

livros para minha pesquisa, além de sugerirem filmes importantes para a história

do cinema taiwanês urbano. Através de visionamentos preliminares pude conhecer

mais profundamente a história do cinema taiwanês, desde a fase conhecida por

“realismo saudável” nos anos 1960, passando pelo “novo cinema taiwanês” dos

anos 1980, e chegando ao por vezes chamado de “novo-novo cinema taiwanês”

dos anos 1990/2000, ao qual pertence Tsai Ming-liang. Pude também me

familiarizar com novas tendências dessa cinematografia nos últimos três anos.

Dentre os diretores com os quais tomei contato pela primeira vez em Taiwan,

fiquei especialmente interessada na obra dos grandes mestres Lee Hsing e Pai

Ching-jui, cujas carreiras atravessaram décadas e incluem importantes filmes

realizados nos anos 1970 em locação na cidade de Taipei. Destaco a descoberta da

sinfonia urbana inacabada de Pai Ching-jui, A Morning in Taipei, realizada em

1964.

c) Na “Escola de Cinema e Novas Mídias” pude também assistir a algumas aulas do

curso de cinema, dentre as quais duas sessões do curso de História do Cinema

Chinês, ministrado pela Prof. Peggy Chiao, dedicados à obra do diretor Xie Jin e

aos filmes Yang Ban Xi, produzidos durante a Revolução Cultural na China

continental. Assisti também a uma sessão de trabalhos dos alunos do curso de

direção, cuja qualidade e originalidade muito me impressionaram.

d) Durante o período como pesquisadora visitante na TNUA fui convidada a

apresentar duas palestras, abertas aos estudantes e professores da universidade,

assim como a estudantes de outras universidades. A primeira intitulou-se “Cinema

Brasileiro: do Cinema Novo às tendências contemporâneas”, oferecida no dia 4 de

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maio de 2010. A segunda intitulou-se “Cinema Britânico e a Tradição Social-

Realista”, oferecida no dia 11 de maio de 2010. Acredito que ambas as aulas foram

um sucesso e representaram um ponto inicial de contato com essas

cinematografias para muitos dos estudantes presentes. Um dia antes de cada

apresentação a Escola organizou uma sessão com os filmes Deus e o diabo na terra

do sol e A Taste of Honey, respectivamente. Cada aula durou aproximadamente

duas horas, e foi amplamente divulgada através de anúncios online e impressos.

e) No dia 1 de maio tive a grande oportunidade de entrevistar o diretor Tsai Ming-

liang no café que ele mantém com os atores Hsiao Kang e Lu Yi-ching, “Tsai Lee

Lu”. A entrevista durou duas horas e cobriu diversos aspectos da obra de Tsai

relevantes para a minha pesquisa, tais como suas ideias acerca do espaço no

cinema, sua relação com a cidade e sua noção de realismo. De volta ao Brasil, a

entrevista foi transcrita por mim e pela minha professora em mandarim, e depois

traduzida para o português. Isso representou uma importante etapa na minha

pesquisa, visto que possibilitou uma nova perspectiva acerca de ideias que venho

há tempos desenvolvendo acerca da relação cinema-cidade. O diretor Tsai

também disponibilizou para mim uma cópia de seu novo média-metragem

Madame Butterfly, filmado em locação em Kuala Lumpur, Malásia.

f) Neste mês em Taipei pude também comparecer a eventos relacionados com o

cinema taiwanês, tais como a première do filme Let the Wind Carry Me, dirigido

por Chiang Hsiu-Chiung e Kwan Pung-Leung, e uma palestra de três horas

conferida pelo diretor Tsai Ming-liang na National Taipei University of

Technology (21

de maio).

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g) Gostaria também de salientar o contato estabelecido com a diretora do Festival

Internacional de Taipei Jane Yu, que compareceu à minha aula sobre cinema

brasileiro na universidade. Em 2010 o festival, que ocorre todos os anos no mês de

junho, estava preparando uma retrospectiva sobre o cinema brasileiro, e fui

convidada a escrever um texto para o catálogo. Participei também da conferência

de imprensa do festival, onde pude conhecer o pai do novo cinema taiwanês, Hou

Hsiao-hsien, e colaborei através de dois encontros com a organização do festival,

esclarecendo dúvidas sobre o cinema brasileiro e apresentando sugestões. O texto,

além de publicado no catálogo, foi distribuído a frequentadores do festival,

divulgado em um mural e no site do festival.

(http://www.taipeiff.org.tw/TaipeffNews/citynewsA.aspx?id=5205&subid=5206&aid

=121&class)

h) Nesse período pude também visitar diversos museus, com destaque para o Museu

de Artes Plásticas de Taipei, onde pude ver uma instalação do diretor Tsai Ming-

liang intitulada It’s a Dream (Shi meng). A obra consiste em uma projeção em

DVD dentro de um cubo branco, onde estão também três fileiras de cadeiras

vindas de um velho cinema na Malásia. Essa instalação faz parte da série “Memory

of a Journey”, que conta também com o trabalho dos artistas Chiou Jyian-ren,

Huang Ming-chang e Wang Ya-Hui. Uma análise de It’s a Dream foi incorporada

ao capítulo dedicado à cidade efêmera. Outros museus, templos e jardins visitados,

além de diversas locações de filmes, propiciaram um importante contato com a

cultura taiwanesa, e uma nova perspectiva sobre os filmes que venho pesquisando,

muitos deles filmados em locação em Taipei. Lá pude também ir ao cinema

algumas vezes, onde assisti a três novos filmes que contém o nome Taipei em seu

título, exemplos recentes de um cinema urbano que cultiva uma relação

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importante com a cidade: Yi Ye Taipei (Au Revoir Taipei, Arvin Chen, 2010),

Taipei Xingqi Tian (Pinoy Sunday, Ho Wi Ding, 2009) e Taipei Exchanges (Hsiao

Ya-Chuan, 2010).

i) Na excelente livraria do campus da Universidade, assim como na gigantesca

Livraria Eslite, pude adquirir alguns DVDs e livros indisponíveis em outros países,

extremamente úteis para a minha pesquisa.

Conforme evidenciado acima, o período como pesquisadora visitante na Escola de

Cinema e Novas Mídias, Taipei National University of the Arts, foi extremamente

produtivo. O apoio que recebi da Escola e dos professores Daw-Ming Lee e Peggy Chiao

foi fundamental para o bom desenvolvimento da pesquisa. Fiquei também grata ao diretor

Tsai pela longa entrevista concedida.

PESQUISA DE CAMPO EM BEIJING, CHINA.

Período: 23/05/2011 – 29/05/2011

Após o período como Pesquisadora Visitante em Taiwan passei uma semana em Beijing,

China Continental, para realizar Pesquisa de Campo. Essa pesquisa foi motivada pela

importância da obra do diretor Jia Zhang-ke e pela inclusão de um novo capítulo na tese.

Originalmente, apenas o filme Em busca da vida seria analisado sob o ponto de vista da

cidade efêmera, mas após as últimas modificações no conteúdo dos capítulos seus filmes

Xiao Wu, O mundo e Cry me a river foram incorporados, devido a sua importância no

contexto do cinema urbano contemporâneo. A relação entre o cinema e a arquitetura de

jardins chinesa, já esboçada na introdução da tese submetida com o segundo relatório,

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configurou-se como um tema de análise prolífico e totalmente original, razão pela qual

acabou se transformando em um novo capítulo. Como é sabido, o jardim é parte

integrante do tecido urbano chinês, podendo também ser visto como um espaço híbrido

entre a cidade e o campo. Assim sendo, durante os sete dias em Beijing pude visitar os

Jardins Imperiais chineses “Palácio de Verão” e as ruínas do antigo Palácio de Verão,

“Yuan Ming Yuan”, os maiores exemplos da arquitetura de jardins no país, e nos quais

procurei identificar uma experiência pré-cinematográfica. O resultado dessa visita aparece,

inclusive através de imagens, no Capítulo 5 da tese. Em Beijing pude também adquirir

DVDs e livros indisponíveis no Brasil ou via Internet, e visitar a biblioteca da Beijing Film

Academy, a principal escola de cinema da China. Estabeleci contato com o diretor Jia

Zhang-ke mas infelizmente não pude entrevistá-lo devido ao tempo exíguo. De qualquer

modo esse foi um período extremamente valioso para minha pesquisa, que acredito ter

crescido consideravelmente com a expansão dessa nova área.

B.1.2) INGLATERRA

CENTRE FOR WORLD CINEMAS

SCHOOL OF MODERN LANGUAGES AND CULTURES

UNIVERSITY OF LEEDS

Supervisão: Prof. Lúcia Nagib

Período: 21/01/2011 – 21/03/2011

De 21 de janeiro a 21 de março de 2011 fui recebida pelo Centre for World Cinemas,

School of Modern Languages and Cultures, University of Leeds como Pesquisadora

Visitante (título oficial conferido pela Universidade: Visiting Fellow). Levando-se em conta

a natureza abrangente da pesquisa, que procura desenhar um novo mapa a partir de filmes

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individuais, o principal motivo desse estágio foi levar minhas ideias a um dos mais

importantes centros do estudo de World Cinema no mundo, liderado pela Prof. Lúcia

Nagib. Lá pude beneficiar-me da infra-estrutura de bibliotecas da universidade, discutir

minhas ideias com diversos colegas da área e apresentar o trabalho em um evento público,

além de escrever dois artigos e um capítulo de livro que serão publicados entre 2011 e

2012 na Inglaterra. Descreverei a seguir as principais atividades realizadas no Centre for

World Cinemas:

a) Fiquei hospedada dentro do campus da Universidade de Leeds, em apartamento

para professores e pesquisadores visitantes. Recebi uma carteirinha de acesso às

duas bibliotecas da universidade, além de email e senha para acesso de diversos

periódicos acadêmicos online. No prédio do Leeds Humanities Research Institute,

localizado dentro do campus, alocaram-me um escritório próprio com

computador, internet, acesso à impressora e Xerox.

b) Fui recebida pelo Centre for World Cinemas como membro do comitê executivo,

e participei de uma reunião da diretoria, na qual a Prof. Lúcia Nagib expôs meu

projeto e os detalhes da minha bolsa de Pós-Doutorado Fapesp. Participei também

de duas reuniões com alunos do mestrado em World Cinemas, de modo a

colaborar com ideias acerca de suas pesquisas sobre a relação entre cinema e

cidade e sobre cinema chinês.

c) Apresentei uma Aula Pública (Public Lecture) intitulada “Movement and Urban

Spaces in Contemporary World Cinema”, com duração de uma hora, acerca das

principais linhas da minha pesquisa, com ênfase no capítulo sobre a viagem entre

duas cidades. Mais de 60 pessoas compareceram a esse evento, entre alunos de

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graduação, mestrado, doutorado e professores da área de cinema e línguas. Essa

foi sem dúvida a mais importante apresentação da minha vida acadêmica e a

resposta da platéia foi em geral muito positiva. A aula foi transformada em um

artigo a ser publicado na revista acadêmica inglesa Transnational Cinemas.

d) Durante esse período na Inglaterra pude também entrevistar a diretora de filmes

experimentais Manu Luksch, cujo Faceless integra a pesquisa acerca das cidades

controladas. Baseada em Londres, a diretora conversou comigo por mais de duas

horas sobre seu trabalho, no qual usa imagens de câmeras de segurança e trânsito.

A entrevista está sendo transcrita e traduzida e poderá ser publicada no futuro.

e) Em Leeds ministrei quatro aulas no curso de graduação em World Cinemas. Os

temas abordados foram: “Godard, alienation effect and Brecht”; “British Social

Realism”; “Dogma 95” e “Taiwan New Cinema”. Essa foi uma excelente

oportunidade através da qual pude aprimorar minha experiência como docente.

Nesse período a pesquisa e redação de três capítulos foi finalizada. Por lá estar em contato

direto com novas publicações, tanto através das bibliotecas quanto através de artigos que

pude “baixar” automaticamente através da rede da universidade, senti que a pesquisa

atualizou-se e internacionalizou-se ainda mais. Pude também nesse período preparar dois

artigos (um baseado na Aula Pública e outro baseado em uma comunicação sobre o

diretor Tsai Ming-liang, conforme explicado no próximo item), submetidos à publicação

em periódicos com sistema de avaliação por pares. Completei também um capítulo de

livro (baseado na comunicação proferida na Conferência Impure Cinema, conforme

explicado no próximo item), submetido à publicação. Por fim, destaco o apoio que recebi

da Prof. Lúcia Nagib, cujas sugestões e ensinamentos muito enriqueceram o trabalho.

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B.2) PUBLICAÇÕES

Conforme mencionado no item anterior, preparei dois artigos e um capítulo de livro que

foram submetidos à publicação na Inglaterra. O primeiro, intitulado “Movement and

Urban Spaces in Contemporary World Cinema”, foi submetido à publicação na revista

acadêmica Transnational Cinemas (Intellect, UK), e deve sair ainda em 2011. O segundo

artigo intitula-se “Cinema, City and the Ephemeral in Tsai Ming-liang’s The Skywalk is

Gone, Goodbye, Dragon Inn and It’s a Dream”, e foi submetido para publicação na

revista acadêmica Journal of Chinese Cinemas (Intellect, UK). O capítulo de livro intitula-

se “Jia Zhangke’s Cinema and Chinese Garden Architecture”, e foi submetido para

publicação no livro Impure Cinema, uma coletânea de artigos apresentados durante a

conferência de mesmo nome na Universidade de Leeds, em dezembro de 2010, e que

está sendo editado pelas professoras Anne Jerslev e Lúcia Nagib.

Listo agora outras publicações não diretamente relacionadas à pesquisa, mas nas

quais consta o nome da FAPESP:

Mello, Cecília e Sobrinho, Gilberto, “Entrevista com Lúcia Nagib”, Conexão

(UCS), v.8, pp. 213 - 225, 2009.

Mello, Cecília, “I Don’t Owe You Anything: The Smiths and Kitchen-sink Cinema”. In

Sean Campbell e Colin Coulter (orgs), Essays on The Smiths: Why Pamper Life’s

Complexities? (Manchester: Manchester University Press, 2010).

Mello, Cecília, “探索巴西電影地圖”(“Journeying through Brazilian Cinema”). In

12th Taipei International Film Festival Catalogue. Junho 2010.

Mello, Cecília, “A Rebeldia Atemporal de If...”, in Os filmes que sonhamos,

coleção Lume Filmes Vol. 1 (no prelo, lançamento previsto para julho 2011)

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B.3) USO DA RESERVA TÉCNICA: APRESENTAÇÃO DE TRABALHOS NO EXTERIOR

B.3.1) NECS 2010 CONFERENCE “URBAN MEDIATIONS”

Conforme já previsto no relatório anterior, apresentei um trabalho na conferência “Urban

Mediations” em Istambul, Turquia, que durou de 24 a 27 de junho de 2010. Organizada

pela associação NECS (European Network for Cinema and Media Studies) em cooperação

com a Universidade Kadir Has – Faculdade de Comunicação, essa conferência de grande

porte comprovou mais uma vez a imensa atualidade do tema cinema-cidade. Com cerca

de 300 participantes vindos de diversos países da Europa e outras partes do mundo, a

conferência contou também com três convidados de grande porte (keynote speakers), a

saber, a socióloga e professora Saskia Sassen (Columbia), uma das principais pensadoras

contemporâneas sobre a cidade, e os professores da área de cinema Thomas Elsaesser

(Amsterdam) e Charlotte Brunsdon (Warwick). Apresentei um trabalho intitulado “A

Tale of Two Cities: Time, Space, Memory, Identity”, e pude assistir a diversas palestras

sobre a relação entre o cinema e a cidade, uma experiência absolutamente essencial tanto

para divulgação da minha pesquisa quanto para minha atualização na área. Uma cópia da

apresentação foi publicada em pdf no site da NECS.

B.3.2) “TSAI STUDY DAY” E” IMPURE CINEMA CONFERENCE”

Nos dias 15 e 16 de novembro de 2010 participei de um evento organizado pelo Centre

for World Cinemas, Universidade de Leeds, dedicado à obra do diretor Tsai Ming-liang.

Através de um contato estabelecido por mim, a Universidade e o Festival Internacional de

Cinema de Leeds puderam convidar o diretor Tsai Ming-liang para receber um prêmio e

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proferir uma palestra durante o festival. Por essa ocasião, o Centre for World Cinemas

organizou um workshop intitulado “Tsai Study Day”, no qual apresentei a comunicação

“Cinema, City and the Ephemeral in Tsai Ming-liang’s The Skywalk Is Gone, Goodbye,

Dragon Inn and It’s A Dream”. Os outros palestrantes foram o Prof. Song Hwee Lim

(Exeter) e o doutorando Tiago de Luca (Leeds). Assisti também à palestra do diretor e

participei da organização do evento.

De 1 a 4 de dezembro de 2010, apresentei a comunicação “Jia Zhangke’s Cinema

and Chinese Garden Architecture” na Conferência Internacional “Impure Cinema”,

organizada pela Mixed Cinema Network (University of Leeds, University of Sheffield,

University of York) e o White Rose East Asia Centre. A conferência contou com mais de

50 participantes do mundo todo, e com os convidados Philip Rosen (Brown), Griselda

Pollock (Leeds) e Anne Jerslev (Copenhagen). O tema da conferência, o “cinema

impuro”, refere-se ao termo cunhado por André Bazin em seu artigo “Pour un cinéma

impur: défense de l’adaptation”, e abarca as relações entre o cinema e as outras artes

(fotografia, artes visuais, teatro, música, literatura), além de aspectos interculturais e

intertextuais e a relação entre o cinema e a filosofia.

B.4) APRESENTAÇÃO DE TRABALHOS NO BRASIL

Em 2010 apresentei a comunicação “Transnacionalidade em Terra estrangeira, Contra a

parede, Que horas são aí?e Import/export” no XIV Encontro Anual da SOCINE, realizado

em Recife entre 7 e 9 de outubro de 2010. No dia 13 de maio de 2011 participei da “2ª

Semana de Pesquisa ECA/USP”, durante a qual pude mais uma vez apresentar as principais

linhas da pesquisa para uma platéia composta de pesquisadores e alunos de todos os

departamentos da ECA. Por fim, em setembro de 2010 apresentei a comunicação “O

impulso demótico na literatura e no cinema inglês do pós-guerra”, no I Congresso

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Internacional Texto/Imagem, organizado entre os dias 20 e 24 de setembro pela

Universidade Federal de São Paulo, Campus Guarulhos.

B.5) ATIVIDADE DOCENTE

No segundo semestre de 2010 ministrei algumas aulas no curso Montagem/Edição I,

oferecido aos alunos de graduação da ECA pela Profa. Dra. Maria Dora Mourão. Ofereci

também duas oficinas de dia inteiro na V Semana Universitária do Audiovisual, de 3 a 7

de setembro de 2010, organizada por alunos de cursos superiores de audiovisual em

diversas universidades do Brasil. Na primeira oficina teci um panorama histórico do

Cinema Chinês, e na segunda um panorama sobre o Cinema Taiwanês, com destaque

para o “Novo Cinema” de Hou Hsiao-hsien e Edward Yang e a obra de Tsai Ming liang.

Em 2011, conforme observado anteriormente, ministrei aulas no curso de

graduação em World Cinemas da Universidade de Leeds, Inglaterra, como parte das

minhas atividades como “Visiting Fellow”.

C) DETALHAMENTO DOS PROGRESSOS REALIZADOS

No terceiro ano de bolsa pude apresentar trabalhos em diversas conferências no Brasil e

no exterior, preparar três publicações substanciais, e realizar dois estágios no exterior, o

primeiro em Taiwan e o segundo na Inglaterra, além de dar continuidade a eventuais

atividades de docência. Esse foi um período muito valioso no qual pude finalizar a

pesquisa a partir do contato com novas referências bibliográficas e fílmicas, no Brasil e no

exterior; divulgar a pesquisa em diferentes fóruns e beneficiar-me da troca de ideias,

também no âmbito nacional e internacional; submeter artigos à publicação; fazer os ajustes

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finais no projeto; e terminar a primeira versão da tese. Acredito que a pesquisa rendeu

diversos frutos, que serão plenamente consolidados na publicação do livro “Movimento e

Espaços Urbanos no Cinema Contemporâneo”. Com isso, espero ter atingido o objetivo

de criar uma importante contribuição para a pesquisa no campo do audiovisual no Brasil,

e especificamente sobre a relação entre o cinema contemporâneo e a cidade. Espero

também ter contribuído para a divulgação da pesquisa brasileira e do nome da FAPESP no

exterior.

Conforme explicado no relatório anterior, o projeto inicial sofreu alterações que

levaram à sua re-estruturação em forma de tese, que se beneficiava da interconectividade

dos temas abordados e de uma introdução teórica. Durante o último ano da pesquisa, a

divisão de capítulos sofreu uma última alteração, conforme poderá ser observado no item

D.

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D) MOVIMENTO E ESPAÇOS URBANOS NO CINEMA CONTEMPORÂNEO

obs: Incluo aqui parte da monografia Movimento e Espaços Urbanos no Cinema

Contemporâneo.

INTRODUÇÃO

Locked within a Lacanian gaze, whose spatial impact remained unexplored, the film spectator was turned into a voyeur. By contrast, when we speak of site-seeing we imply

that, because of film’s spatio-corporeal mobilization, the spectator is rather a voyageur, a passenger who traverses a haptic, emotive terrain.

1

Giuliana Bruno, 2002

Le città sono un insieme di tante cose: di memoria, di desideri, di segni d’un linguaggio; le città sono luoghi di scambio, come spiegano tutti i libri di storia dell’economia, ma questi

scambi non sono soltanto scambi di merci, sono scambi di parole, di desideri, di ricordi.2

Italo Calvino, 1983

Nessuno sa meglio di te, saggio Kublai, che non si deve mai confondere la città col discorso che la descrive. Eppure tra l’una e l’altro c’è un rapporto.

3

Italo Calvino, 1972

Esta introdução é dotada de três epígrafes. A primeira, extraída de Atlas of Emotion de

Giuliana Bruno, se refere à mobilização espaço-corporal e emotiva da experiência do

cinema. A segunda, de Italo Calvino, fala da cidade como local de troca de palavras,

1 Atlas of Emotion, pp. 15-6. “Preso no olhar Lacaniano, cujo impacto espacial não fora explorado, o

espectador de cinema se transformou em um voyeur. Por contraste, quando falamos de site-seeing

sugerimos que, por conta da mobilização espaço-corporal de um filme, o espectador é na realidade um

voyageur, um passageiro que atravessa um terreno háptico, emotivo.” 2 Italo Calvino, conferência proferida em 29 de março de 1983 na Columbia University, Nova Iorque,

reproduzida em Le città invisibili (Milano: Oscar Mondadori, 2009), p. IX-X: “As cidades são um

aglomerado de tantas coisas: de memórias, de desejos, de sinais de uma linguagem. As cidades são locais

de troca, como explicam os livros de história da economia, mas estas trocas não são apenas de

mercadorias, são trocas de palavras, de desejos, de recordações.” 3 “Ninguém sabe melhor do que tu, sábio Kublai, que nunca se deve confundir a cidade com o discurso que

a descreve. No entanto, há uma relação entre ambos.” Le città invisibili, p. 61.

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desejos e recordações, logo um espaço dinâmico e também emotivo. A terceira, extraída

do livro de Calvino Le città invisibili ([1972] 2002), se refere à cidade e a seu discurso, que

não podem ser confundidos, mas que guardam uma relação. A presente indagação situa-se

na encruzilhada entre cinema-discurso-cidade, e propõe a análise de filmes realizados a

partir de meados dos anos 1990 em locação nas mais diversas cidades espalhadas pelo

globo. Partindo de questionamentos acerca do espaço urbano e do espaço

cinematográfico, essa tese se estrutura sobre temas ligados à questão do movimento no

cinema e na cidade. O principal objetivo é propor interconexões entre filmes distintos

para assim investigar quais as conseqüências estéticas e narrativas que advêm de sua

relação privilegiada com o espaço urbano real.

Nas últimas duas décadas é possível notar um interesse renovado na teoria do

audiovisual pela relação entre cinema e cidade. A ênfase nesse campo de investigação

encontra também um paralelo em outras disciplinas, tais como a geografia social, a

sociologia e a arquitetura. Numerosas produções teóricas em língua inglesa e francesa dão

sinais claros da atualidade do tema, tais como The Cinematic City (1997), editado por

David B. Clarke, Cinema and the City: Film and Urban Societies in a Global Context

(2001), editado por Mark Shiel e Tony Fitzmaurice, e Visualizing the City (2007), editado

por Alan Marcus e Dietrich Neumann.4

Na França foram publicados recentemente os

volumes La ville au cinéma (2005), editado por Thierry Jousse e Thierry Paquot, e o

homônimo La ville au cinéma (2005), de Julie Barillet, Françoise Heitz, Patrick Louguet e

Patrick Vienne. Como sugere Julia Hallam, a relação entre cinema e cidade “é cada vez

mais reconhecida como a base arquetípica para o exame da experiência visual e sensorial,

4 Destaco também as conferências “Screenscapes” (Leeds, 1993), “Cine City” (Los Angeles, 1994),

“Cinema and Architecture” (Cambridge, 1995), além das mais recentes “City in Film: Architecture, Urban

Space and the Moving Image”, organizada pela Universidade de Liverpool em 2008 e ‘Urban Mediations:

NECS 4th Annual Conference’, organizada pela European Networks for Cinema and Media Studies

(NECS) e a Universidade Kadir Has em Istanbul, Turquia.

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da forma e do estilo, da percepção, cognição e significado da imagem e do texto fílmico”

(2010, p. 277)5

.

De um modo geral, os estudos contemporâneos sobre cinema e cidade recaem

sobre cidades individuais e sua representação, cinematografias nacionais, gêneros e

diretores afinados com o urbano, a cidade pós-moderna no cinema, além de dois blocos

que se inserem dentro de discussões mais amplas: o cinema e a vida moderna e o cinema

e a cidade pós-colonial. O primeiro passa obrigatoriamente por uma redescoberta dos

escritos pioneiros de Walter Benjamin, principalmente “A Obra de Arte na Era de sua

Reprodutibilidade Técnica” e “Alguns Motivos em Baudelaire” ([1936] [1939] 1999,

2002), nos quais os alicerces do paralelo entre cinema e cidade podem ser identificados. É

sabido que o cinema, filho da primeira modernidade, é uma arte que adquire forma no

seio da cidade. Suas raízes mais imediatas encontram-se imbricadas na experiência

fragmentada da vida urbana nas grandes metrópoles do final do século XIX, e os primeiros

experimentos com a imagem em movimento parecem impregnados das características

desse espaço. Benjamin aproxima a intensidade dos estímulos sensoriais e a percepção

fragmentada da experiência urbana à fragmentação audiovisual do cinema, contribuindo

para o que Ben Singer chamou de uma concepção neurológica da modernidade (1995, p.

72). Inspira-se em grande parte no ensaio fundador de Georg Simmel “A Metrópole e a

Vida Mental”, de 1903, no qual foram lançadas as idéias fundamentais sobre a experiência

urbana como um local de acúmulo de estímulos visuais e auditivos. O cinema pode assim

ser visto como um dos produtos da era moderna, ligado também ao surgimento das

principais teorias urbanísticas e arquitetônicas e ao desenvolvimento da psicanálise

(Charney & Schwartz, 1995). A partir do paradigma “cinema - primeira modernidade”,

influentes teorias foram forjadas nos últimos anos, inspiradas igualmente em Benjamin e

5 “is increasingly recognised as the archetypical ground for examining visual and sensory experience, form

and style, perception, cognition and the meaning of the filmic image and filmic text.”

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em Sigfried Kracauer, outro teórico alemão preocupado com as relações entre o cinema a

vida na metrópole (ver, por exemplo, Hansen, 1991, 2000, 2009, Friedberg, 1993, e o

volume Cinema and the Invention of Modern Life, editado por Charney & Schwartz,

1995).

A discussão da cidade cinematográfica sob o ponto de vista da sua representação

encontra também campo fértil nos estudos contemporâneos dedicados aos espaços pós-

coloniais e ao cosmopolitanismo. Emergindo da corrente dos Estudos Culturais, o Pós-

colonialismo, através do trabalho de pensadores como Homi K. Bhabha e Arjun

Appadurai, teve grande influência nos estudos de cinema a partir do início dos anos 1990,

sensível na obra de Ackbar Abbas sobre a cultura urbana do Leste Asiático (1997) e de

Hamid Naficy, criador do termo accented cinema (cinema acentuado, 2001). A frequência

pela qual a cidade contemporânea é enxergada através da lente do pós-colonialismo é

evidenciada pela multiplicação dos termos “migrante”, “diaspórico”, “híbrido”,

“multicultural”, “transnacional”, “de fronteiras” e “acentuado” no campo do audiovisual,

adjetivando o cinema, filmes e diretores. Os estudos afinados com essa corrente, grosso

modo, procuram examinar de que modo o cinema dá conta, através da sua representação

urbana, dos novos espaços que aparecem com o fim da era colonial e a emergência da

globalização. O desejo de repensar os espaços representados pelo cinema sob esse novo

contexto reflete-se também no uso frequente dos termos “local” e “global”, além do

aparecimento dos neologismos “polilocal”, “translocal”, “glocal”, entre tantos outros que

tentam aferir o impacto das novas conjunturas políticas e sociais no mundo globalizado e

multicultural (ver por exemplo Zhang, 2010, França & Lopes, 2010).

Nesse contexto, observa-se também uma mudança de ênfase que aponta

decididamente para a Ásia e não mais somente para o mundo ocidental. Essa mudança foi

provocada pelas intensas transformações pelas quais passa a região – e principalmente o

leste do continente, liderado pela China – e os efeitos dessas transformações no espaço

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urbano. Aliado a isso aparece nas últimas duas décadas uma série de diretores afinados

com o urbano, como por exemplo os jovens diretores da Sexta Geração do cinema chinês

– também chamada de Geração Urbana, o cantonês Wong Kar-wai e os três grandes

mestres taiwaneses das décadas de 1980, 1990 e 2000, Hou Hsiao-hsien, Edward Yang e

Tsai Ming-liang6

(ver o volume Cinema at the City’s Edge: Film and Urban Networks in

East Asia, Braester & Tweedie, 2010). As intensas transformações pelas quais passam as

cidades asiáticas e principalmente as chinesas (no sentido mais amplo do termo) levam até

mesmo à sugestão de que a cidade está em vias de desaparecimento, ou que se deslocou

para a dimensão da arquitetura das informações, tornando-se, nos termos de Abbas,

irrepresentável (1997, 2010). Como explica Dudley Andrew,

escritores e diretores pós-modernos vêem a cidade invisível, discordante, e, de um

modo fundamental, irrepresentável. A simultaneidade temporal e a aleatoriedade

espacial não colaboram com o meio do tempo e do espaço, pois nas cidades hoje a

simultaneidade pode significar estar em nenhum lugar e em todos os lugares ao

mesmo tempo. (2010, p. 37)7

Diante dessa cidade discordante, cada vez mais determinada por redes de informações

globais, há também a sugestão de que o cinema como o conhecemos vem perdendo lugar

para outros meios e outras telas, mais afinadas aos espaços urbanos efêmeros.

Partindo dessas observações, poder-se-ia até mesmo supor que o presente trabalho

caracteriza-se pelo anacronismo ao buscar estabelecer relações entre “filmes de cinema” –

e filmes de ficção, por mais nuançado que seja esse conceito – e “cidades reais”. Pois

apesar de levar em conta novos paradigmas urbanos e novos paradigmas cinematográficos,

não se trata aqui de problematizar esses conceitos a ponto de negá-los, e sim de traçar

6 O cinema de Hou Hsiao-hsien tradicionalmente se alterna entre o campo e a cidade, ou entre a cidade

pequena e a cidade grande, ao contrário do de Yang, decididamente urbano. 7 “Postmodern writers and filmmakers find the city invisible, disconrdant, and in a fundamental way

unrepresentable. Temporal simultaneity and spatial randomness work against this medium of time and

space, for in cities today simultaneity could mean being nowhere as well as everywhere at once.”

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interconexões que possam sugerir novos mapas para o cinema mundial. Nessa trajetória

por entre cinemas e cidades, as ruas de São Paulo, Taipei e Roma se encontram com as

de Estrasburgo, Fenyang, Lisboa, Paris, Hamburgo, Istambul, Snizhne, Viena, Feng Jie,

Pequim, Suzhou, San Sebastián e Ulan Bator. Ao promover esse encontro, desejo

empregar uma abordagem original para o estudo da relação entre o cinema-discurso-

cidade, unindo cidades e cinemas distantes em uma nova geografia.

Esses filmes têm em comum, antes de tudo, o fato de terem sido realizados em

locações reais. Em seu ensaio “Cities: Real and Imagined” (2001), Geoffrey Nowell-Smith

ressalta a importante diferença entre filmes “urbanos” realizados em estúdio e aqueles

realizados em locação, e sugere esse critério como um modo inicial de distingui-los em

dois grupos principais. Ainda dentro do grupo de filmes rodados em cidades reais,

Nowell-Smith destaca aqueles “cuja característica é de emanar uma sensação de lugar que

seria impossível sem o liame ontológico entre o cenário da ficção e a locação real” (2001,

p. 103).8

Ao referir-se a um “liame ontológico”, Nowell-Smith ecoa a terminologia

empregada por André Bazin em sua definição de realismo cinematográfico, baseado na

relação ontológica entre o real e a imagem fotográfica. Desse modo, ressalta o fato de

existirem filmes que não poderiam prescindir do uso da locação real sem que isso não os

alterasse de modo radical.

Os filmes aqui percorridos podem ser posicionados dentro deste grupo, logo sua

discussão gira em torno da presença e implicações do uso da cidade real no cinema. Em

todos eles há, de início, um desejo consciente de caracterizar o cenário da ficção como a

cidade real, o que envolve com freqüência o uso de locações externas reconhecíveis para

seus habitantes ou visitantes, tais como o minhocão em São Paulo, o Chifre de Ouro em

Istambul, o Tejo em Lisboa, os jardins de Suzhou e os famosos mercados noturnos de

8 “whose characteristics is that they yield up a sense of place that would have been impossible without the

ontological link between nominal setting and actual location.”

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Taipei. Mesmo que marcos arquitetônicos, geográficos ou históricos não estejam figurados

de modo proeminente, todos os filmes fazem referência através de diálogo, voz over ou

materiais escritos à cidade real, além de muitas vezes utilizarem locações internas também

reconhecíveis, tais como bares, salas de espetáculo, restaurantes, cinemas e lojas

emblemáticas ou típicas da respectiva cidade. A caracterização das personagens através de

suas falas e o uso do sotaque local contribuem também para a inequívoca composição de

um ambiente real.

A proeminência da cidade real insere esses filmes em uma tendência maior de

“retorno ao real” na produção audiovisual mundial, aliada a uma reabilitação do realismo

nos estudos acadêmicos, que se inicia na era que se pode chamar de pós-pósmodernismo,

inaugurada em meados dos anos 1990 por movimentos tais como o Dogma 95 na

Dinamarca, o cinema iraniano dos anos 1990 (com destaque para Abbas Kiarostami) e o

cinema chinês (da China continental, de Hong Kong e de Taiwan) de Zhang Yimou e

principalmente de Tsai Ming-liang. Conforme observa Anne Jerslev (2002, pp. 7-8), tais

cinematografias assinalaram o fim da ironia e da intertextualidade, e o re-estabelecimento

do elo entre as imagens em movimento e a realidade objetiva. Assim, o cinema de

pastiche que caracterizou o momento pós-modernista parece ter perdido fôlego a partir de

meados dos anos 1990, e a força de movimentos realistas foi cada vez mais sentida no

cenário mundial, levando a novos questionamentos acerca da noção de realismo.

O realismo aparece na teoria do cinema desde o seu início, e particularmente

desde a Segunda Guerra Mundial com a defesa de Kracauer e sobretudo de Bazin do

realismo cinematográfico. Entretanto, a fidelidade a teorias realistas atravessou um

declínio por quase duas décadas a partir dos anos 1970, ao serem associadas à “ideologia

burguesa” e ao chamado “cinema clássico de Hollywood”, cujo objetivo era produzir uma

ilusão de realidade. Desde os anos 1980, entretanto, as teorias psicanalíticas e pós-

estruturalistas que inspiraram estas abordagens têm sido objeto de sucessivas revisões.

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Shaviro (1993) reformulou a questão do prazer cinematográfico ao rejeitar o modelo

Lacaniano de regressão e identificação passiva, enfatizando o elemento ativo e corpóreo

da experiência do cinema. Bordwell e Carroll (1996), apoiando-se no cognitivismo,

orquestraram a demolição de todas as abordagens baseadas na psicanálise e nos estudos

culturais. Deleuze (1985) inspirou uma série de novos estudos relacionados à “sensação”,

“afeto” e “o corpo”. Mais recentemente, a introdução da tecnologia digital reacendeu a

discussão de questões centrais às teorias realistas, tais como mimesis, representação e,

particularmente, a “ontologia” da imagem fotográfica de Bazin e sua tradução para o

conceito semiótico de “indexicalidade” (Wollen, [1969] 1998). Identificar traços do índice

(ou o elo material da imagem com o real) em práticas cinematográficas recentes se tornou

o objeto de estudos tais como o de Margulies (2003), Rites of Realism, que gira em torno

das noções de “cinema corpóreo” e “reencenação”. Abordagens psicanalíticas se

reinventaram a partir da aplicação do conceito de Real de Lacan no cinema (Zizek, 2002).

E o conceito de “imagem-tempo” de Deleuze tornou-se essencial como método de análise

do cinema moderno, particularmente no que tange às práticas realistas.

Os avanços teóricos acompanharam ou responderam à onda de filmes de ficção,

reality shows, documentários e vídeos para a internet que revelam um desejo de retorno

ao real no campo do audiovisual. O cinema da cidade de São Paulo é de certo modo

paradigmático dessa passagem da era pós-moderna do simulacro para um re-encontro

com o realismo. Os anos 1980 foram a época do chamado “Novo Cinema Paulista”,

também conhecido por “Jovem Cinema Paulista” ou “Cinema da Vila Madalena”.9

No

cinema de diretores tais como Guilherme de Almeida Prado, Wilson Barros e Chico

Botelho, a cidade real dava lugar à cidade do estúdio, do artifício, das citações e das

histórias em quadrinhos. O ciclo, sintomático da “crise do real” que define a era pós-

9 Para um estudo detalhado deste período, ver Cinema Brasileiro Pós-Moderno: O Neon-realismo, de

Renato Luiz Pucci Jr. (Porto Alegre: Sulina, 2008).

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moderna, acabou recebendo a alcunha jornalística de “néon-realismo”, em clara alusão a

elementos da arquitetura pós-moderna, cujo baluarte é a Las Vegas dos letreiros em néon.

Nos anos 1990 esse cinema pós-modernista ou pós-marginal/tropicalista produzido em

São Paulo começa a perder fôlego. Após a ressaca do pós-moderno, o cinema parece sair

em busca da cidade real, em São Paulo, nos países do leste da Ásia e em diversas outras

partes do mundo. Através do renovado corpo-a-corpo com o espaço urbano, o cinema se

impregna das mesmas características, questionamentos, fragmentos e emoções que

compõem e animam a cidade real, e aí reside o principal interesse dessa investigação.

UMA NOVA GEOGRAFIA

O fato de trazer cinemas e cidades distantes para essa análise me permite substituir os

habituais esquemas de centro-periferia e propor uma nova, e mais complexa, geografia

para o cinema mundial recente e contemporâneo. Destaco aqui o caráter supranacional da

pesquisa, que não se debruça sobre um cinema nacional ou um diretor, mas sim sobre

diversos cinemas e diversos diretores, interligados por algum aspecto de sua figuração ou

intersecção com a cidade. A pesquisa funda-se, em primeiro lugar, na noção de Cinema

Mundial formulada por Lúcia Nagib em “Towards a Positive Definition of World

Cinema”, capítulo do volume Remapping World Cinema: Identity, Culture and Politics in

Film (2005). Nagib evoca, entre outros, o pioneiro trabalho de Robert Stam e Ella Shohat

Unthinking Eurocentrism (1994), para propor a adoção de uma abordagem democrática e

inclusiva nos estudos de audiovisual, rejeitando a divisão binária entre centro (Hollywood)

e periferia (o resto do mundo). Nagib demonstra que Cinema Mundial deve ser definido a

partir de uma concepção policêntrica: não é simplesmente aquele feito em outros lugares

que não Hollywood, ou a partir de outros padrões que não os de Hollywood, pois deste

modo assumir-se-ia a existência de um padrão e de um desvio, visão esta que obscurece

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especificidades locais, influências culturais e diferentes histórias do cinema. Cinema

Mundial também não é uma disciplina, mas sim um método de estudo do cinema do

mundo, que se movimenta através de picos de criação em diversos países e em diversas

épocas. O policentrismo ao qual se refere Nagib seria também reflexo de um ambiente

político e econômico no qual novas potências emergem em diferentes pontos do planeta,

não mais sob a tutela de um poder maior, criando assim uma nova configuração global

multipolar.

Vistos por este ângulo, os filmes que compõem esta tese não representam uma

alternativa dentro de um sistema binário, e nem serão estudados a partir dos paradigmas

criados por este sistema. Também não formam um pico de criação isolado dentro de uma

cinematografia nacional, visto que provêm de diversas cinematografias distintas e

semelhantes ao mesmo tempo. Sua aproximação gera uma nova abordagem teórica que os

une, sugerindo uma geografia desenhada a partir de filmes isolados, inseridos em um novo

mapa. Em seu essencial capítulo, Nagib cita ainda a proposição de Dudley Andrew em

“An Atlas of World Cinema”, ensaio também publicado na coletânea Remapping World

Cinema:

Como Andrew acertadamente argumenta, “todos os filmes por definição...contém

e coordenam dramaticamente as várias forças que o cientista social traduz nos

gráficos. Por que não examinar o filme como um mapa - um mapa cognitivo - ao

mesmo tempo em que se insere o filme no mapa?” Ler um filme como um mapa

acarreta a descoberta de novos territórios e o traçar de novas geografias através da

história do cinema mundial. (2005, p. 35)10

No ensaio citado, Andrew sofre a influência da crítica literária de Franco Moretti, autor do

Atlas do Romance Europeu 1800-1900 ([1997] 2003), e sugere diversos tipos de mapas

10

“As Andrew quite rightly argues, ‘all films by definition ... contain and dramatically co-ordinate the

various forces that the social scientist plots on graphs. Why not examine the film as map - cognitive map -

while placing the film on the map’. To read a film as a map entails the discovery of new territories and the

tracing of new geographies across the history of world cinema.”

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que podem ser traçados através do imenso território do cinema mundial. A composição

de um atlas constituiria uma forma mais adequada de abordagem em contraposição à

tendência binária (Hollywood X o resto do mundo) ou isolacionista (cinemas nacionais).

Diz Andrew:

Esta abordagem examina os principais fatores, e então se debruça sobre os “lugares

cinematográficos” específicos – provendo as coordenadas para a navegação deste

mundo do cinema mundial. Não há necessidade de atracar-se em todos os portos

como se em um tour du monde com o “guia Michelin” no bolso. É o

deslocamento e não a cobertura que mais importa; viajemos por onde quisermos,

desde que cada cinema local seja examinado com um olhar atento à sua complexa

ecologia. Minha abordagem talvez seja mais bem concebida como um atlas de

tipos de mapas, cada qual oferecendo uma orientação diferente para um terreno

não familiar, trazendo à tona diferentes aspectos, elementos e dimensões. Cada

abordagem, ou mapa, modela um tipo de vista: logo, o Atlas. (2005, p. 19)11

A partir dessas observações, pode-se dizer que a trajetória aqui desenhada através

de cinemas e cidades prioriza a qualidade supranacional do objeto de estudo, criando um

mapa a ser inserido em um atlas do cinema mundial. O que mais importa no traçado

deste mapa, nos termos de Dudley Andrew, é o deslocamento e não a cobertura, o que

significa que esta pesquisa não se pretende em nenhum momento exaustiva. Seu objetivo

é entrelaçar filmes de nacionalidades diferentes, que conjugam uma relação privilegiada

com o espaço urbano no qual foram realizados, mas sem perder de vista as especificidades

culturais das quais se originaram. Como diz Lúcia Nagib em seu inovador World Cinema

and the Ethics of Realism, “em sociedades multiculturais e multi-étnicas como as nossas,

expressões cinematográficas de origens diversas não podem ser vistas como diferentes,

pelo simples fato de que ‘o outro’ somos nós. Mais interessante do que a diferença entre

11

“Such an approach examines overriding factors, then zeroes in on specific ‘cinema sites’ – provides

coordinates for navigating this world of world cinema. No need to dock in every port as if on a tour du

monde with some ‘Michelin guide’ textbook. Displacement, not coverage, matters most; let us travel

where we will, so long as every local cinema is examined with an eye to its complex ecology.

My approach might best be conceived as an atlas of types of maps, each providing a different orientation

to unfamiliar terrain, bringing out different aspects, elements and dimensions. Each approach, or map,

models a type of view: hence, the Atlas.”

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esses filmes são suas interconexões” (2011, p. 1)12

. Acredito que o foco na interconexão

entre espaços urbanos e entre filmes individuais possa iluminar aspectos inesperados de

sua relação, e trazer à tona grande parte de sua significação.

A VIAGEM DO OLHAR

As interconexões estabelecidas entre cinemas distintos baseiam-se no que Calvino chamou

de discurso da cidade (2009). Esse discurso encontra-se na intersecção entre a cidade

cinematográfica e a cidade real, que transbordam uma sobre a outra, condicionando

impressões, sensações e emoções espaciais. Como observa Machado Júnior,

as cidades que vemos no cinema transformam as cidades em que vivemos. Antes

de mais nada porque já através de sua linguagem o cinema constrói uma cidade

imaginária retida de alguns aspectos da cidade real. É uma outra cidade, filtrada e

elaborada a partir daquela que está aí, com seu espaço físico, seus habitantes, a

cidade empírica que conhecemos. (1989, p. 1)

Thierry Jousse, em seu ensaio introdutório à La ville au cinéma, enciclopédia editada

pelos Cahiers du Cinéma, fala igualmente da cidade cinematográfica como “a soma de

fragmentos que o cineasta decidiu mostrar”, e sugere que “o cinema dá um acesso

privilegiado ao espaço urbano, visto que é formado a partir da mistura entre o espaço real

e o espaço mítico” (Jousse e Paquot, 2005, p. 9).13

Jousse se refere ainda ao modo pelo

qual o cinema contribui para o entendimento de uma cidade, impactando as impressões e

as sensações do espectador, mesmo que este não a conheça:

12

“In multicultural, multi-ethnic societies like ours, cinematic expressions from various origins cannot be

seen as “the other” for the simple reason that they are us. More interesting than their difference is, in most

cases, their interconnectedness.” 13

“la somme des fragments d’elle-même que le cinéaste a choisi de montrer.”; “le cinéma permet um accès

privilégié à l’espace urbain, en tant qu’il est um mixte d’espace réel et d’espace mythique.”

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É através do cinema que me constituí como habitante de cidades, enquanto

citadino sedentário ou nômade. E é através do cinema que eu habitei

imaginariamente tantas cidades que eu não conhecia, e que hoje tenho o

sentimento de conhecer melhor, mesmo se esse conhecimento relega às vezes à

ilusão. (Jousse and Paquot 2005, p. 10)14

As observações de Machado Jr e Jousse chamam a atenção para dois fatos

importantes. O primeiro se refere à ideia do cinema como uma prática espacial que, ao

movimentar-se através do espaço real, acaba criando um novo espaço, o espaço

cinematográfico, construído a partir do enquadramento, dos ângulos e movimentos de

câmera, da iluminação (natural ou artificial), da interação com os atores ou os habitantes

reais de uma cidade, da montagem, em suma, de todos os recursos da arte cinematográfica

e das outras artes com as quais o cinema interage. O segundo fator importante se refere ao

fato do cinema proporcionar o que se pode chamar de viagem do olhar, ou seja, é possível

ter acesso, conhecer, criar impressões, sensações e até mesmo memórias urbanas a partir

de um filme, realizado em uma cidade real. Aqui, deve-se destacar a obra da professora

italiana baseada nos Estados Unidos Giuliana Bruno, talvez a mais original e inspiradora

no campo teórico das relações entre cinema e cidade. Em seu monumental Atlas of

Emotion (2007), Bruno elabora a qualidade sensorial da experiência cinematográfica

identificada por Gilles Deleuze, que assinalou nos anos 1980 uma passagem do modelo

espectatorial de ótico para háptico, contribuindo assim para um distanciamento da noção

de representação na teoria do cinema (1985). Em seu Atlas, Bruno sugere que o cinema é

uma arte espacial, parente da arquitetura, e assim transforma o(a) espectador(a) de voyeur

em voyageur. Assim, segue a tendência recente de não mais enxergar o cinema como

herdeiro direto da perspectiva Renascentista, e de considerar a apreciação do espaço

fílmico a partir da experiência tátil e do movimento.

14

“C’est par le cinéma que je me suis constitué en tant qu’habitant des villes, en tant que citadin à la fois

sédentaire et nomade. Et c’est par le cinéma que j’ai habité imaginairement tellement de villes que je ne

connasissais pas et que j’ai ajourd’hui le sentiment de mieux connaître, même si cette connaissance

confine parfois à l’illusion.”

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Diante desse deslocamento de modelo teórico, pode-se afirmar que o cinema, ao

invés de transportar a(o) espectador(a) de volta à fase do espelho da primeira infância,

proporciona uma viagem emotiva através de espaços múltiplos (Bruno aqui aproxima as

palavras motion-movimento e e-motion-emoção). Evocando a conhecida frase de Michel

De Certeau, “toda narrativa é uma narrativa de viagem – uma prática espacial” (2007), ela

sugere ser o filme “a história de viagem por excelência. Narrativas fílmicas geradas por um

lugar, e com frequência rodadas em locação, nos transportam para esse lugar” (1997, p.

