RELATÓRIO FINAL
PÓS-DOUTORADO
BOLSISTA: CECÍLIA ANTAKLY DE MELLO
SUPERVISORA: MARIA DORA GENIS MOURÃO
TÍTULO: “MOVIMENTO E ESPAÇOS URBANOS NO CINEMA MUNDIAL CONTEMPORÂNEO”
01 DE MAIO DE 2008 - 30 DE ABRIL DE 2011
ÍNDICE
A) RESUMO DO PLANO INICIAL
B) RESUMO DE ATIVIDADES NO PERÍODO
C) DETALHAMENTO DOS PROGRESSOS REALIZADOS
D) MOVIMENTO E ESPAÇOS URBANOS NO CINEMA CONTEMPORÂNEO
E) BIBLIOGRAFIA E FILMOGRAFIA
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A) RESUMO DO PLANO INICIAL E DAS ETAPAS JÁ DESCRITAS EM RELATÓRIOS ANTERIORES
A.1) PRIMEIRO ANO (2008-2009)
O projeto inicial de pesquisa de pós-doutorado apresentado à FAPESP em 2008 tinha
como objetivo investigar a relação entre cinema e cidade a partir de cinco filmes realizados
nos últimos 15 anos na cidade de São Paulo: Os 12 trabalhos (Ricardo Elias, 2006),
Antônia (Tata Amaral, 2006), Terra estrangeira (Walter Salles e Daniela Thomas, 1995),
O príncipe (Ugo Giorgetti, 2002) e O invasor (Beto Brant, 2007). A análise de cada filme
privilegiava um aspecto da relação entre cinema e cidade, e progredia através de cotejos
com outros filmes, de nacionalidades e momentos diversos, mas que dialogavam de forma
prolífica com os temas abordados. O principal intuito do trabalho era a geração de um
modelo original para o estudo da relação entre o cinema e a cidade, fruto de uma
abordagem comparativa que unia cidades e cinemas distantes em uma nova geografia.
Além disso, o trabalho cobria uma lacuna ao abordar aspectos do mais recente cinema de
São Paulo.
Os resultados dessa pesquisa, conforme previa o projeto inicial, seriam
apresentados na forma de cinco artigos de 5.000 palavras cada. Cada um desses artigos
teria como ponto central um aspecto da mobilidade e da instabilidade do espaço urbano
nas grandes cidades contemporâneas, observado em relação aos filmes paulistanos, mas
em diálogo com outros filmes e cidades. Em primeiro lugar, caberia abordar o próprio
“mover-se através da cidade”, a partir dos filmes Os 12 trabalhos, Os rebeldes do deus
néon (Ch’ing shaonien na cha, Tsai Ming-liang, 1992) e Caro diário (Caro diario, Nanni
Moretti, 1993); em seguida esse movimento seria discutido a partir da figura da mulher na
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cidade e da tensão espacial centro-periferia, a partir de Antônia, Up the Junction (Ken
Loach, 1965) e Um gosto de mel (A Taste of Honey, Tony Richardson, 1961); em
terceiro lugar, o movimento ocorria de uma cidade para outra, suscitando questões sobre
tempo e espaço, identidade e memória em Terra estrangeira, Que horas são aí? (Ni
neibian jidian, Tsai Ming-liang, 2001) e Contra a parede (Gegen die Wand, Fatih Akin,
2004); em quarto lugar o movimento abordado seria o da própria cidade, em constante
modificação, instável e efêmera, conforme visto em O príncipe, A passarela se foi
(Tianqiao bu jianle, Tsai Ming-liang, 2002), Adeus, Dragon Inn (Bu san, Tsai Ming-liang,
2003) e Em busca da vida (Sanxia Haoren, Jia Zhang-ke, 2006); Por fim, havia a previsão
de um artigo que abordaria a cidade noir, exteriorizada e interiorizada, que oprime o
personagem num movimento persecutório e desordenado em O invasor, Sombras do mal
(Night and the City, Jules Dassin, 1950) e Batalha no céu (Batalla en el Cielo, Carlos
Reygadas, 2004). O projeto ainda ressaltava que os temas delineados estavam longe de
representar categorias estanques, interconectando-se e enriquecendo-se à medida que
avançavam. Desse modo, o trabalho trataria do movimento interno do filme através da
cidade, além de inspirar-se na justaposição e na conectividade essenciais ao espaço ao
sobrepor diferentes filmes e diferentes cidades em seu modelo de análise.
A inspiração inicial para o projeto de pesquisa vinha do retorno da cidade de São
Paulo às telas dos cinemas, observável principalmente nos últimos dez anos em
numerosas produções ávidas por exibi-la, percorrê-la, discuti-la. O cinema nacional
mostrou vigor em filmes como O invasor, Antônia, Os 12 trabalhos, Não por acaso
(Philippe Barcinski, 2006), Via láctea (Lina Chamie, 2007), Linha de passe (Walter Salles
e Daniela Thomas, 2008), entre tantos outros intimamente ligados à cidade, compondo
uma tendência que ainda não dava sinais de esmorecimento. Partindo-se da hipótese de
que o cinema é um meio que viaja no espaço do mundo e no espaço da tela, a trajetória
das imagens e sons de São Paulo se entrelaçava com outras trajetórias, outros espaços,
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outras cidades e outros cinemas. E era nesse entrelaçamento que o trabalho proposto
encontrava seu trajeto.
O projeto previa como embasamento teórico para esse estudo o reconhecimento,
a partir da década de 1970, do espaço como categoria organizadora, e da espacialização
como termo de análise e descrição da sociedade e culturas moderna e pós-moderna
(Foucault, 1967, Lury e Massey, 1991). Um conceito central para a pesquisa vinha de
Doreen Massey, geógrafa que identifica a cidade como uma forma intensa de
justaposições e simultaneidades, e acredita que o cinema, por ser um meio que viaja por
espaços diversos, molda-se perfeitamente a essas características espaciais.
A pesquisa iniciou-se em teoria no dia 01 de maio de 2008, mas conforme
explicado no primeiro relatório o termo de outorga foi assinado no dia 19 de junho de
2008, com vigência retroativa. Durante o primeiro ano de bolsa, as etapas previstas foram
cumpridas aproximadamente dentro do prazo, à exceção da redação final dos cinco
artigos. A primeira parte da pesquisa foi dedicada a uma extensa investigação bibliográfica
e fílmica. Como era de se esperar, pude detectar várias lacunas na bibliografia apresentada
com o projeto de pesquisa, e a versão contida no primeiro relatório já apresentava uma
lista substancialmente mais completa. A relação entre o cinema e a cidade foi, nos últimos
15 anos, objeto de sucessivas conferências em diversas partes do mundo. Um grande
número de livros foi editado, principalmente em língua inglesa ou francesa, durante esse
período (ver revisão bibliográfica na introdução da tese), além do tema ter sido objeto de
uma série de números especiais de revistas acadêmicas no campo do audiovisual, da
arquitetura e da geografia. Infelizmente as bibliotecas da Universidade de São Paulo e
outras bibliotecas públicas na cidade não dispõem de quase nenhum desses livros, e de
apenas alguns dos periódicos relevantes. Assim, senti a necessidade de adquirir muitos
livros através da internet, ou por ocasião da viagem ao Reino Unido em março de 2009,
ou ainda consultar artigos e capítulos através de ferramentas tais como o Google Books.
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Minha preocupação era estar ciente não apenas do importante histórico da relação entre
cinema e cidade na teoria do audiovisual, como também dos mais recentes avanços e
abordagens sobre o tema. Além disso, tratando-se de uma investigação com forte caráter
interdisciplinar, a pesquisa bibliográfica avançou por áreas tais como a arquitetura e a
geografia, com um destaque para questionamentos acerca da noção de espaço. Nesse
período inicial realizei também uma detalhada análise textual de todos os filmes do
projeto.
A segunda fase iniciou-se no final de setembro de 2008, durante a qual realizei
leituras de livros e artigos sobre o tema, além da visualização de filmes. Após esse período
o projeto inicial passou por uma primeira mudança com a exclusão do quinto tema de
análise, que previa uma abordagem da cidade noir a partir dos filmes O invasor, Sombras
do mal e Batalha no céu. No lugar, julguei mais adequado empreender uma análise dos
filmes Não por acaso de Philippe Barcinski (2007) e Marcas da vida de Andrea Arnold
(Red Road, 2006), a partir do tema do controle espacial da cidade por câmeras de
segurança e de controle do trânsito.