46).15

Para Bruno, assistir a um filme é uma “forma imaginária de flânerie” (2007, p. 17).16

Por fim, ela chama também a atenção para o parentesco do cinema com a cidade ao

escrever que por ser “um ‘affair’ urbano, produzido pela era da metrópole, o filme

desvenda o transito metropolitano, e sua velocidade incessante” (1997, p. 46).17

PELO ESPAÇO CINEMATOGRÁFICO

No presente estudo sobre filmes urbanos, essa tese adota a visão de Bruno do cinema

como arte espacial, análoga à arquitetura. Espaço aqui é definido a partir de suas

características dinâmicas, de seu constante movimento, e distinto da idéia de representação

ou recorte estático do tempo com a qual se confunde com freqüência. Na teoria do

cinema, a equivalência entre espaço e representação e a consequente concepção estática

da noção de espaço – oposto ao tempo e ao movimento – parece ter sido perpetuada pela

influência das ideias do filósofo francês Henri Bergson, principalmente pela ênfase em seu

conceito de duração promovida pelos escritos de André Bazin e Gilles Deleuze. Em Pelo

Espaço, Massey segue Soja (1989), Gross (1981) e Foucault (1980) ao tecer importantes

15

“Film is the ultimate travel story. Film narratives generated by a place, and often shot on location,

transport us to a site.” 16

“an imaginary form of flânerie.” 17

“an urban ‘affair’, produced by the age of the metropolis, film imparts the metropoliltan transito, and its

ceaseless speed.”

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críticas a essa posição filosófica. Em sua constante preocupação com o tempo, Bergson

teria não apenas negligenciado o espaço como também o conceituado de maneira

equivocada: “Não é tanto porque Bergson ‘despriorizou’ o espaço, mas porque, na

associação do espaço com a representação, ele foi privado de dinamismo e, radicalmente,

contraposto ao tempo” (2008, p. 45). Em Duração e Simultaneidade, por exemplo,

Bergson fala da indivisibilidade do tempo em oposição à divisibilidade do espaço ao tratar

das noções de “instante” e “duração”:

O tempo real não tem instantes. Mas formamos naturalmente a ideia de instante e

também a de instantes simultâneos desde que adquirimos o hábito de converter o

tempo em espaço. Pois, embora uma duração não tenha instantes, uma linha

determina pontos. ... O instante é o que terminaria uma duração se ela se

detivesse. Mas ela não se detém. O tempo real não poderia portanto fornecer o

instante; este provém do ponto matemático, isto é, do espaço. ... Instantaneidade

implica portanto duas coisas: uma continuidade de tempo real, ou seja, de

duração, e um tempo espacializado, ou seja, uma linha que, descrita por um

movimento, tornou-se por isso simbólica do tempo. (2006, p. 62)

Percebe-se aqui a preocupação de Bergson com a interpretação que ele julga errônea do

tempo como um recorte (espacial), equivalente a instantes, quantitativo. Daí o termo

“tempo espacilizado” em oposição à “duração”, e uma sombra negativa sobre a noção do

espaço, desprovido de duração ou movimento. Vejamos também de que modo Deleuze

resume a primeira tese de Bergson acerca do movimento, no primeiro capítulo de Cinéma

1: L’image-mouvement:

De acordo com a primeira tese, o movimento não se confunde com o espaço

percorrido. O espaço percorrido é passado, o movimento é presente, é o ato de

percorrer. O espaço percorrido é divisível, e mesmo infinitamente divisível,

enquanto que o movimento é indivisível, ou não se divide sem que mude de

natureza a cada divisão. O que já supõe uma ideia mais complexa: os espaços

percorridos pertencem todos a um mesmo espaço homogêneo, enquanto que os

movimentos são heterogêneos, irredutíveis entre si. (1985, p. 9) 18

18

“D’après cette première thèse, le mouvement ne se confond pas avec l’espace parcouru. L’espace

parcouru est passé, le mouvement est présent, c’est l’acte de parcourir. L’espace parcouru est divisible, et

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Depreende-se a partir deste trecho o mesmo divórcio entre a noção de movimento e a

noção de espaço: “o movimento não se confunde com o espaço percorrido”; espaço =

passado, movimento = presente; espaço = divisível, movimento = indivisível; ou ainda

espaço = homogêneo, movimento = heterogêneo.

A tendência pela equivalência entre espaço e representação fica ainda mais clara ao

se analisar a resposta de Bergson ao paradoxo de Zenão acerca da ilusão do movimento

de uma flecha, que a cada momento do tempo em sua trajetória ocupa um espaço

equivalente ao seu volume, estando assim imóvel. O movimento então não existiria,

apenas uma sucessão de imobilidades, visto que o espaço pode ser dividido

indefinidamente. Em A Evolução Criadora, Bergson refuta o paradoxo ao sugerir que na

realidade o movimento ocorre no intervalo entre as imobilidades, na transição entre

estados, e não na sua acumulação (2005). Vê-se, portanto, que apesar de refutar o

paradoxo que existe em se pensar o movimento como uma série de espaços imóveis,

Bergson persiste no entendimento do espaço como um recorte do tempo, e trata no lugar

dos intervalos entre os espaços, da duração que não pode ser espacializada, representada.

Movimento, para Bergson, seria qualitativo e não quantitativo, e portanto indivisível.

A discussão se complica com a introdução do paradoxo cinematográfico, que

concretizaria o paradoxo de Zenão, visto que em um filme movimento e tempo são

criados a partir de imobilidades. Em The Emergence of Cinematic Time, Mary Ann

Doane explica de que modo Bergson problematiza a questão do tempo no cinema:

A falácia de Zeno encontra a sua incorporação tecnológica no cinema – na sua

espacialização [meu grifo] do tempo, seu investimento na realidade dos instantes.

même infiniment divisible, tandis que le mouvement est indivisible, ou ne se divise pas sans changer de

nature à chaque division. Ce qui suppose déjà une idée plus complexe: les espaces parcourus appartiennent

tous à un seul et même espace homogène, tandis que les mouvements sont hétérogènes, irréductibles entre

eux.”

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... O cinema tenta reconstituir o movimento através de uma série de fotografias,

mas nenhuma dessas fotografias tem a ver com o movimento. Seus gestos são

estáticos, congelados. Bergson admite que para que se produza a ilusão do

movimento deve haver movimento real em algum lugar. Ele o localiza no

dispositivo, o projetor, que movimenta o filme para frente. (2002, p. 174)19

Assim, grosso modo, Bergson refuta o paradoxo de Zenão ao falar do movimento como

algo que ocorre nos intervalos entre espaços, e refuta a idéia de “tempo real” no cinema,

transferindo o movimento para o projetor. Deleuze refuta por sua vez a proposição de

Bergson e sugere que o movimento no cinema “pertence ao contrário a uma imagem

intermediária como dado imediato... Em resumo, o cinema não nos proporciona uma

imagem à qual ele adicionará movimento, ele nos dá imediatamente uma imagem-

movimento” (1985, p. 11)20

. Em seguida, Deleuze insiste em uma evolução do cinema de

um plano “espacial e formalmente imóvel” a um plano temporal, que aparece com o

movimento da câmera e a montagem, responsáveis pela “emancipação” da imagem

cinematográfica em relação à projeção, “a conquista de sua própria essência” (1985, p.

12). O “tout” (todo), que sofre uma mudança qualitativa através do movimento, é também

para Deleuze oposto aos “ensembles” (conjuntos), um conceito fechado, contido no

espaço, enquanto que o “todo” ou “todos” está na duração, em constante mutação (1985,

p. 21). Cito ainda outra passagem acerca da imagem-movimento, retirada de L’image-

temps: “A imagem-movimento possui duas faces, uma relativa aos objetos cuja posição

relativa ela faz variar, e a outra relativa a um todo sobre o qual ela exprime uma mudança

19

“Zeno’s fallacy finds its technological embodiment in the cinema – in its spatialization (meu grifo) of

time, its investment in the reality of instants. …[Cinema] becomes emblematic, for him, of our ordinary,

everyday pragmatic knowledge of time. Such knowledge is, of necessity, discontinuous and has what

Bergson refers to as a cinematographic quality. But for Bergson it is crucial to move beyond that

cinematographic impulse to grasp the true nature of duration and movement. The cinema attempts to

reconstitute movement with a series of still photographs, but none of these photographs has anything to do

with movement. Their gestures are static, frozen. Bergson admits that in order to produce the illusion of

movement there must be real movement somewhere. He locates it in the apparatus, the projector, which

moves the film forward.” 20

“appartient au contraire à l’image moyenne comme donnée immédiate. ... Bref, le cinéma ne nous donne

pas une image à laquelle il ajouterait du mouvement, il nous donne immédiatement une image-

mouvement.”

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absoluta. As posições estão no espaço, mas o todo que muda está no tempo” (Deleuze,

1985b, p. 50)21

.

Os questionamentos de Bergson e Deleuze acerca do tempo/movimento

interessam aqui na medida em que revelam uma insistência em se equivaler o espaço à

imobilidade, ausência de vida, uma categoria divorciada do movimento, a despeito da

diferença entre “espaço” e “representação”. Em A Evolução Criadora, entretanto, Bergson

parece sugerir uma mudança ao admitir ao menos a necessidade de se distinguir entre

espaço e espacialização, e de se levar em conta a interpenetração entre espaço e tempo

(Bergson, 2005; Massey, 2008). De qualquer modo, me parece fundamental insistir nesta

questão para que a noção de espaço cinematográfico também deixe de ser encarada como

equivalente à imobilidade do fotograma, divorciada da duração. Se o cinema promove

uma espacialização (evidenciada nos fotogramas), o espaço fílmico, e o espaço em geral,

não equivalem a essa espacialização/representação. A noção de movimento deve ser

considerada como análoga ao tempo e ao espaço, visto que seria errôneo igualar o

congelamento do tempo no fotograma a um espaço sem tempo. Como ensina Doreen

Massey, o próprio entendimento do espaço não pode existir sem a noção de

movimento/tempo, distante da idéia de um recorte estático do tempo, de seu

congelamento: “O tempo não apenas não pode ser fragmentado (transformando-se de um

contínuo em uma multiplicidade discreta), como mesmo o argumento de que isso não é

possível não deveria se referir ao resultado como espaço” (2008, p. 47).

Não há dúvida que o cinema, através da imobilidade de seus quadros, aponta para

duas temporalidades distintas, a despeito da equivalência indexical entre a imagem em

movimento e a imagem congelada, conforme demonstra Laura Mulvey em Death 24x a

Second: Stillness and the Moving Image (2006). Com a introdução da tecnologia digital na

21

“L’image-mouvement a deux faces, l’une par rapport à des objets dont elle fait varier la position

relative, l’autre par rapport à un tout dont elle exprime un changement absolu. Les positions sont dans

l’espace, mais le tout qui change est dans le temps.”

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produção de filmes, essa problemática atinge outras dimensões e a discussão anterior pode

parecer etérea diante do suposto desaparecimento do quadro estático ou da fotografia

como base da formação do movimento. Mas os avanços neste campo apontam

recentemente para um desejo de emular a captação do real em 24 quadros por segundo,

presente nas mais novas câmeras digitais desenvolvidas por empresas como a Sony,

Panasonic, Red e Cannon. Nessas câmeras, a captação ocorre mais como uma série de

imagens congeladas do que como um sinal de vídeo tradicional, de modo a evitar a perda

da imagem em suas bordas (edge tearing). Ademais, esse desejo nasce da percepção de

que o olhar do espectador acostumou-se a igualar o movimento cinematográfico à uma

imagem capturada e reproduzida a 24 quadros por segundo, e que de modo a aproximar-

se dessa imagem a tecnologia digital deveria buscar a mesma qualidade de movimento. A

fragmentação essencial da imagem cinematográfica subiste também na tecnologia

eletrônica ou digital de reprodução do filme, que segundo Mulvey põe ao alcance do que

ela chama de “espectador possessivo” (2006, p. 161) a possibilidade de refrear o tempo,

pausá-lo, e assim tomar posse da imagem. A crença na irreversibilidade do tempo

cultivada por Bergson, refutada pela ciência no século XX, encontra na tecnologia

doméstica de reprodução – antes apenas disponível ao montador – uma forma de

resistência. Logo, a advertência contra a noção estática de espaço no cinema – noção essa

que se originara na materialidade do quadro estático – ainda parece atual diante da

imobilidade da imagem obtida com a pausa no aparelho de reprodução doméstico, e do

desejo digital de emulação do quadro estático da película.

A SIMULTANEIDADE DE TRAJETÓRIAS MÚLTIPLAS

Partir de uma abordagem espacial do cinema traz à tona, mesmo que de modo indireto,

toda uma problemática acerca da noção de espaço, reconhecido principalmente a partir

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da década de 1970 como categoria organizadora e como termo de análise e descrição da

sociedade e culturas moderna e pós-moderna. Já em 1967 Michel Foucault declarava que

“a época atual seria talvez a época do espaço. Estamos na época do simultâneo, da

justaposição, do próximo e do longínquo, do lado a lado, do disperso” (1984, p. 46).22

Nesse ensaio intitulado “Des Espaces Autres”, Foucault alude à simultaneidade e à

justaposição de espaços para desenvolver seu conceito de “heterotopia”, um espaço que

conteria todos os outros espaços, a ser discutido mais atentamente no quinto capítulo.

A noção de espaço não é pacífica e confunde-se frequentemente com os termos

“lugar” e “paisagem”. Os três termos são essenciais aos estudos da geografia cultural e

também encontram um caminho dentro dos estudos do cinema. Milton Santos faz

importante advertência em A Natureza do Espaço acerca da inseparabilidade do natural e

do artificial e do natural e do político (2009, p. 101) ao definir o espaço geográfico como

um híbrido, “um resultado da inseparabilidade entre sistemas de objetos e sistemas de

ações” (2009, p. 100). Para Santos, “o espaço é sempre um presente, uma construção

horizontal, uma situação única” (2009, p. 103). A isso Santos opõe a estabilidade e a

transtemporalidade da noção de paisagem. Já De Certeau enfatiza a instabilidade espaço

ao contrapô-lo à noção de lugar, propondo a conhecida fórmula “em suma, o espaço é um

lugar praticado”, criado através da experiência, do mover-se através, da interação humana

(2007, p. 202). Doreen Massey por sua vez também insiste na necessidade de se pensar o

espaço como dotado de movimento, distinto de uma noção estática e divorciada do

tempo:

Filosoficamente eu defenderia uma conceituação do espaço que incorporasse

justamente este princípio: nenhum espaço é estável, se tomado por todo o tempo;

todos os espaços são transitórios e um dos aspectos mais cruciais a respeito da

22

“L’époque actuelle serait peut-être plutôt l’époque de l’espace. Nous sommes à l’époque du simultané,

nous sommes à l’époque de la juxtaposition, à l’époque du proche et du lointain, du côte à côte, du

dispersé.”

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espacialidade é que ela está sendo feita constantemente. A mobilidade das cidades

é uma versão exagerada da espacialidade em geral (Lury e Massey, 1999, p. 231).23

A conceituação de Santos, De Certeau e Massey do espaço como um elemento

transitório, em constante mutação, é central para que se dissipe a idéia de algo fechado,

imóvel, desprovido de movimento. Em Pelo Espaço, Massey busca criticar a

desvalorização do espaço como um recorte estático através do tempo, ou a equivalência

entre espaço e representação, algo que amorteceria o fluxo da vida. Sem eliminar a

separação entre espaço e tempo, a geógrafa inglesa chama a atenção para a necessidade de

entendê-los de maneira imbricada, e para uma visão do espaço como uma produção

aberta contínua, “a dimensão de trajetórias múltiplas, uma simultaneidade de estórias-até-

agora”, ou ainda “a dimensão de uma multiplicidade de durações” (2008, p. 49).

Tendências recentes no campo da geografia urbana de fato incorporam o que foi

chamado de “paradigma da mobilidade”, sugerindo que “é ao mesmo tempo possível e

produtível interpretar as cidades como organizadas a partir de múltiplas formas de

movimentos, ritmos e velocidades” (Latham et al 2009, p. 33).24

Essa observação também

aponta para uma definição da cidade não apenas como um espaço isolado mas através de

suas relações de longa distância com outros espaços, como por exemplo proposto por

Saskia Sassen em sua investigação definitiva dos processos econômicos internacionais e

sua subsequente conceituação da “cidade global” (2001). Além disso, a cidade é cada vez

mais entendida não apenas como uma estrutura física mas também como um espaço de

significações, experiências, trocas e memórias (Latham et al 2009, p. 11).

23

“And philosophically I would argue anyway for a conceptualization of space which incorporated

precisely this principle: no spaces are stable, given for all time; all spaces are transitory and one of the

most crucial things about spatiality (a characteristic which lends both its continual openness and, thus its

availability to politics) is that it is always being made. The mobility of those cities is a hyperversion of

spatiality in general.” 24

“It is both possible and productive to interpret cities as organised through multiple forms of movement,

rhythms and speeds.”

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O CINEMA COMO FORMA DE PRODUÇÃO ESPACIAL

Massey acredita que o cinema, por ser um meio que viaja por espaços diversos, molda-se

perfeitamente às características espaciais de movimento e abertura para o novo, em

contínua produção:

O cinema é fantástico para retratar a intensa e inesperada justaposição que

caracteriza o espaço e particularmente as cidades. ... Justamente por sua

mobilidade, por sua capacidade de viajar, criar novas justaposições, novas

cartografias como diria Giuliana Bruno, o filme tem o potencial de apresentar

esse outro aspecto do nosso espaço mundial. (Lury e Massey, 1999, p. 232)25

Espaço então se define a partir da simultaneidade de trajetórias múltiplas, um

entendimento que rejeita a idéia da equivalência entre espaço e representação. Incorpora-

se assim a idéia do movimento, de um espaço que está sempre a ser produzido, além de

existir de forma interconectada com outros espaços, como uma dimensão da

simultaneidade e da coexistência, distinguindo-se aqui da sucessão que caracteriza o

tempo. Se o espaço não pode prescindir da noção de movimento, passagem e circulação,

é possível pensar o cinema como uma arte da produção espacial, o que não equivale a

uma arte da representação espacial. Ao atravessar a cidade, a lente da câmera e seus

movimentos, as mudanças de ângulo e a montagem vão assim costurando um espaço

fílmico, definido a partir da idéia da prática, da passagem, do movimento. Um espaço

cinematográfico híbrido, emprestando a terminologia de Santos (2009).

Parto então da hipótese de que esse espaço cinematográfico híbrido seja resultado

de uma influência estrutural da cidade real na estética e na narrativa dos filmes

selecionados. Esses serão estudados a partir de novas concepções teóricas que enxergam o

25

“Film is fantastic at portraying this aspect of intense and unexpected juxtaposition, which is a

characteristic of space, and of cities in particular. Precisely because of its mobility, its ability to travel, to

make new juxtapositions, new cartographies as [Giuliana] Bruno puts it, film has the potential powerfully

to present this other aspect of our spatial world as well.”

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cinema como uma arte espacial, uma abordagem que propicia o questionamento acerca

do real da locação e da questão do realismo, do movimento através da cidade e suas

implicações narrativas, da memória como um evento espacial, da capacidade de

preservação pelo cinema de um espaço efêmero, e do parentesco entre o cinema e a

arquitetura de jardins. Investigo também a hipótese de que esses filmes refletem as

próprias mudanças pelas quais atravessam as cidades e o modo de se pensá-las,

diretamente ligados ao entendimento do espaço como um conceito dinâmico e ao

paradigma da mobilidade. Assim, cada um dos temas estudados lida com um aspecto da

mobilidade e da instabilidade do espaço urbano no cinema, características identificadas

com o espaço urbano real. A abordagem empregada, por sua vez, inspira-se na

justaposição e conectividade essenciais ao espaço ao propor um modelo original para o

estudo da relação entre o cinema e a cidade, fruto de um método comparativo que

interconecta filmes e espaços urbanos distintos e distantes, levando-os por novas

trajetórias, em direção a novos mapas. Em suma, uma nova geografia para o cinema

urbano recente e contemporâneo.

COORDENADAS PARA UM MAPA

O primeiro capítulo promove a aproximação entre os filmes Na cidade de Sílvia (En la

Ciudad de Sylvia, José Luis Guerin, 2007) e Xiao Wu (Jia Zhang-ke, 1997) do ponto de

vista de seu deslocamento através das cidades de Estrasburgo e Fenyang, respectivamente.

Nos dois filmes, realizados em cidades quase opostas, uma na França e a outra na China, a

narrativa é guiada por um personagem masculino, que caminha pela cidade e a observa

através de um olhar, inquisitivo ou oblíquo. São assim ao mesmo tempo voyeurs e

voyageurs, a câmera permanecendo sempre à altura da rua. Levando em consideração o

paradigma neo-realista, investigo as consequências narrativas e estéticas das an-danças

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urbanas dos dois rapazes, que em ambos os filmes acarretam a perda do ímpeto para

frente da narrativa, levando-a por círculos de volta ao mesmo lugar. Esse capítulo explora

também de que modo a cidade real condiciona o estilo cinematográfico, resultando em

um posicionamento romântico no filme de Guerin e em um posicionamento realista no

filme de Jia.

O movimento do cinema através da cidade também guia as análises dos filmes no

segundo capítulo, no qual investigo o deslocamento sobre duas rodas nos filmes Caro

diário (Caro diario, Nanni Moretti, 1993), Os 12 trabalhos (Ricardo Elias, 2006) e A

bicicleta de Pequim (Shi qi sui de dan che, Wang Xiaoshuai, 2001). Esses filmes desvelam

o espaço urbano real a partir de um personagem central masculino que atravessa Roma,

Pequim e São Paulo em uma Vespa, uma bicicleta e uma motocicleta, respectivamente.

São portanto unidos por um “estilo móvel” ou “em movimento” que parece emanar do

próprio espaço urbano no qual se inserem. Ao se deslocarem através da cidade, movidos

pelo trabalho ou pela simples contemplação, esses personagens criam trajetórias diversas,

frequentemente pontuadas por encontros inesperados. Ao contrário dos filmes analisados

no capítulo anterior, a prática espacial é aqui indissossiável do veículo no qual os

personagens se deslocam. A mobilidade e o mapeamento das cidades ganha então um

certo grau de velocidade e improviso – qualidades relacionadas aos veículos sobre duas

rodas – e a interação da câmera com o espaço urbano aparece em grande medida de

modo mediado.

No terceiro capítulo o movimento ocorre entre duas cidades em Terra Estrangeira

(Walter Salles e Daniela Thomas, 1996), Que horas são aí? (Ni neibian jidian, Tsai Ming-

liang, 2001), Contra a parede (Gegen die Wand, Fatih Akin, 2004) e Import/export

(Ulrich Seidl, 2007), filmes que promovem o encontro entre duas geografias distintas. As

cidades, além de locações reais, são nesses filmes construídas através de imagens,

impressões e sensações vividas pelos personagens, em seu país de origem ou estrangeiros

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em outras terras. Aqui, investigo o que chamo de transnacionalismo estético, partindo da

ideia da narrativa de viagem que une dois espaços urbanos separados, mas que convivem e

interagem através do recurso da montagem alternada. Será também esse recurso de

montagem – e não o flashback – que articulará a memória contida em um outro espaço, o

que coloca em evidência tanto o caráter espacial de qualquer memória quanto a sua

condição presente.

O quarto capítulo trata de filmes que abordam a efemeridade da paisagem urbana,

de Taipei através dos filmes A passarela se foi (Tianqiao bu jianle, Tsai Ming-liang, 2002),

Adeus, Dragon Inn (Bu San, Tsai Ming-liang, 2003) e It’s a dream (Shi meng, Tsai Ming-

liang, 2007) para Feng Jie e Pequim na China continental com Em busca da vida (Sanxia

haoren, Jia Zhang-ke, 2006) e 100 Flowers Hidden Deep (Chen Kaige, 2002). Os filmes

serão analisados a partir de seu desejo urgente de filmar o desaparecimento de um aspecto

urbano, de um bairro ou de uma cidade inteira, que se traduz, de modo quase

contraditório, em uma lentidão de estilo e em um realismo de inspiração baziniana.

Assim, caberá investigar a capacidade do cinema de registrar e preservar o real, ou em

termos bazinianos a ontologia da imagem fotográfica diante de um espaço efêmero. Ao

mesmo tempo, esse desejo ontológico vem aliado à sua possível perda, no momento em

que a imagem digital parece não se definir por sua indexicalidade, a tradução semiótica de

Wollen da ontologia de Bazin. Essa transformação, anunciada por Tsai no final de A

passarela se foi e abraçada por Jia em seu filme, sugere uma analogia entre a cidade

efêmera e o cinema efêmero, no cerne das análises propostas.

Por fim, o quinto capítulo olha para os filmes O mundo (Shijie, Jia Zhang-ke,

2004), Cry me a river (Heshang aiqing, Jia Zhang-ke, 2008) e Antes do pôr-do-sol (Before

sunset, Richard Linklater, 2004) e sugere uma análise a partir de sua afinidade com a

arquitetura de jardins, e no caso dos filmes de Jia com a arquitetura de jardins chinesa. A

prática espacial ocorre nesses filmes através do deslocamento por jardins ou espaços

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análogos, organizados a partir do princípio da alternância de pontos-de-vista, de diferentes

enquadramentos e trajetos, que encontram um paralelo na própria arte cinematográfica. O

mundo será analisado a partir da relação entre jardins e a História da China, um império

milenar fundado no isolamento, e que começa agora a abrir suas portas. Os outros dois

filmes, um realizado em Suzhou e o outro em Paris, nascem do encontro de antigos

amantes após anos de separação, e promovem um deslocamento por jardins que evoca

uma memória, ou em outras palavras faz aparecer – a partir do movimento através de uma

topografia externa – uma topografia interna.

Os cinco temas delineados estão longe de representar categorias estanques,

interconectando-se e enriquecendo-se à medida que avançam. Como as análises esperam

demonstrar, o engajamento do cinema com a cidade real não ocorre sem que, por um

lado, ela deixe sobre ele sua marca, e, por outro lado, ele a transforme e a transporte.

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CAPÍTULO I: O PRINCÍPIO DA AN-DANÇA URBANA

Filmes: Na cidade de Sílvia (En la Ciudad de Sylvia, José Luis Guerin, 2007), Xiao Wu

(Jia Zhang-ke, 1997).

Cidades: Estrasburgo, Fenyang

A certa altura do filme Na cidade de Sílvia, dirigido pelo catalão José Luis Guerin em

2007, o rapaz que erra pelas ruas de Estrasburgo se senta em um banco de parque, abre

seu caderno de desenhos e passa a folheá-lo de modo desordenado. As folhas brancas

contêm esboços de desenhos a lápis, o traçado de ruas e rostos de mulheres sem contorno

nem nitidez. Nestas folhas estão refletidas também as sombras das folhas das árvores,

entrecortadas pela luz, e animadas pelo vento, em movimento. A ponta do lápis então

ensaia o contorno das sombras, na tentativa de trazer as folhas das árvores para a folha do

caderno, buscando fixar o fugidio, mas desiste. A sequência de pouco mais de um minuto

é introduzida por dois planos: o primeiro, de 25 segundos, segue o rapaz que caminha por

um parque, observado de frente por um travelling da câmera; o segundo, de seis

segundos, detém-se na folhagem de árvores que balançam ao vento, pintando todo o

quadro de verde.

Guerin parece tecer aqui um belo comentário que reverbera outra cena em outro

filme, que por sua vez também comentava o mesmo fenômeno cinematográfico das folhas

que se movem. Ismail Xavier, em seu ensaio “Maquinações do olhar: a cinefilia como ‘ver

além’, na imanência” (2007), ressalta a referência feita por Jean-Luc Godard – através de

um plano de folhas que se mexem ao vento em Duas ou três coisas que eu sei dela (Deux

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ou trois choses que je sais d’elle, 1967) – à observação de Georges Méliès após sua

primeira sessão de cinema. Pois foram justamente as folhas que se moviam no pano de

fundo da cena familiar de Le repas de bébé, captada pelos irmãos Lumière em 1895, que

saltaram ao olhar privilegiado do mágico e futuro diretor. Xavier ressalta em sua análise o

modo como o cinema estava sintonizado com as inquietações artísticas do final do século

XIX, que, em suas palavras, pareciam buscar “um corpo a corpo com o mundo instável,

com as ocorrências fugazes, sejam as observadas na natureza ou aquelas da vida urbana

moderna” (Xavier, 2007). O Movimento Impressionista tornou-se emblemático deste

momento artístico ao eleger a luz e o ar como objetos pictóricos, buscando tornar visível o

instante, algo que o cinema de algum modo cumpriu.26

Volto então à cidade de Sílvia:

pintar a luz é o que parece tentar fazer o rapaz (interpretado por Xavier Lafitte) que, por

alguns segundos, segue com seu lápis o movimento da sombra das folhas das árvores na

folha branca de seu caderno. O comentário de Guerin amplia a dimensão tátil do olhar de

Méliès, posto que este movimento das folhas é trazido do plano de intersecção – que

reverbera a citação de Godard – ao alcance da mão do protagonista, para dentro de seu

caderno. Ele parece tocar este movimento, manejar a sombra das folhas que remetem ao

âmago do próprio cinema. Pois se o “olhar de Méliès” fala da tentativa de captar o

instante, o fugidio, levando a considerações sobre o tempo, ele também aponta para a

dimensão do movimento, que une tempo e espaço em sua especificidade cinematográfica:

o movimento do espaço fílmico, o movimento do corte, o movimento do olhar.

Neste capítulo analisarei dois filmes que ensaiam um elogio do movimento através

de sua produção espacial, Na cidade de Sílvia e Xiao Wu (Jia Zhang-ke, 1997). Realizados

em países, momentos históricos e culturas completamente distintas, esses filmes fundam-

26

Em L’Oeil interminable: Cinéma et peinture (Paris: Librairie Séguier, 1989) Jacques Aumont empresta

do diálogo em La Chinoise (1967) o nome de um dos capítulos, “Lumière, ‘le dernier peintre

impressionniste’”, corroborando a afinidade proposta por Jean-Luc Godard entre o primeiro cinema dos

irmãos Lumière e o impressionismo.

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se em um mesmo princípio, o movimento a pé através de uma cidade, e tratam da íntima

relação estabelecida entre o andar e o olhar do personagem principal e o espaço urbano

real. Com a aproximação dessas duas experiências análogas, será possível avaliar de que

modo a relação com a cidade e com o princípio do movimento se manifesta esteticamente

nos dois filmes. Para tal, será analisada a qualidade do olhar e do andar que guiam a

trajetória, no primeiro caso um olhar inquisitivo e direto, que reorganiza o real através de

uma visão subjetiva, produto de um posicionamento romântico no qual o indivíduo é

maior do que o entorno, e no segundo um olhar oblíquo, envergado pelo real da cidade,

produto de um posicionamento realista no qual o entorno condiciona o indivíduo. Serão

levados em conta também os movimentos de câmera e a montagem – que se confundem

com as características reais do espaço; os sons deste espaço; além das especificidades do

realismo contingencial da locação. Através desta análise espero evidenciar de que modo os

dois filmes partem de uma premissa similar para chegar a resultados distintos,

condicionados em grande medida pela resposta estética a um espaço real dado. Assim,

será avaliado de que modo Guerin emprestou de Estrasburgo sua qualidade atemporal

para criar uma história de busca, com sobretons medievais e românticos, e de que modo o

filme de Jia está decididamente localizado na China contemporânea, oferecendo uma

reflexão sobre seus processos de transformação.

O ELOGIO DO MOVIMENTO

A sequência das folhas ao vento em Na cidade de Sílvia aparece em um momento de

pausa, no qual o rapaz interrompe por alguns minutos sua busca por uma mulher, a Sílvia

do título, que encontrara em Estrasburgo seis anos antes. A busca é a razão pela qual está

na cidade, seu principal objetivo, mas ao mesmo tempo parece pouco urgente, e

confunde-se aos poucos com um exercício do olhar. Ele vai ao café do conservatório

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musical onde ela estudava, e lá fica a observar e escrutinar rostos e detalhes de diversas

outras mulheres. No parque sua atenção logo passa das folhas para um grupo de amigas

nadando em um riacho. Em um bar a câmera se detém igualmente nos rostos das

frequentadoras. Assim, Na cidade de Sílvia é antes de tudo um filme arquitetado sob a

égide do olhar. A construção de diferentes modos de observação visual e o engajamento

do filme com a cidade parecem reminiscentes de “The Man of the Crowd” (“O Homem

da Multidão”), escrito por Edgar Allan Poe em 1845. No conto, o narrador está

posicionado diante de uma janela em um café de Londres a observar os passantes da rua,

detendo-se longamente em seus detalhes ou peculiaridades. Finalmente uma figura o atrai

– o homem da multidão – e ele passa a segui-la de modo inconspícuo. Uma passagem

similar ocorre no filme de Guerin, no qual o protagonista se senta em um café (mas do

lado de fora) e, após longos planos de observação desinteressada, acaba vislumbrando um

rosto através da janela (do lado de dentro do café, no inverso de Poe). No momento em

que a dona do rosto (interpretada por Pilar López De Ayala) deixa o café ele passa a segui-

la pela cidade.

Percebe-se então que Na cidade de Sílvia não é arquitetado sob a égide de

qualquer olhar, mas sim de um olhar masculino. É inevitável notar o caráter voyeurista

deste olhar, que se presta até mesmo de forma esquemática a uma leitura com base na

crítica da imagem – sobretudo daquela produzida no contexto do cinema hollywoodiano –

proposta por Laura Mulvey (1989) em seu célebre “Prazer visual e cinema narrativo”. No

ensaio, a teoria psicanalítica provê os fundamentos para o desmascaramento desta imagem

como produto da predominância do olhar masculino, ao qual corresponderia a imagem

da mulher como objeto passivo deste olhar. Indisfarçadamente voyeurista e animado por

uma escopofilia fetichista (vide seus desenhos) é o olhar do protagonista masculino no

filme de Guerin, mas do mesmo modo que seus esboços mal traçados parecem sugerir

sua incapacidade de reificar a mulher, seu voyeurismo contamina-se o tempo todo por um

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outro olhar, um olhar que se move, que viaja. Pois Na cidade de Sílvia, como indica o

plano das folhas ao vento, é também um filme fundado sobre o movimento, através das

ruas e dos parques de Estrasburgo, por onde um rapaz se desloca, caminha, viaja: um

olhar em trânsito que o transforma, nos termos de Giuliana Bruno, de voyeur (o que vê)

em voyageur (o que viaja).

Viajante par excellence, o catalão José Luis Guerin demonstra através de sua obra

um intimidade entre o cinema e a viagem. Seu último filme Guest: diario de registros sept

2007-sept 2008 (2010) é um travelogue por entre festivais de cinema durante o período

apontado no subtítulo, no qual o diretor viajou com Na cidade de Sílvia por diversos

países. Repleto de imagens urbanas, quartos de hotéis e veículos em movimento, Guest

parece confirmar o impulso motriz do olhar do diretor, cuja crença na inclinação natural

da arte cinematográfica pelo deslocamento parece também impregnar o estilo móvel de

Na cidade de Sílvia. Outro diretor itinerante do cinema mundial contemporâneo é o

chinês Jia Zhang-ke. Um breve olhar para sua obra, de seu primeiro filme Xiao Wu,

realizado em 1997 em sua cidade natal Fenyang na província de Shanxi, China

Continental, até o mais recente Memórias de Xangai (Hai Shang Chuan Qi, 2010),

filmado na China, Hong Kong e Taiwan, revela uma inclinação pela mobilidade e pela

transiência. Jia realizou filmes em diferentes partes de seu país, da capital Pequim às

cidades regionais de Fenyang e Datong em Shanxi; de Chendu em Sichuan a Feng Jie nas

Três Gargantas; e de Guangzhou a Suzhou27

. Em artigo publicado na revista Cahiers du

Cinéma em 2004, Jia aludiu à sua natureza errante ao escrever “no passado, os poetas

27

Em Pequim: Um dia em Pequim/You Yi Tian, Zai Beijing, 1994; Xiao Shan volta para a casa/Xia Shan

Hui Jia, 1995; O mundo/Shi Jie, 2004; Em Fenyang e Datong: Xiao Wu; Plataforma/Zhantai, 2000; Em

público/Gonggong Changsuo, 2001; Prazeres desconhecidos/Ren Xiaoyao, 2002; Inútil/Wu Yong, 2007;

Em Chendu: Cidade 24 /Ershisi Cheng Ji, 2008; Em Feng Jie: Em busca da vida/San Xia Hao Ren, 2006;

East/Dong, 2006; Em Guangzhou: Inútil; Em Suzhou: Cry Me a River/Heshang de Aiqing.

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chineses tinham o hábito de compor poemas na estrada. Eu também amo viajar, ir a

pequenas cidades ou vilarejos desconhecidos” (2004, p. 22).28

Esta qualidade itinerante empresta-se igualmente à mobilidade dos personagens de

Jia, presente de modo exacerbado em seu primeiro longa-metragem, Xiao Wu. Realizado

dez anos antes de Na cidade de Sílvia, em uma cidade muito diferente de Estrasburgo, o

filme se estrutura como o de Guerin no caminhar do personagem central por uma cidade.

Ambos os filmes também incorporam ao título um nome próprio, no de Guerin o da

mulher procurada, a “dona” daquela cidade, e no de Jia o de seu personagem principal, o

pequeno Wu (Wang Hongwei), batedor de carteiras local. Olhares e transportes

movimentam Xiao Wu através do que Linda Chiu-Han Lai chamou de “método

digressivo, que permite que o errante estabeleça conexões aleatórias com eventos e

pessoas” (2007, p. 209).29

Para Lai, o sujeito enunciador em Xiao Wu desce da altura

ocupada pelo ‘voyeur’ e posiciona-se ao nível da rua, lado a lado com o habitante comum

da cidade (2007, p. 219). Se em seus próximos filmes Jia assume progressivamente uma

posição dupla, alternando-se entre a paisagem urbana vista de cima e o nível da rua, em

Xiao Wu, à exceção de uma breve cena na qual o personagem observa a cidade de um

terraço do primeiro andar de um prédio, o diretor enxerga e escuta Fenyang da altura de

Xiao Wu. Trata-se, portanto, de um olhar que viaja pelas ruas, similar em seu movimento

e posicionamento ao olhar do rapaz em Estrasburgo: Xiao Wu tampouco é apenas um

voyeur, mas também um voyageur.

28

“Dans le passé, les poètes chinois ont toujours eu pour coutume de composer des poèmes en voyageant.

De même, j’aime beaucoup voyager, aller dans des petites villes ou villages inconnus.” 29

“Digressive method that allows the drifter to make random connections with events and people.”

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DO ÓTICO AO HÁPTICO, DE SIGHT A SITE, DE VOYEUR A VOYAGEUR

Tais olhares que percorrem a cidade em um movimento constante, e que assim

não apenas vêem como também viajam, parecem corresponder ao próprio olhar do

espectador sob a luz de novas teorias que procuram uma alternativa ao paradigma ótico,

pondo em relevo a dimensão háptica e emocional da experiência do cinema.

Isso significa que a imagem em movimento cria pelas cidades trajetórias que, além de

mapear o real da locação e criar através da prática o espaço fílmico, conduz o olhar do

espectador imóvel do cinema, que passa então a viajar através de múltiplos espaços e

tempos. Daí a comparação entre o olhar em movimento dos rapazes errantes em

Estrasburgo e em Fenyang e a formulação voyeur-voyageur de Giuliana Bruno, que rejeita

o modelo teórico de inspiração Lacaniana e retoma a discussão a partir da (e)moção do

espaço fílmico. Diz Bruno:

A língua inglesa faz uma transição oral sem emendas entre sight (visão) e site

(lugar). O site-seeing também é uma passagem. O movimento do ótico para o

háptico propõe uma crítica à pesquisa acadêmica focada no olhar fílmico, que não

levou em conta a emoção do espaço que se dá a ver. Muitos aspectos da imagem

em movimento – por exemplo, os atos de habitar e atravessar espaços – não foram

explicados pelo arcabouço teórico Lacaniano, que não estava interessado em

explorar o afeto da espacialidade, mesmo em termos psicanalíticos. Preso em um

olhar Lacaniano, cujo impacto espacial mantinha-se inexplorado, o espectador do

cinema foi transformado em um voyeur. Por contraste, quando falamos de site-

seeing sugerimos que, devido à mobilização espaço-corporal do cinema, o

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espectador é na realidade um voyageur, um passageiro que atravessa um terreno

háptico e emotivo.30

(2007, pp. 15-6)

Bruno elucida a passagem do ótico para o háptico como uma passagem de modelo

teórico. Como é sabido, a teoria do dispositivo cinematográfico (Baudry, 1986) e o

entendimento da espectatorialidade como análoga à regressão à fase do espelho Lacaniana

(Metz, 1982), propostos a partir do final dos anos 1960 pela crítica de influência

estruturalista, semiótica e psicanalítica, passaram por diversas revisões desde o início dos

anos 1990. Em The Cinematic Body (1993), Steven Shaviro criticou radicalmente este

modelo e trouxe à tona os elementos ativos e corpóreos da experiência cinematográfica.

Shaviro inspirou-se, entre outros, na obra de Gilles Deleuze, que em Mille Plateaux:

Capitalisme et Schizophrénie 2 (1980), com Félix Guattari, e em seu estudo sobre o pintor

Francis Bacon (1981) pôs em evidência a função tátil ligada à visão. Desde então uma

série de outros estudos no campo da teoria do cinema vem privilegiando a qualidade tátil

do olhar, dentre os quais se destacam as noções de ‘embodied spectator’ (espectador

corporificado) de Vivian Sobchack (2004) e de ‘haptic visuality’ (visualidade háptica) de

Laura U. Marks (2000).

Esta função tátil recebe o nome de háptica, palavra de origem grega que designa a

ciência do tato, empregada pela primeira vez no campo da estética pelo historiador

austríaco Alois Riegl, curador do setor de arte têxtil do Museu de Arte e Indústria de

Viena de 1887 a 1897. Conforme observa Giuliana Bruno (2007, p. 247), Riegl se referiu

30

“The English language makes this transition from sight to site aurally seamless. Site-seeing, too, is a

passage. As it moves from the optic into the haptic, it critiques scholarly work that has focused solely on

the filmic gaze for having failed to address the emotion of viewing space. Many aspects of the moving

image – for example, the acts of inhabiting and traversing spaces – were not explained within the

Lacanian-derived framework, which was not interested in pursuing the affect of spatiality, even in

psychoanalytic terms. Locked within a Lacanian gaze, whose spatial impact remained unexplored, the film

spectator was turned into a voyeur. By contrast, when we speak of site-seeing we imply that, because of

film’s spatio-corporeal mobilization, the spectator is rather a voyageur, a passenger who traverses a haptic,

emotive terrain.”

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à experiência háptica como um estágio inferior na evolução da percepção moderna em

direção ao ótico. Foi Walter Benjamin quem subverteu essa evolução de háptico para

ótico proposta por Riegl, sugerindo ao contrário que a percepção moderna seria acima de

tudo uma experiência háptica, tátil. E foi além ao fazer a ligação expressa entre essa

percepção moderna háptica e o cinema, em seu famoso estudo de 1935 “A obra de arte

na era de sua reprodutibilidade técnica”:

O elemento de distração no filme é também essencialmente tátil, baseado em

mudanças de lugar e de foco que periodicamente assediam o espectador.

Comparemos a tela do cinema à tela da pintura. A pintura convida o espectador à

contemplação; diante dela, o espectador pode se abandonar às suas associações.

Ante à tela do cinema ele não pode fazê-lo. Assim que seus olhos captam uma

cena ela já se alterou (1999, p. 231).31

A ênfase na natureza háptica da experiência cinematográfica também pôs em xeque

abordagens acerca do espaço no cinema tais como a de Stephen Heath (1976), afinada à

tradição teórica de inspiração semiótico-psicanalítica. Para Heath, a narrativa seria o

elemento que asseguraria um posicionamento coerente ao espectador habituado ao ponto

de visto estático da perspectiva renascentista, garantindo a coerência espacial a despeito da

mobilidade inerente ao cinema. No processo de revisão pelo qual passou a teoria

cinematográfica a ideia do cinema como herdeiro direto da perspectiva Renascentista foi

plenamente rechaçada, e a apreciação do espaço fílmico passou a ser considerada acima

de tudo a partir da experiência tátil e do movimento.

31

“The distracting element of [the film] is also primarily tactile, being based on changes of place and focus

which periodically assail the spectator. Let us compare the screen on which a film unfolds with the canvas

of a painting. The painting invites the spectator to contemplation; before it the spectator can abandon

himself to his associations. Before the movie frame he cannot do so. No sooner has his eye grasped a scene

than it is already changed.”

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58

Este trabalho, entretanto, não é dedicado a um estudo da espectatorialidade, mas

sim à construção do espaço fílmico a partir do espaço urbano real no cinema

contemporâneo. O que me parece mais importante e relevante nessa cruzada contra o

modelo ótico é a ênfase proposta por Giuliana Bruno no cinema como arte espacial, e na

mobilização corpórea e emocional proporcionada pelo potencial espacial da própria

linguagem cinematográfica. Partindo deste deslocamento teórico de sight (visão) para site

(local), de ótico para háptico, de voyeur para voyageur, Bruno aproxima o cinema da

arquitetura, duas artes análogas por serem práticas do espaço. Essa aproximação passa

pelas características cinematográficas das formas arquitetônicas das metrópoles do final do

século XIX, tais como estações de trem, pavilhões de exposições, lojas de departamentos,

galerias, entre outras estruturas marcadas pela mobilidade, redefinindo o tecido urbano na

virada do século. Para Bruno, tais estruturas funcionavam como “locais de trânsito” (“sites

of transit”), encarnando uma nova “geografia da modernidade” (“geography of

modernity”) (2007, p. 17). Já o cinema, filho da primeira modernidade, tem em seu

âmago a mobilidade – do filme que se move através da câmera ou do projetor, das

imagens em movimento, do corte – e não tardou a incorporar a cultura da viagem,

presente nos chamados filmes panorâmicos da era “silenciosa” (travelogues) e na

constante reinvenção do espaço inerente à própria linguagem cinematográfica (2007, p.

17). Desse modo, a experiência do espectador de cinema no início do século XX pode ser

equiparada a uma viagem, uma trajetória, ou ainda a uma flânerie através de diversos

espaços em movimento. E essas trajetórias parecem emanar principalmente de um ponto

de vista urbano (2007, p. 18), pronunciado nas primeiras duas décadas do século XX em

filmes dedicados a cidades e sua arquitetura (com destaque para as célebres sinfonias das

cidades). O hábito de acoplar a câmera a veículos em movimento tais como carros,

bondes, carroças ou trens explicita este desejo de incorporar a própria mobilidade da vida

urbana à máquina de filmagem, e à linguagem do cinema. Passado mais de um século o

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cinema continua dialogando ativamente com o espaço urbano, e a compreensão deste

diálogo se beneficia do entendimento da experiência cinematográfica como uma viagem

através de espaços em movimento. Logo, minha análise da especificidade estética de

filmes urbanos contemporâneos aborda o cinema como uma prática espacial, que

partindo de um espaço real acaba por criar um outro, o espaço fílmico, costurado a partir

de vistas e sons urbanos em movimento, e através do qual o espectador viaja e sente.

PERAMBULAÇÕES PELA CIDADE REAL

Como ensina De Certeau (2007), a experiência mais básica da prática espacial urbana é o

andar. Andar sugere a condição presente, a instabilidade do espaço, as múltiplas trajetórias

marcadas pela simultaneidade e pela imprevisibilidade dos encontros. No cinema, o

paradigma da cidade real da locação desvendada pelo caminhar foi forjado pelo neo-

realismo italiano, através de uma série de filmes preocupados com a vida nas ruas. A

cidade neo-realista interessa a esse trabalho por duas razões principais. A primeira se

refere ao fato de ser um espaço real, histórica e socialmente determinado, contribuindo de

modo decisivo para o realismo revelatório dos filmes. A segunda e mais importante para

esse capítulo se refere à qualidade desse cinema como matriz da passagem e do

movimento cinematográficos através do espaço urbano real, cuja contingência contribui

para uma sensível distensão narrativa. Na cidade de Sílvia e Xiao Wu demonstram

afinidade com a experiência neo-realista, o primeiro por sua forma circular e sua narrativa

frouxa, alicerçadas sobre o deslocamento a pé pela cidade real, e o segundo por seu

realismo revelatório e sua incorporação estética da contingência urbana.

Roberto Rossellini, figura central do neo-realismo, assim o definiu:

O neo-realismo consiste em seguir um ser, com amor, através de suas descobertas

e impressões. Ele é um ser pequeno diante de algo que o domina e que, quando

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menos esperar, o surpreenderá de modo atroz, no momento preciso em que ele se

encontra livremente no mundo. O que importa para mim é essa espera.

(Rossellini, 1984, p. 41)32

A definição subjetiva de Rossellini contém algumas características fundamentais do

paradigma neo-realista, cujos ecos podem ainda ser sentidos em filmes contemporâneos

fundados no deslocamento pela cidade real: a presença de um personagem-guia, a ser

seguido pelo diretor através do espaço; o posicionamento realista a partir do qual o

entorno é maior do que o homem; e a espera. Rossellini não se refere aqui

especificamente ao espaço urbano, e seria errôneo definir o neo-realismo italiano como

um movimento citadino. Como bem advertem Mark Shiel (2006, pp. 63-4) e Stéphane

Bouquet (2005, p. 186), há um interesse equivalente entre o campo e a cidade nos filmes

neo-realistas, mesmo se a obra dos diretores emblemáticos do movimento Vittorio De

Sica, Roberto Rossellini e Luchino Visconti verte decididamente para o urbano. Mas

talvez seja possível argumentar que o impacto e a persistência deste momento da história

do cinema estejam diretamente relacionados ao que se costumou chamar de saída para as

ruas, para o espaço real da locação. Mais eficaz dentro do projeto neo-realista de

revelação, denúncia e reflexão eram as cidades, que exibiam as cicatrizes da guerra de

modo mais evidente do que o campo. Assim, não espanta que o movimento tenha muitas

vezes passado para a memória como um movimento urbano, colado à vida das ruas e aos

seus habitantes, contaminando-se da liberdade da locação real.

Conforme observa Ivone Margulies, a cidade, por ser uma paisagem social inscrita

em um momento histórico preciso, representou e representa um importante cenário para

a arte realista: “A cidade é um tema reconhecido em discussões acerca do realismo ... O

que a qualifica como um importante cenário para a arte realista é o fato de ser, assim

32

“Le néo-réalisme consiste à suivre un être, avec amour, dans toutes ses découvertes, toutes ses

impressions. Il est un être tout petit au-dessous de quelque chose qui le domine et qui, d’un coup, le

frappera effroyablement au moment précis où il se trouve librement dans le monde, sans s’attendre à quoi

que ce soit. Ce qui importe pour moi c’est cette attente.”

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como o rosto, uma paisagem socialmente inscrita. Sua natureza construída a localiza

facilmente em um momento histórico preciso” (2003, pp. 12-13).33

É importante lembrar

que a presença da cidade no cinema, excluindo-se o exemplo óbvio das cidades

imaginárias ou futurísticas, prescinde com freqüência do uso de locações reais. Nowell-

Smith lembra que a decisão de se filmar em locação ou em estúdio é “por vezes uma

escolha estética, por vezes uma escolha econômica, e com freqüência uma combinação de

ambas”34

(2001, p. 102). A cidade recriada dentro dos estúdios foi até o pós-guerra a

norma na grande maioria das produções comerciais, ainda mais após o advento do som e

a decorrente dificuldade de sua captação direta em locação. Em seu estudo do realismo

poético do cinema francês nos anos 1930, Mists of Regret, Dudley Andrew recorda a visão

de Marcel Carné que “insiste que é possível e por vezes preferível trazer a cidade para

dentro a levar a câmera para as ruas” (1995, p. 261)35

. Interessante também notar como

nas últimas décadas grandes produções comerciais tendem cada vez mais a abandonar as

locações, substituídas pela recriação digital de cidades e mesmo de mundos inteiros. Estar

dentro de um estúdio ou recriar digitalmente um espaço nega em princípio o arbitrário e o

imprevisível da locação, anulando a especificidade dos espaços reais.

Já a presença da cidade real parece explicitar as tensões entre a representação e a

literalidade inerentes ao cinema. Estar em locação na cidade exacerba aquilo que não se

pode controlar, a imprevisibilidade do real, ou seja, a contingência. Nowell-Smith faz uma

importante observação acerca do caráter indomável da cidade real no cinema, o que

elevaria o coeficiente contingencial das imagens captadas: “A cidade funciona como um

fator condicionante na ficção precisamente por sua característica recalcitrante e por sua

33

“The city is a recognised theme in discussions of realism... What qualifies it as an important setting for

realist art is the fact that, like the face, the city is a socially inscribed landscape. Its constructed nature

easily places it in a precise historical moment.” 34

“Shooting on location is sometimes an aesthetic choice, sometimes an economic one, often probably a

mixture.” 35

“Carné insists that, given the new conditions of sound, it is possible and often preferable to bring the city

indoors to the camera rather than to take the camera to the street.”

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inabilidade em ser subordinada às demandas da narrativa. A cidade se torna um

protagonista, mas ao contrário dos personagens humanos ela é um protagonista não-

ficcional” (2001, p. 104).36

Em 1863, Baudelaire escrevia que “a modernidade é o

transitório, o efêmero, o contingente, é a metade da arte, sendo a outra metade o eterno e

o imutável” (1992, p. 355)37

, e o cinema, em diversos momentos da sua história, parece se

contaminar da qualidade efêmera e contingencial da experiência urbana.

Assim foi com mais evidência durante o pós-guerra, período no qual o neo-

realismo italiano e subsequentemente os cinemas novos através do mundo caracterizaram-

se por um desejo de levar o cinema para fora dos estúdios. Por um lado, pode-se dizer

que o cinema neo-realista buscou soluções estéticas para restrições técnicas em um

período marcado pela destruição e pela reconstrução, física, social e moral. A própria

destruição dos estúdios e de material cinematográfico na Itália derrotada em grande parte

impeliu o cinema a encarar um maior corpo-a-corpo com o real da locação. Já no final da

década de 1950 desenvolvimentos tecnológicos propiciaram maior mobilidade aos

equipamentos de filmagem além de maior velocidade às películas, culminando na

possibilidade de gravação de som sincronizado em 16 mm nos anos 1960, o que

aumentou o coeficiente de real do produto filmado, levando a novas definições de

realismo.

O “sair para as ruas” de uma parte significativa dos filmes neo-realistas trouxe para

o cinema uma outra cidade – diferente das metrópoles modernas da primeira metade do

século como Paris, Nova York ou a Berlin de Weimar (Shiel, 2006, p. 66). Como

observou Deleuze, “a cidade deixa de ser aquela vista do alto, a cidade ereta, com arranha-

céus e contreplongées, para se tornar a cidade deitada, a cidade horizontal ou à altura do

36

“City... acts as a conditioning factor on the fiction precisely by its recalcitrance and its inability to be

subordinated to the demands of narrative. The city becomes a protagonist, but unlike the human characters

it is not a fictional one.” 37

“La modernité, c’est le transitoire, le fugitive, le contingent, la moitié de l’art, dont l’autre moitié est

l’éternel et l’immuable.”

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homem ...” (1985, p. 279)38

. Essa observação de Deleuze rima com outra observação,

anotada por Rossellini por conta da visita que fez a Berlim em 1947. Neste ano o diretor

italiano estava na França e teve a idéia de pedir ao governo francês uma autorização para

realizar em Berlim o último filme de sua trilogia do pós-guerra, iniciada por Roma, cidade

aberta (Roma, città aperta, 1945) e seguida de Paisá (Paisà,1946). Ele conseguiu um

acordo com a Union Générale Cinématographique, e sem nenhuma idéia pré-concebida

foi visitar Berlim. Lá chegou por volta das cinco da tarde, de carro, com o sol poente, e

teve de atravessar grande parte da cidade até chegar no setor francês: “A cidade estava

deserta, o céu cinza parecia inundar as ruas, e da altura de um homem podia-se ver todos

os tetos” (1984, p. 43)39

. Rossellini então filma Berlim do chão, em meio às ruínas,

mostrando a cidade horizontal por excelência, uma cidade arrasada na qual o menino

Edmundo, de 12 anos, decide envenenar seu pai doente acreditando estar cometendo um

ato heróico. Alemanha ano zero (1948) é emblemático do uso da cidade real no cinema

neo-realista, pois esposa em suas escolhas formais a ideia de que o ambiente determina o

indivíduo, ao mesmo tempo que reflete sua miséria interior. A sequência inicial emprega

este procedimento realista ao abrir com longas panorâmicas da cidade de Berlim, um

espaço arrasado que simboliza o fim da guerra e o início da reconstrução, o “ano zero”. E

será apenas depois de passar pelo espaço urbano que Rossellini se aproximará de

Edmund, visto pela primeira vez, não por acaso, cavando covas em um cemitério.

A incorporação de Berlim em Alemanha ano zero vai além do recurso realista

descrito, pois a contingência da locação real exerce sobre este cinema uma força

dispersiva. Isso se traduz na perda da cronologia e coerência narrativas no momento em

que Edmund se dá conta de sua tragédia, e isso vem à tona através de uma caminhada

38

“La ville … cesse d’être la ville d’en haut, la ville debout, avec gratte-ciel et contreplongées, pour

devenir la ville couchée, la ville horizontale ou à hauteur d’homme…” 39

“La ville étai déserte, le gris du ciel coulait dans les rues et, à hauteur d’homme, on dominait les toits du

regard.”

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pela cidade, em uma das sequências mais comentadas do neo-realismo. Edmund é

rejeitado sucessivamente pelo seu professor, pelos amigos adolescentes que trabalham no

mercado negro e por algumas crianças que jogam futebol nas ruas. Suas andanças sem

rumo por Berlim o levam através do que Deleuze chamou de “espaços-quaisquer, câncer

urbano, tecido diferenciado, terrenos vagos, que se opõem aos espaços determinados do

antigo realismo” (1985, p. 286).40

A cidade arrasada produz uma cronologia cheia de

buracos, que torna impossível saber quantas horas ou dias se passaram, para onde ele vai e

no que está pensando.

Outro filme emblemático da incorporação do espaço urbano no cinema neo-

realista é Ladrões de bicicleta (Ladri di biciclette, Vittorio De Sica, 1948). Nas ruas de

Roma, a contingência mais uma vez se combina ao cinema através do elemento

imprevisível da filmagem em locação, levando a um relaxamento das relações de causa e

efeito asseguradas pela narrativa cinematográfica clássica. André Bazin, que definiu o neo-

realismo antes por sua estética do que por seu mais imediato conteúdo social, demonstrou

através de sua análise definitiva do filme de De Sica de que modo a deriva das

personagens pelo espaço urbano confundia-se com a deriva narrativa. Bazin resumiu o

filme como “a estória das andanças de um pai e seu filho pelas ruas de Roma” (2002, p.

303)41

. Partindo de uma “intriga popular e mesmo populista: um incidente da vida

quotidiana de um trabalhador” (2002, p. 297)42

, Ladrões de bicicleta trata do banal,

prolongado por um dia, durante o qual Antonio procura sua bicicleta roubada. Ao

realismo da fábula – que transforma o banal em algo merecedor de tratamento artístico –

alia-se uma narrativa relaxada, que se recusa a emanar a onisciência dos eventos,

convidando no seu lugar a ambiguidade e a contingência. Assim, ao caminhar por Roma,

40

“Dans la ville en démolition ou en reconstruction, le néo-réalisme fait proliférer les espaces

quelconques, cancer urbain, tissu dédifférencié, terrains vagues, qui s’opposent aux espaces déterminés de

l’ancien réalisme.” 41

“l’histoire de la marche dans les rues de Rome d’un père et de son fils.” 42

“Intrigue ‘populaire’ et même populiste: un incident de la vie quotidienne d’um travailleur.”

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Antonio e seu filho Bruno estão à mercê da cidade: se chover, devem se abrigar e esperar

a chuva passar; se Bruno precisa urinar, deve ir até a esquina e urinar; se um carro aparece

inesperadamente, corre-se de volta à calçada. Esses eventos atrasam a narrativa,

interrompem a busca, criando fissuras no tecido ficcional. Mais importante do que o

credibilidade do percurso é a contingência do espaço real, que acarreta na perda do

ímpeto narrativo, criando eventos que não se relacionam por causa e efeito.

Como é sabido, a conceituação de Deleuze de imagem-movimento e imagem-

tempo deriva da inflexão observada por Bazin (2002) entre o que chamou de “cinema

clássico” e “cinema moderno”, localizada principalmente a partir do pós-guerra com o

neo-realismo italiano. Para Deleuze, o neo-realismo teria forjado as principais

características da crise da imagem-ação, variante da imagem-movimento, que inclui a

situação dispersiva (como por exemplo a cidade não-globalizante mas sim à altura do

homem), as ligações fracas (relaxamento da narrativa de causa e efeito) e a forma-balada (o

ir e voltar, a perambulação) (1985, p. 280, 285). A despeito da indiscutível presença dessas

características nos filmes neo-realistas e naqueles analisados neste e no próximo capítulo,

acredito que a terminologia de Deleuze “imagem-movimento” e “imagem-tempo” deixa

por um lado transparecer a ênfase na noção de tempo em detrimento do espaço,

problematizada neste estudo, e por outro lado perpetua o que Jacques Rancière chamou

de “retórica da ruptura” (2002, p. 59). Rancière demonstra a

existência de um paradoxo no pensamento de Deleuze, apresentado como uma

classificação de tipos de signos ao modo da “história natural”, mas que ao mesmo tempo

estão separados por uma ruptura, uma crise, que coincide com um evento histórico (a

Segunda Guerra Mundial) (2001, p. 147, 155). Rancière problematiza também a

classificação das imagens com base em dados ficcionais da narrativa, revelando a

fragilidade da distinção entre movimento e tempo em Deleuze (2001, p. 155). Assim, visto

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que o presente trabalho não se volta para uma era definida por uma ruptura, seu recorte

temporal funcionando apenas como um guia passível de relaxamento, o emprego da

terminologia de cunho historicista será substituído pelo conceito de ‘cinema of delay’

(cinema da demora), desenvolvido por Laura Mulvey em relação à obra de Abbas

Kiarostami (2006). Mulvey propõe o seu cinema of delay de forma abrangente e

democrática ao escrever

a forma narrativa na qual se traduz o princípio da demora pode variar de forma

significativa, construída em torno, por exemplo, de uma estética do suspense ou,

no outro extremo, da intrusão da digressão ou das ‘perambulações aleatórias’ que

Gilles Deleuze associou ao relaxamento da imagem-movimento, como, por

exemplo, em Viagem à Itália de Rossellini. (2006, p. 124-5)43

Assim, tanto Ladrões de bicicleta quanto Gosto de Cereja (Ta’m e guilass, Abbas

Kiarostami, 1997), Xiao Wu, Na cidade de Sílvia, Alemanha ano zero, e inúmeros outros

filmes realizados antes ou depois da Segunda Guerra Mundial, antes ou depois da

introdução do digital, da queda do muro de Berlim ou do 11 de Setembro podem ser

pensados a partir da ideia do “cinema da demora” de Mulvey, um cinema que deriva e

hesita, “um cinema incerto” (Mulvey, 2006, p. 123).

OLHARES INQUISITIVOS NA CIDADE DE SÍLVIA

Na cidade de Sílvia coloca em prática o princípio da demora descrito por Mulvey em seu

estilo móvel e circular. Estrutura-se em três tableaux, cada qual introduzido por uma

cartela preta com as inscrições “Primeira Noite”, “Segunda Noite” e “Terceira Noite”,

seguidas de planos estáticos de um quarto de hotel. A primeira sequência merece atenção

por condensar em cinco imagens os principais motivos do filme. Trata-se de um quarto

43

“The narrative form into which the principle of delay translates may vary significantly, built around, for

instance, an aesthetic of suspense or, at a further extreme, the intrusion of digression or the ‘aleatory

strolls’ that Gilles Deleuze associates with the loosening of the movement image, as, for instance, in

Rossellini’s Journey to Italy.”

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desprovido de movimento, construído por uma sucessão de seis planos estáticos: a parede

recoberta de papel com padrão de folhas; uma mala desfeita; dois planos próximos de

mapas empilhados, chaves, cadernos e frutas; uma janela através da qual pode-se entrever

uma folhagem; e finalmente o protagonista sentado na cama. Esta série de naturezas-

mortas, escuras e imóveis, é animada por um movimento vindo de fora, o movimento da

cidade e seus carros, que projetam luzes e sombras sobre o quarto. O plano da janela é

por sua vez animado pelo vento que balança as folhas, e indica o nascer do dia. As

imagens contêm referências à viagem tais como o quarto de hotel, a mala e os mapas,

dentre os quais se destaca um desenhado no porta-copos de um bar chamado –

sugestivamente – Les Aviateurs. A presença dos mapas prenuncia o que talvez seja a

principal função do filme, um remapeamento de Estrasburgo a partir das andanças de um

rapaz, cujo olhar confunde-se com o olhar do diretor e do montador, guiando-os através

do espaço. Este remapeamento indica, portanto, um posicionamento romântico e não

realista, visto que reorganiza o real a partir de um ponto de vista subjetivo.

Já as sombras que animam os planos iniciais parecem remeter ao teatro de

sombras chinês ou até mesmo à outra experiência com imagens em movimento, objeto do

documentário de Werner Herzog A caverna dos sonhos esquecidos (Cave of Forgotten

Dreams, 2010). No filme em 3D do diretor alemão, a caverna pré-histórica de Chauvet na

França, coberta de pinturas paleolíticas de cerca de 32 mil anos, ganha vida através do jogo

de luz e sombras das lanternas da equipe. A pintura de um bisão e de outros animais com

oito pernas no lugar de quatro, sugerindo movimento, tende a corroborar a tese de que a

caverna representa uma espécie de experiência proto-cinematográfica: as pinturas

rupestres, ou o nascimento da arte, parecem conter o fascínio da imagem em movimento

que o cinema iria sedimentar. Herzog também chama a atenção em seu documentário

para o fato das paredes da caverna não serem lisas ou retas, seu relevo acidentado

adicionando ainda mais movimento às pinturas. Em Na cidade de Sílvia, Guerin ensaia

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seu primeiro “elogio do movimento” através de planos que se assemelham à pinturas, à

naturezas-mortas, banhadas e animadas por um jogo de luzes e sombras. As imagens

revelam também um gosto por texturas e camadas, no papel de parede, nos mapas

empilhados, nos planos de lençóis enrugados que introduzem o segundo tableau, e dos

corpos nus (do protagonista e de uma mulher irreconhecível) na cama na terceira noite,

sempre animados pela luz exterior em movimento.

As cartelas anunciam três noites, mas Na cidade de Sílvia se desenrola

principalmente durante o dia. O primeiro deles dura exatos nove minutos, durante os

quais o rapaz sai do hotel e se senta no café do conservatório musical de Estrasburgo. O

segundo dura 56 minutos e meio, e é tomado por três sequências principais: a primeira

ocorre no mesmo café do dia anterior, no qual ele se senta e observa diversas mulheres

por 16 minutos; a segunda consiste na “perseguição” da suposta Sílvia pelas ruas da

cidade, por cerca de 30 minutos; e a terceira se ocupa da visita noturna ao bar Les

Aviateurs, precedida do interstício no parque, onde tenta desenhar as folhas em

movimento. O terceiro dia dura 19 minutos, durante os quais a câmera passeia por

algumas locações já visitadas anteriormente, e volta ao café do conservatório, onde o rapaz

parece ver Sílvia uma segunda vez.

Realizado quase exclusivamente a partir de externas, as filmagens em locação na

cidade real conferiram ao filme um grau de contingência que, segundo Guerin (2007), o

posicionou entre “o cálculo e o azar”, ou em outros termos entre a ficção e o

documentário. Elementos como a meteorologia, o trânsito dos bondes, as fachadas das

casas e o traçado das ruas ocupam o espaço da recalcitrância ao qual se referiu Nowell-

Smith em relação ao neo-realismo, e até certa medida vale a afirmação do diretor de que

esperava também se surpreender com o próprio filme (2007), impregnado como estava

destes elementos urbanos que resistem ao controle. Outras sequências, entretanto,

parecem se guiar pela prevalência do cálculo sobre o azar, a despeito do imprevisível da

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locação. Vejamos por exemplo o primeiro plano-sequência do filme, que vem

imediatamente depois das imagens dentro do quarto de hotel na primeira noite. A câmera

está parada e focaliza uma rua relativamente estreita, que termina nos muros de outra rua.

Em ordem, passam pela rua principal uma mulher correndo e um homem empurrando

uma mala, e pela rua lateral bicicletas e pessoas em ambas as direções. Trinta segundos

depois emerge o rapaz de dentro do “Hotel Patrícia”, localizado do lado direito da rua.

Ele carrega em suas mãos um mapa, olha para os dois lados, caminha em uma direção

mas volta e toma a direção contrária. Ele sai de quadro após trinta segundos, mas o corte

só vem quase um minuto depois, durante os quais passam duas crianças com mochilas

conversando em inglês, uma bicicleta, um vendedor de flores manco e um carro na rua

lateral. Desta descrição depreendem-se algumas características formais que ditarão o resto

do percurso. O primeiro comentário se refere à duração do plano em relação ao

personagem principal, que “entra em cena” 30 segundos após o seu início e “sai de cena”

um minuto antes de seu final. Há nesses cortes uma intenção explícita em reforçar o

desejo de captar a vida nas ruas, que é maior do que a própria narrativa. Ao mesmo

tempo os cortes produzem o efeito Brechtiano de distanciamento ao colocar em evidência

os restos normalmente eliminados pela montagem, revelando a “construção” do filme.

Estes cortes alargados, entretanto, não captam simplesmente a contingência da cidade,

visto que há aqui uma tentativa de coreografá-la muito explícita – presente também nas

teatrais “entrada” e “saída” de cena do rapaz. Se nem todos os movimentos foram

ensaiados, é quase certo que alguns deles o foram, uma suspeita corroborada pelas

entrevistas com o diretor e a diretora de fotografia que acompanham a edição inglesa do

DVD (2007). Guerin contou durante as filmagens com uma equipe dedicada a recrutar

em meio aos habitantes/ambulantes de Estrasburgo figurantes para cada uma das cenas,

que deveriam assinar um termo de autorização antes de participar das filmagens. Outros

figurantes eram atores-extras que se encaixavam no espaço de modo programado. Isso

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também fica evidente através da repetição de figuras humanas na cidade, neste caso das

crianças e do vendedor de flores, que serão vistos novamente em outros momentos. Do

mesmo modo, outras cenas apresentam figurantes que irão reaparecer em um dado

momento, tais como um vendedor ambulante que porta um chapéu em forma de guarda-

chuva, visto em três momentos e locais diferentes, uma moça que pede cigarros e uma

moradora de rua.

Esta contingência ensaiada se reforça pela trilha sonora, que já neste primeiro

plano apresenta uma série de motivos que também se repetirão durante o filme,

demonstrando seu caráter programado e quase musical. Alternam-se os sons diegéticos de

passos, da mala que se arrasta no chão, do carro e da bicicleta com o som de passarinhos,

de um tenor amador e de diversos trechos de conversas que vem e vão, em diferentes

línguas – pelo menos quatro apenas nesse plano (alemão, francês, espanhol e inglês).

Nenhuma das conversas se completa, são apenas sussurros quase imperceptíveis,

recorrentes durante todo o filme nessas e em outras línguas. Também recorrentes na trilha

serão o canto dos passarinhos, o soar dos sinos, da buzina do bonde ou das frequentes

bicicletas, e trechos de músicas diegéticas tocadas na rua, no violino ou na sanfona. Toda a

trilha parece ter sido composta a partir de leitmotifs, oriundos da cidade real mas

retrabalhados através de uma textura sofisticada, confirmando a ideia da contingência

ensaiada, ou seja, da coreografia cuidadosa dos elementos do real que se tornam variações

sobre o mesmo tema.

Tanto a trilha quanto a repetição de figuras na cidade são indicativos da estrutura

circular do filme, que alterna o deslocamento a pé do protagonista pelas ruas de

Estrasburgo com momentos de pura observação, nos quais domina seu olhar inquisitivo.

A estrutura de montagem que prevalece em todo o filme é o clássico campo/contra

campo, através do qual se estabelece uma continuidade ilusória a partir da fragmentação

essencial dos planos, posicionando o espectador no espaço entre eles. Como é sabido, o

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campo/contra campo é a técnica mais comum na montagem de diálogos no cinema de

narrativa clássica, mas neste filme, onde quase nada se fala, o recurso é usado para

estruturar o observador e o observado, o olhar e o objeto. Assim, a cena de 16 minutos no

café no segundo dia é inteiramente montada a partir do campo/contra campo. Os planos

vão de médios a primeiros, aproximando-se de algum detalhe e depois se afastando,

sempre voltando ao rapaz como regra, para aquele que observa, que guia o olhar da

câmera e o corte. Se não está sentado neste café ao ar livre, onde um grupo de violinistas

proporciona a trilha sonora diegética, o rapaz caminha pela cidade, cujas ruas, avenidas,

travessas e praças aparecem de modo proeminente, repletas de pedestres, bicicletas,

carros, bondes, em um mover-se harmônico e elegante. As sequências de movimento,

com destaque para a “perseguição” da suposta Sílvia, emprestam da própria cidade seu

estilo, e talvez resida aqui a chave para a compreensão da relação deste filme como o

espaço urbano.

Estrasburgo não foi escolhida ao acaso para locação, e as razões desta escolha

iluminam alguns aspectos da própria estrutura do filme. O centro histórico da cidade,

conhecido pelo nome de Grande île, foi listado pela Unesco como Patrimônio Mundial

em 1988. Seu traçado medieval se prestava perfeitamente à estória de uma busca por uma

mulher (uma donzela?), nos moldes das lendas da Idade Média. Além de medieval,

Estrasburgo é uma cidade de mais de dois mil anos, e tem esta longa história impressa em

sua arquitetura, o que lhe confere um ar atemporal, próprio ao exercício do olhar e ao

elogio do movimento encenados por Guerin. A cidade é também estrangeira para o

diretor catalão, o que casa bem com sua natureza de viajante. Sede do Parlamento

Europeu e de diversas outras instituições européias, Estrasburgo ocupa um espaço híbrido

entre a França e a Alemanha, próprio a um filme que resiste uma identidade nacional

fechada, dirigido por um catalão e realizado em co-produção pela França e a Espanha. O

diretor se sentiu igualmente atraído pela harmonia da cidade, que apesar de seu médio

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porte não se caracteriza pelo tráfego e movimentação intensos, contando também com o

bonde que adquire no filme “um valor semântico importante”, nas palavras de Guerin

(2007). Esse foi um dado decisivo na escolha, visto que facilitou a coreografia arquitetada

sob a égide dessa harmonia, unindo os personagens, as ruas, os veículos e os figurantes.

Nesta cidade ao mesmo tempo particular e geral, antiga e atemporal, a câmera

Super 16 mm de Guerin (o diretor operou a câmera e a direção de fotografia ficou a cargo

da argentina Natasha Braier) segue o protagonista ou através de planos gerais fixos, que

dão conta de um largo espaço a ser atravessado, ou através de travellings, capturados com

a câmera montada em trilhos ou em Steadicam. Isso confere leveza e estabilidade ao

movimento, inspirado na leveza e na ordem da própria cidade.

Exemplo dessa contaminação do estilo do filme pelo espaço real, além de indicativa da

natureza circular da narrativa, típica do cinema da demora, é a sequência central na qual o

protagonista segue a mulher que pensa ser Sílvia. Como descrito no início do capítulo, o

rapaz sentado do lado de fora do café entrevê, através da fachada de vidro, um rosto que

chama sua atenção. Neste vidro estão também refletidos outros rostos de mulheres, que se

confundem em um emaranhado de imagens. O uso da superfície refletora parece sugerir,

além da já aludida ênfase em texturas e camadas, a dimensão subjetiva desta cidade, que

vemos através dos olhos e das memórias de um rapaz. Assim, este rosto que o intriga

sobremaneira parece ser uma imagem mental, produto de suas lembranças, visto que foi

neste café que encontrara Sílvia seis anos antes. Outras superfícies refletoras aparecem no

filme, tais como vitrines de lojas e as janelas dos bondes, sobre as quais se projetam rostos,

carros, prédios e outros elementos em movimento.

A dona do rosto se levanta e sai do café, observada pelo rapaz em um plano geral

no qual se destaca seu vestido vermelho, adornado por uma bolsa bege. Ele por sua vez

está vestido de bege com uma bolsa vermelha, e após alguns segundos paga a conta de

modo abrupto e sai na direção da mulher. A perseguição abre com um plano estático,

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atravessado por ela e, trinta segundos depois, por ele. A trilha sonora segue o padrão já

comentado, intensificando-se nas ruas mais movimentadas. O plano estático é sucedido

por uma série de campos/contra campos em movimento, captados por Steadicam, numa

bela coreografia de planos e corpos por ruas comerciais do centro. Estas ruas contêm a

harmonia e leveza desta cidade especialmente fotogênica, e destaca-se a ausência de

carros, substituídos pelos mais elegantes bondes e bicicletas. Há um número considerável

de pedestres que também se move de modo harmonioso, como parte integrante da

coreografia da contingência ensaiada por Guerin. A câmera por vezes parece seguir rente

aos trilhos do bonde, próxima ao chão, e outras vezes eleva-se à altura dos olhos,

movendo-se constantemente durante quase toda a sequência de trinta minutos. O uso do

Steadicam confere-lhe a leveza própria do espaço atravessado. Essa “perseguição” adiciona

à narrativa, que até agora pouco ou nada avançara, um certo elemento de suspense, que

também pode ser entendido a partir do princípio da demora, visto que o filme atrasa o

momento em que responderá às questões inevitáveis: Será ela Sílvia? Será que ele vai falar

com ela? Será que ela se lembrará? Outras questões – as mais importantes – ficarão sem

resposta, em consonância com o estilo de narrativa aberta e circular empregado: O que

aconteceu entre os dois no passado? Por que ele volta a Estrasburgo? Por que não estão

mais em contato? Tudo isso de fato não importa.

Nesta rua principal a imagem do bonde oferece mais uma instância do elogio do

movimento promovido por Guerin, ecoando o jogo de luz e sombras no quarto e as folhas

ao vento, presente também no plano de um vestido que dança pendurado ao lado de fora

de uma janela, observado pausadamente pela câmera/olhar do rapaz. Aqui, ele e ela

andam em lados opostos dos trilhos, e ao passar o bonde a câmera capta seus rostos

através das janelas, num estranho campo/contra campo entre imagens que parecem a

própria película cinematográfica, dividida em quadros equidistantes. A cena se repete duas

vezes, seguindo a mesma estrutura. Até aqui ele a mantém sob seu campo de visão, mas

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em um dado momento ela desaparece. Após rondar em sua busca, voltando pelas

mesmas ruas já atravessadas a olhar por todos os lados, o rapaz acaba por entrever a

mulher através de uma vitrine de loja, em mais uma instância do uso da superfície

refletora ligada à subjetividade. A busca continua, mas aos poucos se nota que o labirinto

de ruas do centro de Estrasburgo é cada vez mais familiar, e que o movimento do casal e

da câmera, ao invés de progredir para frente, dá voltas, hesita, se perde. Ela afinal embarca

em um bonde, seguida pelo rapaz, e será lá dentro que ele finalmente a abordará. A

cidade em movimento vista através da janela do bonde imprime dinamismo e variações de

luz e sons ao único diálogo do filme, travado dentro do veículo. Ele diz em francês: “Eu

guardei o mapa que você fez para mim no guardanapo do Les Aviateurs”. Ela, por sua vez,

diz não reconhecê-lo, demonstrando-se incomodada por ter sido seguida, e confessando

que estava andando em círculos. “O teu itinerário, foi por minha causa?”, ele pergunta,

como se houvera um laço entre os dois, apesar de seu erro de memória. Ao mesmo

tempo percebe-se que a circularidade ditada pelo percurso da mulher condicionou o

percurso do homem, conduzindo a narrativa do filme através de um labirinto, no qual ela

pareceu perder qualquer ímpeto de resolução. A mulher desce do bonde e lhe deseja

“boa viagem”. Sua despedida lacônica alude a um dos principais motivos do filme,

prenunciado nos primeiros planos do hotel e presente em uma série de signos imagéticos

e sonoros tais como passantes empurrando malas, os mapas, o bar Les Aviateurs (“os

aviadores”) e a canção francesa Voyage Voyage (“viagem viagem”), que toca

diegeticamente no café.

No terceiro dia uma série de planos estáticos de diversas locações – pelas quais o

filme já passou – aponta mais uma vez para o atraso e a circularidade estruturais: ruas,

esquinas, praças, muros pichados, vendedores ambulantes, lojas, tudo aqui parece se

repetir. No café ele revê a mulher do dia anterior, que o atrai mais uma vez para um

ponto de bonde. Mas ao vê-la embarcar em um ele não a segue, preferindo ficar no ponto

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sempre a olhar outras mulheres, outros rostos, dentre os quais um severamente

deformado, sem um dos olhos. O filme termina com um plano geral de um

entroncamento de ruas, já visto no segundo dia no momento em que a suposta Sílvia

desce do bonde, distanciando-se do rapaz que a segue com o olhar através da janela. Mas

neste último plano já não fica claro quem está a observar o quê, pois a montagem não

funciona como contra campo do olhar do rapaz. Finalmente livre, a câmera está apenas lá,

a preservar a cidade real, ao mesmo tempo coreografada e recalcitrante.

OS OLHARES OBLÍQUOS DE XIAO WU

Jia descreveu as filmagens de seu terceiro longa-metragem Prazeres desconhecidos como

uma “conversa paciente com a cidade, através da câmera” (2002), e o mesmo poderia ser

dito de Xiao Wu. Seu primeiro longa-metragem parte de uma premissa similar à de Na

cidade de Sílvia, aplicada a um contexto e a um espaço completamente diferentes. O filme

é também arquitetado a partir do olhar de um personagem central masculino através de

uma cidade, e através deste olhar e de suas andanças a narrativa atrasa o passo e perde-se

em círculos. A aproximação entre os dois filmes demonstra de que modo a cidade real da

locação exerce uma influência estrutural e estética sobre o cinema, resultando em soluções

similares e ao mesmo tempo distintas. Se Estrasburgo, uma cidade estrangeira para

Guerin, foi escolhida por se adequar a um projeto pré-existente, Fenyang, cidade natal de

Jia, que há alguns anos se mudara para Beijing para trabalhar e estudar, foi a principal

fonte de inspiração para o filme, sua raison d’être. Michael Berry explica: “O aspirante a

diretor não voltava para casa há um ano e meio e, ao se deparar com as monumentais

mudanças que lá ocorriam – da demolição dos prédios às mais sutis mudanças pessoais

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em seus velhos amigos – Jia se sentiu imediatamente impelido a capturar o que estava

acontecendo em sua cidade natal” (2009, p. 23). 44

Xiao Wu nasce então do desejo explícito de filmar uma cidade e suas

transformações. Se Estrasburgo fascina pela preservação de seu centro histórico, Fenyang

esconde as marcas do passado, e aquelas poucas reminiscentes estão sendo rapidamente

apagadas. Logo, há uma urgência neste cinema que pretende preservar um presente

instável, um ponto a ser discutido com mais atenção no quarto capítulo deste livro. Aqui,

pretendo investigar de que modo este espaço instável condicionou o olhar e a câmera do

diretor, mediados pelo olhar de soslaio de Xiao Wu, resultando em uma prática espacial

definida por um posicionamento realista, diverso do posicionamento romântico do rapaz

na cidade de Sílvia. De que modo então a cidade de Fenyang condiciona o olhar e o andar

de Xiao Wu (e de Jia Zhang-ke)? O filme, apesar de não empregar o recurso brechtiano

de tableaux presente em Na cidade de Sílvia, também possui uma estrutura tripartite, não

temporal mas sim temática: Xiao Wu volta à sua cidade natal mas lá não encontra a

acolhida do lar: é progressivamente rejeitado por seus amigos de infância e ex-colegas

ladrões, como Jin Xiaoyong, agora um empresário de sucesso no ramo dos cigarros, que

não o convida para seu casamento; pela prostituta Mei Mei (Hao Hongjian), com quem

tem um breve envolvimento mas que deixa a cidade sem ao menos se despedir; e

finalmente por sua família, sendo expulso de casa na terceira parte do filme aos gritos e

golpes de marreta por seu pai. Xiao Wu acaba sendo preso pela polícia local, e o filme,

fundado a partir de seu movimento, encontra o seu final narrativo na imobilidade. A

despeito de uma estrutura pontuada por rejeições, Xiao Wu se contamina do mesmo

relaxamento narrativo observado em Na cidade de Sílvia, derivado principalmente da

44

“It had been a year and a half since the aspiring director has been home and, struck by the monumental

changes taking place there – from the widespread demolition of old buildings to the more subtle personal

changes affecting his old friends – Jia was immediately driven to capture what was happenings to his

hometown.”

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influência do neo-realismo e de sua relação com o espaço real, configurando-se como

mais um exemplo do cinema da demora. Isso porque o filme emprega também uma

estrutura circular, onde os eventos-chave não se distinguem por um avanço narrativo, visto

que servem para colocar o personagem repetidamente de volta no mesmo lugar, ou seja,

na exclusão, do lado de fora da cidade ou na prisão.

Xiao Wu, assim como Na cidade de Sílvia, foi filmado com uma câmera 16 mm.

Como é sabido, este formato ganhou força nos anos 1960 como uma espécie de

instrumento da verdade, uma câmera capaz de captar o real de modo mais próximo,

liberando o cinema da escravidão histórica ao produto comercial, ligado ao 35 mm.

Assim, tornou-se fundamental ao cinema underground e aos movimentos documentaristas

dos anos 1960, levando a novas definições de realismo. Nesse sentido, o uso de Jia Zhang-

ke da câmera 16 mm é mais próximo dessa qualidade utópica do que aquele de Guerin

em Estrasburgo. Afinal, Xiao Wu foi realizado na clandestinidade, tornando-se um dos

marcos do cinema chinês independente da geração urbana dos anos 1990, que driblava o

regime para filmar de maneira livre, em busca da China real. Logo, seu realismo é antes

de tudo um realismo revelatório, de cunho representacional, visto que busca promover

uma extensão social da representação, nos termos de Raymond Williams (1977, p. 63), ao

se voltar para uma figura à margem da sociedade, observada em seu próprio meio, sob um

pano de fundo real. Isso significa que do ponto de vista do realismo da fábula Xiao Wu

comunga do mesmo credo neo-realista, disposto a revelar, mostrar o não visto,

problematizar uma realidade social específica. Mas assim como demonstrou Bazin acerca

do neo-realismo, Xiao Wu combina o ímpeto revelatório e representacional a um

realismo formal, que se manifesta principalmente através do que chamo de consequências

estéticas da cidade real, colada à forma do filme, o que parece conferir-lhe sua verdadeira

força revelatória.

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Assim, os movimentos da câmera 16 mm pela cidade de Fenyang não apresentam

a leveza e a harmonia vistas em Estrasburgo. O que se pode observar em Xiao Wu é um

espaço desorganizado, movimentado, atravessado constantemente por um tráfego intenso

de carros, ônibus, bicicletas, motocicletas e pedestres, que na falta de calçadas caminham

em meio aos veículos. A câmera reproduz essa intensidade ao mover-se de modo ágil, ou

montada em veículos ou na mão, resultando em imagens dinâmicas e tremidas. Ao

contrário do filme de Guerin, no qual houve um esforço para controlar ou coreografar o

espaço real, Fenyang aparece como uma cidade quase indomável, impondo sua

contingência em todos os planos do filme. Nota-se a intimidade estabelecida entre a

câmera e o espaço, que deriva principalmente dos métodos documentais utilizados

durante a produção, facilitados pelo 16 mm. Em Jia Zhangke’s ‘Hometown Trilogy’

(Berry, 2009, p. 26), o diretor de fotografia Yu Lik-wai relembra que as filmagens

atraíram grandes contingentes de curiosos nas ruas da cidade. Entre esconder câmeras,

filmar e correr, esperar até que se cansassem ou a curiosa técnica do ‘boi de piranha’ (uma

câmera para distrair e outra para filmar), Jia e Yu fizeram de tudo para dispersar os

passantes e assim captar a vida nas ruas através da observação, preservando ao menos um

pouco da ilusão de sua narrativa. Mas aqui a “recalcitrância” da cidade real mostrou-se

irresistível, levando Jia a incorporar os olhares curiosos, o que adicionou uma nova

camada de realismo ao filme.

Xiao Wu começa justamente com olhares curiosos: em uma estrada, uma família

cercada de bagagens aguarda um ônibus e olha diretamente para a câmera, no que parece

ser o primeiro plano de um documentário. O personagem ficcional Xiao Wu é visto logo

após os créditos iniciais à beira da mesma estrada, através de dois planos metonímicos de

suas mãos (ele é, afinal, um batedor de carteiras), segurando um maço de cigarros. Ele

embarca em um ônibus em direção à cidade, dentro do qual tenta bater uma carteira e se

esquiva de pagar a passagem, dizendo ao cobrador que é um policial. Já na cidade Xiao

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Wu é visto na garupa de uma bicicleta, em meio ao caótico trânsito de veículos e pessoas.

Aos poucos fica claro que ele está retornando à sua cidade natal, assim como o próprio

diretor, após um período de ausência. O retorno então motiva o filme, mas ao contrário

de Na cidade de Sílvia, onde voltar a Estrasburgo confunde-se com a viagem de turismo,

trata-se aqui de um reencontro com o familiar. Este familiar, entretanto, aparece desde o

início como um espaço instável, em processo de transformação, prenunciando a

inadaptação de Xiao Wu à sua própria cidade natal. Um aviso de evicção aos 11 minutos

do filme, por exemplo, revela que a loja de seu amigo será demolida, assim como as

outras lojas do mesmo quarteirão. O caractere chinês 拆 (chai) – que significa “demolição”

– estampa muros e prédios da cidade, onde se pode igualmente observar novas

construções em andamento. Dentro da lógica realista de Jia, a cidade instável aparece

como reflexo da própria instabilidade de Xiao Wu, que por sua vez é produto desta

instabilidade.

Conforme observei, Na cidade de Sílvia faz uso recorrente de imagens de

superfícies refletoras tais como vidros, espelhos e janelas que, além de marcar a

porosidade entre o exterior e o interior, sugere a porosidade entre a cidade e o

protagonista, cujas memórias parecem projetadas nessas superfícies. O próprio corpo da

cidade então é visto como um reflexo das impressões subjetivas do rapaz, em consonância

com o posicionamento romântico que reorganiza a cidade a partir de um olhar. Em Xiao

Wu a porosidade entre o exterior e o interior, entre o público e o privado, além de

também sugerir a interpenetração entre o espaço urbano e o protagonista, ganha uma

conotação de cunho cultural e político que a diferencia de Na cidade de Sílvia, em

consonância com o posicionamento realista assumido. Sob o ponto de vista cultural, pode-

se dizer que em uma cidade chinesa, e Fenyang não é exceção, a vida na rua se configura

como uma extensão da vida nas casas. As lojas, por exemplo, tendem a ser inteiramente

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abertas, sem uma vitrine protetora que as separem da calçada; há uma profusão de

barraquinhas que preparam e servem comida nas ruas; a presença ubíqua de camelôs

enche calçadas e ruas com bancas que vendem desde frutas até aparelhos de som, tocando

em altos brados fitas cassete ou discos pirateados; até mesmo um karaokê parece ocorrer

do lado de fora, atraindo um aglomerado de pessoas. Além das atividades comerciais que

transbordam para o espaço público o filme mostra Xiao Wu jogando bilhar no meio da

rua e lavando seu rosto do lado de fora da casa, em uma torneira externa; Mei Mei, por

sua vez, telefona para seus pais em sua cidade natal de uma banca na rua, e luta com o

barulho constante da cidade para escutá-los; em sua casa a torneira também fica do lado

de fora, onde sua amiga vai buscar água para a chaleira. A cidade também guarda em seu

corpo marcas do passado de Xiao Wu e Jin Xiaoyong, na forma de riscos gravados no

muro para indicar suas alturas. Os anos que os viram crescer na cidade estão assim

registrados na pedra, como um signo público e não doméstico da persistência da

memória, tocado alternadamente por Xiao Wu e Jin Xiaoyong em dois planos distintos.

As locações internas que ocupam metade do tempo de projeção reforçam esta

porosidade ao transbordar para fora e ao convidar a cidade externa para dentro. Xiao Wu,

por exemplo, vai a um banho público, e acima da banheira uma grande janela deixa

escapar o vapor para o lado de fora; a estação de polícia conta também com uma grande

janela que atrai os olhares curiosos dos passantes após sua prisão; lojas, restaurantes e

cabeleireiros contêm janelas ou cortinas que pouco os protegem da rua, ou por vezes

nenhuma separação. A solução formal que dá conta no filme dessa interpenetração é

primeiramente o enquadramento, que privilegia as janelas nas cenas internas, de modo a

reforçar a presença da cidade real do lado de fora, e a autenticidade da locação. Em

segundo lugar, longos planos-sequência em locações internas evidenciam outro aspecto

essencial à construção de uma barreira porosa entre o público e o privado em Fenyang,

que é a trilha sonora. O mais longo deles, de seis minutos, ocorre na casa de Mei Mei,

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onde ela convalesce em uma cama e joga conversa fora com seu pretendente. Uma

enorme janela ocupa a parte superior do quadro, e a luz externa incide diretamente sob a

lente da câmera. A conversa entre os dois ocorre em meio aos sons da cidade, e chega até

mesmo a ser abafada pelas buzinas, gritos e outros barulhos da rua.

Costurada em camadas, a banda sonora de Xiao Wu contém, além dos esperados

barulhos de buzinas e veículos motores, presentes em qualquer cidade (mas, é claro, com

muito mais intensidade aqui do que em Estrasburgo), o constante barulho de demolições

e construções, de aparelhos de televisão e de som e de conversas nas ruas. Ainda mais

peculiar é a presença do som de alto-falantes, que divulgam assuntos de interesse político

nacional (tal como a reunificação de Hong Kong) a curiosidades e anúncios locais (como

por exemplo, “se alguém quiser um pedaço de carne de porco, venha até minha casa”) –

reverberados aos quatro cantos da cidade, e que se tornam parte integrante da trilha. Por

fim, outro capítulo poderia ser escrito exclusivamente sobre o uso da música pop no filme,

que pontua diversos momentos diegética e não-diegeticamente, tornando-se uma das

marcas estilísticas do diretor neste e outros filmes. Para o propósito atual cabe notar o

modo como a trilha de Jia se estrutura a partir da noção de camadas ou texturas,

inspiradas, assim como a trilha Guerin, na realidade dos sons da cidade. Aparecem então

as variações sobre o mesmo tema a partir da repetição de sons e canções, da presença

constante do barulho das buzinas, das demolições ou construções, e dos anúncios

públicos. Berry relata em Hometown Trilogy o desentendimento entre Jia e a operadora

de som Lin Xiaoling, “que sentiu que sua reputação profissional seria comprometida pelas

repetidas demandas do diretor para que tornasse a qualidade de som a mais áspera

possível” (2009, p. 27),45

o que a levou a deixar o projeto, substituída por Zhang Yang. A

aspereza da qualidade do som significa que a trilha se impõe sobre todos os planos,

45

“Who felt her professional reputation would be compromised if she followed the director’s demands to

repeatedly make the sound quality ‘even coarser’”.

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externos ou internos, uma opção estética que reforça a qualidade real da cidade em sua

confusão entre o público e o privado.

Essa característica de Fenyang, que pode ser estendida a outras cidades chinesas (e

em parte a outras cidades do sudeste e sul asiáticos), parece um reflexo espacial da

porosidade imposta por anos de regime comunista entre o público e o privado, o coletivo

e o individual. Assim, em um país que não tem entre suas prioridades a noção de

liberdade individual, priorizando sempre o bem coletivo regulado por um poder maior,

não surpreende que as atividades diárias de comércio e lazer aconteçam no espaço

coletivo, público. O alto-falante também funciona como uma constante lembrança da

presença inescapável do poder público chinês na vida do cidadão, invadindo não só as

ruas como também os locais privados. Mas talvez a ligação entre a estética e a característica

política da vida chinesa possa ir além do legado comunista, e isso aparece em Xiao Wu no

emprego da arquitetura vernacular chinesa, tradicionalmente destinada à construção de

residências. No norte da China, as casas familiares tendiam a ser formadas por uma

sequência de prédios, interconectadas por pátios internos e corredores que se abriam para

a rua e para dentro dos quartos. Esse tipo de construção, com sua ênfase no pátio ou

pátios como o centro das atividades da casa, reforçava a interpenetração entre o interior e

o exterior. Esse modelo tinha a vantagem de ser facilmente adaptado através da

construção de adendos e novos pátios, atendendo ao crescimento da família (Cai & Ly,

2006, p. 114). Xiao Wu é visto em uma série de planos-sequência atravessando

corredores, portas e pátios construídos a partir desse princípio arquitetônico, e é difícil por

vezes perceber se ele caminha do lado de fora ou de dentro dos muros, ou se está em um

pátio residencial ou público. O filme então incorpora esta peculiaridade arquitetônica,

principalmente através da câmera subjetiva em plano-sequência, para indicar mais uma vez

o relaxamento das barreiras entre o público e o privado, exacerbado por mais de 60 anos

de regime comunista.

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Outro ponto a ser comentado diz respeito ao olhar-guia do personagem que dá

nome ao filme, assim como o olhar de outros habitantes da cidade, e mais uma vez o

paralelo com Na cidade de Sílvia pode iluminar a análise por suas semelhanças e

diferenças. Em Xiao Wu, conforme apontado no início do capítulo, o olhar não mediado

dos passantes atraídos ou surpreendidos pela câmera é um olhar inquisidor e curioso, que

quebra constantemente a quarta parede e funciona como um documento dentro do tecido

ficcional, contribuindo para um relaxamento narrativo ao introduzir de modo explícito o

elemento contingencial da locação. Esse olhar direto e curioso tanto para a câmera quanto

para seu objeto lembra o olhar igualmente direto e curioso do rapaz na cidade de Sílvia,

responsável pela articulação romântica do espaço real. Tanto o olhar-tátil do rapaz em

Estrasburgo, que não raro se transfere ou se transforma em desenhos, quanto o olhar-

documento dos habitantes de Fenyang, interessados no próprio cinema, parecem se

confundir com o olhar dirigido do espectador, imitando-o ou retribuindo-o. Já o olhar de

Xiao Wu, mediado por um óculos de aro negro com lentes grossas, é oblíquo, cabisbaixo,

de soslaio, escondido, próprio à sua profissão de batedor de carteiras, o que lhe confere

um certo charme e a candura dos tímidos. Adiciona-se a esse olhar um andar

cambaleante, dissimulado, quase uma an-dança gauche de idas e voltas, na tentativa vã de

atingir algum equilíbrio. O remapeamento de Fenyang promovido por Jia é resultado

desse desequilíbrio e desse olhar oblíquo. Isso resulta em uma cidade sempre vista da

altura de uma pessoa, desprovida de uma imagem totalizante pela ausência de planos

gerais de qualquer espaço maior do que uma rua.

A última sequência resume as características discutidas nesse capítulo e encerra o

filme – arquitetado sob o signo da mobilidade – com uma imobilidade ficcional

emblemática, a prisão de Xiao Wu, que ao mesmo tempo confunde-se formalmente com

o final de seu percurso. Após ter sido levado para a delegacia durante a noite, um plano-

sequência de dois minutos e meio mostra o prisioneiro sendo conduzido no dia seguinte

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para o lado de fora, acompanhado pelo policial que, por ter algo a fazer, o algema a um

cabo de ferro no meio-fio, como se ele fora um cachorro a esperar pelo dono. Lá ele fica

de cócoras, olhando alternadamente para o chão e para seu entorno de modo oblíquo, e a

câmera – que permaneceu durante quase todo o filme na altura do homem – abaixa-se

ainda mais, assumindo com Xiao Wu a posição agachada. O plano-sequência realiza uma

espécie de decupagem, passando de plano geral (a dupla sai da delegacia e atravessa a rua)

para plano médio (o policial prende Xiao Wu no cabo de ferro), e finalmente para um

plano primeiro (Xiao Wu de cócoras, demonstrando desconforto). Neste plano primeiro

é possível ver à distância, através da profundidade de campo, algumas poucas figuras

curiosas, que observam Xiao Wu (e as filmagens) sem que ele se dê conta. Aos poucos

seu incômodo cresce e, ainda sem cortes, a câmera acompanha seu olhar (movimentando-

se para a direita e para cima), revelando do outro lado uma turma ainda maior de

curiosos, aglomerada à sua volta. Por um minuto e quinze segundos a câmera observa

aqueles que observam Xiao Wu, movimentando-se da direita para a esquerda e vice-versa.