O primeiro relatório apresentou o esboço de uma introdução teórica que dava
conta dos principais temas abordados na pesquisa, quais sejam, a relação entre o cinema e
a cidade e a questão do realismo. Situava assim os filmes analisados dentro do panorama
do “retorno ao real”, observado tanto na produção quanto no renovado interesse teórico
pelo tema a partir de meados dos anos 1990. Esse reencontro com o realismo se dava em
grande parte através de um reencontro com a cidade real da locação, ou com o corpo da
cidade. Nessa introdução, teci também alguns comentários acerca de traços familiares que
sugerem uma tendência, quiçá um ciclo, desse novo cinema de São Paulo, distinto do
cinema paulistano da Vila Madalena dos anos 1980 (o último ciclo de filmes com
características comuns produzido na cidade).
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Durante o primeiro ano da pesquisa realizei uma série de atividades junto ao
Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da ECA/USP, que significaram uma
importante expansão dos meus interesses teóricos. Conforme já mencionado nos
relatórios anteriores, destaco minha participação em um grupo de estudos sobre o “filme-
ensaio”, sob coordenação do Prof. Dr. Ismail Xavier. No segundo semestre de 2008 tive
também a oportunidade de ministrar aulas no curso da Profa. Dra. Maria Dora Mourão,
Montagem/Edição I, oferecido aos alunos do segundo ano da graduação do curso de
Audiovisual da ECA-USP. Ainda em 2008, apresentei comunicação no XII Encontro
Internacional SOCINE em Brasília, abordando o ciclo dos spiv films, que se desenvolveu
na segunda metade da década de 1940 no Reino Unido.
Em março de 2009 viajei para a Inglaterra com recursos da reserva técnica
referente ao primeiro ano de bolsa (2008/09), onde apresentei duas palestras: a primeira
no Birkbeck College, Universidade de Londres, no dia 12 de março de 2009, intitulada
“Woman and the Urban Landscape in A Taste of Honey, Up the Junction and Antônia”,
que correspondia ao segundo artigo do projeto original; a segunda, na School of Modern
Languages and Cultures, Centre for World Cinemas, Universidade de Leeds, no dia 17 de
março de 2009, intitulada “The Body of the City within the British Social Realist
Tradition”, uma reflexão acerca do corpo da cidade como índice realista a partir de filmes
da tradição social realista inglesa. Ambas as apresentações, com duração de uma hora,
foram excelentes oportunidades para divulgar minhas idéias no exterior diante de uma
audiência diversificada de estudantes e professores, e ensejaram debates enriquecedores.
A.2) SEGUNDO ANO (2009-2010)
Com a renovação da bolsa de pós-doutorado a pesquisa ganhou mais fôlego e maior
escopo. O segundo ano iniciou-se em maio de 2009 e durou até abril de 2010. Nesse
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período a pesquisa amadureceu e se transformou, conforme detalhado no segundo
relatório. Durante a finalização da redação dos artigos, e após as apresentações no exterior
e no Brasil, nas quais pude discutir a pesquisa com um público maior, senti a necessidade
de uma segunda reavaliação do projeto original. As modificações propostas foram
aprovadas através do segundo relatório, incluindo a mudança de título, que passou de
“São Paulo e a Viagem do Olhar: O Corpo da Cidade no Cinema” para “Movimento e
Espaços Urbanos no Cinema Mundial Contemporâneo”. Seis elementos principais
justificavam essa reavaliação e a importância da extensão da bolsa, quais sejam: (1) a
necessidade de uma pesquisa que desse conta não apenas da relação entre cinema, cidade
e o realismo de um modo geral, mas também do paradigma neo-realista, central para
qualquer discussão envolvendo o uso da cidade real no cinema. (2) A diferença de
envergadura das obras analisadas, que acabou acarretando uma minimização do espaço
dedicado a alguns dos filmes paulistanos, e ao cinema de São Paulo como base da
pesquisa. (3) A necessidade de uma periodização mais rígida, o que me levou a focar a
pesquisa em filmes realizados nas décadas de 1990 e 2000, mas sem perder de vista o
paradigma neo-realista e a importância de outros filmes urbanos na história do cinema
mundial e da cinematografia paulista de um modo geral. (4) A necessidade de uma maior
coerência teórica entre os temas abordados na pesquisa, o que levou à eliminação do
artigo dedicado exclusivamente à presença da mulher no espaço urbano, cuja base teórica,
a questão do gênero, estava deslocada da discussão maior acerca do movimento no espaço
urbano e do cinema como arte espacial. (5) Um aumento considerável da forma de
apresentação dos resultados finais da pesquisa, passando de cinco artigos para uma tese, a
ser publicada em forma de livro no Brasil em 2012/3 e possivelmente no Reino Unido em
2013/4.
No segundo ano de bolsa apresentei duas comunicações na Escola de
Comunicações e Artes da USP, a primeira em um seminário no Departamento de
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Cinema, Rádio e Televisão, e a segunda na “1ª Semana de Pesquisa ECA/USP”, ambas
excelentes oportunidades para a discussão do projeto. Apresentei também palestras sobre
cinema chinês no Instituto Confúcio na UNESP e sobre cinema inglês no XIII Encontro
Internacional da SOCINE, realizado na ECA/USP, São Paulo. Nesse período co-organizei o
livro Realism and the Audiovisual Media (com Lúcia Nagib) para a editora Palgrave
Macmillan (Reino Unido), uma contribuição importante e inteiramente original dentro da
pesquisa contemporânea sobre realismo. Para o livro, co-assinei a introdução e contribuí
um capítulo dedicado ao telefilme Up the Junction. Publiquei o artigo “Free Cinema: O
Elogio do Homem Comum” na Significação: Revista de Cultura Audiovisual número 29.
Participei como ouvinte de um curso na Cinemateca Brasileira sobre a cidade no cinema,
e do Seminário Internacional “Retornos do real: cinema e pensamentos contemporâneos”
(UFRJ). Por fim, em 2009 ministrei aulas esporádicas em três cursos diferentes na
ECA/USP, a saber, “Montagem I”, “Montagem II” (graduação) e “O filme ensaio no
cinema moderno e contemporâneo” (pós-graduação).
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B) RESUMO DE ATIVIDADES NO PERÍODO
O terceiro ano de bolsa se iniciou em maio de 2010. Nesse período a bibliografia e a
filmografia passaram por algumas atualizações, e suas versões finais estão incluídas nesse
relatório; o projeto passou por uma reformulação final (detalhada no item “C”), devido ao
contato com novas fontes bibliográficas e fílmicas durante os períodos de estágio no
exterior; apresentei seis comunicações no exterior e três comunicações no Brasil;
publiquei em Taiwan um texto sobre cinema brasileiro; na Inglaterra um capítulo de livro;
submeti à publicação na Inglaterra dois artigos e um capítulo de livro; terminei a redação
da tese; além de outras atividades descritas abaixo, organizadas por subitens.
B.1) ESTÁGIOS NO EXTERIOR
B.1.1) TAIWAN E CHINA
SCHOOL OF FILM AND NEW MEDIA
GRADUATE INSTITUTE OF FILMMAKING
TAIPEI NATIONAL UNIVERSITY OF THE ARTS, TAIWAN
Supervisão: Prof. Daw-Ming Lee
Período: 14 Abril / 23 Maio 2010
De 14 de abril a 23 de maio de 2010 fui recebida como Pesquisadora Visitante na Taipei
National University of the Arts (國立臺北藝術大學), Taiwan (Formosa). O principal
motivo da viagem era realizar pesquisa sobre o diretor taiwanês Tsai Ming-liang e sobre o
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cinema taiwanês em geral, com ênfase nos filmes realizados em locação na cidade de
Taipei. Fui recebida pelo Prof. Daw-Ming Lee, chefe da “Escola de Cinema e Novas
Mídias” desta Universidade. Descreverei a seguir as principais atividades realizadas
durante meu período em Taiwan:
a) Fiquei hospedada no campus da Universidade no bairro de Guandu, Taipei, em
um prédio destinado a pesquisadores visitantes e professores, com total acesso a
facilidades tais como uma excelente biblioteca, restaurantes e ginásio de esportes.