Um dos méritos deste sofisticado plano-sequência é reunir os dois tipos de olhar

observados durante o filme, o olhar oblíquo de Xiao Wu e o olhar direto e curioso da

multidão. Aqui, a curiosidade adquire também uma conotação de reprovação, pois

promove a humilhação de Xiao Wu em praça pública. Michael Berry (2009) traça um

paralelo, corroborado pelo diretor, entre o papel da multidão no final de Xiao Wu e na

novela de Lu Xun A verdadeira história de Ah Q (1922), adaptada para o cinema em

1958 e 1986. Sequências de humilhação pública são recorrentes no cinema e na literatura

chinesas, e ocorriam de fato no país até pelo menos 2010, tendo sido muito frequentes

durantes os anos da Revolução Cultural (1966-76). Ao algemar seu protagonista no meio-

fio, à mira dos olhares curiosos e críticos espontaneamente atraídos pela câmera, Jia

salienta mais uma vez a interpenetração entre o público e o privado que permeou todo o

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filme. Se nesta cidade come-se na rua, telefona-se da rua, joga-se bilhar na rua, lava-se o

rosto na rua, não surpreende que se possa ficar algemado na rua, ou à rua.

O plano-sequência final também dá conta das diferentes camadas de realismo

presentes no filme, que enfatizei a partir da incorporação do espaço urbano real. No plano

da fábula, Xiao Wu cumpre o papel da extensão social ao eleger um batedor de carteiras e

seu ambiente como principal foco da representação. Assim, esse realismo está

diretamente ligado à revelação de algo previamente ignorado ou escondido, e a locação

real ocupa um papel decisivo ao deixar-se “revelar” pela câmera. Além disso, por tratar-se

de um plano sequência com profundidade de campo, recurso do qual lança mão com

frequência durante o filme, Jia preserva a continuidade do tempo e do espaço através de

seu impulso baziniano, resultando em um realismo estético de inspiração neo-realista. Por

fim, o plano possui também o anti-ilusionismo brechtiano dos olhares diretos para a

câmera, funcionando como um elemento reflexivo que escancara o real da atividade

cinematográfica. Mas aqui esses olhares podem ser vistos dentro da ficção quase como

uma outra ilusão, pois quem quebra a quarta parede e encara a câmera são os habitantes

da cidade, e não o ator que interpreta Xiao Wu. Isso provoca uma impressão documental,

como se o que estivesse sendo registrado fosse verdadeiro, real, e não uma ficção. Logo,

esse recurso por um lado exacerba o realismo do meio (Nagib, 2011) ao assumir-se como

cinema, e por outro lado participa da ilusão documental gerada espontaneamente durante

as filmagens, que não deixam de ser a resposta real das ruas à uma situação criada pela

câmera. Laura Mulvey observou o modo pelo qual Viagem à Itália (Viaggio in Italia,

Roberto Rossellini, 1953) desdobra-se em dois finais, um “hollywoodiano” (o beijo do

casal) e o outro documental (o movimento de pessoas na cidade): “A vida continua. Um

final para, o outro flui” (2006, p. 122). Em Xiao Wu, mesmo que sua imobilidade

signifique a imobilidade da câmera e a imobilidade do filme, ou seja, seu fim, a vida

também parece continuar nos olhares inquisitivos dos curiosos. São estes olhares que

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abrem e fecham o filme com a quebra da quarta parede, e que acabam prevalecendo

sobre o olhar oblíquo de Xiao Wu, envergado pela cidade, cujo peso chega a deixá-lo de

cócoras no final. Aqui, o real da cidade é maior do que o indivíduo, sedimentando a

posição realista do diretor.

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CAPÍTULO II: O CINEMA ATRAVESSA A CIDADE

Filmes: Caro diário (Caro diario, Nanni Moretti, 1993), Os 12 trabalhos (Ricardo Elias,

2006), A bicicleta de Pequim (Shi qi sui de dan che, Wang Xiaoshuai, 2001)

Cidades: Roma, São Paulo, Pequim

Este capítulo é dedicado a três filmes realizados em cidades distintas, uma na Ásia

(Pequim), uma na Europa (Roma) e uma na América do Sul (São Paulo). Caberá analisar

de que modo os filmes Caro diário (Caro diario, Nanni Moretti, 1993), Os 12 trabalhos

(Ricardo Elias, 2006) e A bicicleta de Pequim (Shi qi sui de dan che, Wang Xiaoshuai,

2001) empregam uma prática espacial sobre duas rodas, desvelando o espaço urbano real

a partir de um personagem central masculino que atravessa Roma, Pequim e São Paulo

em uma Vespa, uma bicicleta e uma motocicleta, respectivamente. Esses filmes são unidos

por um “estilo móvel” ou “em movimento” que parece emanar do próprio espaço urbano

no qual se inserem. Ao se deslocarem através da cidade, movidos pelo trabalho ou pela

simples contemplação, esses personagens criam trajetórias diversas, frequentemente

pontuadas por encontros inesperados. Ao contrário dos filmes analisados no capítulo

anterior, a prática espacial é aqui indissociável do veículo no qual os personagens se

deslocam. A mobilidade e o mapeamento das cidades ganha então um certo grau de

velocidade e improviso – qualidades relacionadas aos veículos sobre duas rodas – e a

interação da câmera com o espaço urbano aparece em grande medida de modo mediado.

Conforme proposto na introdução, a noção de espaço não pode ser confundida

com a espacialização, ou em outras palavras com a sua representação. Nesse sentido, deve-

se usar com cautela o termo “representação” ou “mapeamento” em relação à prática

espacial cinematográfica, visto que ela nada tem de estática. Trata-se na realidade de um

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mapear constante do espaço, e que por essa razão se caracteriza pela transitoriedade. O

cinema parece de fato ser o meio mais adequado para a exploração de um espaço, visto

que contém em seu cerne diversas categorias de movimento (da câmera, da montagem, do

próprio real captado e reproduzido, do projetor). São Paulo, Pequim e Roma são grandes

cidades, capitais de seus respectivos países ou, no caso de São Paulo, sua maior cidade, e

aparecem nos filmes analisados sob o princípio desse movimento essencial. Como bem

explica Doreen Massey (Lury e Massey, 1999), as cidades são espaços que exageram a

característica geral de constante movimento presente em todos os outros espaços. Ao se

pensar em uma grande cidade, é provável que venha à mente o constante movimento das

pessoas que caminham de um lado para o outro, os carros, motocicletas, ônibus e

bicicletas que atravessam as ruas, e os aviões e helicópteros que cruzam os céus; poder-se-

ia pensar também na mobilidade subterrânea das águas e esgotos, dos fios elétricos

(também aérea), e das ondas radiofônicas e dos sinais telefônicos. Grandes cidades

encarnam o estado puro do movimento, e um dos desafios da geografia urbana

contemporânea é dar conta dessa característica nos pensamentos acerca do espaço

urbano. Em Key Concepts in Urban Geography, Latham, McCormack, McNamara e

McNeill ensinam que na realidade a geografia urbana se preocupa com a mobilidade

desde a década de 1920 e 1930, época em que sociólogos da Escola de Chicago

relacionaram a ideia de “fluidez” com a metrópole americana (2009, p. 27). Os geógrafos

lembram também que nas décadas de 1950 e 1960 a chamada geografia quantitativa levou

adiante o estudo da mobilidade através de suas preocupações com as distâncias

percorridas e suas implicações econômicas. Assim, nessas décadas e também na década

de 1970 o ramo da geografia do transporte tornou-se um dos principais campos de estudo

dentro da geografia humana (2009, p. 28).

Tais correntes, todavia, não abarcavam toda a gama de movimentos que animam

qualquer cidade, e ainda mais as grandes cidades, que aparecem no vocabulário da

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geografia humana contemporânea como “globais” (Sassen, 2001). Como advertem

Latham et al, a geografia do transporte

não menciona a circulação de água e esgoto da qual dependem as cidades. Não

leva em conta o movimento dos habitantes não-humanos das cidades, as plantas, a

vida selvagem, os bichos de estimação, os alimentos vivos, etc., que são uma parte

integrante das cidades. Também não abre muito espaço para se pensar a respeito

de todo o movimento que ocorre nas cidades mas que não significa viajar de um

destino a outro; os prazeres de se passear nas ruas ou de carro, caminhadas no

domingo, andar com o cachorro ou fazer cooper, para citar alguns exemplos. Em

outras palavras, a geografia do transporte é simplesmente preocupada com o

movimento entre A e B, e não com a viagem (o movimento) em si; é voltada para

o instrumental. Assim, o tipo puramente quantitativo das análises favorecidas pela

geografia do transporte tende a congelar o movimento descrito, reduzindo-o a um

vetor abstrato entre dois pontos. (2009, p. 29)46

De modo a cobrir esse vácuo deixado pela geografia do transporte, surge nos últimos anos

o chamado paradigma da mobilidade, uma abordagem interdisciplinar que procura

investigar o movimento das cidades de modo abrangente. Um dos campos de investigação

inclui, por exemplo, o automóvel, visto como um dos principais veículos dessa

mobilidade, configurando, mais do que um simples meio de transporte, um estilo de vida

(Latham et al, 2009, p. 31). Já a bicicleta e a motocicleta aparecem, principalmente nas

cidades asiáticas, como um meio de transporte comum, mais acessível e por vezes

eficiente do que o automóvel, estando igualmente ligados aos constantes movimentos

urbanos. O cinema se apropria desses veículos com frequência, e nos filmes aqui

discutidos os incorpora integralmente à narrativa e à sua forma, forjada no seio da cidade.

46

“makes no mention of the circulation of water and waste upon which cities depend. It does not take any

account of the movement of non-human habitants of cities, plants, wildlife, pets, livestock, etc that are

such an integral part of what cities are. Nor does it allow much space to think about all the movement that

takes place in cities not oriented towards travelling from one destination to another; the pleasures of street

cruising and hanging out in cars, Sunday strolls, dog walking or jogging, to name just a few examples. Put

another way, transport geography is simply about getting from A to B, it is not about the journey (the

movement) itself; it is oriented towards the narrowly instrumental. As such, the purely quantitative

accounts favoured by transport geography tend to freeze the movement they are describing, reducing it to

an abstract vector between two points.”

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Caro diário, Os 12 trabalhos e A bicicleta de Pequim, portanto, refletem

esteticamente a proposição do paradigma da mobilidade, que insiste em uma definição do

mundo a partir do movimento e não da stasis. Já a necessidade de aproximar essas cidades

e esses cinemas, proposta através da presente análise, está em consonância com outra

proposição desse paradigma, que pensa o mundo como uma multiplicidade heterogênea

de tempos e espaços (Latham et al, 2009, p. 33). Logo, isolar um cinema ou uma cidade

para se discutir sua prática espacial parece menos eficaz diante da inegável interconexão

geográfica que define os tempos atuais. A emergência do que se pode chamar de nova

ordem espacial global foi analisada por Saskia Sassen a partir do conceito de “cidade

global”, que aparece com a intensificação dos processos econômicos inter-fronteiras no

campo privado, ocupando o lugar das transações entre Estados. Assim, a noção de

“nacional” vem se enfraquecendo como unidade espacial diante da globalização da

economia e da mobilidade do Capital, que vê a aglomeração das atividades financeiras e

dos serviços em algumas cidades espalhadas pelo globo, e a transferência da manufatura

para outras. Na atual conjuntura, pelo menos 70 cidades no mundo podem ser

consideradas como globais, conectando de modo inédito diversos países e traçando uma

nova geografia do poder. No campo da estética cinematográfica, tendo em mente o fato de

o cinema ser um meio que viaja, interessa também esboçar novas geografias do cinema

mundial, através das quais será possível aproximar filmes que empregam um certo

“paradigma da mobilidade” em seu estilo, não obstante sua distância no mapa, e suas

diferenças.

A CANETA, A CÂMERA E A VESPA: OS ENSAIOS DE NANNI MORETTI

Em Caro diário, filme dirigido pelo italiano Nanni Moretti em 1993 e pelo qual recebeu o

prêmio de direção do Festival de Cannes no ano seguinte, Roma aparece no primeiro

capítulo – com duração de 27 minutos – em constante movimento, a partir da fruição do

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espaço e do olhar atento do condutor da Vespa, o próprio Moretti. Uma das cidades mais

“cinematografadas” do mundo, a capital italiana tem entre suas presenças simbólicas a

“Vespa” (o nome vem da semelhança com o inseto), um tipo de motocicleta com design

diferenciado que inclui uma prancha de apoio para os pés e rodas de diâmetro pequeno.

O veículo começou a ser fabricado no imediato pós-guerra pela companhia italiana

Piaggio, antigo fabricante de aeronaves de combate. Com as restrições impostas ao país

após sua derrota para as forças aliadas, a Piaggio abandonou o ramo militar e encontrou

um nicho na produção de veículos simples, baratos e mais adequados às condições

precárias das ruas das principais cidades, muitas delas destruídas pela guerra. Assim surgiu

a “Vespa” em 1946, como a alternativa de transporte privado para a nova Itália da

reconstrução, tornando-se parte da iconografia do país. Com o passar dos anos as vendas

do produto cresceram e finalmente atingiram seu auge na primeira metade da década de

1950, impulsionadas, curiosamente, por um filme. Trata-se do clássico de William Wyler

A princesa e o plebeu (Roman Holiday, 1953). A princesa é Ann (Audrey Hepburn), que

deseja conhecer Roma com a liberdade dos comuns, longe de suas obrigações reais. O

plebeu é Joe Bradley (Gregory Peck), um jornalista americano que a encontra e, fingindo

desconhecer sua identidade, a acompanha em suas aventuras pela cidade. O filme abre

com a cartela “este filme foi inteiramente fotografado em Roma”47

, deixando explícita a sua

“ligação ontológica” com o real da locação. Os créditos se desenrolam sobre imagens da

cidade, e a uma certa altura Joe leva Ann para um giro a bordo de uma Vespa. Ele conduz

e aponta para ela os principais monumentos pelos quais passam, mas aproveitando uma

pausa a princesa se aventura como condutora, e sai de modo desajeitado com a Vespa de

Bradley, causando um grande caos pelo caminho. No clássico de Wyler, então, a Vespa

aparece como um signo da liberdade que a princesa experimenta pela primeira vez em sua

vida, na garupa e na direção.

47

“This film was photographed in Rome in its entirety.”

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Nanni Moretti também empresta da Vespa a liberdade, quarenta anos depois. A

bordo do emblemático veículo italiano, realiza uma exploração auto-biográfica de sua

cidade, Roma, situando Caro diário de início na zona cinzenta entre a ficção e o

documentário. O filme abre com a cartela “Capítulo I – De Vespa / Capitolo I – In

Vespa”, seguida de um primeiríssimo plano de uma caneta que escreve em um caderno:

“Caro diário, há uma coisa que gosto de fazer mais do que qualquer outra…”.48

O corte

passa para um plano de uma rua, a câmera em um movimento para frente, e após alguns

segundos Moretti entra em quadro fazendo aquilo que mais gosta: pilotando sua Vespa

pelas ruas da cidade, sempre observado à distância por uma câmera que o segue num

suave deslizar. Assim, ele aparece já em movimento, sem um ponto de partida fixo, e esse

detalhe passa a dominar todo o primeiro capítulo. De início, Moretti apresenta três planos

longos acompanhados da música “Batonga” da cantora e compositora beninense

Angélique Kidjo, lançada no início dos anos 1990. Nesses três primeiros planos já é

possível notar que esse movimento pela cidade não segue um roteiro pré-determinado,

visto que o prazer está no próprio deslocamento, e não no destino. A voz over do

diretor/ator entra aos três minutos e meio e funde-se com a música africana. É verão em

Roma, e as ruas estão desertas. A maioria das salas de cinema também está fechada, mas

ele vai assistir a um filme italiano. Esta será a primeira parada em seu circuito, que incluirá

interações esparsas com o dono ou dona de uma casa em seu bairro preferido, Garbatella,

na qual ele toca a campainha para matar sua curiosidade de conhecê-la por dentro, com a

desculpa de que está procurando locações para um filme sobre (ele improvisa) “um

doceiro trotskista na Itália dos anos 1950, um musical”; uma tentativa de diálogo com um

rapaz parado no farol em seu carro conversível, no final de uma bela ponte; um grupo de

pessoas que dança salsa ao som de uma banda ao vivo, no meio da rua, com quem

Moretti canta brevemente no palco e expressa seu profundo desejo por aprender a dançar;

48

“Caro diario, c’è una cosa che mi piace fare pìu di tutte...”

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um rapaz sentado em uma mureta no bairro de Spinaceto, a quem diz que o bairro não é

assim tão ruim quanto ele esperava; um senhor em frente à sua casa no bairro de Casal

Palocco, a quem pergunta por que decidiu ir morar nos anos 1960 tão afastado da cidade,

trocando a beleza de Roma pelas casas com grades, cachorros, vídeos-cassete e chinelos; a

interpelação no meio da rua da atriz americana Jennifer Beals, estrela de Flashdance

(Adrian Lyne, 1983), admirada por Moretti por sua habilidade na pista de dança; outra ida

ao cinema para ver Henry: retrato de um assassino (Henry: Portrait of a Serial Killer, John

McNaughton, 1986), seguida de uma cena na qual ele tortura o crítico de jornal que havia

recomendado o filme com a leitura de seus próprios textos, pretensiosos e sem sentido; e

finalmente um passeio até Ostia apresentado em dois planos-sequência (o segundo de três

minutos), local do assassinato de Pier Paolo Pasolini e no qual há um discreto e mal-

cuidado monumento ao diretor.

Todas essas paradas são breves e separadas por longos planos de deslocamento

pela cidade, a câmera acompanhando Moretti por trás ou pela frente, ocasionalmente se

aproximando de seu rosto coberto pelo capacete e por óculos escuros. O movimento da

câmera então imita o movimento do veículo através da cidade com o emprego recorrente

do tracking shot, que leva o espectador a experimentar o prazer do deslocamento junto a

Moretti. A cidade aparece em um fluxo constante, pontuado por breves paradas aqui e ali,

que podem pertencer ao tempo presente da ficção ou aos sonhos e desejos do diretor.

Mas além do fluxo constante a cidade aparece também em toda a sua materialidade,

através da insistência em seus prédios, suas casas, suas construções, uma materialidade que

explicita a própria tensão inerente a esse tipo de cinema entre o real e o ficcional, entre a

re-presentação e a a-presentação. Moretti explica em voz over o quanto gosta de observar

as casas, e não somente do exterior – daí suas eventuais paradas nas quais tenta entrar em

residências alheias com alguma desculpa esfarrapada.

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O diretor/ator expressa também seu desejo de fazer um filme apenas com

panorâmicas de casas – e completa com o que talvez já seja uma realização parcial desse

desejo, uma série de planos panorâmicos de diferentes tipos de prédios e casas, por ele

identificados pelo nome e pelo ano de construção. Na citação abaixo, Giuliana Bruno

compara o filme de Moretti aos chamados “filmes panorâmicos” da era silenciosa:

Assim como nos antigos filmes panorâmicos do gênero “viagem”, nós somos

literalmente transportados, pois quando o filme se torna uma lente que viaja o

espectador se torna um viajante, viajando até mesmo através da História....

Figurações arquitetônicas diversas são montadas de modo a criar um travelogue de

atmosferas específicas. A arquitetura, experimentada em movimento e remontada

para o tour espectatorial, é feita para se mover. Roma se torna uma paisagem

arquitetural em movimento. (2007, p. 36)49

A comparação entre essa “paisagem arquitetural em movimento” e os filmes panorâmicos

da era silenciosa remete ainda a outro paralelo que pode ser engendrado entre Caro diário

e as primeiras décadas da arte cinematográfica, visto que o primeiro capítulo do filme

pode ser lido como uma instância de flânerie baudeleriana. Os passeios de Moretti são

essencialmente desvinculados do trabalho, movidos pelo desejo de fruir o espaço da

cidade de modo fortuito, e nesse sentido se aproximam da experiência do flâneur na

primeira modernidade, identificada por Baudelaire e estudada por Benjamin. O paralelo

pode ser ainda desdobrado ao levar-se em conta a proposição de Anne Friedberg em seu

Window Shopping: Cinema and the Postmodern, no qual sugere que o espectador do

primeiro cinema é o sujeito de uma flânerie imaginária, experimentando um tipo de olhar

visualmente e temporalmente móvel:

49

“As in the early panoramic films of the travel genre, we are literally transported, for when film becomes

a travelling lens the spectator becomes a voyager, travelling even through history…Diverse architectural

figurations are edited together to create a travelogue of specific atmospheres. Architecture, locally

experienced in motion and reassembled for the spectatorial tour, is made to move. Rome becomes a

moving architectural landscape.”

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A flânerie servirá como um dispositivo explicativo para traçar mudanças na

representação e na experiência estética no século XIX. Como uma construção

social e textual de uma visualidade móvel, a flânerie pode ser historicamente

situada como um fenômeno urbano ligado, de modo gradual ou direto, à nova

estética da recepção encontrada na experiência do cinema. Como irei demonstrar,

a flânerie imaginária da experiência cinematográfica oferece uma visualidade

espacialmente móvel, mas também, fundamentalmente, uma mobilidade temporal.

(Friedberg, 1993, p. 3)50

Tanto o estilo quanto a forma narrativa do Capítulo I de Caro diário – evidentes nos

movimentos de câmera em tracking, no uso da cidade real e no princípio da aleatoriedade

dos encontros e dos trajetos, transformam Moretti e por conseguinte o espectador em

flâneurs, remapeando Roma a partir de uma visão de mundo pessoal. Ademais, Moretti

parece convidar o espectador a acompanhá-lo em seus passeios através do endereçamento

direto e anti-ilusionista de frases tais como “Então vamos lá ver Spinaceto”51

, aproximando

seu filme do primeiro cinema pré-narrativo, o que Tom Gunning chamou de “cinema de

atrações” (1997), um cinema essencialmente exibicionista, que evidencia sua visibilidade, e

que está disposto a solicitar a atenção do espectador, incitando a curiosidade visual e

oferecendo prazer através de um espetáculo, seja ficcional ou documental.

Assim, depreende-se de cada um desses momentos de interação do diretor com

outros habitantes ou passantes de Roma, além de sua voz over que comenta a cidade, seus

desejos, experiências, gostos pessoais e impressões sobre a vida e os filmes que assiste, que

o filme trata de um mapeamento subjetivo da cidade, guiado por um discurso em primeira

pessoa (no diário, na voz over). As passagens oferecem a Moretti diferentes oportunidades

de expressar suas ideias, uma espécie de reflexão sobre a cidade e que muitas vezes

extrapola a própria cidade. Conforme explica Laura Rascaroli em relação à estrutura geral

do filme,

50

“Flânerie will serve as an explanatory device to trace changes in representation and the aesthetic

experience in the nineteenth century. As a social and textual construct for a mobilized visuality, flânerie

can be historically situated as an urban phenomenon linked to, in gradual or direct ways, the new aesthetic

of reception found in “moviegoing”. As I will argue, the imaginary flânerie of cinema spectatorship offers

a spatially mobilized visuality but also, importantly, a temporal mobility.” 51

“Allora, andiamo a vedere Spinaceto”

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Caro diário de Moretti apresenta uma estrutura não usual – é dividido em três

episódios, “InVespa”, “Isole” e “Medici”, que correspondem a três capítulos do

diário epônimo que o autor aparece escrevendo durante o filme. O filme adapta a

forma fragmentária e diversa do diário para a linguagem cinematográfica, e assim

apresenta uma mistura de autobiografia e distância crítica, confissão privada e

comentário sobre assuntos de interesse público. (2003, p. 87)52

Rascaroli chama a atenção para o fato de todo o filme ser baseado de certa forma no

deslocamento, no segundo capítulo “Ilhas/Isole” entre diferentes ilhas no arquipélago das

Eólias, e no terceiro capítulo “Médicos/Medici” entre diferentes médicos, que Moretti

visita em busca de uma explicação e um tratamento para uma condição misteriosa.

Rascaroli por fim conduz sua análise do primeiro capítulo “In Vespa” a partir de uma

leitura das atitudes do diretor como “verdadeiramente pós-modernas” (2003, p. 89)53

, a

despeito de sua relação positiva e prazerosa com o espaço da cidade, típica da moderna

flânerie. Para Rascaroli, o trânsito de Moretti funciona como uma instância de nomadismo

urbano, nos termos de Deleuze e Guattari (2003, p. 89), e o “espaço urbano

contemporâneo, fragmentado e disperso, pode ser visto como simultaneamente alienante

e frustrante, positivo e liberador” (2003, p. 89)54

. Moretti seria então um nômade pós-

moderno em Roma, desfamiliarizando a cidade através de seu olhar que evita as locações

familiares ao cinema, complementado por uma trilha sonora de world music, tornando a

cidade “quase não-italiana” (2003, p. 90)55

.

Essa possível leitura do filme incorre na possibilidade de obscurecer certos

aspectos importantes do tipo de mapeamento da cidade praticado por Moretti. Gostaria

52

“Moretti’s Caro diario presents an unusual structure - it is divided into three episodes, “In Vespa”,

“Isole”, and “Medici”, corresponding to three chapters of the eponymous diary which the author is shown

writing during the film. The film adapts the fragmentary and diverse form of the diary to cinematic

language, and therefore presents a mix of autobiography and critical distance, private confession and

comment on public affairs.” 53

“truly postmodern.” 54

“The fragmented and dispersed contemporary urban space can be seen simultaneously as alienating and

frustrating, and as positive and liberating...” 55

“almost non-Italian”

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de sugerir uma análise a partir do conceito de ensaio cinematográfico, que possa se

distanciar da ideia de fragmentação como um traço essencialmente pós-moderno. Como é

sabido, a definição do que seria o ensaio cinematográfico é fluida e parece resistir a

qualquer tipo de positivação. Não obstante, alguns traços podem ser delineados de modo

a sugerir de que modo o estilo literário inaugurado por Michel de Montaigne no século

XVI encontra no cinema um paralelo. Em linhas gerais, pode-se dizer que o ensaio

perpassa gêneros, situando-se entre a ficção e o documentário. Em seguida, destaca-se a

marca da subjetividade, exposta de forma radical, e que cria uma relação tensa com

qualquer teor de verdade almejado. No cinema, isso se traduz também no filmar de forma

íntima e solitária, com condições técnicas que prescindem de grandes equipes. A forma

ensaística solicita também a presença de uma dimensão reflexiva, manifesta em dois

planos, ou seja, na obra que se pensa e na presença do sujeito-autor. O ensaio propõe

uma reflexão sobre um assunto em pauta na cultura e na sociedade, através de um estilo

que se pode chamar de experimental, baseado no risco, no novo e na invenção. Isso

significa que o ensaio parte da coragem do pensamento e da capacidade de resistir a ideias

pré-concebidas. Há também em qualquer ensaio uma certa medida de dialogismo na

forma de expor, que aparece com frequência através de citações. A essas características

juntam-se a heterogeneidade e o hibridismo da mistura de gêneros e estilos, da

descontinuidade e da interrupção do fluxo; a incompletude que lhe confere um caráter

inacabado; e um impulso anti-sistêmico, que vai de digressão em digressão, deixando-se

levar pelo pensamento e pelo humor do autor.

Todas essas características supra-citadas parecem descrever o primeiro capítulo de

Caro diário, logo é possível sugerir que Moretti realizou um ensaio cinematográfico

arquitetural, através das ruas da sua cidade. A presença do ator/diretor no filme significa

também a presença do autor, uma marca auto-reflexiva que escancara de que modo esse

filme foi construído a partir de uma visão subjetiva. Nada mais simbólico, então do que a

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caneta que escreve o diário em primeira pessoa – vista no primeiríssimo plano que abre o

filme. Essa caneta em seguida se confunde com a câmera, no que poderia ser uma

tradução semiótica do texto fundador de Alexandre Astruc “La Caméra Sytlo”, que lançou

em 1948 as principais ideias que levariam os jovens turcos dos Cahiers du Cinéma a

desenvolver sua noção de cinema de autor nos anos 1950. Moretti aproxima então a

caneta e a câmera ao decidir filmar o seu diário, posicionando-se escancaradamente como

o autor desse filme, um posicionamento reforçado ainda mais pela presença de seu corpo

e de sua voz. Mas adiciona ainda um terceiro vetor à união caneta-câmera, pois em Caro

diário não é somente a câmera que “escreve”, e sim também a própria Vespa, que risca

seus trajetos por Roma, a cidade re-escrita, re-mapeada e re-traçada pelo

diretor/autor/ator, através de sua Câmera-Caneta-Vespa.

Através dessa aproximação entre os três vetores descritos acima, a câmera, a caneta

e a Vespa, Moretti faz imperar em seu filme a confusão entre a ficção e o documentário,

as marcas de subjetividade, a dimensão reflexiva, as citações (inclusive de filmes dentro do

filme), a heterogeneidade, a interrupção do fluxo e o impulso anti-sistêmico, características

definidoras dos ensaios escritos por Montaigne no século XVI. Há também em Caro

diário uma reflexão acerca de algo que está posto na cultura e na sociedade, que vai do

preço das casas aos bairros populares de Roma, de seus subúrbios ricos às críticas

cinematográficas sem sentido, dos filmes italianos a uma homenagem a um dos maiores

diretores do país, Pasolini, que encerra o capítulo. O diário de Moretti é então um diário

ensaístico, visto que não se restringe às suas impressões acerca de assuntos pessoais,

levando a reflexões maiores sobre os mais diversos assuntos. A trilha sonora que

acompanha sua trajetória ensaística inclui, além da já mencionada “Batonga”, a canção do

canadense Leonard Cohen “I’m Your Man”, “Didi”, hit da música Raï do

cantor/compositor argelino Khaled, e “The Köln Concert” do pianista e compositor

americano Keith Jarrett, que acompanha a peregrinação à Ostia. Mais do que

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simplesmente um passeio por hits da world music (termo por si discutível) do início da

década de 1990, a trilha parece emergir simplesmente da discoteca do próprio

diretor/ator/autor, um reflexo ensaístico e nada mais. Roma é ainda Roma, cidade italiana

par excellence, povoada por pessoas de todos os cantos e por italianos que escutam

música de todos os cantos, e nada no filme parece sugerir o contrário.

OS 12 TRABALHOS E A BICICLETA DE PEQUIM

O tom ensaístico de Caro diário, que dá espaço para a emergência da subjetividade do

diretor/ator/autor através da liberdade de seus trajetos pelo espaço urbano, está longe da

prática espacial identificada em Os 12 trabalhos e A bicicleta de Pequim. Nesses dois

filmes, os rapazes que se deslocam são entregadores, um motoboy em São Paulo, outro

courier em Pequim, e seus trajetos são tudo menos livres, dominados como são pela

lógica do trabalho. Do mesmo modo que a trajetória livre de Moretti resultou em uma

forma e narrativa ensaísticas, a trajetória controlada dos rapazes resulta nos outros dois

filmes em uma forma e narrativa mais afinadas ao cinema clássico, ou seja, mais rígidas e

programadas. Ao levar-se em conta os espaços urbanos nos quais esses filmes foram

realizados, pode parece estranho que Roma, uma cidade um tanto mais harmoniosa e

organizada que Pequim ou São Paulo, tenha inspirado justamente a forma mais livre e

fragmentada do ensaio. Talvez tenha havido nos filmes brasileiro e chinês um desejo de

reorganização do caótico através da narrativa bem amarrada, e tanto o filme de Elias

quanto o de Wang podem ser incluídos em uma tendência supranacional de roteirização,

observada por Lúcia Nagib em seu artigo “Going Global - The Brazilian Scripted Film”

(2006b). Nagib se refere aqui à reconstrução narrativa observada nos filmes brasileiros do

período da retomada, mas que também aparece em diversas outras cinematografias, e que

se opõem ao desconstrutivismo pós-modernista da década de 1980. Baseados em roteiros

desenvolvidos por um considerável período de tempo, dedicados a histórias bem

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amarradas, esses novos filmes encontram por sua vez uma nova audiência na classe média

educada, pronta a apreciar um produto que parece ficar no meio do caminho entre o

cinema comercial e um cinema mais experimental. Destacam-se as seguintes características

identificadas por Nagib nesse cinema “roteirizado”: (1) o realismo através do uso de

locações reais, que conferem ao filme uma certa autenticidade e um pano de fundo

documental através do qual os espectadores podem viajar por cidades e países

desconhecidos. (2) o herói-privado, a pessoa comum que se confrontará durante o filme

com eventos extraordinários, dando ensejo à ficção que se desenrola sob um pano de

fundo documental, mas sempre em consonância com o ilusionismo e as regras do cinema

narrativo clássico. (3) um evento improvável mas que se torna convincente através da

construção do roteiro e devido ao fato de estar confinado ao mundo privado do herói

comum, um mundo despolitizado. Por mais improváveis que sejam, esses eventos tornam-

se críveis pelos roteiros bem construídos e coerentes, que transformam as pessoas comuns

em “heróis privados”, vivendo em um mundo despolitizado (Nagib, 2006b, p. 97).

Essas características aparecem de forma clara em Os 12 trabalhos, no qual o herói-

privado é Heracles, um motoboy que se depara com circunstâncias improváveis durante

seu primeiro dia de trabalho, tendo como pano de fundo a cidade real de São Paulo. Os

12 trabalhos pertence a um momento maior de retorno desta cidade como locação real às

telas dos cinemas, que ocorreu de modo pronunciado a partir do final dos anos 1990.

Desde então pode-se observar um número cada vez mais freqüente de produções não

somente filmadas em São Paulo como também ávidas por exibi-la, percorrê-la, discuti-la.

O cinema nacional mostrou vigor em filmes tais como O invasor (Beto Brant, 2002),

Antônia (Tata Amaral, 2006), Linha de passe (Walter Salles e Daniela Thomas, 2008),

entre tantos outros intimamente ligados à cidade. Na década de 2000, diversos artigos nos

principais diários paulistas testemunharam essa tendência, e suas manchetes atestam a

novidade do reaparecimento da cidade real no cinema brasileiro: “Um Corpo a Corpo

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com a Cidade: A Via Láctea, novo filme de Lina Chamie, usa São Paulo como

personagem” (Luiz Zanin Oricchio, Caderno 2, O Estado de S. Paulo, 26 de janeiro de

2007); “Bem na Fita: São Paulo seduz cineastas, exibe o lado fotogênico na atual safra de

filmes nacionais e atrai produções de fora” (Folha Ilustrada, Folha de S. Paulo, 1 de julho

de 2007); “Na Epiderme da Cidade: Gente comum, lutando para sobreviver em São

Paulo, inspira três novos filmes” (Caderno 2, Estado de S. Paulo, dia 6 de fevereiro de

2008); “Prefeitura cria escritório para fazer da cidade um cenário” (Caderno 2, O Estado

de S. Paulo, 9 de junho de 2007), sobre a criação pela Secretaria

Municipal de Cultura do

Escritório de Cinema de São Paulo (Ecine), que fornece apoio a produtores que desejam

filmar na cidade; além de inúmeros outros artigos dedicados aos filmes paulistanos

Antônia, Os 12 trabalhos, Não por acaso (Philippe Barcinski, 2007), O signo da cidade

(Carlos Alberto Riccelli, 2007), A casa de Alice (Chico Teixeira, 2007), Linha de passe,

Quanto dura o amor? (Roberto Moreira, 2009), Salve geral (Sergio Rezende, 2009) É

proibido fumar (Anna Muylaert, 2009), e programas de televisão tais como 9mm: São

Paulo (2008).

Ricardo Elias, formado na cidade de São Paulo, dirigiu em 2003 um outro filme

paulistano, intitulado De passagem, que já contém no próprio nome a idéia de

deslocamento que virá a dominar Os 12 trabalhos, realizado três anos depois em 2006.

Em De passagem, a viagem pela cidade é motivada pela morte de Washington, irmão de

Jeferson, que atravessa São Paulo ao lado do amigo de infância Kennedy para encontrar o

corpo do irmão e identificá-lo. Os dois sugestivamente nomeados amigos devem

atravessar a cidade e para isso caminham a pé, tomam ônibus, metrô e também andam de

carro para chegar ao seu destino. A viagem a bordo dos diversos transportes através da

cidade suscita memórias de infância, e parte do filme se desenrola em flashback. Essa

mobilidade do deslocamento urbano já presente em De passagem ganha ainda mais força

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em Os 12 trabalhos, filme em que o veículo para o descerramento de São Paulo é o jovem

Heracles (Sidney Santiago).

Dos presidentes americanos Ricardo Elias vai à Grécia antiga para nomear o

protagonista de seu filme. Heracles é o nome grego posteriormente romanizado para

Hércules, e o título do filme não deixa dúvidas da referência explícita ao semideus da

mitologia, filho de Zeus/Júpiter com uma mortal. O Heracles do filme é um jovem da

periferia paulistana, morador de um bairro que mais tarde se descobre pertencer à zona

norte da cidade. Os primeiros planos do filme combinam um ponto de vista individual,

ligado à tradição romântica ocidental, com um ponto de vista coletivo, ligado à tradição

realista. Sobre a tela preta ouve-se primeiramente a voz em off de Heracles, que diz: “O

começo é só confusão, de imagens, de coisas que a gente colheu aí na vida, coisas que a

gente viu, viveu, até meio que inventou. Velho, vai vindo uma vontade forte de ajeitar tudo

isso que fica pesando dentro da cabeça, ajeitar aqui e ali, e nessas daí que nasce uma

história”. Essa voz tem um caráter metalingüístico, e parece falar da feitura de um filme,

do contar uma história através de imagens e sons, reorganizados a partir da montagem. O

filme passa da voz para os olhos do protagonista, em primeiríssimo plano. Heracles

informa um interlocutor fora de quadro que roubava carros, que passou dois anos na

Febem e que saiu há dois meses (aqui há uma referência à famosa cena em Os

incompreendidos, dirigido por François Truffaut em 1959, na qual Antoine Doinel é

entrevistado por alguém não visto, apenas ouvido – essa referência se transforma em

citação direta no fim do filme). O interlocutor responde após um corte para um primeiro

plano de Heracles: “Você vai fazer entregas por um dia, e se tudo der certo eu te

contrato”.

A breve entrevista de emprego antecede a cartela com o título do filme, e em

seguida a voz em off de Heracles retorna, dessa vez sobre uma panorâmica da paisagem

da periferia. O jovem infrator então tece comentários acerca dessa cidade e desse bairro,

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trazendo o filme do seu ponto de vista individual (seus olhos) para o coletivo (a paisagem).

Inicia com comentários mais gerais, antes de passar para o mais específico: “Uma cidade é

cimento, pedra, ferro, gente se agitando em seus espaços, vãos; a pedra e o ferro

permanecem, os seres que se agitam vem e vão. A cidade é um mundo em criação, e

qualquer mundo tem suas fronteiras, seus lugares proibidos. Bairros indicam classes, ruas

indicam quem você é. Cara, dependendo de onde você nasceu, já é. Tua história tá escrita

antes de começar.” Heracles descreve a cidade como um espaço “em criação”, aludindo à

abertura para o novo e à noção de movimento. De modo quase ilustrativo, a panorâmica

revela um amontoado de casas típicas da arquitetura efêmera e improvisada da periferia

paulistana. E sua fala deixa bem clara a intenção realista do filme, que passa em poucos

minutos dos olhos do indivíduo, um posicionamento romântico, para o ambiente que o

cerca e que moldará suas atitudes. Difícil não se remeter aqui ao início de Alemanha ano

zero, já discutido no primeiro capítulo por seu procedimento realista, que posiciona o

garoto Edmund como produto do meio, sua imagem precedida pela destruição de Berlim.

Ricardo Elias coloca esse comentário na boca de seu Heracles logo nos primeiros minutos

do filme, explicitando essa crença na importância do meio como determinante na vida do

indivíduo.

O plano geral de bairros de periferia paulistanos, tomados de um ponto de

observação vantajoso (a casa de Heracles fica em um ponto alto), é recorrente em filmes

da safra recente realizada na cidade. Em Antônia, por exemplo, o primeiro plano é

análogo ao plano de Os 12 trabalhos, e o filme também se inicia na Zona Norte, mais

precisamente na Vila Brasilândia. Aqui, ao invés do mar de concretos que domina um

outro tipo de iconografia familiar de São Paulo, vê-se um mar de tijolos, de casas sem

reboque, inacabadas e amontoadas. O cinema vem desde sempre participando da

construção de vistas urbanas, e isso envolve com freqüência o uso de planos de paisagens,

tomados de um ponto de observação vantajoso. O fato é que esse tipo de vista favorece

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uma leitura crítica do ponto de vista externo do diretor, alguém que pretende falar de um

ambiente ao qual não pertence. Muito foi escrito a esse respeito em relação aos filmes

chamados de kitchen-sink dramas, realizados na Inglaterra no início dos anos 1960, nos

quais diretores de classe média adaptavam romances e peças de teatro de escritores

oriundos da classe trabalhadora para o cinema (Hill, 1986; Mello, 2006). O uso de planos

paisagísticos das cidades industriais do norte da Inglaterra, tais como o do início de Os 12

trabalhos, foi objeto de duras críticas por parte de teóricos ingleses, como se contaminados

pelo ponto de vista externo dos diretores, configurando-se marcas de enunciação

indesejáveis. Um comentário análogo poderia ser feito acerca do filme paulistano, visto

que Ricardo Elias não pertence à periferia da cidade, seu olhar aqui sendo ainda mais

distante do que o dos diretores ingleses, visto que não se sanciona pelo ponto de vista

interno de um escritor, mas sim de um personagem ficcional, inspirado na realidade. Nas

palavras de Elias, “me apropriei da figura do motoboy para falar da cidade e de um jovem

que quer mudar” (citado em Guerra, 2007, p. 2), apropriação essa que procura justamente

algum tipo de sanção.

É questionável a eficácia do diretor de Os 12 trabalhos em falar de um ambiente

ao qual não pertence. De qualquer modo, há desde o início uma tentativa de dar voz à

Heracles, seu olhar desde o primeiro plano estabelecido como dominante. O plano da

paisagem no início também vem aliado ao seu discurso acerca da cidade e do meio que

condiciona o indivíduo, a faixa de som problematizando assim a idéia de distância que a

imagem poderia sugerir. Ademais, apesar da noção de paisagem parecer desprovida do

movimento e da qualidade háptica do olhar que a produz, ligada como está à

representação pictórica por um observador longínquo, o modo como o cinema apresenta

a paisagem urbana põe em questão seu predicado estático. Conforme observa Michel

Collot, “o cinema, arte do movimento, é refratário a tal parada sobre a imagem, condição

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para a apresentação em forma de quadro do plano paisagístico” (2007, p. 6)56

. Nesse artigo

intitulado “Paysages en mouvement: l’image émotion” (“Paisagens em movimento: a

imagem emoção”), Collot questiona a definição limitada de paisagem como herdeira do

modelo pictórico erigido durante a Renascença no Ocidente, que passa pela construção

racional de um espaço, fundado sob a perspectiva linear e um ponto de fuga. Levando-se

em conta que a paisagem apareceu na pintura européia antes da invenção desse

dispositivo, e que a tradição oriental funda-se na mobilidade e na multiplicidade de focos

no que tange a representação de paisagens (a pintura em rolo chinesa seria aqui o melhor

exemplo), deve-se suspeitar da simples equivalência entre a paisagem e a imobilidade.

Heracles recebe logo no início do filme sua missão: trabalhar por um dia, e se tudo

der certo conseguir um emprego. Seus 12 trabalhos aparecem, assim como os de

Heracles/Hércules, quase como uma punição e uma prova. No mito grego, Heracles, filho

de Zeus/Júpiter com uma mortal, é alvo da fúria de Hera/Juno, mulher de Zeus, que um

dia lança sobre ele uma maldição que o enlouquece temporariamente. Acometido de

loucura, Hércules mata sua mulher e filhos, e após recobrar a consciência se dá conta do

horror cometido e vai ao oráculo de Delfos buscar um modo de compensar seus erros.

Recebe então a incumbência de se apresentar ao Rei Eurystheus e de se submeter a

quaisquer castigos que ele o propuser. O oráculo também comunica a Hércules que se

tivesse sucesso em suas empreitadas se tornaria imortal. Assim originam-se os seus 12

trabalhos, que devem ser cumpridos em 12 anos. Já o Heracles paulistano parece também

receber uma incumbência decorrente de um erro do passado, seu envolvimento com a

criminalidade que o levara à Febem. Seus 12 trabalhos devem ser completados não em 12

anos mas em um dia, e caso isso se realize ele obterá, não a imortalidade, mas um

emprego.

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“Art du mouvement, le cinéma est réfractaire à um tel arrêt sur image, qui seul permettrait au plan

paysager de se déployer en tableau.”

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O dia se inicia então com a panorâmica da paisagem, que em um movimento para

a direita acaba por revelar a casa de Heracles e seu primo. Os dois atravessam o portão de

ferro e logo deixam a paisagem para trás, seguindo viagem de motocicleta em direção à

agência de motoboys durante a sequência dos créditos. Assim, Elias abandona a visão de

conjunto e passa a apresentar São Paulo através do deslocamento de Heracles em sua

motocicleta, pelas ruas e avenidas na qual negocia um espaço com milhares de outros

carros, motos, ônibus, caminhões, bicicletas e pedestres. A paisagem aqui se torna espaço

definido pela passagem e pela cinética, e a cidade cumpre a promessa de ser um “mundo

em criação”. Heracles percorre pontos facilmente identificáveis (para aqueles que

conhecem São Paulo) tais como o Minhocão, a Rua da Consolação, Avenida Sumaré, ruas

do centro velho, o Viaduto do Chá, Avenida São João, Rua Amaral Gurgel e Avenida

Paulista, entre tantos outros. A câmera está muitas vezes montada na própria motocicleta

de modo subjetivo, incorporando assim o “corpo-a-corpo” com as ruas vivenciado pelo

motociclista, em alta velocidade.

A motocicleta, fetichizada por seu potencial de velocidade e liberdade, move-se

pela cidade aludindo metaforicamente ao constante movimento da paisagem urbana. Jean

Baudrillard se refere ao que chama de “milagre do deslocamento” sem esforço,

proporcionado pelo automóvel e potencializado pela motocicleta: “O movimento por si só

constitui certa felicidade mas a euforia mecanicista da velocidade vem a ser outra coisa: é

fundada, no imaginário, sobre o milagre do deslocamento. A mobilidade sem esforço

constitui uma espécie de felicidade irreal, de suspensão da existência e de

irresponsabilidade” (1993, p. 75). Mas a motocicleta se difere essencialmente do

automóvel por permitir uma maior interação entre a exterioridade do espaço urbano e o

condutor. Paula Montero faz importante observação sobre essa característica própria da

moto ao referir-se ao trabalho do motoboy, retratado no documentário Em trânsito de

Henri Gervaiseau (2005):

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Ao contrário dos outros meios de locomoção que criam uma espécie de

espacialidade própria e autocontida, a motocicleta compartilha, com o caminhante,

o confronto físico com a rua. Mas a rua aqui é puro movimento... A liberdade não

é idéia, não é emblema, é o prazer físico do próprio movimento. Embora não

possa escolher aonde ir, pois são os pedidos que lhe traçam o caminho, ele se

sente dono de seus próprios movimentos e de suas decisões. (2008, p. 196)

Na cidade de São Paulo, a presença dos motoboys vem se avolumando a cada ano,

fenômeno que confere atualidade a Os 12 trabalhos. Se o deslocamento a bordo da

motocicleta proporciona uma sensação de liberdade, proporciona também a mobilidade

diante de uma cidade cada vez mais atolada de carros, não raro parados por horas em

gigantescos congestionamentos. Para que a cidade possa continuar funcionando, a figura

do motoboy aparece como aquela que burla a pane do sistema de trânsito, passando pelas

frestas criadas pelas filas de carros e ônibus presos nas ruas e avenidas, criando novas

trajetórias, cortando caminhos, e não raro arriscando sua vida para que uma entrega seja

feita. Logo, a mobilidade da cidade de São Paulo encontra não no carro mas na

motocicleta sua consumação. Para o filme de Elias, os atores Sidney Santiago e Flavio

Bauraqui, que interpreta Jonas, o primo de Heracles, também um motoboy, passaram por

aulas de moto-escola e foram treinados por verdadeiros motoboys nos seus trejeitos e

modos de falar. Levando-se em conta que a intenção era apresentar a cidade através do

movimento do motoboy, um dublê foi utilizado em algumas das cenas, de modo a

conferir a destreza e a credibilidade necessárias para algumas manobras de trânsito

subversivas.

O estilo móvel de Os 12 trabalhos acarreta até certo ponto uma tímida perda do

ímpeto narrativo e um relaxamento das relações de causa e efeito. Tudo se passa em um

dia, e à exceção da morte de Jonas e da fuga para o mar no final do filme, os 12 trabalhos

de Heracles se desenrolam em ordem aleatória, cuja variação não acarretaria grandes

mudanças para o filme. O motoboy vai a um prédio no centro da cidade, no apartamento

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de uma professora aposentada, na casa da filha da professora, no aeroporto, busca comida

no restaurante chinês, passa em uma repartição pública, faz uma entrega no apartamento

de um rapaz viciado, daí segue para um prédio de escritórios sofisticado, leva um senhor

para um laboratório de exames médicos, passa na casa da ex-namorada do primo, até que

testemunha sua morte em um acidente na Avenida Juscelino Kubitschek e desce a serra

em direção ao mar. Ricardo Elias comenta no making-of de seu filme, incluído na edição

em DVD, que empregou deliberadamente movimentos mais suaves na primeira parte do

filme, através de planos de grua e do uso dos recursos de uma Steadicam. Já na segunda

metade a câmera não raro passa para a mão, adquirindo assim um ritmo mais tenso em

consonância com o porvir. A fuga de Heracles no final do filme relaciona-se com seu

desejo de sair de São Paulo, expresso a seus colegas motoboys durante o intervalo de

almoço. Diante da morte do primo Jonas, aquele que o ajudara a conseguir a chance de

emprego e que significava sua chance de redenção em um ambiente inóspito, Heracles

parte em direção ao litoral, viajando durante à noite e atravessando os túneis da rodovia

dos Imigrantes em sua moto. O filme termina com uma citação do final de Os

incompreendidos, citação esta recorrente na história do cinema, reaparecendo em filmes

tais como Sweet Sixteen (Ken Loach, 2002) e This is England (Shane Meadows, 2006).

No contexto do cinema brasileiro, Lúcia Nagib dedica um capítulo de seu A utopia no

cinema brasileiro às imagens do mar, e Os 12 trabalhos parece oferecer ainda outro

comentário acerca da utopia marítima formulada por Glauber Rocha em Deus e o diabo

na terra do sol em 1964. Nagib escreve que

embora conceitualmente ligada à história do Brasil, a imagem de mar glauberiana

extraiu sua concepção estética de um modelo estrangeiro. Trata-se da sequência

final de Os incompreendidos, marco inaugural da nouvelle vague e o primeiro

longa-metragem de François Truffaut, de 1959, em que o garoto Antoine Doinel,

na célebre interpretação de Jean-Pierre Léaud, parte em corrida desabalada até

encontrar o mar que nunca vira. (2006, p. 33)

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Em Deus e o diabo..., a corrida de Manuel e Rosa pela caatinga acaba no corte para a

imagem do mar, o cinema cumprindo a profecia “o sertão vai virar mar, e o mar vai virar

sertão”. Elias em Os 12 trabalhos segue mais a onda dos diretores ingleses supracitados,

que em filmes dedicados a adolescentes problemáticos assim como os protagonistas de

Sweet Sixteen e This is England terminam seus filmes diante do mar, de forma aberta.

Heracles chega até mesmo a lançar olhares para a câmera de Elias na praia iluminada pelo

lusco-fusco do nascer do dia, ensaiando o mesmo olhar interrogativo do adolescente

infrator Doinel no filme de Truffaut.

A BICICLETA DE PEQUIM

A bicicleta de Pequim antecede o filme de Elias em cinco anos, e ganhou o Urso

de Prata no Festival Internacional de Cinema de Berlim em 2001. O filme pertence ao

grupo heterogêneo da Sexta Geração do cinema chinês, que ganhou força a partir de

meados dos anos 1990 com um cinema por vezes independente e marcadamente urbano.

Esse foi o primeiro filme oficial do diretor Wang Xiaoshuai, realizado com a prévia

autorização do governo chinês, mas subsequentemente banido devido ao fato do diretor

tê-lo enviado para festivais no exterior antes de receber uma resposta do órgão de censura

chinês. Trata-se de uma co-produção entre diversas companhias na China, França, além

da Arc Light Films de Taiwan – com quem a China continental vem gradualmente

retomando as relações, principalmente através das trocas comerciais. No filme, o garoto

Guei (Cui Lin) de 17 anos chega a Pequim vindo do campo, e arruma um emprego como

courier em uma firma especializada. O filme abre com planos médios de jovens como

Guei, que estão sendo entrevistados para o emprego. Assim como em Os 12 trabalhos, o

que faz supor que talvez Elias tenha visto o filme de Wang, a entrevistadora (aqui uma

mulher, como em Os incompreendidos) nunca é vista, a câmera permanecendo nos

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rapazes que recomeçam suas vidas – ou a partir da mudança para a cidade grande, ou

após dois anos no reformatório, como é o caso de Heracles. Um time de garotos é

contratado, ganham novos uniformes, novas bolsas para carregar as encomendas, novo

corte de cabelo, novo boné e novas mountain bikes, que deverão pagar com o próprio

salário. Aparecem então perfilados como se pertencessem a um exército, e à sua frente o

gerente discursa de modo peremptório, explicando as regras do trabalho. Ele chama sua

atenção para um grande mapa de Pequim preso na parede atrás dos novatos, que aos

poucos se viram e se aproximam da representação espacial da cidade, que se tornará em

breve uma prática espacial através do cinema. O gerente diz: “Vocês devem conhecer cada

rua, cada hutong, como a palma de suas mãos”. Essa sequência encontra um eco em uma

outra sequência em Os 12 trabalhos, na qual Heracles conversa com um colega motoboy

na sede da agência diante de um enorme mapa da cidade de São Paulo pendurado na

parede. A cidade aí aparece cartograficamente, em seu formato de “cachorro”, conforme

notado por um dos motoboys. O olhar assustado de Heracles diante do gigantismo da

cidade e sua fala “eu sempre morei lá para cima, nunca andei por esses lados aqui, fico

meio confuso” confirmam o mesmo tipo de preocupação experimentada por Guei e seus

colegas diante da também gigante Pequim.

Mas lá há ainda um agravante, pois esses são rapazes do interior, não acostumados

com a cidade grande. Então não é por acaso que o gerente profere no final de seu

discurso a seguinte comparação: “De hoje em diante, vocês são os modernos ‘garotos do

riquixá’”. Yingjin Zhang (2010, p. 79) esclarece o paralelo feito pelo gerente entre os

novos entregadores de sua firma, os rapazes imigrantes que chegam a Pequim em busca

de novas oportunidades, e o personagem literário “Xiangzi” ou “O garoto do riquixá” do

romance de Lao She Luotuo Xiangzi, de 1936. Xiangzi é um garoto do campo que se

muda para Pequim. Lá, arruma um emprego como condutor de riquixá, e luta com

dificuldade para juntar dinheiro e comprar seu próprio veículo, aumentando assim suas

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rendas. No romance, a cidade de Pequim aparece de forma proeminente nas descrições

de Lao She, como por exemplo no seguinte trecho:

Quando ele viu a agitação de pessoas e cavalos, ouviu o barulho estridente, cheirou

o odor seco da estrada e pisou na poeirenta sujeira cinza, Hsiang Tzu57

quis beijá-

la, beijar aquela sujeira cinza mal-cheirosa, terra adorável, a sujeira que fazia

crescer dólares de prata! Ele não tinha pai nem mãe, irmão ou irmã, e nenhum

parente. O único amigo que ele tinha era essa antiga cidade. Esta cidade deu-lhe

tudo. Mesmo morrendo de fome aqui era melhor do que passar fome no campo.

Havia coisas para olhar, sons para ouvir, cores e vozes em toda parte.

(Lao, 1970, p. 31)58

Essa passagem deixa clara a importância da cidade no percurso de Xiangzi, que reaparece

no filme de Wang em relação a um outro garoto vindo do campo para a cidade grande,

que também trabalhará com um tipo de transporte, a bicicleta, e que também vai usar o

primeiro dinheiro que receber para comprá-la da firma que o emprega. Assim como a

Vespa em Roma e a motocicleta em São Paulo, a bicicleta é um símbolo da capital

chinesa, que até o início da década de 2000 contava com mais de 10 milhões delas.

Mesmo com a expansão econômica da China e o aumento exponencial do número de

automóveis e motocicletas no país, a cidade ainda impressiona pela quantidade de

bicicletas em suas ruas, o principal meio de transporte para uma boa parcela da

população. Assim, mais uma vez a escolha do veículo empregado pelo filme para mediar

sua prática espacial foi tudo menos aleatória. Wang faz até mesmo o que se pode batizar

de “elogio à bicicleta”, em uma sequência de um minuto inserida após a primeira meia-

hora do tempo de projeção. Esse elogio já vinha sendo anunciado desde os planos iniciais

dentro da empresa de couriers, e um pouco mais tarde no momento em que Guei mostra

57

A transliteração do nome Xiangzi foi realizada por outro sistema nessa tradução. 58

“When he saw the bustle of people and horses, heard the ear-piercing racket, smelled the dry stink of the

road, and trod on the powdery, churned-up gray dirt, Hsiang Tzu wanted to kiss it, kiss that gray stinking

dirt, adorable dirt, dirt that grew silver dollars! He had no father or mother, brother or sister, and no

relatives. The only friend he had was this ancient city. This city gave him everything. Even starving here

was better than starving in the country. There were things to look at, sounds to listen to, color and voices

everywhere.”

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sua bicicleta nova ao amigo, através de planos primeiríssimos que fetichizam o veículo,

recortando-o em pequenos pedaços tais como o pedal, as marchas, o guidão, a corrente, o

pára-lama etc. Mas será durante a sequência de um minuto que a bicicleta realmente

receberá toda a atenção do filme, a partir de uma série de planos de ruas da cidade real,

ocupadas por centenas de pessoas a bordo de suas bicicletas. Wang observa os diferentes

usos improvisados pela população, que não apenas se desloca como também transporta

uma série de objetos, móveis e até mesmo uma geladeira na garupa da bicicleta. São

planos que deixam clara a relação privilegiada da cidade e de sua população com suas

incontáveis bicicletas, e que fornecem à narrativa um momento de respiro, de

contemplação desinteressada e ao mesmo tempo essencial.

A bicicleta de Pequim, ao contrário de Os 12 trabalhos, alterna o foco entre dois

heróis privados, Guei e Jian (Li Bin), esse um colegial que vive com sua família em

Pequim e é frustrado por não possuir uma bicicleta. Jian sofre com essa falta que o

diferencia de seus colegas, e o impede de cortejar uma garota da escola. Finalmente, rouba

o dinheiro que seu pai havia economizado e compra uma bicicleta no mercado negro.

Acontece que essa bicicleta é a de Guei, que durante um entrega fora roubada, deixando o

rapaz desesperado. O roubo da bicicleta – seu meio de sobrevivência – referencia

abertamente Ladrões de bicicleta de De Sica, e Guei, assim como Ricci, passa a procurar

pelo seu “ganha-pão” através das ruas cidade. A sorte está a seu lado quando seu único

amigo na cidade, dono de uma lojinha de mantimentos, vê sua bicicleta com Jian,

reconhecendo a marca feita por Guei no dia em que começou a trabalhar, de modo a

identificá-la. O rapaz acaba localizando a bicicleta e a partir daí o filme se movimenta

entre Jian e Guei, que brigam repetidamente pela posse do veículo. Jian tem a seu lado os

colegas da escola, que em mais de uma ocasião recuperam à força a bicicleta de Guei.

Esse então vai até o pai de Jian, que descobre ter sido roubado pelo filho. Por fim, os dois

concordam em dividir a bicicleta, assim Guei pode voltar a trabalhar e Jian pode ser

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novamente aceito pelo grupo. Mas isso ocorre tarde demais, pois a garota de seus sonhos

já o esqueceu e está saindo com Da Huan (Li Shuang), um rapaz popular e um ás na

mountain bike. Revoltado, Jian dá uma tijolada na cabeça de Da Huan, e vai ao encontro

de Guei que estava esperando pela bicicleta. Nesse meio tempo Da Huan convoca sua

gangue para a revanche. O encontro se dá nas ruas labirínticas dos hutongs (胡同 )de

Pequim, onde Jian – e Guei por tabela – acabam apanhando de modo violento e vêem sua

bicicleta ser completamente destruída.

A incorporação formal da cidade em A bicicleta de Pequim se dá principalmente

através da dicotomia entre os hutongs e as grandes avenidas da capital chinesa, ou em

outras palavras entre o velho e o novo, o tradicional e o moderno. Se nas primeiras

sequências do filme Wang faz uso recorrente de imagens de Guei pedalando por entre as

grandes avenidas da cidade, seu olhar “virgem” a observar a pujança dos grandes arranha-

céus (similar de certo modo ao de Heracles, principalmente em suas interações com os

grandes edifícios de escritórios), o resto do filme – partindo do roubo da bicicleta – se

desenrola principalmente nas pequenas vielas que formam os antigos bairros da cidade,

assemelhando-a à informalidade e à precariedade do campo. Elizabeth Wright explica

aqui a presença dos hutongs no filme:

Um componente muito especial de A bicicleta de Pequim é a evocação de Wang

das ruelas e becos antigos de Pequim conhecidos como hutongs. Muitos foram

construídos durante as dinastias Yuan, Ming e Qing. Tradicionalmente, milhares

de corredores, becos e pátios tornaram-se áreas residenciais para as pessoas que

vivem na capital. Na metrópole emergente que é a Pequim contemporânea, esses

becos e vielas ocupam cerca de um terço da cidade e ainda existem como

residências para muitos moradores da cidade chinesa (apesar de seu status de

“desaparecimento” e sua substituição gradual por prédios altos). (2002)59

59

“A very special component of Beijing Bicycle is Wang’s evocation of Beijing’s lanes and ancient alleys

known as hutongs. Many were built during the Yuan, Ming and Qing dynasties. Traditionally, thousands

of lanes, alleys and quadrangles became residential areas for the people living in the capital. In the

burgeoning metropolis that is contemporary Beijing, these alleys and laneways occupy approximately one

third of the city and still exist as dwellings for many Chinese city residents (despite their ‘disappearing’

status and gradual replacement by high-rise buildings).”

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O modelo urbanístico chinês, grosso modo, vem combinando a partir de sua intensa

modernização o aparecimento de largas avenidas principais, perfiladas por altas torres de

escritórios ou residenciais, e quarteirões entrecortados por pequenas ruelas (os hutongs),

muitas vezes não pavimentadas, nas quais encontram-se os siheyuan (四合院), que

significa literalmente um pátio rodeado de quatro prédios de um andar, um tipo de

conjunto residencial típico do norte da China e muito comum em Pequim. Conforme

explica Zhang, o cinema chinês, tradicionalmente mais afinado com a moderna Shanghai,

enxergou Pequim com frequência como uma cidade presa no passado, idealizada em

imagens de casas de chá, riquixás e hutongs (2010, p. 78). Nas últimas duas décadas, ainda

segundo Zhang, as novas gerações de diretores chineses vem tentando dar conta da cidade

que gradualmente se configura como um misto de tradição e modernidade. Em A

bicicleta de Pequim, essa dicotomia aparece por exemplo em um plano emblemático, no

qual Wang passa de Jian e seus amigos fazendo manobras em suas bicicletas em um andar

alto de um prédio em construção para uma vista aérea dos hutongs e siheyuans. O mesmo

plano então encapsula a cidade em suas várias camadas urbanísticas e arquitetônicas, e

comenta as transformações que a assolam com intensidade desde o início da abertura

econômica do país.

Conforme mencionado anteriormente, apesar do diretor fazer uso do prédio em

construção como local de encontro dos jovens, além de imagens e sons das enormes

avenidas pequinesas que pontuam alguns momentos da trajetória de Guei – com destaque

para a sequência final na qual o rapaz carrega sua bicicleta destruída em meio à

movimentação urbana, a maior parte do filme se passa mesmo nos hutongs. É lá que

moram Guei e seu amigo e Jian e sua família. Em outra cena emblemática, Wang lança

mão do plano-sequência para dar a medida exata de como se organizam esses espaços

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residenciais. De manhã, Jian, já vestido com o uniforme da escola, sai de sua casa em

direção à rua. Ele havia escondido a bicicleta no primeiro corredor de acesso ao siheyuan

onde mora com a família. Nesse plano, a câmera segue Jian por trás, e ele leva um minuto

para chegar até a porta de entrada do complexo residencial. No caminho, que passa por

vários corredores e pátios, ele cruza com um senhor que pratica Tai Ji Quan, com uma

mulher que passa com um balde nas mãos, outra com uma bacia, para brevemente em um

tanque externo para lavar o rosto enquanto outra moça escova os dentes, passa ainda por

um homem que faz a barba em outro tanque externo, outro que come algum vegetal e

uma senhora com uma chaleira nas mãos. A trilha sonora aqui é composta de fragmentos

de canções, noticiários radiofônicos e outros sons, que se alternam com a passagem do

rapaz. Chegando até a porta, ele procura a bicicleta mas descobre que alguém a levou.

Todo o plano dura um minuto e meio. Fica claro que a escolha estética de Wang pelo

plano plano-sequência está relacionada a seu desejo de enfatizar o real da locação, sua

autenticidade. O deslocamento do rapaz então ocorre sem cortes por um complexo

residencial real, de dentro para fora, o que revela também sua ligação orgânica com aquele

espaço, ao mesmo tempo privado e coletivo60

.

Além de servir de morada, os hutongs aparecem no filme como um espaço que –

devido à sua natureza labiríntica – propicia toda série de encontros inesperados,

espionagens, perseguições emocionantes, e até mesmo acidentes ou momentos de

tranquilidade e contemplação, que parecem estar (a despeito da proximidade) a milhas de

distância do caos das ruas e avenidas centrais de Pequim. Assim, é nos hutongs que Guei

conversa, come e espia uma vizinha de um prédio moderno construído ao lado,

acompanhado de seu amigo; é também nos hutongs que Jian passeia com seus amigos e se

encontra depois da escola com a colega que está paquerando, em mais de uma ocasião; a

60

Para uma discussão mais aprofundada dessa característica urbanística chinesa, ver o Capítulo V “Sobre

Cinemas e Jardins”.

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primeira perseguição à Guei – da primeira vez que ele consegue recuperar sua bicicleta –

ocorre através dos hutongs; é em frente à casa de Jian que seu pai o questiona sobre o

sumiço do dinheiro e a compra clandestina, na presença de seus amigos e de Guei; é lá

também que Jian e Guei passam a se encontrar para revezar a bicicleta; e finalmente será

nos hutongs que Jian atacará Da Huan, levando à sequência de perseguição que faz uso

extensivo da geografia confusa e antiga dessa peculiaridade urbanística pequinesa.

Não fica claro no filme se Jian e Guei moram perto um do outro, em que parte da

cidade esses encontros acontecem, e quais as distâncias percorridas. O espaço urbano é

reduzido a uma massa indistinta de hutongs, e Pequim – por toda a sua modernidade e

enormidade (a cidade possui cerca de 20 milhões de habitantes) – aparece no filme como

um espaço relativamente pequeno, negociável, e onde é até mesmo possível o encontro de

uma entre 10 milhões de bicicletas. Assim, tendo a discordar com a afirmação de Zhang

que A bicicleta..., “ao remapear Pequim através de duas histórias paralelas de deriva, pinta

uma paisagem urbana alarmante e distópica, na qual a esplêndida fachada da globalização

aparece como estrangeira aos desfavorecidos locais, e os bairros familiares dos hutongs

estão ameaçados de demolição” (2010, p. 81)61

.

Apesar da demolição dos hutongs ser um dado de realidade, nenhuma menção é

feita a isso no filme, a não ser pelo comentário do plano supra-citado no qual o novo e

velho são contrastados. Os conflitos apresentados parecem na maior parte das vezes

aquilo que são, brigas entre colegiais, entre um pai e um filho, entre dois rivais pela

mesma garota. Até mesmo Guei, que depende da bicicleta em teoria para sobreviver, tem

um chefe compreensivo que o aceita de volta e um bom amigo em quem confiar. Assim,

não há em nenhum momento do filme, a não ser pelo final com sobretons

61

“In remapping Beijing through two parallel stories of drifting, Beijing Bicycle paints an alarmingly

dystopian cityscape, where the splendid façade of globalization appears alien to the underprivileged local,

the familiar hutong neighborhoods are threatened with demolition.”

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melodramáticos, o mesmo dado de realidade testemunhado em Ladrões de bicicleta,

onde a Roma do pós-guerra parecia de fato um lugar difícil de sobreviver.

Talvez a mais importante dicotomia estabelecida em A bicicleta de Pequim seja

entre o campo e a cidade. Guei vem do campo, assim como seu amigo que o acolhe. Os

dois espiam uma garota através de um buraco na parede de tijolos, e a ela se referem

repetidas vezes como “gente da cidade”, ou dizem “as garotas da cidade são assim, trocam

de roupa o tempo todo”. Os dois moram em uma rua não-asfaltada, precária, com uma

urbanização antiga. Assim, os hutongs parecem muitas vezes fazer parte do universo do

campo ou das cidades pequenas, caracterizados pela familiaridade, pela informalidade e

pela tranquilidade – o contrário da moderna Pequim, essa sim a cidade grande comme il

faut. A própria obstinação de Guei, que não dorme nem come enquanto não encontra sua

bicicleta, e que passa por todo tipo de dificuldade sem se curvar, remete a personagens

clássicos do cinema e da literatura chineses normalmente ligados ao campo. Em

“Representing rural migrants in the city: experimentalism in Wang Xiaoshuai’s So Close to

Paradise and Beijing Bicycle”, Jian Xu observa que o campo veio a ocupar um espaço

fundamental na reconstrução da China como República Popular comunista, sob a

liderança de Mao Zedong. Como é sabido, a tríade humana sobre a qual Mao procurou

construir a nova nação era composta do soldado, do operário e do camponês. Essas três

figuras foram elevadas à categoria de principais arquitetos da nova ideologia, e muita

ênfase foi posta no campo, visto como o bastião da autenticidade nacional chinesa. Xu

observa então de que modo o cinema chinês da Quinta Geração preservou a cultura do

campo de modo nostálgico

na imagem do camponês teimoso e inflexível que persevera contra todas as

probabilidades em seu esforço de alcançar aquilo que acredita ser certo e justo:

nos filmes de Zhang Yimou, por exemplo, temos Qiuju em A história de Qiu Ju (1992), Zhaodi em O caminho para casa (1999), e a professora-criança em

Nenhum a menos (1999). Apesar dessas imagens terem sido criadas em um

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momento no qual os movimentos socialistas estavam sendo desacreditados, elas

funcionam como uma lembrança de que a cultura rural na qual dependia a

revolução ainda existia, e que havia talvez um caminho de volta para a utopia rural

que ela representava”. (2005, p. 435)62

Guei é construído em A bicicleta de Pequim em grande parte a partir dessas características

levantadas por Xu: a perseverança, a teimosia, o esforço desmedido, que carregam a

narrativa para frente e levam o filme a terminar em movimento, nas ruas, através das quais

um Guei todo machucado ainda consegue carregar nos braços a bicicleta semi-destruída.

Essas características o diferenciam dos garotos da cidade e suas futilidades, suas roupas

importadas, sua violência e seus modos pouco respeitáveis. Wang guarda algum crédito

para Jian apesar de seu desejo materialista e sua necessidade exagerada de “pertencer”,

pois tenta explicar suas atitudes através dos erros dos pais, que prometem e não cumprem,

se preocupam mais com sua irmã pequena do que com ele e quando julgam necessário

usam da violência física contra o filho. De qualquer modo, o filme parece construir um

espaço urbano que ainda guarda algo da frescura do campo, preservada nos hutongs.

Trata-se de uma Pequim idealizada, por vezes dura mas por outras amigável, pequena e

familiar.

62

“in the image of a stubborn and unyielding peasant who perseveres against all the odds in his/her effort

to accomplish what s/he thinks right and just: in Zhang Yimou’s films alone, for example, we have Qiuju

in Qiuju da guan si/The Story of Qiuju (1992), Zhaodi in Wo de fu qin mu qin/The Road Home (1999), and

the child teacher in Yi ge dou bu neng shao/Not one less (1999). Although these images were created at a

time when the socialist movements were being discredited, they function as reminders that the rural culture

on which the socialist revolution depended still existed, and that there was perhaps still a way back to the

rural utopia it represented.”

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CAPÍTULO III: UM CONTO DE DUAS CIDADES

Filmes: Terra estrangeira (Walter Salles e Daniela Thomas, 1995), Que horas são aí? (Ni

Neibian Jidian, Tsai Ming-liang, 2001), Contra a parede (Gegen die Wand, Fatih Akin,

2004), Import/export (Ulrich Seidl, 2007).

Este capítulo discutirá a presença do espaço urbano nos filmes Terra estrangeira (Walter

Salles e Daniela Thomas, 1995), Contra a parede (Gegen die Wand, Fatih Akin, 2004),

Que horas são aí? (Ni Neibian Jidian, Tsai Ming-liang, 2001) e Import/export (Ulrich

Seidl, 2007). Esses filmes foram selecionados porque se estruturam a partir do movimento

entre duas cidades, situadas em dois países diferentes, respectivamente São Paulo e

Lisboa, Hamburgo e Istambul, Viena e Snizhne, e Taipei e Paris. Minha intenção é

estudar como esse movimento promove o encontro entre duas geografias, suscitando

questões relacionadas ao tempo, ao espaço e à fabricação da memória. O recurso da

montagem alternada empregado nesses filmes aproxima dois espaços urbanos e produz

uma memória que os conecta, integrando as cidades reais e outras cidades indexicais do

evento profílmico. Isso evidencia a natureza espacial e a condição presente da memória,

ao contrário do flashback, que evidencia sua conotação temporal e os laços com o

passado.

É importante relembrar a definição aberta e dinâmica de espaço que guia esta

obra, visto que estou a tratar da simultaneidade temporal promovida pela montagem

alternada, uma arma que o cinema tem a seu dispor há pelo menos 100 anos. A

impressão provocada por esse recurso de montagem, que enfatiza através da

descontinuidade espacial uma simultaneidade temporal, parece reger a experiência diária

do mundo globalizado. Nos tempos atuais, essa impressão foi mais do que nunca

evidenciada pelo aparecimento da Internet, que tanto na esfera privada quanto na esfera

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pública possibilitou um grau de conectividade sem precedentes históricos. A proliferação

de contatos virtuais em alta velocidade através do mundo também colocou em evidência a

conectividade e a justaposição que regem a noção de espaço.

Outro elemento integrante da crescente sensação de inter-conectividade nos

tempos atuais foram os avanços nos meios de transporte e na infra-estrutura globais. O

clichê “as distâncias encurtaram” reflete a relativa facilidade com a qual é possível se

locomover através do mundo nos dias atuais – sem que se leve em conta questões

econômicas ou políticas. De fato, o presente argumento aponta mais para uma mudança

de percepção do que para uma realidade concreta, a despeito da aferível intensificação das

viagens no âmbito global. A facilidade do deslocamento e o rompimento dos lapsos

espaciais e temporais reside no âmago da arte cinematográfica, habituada à prática da

viagem desde a sua origem, tanto através da sua estética quanto das suas formas narrativas.

Nos filmes selecionados para análise, dois espaços distintos são conectados através de uma

viagem, que adquire um caráter subjetivo impresso na forma do filme. Assim, o

movimento localizado entre duas cidades, e que funciona como um ímpeto para frente, ou

um ímpeto de vai-e-vem, desencadeia nos personagens viajantes, e naqueles que ficaram

para trás, uma série de impressões, emoções e memórias, essa que é a matéria-prima dos

espaços urbanos.

PRÁTICAS TRANSNACIONAIS

Terra estrangeira, Contra a parede, Import/export e Que horas são aí? são co-produções

internacionais, entre Brasil e Portugal, Alemanha e Turquia, Áustria, Alemanha e França,

e Taiwan e França, respectivamente. Podem também ser descritos como transnacionais

devido ao fato de promoverem uma viagem entre dois países distintos. O emprego dos

termos “co-produção internacional” e “transnacional”, e não de um em detrimento do

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outro, requer uma explicação mais cuidadosa. O termo transnacional, que transita por

diversas disciplinas, tem sido alvo de debates recentes na teoria do cinema. É preciso,

antes de tudo, diferenciar entre “cinemas transnacionais”, que se referem a filmes assim

qualificados por razões diversas que vão de sua produção à sua representação, e “estudos

de cinema transnacionais”, que se referem a correntes teóricas preocupadas com questões

que problematizam ou vão além da noção de cinema nacional. No artigo de abertura da

revista acadêmica inglesa Transnational Cinemas (Cinemas Transnacionais, 2010), Higbee

e Lim advogam o que chamam de “transnacionalismo crítico nos estudos de cinema”,

uma posição também defendida por Chris Berry em relação ao Cinema Chinês lato sensu

(2010). Os três teóricos problematizam, em primeiro lugar, o uso do termo

“transnacional” como adjetivo que se cola aos “estudos do cinema”. Higbee e Lim

identificam três grandes linhas de pesquisa que vêm lançando mão do termo nos últimos

anos, grosso modo, aqueles que preferem a abertura do transnacional em detrimento da

restrição do nacional; os que descrevem como transnacional cinemas oriundos de regiões

separadas por fronteiras geopolíticas mas unidas por uma herança cultural e/ou linguística;

e por fim o campo dedicado aos cinemas diaspóricos e pós-coloniais, que questionam a

construção ideológica ocidental do conceito de nação a partir da análise da representação

de identidades culturais (2010, p. 3).

A ênfase na noção de transnacionalidade na teoria contemporânea pode ser vista

como uma reação à miopia da crítica de influência psicanalítica e semiótica em relação às

interconexões entre diferentes cinematografias e geografias, principalmente do ponto de

vista da produção. Se por um lado essa revisão é necessária, por outro lado o uso do

termo “transnacional” corre o risco de sugerir, como advertem Higbee e Lim, que a noção

de cinema nacional pode simplesmente ser descartada, “quando na verdade o nacional

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continua a exercer a força da sua presença mesmo no contexto das práticas

cinematográficas transnacionais” (2010, p. 10)63

.

Para elucidar ou complicar ainda mais a questão, Zhang Yingjin introduz de modo

convincente a defesa dos “estudos comparativos do cinema” ao escrever que “enquanto o

termo ‘comparativo’ denota flexibilidade ao mapear um campo interdisciplinar e

multimídia, o termo ‘transnacional’ permanece obscuro principalmente por conta das

múltiplas interpretações do nacional no transnacionalismo” (2007, p. 37)64

. Em princípio,

tendo a concordar com o argumento de Zhang de que os estudos comparativos “capturam

de maneira mais adequada as múltiplas direções através das quais os estudos do cinema

olham simultaneamente para fora (transnacionalismo, globalização), para dentro (tradições

culturais e convenções estéticas), para trás (história e memória), e para os lados

(intermedialidade e interdisciplinaridade)” (2007, pp. 29-30)65

. Entretanto, se o termo

“transnacional” traz o risco de obscurecer o nacional, o termo “comparativo” refere-se de

modo aberto à existência de fatores distintos, ou em outras palavras à existência de dois

cinemas nacionais distintos. Diante dessa advertência, Zhang rapidamente propõe sua

visão crítica da abordagem comparativa, através da qual “devemos ir além do modelo do

estado-nação e especialmente além da sua hierarquia implícita entre culturas nacionais (o

Ocidente contra o resto), que sustentava os estudos comparativos literários e

cinematográficos no passado” (2007, p. 30)66

.

Com essa admoestação em mente, acredito que a proposição de Zhang acerca dos

estudos comparativos do cinema é mais adequada para descrever o tipo de estudo que

63

“when in fact the national continues to exert the force of its presence even within transnational film-

making practices.” 64

“Whereas the term “comparative” denotes flexibility in mapping an evolving field of interdisciplinarity

and cross-mediality, the term “transnational” remains unsettled primarily because of multiple

interpretations of the national in transnationalism.” 65

“better captures the multiple directionality with which film studies simultaneously looks outwards

(transnationalism, globalization), inwards (cultural traditions and aesthetic conventions), backwards

(history and memory), and sideways (cross-medial practices and interdisciplinary research)” 66

“we must move beyond the nation-state model, especially its implicit hierarchy of national cultures (the

West versus the rest), which sustained both comparative literature and film studies in the past”

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venho realizando, que tende a olhar para fora, para frente, para trás e para os lados através

de um questionamento guiado pela identificação de problemas, por teorias e pelo

‘teorizar’, e não por uma Teoria. A intersecção entre filmes realizados em diferentes

cidades não nega em princípio a importância da noção de cinema nacional, mas propõe

que diferentes cinemas devam ser considerados a partir de suas possíveis conexões, o que

em certa medida relativiza esse conceito. Mas o que dizer acerca do uso do termo

transnacional para se referir aos filmes individualmente? Tanto Berry quanto Higbee/Lim

fazem uma importante distinção entre a co-produção internacional, que ocorre “entre

duas ou mais companhias separadas nacionalmente em dois ou mais países”, e a produção

transnacional, que envolve “uma companhia que opera em mais de um país ao mesmo

tempo” (Berry, 2010, p. 121)67

. Se a definição de transnacional for tomada em termos

exclusivamente comerciais (de produção), os filmes em questão devem apenas ser

descritos como co-produções internacionais, visto que foram realizados a partir da

colaboração entre produtoras localizadas em dois países diferentes. Mas o termo

transnacional ainda pode ser aplicado de modo produtivo para qualificar estes filmes, e

nesse sentido poder-se-ia dizer que esse capítulo promove o “estudo comparativo” de

“filmes transnacionais”.

Partindo da defesa de Higbee/Lim de um uso crítico do termo, que vai além do

descritivo ou prescritivo (2010, p. 12), localizo a qualidade transnacional desses filmes na

conexão por eles promovida entre duas ou mais tradições culturais e artísticas, conexão

esta que se manifesta narrativamente através da viagem e do cruzamento de fronteiras,

visível ou implícito, e esteticamente através da articulação dessas tradições na própria

forma do filme. Isso não significa, como já apontado, abandonar a noção de especificidade

nacional, mas sim considerá-la de modo imbricado, uma análise à qual esses filmes se

67

“between two or more nationally separated companies in two or more nation states”; “where a company

operates across borders.”

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prestam visto que nascem justamente dessa interconexão. O uso do termo então sugere

uma ênfase nas manifestações estéticas da transnacionalidade, no lugar de uma análise

voltada para a questão da identidade nacional e sua representação no cinema, com a qual

o termo vem normalmente associado. Grande parte das leituras de Terra estrangeira,

Contra a parede e Import/export de fato identificam nesses filmes o encontro com “o

outro”, e partem daí para considerações acerca da construção de identidades nacionais ou

transnacionais, devidamente julgadas adequadas ou inadequadas em sua capacidade para a

promoção de um entendimento crós-cultural (ver, por exemplo, Berghahn, 2006; Petek,

2007; Burns, 2009; Brady and Hughes, 2008; Elsaesser, 2005). Que horas são aí? de Tsai

Ming-liang foi por sua vez poupado desse tipo de leitura, visto que a viagem por ele

promovida dificilmente poderia ser descrita como diaspórica ou migratória. Não é meu

objetivo invalidar essas abordagens, mesmo porque os três filmes mencionados oferecem

material suficiente para uma discussão acerca da identidade nacional, da relação entre

metrópole e colônia e do papel do imigrante. É também verdade que a análise da

representação do espaço urbano revela, excluindo-se mais uma vez o exemplo de Tsai

Ming-liang, uma diferença entre o tratamento da cidade natal ou do país do diretor (São

Paulo, Hamburgo e Viena) e o tratamento da cidade estrangeira (Lisboa, Istambul e

Snizhne), que se manifesta através do uso de planos de paisagem (a cidade vista de cima, o

olhar distante do estrangeiro) e no uso de planos fragmentados ou locações internas (o

olhar crítico). Esse aspecto será comentado adiante, mas a ênfase recairá aqui sobre a

questão da memória como manifestação estética e não sobre a questão da identidade

nacional. Tendo a concordar com o diretor Fatih Akin em sua recusa a ser definido como

um diretor hifenizado, ou seja, o alemão-turco marcado pela “dupla ocupação” identitária,

nos termos de Elsaesser (2005, pp. 27-8). Seu filme Contra a parede não pode ser visto

através deste prisma apriorístico sem que se incorra em um julgamento de sua boa ou má

representação da dita “dupla ocupação”. Assim, é minha intenção propor uma abordagem

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alternativa a partir da ideia de transnacionalidade estética, que enxerga esses filmes não

através das noções apriorísticas de “cinema acentuado” (Naficy, 2001) ou pós-colonial,

mas sim através da especificidade de sua produção espacial, e da emergência e produção

da memória como uma manifestação pessoal e cultural diretamente ligada ao espaço.

TERRA ESTRANGEIRA

Em Terra estrangeira, a cidade de São Paulo dialoga com Lisboa e indiretamente com San

Sebastián no país Basco, Espanha. Saudado como um dos primeiros sinais da retomada

do cinema brasileiro em meados dos anos 1990, Terra estrangeira ecoa o cinema pós-

moderno de citações dos anos 1980, declaradamente influenciado por obras como O

terceiro homem (The Third Man, 1949) de Carol Reed, em suas sequências noir através

das ruas escuras de Lisboa, e pela obra de diretores como Wim Wenders, Orson Welles,

John Huston e Michelangelo Antonioni, entre outros. Mas Terra estrangeira também

pode ser incluído em uma categoria de filmes que se caracteriza por um “liame ontológico

entre o cenário da ficção e a locação real”, nas palavras de Geoffrey Nowell-Smith (2001,

p. 103)68

, visto que as cidades de São Paulo e Lisboa estão diretamente ligadas ao estado

mental dos personagens. Não surpreende portanto a afirmação dos diretores Walter Salles

e Daniela Thomas acerca da prospecção de locações, através da qual muitos lugares

acabaram por se impor ao filme, impactando a versão final do roteiro (2005).

Terra estrangeira começa naquela que poderia ter sido uma ocasião feliz na

história recente do Brasil se Fernando Collor de Mello tivesse sido a promessa redentora

daqueles que o elegeram democraticamente em 1990, dando cabo a 25 anos de ditadura

militar. Bem ao contrário, as primeiras medidas do que acabou se configurando como

uma administração interrompida incluíram o congelamento das contas bancárias da

68

“ontological link between nominal setting and actual location.”

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população, um plano econômico com consequências desastrosas. Nessa década, o Brasil,

até então um país tradicionalmente de imigração, passou a ser um país de emigração, de

onde muitos saíram em busca de um futuro economicamente mais seguro. O rapaz Paco

(Fernando Alves Pinto) mora com sua mãe Manuela (Laura Cardoso) em São Paulo, em

um apartamento pequeno de frente ao minhocão, cuja imagem estática abre o filme.

Originalmente de San Sebastián, Manuela nutre o desejo de voltar à sua terra natal, que

deixara ainda moça, assim como outros incontáveis imigrantes que integram a tapeçaria

social brasileira. Ela trabalha como costureira e é vista pela primeira vez embaixo do

minhocão, voltando a pé para casa do supermercado. Manuela, carregada de sacolas, se vê

obrigada a subir pelas escadas já que o elevador do prédio está quebrado. Seu cansaço

exagerado, à primeira vista apenas um reflexo da idade, esconde na realidade um

problema de coração. Sozinha em casa à noite ela assiste pela televisão o pronunciamento

da então Ministra da Fazenda Zélia Cardoso de Mello, no qual ela expõe as diretrizes do

novo plano econômico do governo, que incluem o congelamento das contas bancárias. Ao

perceber que seu sonho de retorno a San Sebastián foi colocado em xeque, Manuela sofre

um infarto fulminante, pronunciando a palavra aitá (que significa “pai” na língua basca)

antes de morrer. Paco se vê perdido diante da morte da mãe, e vasculha suas gavetas em

busca de recordações. Ao encontrar um cartão postal de San Sebastián decide realizar o

sonho de Manuela, partindo para a Europa em busca de suas origens. A questão

financeira é resolvida através de um encontro casual com uma figura mefistofélica, Igor

(Luís Melo), com quem faz um pacto garantindo a viagem até Lisboa, em troca do

transporte e entrega de um violino.

Até então as imagens de São Paulo revelam uma cidade cinza e sombria, em

consonância com a dor de Paco. A imobilidade do minhocão, complementada por um

irônico outdoor das calcinhas Hope (“esperança”), parece funcionar como reflexo da

estagnação do personagem, um estudante de física que deseja ser ator mas que emudece

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durante o teste para o papel de Fausto, a ele conferido pela realidade, nas palavras de

Carolin Ferreira (2006, p. 734). O minhocão, construído nos anos 1960 pelo então

prefeito Paulo Maluf, é um traço característico da decadência urbana paulistana, visto ao

mesmo tempo como uma aberração e uma brutalidade. Sua imagem torna-se

particularmente simbólica após a morte de Manuela, como a representação imagética de

seu coração que parou de bater (Salles/Thomas, 2005). O filme então começa com a stasis

que precede o movimento: o elevador parado, o congelamento das contas bancárias, o

emudecimento de Paco e finalmente a morte. Mas a stasis contém em seu âmago a

sugestão da viagem, visto que os planos de abertura do minhocão são acompanhados pela

voz off de Paco, que ensaia o papel de Fausto para o teste de elenco, repetindo os versos

“sinto a coragem, o ímpeto de ir ao mundo; que o manto mágico seja meu, e me carregue

para terras estrangeiras”.

Do outro lado do Atlântico, Terra estrangeira vê e escuta Lisboa pela primeira vez

através do olhar turístico. A capital portuguesa aparece através de imagens de barcos que

cruzam o rio Tejo, combinadas à melodia de um fado, composto pelo brasileiro José

Miguel Wisnik. O filme, fotografado em preto e branco, parece mais preto em São Paulo

e mais branco em Lisboa, também conhecida como Cidade Branca, alcunha à qual se

refere Alex (Fernanda Torres) em diálogo com seu namorado Miguel (Alexandre Borges)

durante a primeira sequência na cidade. O casal parece ter deixado o Brasil por razões

econômicas, mas enquanto ela trabalha como garçonete em um bar ele nutre uma carreira

fracassada como músico e um vício em drogas intravenosas. Durante os primeiros 40

minutos, o filme emprega a montagem alternada, movendo-se de uma cidade para a outra

14 vezes, com sequências uniformes de cerca de seis minutos em cada uma,

intensificando-se à medida que a viagem de Paco se aproxima. Cada corte tem uma pista

visual ou narrativa precisa. Por exemplo, a primeira referência à San Sebastián no filme

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motiva o primeiro corte para Lisboa69

, sugerindo uma interconexão entre a memória de

Manuela e o futuro destino de Paco. Já a confissão de Alex de temer um dia ter que voltar

para o Brasil é seguida da imagem do minhocão, em uma outra instância da memória

espacial evidenciada na montagem. Os cortes também parecem seguir a tensão

estabelecida desde o primeiro plano entre stasis e movimento, aos poucos ganhando

intensidade e finalmente abraçando as convenções do gênero do suspense uma vez que

deixam o Brasil, seguindo Paco em sua viagem para a terra materna (Espanha), com escala

na terra paterna (Portugal).

Paco parte então para Lisboa em viagem arranjanda pelo misterioso Igor, uma

figura apátrida que fala português com um sotaque inclassificável. Os dois haviam se

conhecido no tradicional Bar Brahma, localizado no centro de São Paulo, onde Paco

afogava suas mágoas após o enterro de sua mãe e seu fracasso no teste de elenco,

segurando o cartão postal de San Sebastián que encontrara em sua gaveta. Igor demonstra

interesse no rapaz e em suas origens bascas, e ao descobrir que ele deseja ir à Europa vê

nele uma presa fácil para seu esquema de contrabando de diamantes, disfarçado de

comércio de antiguidades. Os dois vão à loja de Igor onde ele profere um discurso teatral,

enaltecendo suas peças como “vestígios de uma aventura, dos conquistadores, das

navegações”, e encerrando em tom filosófico: “A memória foi embora com os

missionários e com o ouro, com os santos barrocos e com Aleijadinho... Estamos a viver o

império da mediocridade, meu amigo”. Como observa Lúcia Nagib, “através do discurso

culto de Igor ... aprende-se sobre a tradição brasileira, desde os tempos coloniais, do

contrabando de ouro e pedras preciosas dentro de santos do pau oco” (2010, p. 198)70

. O

que Paco não sabe ou não quer saber é que está prestes a embarcar na versão atualizada

69

Para uma análise aguçada da significância deste corte e da cidade de San Sebastián em Terra

estrangeira ver o ensaio de Lúcia Nagib “Back to the margins in search of the core: Foreign Land’s

geography of exclusion”, in Dina Iordanova, David Martin-Jones & Belén Vidal (eds), Cinema at the

Periphery: Industries, Narratives, Iconography, Detroit: Wayne State University Press, 2010. 70

“Through Igor’s cultivated speech … one learns about a Brazilian tradition, harking back to the colonial

times, of smuggling gold and precious stones inside hollow wooden statues of saints.”

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desta tradição, carregando para Igor um violino que esconde diamantes, com a missão de

entregá-lo para Miguel, o receptador em Lisboa. Mas este por sua vez está envolvido em

uma série de imbróglios com outros contrabandistas, e acaba por ser assassinado antes que

a entrega possa ser feita. Em sua busca por Miguel Paco acaba por encontrar Alex, com

quem se envolverá emocionalmente. Os dois acabam fugindo juntos de Lisboa no carro

do amigo português Pedro, em direção à fronteira espanhola, e no caminho encontram

um navio emborcado na praia, cuja imagem estática se relaciona com a imobilidade inicial

do minhocão e pressagia os trágicos acontecimentos finais.

CONTRA A PAREDE E TERRA ESTRANGEIRA

Contra a parede também começa com a stasis que precede o movimento: Cahit (Birol

Ünel), um cidadão alemão da cidade de Hamburgo, dirige seu carro em alta velocidade

contra uma parede, em uma tentativa de suicídio. A sequência de cortes rápidos e fim

abrupto é apropriadamente acompanhada por “I Feel You” na trilha sonora, escrita por

David Gahan da banda Depeche Mode durante seu período suicida. Mas a música

também contém – assim como a fala de Paco no início de Terra estrangeira – um tom

premonitório em seu refrão “esta é a alvorada do nosso amor” (this is the dawning of our

love). Isso porque Cahit, um viúvo que trabalha em um clube noturno recolhendo copos

vazios, e que sofre com as memórias dolorosas da morte de sua mulher, irá em breve

encontrar Sibel (Sibel Kekilli) e com ela viver um novo e conturbado amor. Assim como

Cahit, Sibel é uma cidadã alemã de origem turca, e o encontro do casal acontece dentro

de um hospital, onde ela também está internada após uma tentativa de suicídio. O fim da

estrada (a parede) e a pulsão de morte estão de um modo geral associados ao fim da

narrativa, mas aqui se encontram logo no início, funcionando como o impulso inicial para

o filme e para uma nova vida, um recomeço. Isso se configura no hospital, onde Sibel

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decide propor a Cahit um casamento de conveniência, para que assim possa se livrar do

jugo familiar e viver como bem lhe aprouver. Após muita insistência Cahit acaba

concordando com o plano, mas ao dividirem o mesmo teto os dois acabam por se

apaixonar. Confuso diante dos sentimentos conflituosos que passa a sentir, Cahit se

envolve em uma briga de bar com um dos amantes de Sibel e acaba por matá-lo

acidentalmente. Ele é preso e ela parte para Istambul em busca de um segundo recomeço,

prometendo esperar por ele. Após anos na prisão, ele viaja para a Turquia na esperança

de reencontrar Sibel.

Contra a parede é o quarto longa-metragem do diretor Fatih Akin, natural de

Hamburgo e descendente de turcos, assim como seus personagens. Pelo menos dois

terços do filme se desenrolam na cidade alemã, em locações internas e externas no bairro

de Altona, onde mora o diretor. Assim, os bares e restaurantes vistos são os mesmos

frequentados por Akin, o cartório onde se casam Cahit e Sibel é o mesmo onde se casou,

em suma, o ambiente por ele filmado é o seu. Referências turcas podem também ser vistas

em diversos pontos da cidade, tais como lojas, restaurantes e o clube noturno Taksim, que

recebe o mesmo nome de uma das praças centrais de Istambul, atraindo grandes

contingentes que dançam ao som da música pop turca, integrada aos sons pós-punk de

Depeche Mode, The Birthday Party e The Sisters of Mercy na trilha sonora do filme. Mas

Istambul está presente desde o primeiro plano do filme, na imagem recorrente de um

conjunto musical que interpreta canções tradicionais turcas às margens do Chifre de Ouro,

com uma imagem “cartão postal” da cidade ao fundo. As músicas tocadas aludem ao

amor, à perda, à memória, à distância, afinadas à dor de Cahit e Sibel. Essa imagem

servirá de abertura para cada novo tableau do filme, que viaja entre as duas cidades cinco

vezes.

Tanto Terra estrangeira quanto Contra a parede, a despeito das diferenças relativas

à questão da identidade, apresentam a viagem para uma nova cidade como a possibilidade

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de um reinício, na tentativa de deixar para trás memórias dolorosas relacionadas à

experiência de perda e morte (da mãe para Paco, da primeira mulher para Cahit, e de

Cahit para Sibel). Imagens do avião, da chegada ao aeroporto e ao “Grand Hotel de

Londres” em Istambul, assim como planos panorâmicos da paisagem urbana, encontram

uma ressonância em imagens similares em Terra estrangeira, nas quais Paco é igualmente

visto chegando ao aeroporto, se hospedando em um charmoso hotel em Lisboa com vista

para o mar, e onde Alex e Miguel conversam diante de uma bela vista da cidade. É

também notável o fato de São Paulo e Hamburgo, as cidades mais próximas aos diretores,

não aparecerem em planos panorâmicos, recebendo um tratamento mais fragmentado e

internalizado, enquanto Istambul e Lisboa são mostradas mais de uma vez através de

planos de paisagem – do topo de uma colina, da janela do hotel, do topo de um prédio –

vistas em toda a sua glória turística.

Finalmente, ambos os filmes terminam na estrada, em um movimento mais uma

vez contaminado pela sensação de perda ou morte. Em Terra estrangeira, Alex e Paco

fogem em direção à San Sebastián, dirigindo ilegalmente através da fronteira espanhola

em uma estrada remota. Mas Paco acaba de ser baleado pela gangue de contrabandistas

liderada por Igor, e está morrendo no colo de Alex. Na Turquia, Cahit embarca em um

ônibus na rodoviária de Istambul em direção à sua cidade natal Mersin, mas Sibel, que

prometera se juntar a ele, percebe que não pode abandonar a vida de estabilidade que

conseguira achar após anos de auto-destruição e dor, tanto em Hamburgo quanto em

Istambul. Dois casais, duas ausências, duas estradas, que levam suas histórias a novos e

desconhecidos territórios, ao mesmo tempo trazem os filmes ao fim.

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IMPORT/EXPORT, CONTRA A PAREDE E TERRA ESTRANGEIRA

Se em Terra estrangeira e Contra a parede as fronteiras são mostradas de modo

proeminente, em Import/export elas permanecem inconspícuas, o Oeste e o Leste da

Europa construídos como “dois mundos que cada vez mais se parecem”, nas palavras do

diretor austríaco Ulrich Seidl (2007, p. 5)71

. Seidl pode ser descrito como o enfant terrible

do cinema contemporâneo, tendo dirigido uma série de filmes que desafiam

qualquer categorização, ocupando uma área cinzenta entre a ficção e o documentário e

empenhados em uma crítica inclemente à sociedade austríaca.72

Com Import/export o

diretor se aventura para além das fronteiras de seu país ao propor, como indica o título,

um movimento duplo: o de Olga (Ekateryna Rak) , uma enfermeira da cidade de Snizhne

no extremo leste da Ucrânia, que se muda para Viena em busca de novas oportunidades,

deixando para trás sua mãe e filha pequena; e o de Pauli (Paul Hofmann), um segurança

que perde seu emprego e embarca em uma viagem de carro com seu padrasto através das

cidades de Kosice na Eslováquia e Uzhgorod no oeste da Ucrânia, instalando máquinas de

chiclete e fliperamas em conjuntos habitacionais. O filme usa subtítulos para informar o

nome das cidades que atravessa, enfatizando assim o real das locações.