Na “Escola de Cinema e Novas Mídias” recebi um escritório com computador e
internet, assim como apoio administrativo dos funcionários.
b) Na Escola tive à minha disposição a coleção de Vídeos e DVDs, com excelente
infra-estrutura para visualização. Lá pude assistir a uma variedade de filmes
taiwaneses indisponíveis no Brasil, tais como (a tradução, quando existir, está
principalmente em inglês visto que a maioria não possui título em português):
Liang Xiang Hao (Lee Hsing, 1961), Zao An Taipei (Good Morning Taipei, Lee
Hsing, 1979), Ke Nu (Oyster Girl, Lee Hsing, Lee Chia, 1963), Yang Ya Ren Jia
(Beautiful Duckling, Lee Hsing, 1965), Re Dai Yu (Tropical Fish, Chen Yu-hsun,
1995), Feng Gui Lai de Ren (Os garotos de Fengkuei, Hou Hsiao-hsien, 1983), Jia
Zai Taipei (Home Sweet Home, Pai Ching-jui, 1970), Taipei Zhi Chang (A
Morning in Taipei, Pai Ching-jui, 1964), Guang Yin de Gu Shi (In Our Time,
various, 1982), Er Zi De Da Wan Ou (The Sandwich Man, various, 1983), Haijiao
Qi Hao (Cape No. 7, Wei Te-sheng, 2008), Ting Shuo (Hear Me, Cheng Fen-fen,
2009), Monga (Doze Niu, 2010), entre muitos outros. Pude também contar com o
apoio e a orientação dos professores Daw-Ming Lee e Peggy Chiao – esta uma das
principais figuras do cinema taiwanês, conhecida como a “madrinha” do novo
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cinema dos anos 1980 – que foram instrumentais ao recomendarem artigos e
livros para minha pesquisa, além de sugerirem filmes importantes para a história
do cinema taiwanês urbano. Através de visionamentos preliminares pude conhecer
mais profundamente a história do cinema taiwanês, desde a fase conhecida por
“realismo saudável” nos anos 1960, passando pelo “novo cinema taiwanês” dos
anos 1980, e chegando ao por vezes chamado de “novo-novo cinema taiwanês”
dos anos 1990/2000, ao qual pertence Tsai Ming-liang. Pude também me
familiarizar com novas tendências dessa cinematografia nos últimos três anos.
Dentre os diretores com os quais tomei contato pela primeira vez em Taiwan,
fiquei especialmente interessada na obra dos grandes mestres Lee Hsing e Pai
Ching-jui, cujas carreiras atravessaram décadas e incluem importantes filmes
realizados nos anos 1970 em locação na cidade de Taipei. Destaco a descoberta da
sinfonia urbana inacabada de Pai Ching-jui, A Morning in Taipei, realizada em
1964.
c) Na “Escola de Cinema e Novas Mídias” pude também assistir a algumas aulas do
curso de cinema, dentre as quais duas sessões do curso de História do Cinema
Chinês, ministrado pela Prof. Peggy Chiao, dedicados à obra do diretor Xie Jin e
aos filmes Yang Ban Xi, produzidos durante a Revolução Cultural na China
continental. Assisti também a uma sessão de trabalhos dos alunos do curso de
direção, cuja qualidade e originalidade muito me impressionaram.
d) Durante o período como pesquisadora visitante na TNUA fui convidada a
apresentar duas palestras, abertas aos estudantes e professores da universidade,
assim como a estudantes de outras universidades. A primeira intitulou-se “Cinema
Brasileiro: do Cinema Novo às tendências contemporâneas”, oferecida no dia 4 de
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maio de 2010. A segunda intitulou-se “Cinema Britânico e a Tradição Social-
Realista”, oferecida no dia 11 de maio de 2010. Acredito que ambas as aulas foram
um sucesso e representaram um ponto inicial de contato com essas
cinematografias para muitos dos estudantes presentes. Um dia antes de cada
apresentação a Escola organizou uma sessão com os filmes Deus e o diabo na terra
do sol e A Taste of Honey, respectivamente. Cada aula durou aproximadamente
duas horas, e foi amplamente divulgada através de anúncios online e impressos.
e) No dia 1 de maio tive a grande oportunidade de entrevistar o diretor Tsai Ming-
liang no café que ele mantém com os atores Hsiao Kang e Lu Yi-ching, “Tsai Lee
Lu”. A entrevista durou duas horas e cobriu diversos aspectos da obra de Tsai
relevantes para a minha pesquisa, tais como suas ideias acerca do espaço no
cinema, sua relação com a cidade e sua noção de realismo. De volta ao Brasil, a
entrevista foi transcrita por mim e pela minha professora em mandarim, e depois
traduzida para o português. Isso representou uma importante etapa na minha
pesquisa, visto que possibilitou uma nova perspectiva acerca de ideias que venho
há tempos desenvolvendo acerca da relação cinema-cidade. O diretor Tsai
também disponibilizou para mim uma cópia de seu novo média-metragem
Madame Butterfly, filmado em locação em Kuala Lumpur, Malásia.
f) Neste mês em Taipei pude também comparecer a eventos relacionados com o
cinema taiwanês, tais como a première do filme Let the Wind Carry Me, dirigido
por Chiang Hsiu-Chiung e Kwan Pung-Leung, e uma palestra de três horas
conferida pelo diretor Tsai Ming-liang na National Taipei University of
Technology (21
de maio).
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g) Gostaria também de salientar o contato estabelecido com a diretora do Festival
Internacional de Taipei Jane Yu, que compareceu à minha aula sobre cinema
brasileiro na universidade. Em 2010 o festival, que ocorre todos os anos no mês de
junho, estava preparando uma retrospectiva sobre o cinema brasileiro, e fui
convidada a escrever um texto para o catálogo. Participei também da conferência
de imprensa do festival, onde pude conhecer o pai do novo cinema taiwanês, Hou
Hsiao-hsien, e colaborei através de dois encontros com a organização do festival,
esclarecendo dúvidas sobre o cinema brasileiro e apresentando sugestões. O texto,
além de publicado no catálogo, foi distribuído a frequentadores do festival,
divulgado em um mural e no site do festival.
(http://www.taipeiff.org.tw/TaipeffNews/citynewsA.aspx?id=5205&subid=5206&aid
=121&class)
h) Nesse período pude também visitar diversos museus, com destaque para o Museu
de Artes Plásticas de Taipei, onde pude ver uma instalação do diretor Tsai Ming-
liang intitulada It’s a Dream (Shi meng). A obra consiste em uma projeção em
DVD dentro de um cubo branco, onde estão também três fileiras de cadeiras
vindas de um velho cinema na Malásia. Essa instalação faz parte da série “Memory
of a Journey”, que conta também com o trabalho dos artistas Chiou Jyian-ren,
Huang Ming-chang e Wang Ya-Hui. Uma análise de It’s a Dream foi incorporada
ao capítulo dedicado à cidade efêmera. Outros museus, templos e jardins visitados,
além de diversas locações de filmes, propiciaram um importante contato com a
cultura taiwanesa, e uma nova perspectiva sobre os filmes que venho pesquisando,
muitos deles filmados em locação em Taipei. Lá pude também ir ao cinema
algumas vezes, onde assisti a três novos filmes que contém o nome Taipei em seu
título, exemplos recentes de um cinema urbano que cultiva uma relação
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importante com a cidade: Yi Ye Taipei (Au Revoir Taipei, Arvin Chen, 2010),
Taipei Xingqi Tian (Pinoy Sunday, Ho Wi Ding, 2009) e Taipei Exchanges (Hsiao
Ya-Chuan, 2010).
i) Na excelente livraria do campus da Universidade, assim como na gigantesca
Livraria Eslite, pude adquirir alguns DVDs e livros indisponíveis em outros países,
extremamente úteis para a minha pesquisa.
Conforme evidenciado acima, o período como pesquisadora visitante na Escola de
Cinema e Novas Mídias, Taipei National University of the Arts, foi extremamente
produtivo. O apoio que recebi da Escola e dos professores Daw-Ming Lee e Peggy Chiao
foi fundamental para o bom desenvolvimento da pesquisa. Fiquei também grata ao diretor
Tsai pela longa entrevista concedida.
PESQUISA DE CAMPO EM BEIJING, CHINA.
Período: 23/05/2011 – 29/05/2011
Após o período como Pesquisadora Visitante em Taiwan passei uma semana em Beijing,
China Continental, para realizar Pesquisa de Campo. Essa pesquisa foi motivada pela
importância da obra do diretor Jia Zhang-ke e pela inclusão de um novo capítulo na tese.
Originalmente, apenas o filme Em busca da vida seria analisado sob o ponto de vista da
cidade efêmera, mas após as últimas modificações no conteúdo dos capítulos seus filmes
Xiao Wu, O mundo e Cry me a river foram incorporados, devido a sua importância no
contexto do cinema urbano contemporâneo. A relação entre o cinema e a arquitetura de
jardins chinesa, já esboçada na introdução da tese submetida com o segundo relatório,
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configurou-se como um tema de análise prolífico e totalmente original, razão pela qual
acabou se transformando em um novo capítulo. Como é sabido, o jardim é parte
integrante do tecido urbano chinês, podendo também ser visto como um espaço híbrido
entre a cidade e o campo. Assim sendo, durante os sete dias em Beijing pude visitar os
Jardins Imperiais chineses “Palácio de Verão” e as ruínas do antigo Palácio de Verão,
“Yuan Ming Yuan”, os maiores exemplos da arquitetura de jardins no país, e nos quais
procurei identificar uma experiência pré-cinematográfica. O resultado dessa visita aparece,
inclusive através de imagens, no Capítulo 5 da tese. Em Beijing pude também adquirir
DVDs e livros indisponíveis no Brasil ou via Internet, e visitar a biblioteca da Beijing Film
Academy, a principal escola de cinema da China. Estabeleci contato com o diretor Jia
Zhang-ke mas infelizmente não pude entrevistá-lo devido ao tempo exíguo. De qualquer
modo esse foi um período extremamente valioso para minha pesquisa, que acredito ter
crescido consideravelmente com a expansão dessa nova área.
B.1.2) INGLATERRA
CENTRE FOR WORLD CINEMAS
SCHOOL OF MODERN LANGUAGES AND CULTURES
UNIVERSITY OF LEEDS
Supervisão: Prof. Lúcia Nagib
Período: 21/01/2011 – 21/03/2011
De 21 de janeiro a 21 de março de 2011 fui recebida pelo Centre for World Cinemas,
School of Modern Languages and Cultures, University of Leeds como Pesquisadora
Visitante (título oficial conferido pela Universidade: Visiting Fellow). Levando-se em conta
a natureza abrangente da pesquisa, que procura desenhar um novo mapa a partir de filmes
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individuais, o principal motivo desse estágio foi levar minhas ideias a um dos mais
importantes centros do estudo de World Cinema no mundo, liderado pela Prof. Lúcia
Nagib. Lá pude beneficiar-me da infra-estrutura de bibliotecas da universidade, discutir
minhas ideias com diversos colegas da área e apresentar o trabalho em um evento público,
além de escrever dois artigos e um capítulo de livro que serão publicados entre 2011 e
2012 na Inglaterra. Descreverei a seguir as principais atividades realizadas no Centre for
World Cinemas:
a) Fiquei hospedada dentro do campus da Universidade de Leeds, em apartamento
para professores e pesquisadores visitantes. Recebi uma carteirinha de acesso às
duas bibliotecas da universidade, além de email e senha para acesso de diversos
periódicos acadêmicos online. No prédio do Leeds Humanities Research Institute,
localizado dentro do campus, alocaram-me um escritório próprio com
computador, internet, acesso à impressora e Xerox.
b) Fui recebida pelo Centre for World Cinemas como membro do comitê executivo,
e participei de uma reunião da diretoria, na qual a Prof. Lúcia Nagib expôs meu
projeto e os detalhes da minha bolsa de Pós-Doutorado Fapesp. Participei também
de duas reuniões com alunos do mestrado em World Cinemas, de modo a
colaborar com ideias acerca de suas pesquisas sobre a relação entre cinema e
cidade e sobre cinema chinês.
c) Apresentei uma Aula Pública (Public Lecture) intitulada “Movement and Urban
Spaces in Contemporary World Cinema”, com duração de uma hora, acerca das
principais linhas da minha pesquisa, com ênfase no capítulo sobre a viagem entre
duas cidades. Mais de 60 pessoas compareceram a esse evento, entre alunos de
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graduação, mestrado, doutorado e professores da área de cinema e línguas. Essa
foi sem dúvida a mais importante apresentação da minha vida acadêmica e a
resposta da platéia foi em geral muito positiva. A aula foi transformada em um
artigo a ser publicado na revista acadêmica inglesa Transnational Cinemas.
d) Durante esse período na Inglaterra pude também entrevistar a diretora de filmes
experimentais Manu Luksch, cujo Faceless integra a pesquisa acerca das cidades
controladas. Baseada em Londres, a diretora conversou comigo por mais de duas
horas sobre seu trabalho, no qual usa imagens de câmeras de segurança e trânsito.
A entrevista está sendo transcrita e traduzida e poderá ser publicada no futuro.
e) Em Leeds ministrei quatro aulas no curso de graduação em World Cinemas. Os
temas abordados foram: “Godard, alienation effect and Brecht”; “British Social
Realism”; “Dogma 95” e “Taiwan New Cinema”. Essa foi uma excelente
oportunidade através da qual pude aprimorar minha experiência como docente.
Nesse período a pesquisa e redação de três capítulos foi finalizada. Por lá estar em contato
direto com novas publicações, tanto através das bibliotecas quanto através de artigos que
pude “baixar” automaticamente através da rede da universidade, senti que a pesquisa
atualizou-se e internacionalizou-se ainda mais. Pude também nesse período preparar dois
artigos (um baseado na Aula Pública e outro baseado em uma comunicação sobre o
diretor Tsai Ming-liang, conforme explicado no próximo item), submetidos à publicação
em periódicos com sistema de avaliação por pares. Completei também um capítulo de
livro (baseado na comunicação proferida na Conferência Impure Cinema, conforme
explicado no próximo item), submetido à publicação. Por fim, destaco o apoio que recebi
da Prof. Lúcia Nagib, cujas sugestões e ensinamentos muito enriqueceram o trabalho.
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B.2) PUBLICAÇÕES
Conforme mencionado no item anterior, preparei dois artigos e um capítulo de livro que
foram submetidos à publicação na Inglaterra. O primeiro, intitulado “Movement and
Urban Spaces in Contemporary World Cinema”, foi submetido à publicação na revista
acadêmica Transnational Cinemas (Intellect, UK), e deve sair ainda em 2011. O segundo
artigo intitula-se “Cinema, City and the Ephemeral in Tsai Ming-liang’s The Skywalk is
Gone, Goodbye, Dragon Inn and It’s a Dream”, e foi submetido para publicação na
revista acadêmica Journal of Chinese Cinemas (Intellect, UK). O capítulo de livro intitula-
se “Jia Zhangke’s Cinema and Chinese Garden Architecture”, e foi submetido para
publicação no livro Impure Cinema, uma coletânea de artigos apresentados durante a
conferência de mesmo nome na Universidade de Leeds, em dezembro de 2010, e que
está sendo editado pelas professoras Anne Jerslev e Lúcia Nagib.
Listo agora outras publicações não diretamente relacionadas à pesquisa, mas nas
quais consta o nome da FAPESP:
Mello, Cecília e Sobrinho, Gilberto, “Entrevista com Lúcia Nagib”, Conexão
(UCS), v.8, pp. 213 - 225, 2009.
Mello, Cecília, “I Don’t Owe You Anything: The Smiths and Kitchen-sink Cinema”. In
Sean Campbell e Colin Coulter (orgs), Essays on The Smiths: Why Pamper Life’s
Complexities? (Manchester: Manchester University Press, 2010).
Mello, Cecília, “探索巴西電影地圖”(“Journeying through Brazilian Cinema”). In
12th Taipei International Film Festival Catalogue. Junho 2010.
Mello, Cecília, “A Rebeldia Atemporal de If...”, in Os filmes que sonhamos,
coleção Lume Filmes Vol. 1 (no prelo, lançamento previsto para julho 2011)
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B.3) USO DA RESERVA TÉCNICA: APRESENTAÇÃO DE TRABALHOS NO EXTERIOR
B.3.1) NECS 2010 CONFERENCE “URBAN MEDIATIONS”
Conforme já previsto no relatório anterior, apresentei um trabalho na conferência “Urban
Mediations” em Istambul, Turquia, que durou de 24 a 27 de junho de 2010. Organizada
pela associação NECS (European Network for Cinema and Media Studies) em cooperação
com a Universidade Kadir Has – Faculdade de Comunicação, essa conferência de grande
porte comprovou mais uma vez a imensa atualidade do tema cinema-cidade. Com cerca
de 300 participantes vindos de diversos países da Europa e outras partes do mundo, a
conferência contou também com três convidados de grande porte (keynote speakers), a
saber, a socióloga e professora Saskia Sassen (Columbia), uma das principais pensadoras
contemporâneas sobre a cidade, e os professores da área de cinema Thomas Elsaesser
(Amsterdam) e Charlotte Brunsdon (Warwick). Apresentei um trabalho intitulado “A
Tale of Two Cities: Time, Space, Memory, Identity”, e pude assistir a diversas palestras
sobre a relação entre o cinema e a cidade, uma experiência absolutamente essencial tanto
para divulgação da minha pesquisa quanto para minha atualização na área. Uma cópia da
apresentação foi publicada em pdf no site da NECS.
B.3.2) “TSAI STUDY DAY” E” IMPURE CINEMA CONFERENCE”
Nos dias 15 e 16 de novembro de 2010 participei de um evento organizado pelo Centre
for World Cinemas, Universidade de Leeds, dedicado à obra do diretor Tsai Ming-liang.
Através de um contato estabelecido por mim, a Universidade e o Festival Internacional de
Cinema de Leeds puderam convidar o diretor Tsai Ming-liang para receber um prêmio e
20
proferir uma palestra durante o festival. Por essa ocasião, o Centre for World Cinemas
organizou um workshop intitulado “Tsai Study Day”, no qual apresentei a comunicação
“Cinema, City and the Ephemeral in Tsai Ming-liang’s The Skywalk Is Gone, Goodbye,
Dragon Inn and It’s A Dream”. Os outros palestrantes foram o Prof. Song Hwee Lim
(Exeter) e o doutorando Tiago de Luca (Leeds). Assisti também à palestra do diretor e
participei da organização do evento.