Não surpreende que os primeiros planos de Import/export também anunciem

imobilidade ao invés de movimento. O primeiro revela um homem em Viena que tenta

repetidamente dar a partida em uma motocicleta, pisando em vão no acelerador. Um

corte leva a Snizhne, onde elenco e equipe filmaram sob temperaturas extremas de 30

graus negativos. Lá, a paisagem urbana é nada menos do que desoladora, e Olga aparece

71

“two worlds that are increasingly coming to resemble each other” 72

Ver por exemplo Tierische Liebe/Animal Love (1996); Models (1999); Zur Lage: Osterreich in sechs

Kapiteln/State of the Nation: Austria in Six Chapters (2002); Jesus, Du weisst/Jesus, You Know (2003);

Hundstage/Dog Days (2001).

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pela primeira vez vestida de branco, cambaleando através de um atalho coberto de neve

em sua bota de salto agulha. Se em Terra estrangeira as contas bancárias foram

congeladas, aqui toda a cidade parece assim estar, e a imagem de um avião militar,

transformado em escultura no meio de uma praça, dialoga com a motocicleta que insiste

em não funcionar no primeiro plano, com o minhocão emborcado em São Paulo e com a

parede contra a qual Cahit joga seu carro, igualmente simbólicos da estagnação que

precede a viagem.

Conforme mencionado anteriormente, o tratamento das cidades de São Paulo (os

diretores de Terra estrangeira são cariocas mas trabalham com frequência na capital

paulista) e Hamburgo (cidade natal de Fatih Akin) se diferencia do tratamento das

cidades-destino por sua fragmentação e interiorização. É também fato notório que Lisboa

e Istambul são cidades consideravelmente mais fotogênicas e turísticas do que São Paulo e

Hamburgo, convidando assim o olhar mais distanciado do turista, que revela o ponto de

vista externo dos diretores em relação ao espaço urbano. Mas em ambos os filmes esse

ponto de vista é sancionado pelos personagens que também se configuram como externos

ao ambiente. Os imigrantes Alex, Miguel, Paco, Sibel e Cahit, apesar de se relacionarem

por laços sanguíneos ou históricos com a cidade-destino, se definem até certo ponto por

seu olhar estrangeiro. A chegada de Cahit em Istambul é especialmente significativa: no

caminho do aeroporto para o hotel ele encontra um motorista de taxi turco-alemão,

procedente de Munique (um Bávaro, como diz Cahit), com quem conversa em alemão, e

ao encontrar a prima turca de Sibel se vale da língua inglesa, visto que seu turco é

rudimentar.

Em Import/export, nota-se a mesma diferença entre o tratamento de Viena e

Snizhne. A capital austríaca, cidade natal do diretor, é raramente vista em externas, mas

quando o é aparece sempre a partir do nível da rua e nunca em um plano de paisagem.

Snizhne, por sua vez, é vista em mais de uma ocasião a partir de pontos altos, em planos-

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gerais que ressaltam o frio da neve e a paisagem urbana industrial, conformando-se a um

certo clichê iconográfico do leste comunista. Aqui, Seidl não tem em Olga um olhar

sancionador, mas o tratamento estético de Viena funciona também de modo à aproximá-la

desta iconografia, com a ênfase em planos estáticos que favorecem o enquadramento de

conjuntos habitacionais, nem tão distintos dos vistos no leste europeu. Isso demonstra o

desejo de Seidl de borrar as fronteiras entre as duas regiões, presente também na opção

por não mostrar as fronteiras físicas que separam os países. O diretor revela também que a

decisão de filmar no leste europeu nasceu de sua afinidade com a região, do fato de por lá

ter viajado extensivamente e de se sentir próximo às pessoas e às suas mentalidades

(Ciment e Rouyer, 2009, p. 29). Assim, seu olhar é ao mesmo tempo distanciado e

familiar.

Além da aproximação estabelecida entre leste e oeste através da montagem

alternada, que persiste até o final do filme, um importante ponto de contato aparece entre

as duas cidades antes do início das viagens de Olga e Pauli. Isso ocorre através de um

estabelecimento de sexo via internet, no qual Olga trabalha por um breve período. Aqui, a

voz do outro lado da tela do computador fala alemão com sotaque austríaco, e Olga

responde em alemão rudimentar, incapaz de compreender as instruções de seu cliente. A

simultaneidade das relações espaciais, impressa na forma do filme através da montagem,

encontra na fábula sua mais perfeita manifestação. Mas o real da locação e o corpo das

atrizes não-profissionais confere uma autenticidade a essa sequência que evidencia a

tensão entre a (re)presentação e a literalidade, uma tensão que permeia todo o filme.

Assim, a simultaneidade é ao mesmo tempo representada e real, visto que os

computadores, as camas, as câmeras e o som que se pode escutar vindo dos quartos fazem

parte de uma estabelecimento autêntico, que diariamente faz a ponte entre o oeste e o

leste europeus.

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Import/export corta 21 vezes do leste para o oeste, e apesar de parecer

esquemático a partir dessa breve descrição confunde expectativas em diferentes níveis. O

antecipado encontro entre Olga e Pauli, por exemplo, nunca ocorre. Olga pega um trem

em Snizhne e chega à estação de Viena, onde sua amiga e compatriota Natasha a aguarda.

As duas se abraçam e vão embora juntas. Pauli é visto antes e depois no que aparenta ser

o interior de uma estação de metrô, talvez a mesma do trem, mas isso não fica claro.

Apesar de tanto um quanto o outro serem humilhados em seus empregos – Pauli por um

grupo de jovens de aparência turca que o amarram e atormentam dentro do

estacionamento do prédio onde trabalha como segurança, e Olga pelas famílias austríacas

nas quais trabalha como faxineira – nenhum dos dois é apresentado como vítima. No caso

de Olga, a tentação em mostrá-la como a imigrante sofredora é a todos os momentos

rechaçada pelo diretor, visto que as fronteiras da qual trata parecem ser mais de cunho

social do que geográfico. No fim, tanto Pauli quanto Olga se esforçam para driblar seus

destinos ao mesmo tempo que preservam sua dignidade. Olga termina o filme

conversando animadamente com suas colegas faxineiras em um hospital geriátrico em

Viena, sua futura permanência no país um tanto incerta. Pauli por sua vez abandona seu

horripilante padrasto em um quarto no hotel Intourist em Uzhgorod, e parte sozinho por

uma estrada, pedindo carona. Assim como em Terra estrangeira e Contra a parede, o

tropo da estrada reaparece no final, apontando para novas direções e novas viagens. Mas o

último plano do filme confere novamente à essa estrada uma conotação pessimista, ao

mostrar um quarto no hospital geriátrico no qual uma das pacientes repete três vezes a

palavra “morte”.

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QUE HORAS SÃO AÍ?

E é precisamente uma morte que dá início ao filme de Tsai Ming-liang Que horas são aí?,

uma reflexão acerca da viagem, do fuso horário e da reencarnação. Trata-se desta vez da

morte do pai de um jovem rapaz, Hsiao Kang (Hsiao Kang). Um plano-sequência estático

com profundidade de campo revela Miao Tien (Miao Tien) dentro do apartamento onde

mora com a mulher e o filho, sentado à mesa de jantar fumando um cigarro. Ele se

levanta e anda lentamente até o fim do corredor, que se abre para o terraço. O próximo

corte dá conta de sua morte, introduzindo um novo plano-sequência, no qual de Hsiao

Kang, carregando as cinzas do pai em uma urna, viaja através dos viadutos e avenidas de

Taipei no banco de trás de um carro. O jovem é um vendedor de relógios ambulante na

capital Taiwanesa, que monta sua banca em uma passarela de pedestres em frente à

estação central da cidade. Shiang-chyi (Shiang-chyi) está de partida para Paris e procura

um relógio com horário duplo. Ao atravessar a passarela ela encontra Hsiao Kang e

procura em sua banca um modelo que a satisfaça. Mas ao ver um relógio no pulso do

rapaz imediatamente decide que é aquele que quer comprar. De sua parte ele recusa,

alegando que por estar em luto pela morte de seu pai o relógio poderia acarretar má sorte.

Ela vai embora mas não desiste facilmente, ligando para ele e explicando que, por ser

cristã, ela não se sente afetada por crenças supersticiosas. Ele acaba por conceder e ela

compra o relógio antes de embarcar para Paris. Esse encontro casual, assim como a morte

de Miao Tien, são os principais motivos que impulsionam o filme. Hsiao Kang, ainda em

Taipei, passa a ter que lidar com duas ausências: a de seu pai e a de Shiang-chyi, que após

a compra do relógio parece ter ficado impregnada em sua memória. Ele a mantém viva

no estranho e obsessivo hábito de acertar relógios (os seus, os de uma loja, em um cinema,

o da cozinha de seu apartamento, e até mesmo o relógio da estação central) ao horário

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francês, numa vã tentativa de suplantar o lapso espacial que os separa através da aparente

anulação do lapso temporal.

Em Que horas são aí?, a manifestação estética do ponto de vista interno ou

externo do diretor em relação ao espaço urbano não segue a tendência anteriormente

explicitada. Aos olhos do diretor chinês nascido na Malásia mas baseado em Taipei desde

os anos universitários, Paris, a mais fotogênica e turística das cidades, não aparece a partir

do ponto de vista externo do turista, mas sim a partir de um tratamento internalizado que

impede uma visão globalizante ou total da cidade. Apesar de ter sido inteiramente filmado

em locações reais, Que horas… possui poucas cenas externas em Paris. O diretor se

esforçou ao contrário para criar uma atmosfera de solidão e isolamento, sem parecer

minimamente interessado no caráter pitoresco da cidade. Como escreveu De Bruyn na

revista Positif , a capital francesa “foi filmada sem um fotograma de exotismo” (2001, p. 6)

73

. Com um novo corte de cabelo, assim como Sibel ao se mudar para Istambul (ambas

passaram de longo para curto), Shiang-chyi é vista dentro de seu quarto de hotel, em um

café, em um restaurante, no metrô, fazendo uma ligação de um telefone público, e em

todos as instâncias sua desconexão em relação ao ambiente é evidenciada: ela está sempre

sozinha; fica parada na escada rolante enquanto os outros caminham; é interceptada pelos

inspetores do metrô; espera um trem que chega na plataforma oposta; não compreende o

cardápio em um restaurante; tenta fazer uma ligação mas um francês neurastênico na

cabine ao lado a espanta; e por fim acaba vomitando após beber muitas xícaras de café.

Assim, fica claro que Shiang-chyi sofre de um lapso temporal em relação ao espaço

urbano a sua volta.

Que horas… concentra-se em Shiang-chyi, Hsiao Kang e sua mãe, Lu Yi-ching (Lu

Yi-ching), que passa todo o filme tentando lidar com a morte do marido. Convencida de

que ele reencarnará dentro do apartamento, ela promove toda uma série de rituais

73

“filmée sans un photogramme d’exotisme”

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budistas, de modo a criar um ambiente propício à sua volta. O filme é estruturado a partir

da montagem alternada, e corta entre Taipei e Paris 24 vezes, com um total de 13

sequências em cada cidade. Os cortes por si não são motivados por conexões explícitas

entre os espaços e os três personagens, mas a estrutura geral de vai-e-vem, apoiada na

conexão estabelecida através do relógio, aproxima as duas cidades de modo ainda mais

intenso do que nos outros três filmes, mantendo o paralelismo até o final. Já a penúltima

sequência do filme é montada de modo a criar relações explícitas entre Shiang-chyi, Hsiao

Kang e Lu Yi-ching, que simultaneamente passam por uma experiência de cunho sexual.

Que horas... termina em Paris com a abertura para a locação externa do Jardin de

Tuileries, onde Shiang-chyi dorme em uma cadeira sem se dar conta de que sua mala

flutua à sua frente, em uma das fontes do jardim. Quem finalmente acaba por “pescar” sua

mala com um guarda-chuva é a reencarnação do pai de Hsiao Kang, que também parece

ter viajado de Taipei para Paris. Uma roda-gigante localizada na Place de la Concorde, em

frente ao portão principal do jardim, é vista primeiramente refletida na fonte e em seguida

como pano de fundo para o fantasma de Miao Tien, que caminha em sua direção no

último plano-sequência do filme. Esta roda sugere mais uma vez o tropo da estrada, mas

ao invés de apontar para novas trajetórias ela parece simbolizar a renovação perpétua, a

reencarnação e o movimento entre a vida, a morte e a vida, em consonância com as

crenças budistas expressas e nutridas por Lu Yi-ching durante todo o filme.

CIDADES DE MEMÓRIAS

Ao reinventar a geografia de duas cidades, que aparecem como um tanto impessoais e

claustrofóbicas, Tsai parece propor que cidades podem ser encontradas internamente,

construídas a partir das memórias e dos sentimentos de cada indivíduo. Vale resumir a

epígrafe que abre a introdução desta obra, “as cidades são um aglomerado de tantas

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coisas: de memórias, de desejos, de sinais de uma linguagem” (Calvino, 2009, pp. ix-x),

para sugerir que esses filmes reúnem a cidade real, a cidade indéxica e a cidade

interiorizada ao promoverem, através de suas produções espaciais, a comunicação de

memórias. Como é sabido, o recurso do flashback é o modo clássico através do qual o

cinema evoca a memória individual, acessando-a, por exemplo, através de uma fusão.

Neste caso, a sobreposição de imagens representa a ligação entre o presente e o passado e

por vezes entre dois espaços distintos, levando de uma imagem em geral mais objetiva

para uma imagem mental e subjetiva. A relação entre cinema, memória e cidade encontra

sua matriz no filme Hiroshima meu amor (Hiroshima mon amour), realizado em 1959

por Alain Resnais. Baseado em um roteiro da escritora Marguerite Duras, uma das

principais figuras do nouveau roman francês, o filme une as cidades de Hiroshima no

Japão e de Nevers na França através da personagem central, conhecida simplesmente pelo

pronome “ela”, vivida por Emmanuelle Riva. “Ela” é uma atriz francesa na cidade

japonesa do título, onde trabalha em um filme sobre a paz. Na véspera de seu retorno à

França ela encontra “ele” (Eiji Okada), um engenheiro ou arquiteto japonês com quem

vive um romance extraconjugal de 24 horas. O filme se passa nessas 24 horas mas é

interrompido temporalmente por flashbacks. O corpo de seu amante em Hiroshima

remete à uma outra cidade e a um outro tempo, vivos em sua memória, tornada visual

pelo filme. Foi em Nevers, sua terra natal, que no ano de 1944 ela se apaixonou por um

soldado alemão, morto durante a Libertação. O primeiro flashback a violar o tempo

presente é motivado pela posição da mão do amante japonês que dorme na cama do

hotel. Resnais passa da subjetiva de seu corpo para um plano médio da atriz francesa que

o observa, e então para um plano detalhe da mão do corpo do soldado alemão, na mesma

posição. A trilha sonora antecipa a imagem do flashback com o desaparecimento do som

ambiente (de Hiroshima, do tempo presente) no momento em que o corte revela o rosto

da mulher. Hiroshima meu amor rompeu radicalmente convenções narrativas através da

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fragmentação da escritura poética de Duras, e seu uso do flashback é extremamente

sofisticado por relacionar dois tempos, dois amores e duas cidades que se confundem

com uma série de dualismos problematizados no filme: a realidade e a ficção, a França e o

Japão, Nevers e Hiroshima, o bem e o mal, o cinema e a literatura, a imagem e a palavra,

a tragédia individual e a tragédia coletiva, a guerra e o amor, o passado e o presente, a

memória e o esquecimento. A dimensão geográfica deste amor atinge seu ápice no final

do filme, no qual “ela” diz a “ele” “Hi-ro-shi-ma. C’est ton nom” (Hiroshima é teu nome)

e “ele” a “ela” “Ton nom à toi est Nevers” (Teu nome é Nevers) (Duras, 1997, p. 124).

Em Hiroshima ..., a associação da memória com o tempo (o passado) é posta em

evidência através do recurso do flashback, assim como sua conexão com o presente

daquela que se recorda. Já nos filmes analisados neste capítulo, a troca ocorre entre duas

cidades separadas pelo recurso igualmente clássico da montagem alternada (também

conhecida pelo termo em inglês cross-cutting), através do qual a simultaneidade temporal

é sugerida através da descontinuidade espacial, em consonância com nossa experiência

contemporânea do tempo e do espaço. Esse recurso cinematográfico substitui nesses

filmes o flashback como instigador da memória, apontando para seu caráter espacial,

independente do tempo. Em The Analysis of Mind (A análise da mente), Bertrand

Russell descreve como a memória de um evento passado está na realidade contida, ou tem

uma relação causal, com o presente:

Tudo que constitui uma crença-memória está acontecendo agora, não no tempo

passado ao qual a crença parece se referir. Não é uma necessidade lógica para a

existência da crença-memória que o evento lembrado tenha ocorrido, ou mesmo

que o passado tenha sequer existido... Logo as ocorrências que são chamadas de

conhecimento do passado são logicamente independentes do passado; elas são

plenamente analisáveis através de conteúdos presentes, que podem, teoricamente,

ser apenas o que são, mesmo que nenhum passado tenha existido. (1924, pp. 159-

160)74

74

“Everything constituting a memory-belief is happening now, not in that past time to which the belief is

said to refer. It is not logically necessary to the existence of a memory-belief that the event remembered

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A memória vista como contida no presente, independente até mesmo da existência de um

passado, emerge nesses filmes através dos cortes e através de pontos conectivos

estabelecidos entre dois espaços, cuja simultaneidade é sedimentada pela montagem

alternada. Giuliana Bruno descreveu as cidades como “camadas de sedimentos, a soma de

tudo aquilo que seus habitantes carregam dentro de si. São os reflexos das imagens que

formamos delas através do tempo. É sobretudo através do espaço e não do tempo que se

movem as memórias” (citada em Broggi, 2005, pp. 23-4).75

No tempo presente, a

dimensão espacial da memória é posta em evidência, pois como sugere Edward Casey a

corporificação como condição necessária para o ato de relembrar aponta para um lugar:

“assim como a existência corporificada se abre para o lugar, ocorre em um lugar, nossa

memória do que experienciamos no lugar é igualmente espacial” (2000, p. 182)76

. A

memória é portanto um ponto de conexão entre o evento lembrado, a pessoa que o

lembra e o espaço da lembrança.

Em Que horas…, a montagem alternada favorece o aparecimento de pontos

conectivos entre as duas cidades, mantendo viva a memória de Hsiao Kang e Taipei em

Shiang-chyi: o relógio com horário duplo é um desses pontos, aparecendo ostensivamente

nas sequências em Paris como uma lembrança do encontro na passarela, que estabeleceu

uma ligação entre os dois, manifesta abertamente (no caso dele) e sutilmente (no caso

dela) durante todo o filme. Ademais, se o passado é trazido para o presente através de

uma memória, ativada pelo espaço, não espanta que o filme e a cidade sejam habitados

por fantasmas: o quarto do hotel de Shiang-chyi em Paris, por exemplo, parece

should have occurred, or even that the past should have existed at all. …Hence the occurrences which are

called knowledge of the past are logically independent of the past; they are wholly analysable into present

contents, which might, theoretically, be just what they are even if no past had existed.” 75

“Le città sono strati di sedimenti, la somma di tutto quello che chi le vive e le percorre porta dentro di sé.

Sono il riflesso stesso dell’immagine che abbiamo di esse attraverso lo scorrere del tempo. Più che nel

tempo è soprattutto attraverso lo spazio che la memoria si muove.” 76

“As embodied existence opens onto place, indeed takes place in place and nowhere else, so our memory

of what we experience in place is likewise place-specific.”

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assombrado por barulhos misteriosos que vêm do andar de cima; o pai de Hsiao Kang,

que também viaja de Taipei a Paris, reencarna nas Tulherias; e finalmente o Cemitério de

Montmartre, visitado por Shiang-chyi, é o local de um encontro casual com ninguém

menos que Jean-Pierre Léaud. Neste espaço heterotópico, no qual o diretor francês

François Truffaut está enterrado, a câmera encontra seu ator-fetiche, cuja relação com o

diretor ecoa a própria relação entre Tsai Ming-liang e Hsiao Kang. Jean-Pierre Léaud se

senta em um banco do cemitério e conversa com Shiang-chyi, que procura em sua bolsa

um número de telefone, possivelmente o de Hsiao Kang. Sua presença aparece aqui como

mais um ponto conectivo entre as duas cidades, visto que uma versão mais jovem do ator

– além do fantasma de François Truffaut – viajam na direção oposta à do fantasma de

Miao Tien, em uma das sequências mais memoráveis do filme, comentada a seguir.

Se Shiang-chyi parece lembrar de Taipei através da relação estabelecida com o

relógio de Hsiao Kang que ela carrega no pulso, ele – obcecado como está pela

eliminação do lapso temporal que os separa – não pode se lembrar de Paris, visto que

nunca lá esteve. Sua solução é comprar um filme realizado em Paris, Os incompreendidos

(Les 400s Coups, 1959), cuja cópia pirata encontra na banca de um outro camelô em

Taipei. Será através deste filme que ele poderá fabricar uma memória virtual daquela

cidade, nos termos de Giuliana Bruno:

As cidades são por excelência espaços que não apenas evocam as memórias, mas

as constroem e as contêm. O mesmo ocorre em relação à memória virtual que

construímos através das telas, historicamente a cinematográfica, hoje também a da

televisão, do computador e do celular.

(citada em Broggi, 2005, pp. 23-24)77

77

“Le città sono per eccellenza spazi che non solo evocano la memoria, ma la costruiscono e la

contengono. Lo stesso accade per la memoria virtuale che ci costruiamo attraverso gli schermi,

storicamente quelli cinematografici, oggi anche quelli dei televisori, dei computer, dei cellulari.”

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Ao posicionar Hsiao Kang como um espectador de Os incompreendidos, deitado em sua

cama no escuro em frente à televisão, Tsai presta homenagem ao seu filme preferido, que

viu pela primeira vez ao se mudar da Malásia para Taipei, e através do qual também pôde

fabricar uma memória virtual de Paris. Como observa Song Hwee Lim, “a consumação

cinéfila de Tsai do filme de Truffaut produziu um cinema intertextual que costura os dois

autores e seus protégés numa complexa rede de conexões” (2007, p. 236)78

. Esse diálogo

entre os dois autores ocorre primeiramente através da cena no parque de diversões, na

qual Doinel (Jean-Pierre Léaud) entra em um brinquedo no estilo “Chapéu Mexicano”.

Esta cena conta também com uma participação cameo de Truffaut, que entra no

brinquedo redondo com Doinel. Como explica Lúcia Nagib, “Truffaut fica ao lado de

Doinel dentro do chapéu mexicano, filmado de modo a reproduzir o mecanismo do

praxinoscopo, um predecessor do cinematógrafo”. Nagib ainda comenta que “a

experiência física da força centrífuga, que cola os participantes à parede do brinquedo, une

o personagem, o ator e o autor em uma bem arquitetada fusão da fábula do filme e da

vida real” (2011, p. 65)79

. Esta cena metalinguística ganha ainda outra camada a partir de

sua inserção em Que horas..., unindo Hsiao Kang e Tsai à Jean-Pierre/Doinel e Truffaut.

A cena se relaciona também com as próprias memórias de infância de Tsai, que quando

criança frequentava um brinquedo similar em um parque de diversões em Kuching. Por

fim, o “Chapéu Mexicano” introduz o motivo circular no filme, que reaparece nos últimos

planos das Tulherias em conexão com a reencarnação.

Se Paris se torna uma memória virtual, fabricada através da tela da televisão por

Hsiao Kang em Taipei, San Sebastián permanece até o fim de Terra estrangeira também

uma memória virtual para Paco, fabricada através de um cartão postal. Tendo chegado até

78

“Tsai’s cinephilic consumption of Truffaut’s film has produced an intertextual cinema that weaves the

two auteurs and their protégés in a complex web of network.” 79

“Truffaut stands next to Doinel inside a gyrating rotor machine, filmed in such a way as to reproduce the

mechanism of the praxinoscope, a predecessor of the cinematographe.”; “The physical experience of the

centrifugal force, which plasters participants against the rotor wall, unites character, actor and auteur in a

cleverly devised fusion of film fable and real life”

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a Portugal mas impedido de seguir ao destino final no país Basco, a imagem do cartão

postal funcionará como o único ponto de conexão entre a terra de sua mãe e São Paulo. A

dimensão explícita da memória contida na imagem do postal aparece no momento em

que Paco remexe os pertences da mãe, retirando cartas, fotos e outros cartões postais de

sua gaveta, e mais tarde organizando-os no chão do apartamento, tal fora um quebra-

cabeças. Já sua natureza fluida, visto que foi criada a partir de uma cidade indéxica, ganha

uma tradução visual na sequência em que a água do banho transborda para a sala do

apartamento, molhando as fotos e cartões, que passam a boiar por sobre o chão. Lisboa,

por sua vez, está imbuída de uma nostalgia que parece provir das memórias de Manuela,

já que o primeiro corte para a cidade é motivado pela sua referência à San Sebastián,

gerando imagens que remetem a uma terra distante e idealizada, bem diferente do Brasil.

Pouco antes de morrer, Manuela estava entusiasmada com o fato de ter economizado

dinheiro suficiente para viajar ao país Basco, dizendo a Paco: “Pode se preparar para

conhecer a terra da sua mãe”. O rapaz, mais realista, tenta demovê-la da ideia, sugerindo

que o parcelamento de pacotes turísticos acarretaria um juros altos, muito além das suas

possibilidades financeiras, dizendo finalmente um simples “esquece San Sebastián”. “Você

não entende”, retruca Manuela, “é San Sebastián que não me larga”. Sua fala explicita a

dimensão interna das cidades, algo que naquele momento Paco não consegue

compreender, mas que fará sentido uma vez que embarcar em sua viagem transatlântica.

Istambul não possui a mesma função nostálgica e subjetiva para Cahit ou Sibel em

Contra a parede, mas também aparece no filme na forma de um cartão-postal. O ponto

conectivo mais proeminente entre as duas cidades, evidenciado pela montagem alternada,

aparece no cartão “vivo” que dá início a cada novo tableau do filme, conferindo-lhe sua

estrutura brechtiana. Assim, mesmo que cerca de dois terços do filme estejam

concentrados na Alemanha, a imagem da capital turca parece se impor sobre a Hamburgo

de Cahit e Sibel desde o princípio, antes mesmo que eles para lá partam. Essas imagens

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estilo cartão-postal contêm uma dimensão temporal, visto que foram filmadas durante um

dia inteiro, do nascer ao pôr-do-sol, variando em sua tonalidade de acordo com a

luminosidade natural. Cada nova imagem então marca um novo capítulo, conecta as duas

cidades e aponta para a passagem do tempo – o tempo diegético e o tempo da projeção.

Além disso, as canções tocadas pela banda, composta por músicos ciganos e pela cantora e

atriz turca Idil Üner, invariavelmente “sangram” sobre as imagens em Hamburgo,

antecipando o corte para o cartão-postal às margens do Chifre de Ouro, braço do estreito

de Bósforo que divide em dois o lado europeu da cidade. Em Contra a parede, Istambul

se impõe como uma memória presente, de cunho coletivo, pertencente a Cahit e a Sibel, a

suas famílias, aos atores e ao próprio diretor. A ideia de que imagens e espaços contêm

memórias fica também evidente na sequência em que Cahit, em um movimento similar ao

de Paco, abre uma caixa e de lá retira fotos de sua falecida mulher, posicionando-as

igualmente sobre o chão de seu apartamento. A ideia ainda reaparece mais uma vez na

cena em que o pai de Sibel queima suas fotos após a revelação de seu caso extra-conjugal,

de modo a apagar qualquer traço de sua existência, ou em outras palavras de sua

memória.

Import/export, com sua estrutura de “duas mãos”, estabelece o primeiro ponto

conectivo entre Viena e Snizhne através da tela do computador e seu link de sexo ao vivo,

que evidencia através da fábula a característica de simultaneidade espacial, impregnada na

forma do filme pela montagem alternada. Com Olga já em Viena, empregada como

faxineira em um hospital geriátrico após algumas tentativas desastradas de trabalhar como

empregada doméstica, a ponte comercial/pornográfica é substituída por uma ponte

auditiva, que vem na forma de uma canção. ‘Serdtse’/‘Coração’, na versão de Pyotr

Leschchenko, é tocada pela primeira vez na Ucrânia em uma cena de otimismo, na qual

Olga, animada com a iminente partida para a Áustria, dança com uma amiga em um salão

de festas. A canção reaparece em duas outras ocasiões, evidenciando a cidade que ela

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ainda carrega dentro de si, mesmo estando longe de casa. Na primeira cena, Olga dança

com um de seus pacientes do hospital geriátrico (o excelente Erich Finsches, “estrela” em

outro filme do diretor, Hundstage/Dog Days, 2001), por quem desenvolveu uma certa

afeição. O paciente, já velho, sugere que os dois se casem, assim ela garantiria o visto de

permanência na Áustria e ele uma enfermeira – e uma companhia – para o pouco que lhe

resta de vida. A cena ocorre no que parece ser uma sala no porão do hospital, onde os

dois dançam ao som de um pequeno aparelho de som. Esse é o primeiro momento desde

a chegada de Olga na estação em Viena que sua vida na Ucrânia é diretamente

referenciada. Mas a verdadeira ponte entre as duas cidades é estabelecida em outra cena,

na qual Olga faz um breve telefonema do hospital para sua filha pequena. Observada

através de um plano-sequência, Olga se esconde em uma sala vazia e faz uso do telefone

sem que ninguém perceba. Sua memória de Snizhne emerge através da canção, que

resume, diante do tempo exíguo, o que ela teria para falar. O telefonema e a música

conectam Olga com um outro espaço e aparecem em Viena como a dimensão interna de

Snizhne.

Em um mundo cada vez mais definido pela simultaneidade e pelas interconexões,

esses quatro filmes distintos de algum modo empregam recursos similares ou comparáveis

em sua articulação de espaços urbanos reais. Estruturados a partir de uma viagem entre

duas cidades, alguns motivos são ao mesmo tempo recorrentes e reveladores, tais como a

tensão entre a stasis e o movimento que permeia suas sequências de abertura, o tropo da

estrada que aponta para novas trajetórias ou para a renovação em suas sequências finais, e

o emprego da montagem alternada, possibilitando a emergência de pontos conectivos. Um

meio que viaja, o cinema foi desde o início capaz de atravessar longas distâncias, seja

através da distribuição e exibição ou através da montagem. Nesses exemplos notáveis do

impulso “viajante” do cinema contemporâneo, a montagem funciona como uma força

para trás e para frente, produzindo o que se pode chamar de um encontro significativo.

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Além dos cortes, os pontos conectivos entre as duas cidades parecem perfurar o espaço e

se encontrarem no meio: um cartão postal, uma canção entoada por uma mãe ou tocada

por uma banda, uma tela de computador, um relógio com horário duplo, um fantasma,

um ator, um filme. Conexões que fabricam ou despertam uma memória, um fenômeno

tão espacial quanto temporal, assim como o próprio cinema.

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CAPÍTULO IV: A CIDADE EFÊMERA

Filmes: A passarela se foi (Tianqiao bu jianle, Tsai Ming-liang, 2002), Adeus, Dragon Inn

(Bu san, Tsai Ming-liang, 2003), It’s a dream (Shi meng, Tsai Ming-liang, 2007), Em busca

da vida (Sanxia haoren, Jia Zhang-ke, 2006), 100 flowers hidden deep (Chen Kaige, 2002)

Cidades: Taipei, Feng Jie, Pequim

Este capítulo trata de filmes que abordam o movimento da própria cidade, que aparece

como um espaço instável e efêmero, em constante transformação. A passarela se foi

(Tianqiao bu jianle, Tsai Ming-liang, 2002), Adeus, Dragon Inn (Bu San, Tsai Ming-liang,

2003), It’s a dream (Shi meng, Tsai Ming-liang, 2007), Em busca da vida (Sanxia haoren,

Jia Zhang-ke, 2006) e 100 Flowers Hidden Deep (Chen Kaige, 2002) serão analisados a

partir de seu desejo urgente de filmar o desaparecimento de algum aspecto da cidade, de

um bairro ou de uma cidade inteira, que se traduz, de modo quase contraditório, em uma

lentidão de estilo e em um realismo de inspiração baziniana. Assim, caberá investigar a

capacidade do cinema de registrar e preservar o real, ou em termos bazinianos avaliar a

força da ontologia da imagem fotográfica diante de um espaço efêmero. Ao mesmo

tempo, esse desejo vem aliado à possível perda dessa qualidade fotográfica no cinema, no

momento em que a imagem digital substitui a película. Essa transformação, anunciada por

Tsai no final de A passarela se foi e abraçada por Jia em seu filme sobre a cidade de Feng

Jie, realizado inteiramente no formato digital, sugere uma analogia entre a cidade efêmera

e o cinema efêmero, presente no cerne das análises propostas.

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A PASSARELA SE FOI, ADEUS, DRAGON INN E IT’S A DREAM

Os filmes do diretor malaio sediado em Taiwan Tsai Ming-liang ocupam uma posição de

centralidade no cinema mundial contemporâneo em seu engajamento privilegiado com o

espaço urbano e a arquitetura. Esse espaço urbano, a partir Os rebeldes do deus néon

(Qingshaonian Nezha) em 1992 até Goodbye, Dragon Inn (Bu san) em 2003, incluindo

seus teledramas, é a cidade de Taipei, capital de Taiwan. O espectador fiel desta obra

singular que, construída a partir de uma teia de temas, personagens e espaços afins que se

alimentam uns dos outros de filme a filme, começará em pouco tempo a criar intimidade

com o mundo cinematográfico de Tsai. Minha própria experiência com seu cinema guiou

grande parte das minhas investigações sobre a relação entre o cinema e o espaço urbano,

já que foi através do visionamento de seus filmes que senti como se estivesse ido repetidas

vezes a Taipei, antes mesmo de ter estado lá fisicamente. Eu conhecia as avenidas, os

mercados noturnos, as ruas cheias de motocicletas, o cinema, a passarela de pedestres, um

apartamento, e vários banheiros. O cinema, como tem sido proposto, é um meio que

viaja, e minha viagem para Taipei começou com ele.

Minha flânerie imaginária através de Taipei, impulsionada pelos filmes de Tsai,

criou uma memória dessa cidade que foi transformada pela Taipei real uma vez que a

viagem física substituiu a viagem cinematográfica. Conforme observado no capítulo

anterior, essas duas dimensões de uma viagem através do espaço urbano estão presentes

em Que horas são aí?, onde, em paralelo à flânerie real por Paris empreendida por

Shiang-chyi, Hsiao Kang embarca em sua própria flânerie imaginária na frente da tela da

televisão, que o levará em uma jornada através do espaço urbano em movimento. Os

filmes de Tsai analisados nesse capítulo dão uma dimensão ainda maior do que é estar em

Taipei, visto que se ocupam das transformações que vêm assolando a cidade nas últimas

décadas, e registrando lugares e espaços que hoje não estão mais lá. Desde o início desse

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trabalho a ideia de espaço vem sendo proposta como algo dinâmico, definido acima de

tudo pela mobilidade. Partindo dessa premissa, é plausível supor que, em determinados

momentos históricos, uma determinada cidade ou cidades sofrerão com maior

intensidade do que outras do intrínseco fluxo espacial. Escrevendo na época do Segundo

Império francês e confrontado com as mudanças radicais promovidas pelo prefeito de

Paris, Georges Haussmann, que por 17 anos foi responsável por um programa de

modernização radical encomendado por Napoleão III, o poeta Charles Baudelaire

capturou a própria instabilidade do espaço urbano em seus “Tableaux Parisiens”, parte de

sua coleção de poemas Les Fleurs du mal (As Flores do Mal, 1857). Em “Le Cygne” (“O

Cisne”), por exemplo, ele escreve: “a velha Paris não é mais”, e encerra entre parênteses

“(a forma de uma cidade muda mais rápido, ai de mim! que o coração de um mortal)”

(1964, p. 107) 80

, encapsulando em apenas dois versos o impacto das transformações

espaciais no morador da cidade. Baudelaire foi o flâneur urbano par excellence,

atravessando a Paris que deixava para trás seu passado medieval e abraçava a

modernidade, com bairros antigos dando lugar a novas avenidas. Ele cantou sobre a forma

da cidade e o coração dos mortais, sugerindo como pode ser confuso e complexo lidar

com a instabilidade espacial, pois o espaço urbano está impregnado de memória e

emoções.

Nas últimas duas décadas, essa noção adquiriu um significado especial no contexto

das transformações radicais observadas em várias cidades asiáticas, que parecem estar

acontecendo com maior intensidade que em outros lugares, ou pelo menos com menos

respeito ao passado. Também é verdade que o cinema contemporâneo em diferentes

cidades em todo o mundo vem registrando esse espaço urbano instável. Um dos melhores

exemplos dessa preocupação com a cidade efêmera são os dois últimos filmes da Trilogia

de Fontainhas de Pedro Costa, No quarto da Vanda (2000) e Juventude em marcha

80

“La forme d’une ville change plus vite, hélas! que le coeur d’un mortel.”

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(2006). Na China, o trabalho de Jia Zhang-ke é talvez o mais inspirador entre inúmeros

outros dedicados à filmagem do desaparecimento e ao surgimento do novo, conforme

será analisado nesse capítulo a partir de Em busca da vida, filme que trata do ápice da

efemeridade urbana ao viajar até Feng Jie, cidade às margens do rio Yangtze na China, e

que em 2006 estava prestes a ser completamente submergida pela represa da Usina das

Três Gargantas. O cinema, com a sua capacidade de captação do real sem paralelo,

parece nos permitir ver, mais do que qualquer outra arte, a natureza dessa instabilidade,

refletindo sobre ao invés de simplesmente refletir a cidade, nos termos de Dudley Andrew

(2010, p. 39).

Eu diria que o cinema de Tsai, assim como o de Costa e Jia, contém uma

preocupação análoga com o espaço urbano efêmero, e que ele articula essas preocupações

através de uma estética original nos filmes A passarela se foi, Adeus, Dragon Inn e It’s a

dream. Esses três filmes oferecem uma reflexão sobre o espaço mutante da cidade, mas

dão um passo adiante ao aliar essa reflexão a um questionamento correlato acerca da

tensão do cinema entre a permanência e o desaparecimento. Como mencionado

anteriormente, o espaço urbano no seio das preocupações temáticas e estéticas

encontradas em muitos dos filmes de Tsai, incluindo A passarela se foi e Adeus, Dragon

Inn, é Taipei e seus arredores. A cidade foi a principal base da ocupação japonesa de

Taiwan de 1895 a 1945, antes de virar a capital da República da China sob a liderança de

Chiang Kai-shek. Com a gradual abertura política nos anos 1970 e o consequente

relaxamento da legislação urbanística, que incluiu a rescisão da proibição de construção de

novos hotéis e arranha-céus, e principalmente após o levantamento da lei marcial em

1987, Taipei sofreu uma modernização apressada com planejamento esporádico ou

inexistente. Essa modernização foi seguida de um esforço para melhorar a qualidade de

vida na cidade densamente povoada, com a construção de uma rede subterrânea de metrô

(conhecida como o Municipal Rapid Transit - MRT), grandes avenidas e parques novos,

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todos nas últimas duas décadas. Tais transformações tiveram um impacto sobre o cinema

de Tsai Ming-liang, como ele explicou em diversas entrevistas, especialmente durante os

anos 1990 e início de 2000. Aqui ele fala em 1997 com os Cahiers du Cinéma:

Taipei é uma cidade em constante mudança. E pude observar essas mudanças, de

um estágio simples e primitivo para a complexidade caótica de uma metrópole

moderna. ... Eu senti uma espécie de impotência diante dessa mudança inexorável.

A cada filme, tentei reconhecer as diferentes etapas desse processo. Gravamos All the Corners of the World [1989] antes da demolição da linha férrea que

atravessava a cidade. Esta linha férrea foi um símbolo de Taipei, e sua destruição

significou o fim do período de esplendor do tradicional centro da cidade – o bairro

dos cinemas – construído pelos japoneses. O desenvolvimento acontece agora no

oeste da cidade ... Juntamente com a linha férrea, havia fileiras de pequenas lojas

tradicionais, uma ao lado da outra, que ainda estavam lá quando filmamos Os rebeldes do deus néon, mas um dia após o término das filmagens foram todas

demolidas. Desta forma, nós gravamos outra mudança na história de Taipei. Eu

sou muito sensível à atmosfera da cidade: somos incessantemente confrontados

com as mudanças a nível visual e afetivo. (citado em Reynaud, 1997, p. 36)

Esta longa citação faz referência não só ao mesmo paralelo criado por Baudelaire entre a

forma da cidade e o coração dos mortais, mas também à forma como o cinema se

relaciona com estas mudanças, pois tem a capacidade de registrar e preservar um espaço

ameaçado de desaparecimento. A partir dessa habilidade, Tsai parece derivar uma

urgência com tons nostálgicos de filmar esse espaço instável, o que constitui uma das

principais motivações do cinema do diretor.

Um desses espaços é a área em torno da Estação Central de Taipei, onde

costumava haver uma passarela para pedestres sobre uma grande avenida. A passarela era

uma ligação entre lugares além de um lugar de passagem e de comércio, onde Shiang-Chyi

comprou o relógio de Hsiao Kang em Que horas são aí? antes de ir a Paris. Ela agora está

de volta e descobre que A passarela se foi neste filme de 25 minutos realizado em 2002,

concebido como uma coda para Que horas.... Os quatro primeiros planos do filme

revelam uma cidade coberta por superfícies que transmitem ou refletem imagens em

movimento, como o telão visto no primeiro plano, criando um efeito de mise-en-abîme,

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bem como as superfícies reflexivas em torno dos edifícios, que formam uma infinidade de

ilusões óticas e contribuem para o efeito desorientador desse espaço efêmero em Shiang-

Chyi, assim como no espectador. É apenas um pouco mais tarde que se torna claro o que

ela estava procurando, ou seja, uma maneira de atravessar a avenida, ou talvez por Hsiao

Kang. Como lembra Lim, “A passarela não apenas parte da premissa do desaparecimento

da passarela em Taipei, mas também de modo autoconsciente constrói elementos

intertextuais da trama e dos personagens de Que horas em sua própria diegese, forjando

uma continuação que se desenvolve como um serial” (2007, p. 4).81

Shiang-Chyi acaba seguindo Lu Yi-Ching e ambas cruzam a avenida em um local

proibido. A dupla é parada por um policial de trânsito que lhes dá uma multa, e que

afirma que a passarela foi substituída por uma passagem subterrânea. Ao passar para

debaixo da terra a passarela tornou-se invisível, como de fato aconteceu na Taipei real,

algo que pode ser observado pelo espectador de Que horas e A passarela. Isto coloca em

evidência o que poderia ser chamado de impulso arqueológico do cinema, derivado da

qualidade ontológica da imagem fotográfica e de sua capacidade única de preservar o real

como um documento. Portanto, diante de um espaço instável, o cinema é capaz de

preservar as diferentes camadas da realidade, tomadas em tempos diferentes, para serem

percebidas e vivenciadas por audiências futuras. O cinema pode ser visto como um

arquivo da vida, desafiando a morte através da sua capacidade única de registro de

imagens sonoras em movimento.

Outra dimensão presente neste curta-metragem refere-se a como as memórias

estão contidas em espaços, apesar de muitas vezes serem percebidas como um fenômeno

puramente temporal. Shiang-Chyi procura pelo que estava escrito em sua memória do

81

“Skywalk not only premises itself on the actual disappearance of the skywalk in Taipei, it also self-

consciously builds intratextual plot and character elements from What Time into its own diegesis, forging a

continuation that develops like a serial.”

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centro da cidade, sem sucesso. Esse é o caso de uma memória que está sendo ativado por

um espaço, um espaço alterado e marcado por uma falta. Ela dá seu cartão de

identificação para o policial e em seguida é vista em um café localizado em um edifício

alto, com vista para a travessia e a estação ferroviária, bem como para um canteiro de

obras. Ela pede café, o que desperta no espectador a memória de sua viagem a Paris, e de

como ela chegou a passar mal por beber muitas xícaras da bebida. Mas não há café,

apenas o arroz frito. Mais tarde, ela percebe que perdeu sua carteira de identidade,

voltando até o policial de trânsito para verificar se ele havia ficado com ela por engano. A

perda do cartão de identidade acentua sua própria confusão em um espaço estranho, que

não se encaixa em sua memória. Isso tem o efeito do que Freud conceituou como o

“estranho” em seu ensaio homônimo de 1919 (1976), ou para usar o termo em alemão o

unheimlich (em inglês un-homely), palavra que resume a ambivalência dessa classe de

“susto”, que contém dentro de si o familiar, escondido em algum lugar. Aqui, a cidade é

tanto familiar quanto assustadora para Shiang-Chyi, tanto heimlich quanto unheimlich, e o

espectador de A passarela se foi compartilha com ela uma experiência através da qual a

geografia do espaço urbano e sua própria geografia emocional parecem em desacordo.

Como destaca Brian Hu em “Goodbye City, Goodbye Cinema: Nostalgia in Tsai

Ming-liang’s The Skywalk is Gone”, tanto o cinema quanto a cidade são objetos de

nostalgia neste curta-metragem: “Como é vividamente demonstrado pelo telão colado em

um arranha-céu e gritando palavras de ordem para os pedestres abaixo, cidade e cinema

estão intimamente relacionados: a corrosão de um é paralela à deterioração do outro”

(2003)82

. Se a perda da carteira de identidade sugere a desorientação do personagem, ela

também simboliza a própria perda da identidade da cidade, um espaço diante do qual a

pessoa pode se sentir desorientada ou sem referências. A penúltima cena do filme, um

82

“As is vividly demonstrated by the giant television screen plastered on a skyscraper and screaming

slogans to the pedestrians below, city and cinema are closely related: the corrosion of one is paralleled by

the deterioration of the other.”

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plano-sequência em que Hsiao Kang é visto em um teste de elenco para um filme pornô,

vestido como um médico e em frente a uma câmera mini-DV, amplia essa reflexão sobre

a cidade efêmera ao incluir os modos de produção do cinema. Aqui é a vez de Hsiao

Kang perder a sua identidade colocando o uniforme de médico, e o 35 mm é substituído

pela câmera digital, sinalizando a transformação de uma certa maneira de fazer filmes, e

de uma certa qualidade da imagem cinematográfica. Ecoando o epílogo de Um gosto de

cereja (Ta’m e guilass, 1997) de Abbas Kiarostami, em que, como observa Laura Mulvey

(2006) a morte do protagonista sugere a morte do próprio cinema, e seu renascimento é

operado por meio da imagem do vídeo, Tsai arquiteta em A passarela se foi uma analogia

entre o cinema e a cidade, ou o espaço instável e a imagem instável, à beira do

desaparecimento, ou talvez de um novo começo.

O filme seguinte a A passarela se foi, realizado em 2003, recebeu o título em

português e em inglês de Adeus, Dragon Inn (Goodbye, Dragon Inn). Em mandarim foi

chamado de Bu san, que por si só significa “não deixar”, “não deixou” ou “nunca

separados”, mas que é comumente usado em conjunto com bu jian para formar a

expressão “bu jian bu san”, que significa “não vamos embora até que nos encontremos”. A

outra metade dessa frase, Bu jian, foi dirigida por Hsiao Kang no mesmo ano, com o título

em inglês The Missing. Os dois filmes foram concebidos como um projeto comum e

compartilham o tema do desaparecimento. Em Bu san, um antigo cinema localizado em

Yong He, um distrito de Taipei, está condenado. O espectador do filme de Tsai

compartilha com os espectadores do cinema Fu Ho, e em particular com um jovem rapaz

japonês que se abriga da chuva no interior da sala, sua última sessão, com o clássico de

wuxia Dragon Gate Inn (Longmen kezhan), dirigido por King Hu em 1966. A primeira

frase dita por um personagem no filme de 1966, após a sua seqüência de créditos (que

pode ser vista na primeira seqüência de Adeus, Dragon Inn), contém a frase bu san para

se referir ao espírito do general Yu, decapitado pelo eunuco rival Zhao durante disputas

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políticas travadas na China do século XV. Zhao sente a presença do espírito de Yu, que

não desapareceu (bu san), e decide matar seus filhos, em fuga desde o assassinato de seu

pai. Em Adeus, Dragon Inn Tsai brinca com a cronologia do filme de Hu, então mesmo

que o começo dos dois filmes coincida a frase bu san só aparece dezesseis minutos depois,

seguida da suspeita do jovem japonês de que o antigo teatro é assombrado por fantasmas

do passado.

Se em A passarela se foi o espaço urbano efêmero existe em paralelo às mudanças

no modo de produção do cinema, em Adeus, Dragon Inn o desaparecimento

arquitetônico da sala diz respeito às mudanças nos modos de exibição e consumo do

cinema. O Fu Ho era um dos muitos cinemas em cidades no mundo todo que durante

décadas fez parte do tecido urbano, antes de serem forçados a encerrar as atividades,

especialmente nos últimos vinte anos, incapazes de enfrentar a concorrência dos

multiplexes e dos “home theaters”. Como explica Chan, “o cinema Fu Ho representa a

época pré-vídeo, pré-multiplex, na qual os cinemas ocupavam em geral um edifício único,

com uma enorme tela para filmes Cinemascope, e com uma platéia com muitos assentos”

(Chan, 2007, p. 3)83

. O mesmo prédio havia servido como locação em Que horas são aí?,

em outra instância do que antes chamei de uma arqueologia da imagem em movimento

operando através dos vários filmes de Tsai, que registram e preservam o espaço em

desaparecimento. Neste caso particular, foi de fato um impulso urgente de documentar

um lugar específico que deu origem ao filme, pois o diretor descobriu por acaso que o

cinema estava fechando suas portas, e de um ímpeto ligou para o seu produtor, com a

idéia de alugar o prédio por seis meses e lá realizar um filme.

A escolha do filme para a última sessão, Dragon Gate Inn, não foi aleatória.

Primeiramente, o filme de Hu, realizado durante sua fase em Taiwan, pertence a um

83

“The Fu Ho Theatre represents a pre-video, pre-multiplex cinema, one that often occupies a single

building, has a huge screen for Cinemascope movies, and has a large audience sitting capacity.”