De 1 a 4 de dezembro de 2010, apresentei a comunicação “Jia Zhangke’s Cinema
and Chinese Garden Architecture” na Conferência Internacional “Impure Cinema”,
organizada pela Mixed Cinema Network (University of Leeds, University of Sheffield,
University of York) e o White Rose East Asia Centre. A conferência contou com mais de
50 participantes do mundo todo, e com os convidados Philip Rosen (Brown), Griselda
Pollock (Leeds) e Anne Jerslev (Copenhagen). O tema da conferência, o “cinema
impuro”, refere-se ao termo cunhado por André Bazin em seu artigo “Pour un cinéma
impur: défense de l’adaptation”, e abarca as relações entre o cinema e as outras artes
(fotografia, artes visuais, teatro, música, literatura), além de aspectos interculturais e
intertextuais e a relação entre o cinema e a filosofia.
B.4) APRESENTAÇÃO DE TRABALHOS NO BRASIL
Em 2010 apresentei a comunicação “Transnacionalidade em Terra estrangeira, Contra a
parede, Que horas são aí?e Import/export” no XIV Encontro Anual da SOCINE, realizado
em Recife entre 7 e 9 de outubro de 2010. No dia 13 de maio de 2011 participei da “2ª
Semana de Pesquisa ECA/USP”, durante a qual pude mais uma vez apresentar as principais
linhas da pesquisa para uma platéia composta de pesquisadores e alunos de todos os
departamentos da ECA. Por fim, em setembro de 2010 apresentei a comunicação “O
impulso demótico na literatura e no cinema inglês do pós-guerra”, no I Congresso
21
Internacional Texto/Imagem, organizado entre os dias 20 e 24 de setembro pela
Universidade Federal de São Paulo, Campus Guarulhos.
B.5) ATIVIDADE DOCENTE
No segundo semestre de 2010 ministrei algumas aulas no curso Montagem/Edição I,
oferecido aos alunos de graduação da ECA pela Profa. Dra. Maria Dora Mourão. Ofereci
também duas oficinas de dia inteiro na V Semana Universitária do Audiovisual, de 3 a 7
de setembro de 2010, organizada por alunos de cursos superiores de audiovisual em
diversas universidades do Brasil. Na primeira oficina teci um panorama histórico do
Cinema Chinês, e na segunda um panorama sobre o Cinema Taiwanês, com destaque
para o “Novo Cinema” de Hou Hsiao-hsien e Edward Yang e a obra de Tsai Ming liang.
Em 2011, conforme observado anteriormente, ministrei aulas no curso de
graduação em World Cinemas da Universidade de Leeds, Inglaterra, como parte das
minhas atividades como “Visiting Fellow”.
C) DETALHAMENTO DOS PROGRESSOS REALIZADOS
No terceiro ano de bolsa pude apresentar trabalhos em diversas conferências no Brasil e
no exterior, preparar três publicações substanciais, e realizar dois estágios no exterior, o
primeiro em Taiwan e o segundo na Inglaterra, além de dar continuidade a eventuais
atividades de docência. Esse foi um período muito valioso no qual pude finalizar a
pesquisa a partir do contato com novas referências bibliográficas e fílmicas, no Brasil e no
exterior; divulgar a pesquisa em diferentes fóruns e beneficiar-me da troca de ideias,
também no âmbito nacional e internacional; submeter artigos à publicação; fazer os ajustes
22
finais no projeto; e terminar a primeira versão da tese. Acredito que a pesquisa rendeu
diversos frutos, que serão plenamente consolidados na publicação do livro “Movimento e
Espaços Urbanos no Cinema Contemporâneo”. Com isso, espero ter atingido o objetivo
de criar uma importante contribuição para a pesquisa no campo do audiovisual no Brasil,
e especificamente sobre a relação entre o cinema contemporâneo e a cidade. Espero
também ter contribuído para a divulgação da pesquisa brasileira e do nome da FAPESP no
exterior.
Conforme explicado no relatório anterior, o projeto inicial sofreu alterações que
levaram à sua re-estruturação em forma de tese, que se beneficiava da interconectividade
dos temas abordados e de uma introdução teórica. Durante o último ano da pesquisa, a
divisão de capítulos sofreu uma última alteração, conforme poderá ser observado no item
D.
23
D) MOVIMENTO E ESPAÇOS URBANOS NO CINEMA CONTEMPORÂNEO
obs: Incluo aqui parte da monografia Movimento e Espaços Urbanos no Cinema
Contemporâneo.
INTRODUÇÃO
Locked within a Lacanian gaze, whose spatial impact remained unexplored, the film spectator was turned into a voyeur. By contrast, when we speak of site-seeing we imply
that, because of film’s spatio-corporeal mobilization, the spectator is rather a voyageur, a passenger who traverses a haptic, emotive terrain.
1
Giuliana Bruno, 2002
Le città sono un insieme di tante cose: di memoria, di desideri, di segni d’un linguaggio; le città sono luoghi di scambio, come spiegano tutti i libri di storia dell’economia, ma questi
scambi non sono soltanto scambi di merci, sono scambi di parole, di desideri, di ricordi.2
Italo Calvino, 1983
Nessuno sa meglio di te, saggio Kublai, che non si deve mai confondere la città col discorso che la descrive. Eppure tra l’una e l’altro c’è un rapporto.
3
Italo Calvino, 1972
Esta introdução é dotada de três epígrafes. A primeira, extraída de Atlas of Emotion de
Giuliana Bruno, se refere à mobilização espaço-corporal e emotiva da experiência do
cinema. A segunda, de Italo Calvino, fala da cidade como local de troca de palavras,
1 Atlas of Emotion, pp. 15-6. “Preso no olhar Lacaniano, cujo impacto espacial não fora explorado, o
espectador de cinema se transformou em um voyeur. Por contraste, quando falamos de site-seeing
sugerimos que, por conta da mobilização espaço-corporal de um filme, o espectador é na realidade um
voyageur, um passageiro que atravessa um terreno háptico, emotivo.” 2 Italo Calvino, conferência proferida em 29 de março de 1983 na Columbia University, Nova Iorque,
reproduzida em Le città invisibili (Milano: Oscar Mondadori, 2009), p. IX-X: “As cidades são um
aglomerado de tantas coisas: de memórias, de desejos, de sinais de uma linguagem. As cidades são locais
de troca, como explicam os livros de história da economia, mas estas trocas não são apenas de
mercadorias, são trocas de palavras, de desejos, de recordações.” 3 “Ninguém sabe melhor do que tu, sábio Kublai, que nunca se deve confundir a cidade com o discurso que
a descreve. No entanto, há uma relação entre ambos.” Le città invisibili, p. 61.
24
desejos e recordações, logo um espaço dinâmico e também emotivo. A terceira, extraída
do livro de Calvino Le città invisibili ([1972] 2002), se refere à cidade e a seu discurso, que
não podem ser confundidos, mas que guardam uma relação. A presente indagação situa-se
na encruzilhada entre cinema-discurso-cidade, e propõe a análise de filmes realizados a
partir de meados dos anos 1990 em locação nas mais diversas cidades espalhadas pelo
globo. Partindo de questionamentos acerca do espaço urbano e do espaço
cinematográfico, essa tese se estrutura sobre temas ligados à questão do movimento no
cinema e na cidade. O principal objetivo é propor interconexões entre filmes distintos
para assim investigar quais as conseqüências estéticas e narrativas que advêm de sua
relação privilegiada com o espaço urbano real.
Nas últimas duas décadas é possível notar um interesse renovado na teoria do
audiovisual pela relação entre cinema e cidade. A ênfase nesse campo de investigação
encontra também um paralelo em outras disciplinas, tais como a geografia social, a
sociologia e a arquitetura. Numerosas produções teóricas em língua inglesa e francesa dão
sinais claros da atualidade do tema, tais como The Cinematic City (1997), editado por
David B. Clarke, Cinema and the City: Film and Urban Societies in a Global Context
(2001), editado por Mark Shiel e Tony Fitzmaurice, e Visualizing the City (2007), editado
por Alan Marcus e Dietrich Neumann.4
Na França foram publicados recentemente os
volumes La ville au cinéma (2005), editado por Thierry Jousse e Thierry Paquot, e o
homônimo La ville au cinéma (2005), de Julie Barillet, Françoise Heitz, Patrick Louguet e
Patrick Vienne. Como sugere Julia Hallam, a relação entre cinema e cidade “é cada vez
mais reconhecida como a base arquetípica para o exame da experiência visual e sensorial,
4 Destaco também as conferências “Screenscapes” (Leeds, 1993), “Cine City” (Los Angeles, 1994),
“Cinema and Architecture” (Cambridge, 1995), além das mais recentes “City in Film: Architecture, Urban
Space and the Moving Image”, organizada pela Universidade de Liverpool em 2008 e ‘Urban Mediations:
NECS 4th Annual Conference’, organizada pela European Networks for Cinema and Media Studies
(NECS) e a Universidade Kadir Has em Istanbul, Turquia.