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tempo em que um filme ainda conseguia encher um cinema gigantesco tal como o Fu Ho.

Em Adeus, Dragon Inn, Tsai reúne os dois filmes – o seu e o de Hu, separados por um

lapso de tempo de 37 anos – trazendo-os para um mesmo espaço, e a partir daí eles se

desenvolvem em um diálogo constante. Isso pode ser observado, por exemplo, em duas

seqüências seminais articuladas pelo campo/contracampo. A primeira mostra Shiang-Chyi,

que interpreta a bilheteira do cinema, abrindo uma porta abaixo da tela de projeção e

olhando para ela. Na próxima cena ela vai para detrás da tela, e seu rosto é visto em

primeiro plano, banhado por pontos de luz que atravessam a tela perfurada. Ao encarar

Chu Huei, uma mulher disfarçada de homem que vem a Dragon Inn para lutar contra os

aliados do eunuco, o vínculo entre as duas personagens femininas é evidenciado através de

uma série de cortes entre os seus rostos em close-up. Nesta sequência Chu está

enfrentando o inimigo do lado de fora da estalagem, e três planos de seu rosto estático,

filmados de diferentes ângulos, antecipam a sua decisão de atacar. Shiang-Chyi também

enfrenta uma tarefa difícil, evidente nos vários lances de escada que ela tem que subir a

despeito de sua dificuldade motora (ela tem uma deficiência física), para chegar ao

projecionista, Hsiao Kang, o objeto de seu amor.

Outro exemplo que concatena através da montagem personagens de 2003 e de

1966 ocorre no final do filme. Aqui, os dois atores Chun Shih e Miao Tien, este um dos

principais atores da obra de Tsai Ming-liang no papel de pai de Hsiao Kang, emocionam-

se com suas próprias imagens em Dragon Gate Inn, que vêm de tantos anos antes,

reanimadas pelo movimento do projetor e pela luz que o atravessa. Eles trocam um olhar,

sentados como estão em fileiras separadas, e uma série de campos/contracampos alterna

entre o espaço da platéia e o duelo na tela. A seqüência termina com um plano primeiro

de Chun Shih, cujos olhos se enchem de lágrimas. Em sua admiração de seu próprio

passado, a capacidade do filme de preservar as coisas, como aconteceu com a passarela e

com a sala de cinema, vem novamente à tona, desta vez no filme de 1966 que preservou e

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imortalizou as versões jovens de Miao Tien e Chun Shih, mas não sem antes “matá-los”

em 24 quadros por segundo (Mulvey, 2006). Tsai comenta essa tensão entre a quietude e

o movimento, entre a vida e a morte, ao sugerir que “o filme pode transformar algo em

eterno. Ele preserva a juventude, mas também significa morrer. Tudo o que você filma

está também morrendo lentamente. Tudo o que você filma não está mais lá” (citado em

Reichert e Syngle, 2004)84

.

O paralelo entre os dois filmes também ocorre no uso de um espaço público

como o principal local onde se desenrolam os eventos. No filme de Hu esse local é a

estalagem, um tropo comum no gênero wuxia, no qual toda a ação está concentrada em

um só lugar. É dentro dos limites da pousada que heróis e vilões se encontram, e onde

todo tipo de intriga e trama acontecerá a portas fechadas, por meio de corredores e

passagens. O mesmo tipo de encontros casuais acontecem no cinema Fu Ho, também

composto de espaços fechados, bastidores escuros, longos e sinistros corredores, cortinas

e portas. Além disso, como salienta Wood, “os paralelos entre o cinema e a estalagem ...

já apareceram em uma cena anterior, quando vemos o personagem de Mitamura

buscando refúgio de uma tempestade dentro do cinema. Em Dragon Gate Inn dois

personagens também entram na estalagem buscando refúgio de uma tempestade” (2007,

p. 7)85

. A sala de cinema é, contudo, um prédio urbano, e o tipo de encontros que

promove também podem ser relacionados à atividade dos pedestres na cidade e a seu

aspecto contingente.

Esse tipo de sala antiga que prosperou até a década de 1970 geralmente ocupava

um único edifício, assim como um templo, convidando a uma experiência ritualística e ao

mesmo tempo privada e pública. Diferente da televisão, que pertence ao cotidiano, ao

84

“Film can keep something eternal. It saves the youthfulness, but it is also dying as well. Whatever you

film is slowly dying at the same time. Whatever you film is no longer there.” 85

“The parallels between the cinema and inn …have been drawn in a previous scene when we see

Mitamura’s character seeking refuge from a rainstorm in the cinema. In Dragon Gate Inn two characters

also come to the inn seeking refuge from a rainstorm.”

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espaço “não santificado” da sala doméstica, a sala de cinema tinha uma aura, e foi definida

por Michel Foucault em Des Espaces autres (1984) como uma das instâncias de

heterotopia, um espaço que contém todos os outros espaços. Nessa heterotopia filmada

por Tsai, a contradição inerente ao cinema entre presença e ausência, entre o espaço

virtual e os corpos condenados à circulação, é exagerada por indícios de que a sala Fu Ho

é assombrada. A luz verde que permeia o longo corredor fora da sala de projeção, e que

banha uma mulher a comer sementes de abóbora (Yang Kuei-Mei) é um desses indícios,

esta cor tendo sido utilizada como uma convenção no cinema para designar as ligações

com o mundo do além, eternizada por Alfred Hitchcock em Um corpo que cai (Vertigo,

1958) 86

. A dupla presença das versões jovens e velhas de Miao Tien e Chun Shih é outra

indicação, provocando no rapaz japonês o sentimento do “estranho” ao olhar para os

atores e se perguntar se eles estão vivos ou mortos, se são reais ou irreais. Finalmente, o

diálogo estabelecido pela primeira vez no filme aos 44 minutos e 37 segundos de projeção

começa com a frase “Você sabia que esse cinema tem fantasmas?”, a palavra “fantasma”

sendo repetida três vezes.

Tanto a dimensão assombrada do cinema quanto os elementos autobiográficos

presentes em Adeus, Dragon Inn reaparecem no sonho do diretor Tsai, que ganha vida

em seu filme de 23 minutos It’s a dream (Shi meng), de 2007. Este filme, que tem uma

versão mais curta de três minutos e 19 segundos incluída no filme de episódios Cada um

com seu cinema (Chacun son cinéma, 2007), foi realizado em outro cinema abandonado,

desta vez na Malásia, terra natal do diretor. Este filme também sinaliza uma nova

dimensão nas mudanças que afetam os modos de exibição do cinema, pois encontrou

uma espaço, não nas salas de cinema, mas no museu, tendo sido inicialmente criado como

uma instalação em 2007 para a Bienal de Veneza, e depois transferido para o Museu de

86

Em Um corpo que cai, a luz de néon verde do lado de fora do apartamento de Judy a cobre assim que ela

sai do banheiro vestida como Madeleine.

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Artes Plásticas de Taipei, como parte da exposição “Memória de uma viagem” (2010).

Significativamente, Visage, último filme de Tsai de 2009, foi uma encomenda do Museu

do Louvre na França, e também se tornou parte de sua coleção permanente. Em uma

entrevista com o Taipei Times o diretor comentou sobre o fato de o cinema estar

gradualmente encontrando novos lares, declarando que “isso soa como uma contradição,

mas os filmes precisam deixar as salas de cinema, a fim de ressuscitarem” (Buchan,

2010)87

.

Se Adeus, Dragon Inn pode ser visto como o canto do cisne das antigas grandes

salas de cinema, It’s a dream rememora a infância do diretor dentro de outra grande sala,

com assentos igualmente vermelhos, e igualmente obsoletos. Antes de entrar na instalação,

onde o filme rodado em 35 mm é projetado em formato DVD, o visitante do museu lê

um texto postado do lado de fora:

É um sonho Tsai Ming-liang

Você veio para assistir meu filme Você entrou e se sentou nos assentos vermelhos de nylon Velhos, batidos e cheios de manchas Eles vieram de um longínquo cinema fechado Arrancados, eles foram transportados até aqui Em uma cidade apagada, o cinema continua a apodrecer Aqui é onde eu realizo meu filme de 23 minutos Um sonho meu, na verdade Sonhei que eu tinha cinco anos Hsiao Kang interpretou o meu pai Minha mãe, ainda viva na época, fez o papel dela mesma. Ninguém na platéia, todos os lugares vazios Lá eu coloquei uma foto de uma avó morta, de uma família que eu não conheço

Jogando pedras e queimando incenso, pedi que ela voltasse Para interpretar a minha avó

Toda vez que ela me levava ao cinema, ela sempre me comprava algumas peras Na verdade, o cinema com que sonhei há muito foi demolido Em um lugar diferente, eu vi um cinema diferente Ele parecia estar me chamando: Filme-me! Apresse-se e venha me filmar!

88

87

“It sounds like a contradiction, but movies need to leave today’s theatres in order to be resurrected.” 88是夢

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A última frase exprime, através de seu modo imperativo e os pontos de exclamação, um

sentimento de urgência diante do desaparecimento do cinema, e a inspiração espacial está

presente na idéia de que o próprio prédio do cinema estava chamando o diretor.89

Dentro

da sala, o público se senta em assentos desgastados vindos do cinema abandonado na

Malásia, posicionados de forma não-linear. Eles são os mesmos assentos vistos no filme,

logo existe uma forte ligação espacial entre a sala de exposições e o que está sendo

projetado na tela. Mais uma vez, o filme preservou aquilo que passou, e convida o público

a embarcar em um sonho, na memória de uma viagem pela infância do diretor e através

da sala de cinema.

A ideia para essa viagem veio com a descoberta dentro da sala de cinema da foto de

uma senhora idosa, colocada sobre um dos assentos. Seu filho explicou mais tarde para

Tsai que sua mãe adorava ir ao cinema, e que por isso ele ainda a levava lá após sua morte

(Burdeau, 2007, p. 47). A foto foi assim incorporada ao filme, e tornou-se a avó do

你決定看我的電影了。

你走進來坐在紅色尼線塑料沙發席上。

它們已經陳舊破損滿是污跡

從遠方一家歇嶪已久的老戲院拆運過來的。

那家老戲院在一個沒落的鄉鎮繼續腐爛著。

我在那裡拍了這部二十三分鐘的電影。

其實是我的夢。

夢到我五歲的模樣。

小康演我的父親。

當時還在世的母親演她自己。

無人的觀眾席上安置著一張不知誰家老太太的遺照。

上香擲杯情她也來參加演出。

演我的外婆。

她每次帶我去戲院總會給我買一串梨。

其實我夢中的戲院早就被拆掉了。

我在另一個地方遇見另一家。

它好像在對我召喚﹐拍我吧﹗趕快拍我吧﹗ 89

O diretor Tsai me contou em entrevista em Taipei (2010) que realizou seu último filme, Hudie Furen /

Madame Butterfly (2009), na estação central de ônibus de Kuala Lumpur, demolida um ano depois. Ele

brincou que as pessoas estão com medo de serem filmadas por ele, já que correm também o risco de

desaparecer. Curiosamente, o curta-metragem que filmou em São Paulo para a Mostra Internacional de

Cinema (Aquário, 2004) consistiu em uma observação do Edifício São Vito, no centro da cidade, demolido

em 2010/11.

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diretor, que através da queima de incenso e do jogar das pedras é trazida de volta à vida

por Pearlly Chua. A atriz malaia entra na sala, toma um lugar e começa a comer peras

arranjadas em um espeto, oferecendo-as ao homem fumante na fileira de trás. Antes dessa

aparição fantasmagórica, Hsiao Kang, no papel de pai do diretor, tinha acendido uma

espécie de lampião no qual se queima o incenso, e compartilhado com a mãe do diretor

(interpretada por sua mãe real) e com um menino, interpretado pelo sobrinho de Hsiao

Kang, pedaços de durians, uma fruta nativa do sudeste asiático, e de cheiro característico.

Na trilha sonora, a voz off de Tsai começa a relatar esse sonho: “Eu sonhei com meu pai

ainda jovem...”.

A cena final do filme, que dura cerca de dez minutos, tem Hsiao Kang sentado ao

lado do menino, da mãe e da fotografia da avó. Muito lentamente, começamos a perceber

que seus corpos estão desaparecendo de dentro do cinema. Juntas, suas imagens se

tornam cada vez mais granuladas, até que desaparecem por completo, deixando os lugares

vazios. Um deles, entretanto, não desaparece, e aqui se pode remeter ao ensaio seminal

“A Ontologia da imagem fotográfica” de André Bazin, no qual ele discorre sobre o

charme dos álbuns de família:

Aquelas sombras cinzas ou sépias, fantasmagóricas e quase indecifráveis, não são mais

os tradicionais retratos de família mas sim a presença perturbadora da vida

interrompida num determinado momento de sua duração, livre de seu destino, não

pelo prestígio da arte, mas pelo poder de um processo mecânico impassível; pois a

fotografia não cria a eternidade como a arte, ela embalsama o tempo, resgatando-o

simplesmente de sua própria corrupção. (2002, p. 14)90

Assim, em It’s a Dream, desaparecem o pai, a mãe e o menino Tsai, mas fica a fotografia

da avó desconhecida, “livre de seu destino”. Esse passado persistente, embalsamado na

90

“Ces ombres grises ou sépia, fantomatiques, presque illisibles, ce ne sont plus les traditionnels portraits

de famille, c’est la présence troublante de vies arrêtées dans leur durée, libérées de leurs destin, non par les

prestiges de l’art, mais par la vertu d’une mécanique impassible; car la photographie ne crée pas, comme

l’art, de l’éternité, elle embaume le temps, elle le soustrait seulement à sa propre corruption.

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imagem fotográfica, sobrevive ao desaparecimento dos outros corpos, assim como o

cinema é capaz de preservar os vestígios do tecido urbano em constante mutação.

NOSTALGIA, CINEFILIA, FLÂNERIE E A CIDADE

Uma característica comum entre esses três filmes é a presença de versões completas de

antigas canções chinesas das décadas de 1940, 1960 e 1970. A passarela se foi traz “Nan

Ping Wan Zhong”, cantada por Chui Ping na década de 1970, que toca sobre as imagens

finais do céu azul, como uma lembrança daquela passarela91

que não está mais lá. A letra

da música em primeira pessoa relata a história de alguém que está perdido na floresta,

procurando por outro alguém, e que ao escutar o sino da noite sente saudades de um ente

querido. Adeus, Dragon Inn traz a canção “Liu Lian”, que toca durante os créditos na

versão de Li Yao dos anos 1960. Mais uma vez a letra se refere a um sentimento de

nostalgia, falando da incapacidade de deixar para trás as memórias do passado.

Finalmente, a canção “Shi Meng Shi Zhen”, cantada por Kung Chiu Hsiao nos anos 1940,

é tocada em It’s a dream. Seu título significa “isso é um sonho ou realidade?”, e a primeira

metade do mesmo coincide com o título do filme (Shi meng).

O uso de canções antigas complementa os subtextos nostálgicos desses filmes

sobre a transformação e o desaparecimento, no momento em que os modos de produção

e exibição do cinema estão mudando inexoravelmente com o advento da tecnologia digital

e a muito discutida perda da indexicalidade e a morte da cinefilia (Willemen, 1994;

Doane, 2002). Se for possível pensar que o traço indexical da imagem fotográfica pode

ainda persistir na imagem digital, parece inevitável que a forma de cinefilia associada ao

filme em película tenda realmente a desaparecer ou a se transformar em outra coisa. Aqui,

Adeus, Dragon Inn e It’s a dream são especialmente reveladores pelo fato de articularem

91

Passarela de pedestres em chinês é Tian Qiao天桥,cuja tradução literal é “ponte celeste”.

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elementos tais como o desaparecimento arquitetônico das salas de cinema, a transferência

para uma nova casa no museu, as mudanças no tecido urbano e na forma de consumir e

amar o cinema. Pois a cinefilia é essencialmente um fenômeno urbano, e o cinéfilo habita

as salas de cinema, bem como se movimenta entre elas, passando de uma a outra através

da cidade. Como aponta Thierry Jousse, o cinéfilo é como um flâneur, um pedestre que

passeia pela cidade e suas salas de cinema, que são por sua vez um lugar urbano de

encontros. Se esses edifícios desaparecem, os cinéfilos urbanos também tendem a

desaparecer, pois o amor ao cinema, desde o advento do VHS na década de 1980 e com

mais intensidade com o DVD, torna-se cada vez mais um assunto doméstico. Os filmes do

diretor Tsai refletem sobre essas mudanças com melancolia e beleza, unindo cinema e

cidade, presença e ausência, permanência e desaparecimento, representação e

materialidade, assim como a vida e a morte, mas também a ressurreição.

Observação: a segunda parte desse capítulo sobre Em busca da vida e 100 Flowers

Hidden Deep não foi incluída nesse relatório por ainda necessitar de algumas revisões.

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CAPÍTULO V: SOBRE CINEMAS E JARDINS

Filmes: O mundo (Shijie, Jia Zhang-ke, 2004), Cry me a river92 (Heshang de aiqing, Jia

Zhang-ke, 2008), Antes do pôr-do-sol (Before sunset, Richard Linklater, 2004)

Cidades: Pequim, Suzhou, Paris

No primeiro capítulo foi sugerido que a qualidade itinerante do diretor Jia Zhang-ke

parecia impregnar o impulso motriz de seus personagens. Em Xiao Wu, a trajetória

narrativa se confundia com as an-danças do batedor de carteiras, que erra pela cidade de

Fenyang durante todo o filme. Em busca da vida, conforme observado no quarto capítulo,

aponta a câmera e o microfone para os migrantes internos da chamada “geração

flutuante”, que viajam de províncias distantes para a região das Três Gargantas em busca

de trabalho. Observações similares poderiam ser feitas acerca de seus outros filmes, que

lançam um olhar crítico sobre a China e suas transformações. Em sua introdução ao livro

The Urban Generation: Chinese Cinema and Society at the Turn of the Twenty-first

Century, Zhang Zhen relaciona as próprias migrações de Jia às de seus personagens

através de um prisma sociológico: “A experiência em primeira mão de Jia (oposta ao

trabalho de campo etnográfico) como um sujeito urbano migrante ... o obrigou a colocar o

‘migrante-artesão’ no centro de seu cinema. Por essa razão Jia tem sido chamado, com

admiração, de ‘diretor migrante’ (mingong daoyan)” (2007, p. 16).93

92

O nome do filme está em inglês pois não recebeu título em português. A tradução literal é “o amor do

rio”. 93

“Jia’s firsthand experience (as opposed to ethnographic ‘fieldwork’) as a migrant urban subject … have

compelled him to place the ‘migrant-artisan’ at the center stage of his cinema. As a result Jia has been

called, admiringly, the ‘migrant-worker director’ (mingong daoyan).”

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Essa característica do diretor também parece definir a mobilidade de seu estilo

cinematográfico. Em uma demonstração irrefutável da ligação orgânica entre forma e

conteúdo, seus filmes articulam a tensão entre mobilidade e imobilidade, tempo e espaço,

velho e novo, passado e futuro, e ainda permanecem firmemente enraizados no solo da

China contemporânea. Antony Fiant articula essa questão sob a forma de um duplo

questionamento, dedicado tanto à China quanto ao próprio cinema (2009, p. 14). Esse

duplo questionamento abarca tantas questões relativas à teoria do cinema contemporâneo

que não é de estranhar o elevado nível de atenção que a obra de Jia Zhang-ke vem

recebendo nos últimos anos. Inspirando-se em seu mestre Hou Hsiao-hsien, cujo Os

garotos de Fengkuei (Feng Gui Laide Ren, 1983) recebeu citações visuais em Em busca da

vida e O mundo (versão chinesa), bem como em Robert Bresson, Vittorio De Sica,

Yasujiro Ozu, Chen Kaige, entre tantos outros, Jia parece, no entanto, ser o diretor do

momento, realizando filmes que funcionam como um diagnóstico dos nossos tempos. Ele

também é o diretor mais importante de toda uma geração a surgir na década de 1990 na

China continental, a “geração independente urbana”, assim chamada por seu

envolvimento privilegiado com o espaço urbano real e com preocupações urbanas,

trabalhando, como aponta Zhang Zhen, tanto dentro como fora do sistema de estúdios

(2007, p. 1). Seu nome também foi ligado à Sexta Geração do cinema chinês, cujos filmes

urbanos do início dos anos 1990 contrastavam com a grandiosidade épica do cinema de

paisagem da Quinta Geração, de Zhang Yimou e Chen Kaige.94

Neste capítulo, proponho uma análise dos filmes O mundo e Cry me a river a

partir do ponto de vista de suas práticas espaciais, levando a uma reflexão acerca da

impureza do cinema através de sua afinidade com a arquitetura e, mais especificamente,

94

Zhang Zhen contesta a inclusão de Jia Zhang-ke na Sexta Geração do cinema chinês: “o aparecimento

no final dos anos 1990 de Jia Zhangke e seus filmes Xiao Shan Going Home (1995), Xiao Wu (1997) e

Plataforma (2000) inaugurou uma fase nova no movimento independente que efetivamente pois fim à era

da Sexta Geração”. “The appearance in the late 1990s of Jia Zhangke and his films Xiao Shan Going Home

(1995), Xiao Wu (1997), and Platform (2000) inaugurated a different phase in the independent movement

that effectively ended the era of the Sixth Generation’ (2007, p. 15).

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com a arquitetura de jardins chinesa. Esses dois filmes se passam em jardins ou espaços

análogos dentro das cidades, tais como o parque “O Mundo” de Pequim (O mundo) e a

cidade-jardim de Suzhou, um dos principais destinos turísticos da China, listada como

Patrimônio Mundial da Humanidade pela UNESCO (Cry me a river). Ambos promovem

uma forma de prática espacial semelhante a aquela proposta por um jardim chinês, onde

o deslocamento através do espaço cria uma sucessão de vistas e uma série de emoções no

visitante/turista/espectador, ou em outras palavras onde uma paisagem interna é definida

pelo movimento através de uma paisagem externa construída. Partindo da premissa de

que a experiência cinematográfica promove uma viagem háptica através de espaços,

procuro enxergar O mundo e Cry me a river como práticas espaciais, que partem de um

espaço real e resultam em um novo, o espaço fílmico, tecido a partir de vistas e sons de

jardins em movimento, e através do qual os personagens – e os espectadores – viajam e

sentem. Primeiramente caberá abordar O mundo sob o ponto de vista de sua organização

espacial e sua relação com dois jardins imperiais chineses, construídos durantes a dinastia

Qing. Isso leva a considerações acerca da relação entre os jardins e a História da China,

antiga e recente. Em seguida, a análise de Cry me a river é estruturada a partir da

interconexão com o filme Antes do pôr-do-sol do diretor americano Richard Linklater, e

promove a análise do deslocamento através do jardim (e através das cidades de Suzhou e

Paris) sob o ponto de vista da memória subjetiva, que emerge através desse movimento.

CINEMA, ARQUITETURA, JARDINS

Conforme observa Giuliana Bruno, o diretor e teórico russo Sergei Eisenstein já chamava

a atenção na década de 1930 para o aparente paradoxo da imobilidade do espectador do

cinema, que ao se sentar em uma sala diante da tela era submetido a diferentes fragmentos

do espaço real em movimento, filmados de diferentes ângulos e unidos na montagem.

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Tais observações aparecem no ensaio de Eisenstein “Montagem e Arquitetura” (2010

[1938]), no qual ele estabelece um paralelo entre o espectador imóvel do cinema diante da

mobilidade do filme, e o espectador móvel da arquitetura diante da imobilidade do lugar

ou do prédio construído. Diz Eisenstein:

A pintura não foi capaz de fixar a representação total de um fenômeno em sua

visualidade multidimensional. Apenas a câmera cinematográfica resolveu o

problema de trazer isso para a superfície plana, mas seu indubitável ancestral é ... a

arquitetura. (2010, p. 60)95

Para Eisenstein, há entre o espectador do cinema e o consumidor do espaço arquitetônico

uma experiência homóloga, visto que ambos embarcam em uma viagem através de

espaços. Assim, Eisenstein parece já apontar em seu ensaio para a dimensão móvel

presente na aparente imobilidade do olhar do espectador fílmico, aproximando o cinema

da arquitetura pelo viés da viagem espacial. Uma crítica ao modelo espectatorial de

inspiração Lacaniana avant la lettre.

Falar de uma função visual dotada de movimento está em consonância com o

entendimento dinâmico de espaço. Pode-se olhar um mapa, uma representação espacial,

mas um espaço apenas passa a existir no momento em que é atravessado, praticado

(Lefebvre, 1991; De Certeau, 2007). Assim, no cinema, deve-se entender o espaço não

como uma representação estática, mas como algo móvel, em constante produção, e o

olhar do espectador como dotado de mobilidade, um olhar que viaja. A idéia da prática

espacial talvez encontre seu mais perfeito exemplo no caminhar de um indivíduo através

de um prédio, um sítio arquitetônico, um jardim, um parque, uma cidade. Eisenstein de

fato tece suas considerações a partir de caminhadas através da Acrópole em Atenas, um

sítio arquitetônico concebido para ser visto de diferentes ângulos e explorado através do

95

“Painting has remained incapable of fixing the total representation of a phenomenon in its full visual

multi-dimensionality. Only the film camera has solved the problem of doing this on a flat surface, but its

undoubted ancestor in this capability is … architecture.”

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andar. Pode-se vislumbrar a Acrópoles à distância, mas é apenas ao percorrê-la a pé que o

indivíduo constrói sentidos. Para o diretor russo,

os gregos nos deixaram os mais perfeitos exemplos de tipos de planos, das

transições entre planos e de sua duração (por exemplo a duração de uma

impressão específica). Victor Hugo chamou as catedrais medievais de ‘livros de

pedra’. A Acrópole de Atenas também poderia ser considerada um perfeito

exemplo de um dos filmes mais antigos. (2010, p. 60)96

Essa observação de Eisenstein pode ser estendida para a arquitetura de paisagens de um

modo geral, através da qual espaços são criados de modo a serem experimentados através

do movimento, da passagem.

Giuliana Bruno nota como a partir do século XVIII a idéia do movimento tornou-

se mais diretamente associada com a emoção a partir das teorias sobre a arte da

jardinagem ocidental, e como o jardim se tornou um “lócus privilegiado nessa busca por

um espaço emotivo”:

Um teatro da memória dos prazeres sensuais, o jardim era um exterior que

colocava o espectador em contato com o espaço interior. Ao se mover através do

espaço do jardim, um constante movimento duplo conectava as topografias

externas e internas. O jardim era, portanto, um exterior transformado em interior,

mas era também a projeção de um mundo interior na geografia exterior. Em uma

mobilização sensual, o exterior da paisagem foi transformado em um mapa do

interior - a paisagem dentro de nós – assim como este mapa interno foi

culturalmente mobilizado. (2007b, p. 24-5)97

96

“The Greeks have left us the most perfect examples of shot design, change of shot and shot length (i.e.

the duration of a particular impression). Victor Hugo called the medieval cathedrals ‘books in stone’. The

Acropolis of Athens could just as well be called the perfect example of one of the most ancient films.” 97

“A memory theater of sensual pleasures, the garden was an exterior that put the spectator in touch with

inner space. As one moved through the space of the garden, a constant double movement connected

external to internal topographies. The garden was thus an outside turned into an inside, but it was also the

projection of an inner world onto the outer geography. In a sensuous mobilization, the exterior of the

landscape was transformed into an interior map – the landscape within us – as this inner map was itself

culturally mobilized.”

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Minha intenção é analisar como os jardins clássicos chineses das Dinastias Ming e Qing

são estruturados de uma maneira que também os configura como uma experiência pré-

cinematográfica, e como a obra de Jia Zhang-ke herda essa experiência espacial específica

em seu ímpeto motriz, atravessando jardins em O mundo e Cry me a river.

Existem inúmeros tipos de jardins chineses, variando geografica e temporalmente,

mas eles compartilham algumas características básicas que serão aqui esboçadas. Os mais

antigos registros sobre técnicas paisagísticas datam da Antiguidade chinesa, época da

Dinastia Shang (1600 - 1046 aC), mas como explica Lou Qingxi foi durante as Dinastias

Qin e Han (221 aC - 220 dC) que a prática mais específica da arquitetura de jardins se

originou, consolidando-se durante as Dinastias Wei, Jin (220-420 dC) e Tang (618-907

dC). Durante a Dinastia Song (960-1279 dC) a arquitetura de jardins passou a ser

considerada como uma forma de arte, finalmente atingindo seu apogeu durante as

dinastias Ming (1368-1644) e Qing (1644-1911), aliada a importantes evoluções na arte da

pintura. Foi também durante a dinastia Ming que apareceram os primeiros tratados sobre

a teoria da jardinagem (Lou, 2003).

A arquitetura de jardins chinesa é conceitual: as montanhas, lagos, plantas e

construções - e os espaços formados entre eles - criam não somente um ambiente natural

e construído como também uma atmosfera espiritual. Os dois principais elementos da

pintura de paisagem e da arquitetura paisagística chinesas, a Montanha (Shan 山) e a Água

(Shui 水), referem-se, segundo a tradição confucionista, às características de benevolência

humana e conhecimento. Portanto, construir montanhas e lagos em um jardim é aspirar a

essas características. Diferentes plantas, tais como a flor de lótus e os pinheiros, a

ameixeira e o bambu, também estão carregados de valor simbólico e ocupam um lugar

especial em jardins chineses. Os arquitetos, então, buscam tanto o simbólico quanto o

pitoresco ao construírem lagos, montanhas, ruas, avenidas e pavilhões. Levam também em

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conta os dois modos diferentes de apreciação de um jardim chinês: o modo estático e o

modo dinâmico (Lou, 2003, p. 125). Para o primeiro, há uma série de edifícios

estrategicamente localizados de onde é possível admirar uma parte ou todo o jardim,

permitindo ao visitante uma pausa para sentar e admirar a vista. O modo dinâmico, que é

o predominante, segue rotas que podem ser sinuosas – indo para cima e para baixo, de

um prédio a outro, da montanha para o lago, através de corredores e janelas que

emolduram a vista. Ao se deslocar pelo jardim, diferentes paisagens se desenrolam para o

visitante como em uma pintura de rolo. Laikwan Pang explica:

Assim como a experiência de leitura da pintura tradicional chinesa está

condicionada pelos movimentos dos olhos daquele que a aprecia, o movimento no

espaço é também essencial para a estética dos jardins tradicionais chineses. Um

dos princípios fundamentais dessa estética é a orquestração de imagens em

constante mutação, criada pelo sujeito que anda. (2006, p. 6)98

Esse passeio arquitetônico, que põe em movimento uma série de vistas pitorescas, é

complementado pelos sons de pássaros, pelo cheiro das flores, pelas folhas que tocam a

pele, pelos diferentes tipos de pavimento pensados a partir da produção de um prazer

tátil, todos combinados em uma sinestesia intensa, na qual o movimento do corpo e o

movimento da mente funcionam de modo imbricado.

A relação entre a arquitetura de jardins chinesa e o cinema ganha novos contornos

no cenário do primeiro cinema chinês, como explica Laikwan Pang em seu artigo

“Walking into and out of the Spectacle: China’s Earliest Film Scene” (2006). Segundo

Pang, a pesquisa de historiadores do cinema chinês revela como as mais antigas sessões de

cinema em cidades chinesas eram realizadas em uma variedade de lugares, incluindo

jardins públicos, e mais comumente no interior de casas de chá localizadas dentro de

98

“Just as the experience of reading traditional Chinese paintings is conditioned by the movements of the

viewers’ eyes, movement in space is also essential to the aesthetics of traditional Chinese gardens. A core

aesthetic principle of the Chinese garden is the orchestration of constantly changing images created by the

walking subject.”

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jardins. Pang investiga como esse espaço público influenciou e foi influenciado pelo

cinema (2006, p. 3), e como o movimento real do sujeito que caminha foi gradualmente

substituído pelo movimento imaginário:

Como se para acompanhar a velocidade acelerada da vida capitalista, a nova

experiência do jardim teve que pegar ritmo, mas conseguiu isso ao substituir o

movimento corporal por várias formas de entretenimento visual, inclusive filmes.

Andar passou a funcionar apenas como uma ligação entre um ponto e outro; os

visitantes eram incentivados a postar-se dentro dos limites de um auditório, em vez

de caminhar ao redor do parque, para experimentar este novo sentimento de

“liberdade”. (2006, p. 6)99

As mudanças na experiência do jardim na China no início do século XX ocorriam em

consonância com outras atividades modernas, tais como as viagens de trem e a

intensificação da velocidade da vida urbana, e assim passaram a integrar uma cultura visual

aliada a um novo conceito de “movimento”. É interessante notar então como a antiga arte

da arquitetura de jardins chinesa e a nascente arte do cinema se cruzaram nos primeiros

anos do século XX, como em uma confirmação da afinidade entre o que venho

estabelecendo como uma experiência pré-cinematográfica chinesa e a imagem em

movimento. Essa afinidade entre o jardim e o cinema está presente no primeiro filme

oficial de Jia Zhang-ke, co-produzido pela Shanghai Film Studio e aprovado para

lançamento comercial na China em 2004: O mundo.

99

“As if to catch up with the accelerated speed of capitalist life, the new garden experience had to pick up

the pace, but it achieved this by replacing bodily movement with various forms of visual entertainment,

including motion pictures. Walking only functioned as a connection between one spot and another; visitors

were encouraged to station themselves within the confines of an auditorium, instead of walking around the

park, to experience this new sense of ‘freedom’.”

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O MUNDO: JARDINS E HISTÓRIA

Jason McGrath nota que, apesar do risco de que o primeiro filme do diretor aprovado

pelo governo teria sofrido com a censura interna, “a coerência temática entre O mundo e

o trabalho ‘independente’ de Jia em grande parte exonerou o diretor da acusação de haver

comprometido a sua visão” (2007 , p. 107)100

. Deve-se notar, contudo, que o filme possui

duas versões diferentes, uma chinesa (de 100 minutos) e uma internacional (de 140

minutos). A versão mais curta, linear e eficiente de O mundo foi uma tentativa intencional,

embora sem sucesso, de alcançar um público maior na China. Os comentários a seguir

referem-se às duas versões, a não ser que estejam indicados ao contrário. O mundo é o

segundo longa-metragem de Jia totalmente rodado em digital (após Prazeres

desconhecidos) pelo seu colaborador de longa data Yu Lik-wai. O diretor relata ter levado

Yu para visitar o Parque “O Mundo” de Pequim durante a prospecção de locações, e o

efeito dessa visita nas escolhas técnicas e estéticas para o filme:

No início do projeto, levei meu diretor de fotografia Yu Lik-wai para visitar o

parque; ele nunca havia estado lá. No fim da primeira meia-hora, se tornou claro

para nós que o filme seria rodado em HD e em Scope, com uma trilha sonora

eletrônica. Quanto mais o tempo passa, mas estou convencido de que o digital é o

formato do momento. Tenho muita confiança nesse formato, é a ferramenta mais

eficaz para mostrar a realidade contemporânea. (Jia, 2005, p. 34)101

O filme, estruturado a partir de quadros com o uso de intertítulos, é complementado por

seqüências de animação flash motivadas por mensagens de texto trocadas com freqüência

100

“The thematic consistency between The World and Jia’s “independent” works has largely exonerated

the director of the charge of compromising his vision.” 101

“Au début du projet, j’ai emmené mon chef opérateur Yu Lik-wai dans le parc; il n’en avait jamais

visité. Au bout d’une demi-heure, il s’est imposé à nous que le film serait en HD et en Scope, avec de la

musique électronique. Plus ça va, plus je trouve que le numérique convient à l’époque. J’ai une grande

confiance dans ce format, c’est l’outil le plus efficace pour montrer la réalité contemporaine.”

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pelos personagens. O diretor comenta mais uma vez a criação de um “ambiente digital”

no filme:

Formalmente, eu tentei criar um ambiente digital em todos os níveis: HD,

animação em flash, SMS, música eletrônica, etc. Do ponto de vista da narrativa

quis criar uma estrutura em rede. Em vez de seguir um personagem de uma forma

linear, decidi seguir vários personagens, navegar de um para o outro, do tempo de

um para o tempo do outro, exatamente como fazemos online. (Jia, 2005, p. 34)102

Os personagens seguidos por Jia são os trabalhadores do parque Zhao Tao (Zhao

Tao, musa do diretor desde Plataforma), seu namorado Chen Taisheng (Chen Taisheng),

Erxiao (Ji Shuai), Wei (Jing Jue), Niu (Jiang Zhongwei), Anna (Alla Chtcherbarkova),

assim como Qun (Wang Yiqun), dona de uma fábrica de roupas, e os amigos de infância

de Chen, Sanlai (Wang Hongwei) e Zhijung Chen, apelidado Erguniang, que vieram de

Fenyang a Pequim para trabalhar na construção civil. Como declarou o diretor, O mundo

se desdobra como uma teia, sugerindo uma multiplicidade de trajetórias no espaço do

parque. Além da referência explícita à Internet como uma influência formal e narrativa,

pretendo abordar a prática espacial do filme a partir do ponto de vista de sua afinidade

com a experiência do jardim, cuja multiplicidade de trajetórias também parece configurar

uma teia, formada por caminhos, avenidas, ruas e pontes. O fato de que o filme foi

rodado quase inteiramente dentro do parque “O Mundo” de Pequim (Beijing Shijie

Gongyuan 北京世界公园)– a palavra chinesa gongyuan significa tanto parque quanto

jardim público), localizado na periferia da capital e onde um grande número de migrantes

e imigrantes vive e trabalha,103

informa minha opção por essa abordagem, tanto no plano

102

“Formellement, j’ai tenté de créer une ambiance digitale à tous les niveaux: le HD, les animations flash,

les SMS, la musique électronique, etc. Du point de vue du récit, je voulais une narration en réseau. Au lieu

de suivre un personnage dans un récit linéaire, je voulais suivre une foule de personnages et naviguer de

l’un à l’autre, du temps de l’un au temps de l’autre, comme on le fait sur Internet.” 103

Outro parque similar, chamado “Janela para o Mundo” ( localizado em Shenzhen) foi também utilizado

como locação durante as filmagens de O mundo.

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formal quanto sob o ponto de vista da História, conforme será observado no final dessa

parte do capítulo.

Que tipo de espaço é, então, o parque “O Mundo”? Um sinal de néon

vislumbrado em algum ponto do filme resume a sua promessa ousada: “Dê-nos um dia e

lhe mostraremos o mundo”. O parque é de fato uma espécie de Epcot Center, mas

enquanto o seu homólogo americano possui pavilhões de 11 países, o parque chinês

possui impressionantes 106 reproduções de monumentos famosos dos cinco continentes,

em escala reduzida para 1/3 de seu tamanho real. Lá, o turista pode passear pelo Taj

Mahal, o Big Ben, a Torre Eiffel, a Torre de Pisa, as Torres Gêmeas, bem como

diferentes jardins adornados por reproduções de esculturas famosas. A fim de ver esse

estranho cemitério de tesouros da humanidade, o visitante pode tomar um monotrilho,

incorporado por Jia em seu filme de modo a atravessar o parque de pavilhão a pavilhão.

Zhao, por exemplo, é vista dentro do monotrilho em três seqüências, viajando de país

para país e falando em seu celular. Na primeira dessas sequências, ela está vestida com um

traje indiano, o mesmo que usou no espetáculo de dança que abre o filme. A gravação de

boas-vindas do monotrilho pode ser escutado na trilha sonora, enquanto a Torre Eiffel

passa pela janela. Zhao, em seguida, atende ao telefone e diz que está a caminho da Índia,

reforçando a noção de um mundo ao seu alcance. Um plano exterior, então, revela o

monotrilho passando da esquerda para a direita, e Zhao acenando para Erxiao da janela,

seguido de um movimento de câmera para baixo que revela um grupo de seguranças

carregando bujões de água e atravessando o deserto do Saara, com as pirâmides egípcias

ao fundo. O website do parque (se bem que incorreto104

) e a frase “Veja o mundo sem sair

de Pequim” são, então, sobrepostos à imagem das pirâmides, e um corte final revela o

parque visto à distância, com um grande lago ocupando a maior parte do quadro. O nome

do diretor e o título do filme se sobrepõem a essa imagem.

104

The correct website is www.beijingworldpark.com.cn and not www.worldpark.com

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Nessa sequência, é possível observar o tipo de organização espacial empregado por

Jia ao longo do filme: a sucessão de planos passa da perspectiva a partir do deslocamento

do monotrilho, erguido acima do solo, para a perspectiva de Erxiao e dos outros

trabalhadores que atravessam o deserto ao nível do chão, e finalmente para um plano

geral do parque. O monotrilho, que como explica a gravação circunda o parque em

quinze minutos, é visto diversas outras vezes em planos gerais, viajando a distância de país

a país. A presença desse dispositivo como um caminho de orientação através do

parque/jardim, complementado pelas gravações que reforçam a natureza turística do

passeio, remete à estrutura peculiar do “corredor”, presente em diversos jardins chineses.

Há vários tipos de corredores – também conhecidos por “passeios”, tais como o corredor

coberto, a galeria em zig-zag, o corredor interno e externo, o corredor-escada e o corredor

semi-aberto. Sua função principal é interligar os edifícios do jardim, separando ambientes

e acentuando o cenário ao proporcionar diferentes perspectivas para o visitante. O mais

longo corredor em um jardim chinês pode ser encontrado no Palácio de Verão (Yihe

Yuan, 颐和园), um dos maiores exemplos da arquitetura chinesa de jardins, localizado

nos arredores de Pequim. Sua construção começou em 1750 por ordem do Imperador

Qianlong (1735-1799), um grande patrono das artes, e continuou durante toda a dinastia

Qing, sendo reavivado depois de sua destruição pelas tropas anglo-francesas no século

XIX pela Imperatriz Cixi. O jardim ocupa mais de 700 hectares, dos quais pelo menos

500 estão debaixo d'água, e há cerca de 3000 edifícios cuidadosamente distribuídos por

toda a sua extensão. O Palácio de Verão é um espaço aberto que oferece uma série de

possíveis trajetórias através de praças, pavilhões, templos, montanhas e pontes. A Torre da

Fragrância de Buda, por exemplo, está posicionada no ponto mais alto do jardim, de

modo a oferecer uma visão privilegiada de toda a sua impressionante extensão.

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De modo a organizar e guiar a multiplicidade de trajetórias possíveis dentro do

jardim, o Palácio de Verão é entrecortado por um extraordinário “corredor coberto” de

728 metros de comprimento (Cháng Láng,长廊), que lembra um gigantesco caramanchão,

criando avenidas de passagem que interligam os diferentes pavilhões, prédios e templos.

Na sua parte central o corredor se espraia em quatro pavilhões octogonais, que

simbolizam as quatro estações do ano, incorporando uma dimensão temporal a essa

estrutura arquitetônica. Aqui, o espectador móvel da arquitetura aproxima-se do

espectador imóvel do cinema ao tornar-se também um viajante, percorrendo o espaço que

se dá a ver. Mas o longo corredor do Palácio de Verão se presta ainda mais ao paralelo

com a experiência cinematográfica, visto que suas vigas e seu teto são adornados de ponta

a ponta por mais de 14.000 imagens, pintadas no interior de semicírculos e em diferentes

níveis, o que reforça a impressão de profundidade. Algumas delas são reproduções de

paisagens do sul da China, pintadas por um grupo de artistas que viajaram pelo país sob

encomenda do Imperador Qianlong, com o intuito de trazer à Pequim vistas de lugares

distantes. Outras são imagens de flores, peixes e aves. Por fim, há uma série de lendas,

contos populares e romances clássicos chineses que se dão a ler ao visitante que atravessa

o corredor. A imobilidade de cada um dos quadros ganha mobilidade através do

movimento do “espectador”, e assim como no cinema é a soma de imagens fixas que

anima a narrativa. Mas a montagem aqui não se dá no movimento do corte e do projetor,

e sim através do movimento do próprio corpo, que segue os quadros e aos poucos

constrói uma ou várias histórias.

No parque “O Mundo”, o monotrilho funciona como uma espécie de corredor,

guiando os visitantes através do espaço, fazendo a ligação entre os pavilhões e abrindo

uma miríade de pontos de vista. Jia transforma esse dispositivo em parte integrante de sua

prática espacial, contribuindo para a profusão de pontos de vista empregada no filme.

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Outro dispositivo explorado pelo diretor em três seqüências é o elevador dentro da Torre

Eiffel chinesa. Na primeira delas, Chen, um segurança de plantão, toma o elevador para o

piso superior. A seqüência explora o ponto de vista vantajoso oferecido pela torre ao

passar de Chen para uma panorâmica do parque visto de cima da torre, e lá ficar por

alguns segundos. Dentro do elevador outra gravação informa a altura exata da Torre: 108

metros. Em uma seqüência posterior Zhao pega o mesmo elevador, onde a ubíqua

gravação sugere: “Esperamos que esta visão panorâmica possa aumentar o seu

conhecimento do mundo”. Além de subir na torre e viajar no monotrilho, o diretor com

frequência desce ao nível do chão para seguir grupos de visitantes que caminham, tiram

fotos e desfrutam esse mundo um pouco fora de escala, além dos próprios funcionários

do parque. Assim, Jia alterna durante todo o filme entre planos vistos da altura do chão

para pontos de vista vantajosos, entre planos estáticos e planos em movimento, assumindo

ao mesmo tempo as posições de voyeur e voyageur em relação ao espaço.

Além do monotrilho, outros veículos em movimento, tais como carros e ônibus,

são empregados por Jia a fim de desvelar o parque a partir de diferentes pontos de vista. A

profusão de veículos em O mundo está diretamente relacionada a um dos principais

temas do filme: a dicotomia entre a mobilidade e a imobilidade, simbolizada pelo desejo

de conter o mundo em um só espaço, e pelo sonho oposto de atravessar fronteiras. Há

referências recorrentes a passaportes no filme, mas enquanto alguns possuem um e

conseguem viajar para o exterior (o ex-namorado de Zhao pega um trem para a Mongólia,

o pedido de visto francês de Qun é aprovado, e Anna cumpre seu sonho de ir para a Ulan

Bator), outros nunca viram um passaporte em todas as suas vidas. Logo, não há presença

mais simbólica no filme do que a do avião, que aparece em duas seqüências cruciais. Na

primeira delas, Zhao, vestida como uma aeromoça, beija Chen dentro de um avião

estático, uma das atrações do parque que visa, como explica mais uma vez a gravação,

reproduzir a experiência e a “profunda beleza das viagens aéreas”. A aeronave, que “antes

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de se aposentar ligou a China ao resto do mundo por um longo período de tempo”, foi

preservada na sua aparência original, estando agora firmemente ancorada no solo. O

parque, portanto, não apenas contém o mundo, como também reproduz a experiência da

mobilidade, tornando desnecessária a viagem real. O uso de veículos imóveis é recorrente

no cinema de Jia, o que Michael Berry chama de uma “estratégia de estagnação” (2009, p.

116)105

. Em Prazeres desconhecidos, por exemplo, Qiaoqiao (Zhao Tao) encontra pela

primeira vez Xiao Ji (Wu Qiong) dentro de um veículo quebrado, estacionado em uma

rua movimentada. Curiosamente, o avião no parque “O Mundo” também remete a outros

veículos parados, tais como um deslumbrante barco de mármore estacionado no lago do

Palácio de Verão, e o avião visto na cidade de Snizhne em Import/export. A

incongruência da manutenção de um avião defunto, incapaz de voar, aparece nesses dois

filmes como o mais perfeito signo visual da dicotomia entre a mobilidade e a imobilidade

que permeia a vida de seus personagens.

Essa tensão também se faz sentir na segunda seqüência do filme envolvendo um

avião, desta vez um que voa. Zhao e Erguniang encontram-se em um vasto canteiro de

obras, no topo de um arranha-céu inacabado, uma espécie de jardim de concreto armado

e cabos de ferro. Em um dado momento um avião cruza o céu, e eles trocam o seguinte

diálogo:

Zhao: - Quem será que voa em aviões?

Erguniang: - Eu não conheço ninguém que tenha estado em um avião.

Zhang Yingjin relaciona o motivo recorrente do avião aos desejos “dos trabalhadores

migrantes e sua liberdade imaginada” (2010, p. 88). Esse desejo de ir além das fronteiras

da China pode ser visto como um sintoma da abertura sem precedentes do país em

105

“a strategy of stagnation.”

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direção ao resto do mundo, no contexto das reformas econômicas que se iniciaram com a

Era das Reformas de Deng Xiaoping (Gaige Kaifang, 1978-1992). Os efeitos da orientação

da China para a economia de mercado foram sentidos com intensidade nos espaços

urbanos do país, e o trabalho de Jia, como visto no capítulo anterior, é movido por um

desejo urgente de filmar o desaparecimento, e assim registrar e preservar – através da

capacidade de gravação do cinema – uma paisagem efêmera.

A existência de um parque como “O Mundo” em Pequim, no entanto, aponta

para o passado da China como um Império milenar habituado a construir muralhas,

valorizando seu isolamento do resto do mundo no lugar da atitude expansionista por trás

de outras forças imperiais na História. Um testamento desse traço definidor do Império

Chinês, extraordinariamente articulado por Jia em seu filme, é um outro jardim da

Dinastia Qing, Yuan Ming Yuan (圆明园), também conhecido como o Antigo Palácio de

Verão ou o “jardim dos jardins”, que foi queimado pelas forças anglo-francesas em 1860,

durante o Segunda Guerra do Ópio. Esse jardim, que levou Victor Hugo a escrever

“mesmo todos os tesouros de todas as nossas catedrais não se comparam a este museu

suntuoso e magnífico do Oriente” (1861) 106

, reunia as características arquitetônicas das

etnias Han, Mongol e Tibetana, além de reproduzir paisagens de diferentes áreas do país.

Dentro do Yuan Ming Yuan, que servia de residência oficial dos imperadores da dinastia

Qing fora da Cidade Proibida, o visitante podia admirar as terras pantanosas do sul da

China, a paisagem montanhosa do noroeste e as planícies do norte, todas em um mesmo

espaço. O jardim era formado por mais de 150 paisagens diferentes, pequenos jardins

dentro de um jardim, como um museu da arte da jardinagem. O Yuan Ming Yuan

também referenciava a arquitetura ocidental, incluindo um grupo de edifícios de estilo

europeu em uma das colinas, desenhados pelos jesuítas Giuseppe Castiglione e Michel

106

Victor Hugo nunca esteve no Yuan Ming Yuan, mas a incursão das tropas de seu país na China e a

subsequente destruição do jardim o impeliu a escrever essa carta de protesto.

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Benoist por ordem do Imperador Qianlong. Tal jardim feito de jardins, reproduzindo

diferentes partes do mundo, pode ser adequadamente descrito como uma heterotopia,

definida por Michel Foucault como um espaço que contém todos os outros espaços.

Foucault de fato inclui todos os jardins – bem como o teatro e o cinema – como instâncias

de heterotopia, agrupados sobre o terceiro princípio da definição em seu ensaio Des

espaces autres:

Terceiro princípio. A heterotopia consegue sobrepor, num só espaço real, vários

espaços, vários sítios que por si só seriam incompatíveis. Assim é o que acontece

num teatro, no retângulo do palco, em que uma série de lugares se sucedem, um

atrás do outro, um estranho ao outro; assim é o que acontece no cinema, essa

divisão retangular tão peculiar, no fundo da qual, numa tela bidimensional, se

podem ver projeções de espaços tridimensionais. Mas talvez o exemplo mais

antigo deste tipo de heterotopia, destes espaços contraditórios, seja o do jardim.

Devemos ter em conta que, no Oriente, o jardim era uma impressionante criação

de tradições milenares, e que assumia significados profundos e sobrepostos. Na

tradição persa, o jardim era um espaço sagrado que reiterava nos seus quatro

cantos os quatro cantos do mundo, com um espaço supra-sagrado no centro, um

umbigo do mundo (ocupado pela fonte de água) . Toda a vegetação deveria

encontrar-se ali reunida, formando como que um microcosmo. ... O jardim é a

menor parcela do mundo e é também a totalidade do mundo; tem sido uma

espécie de heterotopia feliz e universalizante desde os princípios da antiguidade (os

nossos modernos jardins zoológicos partem desta matriz). (1984, pp. 25-6)107

Como sugere Foucault, o jardim é um dos exemplos mais antigos de heterotopia, em seu

desejo de conter vários espaços geográficos e mentais. Ademais, o jardim ocupa um

espaço híbrido, que pode ser visto como uma ponte entre a cidade e o campo, e entre o

107

“Troisième principe. L'hétérotopie a le pouvoir de juxtaposer en un seul lieu réel plusieurs espaces,

plusieurs emplacements qui sont en eux-mêmes incompatibles. C'est ainsi que le théâre fait succéder sur le

rectangle de la scène toute une série de lieux qui sont étrangers les uns aux autres; c'est ainsi que le cinéma

est une très curieuse salle rectangulaire, au fond de laquelle, sur un écran à deux dimensions, on voit se

projeter un espace à trois dimensions; mais peut-être est-ce que l'exemple le plus ancien de ces

hétérotopies, en forme d'emplacements contradictoires, l'exemple le plus ancien, c'est peut-être le jardin. Il

ne faut oublier que le jardin, étonnante création maintenant millénaire, avait en Orient des significations

très profondes et comme superposées. Le jardin traditionnel des persans était un espace sacré qui devait

réunir à l'intérieur de son rectangle quatre parties représentant les quatre parties du monde, avec un espace

plus sacré encore que les autres qui était comme l'ombilic, le nombril du monde en son milieu, (c'est là

qu'étaient la vasque et le jet d'eau); et toute la végétation du jardin devait se répartir dans cet espace, dans

cette sorte de microcosme. ... Le jardin, c'est la plus petite parcelle du monde et puis c'est la totalité du

monde. Le jardin, c'est, depuis le fond de l'Antiquité, une sorte d'hétérotopie heureuse et universalisante

(de là nos jardins zoologiques).”

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natural e o artificial. O jardim funciona também como um espaço ao mesmo tempo

público e privado, onde é possível ver e ser visto, e ao mesmo tempo se esconder ou se

perder. No contexto específico dos jardins imperiais chineses, sua natureza heterotópica

aparece igualmente em seus usos múltiplos: era lá que os governantes recebiam seus

convidados, faziam reuniões políticas, comiam, escreviam poesia, descansavam,

caminhavam, se casavam ou rezavam.

Se todos os jardins contêm uma dimensão de um desejo heterotópico, seria justo

dizer que o Yuan Ming Yuan foi construído a partir de um exagero desse desejo. Assim

como seu contraponto contemporâneo “O Mundo”, o antigo Palácio de Verão trazia o

mundo para a China – e o resto da China para Pequim, a capital do País do Centro (中國

zhong guo), ao invés de ir para fora para ver ou conquistar o mundo. Nesse contexto, a

Mongólia, esmagada entre a China e a Rússia, adquire um significado especial diante da

Grande Muralha construída entre os dois países pelos chineses, de modo a conter a

invasão de povos nômades do norte. Em O mundo, o ex-namorado de Zhao toma um

trem para a Mongólia, e a russa Anna consegue embarcar em um avião para Ulan Bator.

Mas na versão chinesa do filme a cidade parece mais inacessível, já que Anna não é vista

dentro do avião, seu futuro permanecendo incerto. Ulan Bator existe apenas em um

subtítulo, na previsão do tempo vista na televisão, e em uma canção. O intertítulo – Noite

de Ulan Bator – antecipa a canção de mesmo nome e aparece de forma significativa no

final de uma seqüência em que os trabalhadores do parque brincam com um par de

binóculos: “O Niu não parece o Colombo?”, diz sua namorada Wei, e o grupo então

corre para admirar a cidade à noite a partir de um terraço, aos gritos de “vamos escalar até

o topo para ver o novo mundo!”. Zhao é então vista sozinha, usando um chapéu russo

(que lhe fora ofertado por Anna), observando Pequim através dos binóculos, mas após um

movimento panorâmico da câmera as palavras “Noite de Ulan Bator” aparecem

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sobrepostas à imagem da cidade, como se os binóculos de Zhao pudessem enxergar até a

Mongólia, suplantando a Grande Muralha. “Noite de Ulan Bator” é na realidade uma

canção tradicional mongol, e aparece em dois momentos do filme. O primeiro mostra

Anna e Zhao no restaurante do parque. As duas não podem se entender, visto que Zhao

não fala russo e Anna não fala chinês. Assim, Anna decide cantar para Zhao uma canção,

“Noite de Ulan Bator”, revelando seu desejo de partir para a capital mongol em busca de

sua irmã. Anna chegara à China para trabalhar no parque, e na versão internacional do

filme seu passaporte é confiscado, assim como o de outros colegas russos, pelo “agente”

que para lá os levou. Anna acaba largando o emprego no parque e se prostitui para

angariar fundos, recuperar seu passaporte e partir para Ulan Bator. A canção que ela canta

para Zhao reaparece de modo não-diegético em uma outra sequência, na qual as amigas

viajam em um veículo aberto através do parque. Mas se no filme internacional Jia se

decidiu pela versão instrumental dessa canção mongol, no filme chinês ele escolheu a

versão cantada, não em mongol, mas sim em mandarim.

A tradução para o mandarim de uma música mongol parece confirmar o hábito de

transformar o estrangeiro em chinês, expresso no desejo de trazer o mundo para a China

através da cópia de monumentos e atrações turísticas, bem como de roupas e acessórios,

como visto na fábrica de Qun, especializada em falsificar grifes. Um dos triunfos de O

mundo é, portanto, introduzir uma dimensão histórica à questão contemporânea da

globalização e da mobilidade e imobilidade que permeia a vida dos personagens, num

momento em que a China das grandes muralhas e das cidades proibidas se abre para o

mundo. E isso é atingido através de uma sofisticada organização espacial caracterizada pela

afinidade com a arquitetura de jardins, simbolizada pelos jardins imperiais Yihe Yuan e

Yuan Ming Yuan, e pelo seu equivalente contemporâneo, o parque “O Mundo” de

Pequim.

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CRY ME A RIVER E ANTES DO PÔR-DO-SOL: JARDINS E MEMÓRIA

Se em O mundo Jia propõe um diagnóstico criterioso das reformas contemporâneas da

China e de seu passado imperial, em Cry me a river, sua próxima experiência

cinematográfica inspirada pelo jardim, ele introduz a dimensão da memória como um

fenômeno tanto espacial quanto temporal. Em Public Intimacy: Architecture and the

Visual Arts, Giuliana Bruno refere-se ao cinema como uma “arte da memória”:

No seu teatro da memória, o espectador-passageiro, enviado em uma jornada

arquitetônica, infinitamente reconstitui os itinerários de um discurso definido

geograficamente, que localiza a memória em um lugar e lê as memórias como

lugares. Como um arte arquitetônica da memória, o site-seeing fílmico ...

configura-se como uma arte móvel do mapeamento: um mapeamento emocional.

(2007b, pp. 23-4)108

A citação de Bruno ajuda a elucidar um dos principais aspectos do média-metragem de Jia

Zhang-ke. Assistido por elementos da arquitetura de jardins, Cry me a river desenha uma

cartografia emocional da pitoresca e turística cidade de Suzhou, através do que Bruno

chamou de site-seeing fílmico. É lá que os velhos amigos Ma Qiang (Guo Xiaodong),

Zhou Qi (Zhao Tao), Xiaonian Tang (Wang Hongwei) e Bai Yu (Hao Lei) se reúnem

para um jantar em honra de seu antigo professor, e relembram os velhos tempos.

Originalmente inspirado no clássico de Fei Um Primavera numa pequena cidade

(Xiaocheng zhi chun, 1948), no qual antigos amantes se reencontram depois de anos de

separação, Cry me a river gira em torno de dois casais, agora afastados e levando vidas

separadas com novos parceiros, e que se reencontram dez anos depois. O deslocamento

108

“In its memory theater, the spectator-passenger, sent on an architectural journey, endlessly retraces the

itineraries of a geographically localized discourse that sets memory in place and reads memories as places.

As this architectural art of memory, filmic site-seeing … embodies a particular mobile art of mapping: an

emotional mapping.”

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pela cidade-jardim de Suzhou evoca a memória de tempos passados, ainda viva nos quatro

amigos.

O filme tem seis sequências principais: na primeira, Ma Qiang e Tang Xiaonian

jogam basquete diante do olhar atento de Zhou Qi e Bai Yu. Os quatro amigos então são

vistos dentro de um apartamento, possivelmente o de Ma Qiang, pois ele ainda vive em

Suzhou. Eles verificam sua visão com a ajuda de um pôster de oculista pendurado na

parede, e então cada “casal” é visto separadamente. Tang viajou para Suzhou de Nanjing,

e Bai – numa demonstração de sua familiaridade com Tang – faz um comentário sobre a

duração da viagem. “Você ainda se lembra disso?”, diz Tang a Bai, que responde “Eu

tenho uma boa memória”, numa antecipação do tema principal do filme.

A terceira sequência se inicia com um plano dos quatro amigos caminhando à

beira de um dos canais da cidade, a câmera posicionada em um barco que se desloca com

eles, e o som da água corrente se fundindo a uma música tradicional chinesa, tocada à

distância. Em seguida três planos dão conta da cena do jantar: o grupo é visto pela

primeira vez dentro de um pavilhão do jardim construído sobre um lago, em uma imagem

emoldurada pelo que parece ser uma pequena janela de vidro, que se abre para a mesa de

jantar. Lá todos se sentam com o antigo professor e outros convivas, e o plano-sequência

de três minutos dá conta das apresentações, dos brindes e das primeiras recordações. A

câmera – posicionada atrás da abertura na parede e mantendo-se estática durante toda a

duração do plano, revela um intrincado esquema de molduras que recortam o quadro do

filme: em primeiro plano, os vidros que formam a janela deixam entrever partes da cena e

refletem outras, criando nas bordas da imagem um complexo jogo de reflexos. Ao fundo,

uma porta se abre para o pavilhão, criando por sua vez uma efeito de mise-en-abîme. A

água do lago e as cortinas de seda complementam um ambiente que parece convidar

recordações. As próximas duas imagens da cena do jantar são tomadas de fora do

pavilhão, e Jia mais uma vez mais integra essa estrutura da arquitetura paisagística em seu

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estilo cinematográfico. O primeiro plano mostra o pavilhão e os convidados do jantar

entrevistos através das janelas. A câmera se move da esquerda para a direita e revela dois

cantores de ópera em roupas tradicionais, que se apresentam na plataforma sobre o lago.

À distância, a imagem de carros e caminhões passando funciona como um indício e um

lembrete de que os jardins são, essencialmente, um espaço urbano, localizado dentro ou

nos arredores das cidades. Um terceiro plano, então, revela um panorama completo, o

pavilhão enfeitado com luzes, os músicos, os cantores e todos os comensais visíveis, com a

arquitetura intricada do telhado do pavilhão esculpindo o céu noturno e o quadro do

filme.

A quarta seqüência mostra os amigos indo para uma escola (a sua antiga escola? a

escola onde Ma Qiang trabalha?) para jogar mah-jong após o jantar, e a conversa gira em

torno do tempo decorrido, de como envelheceram e das diferenças entre gerações. O

filme então introduz a seqüência final, em que o movimento pela cidade em um barco e

pelo jardim desengatilha a paisagem dentro dos próprios personagens. Os quatro

primeiros planos mostram o grupo a viajar em um barco que desce o canal, até que a

sequência se divide em duas, Ma e Zhou permanecendo no barco e Tang e Bai se

dirigindo a um jardim. Dentro do barco Ma confessa a Zhou: “Eu estou com você todos

os dias. Nos dez anos desde que nos formamos é com você que eu sonho”. No jardim,

Tang e Bai descem uma colina em direção ao lago, e sentam-se dentro de um outro

pavilhão, cuja qualidade de prédio ornamental que se abre para a paisagem e enquadra a

vista é mais uma vez usada por Jia como um meio de re-enquadrar de seus personagens.

Os dois conversam de forma íntima sobre seus problemas conjugais, e em seguida um

último plano revela os quatro amigos mais uma vez dentro do barco, descendo o rio.

“Love Song 1990” do cantor pop taiwanês Luo Da You toca sobre os créditos.

Cry me a river coloca em movimento uma viagem espacial através de uma cidade-

jardim, que funciona como uma evocação da memória. O elemento temporal está contido

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no movimento da água que ocupa as ruas de Suzhou, no que pode ser entendido como

uma referência à idéia confuciana de tempo, fluindo para longe como as águas do rio. No

entanto, é a experiência do deslocamento através do espaço que parece carregada de

memórias e emoções. A matriz cinematográfica da intersecção entre cinema, jardim e

memória é O ano passado em Marienbad (L’Année dernière à Marienbad), dirigido por

Alain Resnais em 1961. Trata-se da segunda colaboração de Resnais com um escritor

representante do Nouveau Roman na França da década de 1950, Alain Robbe-Grillet (sua

primeira colaboração havia sido com Marguerite Duras em Hiroshima meu amor,

conforme observado no terceiro capítulo). No filme de 1961, Resnais transforma o

castelo, no qual uma mulher e dois homens se encontram ou se reencontram, em um

labirinto de planos que se movem por entre os corredores e salas, configurando um

espaço que empresta sua fragmentação ou desorientação do espaço subjetivo e mental, no

modo da vanguarda cinematográfica impressionista francesa. Giuliana Bruno chamou O

ano passado... de “uma exploração arquitetural da memória, talvez sustentada como um

espaço compartilhado entre duas pessoas” (2007, p. 39).109

Essa exploração arquitetônica

se estende para os jardins de um castelo, onde um homem diz ter encontrado uma mulher

no ano anterior. Esse jardim geométrico, no estilo francês, aparece no filme impregnado

da natureza incerta da memória, real ou imaginário, no presente ou no passado, no qual as

esculturas se confundem com os corpos, circundados pela câmera.

Já os jardins de Cry me a river aparecem dentro de uma chave realista, bem

diferente do filme fundador de Resnais, e não incorporam formalmente o caráter

fragmentário da memória. Mas o paralelo interessa aqui pela aproximação entre esses três

elementos, cinema, jardim e memória, ligados pelo deslocamento através do espaço real e

virtual que engendra um deslocamento emocional, impulsionado, nos dois casos, por um

reencontro (ou encontro) de antigos (ou novos) amantes. Outro filme ao qual Cry me a

109

“an architectural exploration of a memory, perhaps held as a shared space between two people.”

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river se assemelha em sua produção espacial é Antes do pôr-do-sol (Before sunset, 2004)

de Richard Linklater, realizado nove anos depois de Antes do amanhecer (Before sunrise,

1995) com os mesmos dois atores, Ethan Hawke (Jesse) e Julie Delpy (Céline). O filme,

que também retrata o encontro de ex-amantes após nove anos de separação, está repleto

de referências à memória como uma condição espacial, contida no presente. Jesse, em

Paris para o lançamento de seu romance – no qual relata seu encontro com Céline em um

trem para Viena – explica aos presentes que seu próximo livro será sobre um homem,

infeliz no casamento, que é transportado de volta ao passado pela visão de sua filha de

cinco anos dançando em cima da mesa de jantar. Involuntariamente, ele se lembra de

quando tinha 16 anos e viu sua namorada da escola dançando em cima do carro ao som

da mesma música. O autor faz então um comentário crucial: “Ele sabe que não está se

lembrando dessa dança, ele está lá em ambos os momentos, simultaneamente”. A

memória torna-se assim uma condição presente, independente do passado e, portanto, um

fenômeno tanto espacial quanto temporal.

Jesse então vê Céline dentro da livraria, e os dois passam o resto do filme andando

pelas ruas de Paris, em outra instância de site-seeing fílmico a operar como um

mapeamento emocional. “Vamos por este caminho através do jardim, é muito agradável”,

diz ela, em um convite para uma viagem através do espaço – um jardim parisiense – que

irá despertar uma memória. O passeio pelo jardim marca o momento em que os dois

começarão a falar de seu passado. No filme anterior, os dois jovens, ele um americano

viajando de mochila pela Europa, e ela uma francesa voltando da Hungria para Paris, se

encontram por acaso dentro de um trem pouco antes de chegar a Viena. Os dois decidem

então passar um dia juntos visitando a cidade, e no percurso se apaixonam. Na manhã

seguinte, decidem não trocar telefone ou endereço mas marcam um encontro dali a seis

meses, na estação de trem da cidade. O filme acaba em uma nota de dúvida, e, nove anos

depois, Antes do pôr-do-sol responde a algumas dessas questões, ao mesmo tempo em

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que lança outras. Descobre-se que ela não foi ao encontro marcado, mas ele sim. Que ele

está casado com filhos, mas infeliz. Que ela morou em Nova York na mesma época que

ele, mas nunca se encontraram. E que os dois continuam a viver com a memória de

Viena, que tem uma magnitude em suas vidas maior do que eles próprios gostariam de

admitir. O deslocamento através de Paris, então, funciona como o movimento que vai

trazer à tona a memória, evidente na fala de Céline a Jesse enquanto caminham pelo

jardim: “A memória é uma coisa maravilhosa se você não tiver que lidar com o passado”.

Na realidade, lidar com o passado nada mais é do que a condição presente de qualquer

memória. O casal passa do jardim para um passeio de barco, desta vez subindo o rio Sena,

prolongando o deslocamento no espaço e o lento emergir das lembranças.

Nesses exemplos do que pode ser chamado de psicogeografia fílmica, a arte do

cinema revela sua impureza através de seu parentesco próximo com a arquitetura, e nos

casos específicos de O mundo e Cry me a river com a arte da arquitetura de jardins

chinesa. Ao explorar essa impureza, Jia pratica um remapeamento de Suzhou, Pequim e

mesmo do “Mundo” todo a partir do ponto de vista das lembranças e emoções de seus

personagens, que atravessam e contemplam um espaço real, re-trabalhado no espaço

fílmico. Acredito que o foco nessa instância culturalmente específica de impureza pode ser

útil para a compreensão desses filmes a partir de uma perspectiva histórica, espacial e

memorial. Além disso, a aproximação estabelecida entre Cry me a river e Antes do pôr-

do-sol, entre Suzhou e Paris, demonstra mais uma vez como as trajetórias cinematográficas

e urbanas se comunicam através de interconexões ao mesmo tempo inesperadas e

esclarecedoras, enriquecendo o processo de análise e o entendimento da dimensão

espacial dos filmes e de seus jardins.

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APÊNDICE:

ENTREVISTA COM TSAI MING-LIANG

Por Cecília Antakly de Mello

Taipei, 01 de maio de 2010

C: Seria correto dizer que o cinema é uma arte do espaço? Para você, o que é o cinema?

Tsai: Você me pergunta o que é o cinema? Essa é uma pergunta muito difícil de

responder, e preciso pensar um pouco antes. O cinema é uma arte única e ao mesmo

tempo uma arte que se relaciona com outras artes. O espaço do cinema é, para mim, algo

muito particular. Ele pode ser realista, mas ao mesmo tempo não-realista, e por vezes

surrealista. Eu sinto que o espaço recriado para o cinema nunca é o espaço original. Ele

pertence ao espaço do cinema. Vamos supor que você realize um filme em película, se

você não tiver as luzes certas, a iluminação correta, não poderá esculpir o espaço, ele

ficará plano, achatado. Se você souber utilizar as técnicas de iluminação, o espaço se torna

tridimensional, ele passa a existir a partir da luz e do tratamento que você confere à luz.

Assim, o espaço cinematográfico nasce no momento em que a luz incide no filme, e

depois através da revelação do filme. Ele já nasce em quadros, dividido, fragmentado. Mas

é a luz natural que atravessa o filme que faz nascer um sentimento do espaço. Ou

podemos usar a luz artificial, mas o espaço sempre precisa de luz, só a luz pode revelar

um espaço. Logo, eu acredito que a visão do diretor ou do artista passa necessariamente

pelo sentimento de esculpir um espaço através da luz. Isso significa partir de um espaço

original e esculpi-lo, fazer com que o filme construa um novo espaço. Na verdade os olhos

do artista vêem um espaço, mas ele precisa usar a luz para chegar nele. Por isso eu não

gosto de ver o cinema de hoje. Porque a luz do cinema de hoje e muito plana, não há uma

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criação do sentimento do espaço. É um cinema que só se preocupa com a narrativa, com

a trama. Não há porque gostar disso. Nós na verdade gostamos mesmo do elemento de

pintura que existe em um filme, da imagem desse novo espaço, da sua estética. Assim, o

cinema para mim não funciona a partir das palavras, mas sim através de noções de

escultura e pintura. É fundamental pensar no cinema a partir dessa inter-relação com a

pintura e a escultura, trazer esses elementos para dentro do filme, no lugar das palavras.

Por isso gosto muito de filmes silenciosos, tais como os do Expressionismo alemão, pois lá

é possível observar claramente a criação de um espaço cinematográfico, que foi esculpido

pela luz.

C: De que maneira o espaço efêmero da cidade é importante para você? Você se sente

inspirado pela cidade na mesma medida em que se sente inspirado por corpos?

Tsai: Claro que sim, a cidade é fundamental. Nós vivemos dentro da cidade, e através da

passagem do tempo a cidade muda. Nós mudamos e a cidade também, e há sempre

tempos diferentes que convivem no mesmo espaço. Essa mudança, esse acúmulo do

tempo, talvez se manifeste de dois modos, que são ambos a marca do tempo. Por

exemplo, um tipo de marca do tempo aparece com as novas construções que vão se

acumulando sobre as velhas, um muro que é construído, uma extensão, uma reforma, que

passa por cima do velho. A outra marca aparece através da demolição de um prédio e a

construção de um novo, uma nova casa por exemplo. Ambas as marcas do tempo se

refletem através de uma mudança de aparência. O sentimento de cada pessoa é

inseparável do ambiente em que ela vive, isso não pode ser dissociado. Na verdade nós às

vezes somos muito contraditórios, nos entusiasmamos com o novo e às vezes lembramos

ou sentimos falta de algo antigo, que já passou. Os sentimentos são feitos disso. Por isso,

eu acredito que o espaço contém dentro dele o tempo. Logo, quando eu faço um filme eu

aproveito a aparência da cidade como reflexo do meu sentimento. Ou eu poderia dizer

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que aproveito o espaço-tempo da cidade para refletir meu sentimento. É importante

mostrar o ambiente, mas também é preciso ir além e mostrar uma sensação de espaço-

tempo. Por isso quando eu filmo, todas as cenas são em lugares da cidade que eu

atravesso/passo. Depois eu procuro os mesmos lugares de novo, em busca de um

sentimento do tempo, das suas camadas que podem ser atravessadas, para que possa ser

mostrado novamente, em um processo de re-presentação.

Minha experiência pessoal como diretor me parece sempre passar pela interpretação de

um papel. No meu trabalho, eu preciso ter um olho para perceber os vestígios da vida, é

necessário buscar em um espaço esse vestígio da vida. Então não fui eu quem criou esse

espaço, mas eu preciso procurá-lo. Essa marca foi deus quem criou. Ou foi deus quem

esculpiu o tempo. Mas eu preciso transformá-lo no espaço do meu filme. Por exemplo,

quando eu filmei dentro da passagem subterrânea no Museu do Louvre algo de muito

interessante aconteceu. Quando a atriz correu pelo corredor, ela levantou muita poeira e a

lente ficou toda embaçada. No momento em que estávamos preparando a filmagem nós

não notamos a poeira, ela se levantou apenas quando a atriz correu. Assim, aquele espaço

se transformou a partir da filmagem. Essa poeira tornou-se imediatamente a coisa mais

preciosa daquele plano. É algo que eu não tenho como adicionar, eu realmente nunca

imaginaria colocar essa poeira lá dentro. Mas o tempo nos deu essa poeira, e eu então

esculpi o espaço com essa poeira. Por isso, para cada cena, eu sempre falo: ‘não mexam

em nada’. Meus olhos viram um espaço, muitas vezes eu não consigo ver, mas na maioria

das vezes eu já vejo antes de montar a cena. Mas há coisas que você não pode ver, e que

aparecem de surpresa, e se tornam parte do seu espaço.

C: Conte um pouco de que modo o seu cinema acompanhou as mudanças de Taipei.

Tsai: Em Taipei, o centro era em Ximen, na parte oeste da cidade. Esse bairro, incluindo

a Rua Kenan, Guozhai, e o Parque da Juventude, era o local no qual as pessoas se

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reuniam, desde jovens até os mais idosos, todos os tipos de pessoa. Eu não sei se no Brasil

existem lugares assim. No momento esse espaço de Ximen está mudando. Por exemplo,

quando eu filmei Os rebeldes do deus néon ainda não havia mudado, ainda estavam

construindo o metrô. Isso era por volta de 1991, mas já em 1992 a passarela já estava

quase desmontada. Todas as coisas foram construídas subterrâneas, por baixo. A

mudança mais importante se refere a um prédio de comércio bem grande, um tipo de

galeria, Zhong Hua Shang Chang. Naquela época, ele era o símbolo do bairro, mas

também foi demolido logo após eu terminar de filmar. Atualmente você ainda pode ver

aquele bairro, mas ele está mudado. Antigamente Taipei não tinha metrô, agora tem em

todo o lugar, tudo é subterrâneo. A construção começou no inicio dos anos 1990. Eu

naquele tempo filmei bastante por lá, inclusive filmes para a TV. Era um bairro com

muitos teatros e vida noturna. Meu filme O rio também foi feito lá. Xinmen atraia jovens,

velhos, soldados aposentados, todos iam lá para tomar chá, jogar xadrez, fazer negócios,

ouvir música, etc etc. Hoje em dia na verdade aquele bairro ainda tem um pouco disso,

ainda é um bairro muito animado, bem diferente do leste, a parte nova da cidade.

C: Em Que horas são aí? você presta homenagem a Truffaut e a Os incompreendidos.

Qual a importância desse filme na sua carreira?

Tsai: Eu acho que talvez o cinema…, como dizer, assistir aos Incompreendidos foi a

experiência mais especial para mim – eu me senti como aquele menino, dentro da sua

vida. Quando eu vi esse filme, eu senti que seu melhor amigo não eram os colegas, mas

sim a cidade, Paris. A maior parte do tempo ele foge de casa, foge da escola. Ele vive nas

ruas de Paris. Truffaut não precisa usar diálogo para expressar isso, basta você ver a

imagem para entender. Para ele, é a cidade que faz sentido, que conversa com ele, algo

que não precisa passar pela linguagem. Então, quando ele vai para o reformatório, o mais

difícil de deixar foi a cidade de Paris, e por isso ele chora pela primeira vez. Eu assisti a

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esse filme quando eu tinha 20 anos de idade e me mudei para Taipei, e o filme também

tinha 20 anos de idade. Naquela época eu não sabia quem era Truffaut, quem era Jean-

Pierre Léaud. Ao assistir ao filme, senti que era um reflexo da minha própria vida, na

Malásia, na cidade de Kuching, vivendo entre as culturas ocidentais e orientais por 20

anos. Esse filme parece trazer uma noção ou um sentimento que atravessa fronteiras. Ele

cria um espaço que você pode completar com a sua vida. Esse espaço para mim era

desconhecido. Eu nunca tinha ido para Paris, nunca tinha ouvido falar desse lugar. Mas ao

ver o filme, eu conheci Paris, e vi um pouco de mim lá. Quando eu era pequeno, eu fui a

um brinquedo igual ao do filme, era um grande “prato que girava” na feira da cidade.

Naquele tempo era moda esse tipo de brinquedo no mundo todo. Hoje em dia poucos

lugares ainda tem. Então, aquilo para mim foi um choque, eu com 20 anos assistindo a

esse filme e vendo aquele brinquedo que falava da minha própria experiência, e que

também carregava um significado simbólico.

C: Truffaut mostra Paris sem deixar dúvidas de onde estamos. Já em Que horas... você

escolheu deliberadamente não mostrar Paris, a não ser pela cena final. Por que você fez

essa escolha estética? O espaço da cidade continua sendo importante mesmo sem que ela

apareça externamente?

Tsai: Porque eu faço filmes sobre o sentimento da vida, e não sobre uma cidade turística.

Então quando eu abordo um espaço, eu estou sempre no centro, eu parto das minhas

próprias impressões. Eu sei que a audiência quer ver Paris, quer ver o personagem

passeando por Paris. Mas eu quero mais, quero um filme bem detalhado, eu quero ver

como foi Paris para Chen Shiang-chyi, a experiência dela nessa cidade. Isso é o mais

importante, e não fazer um filme que o público quer ver. Quando filmei Face dentro do

Louvre, não mostrei o museu que todos conhecem, minha idéia era outra. Eu morei em

Paris por um tempo curto, alguns meses, e aí desenvolvi um sentimento daquele espaço.

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Eu geralmente me sentia muito sozinho, fiquei muito sozinho nessa época. A região de

turismo não me interessava muito, eu visitei mas não era aquela a minha Paris. Minha

experiência lá foi muito pessoal e particular. Naquela época das filmagens de Que horas...

eu levei a equipe francesa para visitar os lugares em que eu queria filmar, mas ninguém

entendeu. Todos diziam que eu deveria fazer um filme que mostrasse a Paris do turista,

não imaginavam que eu não queria aquilo. Tive que mostrar a minha vida em Paris, o

sentimento de solidão e calma que eu vivi.

C: Em A passarela se foi seria correto dizer que você traça um paralelo entre a mudança

da cidade e a mudança do cinema?

Tsai: Quando eu estou filmando eu não penso muito. Às vezes os conceitos são muito

vagos. Quando eu filmei A passarela se foi, estava preocupado com as mudanças na

cidade. Certas coisas desaparecem, somem, e depois você não sente mais nada, fica

acostumado com a mudança, anestesiado. Sumiu então sumiu, você procura e não

encontra um lugar, você procura e não acha uma casa velha, uma rua, uma passarela. No

filme O buraco, há uma cena que se refere a isso de outra maneira: um idoso procura um

molho de soja, que era típico aqui em Taiwan. Ele vai ao supermercado, na feira e não

encontra em nenhum lugar. Ele não sabe mais onde procurar, fica nervoso, e sente um

certo desespero diante das mudanças. Isso é algo que sempre acontece nas nossas vidas.

Aqui em Taipei muita coisa sumiu, muitos restaurantes sumiram, a passarela de pedestres

que nos cruzávamos todos os dias sumiu. E depois que esse sentimento passa você se

acostuma, fica cada vez mais anestesiado. Parece um treinamento, você pode treinar ate

não sentir mais. Em I don’t want to sleep alone, eu filmei na Malásia, e assim que eu

terminei a cena principal fui até um café que eu ia todos os dias mas ele não estava mais

lá, tinha fechado. Eu recentemente fiz um outro filme na Malásia, um média-metragem

em digital chamado Madame Butterfly. Eu filmei quase tudo em uma rodoviária em Kuala

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Lumpur, um prédio enorme de onde você podia tomar um ônibus para vários lugares –

Tailândia, Singapura etc. Um ano depois das filmagens, a estação foi demolida! Era uma

estação muito velha e interessante, e muito grande. Agora as pessoas brincam que eu não

posso filmar nada que acaba sendo demolido. [Nesse momento informei o Diretor Tsai

que o edifício São Vito, por ele filmado em São Paulo, iria ser demolido, como de fato

foi]. O cinema tem uma capacidade muito estranha e especial. Ele pode preservar a

realidade em celulóide, reter essa realidade. O filme pode preservar a memória. Isso é

mais importante do que contar uma história. O cinema deixa um rastro, um “ponto”, e

não uma história. Antes de filmar, eu não discuto o conteúdo da cena com uma atriz ou

um ator. Nós discutimos por exemplo algumas paisagens, a cidade, as locações. É isso que

o cinema vai reter, e é isso que você deve tentar extrair da realidade, esse espaço, esse

ambiente. É isso que eu quero dizer.

ENTREVISTA COM TSAI MING-LIANG

Por Cecília Antakly de Mello

Taipei, 01 de maio de 2010

你问我,电影是什么?我觉得这个问题还满难回答的。

因为电影的确是很独特的媒台。因为你一定要使用它,渐渐来发展它。

根据他的问题, 都有关联性。我回答的时候, 我得思考一下, 会慢一点儿。

我觉得电影的世界, 对我来说,是一个很独特的空间。

这个空间可以说是很写实, 但是又可以说是非写实。而且又是很超现实。

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那个写实。。。

等它被处理到电影的一个空间的时候, 它就不是原来的空间,我的感觉是这样。

它是属于电影的空间。如果你用赛璐珞拍电影, 如果没有适当的灯光,适当的打

灯技巧, 你不会有空间感。

其实那个空间透过打光, 那是一个很技术的东西。其实它是利用打光的概念来处

理。

它是透过感光的化学作用和冲洗的技术。 呈现出来的已经是分解的空间。

光线有自然光。 透过自然光来打光,来处理空间感。

或透过非自然光(灯光)来处理,它总是要有光,它才能呈现出那种空间。

所以我觉得透过导演或者艺术家的眼光来看到光线的雕塑的感觉。

透过影片雕塑一个空间出来,而它的基础的一个建筑的场景。

其实艺术家的眼睛看到的一个空间,它要用光线来雕塑到电影。

所以我为什么不太喜欢看现在的电影。 因为现在的电影的打光是非常平面的,

没有创造空间感。

它只是说故事的那个背景。所以为什么我们会很喜欢电影?

其实是我们很喜欢电影的图片。(喜欢电影里影像的空间)

我觉得是不能用记录的概念来起草它,它是有点像雕塑或绘画,就是用雕塑或者

绘画的概念, 非常强烈, 用来做观看电影的概念。所以我们特别喜欢像默片或

像德国的表现主义, 就很明显地是看到他们在创造空间, 电影的空间被它创造

出来,或者被它雕塑出来。透过光线。可能后来有色彩或者无色彩。

新的问题

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那当然, 我想大部分的时间都生活在城市里。怎么讲?就是说,

我们住在城市里面, 有一个时间的累积, 城市也因为时间而改变。

它的改变可能有两种, 每种都是时间的痕迹。

表现的方式不同,比如说:有一种是一面墙叠上去的,建筑旧了。

或者一个房子被推倒了, 换一个新的大楼,它也是时间的概念,这些都是它的外

貌在改变。这种你生活在其中,你的情感当然是跟它密不可分。

我们其实有时候很矛盾,当然有时候喜欢看到新的东西,有时候又会怀旧。喜欢

新鲜感,可是同时也有怀旧感。 完全是情感在作祟。因为情感作祟的关系,所以

我觉得它刚提到的空间是依附在时间里面的。所以我在拍电影的时候, 常常要利

用城市的样貌来反应我的心情。

其实也可以说是利用空间的时间来反应我的心情。表达我对环境也好,对生命的

看法也好,这个东西是不可少的, 除非利用空间的时间的感觉,或时间留在空间

面上的感觉来处理。

所以我通常拍的电影的场景,都是我在城市里面所经历的场景,然后再把它找出

来,找到它的时间感。透过那层时间感。再呈现出来,所以有一个过程在里边。

我觉得我自己的经验是,我作一个导演,我常常扮演的角色。我的工作是我要有

一双眼睛, 我必须要有一个眼睛是会辨识出来一种可能是生活的痕迹。在一个空

间里边去找到一个生活的痕迹。所以那个空间可以说不是我创造的, 但是我必须

要去把它找到。那个痕迹是老天创造的。或者是上帝的杰作,或者是时间的雕

塑。但是,我必须要去把它辨识出来,变成我影片里面的那个空间。

比如说,我拍罗浮宫的地下道的时候,很好玩儿的是,那个地下道的女主角跑过

一个地下道,她跑完的时候,镜头就变得有点儿模糊,为什么?因为里面有很多

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灰尘。你知道,你拍的时候,它没有灰尘,因为演员跑的时候,灰尘就扬起来。

它的空间就变了。然后呢?这个灰尘是我最珍贵的。我没有办法去加它,我真的

想都没想到,我要把灰尘放在里边。可是,时间会给你,把这个空间用灰尘去塑

造。所以,每次到一个场地,我都说:“不要动”。我看到了,就“不要动”。

我知道,就是说我的眼睛看到了一个我想要的空间。有很多东西我还没有看到,

可是大体上我已经决定了。有时候,为了要一些灰尘决定要用这个地方。

新的问题

在台北的地区,几乎以西门为中心。那个区块,包括克难街,国宅,大概就是年

青人很多的地方。台北西区以西门为中心,包括国宅,青年公园,比较杂,年轻

人,老年人,比较多的地方。

我不知道他们巴西有没有这样的地方。它有一点儿老社区的空间。那个老社区当

时是正在改变的。比如说,当时还没有改变。正在做捷运。九二年的时候,九一

年拍的,九二年拍完的时候,差不多天桥要被拆掉, 全部东西都往地下建设。

最重要的是有一个所谓的中华商场,在当时是那个区的一个地标, 也被拆除掉。

拍完的时候就被拆除掉。目前你还可以看到那个区,目前已经完全变掉了。

以前台北没有地下化的火车,现在都有了,全部都地下化了,都是从那个时候开

始。我那时拍的一些作品,不只是青少年跟我讲。前面的电视也是用那个区做背

景,因为那个区 有很多的戏院,我也常去那个区。

青少年有很多的“河流”都在那边拍,那个区有很多特征,不只是青少年喜欢

去,它是老人也喜欢去,退休的老兵都喜欢去。他们有很大的一群人,聚在那边

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喝茶,下棋,做买卖,听歌等。现在那个区其实还是有部分被保留的,还可以看

到的。还是一个很热闹的区,它跟东区很不同,因为它比较旧。

那个区也有很多色情行业杂在里面,像万华,现在还可以看到,但它的外观跟以

前不同了。尤其是刚好那一块完全不一样了。

新的问题

我觉得可能电影直到。。,怎么讲,就是说,我看“四百集”最特别的经验是我

感觉到“四百集”的包含这个小孩,他的生活里面。我看完电影的时候,我的感

觉,他最好的朋友不是那个小孩,不是他的同学,是巴黎。大部分时间都从家里

逃出来,从学校逃出来,他都在巴黎混。那个是不用跟他有对话的。这个城市是

跟他有对话的,是不透过语言的。所以, 我觉得他被送到感化院,最舍不得的,

就是巴黎,所以他流泪。在电影里边第一次流泪是他被送离巴黎的车程中。我讲

这些经验刚好是我为什么在看“四百集”。比如说,我在看“四百集”的时候我

已经二十岁,而这个电影也是二十岁,你懂吗?

那个时候我也不认识 Truffaut 是谁, 我也不知道 Jean-Pierre Léaud 是谁,他们都

很年轻。我在看这部电影的时候,那种感觉,我好象是在过自己的生活。我的生活

是在马来西亚,一个城市,一个东方西方隔了二十年,它从小有一种生活的氛围

或者一种生活的状态都很接近。

这个电影变得好像是跨越的一个概念,应该是跨越国度吧。

它创造一个空间是你可以用你自己的生活来应对它。这一个空间不管。。

这个空间对你来说是多么陌生。巴黎我没去过,没听说过的地方。你看的时候,

你不是觉得看到巴黎,是你看到你自己的一个生活状态。所以我小时候有一个经

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验是我坐过一个车,离心力的旋转车。 那个车有我自己玩过那个游戏,是一个大

的餐盘只有商业展览才有。那显然这个游戏全世界在那时候曾经风靡过。现在他

们有很少的地方还保留着。这样一个很笨重的游戏,它是城市的产物,提供城市

游乐的地方。原来它在全世界的城市都可以出现, 你懂吗?它已经没有了。你到

二十岁的时候在电影看到巴黎出现的那个东西,那个画面不只是说有过经验而

已,还有它的象征意义在那里。

新的问题

因为我不是台北地区的电影。这是我的习惯。全世界的城市都可以出现, 你懂

吗?

因为我拍的是生活的感觉,所以我处理每个地方的时候,我都是以自我为中心,

这种体验来出发。我都是看准了。观众要看巴黎,还是我要拍的陈湘琪去巴黎,

重点在这里。我要拍得很详细,重点在这边我要看陈怎样去巴黎,不是要拍观众

要看的巴黎,当然就是放在角色的状态。我在拍场景,你看不到罗浮宫,那个舞

台。意思是说,当然是不同的概念。电影你讲说感觉去巴黎旅行,我当时带他们

探亲,去巴黎的时候生活过一段时间。不长,有时候也是一样的概念。本来是对

观光区,我自己本身本来就对观光区兴趣不大,还是会去。但是我没有那么喜欢

去观光区。所以我在巴黎的生活是很随意的。

等到我们去巴黎看景的时候,我的工作人员都是法国人,他们都说我要拍摄那个

地方。所以他们没有想到过会去拍。

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变的是我带他们去走,走的是我的生活,过得很静,这个感觉。他们没有想到是

这样,他们觉得我应该会去拍观光区。但是几乎都不是他们平常生活的地方。可

是他们没有想过要拍这个地方。

新的问题

我拍的时候没有我想太多。可是,因为中心的概念还是很模糊。

在那段时间特别有兴趣去。有一个点,那个城市改变的一个点,东西不见了,后

来也没有什么感觉,你就习以为常,你就麻木了。不见了就不见了,你找不到一

个地方,你找不到一个很老的家,只找到一个牌子。我记得电影一个“洞”,一

个老人正在找一个豆瓣酱,一种有牌子的食物。在市场里面他找不到,不晓得要

去那儿,他就很慌张,那种感觉。这些事情,其实是我们生活中不停地发生。很

大的餐厅不见了,每天走过的天桥不见了。然后这种不见的感觉,到最后你就习

以为常,也可以说你就比较麻木了。好像训练一样,你可以训练到,你对每一个

东西的来和去都变得没有什么感觉。我觉得,我想,大概是这样一个。。。

其实我的电影很有趣的地方是说,后来有很多可怕,有趣的事儿。

因为它的地方不见了。不久它的地方倒闭或者被拆掉了。

我不知道要怎么说‘黑眼圈’。。

我在马来西亚拍完了主要的场地,有一个咖啡听就关门了。我拍的时候,那时候

还在,他也没说要关,等我拍完,他就关了。

然后我最近拍了一个马来西亚的短片用数据,叫‘蝴蝶夫人’。是去年吧,一个

短片。是在一个吉隆坡车站,你可以坐任何公车去曼谷,和新加坡。我拍完之

后,一年以后车站不见了。那个车站是非常多的经验,因为它非常有意思,很

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大。可是它就在我拍完后一年,就关了。当然,可能这是一个城市的改变,这个

速度非常快。你也可以感觉电影有一种很特殊的奇怪的状态。它被赛璐珞保留下

来。这个记忆的改变,透过影片把这个记忆保留下来。所以我再讲一个概念就是

说,他们跟我谈电影的时候, 我觉得别的导演拍的。。

因为重点在于我的焦点不在故事,我不是在讲这个故事,或者是在讲一个议题。

所以,变成是影片里面所有拍到的东西,就会变成一个重点。比如说场景一般都

会讨论角色,讨论内容,可是我的影片里面就会有一个所有的讨论的场景,比如

说那些城市的某一些景,某一些地点。你知道,那些空间的讨论。所以我就想

说,这样的一个讨论在显示出我们的习惯。这个电影,其实不是这样的。一般是

说,它不断地讨论我的这个电影,不断的经过这个训练。因为它不经过这个训

练,它就不太知道我在做什么,很多人,不是全部,他们都不太知道我在做什

么,因为它不是在呈现一个故事。所以,这些东西都会跑出来。你知道为什么

吗?空间会跑出来,环境会跑出来,城市会跑出来。因为你必须要把别的东西压

下去, 我觉得这是一个重点。

永和是台湾人口最密集的地方。很多这种中等家庭(军公教)。

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E) BIBLIOGRAFIA E FILMOGRAFIA

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disponível em http://www.sensesofcinema.com/2001/18/beijing_bicycle/, acessado

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Xavier, Ismail (2006), “São Paulo no Cinema: Expansão da Cidade-Máquina, Corrosão da

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Xu, Jian (2005), “Representing rural migrants in the city: experimentalism in Wang

Xiaoshuai's So Close to Paradise and Beijing Bicycle”. Screen 46:4, Winter, pp. 433-

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Zhang, Yingjin (2007), “Comparative film studies, transnational film studies:

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Journal of Chinese Cinemas 1:1, pp. 27–40.

ARTIGOS DE JORNAL

Arantes, Silvana, “Bem na Fita: São Paulo seduz cineastas, exibe o lado fotogênico na atual

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Paulo, 1º de julho de 2007, p. 1.

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Guerra, Flávia (2007), “Longa jornada São Paulo adentro”. Caderno 2, O Estado de S.

Paulo, 9 de março de 2007, p. D2.

__________ (2008), “Na Epiderme da Cidade: Gente comum, lutando para sobreviver

em São Paulo, inspira três novos filmes”. Caderno 2, O Estado de S. Paulo, 6 de

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Merten, Luiz Carlos (2007), “A busca da remissão no primeiro emprego”. Caderno 2, O

Estado de S. Paulo, 9 de março de 2007, p. D2.

Oricchio, Luiz Zanin (2007), “Um Corpo a Corpo com a Cidade: A Via Láctea, novo

filme de Lina Chamie, usa São Paulo como personagem”. Caderno 2, O Estado de

S. Paulo, 26 de janeiro de 2007, p. D4.

Reis, Leila (2007), “Antônia foi inspirada em minha vida”. Caderno 2, O Estado de S.

Paulo, 19 de setembro de 2007, p. D3.

“Forasteiros buscam imagem da megalópole: Diretores do Rio de Janeiro e de Brasília

adotam São Paulo temporariamente para filmar suas tramas mais urbanas”. Folha

Ilustrada, Folha de S. Paulo, 1 de julho de 2007, p. E4.

“Prefeitura cria escritório para fazer da cidade um cenário”. Caderno 2, O Estado de S.

Paulo, 9 de junho de 2007.

WEBSITES

http://www.beijingworldpark.com.cn/

http://www.os12trabalhos.uol.com.br/

http://www.spfilmes.com.br/longas.aspx?Node=14

http://www.szwwco.com/

http://www.yuanmingyuanpark.com/

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OUTROS

Guerin, José Luis (2007), Comentários DVD En la ciudad de Sylvia, Axiom Films.

Jia, Zhang-ke (2002), Comentários DVD Unknown Pleasures e Xiao Wu, Artificial Eye.

Salles, Walter (2005), Comentários DVD Comemorativo 1995-2005 - Terra Estrangeira

(Videofilmes)

Seidl, Ulrich (2007), Dossier de Presse – Import Export, p. 5, disponível em

http://www.ulrichseidl.com/07Index/img/IE_Presseheft_EF.pdf. Acessado em 21 de

março de 2011.

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FILMOGRAFIA

CAPÍTULO I: O PRINCÍPIO DA AN-DANÇA URBANA

Filmes: Na cidade de Sílvia (En la Ciudad de Sylvia, José Luis Guerin, 2007), Xiao Wu

(Jia Zhang-ke, 1997).

Cidades: Estrasburgo, Fenyang

CAPÍTULO II: O CINEMA ATRAVESSA A CIDADE

Filmes: Os 12 trabalhos (Ricardo Elias, 2006), A bicicleta de Pequim (Shi qi sui de dan

che, Wang Xiaoshuai, 2001), Caro diário (Caro diario, Nanni Moretti, 1993)

Cidades: São Paulo, Pequim, Roma

CAPÍTULO III: UM CONTO DE DUAS CIDADES

Filmes: Terra estrangeira (Walter Salles e Daniela Thomas, 1995), Que horas são aí? (Ni

neibian jidian, Tsai Ming-liang, 2001), Contra a parede (Gegen die Wand, Fatih Akin,

2004), Import/export (Ulrich Seidl, 2007)

Cidades: São Paulo-Lisboa, Taipei-Paris, Hamburgo-Istambul, Snizhne-Viena

CAPÍTULO IV: A CIDADE EFÊMERA

Filmes principais: A passarela se foi (Tianqiao bu jianle, Tsai Ming-liang, 2002), Adeus,

Dragon Inn (Bu san, Tsai Ming-liang, 2003), It’s a Dream (Shi meng, Tsai Ming-liang,

2007), Em busca da vida (Sanxia haoren, Jia Zhang-ke, 2006), 100 Flowers Hidden Deep

(Chen Kaige, 2002)

Cidades: Taipei, Feng Jie, Pequim

CAPÍTULO V: SOBRE CINEMAS E JARDINS

Filmes: O mundo (Shijie, Jia Zhang-ke, 2004), Cry me a river (Heshang aiqing, Jia Zhang-

ke, 2008), Antes do pôr-do-sol (Before Sunset, Richard Linklater, 2004)

Cidades: Pequim, Suzhou, Paris