25
da forma e do estilo, da percepção, cognição e significado da imagem e do texto fílmico”
(2010, p. 277)5
.
De um modo geral, os estudos contemporâneos sobre cinema e cidade recaem
sobre cidades individuais e sua representação, cinematografias nacionais, gêneros e
diretores afinados com o urbano, a cidade pós-moderna no cinema, além de dois blocos
que se inserem dentro de discussões mais amplas: o cinema e a vida moderna e o cinema
e a cidade pós-colonial. O primeiro passa obrigatoriamente por uma redescoberta dos
escritos pioneiros de Walter Benjamin, principalmente “A Obra de Arte na Era de sua
Reprodutibilidade Técnica” e “Alguns Motivos em Baudelaire” ([1936] [1939] 1999,
2002), nos quais os alicerces do paralelo entre cinema e cidade podem ser identificados. É
sabido que o cinema, filho da primeira modernidade, é uma arte que adquire forma no
seio da cidade. Suas raízes mais imediatas encontram-se imbricadas na experiência
fragmentada da vida urbana nas grandes metrópoles do final do século XIX, e os primeiros
experimentos com a imagem em movimento parecem impregnados das características
desse espaço. Benjamin aproxima a intensidade dos estímulos sensoriais e a percepção
fragmentada da experiência urbana à fragmentação audiovisual do cinema, contribuindo
para o que Ben Singer chamou de uma concepção neurológica da modernidade (1995, p.
72). Inspira-se em grande parte no ensaio fundador de Georg Simmel “A Metrópole e a
Vida Mental”, de 1903, no qual foram lançadas as idéias fundamentais sobre a experiência
urbana como um local de acúmulo de estímulos visuais e auditivos. O cinema pode assim
ser visto como um dos produtos da era moderna, ligado também ao surgimento das
principais teorias urbanísticas e arquitetônicas e ao desenvolvimento da psicanálise
(Charney & Schwartz, 1995). A partir do paradigma “cinema - primeira modernidade”,
influentes teorias foram forjadas nos últimos anos, inspiradas igualmente em Benjamin e
5 “is increasingly recognised as the archetypical ground for examining visual and sensory experience, form
and style, perception, cognition and the meaning of the filmic image and filmic text.”
26
em Sigfried Kracauer, outro teórico alemão preocupado com as relações entre o cinema a
vida na metrópole (ver, por exemplo, Hansen, 1991, 2000, 2009, Friedberg, 1993, e o
volume Cinema and the Invention of Modern Life, editado por Charney & Schwartz,
1995).
A discussão da cidade cinematográfica sob o ponto de vista da sua representação
encontra também campo fértil nos estudos contemporâneos dedicados aos espaços pós-
coloniais e ao cosmopolitanismo. Emergindo da corrente dos Estudos Culturais, o Pós-
colonialismo, através do trabalho de pensadores como Homi K. Bhabha e Arjun
Appadurai, teve grande influência nos estudos de cinema a partir do início dos anos 1990,
sensível na obra de Ackbar Abbas sobre a cultura urbana do Leste Asiático (1997) e de
Hamid Naficy, criador do termo accented cinema (cinema acentuado, 2001). A frequência
pela qual a cidade contemporânea é enxergada através da lente do pós-colonialismo é
evidenciada pela multiplicação dos termos “migrante”, “diaspórico”, “híbrido”,
“multicultural”, “transnacional”, “de fronteiras” e “acentuado” no campo do audiovisual,
adjetivando o cinema, filmes e diretores. Os estudos afinados com essa corrente, grosso
modo, procuram examinar de que modo o cinema dá conta, através da sua representação
urbana, dos novos espaços que aparecem com o fim da era colonial e a emergência da
globalização. O desejo de repensar os espaços representados pelo cinema sob esse novo
contexto reflete-se também no uso frequente dos termos “local” e “global”, além do
aparecimento dos neologismos “polilocal”, “translocal”, “glocal”, entre tantos outros que
tentam aferir o impacto das novas conjunturas políticas e sociais no mundo globalizado e
multicultural (ver por exemplo Zhang, 2010, França & Lopes, 2010).
Nesse contexto, observa-se também uma mudança de ênfase que aponta
decididamente para a Ásia e não mais somente para o mundo ocidental. Essa mudança foi
provocada pelas intensas transformações pelas quais passa a região – e principalmente o
leste do continente, liderado pela China – e os efeitos dessas transformações no espaço
27
urbano. Aliado a isso aparece nas últimas duas décadas uma série de diretores afinados
com o urbano, como por exemplo os jovens diretores da Sexta Geração do cinema chinês
– também chamada de Geração Urbana, o cantonês Wong Kar-wai e os três grandes
mestres taiwaneses das décadas de 1980, 1990 e 2000, Hou Hsiao-hsien, Edward Yang e
Tsai Ming-liang6
(ver o volume Cinema at the City’s Edge: Film and Urban Networks in
East Asia, Braester & Tweedie, 2010). As intensas transformações pelas quais passam as
cidades asiáticas e principalmente as chinesas (no sentido mais amplo do termo) levam até
mesmo à sugestão de que a cidade está em vias de desaparecimento, ou que se deslocou
para a dimensão da arquitetura das informações, tornando-se, nos termos de Abbas,
irrepresentável (1997, 2010). Como explica Dudley Andrew,
escritores e diretores pós-modernos vêem a cidade invisível, discordante, e, de um
modo fundamental, irrepresentável. A simultaneidade temporal e a aleatoriedade
espacial não colaboram com o meio do tempo e do espaço, pois nas cidades hoje a
simultaneidade pode significar estar em nenhum lugar e em todos os lugares ao
mesmo tempo. (2010, p. 37)7
Diante dessa cidade discordante, cada vez mais determinada por redes de informações
globais, há também a sugestão de que o cinema como o conhecemos vem perdendo lugar
para outros meios e outras telas, mais afinadas aos espaços urbanos efêmeros.
Partindo dessas observações, poder-se-ia até mesmo supor que o presente trabalho
caracteriza-se pelo anacronismo ao buscar estabelecer relações entre “filmes de cinema” –
e filmes de ficção, por mais nuançado que seja esse conceito – e “cidades reais”. Pois
apesar de levar em conta novos paradigmas urbanos e novos paradigmas cinematográficos,
não se trata aqui de problematizar esses conceitos a ponto de negá-los, e sim de traçar
6 O cinema de Hou Hsiao-hsien tradicionalmente se alterna entre o campo e a cidade, ou entre a cidade
pequena e a cidade grande, ao contrário do de Yang, decididamente urbano. 7 “Postmodern writers and filmmakers find the city invisible, disconrdant, and in a fundamental way
unrepresentable. Temporal simultaneity and spatial randomness work against this medium of time and
space, for in cities today simultaneity could mean being nowhere as well as everywhere at once.”
28
interconexões que possam sugerir novos mapas para o cinema mundial. Nessa trajetória
por entre cinemas e cidades, as ruas de São Paulo, Taipei e Roma se encontram com as
de Estrasburgo, Fenyang, Lisboa, Paris, Hamburgo, Istambul, Snizhne, Viena, Feng Jie,
Pequim, Suzhou, San Sebastián e Ulan Bator. Ao promover esse encontro, desejo
empregar uma abordagem original para o estudo da relação entre o cinema-discurso-
cidade, unindo cidades e cinemas distantes em uma nova geografia.
Esses filmes têm em comum, antes de tudo, o fato de terem sido realizados em
locações reais. Em seu ensaio “Cities: Real and Imagined” (2001), Geoffrey Nowell-Smith
ressalta a importante diferença entre filmes “urbanos” realizados em estúdio e aqueles
realizados em locação, e sugere esse critério como um modo inicial de distingui-los em
dois grupos principais. Ainda dentro do grupo de filmes rodados em cidades reais,
Nowell-Smith destaca aqueles “cuja característica é de emanar uma sensação de lugar que
seria impossível sem o liame ontológico entre o cenário da ficção e a locação real” (2001,
p. 103).8
Ao referir-se a um “liame ontológico”, Nowell-Smith ecoa a terminologia
empregada por André Bazin em sua definição de realismo cinematográfico, baseado na
relação ontológica entre o real e a imagem fotográfica. Desse modo, ressalta o fato de
existirem filmes que não poderiam prescindir do uso da locação real sem que isso não os
alterasse de modo radical.
Os filmes aqui percorridos podem ser posicionados dentro deste grupo, logo sua
discussão gira em torno da presença e implicações do uso da cidade real no cinema. Em
todos eles há, de início, um desejo consciente de caracterizar o cenário da ficção como a
cidade real, o que envolve com freqüência o uso de locações externas reconhecíveis para
seus habitantes ou visitantes, tais como o minhocão em São Paulo, o Chifre de Ouro em
Istambul, o Tejo em Lisboa, os jardins de Suzhou e os famosos mercados noturnos de
8 “whose characteristics is that they yield up a sense of place that would have been impossible without the
ontological link between nominal setting and actual location.”
29
Taipei. Mesmo que marcos arquitetônicos, geográficos ou históricos não estejam figurados
de modo proeminente, todos os filmes fazem referência através de diálogo, voz over ou
materiais escritos à cidade real, além de muitas vezes utilizarem locações internas também
reconhecíveis, tais como bares, salas de espetáculo, restaurantes, cinemas e lojas
emblemáticas ou típicas da respectiva cidade. A caracterização das personagens através de
suas falas e o uso do sotaque local contribuem também para a inequívoca composição de
um ambiente real.
A proeminência da cidade real insere esses filmes em uma tendência maior de
“retorno ao real” na produção audiovisual mundial, aliada a uma reabilitação do realismo
nos estudos acadêmicos, que se inicia na era que se pode chamar de pós-pósmodernismo,
inaugurada em meados dos anos 1990 por movimentos tais como o Dogma 95 na
Dinamarca, o cinema iraniano dos anos 1990 (com destaque para Abbas Kiarostami) e o
cinema chinês (da China continental, de Hong Kong e de Taiwan) de Zhang Yimou e
principalmente de Tsai Ming-liang. Conforme observa Anne Jerslev (2002, pp. 7-8), tais
cinematografias assinalaram o fim da ironia e da intertextualidade, e o re-estabelecimento
do elo entre as imagens em movimento e a realidade objetiva. Assim, o cinema de
pastiche que caracterizou o momento pós-modernista parece ter perdido fôlego a partir de
meados dos anos 1990, e a força de movimentos realistas foi cada vez mais sentida no
cenário mundial, levando a novos questionamentos acerca da noção de realismo.
O realismo aparece na teoria do cinema desde o seu início, e particularmente
desde a Segunda Guerra Mundial com a defesa de Kracauer e sobretudo de Bazin do
realismo cinematográfico. Entretanto, a fidelidade a teorias realistas atravessou um
declínio por quase duas décadas a partir dos anos 1970, ao serem associadas à “ideologia
burguesa” e ao chamado “cinema clássico de Hollywood”, cujo objetivo era produzir uma
ilusão de realidade. Desde os anos 1980, entretanto, as teorias psicanalíticas e pós-
estruturalistas que inspiraram estas abordagens têm sido objeto de sucessivas revisões.
30
Shaviro (1993) reformulou a questão do prazer cinematográfico ao rejeitar o modelo
Lacaniano de regressão e identificação passiva, enfatizando o elemento ativo e corpóreo
da experiência do cinema. Bordwell e Carroll (1996), apoiando-se no cognitivismo,
orquestraram a demolição de todas as abordagens baseadas na psicanálise e nos estudos
culturais. Deleuze (1985) inspirou uma série de novos estudos relacionados à “sensação”,
“afeto” e “o corpo”. Mais recentemente, a introdução da tecnologia digital reacendeu a
discussão de questões centrais às teorias realistas, tais como mimesis, representação e,
particularmente, a “ontologia” da imagem fotográfica de Bazin e sua tradução para o
conceito semiótico de “indexicalidade” (Wollen, [1969] 1998). Identificar traços do índice
(ou o elo material da imagem com o real) em práticas cinematográficas recentes se tornou
o objeto de estudos tais como o de Margulies (2003), Rites of Realism, que gira em torno
das noções de “cinema corpóreo” e “reencenação”. Abordagens psicanalíticas se
reinventaram a partir da aplicação do conceito de Real de Lacan no cinema (Zizek, 2002).
E o conceito de “imagem-tempo” de Deleuze tornou-se essencial como método de análise
do cinema moderno, particularmente no que tange às práticas realistas.
Os avanços teóricos acompanharam ou responderam à onda de filmes de ficção,
reality shows, documentários e vídeos para a internet que revelam um desejo de retorno
ao real no campo do audiovisual. O cinema da cidade de São Paulo é de certo modo
paradigmático dessa passagem da era pós-moderna do simulacro para um re-encontro
com o realismo. Os anos 1980 foram a época do chamado “Novo Cinema Paulista”,
também conhecido por “Jovem Cinema Paulista” ou “Cinema da Vila Madalena”.9
No
cinema de diretores tais como Guilherme de Almeida Prado, Wilson Barros e Chico
Botelho, a cidade real dava lugar à cidade do estúdio, do artifício, das citações e das
histórias em quadrinhos. O ciclo, sintomático da “crise do real” que define a era pós-
9 Para um estudo detalhado deste período, ver Cinema Brasileiro Pós-Moderno: O Neon-realismo, de
Renato Luiz Pucci Jr. (Porto Alegre: Sulina, 2008).
31
moderna, acabou recebendo a alcunha jornalística de “néon-realismo”, em clara alusão a
elementos da arquitetura pós-moderna, cujo baluarte é a Las Vegas dos letreiros em néon.
Nos anos 1990 esse cinema pós-modernista ou pós-marginal/tropicalista produzido em
São Paulo começa a perder fôlego. Após a ressaca do pós-moderno, o cinema parece sair
em busca da cidade real, em São Paulo, nos países do leste da Ásia e em diversas outras
partes do mundo. Através do renovado corpo-a-corpo com o espaço urbano, o cinema se
impregna das mesmas características, questionamentos, fragmentos e emoções que
compõem e animam a cidade real, e aí reside o principal interesse dessa investigação.
UMA NOVA GEOGRAFIA
O fato de trazer cinemas e cidades distantes para essa análise me permite substituir os
habituais esquemas de centro-periferia e propor uma nova, e mais complexa, geografia
para o cinema mundial recente e contemporâneo. Destaco aqui o caráter supranacional da
pesquisa, que não se debruça sobre um cinema nacional ou um diretor, mas sim sobre
diversos cinemas e diversos diretores, interligados por algum aspecto de sua figuração ou
intersecção com a cidade. A pesquisa funda-se, em primeiro lugar, na noção de Cinema
Mundial formulada por Lúcia Nagib em “Towards a Positive Definition of World
Cinema”, capítulo do volume Remapping World Cinema: Identity, Culture and Politics in
Film (2005). Nagib evoca, entre outros, o pioneiro trabalho de Robert Stam e Ella Shohat
Unthinking Eurocentrism (1994), para propor a adoção de uma abordagem democrática e
inclusiva nos estudos de audiovisual, rejeitando a divisão binária entre centro (Hollywood)
e periferia (o resto do mundo). Nagib demonstra que Cinema Mundial deve ser definido a
partir de uma concepção policêntrica: não é simplesmente aquele feito em outros lugares
que não Hollywood, ou a partir de outros padrões que não os de Hollywood, pois deste
modo assumir-se-ia a existência de um padrão e de um desvio, visão esta que obscurece
32
especificidades locais, influências culturais e diferentes histórias do cinema. Cinema
Mundial também não é uma disciplina, mas sim um método de estudo do cinema do
mundo, que se movimenta através de picos de criação em diversos países e em diversas
épocas. O policentrismo ao qual se refere Nagib seria também reflexo de um ambiente
político e econômico no qual novas potências emergem em diferentes pontos do planeta,
não mais sob a tutela de um poder maior, criando assim uma nova configuração global
multipolar.
Vistos por este ângulo, os filmes que compõem esta tese não representam uma
alternativa dentro de um sistema binário, e nem serão estudados a partir dos paradigmas
criados por este sistema. Também não formam um pico de criação isolado dentro de uma
cinematografia nacional, visto que provêm de diversas cinematografias distintas e
semelhantes ao mesmo tempo. Sua aproximação gera uma nova abordagem teórica que os
une, sugerindo uma geografia desenhada a partir de filmes isolados, inseridos em um novo
mapa. Em seu essencial capítulo, Nagib cita ainda a proposição de Dudley Andrew em
“An Atlas of World Cinema”, ensaio também publicado na coletânea Remapping World
Cinema:
Como Andrew acertadamente argumenta, “todos os filmes por definição...contém
e coordenam dramaticamente as várias forças que o cientista social traduz nos
gráficos. Por que não examinar o filme como um mapa - um mapa cognitivo - ao
mesmo tempo em que se insere o filme no mapa?” Ler um filme como um mapa
acarreta a descoberta de novos territórios e o traçar de novas geografias através da
história do cinema mundial. (2005, p. 35)10
No ensaio citado, Andrew sofre a influência da crítica literária de Franco Moretti, autor do
Atlas do Romance Europeu 1800-1900 ([1997] 2003), e sugere diversos tipos de mapas
10
“As Andrew quite rightly argues, ‘all films by definition ... contain and dramatically co-ordinate the
various forces that the social scientist plots on graphs. Why not examine the film as map - cognitive map -
while placing the film on the map’. To read a film as a map entails the discovery of new territories and the
tracing of new geographies across the history of world cinema.”
33
que podem ser traçados através do imenso território do cinema mundial. A composição
de um atlas constituiria uma forma mais adequada de abordagem em contraposição à
tendência binária (Hollywood X o resto do mundo) ou isolacionista (cinemas nacionais).
Diz Andrew:
Esta abordagem examina os principais fatores, e então se debruça sobre os “lugares
cinematográficos” específicos – provendo as coordenadas para a navegação deste
mundo do cinema mundial. Não há necessidade de atracar-se em todos os portos
como se em um tour du monde com o “guia Michelin” no bolso. É o
deslocamento e não a cobertura que mais importa; viajemos por onde quisermos,
desde que cada cinema local seja examinado com um olhar atento à sua complexa
ecologia. Minha abordagem talvez seja mais bem concebida como um atlas de
tipos de mapas, cada qual oferecendo uma orientação diferente para um terreno
não familiar, trazendo à tona diferentes aspectos, elementos e dimensões. Cada
abordagem, ou mapa, modela um tipo de vista: logo, o Atlas. (2005, p. 19)11
A partir dessas observações, pode-se dizer que a trajetória aqui desenhada através
de cinemas e cidades prioriza a qualidade supranacional do objeto de estudo, criando um
mapa a ser inserido em um atlas do cinema mundial. O que mais importa no traçado
deste mapa, nos termos de Dudley Andrew, é o deslocamento e não a cobertura, o que
significa que esta pesquisa não se pretende em nenhum momento exaustiva. Seu objetivo
é entrelaçar filmes de nacionalidades diferentes, que conjugam uma relação privilegiada
com o espaço urbano no qual foram realizados, mas sem perder de vista as especificidades
culturais das quais se originaram. Como diz Lúcia Nagib em seu inovador World Cinema
and the Ethics of Realism, “em sociedades multiculturais e multi-étnicas como as nossas,
expressões cinematográficas de origens diversas não podem ser vistas como diferentes,
pelo simples fato de que ‘o outro’ somos nós. Mais interessante do que a diferença entre
11
“Such an approach examines overriding factors, then zeroes in on specific ‘cinema sites’ – provides
coordinates for navigating this world of world cinema. No need to dock in every port as if on a tour du
monde with some ‘Michelin guide’ textbook. Displacement, not coverage, matters most; let us travel
where we will, so long as every local cinema is examined with an eye to its complex ecology.
My approach might best be conceived as an atlas of types of maps, each providing a different orientation
to unfamiliar terrain, bringing out different aspects, elements and dimensions. Each approach, or map,
models a type of view: hence, the Atlas.”
34
esses filmes são suas interconexões” (2011, p. 1)12
. Acredito que o foco na interconexão
entre espaços urbanos e entre filmes individuais possa iluminar aspectos inesperados de
sua relação, e trazer à tona grande parte de sua significação.
A VIAGEM DO OLHAR
As interconexões estabelecidas entre cinemas distintos baseiam-se no que Calvino chamou
de discurso da cidade (2009). Esse discurso encontra-se na intersecção entre a cidade
cinematográfica e a cidade real, que transbordam uma sobre a outra, condicionando
impressões, sensações e emoções espaciais. Como observa Machado Júnior,
as cidades que vemos no cinema transformam as cidades em que vivemos. Antes
de mais nada porque já através de sua linguagem o cinema constrói uma cidade
imaginária retida de alguns aspectos da cidade real. É uma outra cidade, filtrada e
elaborada a partir daquela que está aí, com seu espaço físico, seus habitantes, a
cidade empírica que conhecemos. (1989, p. 1)
Thierry Jousse, em seu ensaio introdutório à La ville au cinéma, enciclopédia editada
pelos Cahiers du Cinéma, fala igualmente da cidade cinematográfica como “a soma de
fragmentos que o cineasta decidiu mostrar”, e sugere que “o cinema dá um acesso
privilegiado ao espaço urbano, visto que é formado a partir da mistura entre o espaço real
e o espaço mítico” (Jousse e Paquot, 2005, p. 9).13
Jousse se refere ainda ao modo pelo
qual o cinema contribui para o entendimento de uma cidade, impactando as impressões e
as sensações do espectador, mesmo que este não a conheça:
12
“In multicultural, multi-ethnic societies like ours, cinematic expressions from various origins cannot be
seen as “the other” for the simple reason that they are us. More interesting than their difference is, in most
cases, their interconnectedness.” 13
“la somme des fragments d’elle-même que le cinéaste a choisi de montrer.”; “le cinéma permet um accès
privilégié à l’espace urbain, en tant qu’il est um mixte d’espace réel et d’espace mythique.”
35
É através do cinema que me constituí como habitante de cidades, enquanto
citadino sedentário ou nômade. E é através do cinema que eu habitei
imaginariamente tantas cidades que eu não conhecia, e que hoje tenho o
sentimento de conhecer melhor, mesmo se esse conhecimento relega às vezes à
ilusão. (Jousse and Paquot 2005, p. 10)14
As observações de Machado Jr e Jousse chamam a atenção para dois fatos
importantes. O primeiro se refere à ideia do cinema como uma prática espacial que, ao
movimentar-se através do espaço real, acaba criando um novo espaço, o espaço
cinematográfico, construído a partir do enquadramento, dos ângulos e movimentos de
câmera, da iluminação (natural ou artificial), da interação com os atores ou os habitantes
reais de uma cidade, da montagem, em suma, de todos os recursos da arte cinematográfica
e das outras artes com as quais o cinema interage. O segundo fator importante se refere ao
fato do cinema proporcionar o que se pode chamar de viagem do olhar, ou seja, é possível
ter acesso, conhecer, criar impressões, sensações e até mesmo memórias urbanas a partir
de um filme, realizado em uma cidade real. Aqui, deve-se destacar a obra da professora
italiana baseada nos Estados Unidos Giuliana Bruno, talvez a mais original e inspiradora
no campo teórico das relações entre cinema e cidade. Em seu monumental Atlas of
Emotion (2007), Bruno elabora a qualidade sensorial da experiência cinematográfica
identificada por Gilles Deleuze, que assinalou nos anos 1980 uma passagem do modelo
espectatorial de ótico para háptico, contribuindo assim para um distanciamento da noção
de representação na teoria do cinema (1985). Em seu Atlas, Bruno sugere que o cinema é
uma arte espacial, parente da arquitetura, e assim transforma o(a) espectador(a) de voyeur
em voyageur. Assim, segue a tendência recente de não mais enxergar o cinema como
herdeiro direto da perspectiva Renascentista, e de considerar a apreciação do espaço
fílmico a partir da experiência tátil e do movimento.
14
“C’est par le cinéma que je me suis constitué en tant qu’habitant des villes, en tant que citadin à la fois
sédentaire et nomade. Et c’est par le cinéma que j’ai habité imaginairement tellement de villes que je ne
connasissais pas et que j’ai ajourd’hui le sentiment de mieux connaître, même si cette connaissance
confine parfois à l’illusion.”
36
Diante desse deslocamento de modelo teórico, pode-se afirmar que o cinema, ao
invés de transportar a(o) espectador(a) de volta à fase do espelho da primeira infância,
proporciona uma viagem emotiva através de espaços múltiplos (Bruno aqui aproxima as
palavras motion-movimento e e-motion-emoção). Evocando a conhecida frase de Michel
De Certeau, “toda narrativa é uma narrativa de viagem – uma prática espacial” (2007), ela
sugere ser o filme “a história de viagem por excelência. Narrativas fílmicas geradas por um
lugar, e com frequência rodadas em locação, nos transportam para esse lugar” (1997, p.
46).15
Para Bruno, assistir a um filme é uma “forma imaginária de flânerie” (2007, p. 17).16
Por fim, ela chama também a atenção para o parentesco do cinema com a cidade ao
escrever que por ser “um ‘affair’ urbano, produzido pela era da metrópole, o filme
desvenda o transito metropolitano, e sua velocidade incessante” (1997, p. 46).17
PELO ESPAÇO CINEMATOGRÁFICO
No presente estudo sobre filmes urbanos, essa tese adota a visão de Bruno do cinema
como arte espacial, análoga à arquitetura. Espaço aqui é definido a partir de suas
características dinâmicas, de seu constante movimento, e distinto da idéia de representação
ou recorte estático do tempo com a qual se confunde com freqüência. Na teoria do
cinema, a equivalência entre espaço e representação e a consequente concepção estática
da noção de espaço – oposto ao tempo e ao movimento – parece ter sido perpetuada pela
influência das ideias do filósofo francês Henri Bergson, principalmente pela ênfase em seu
conceito de duração promovida pelos escritos de André Bazin e Gilles Deleuze. Em Pelo
Espaço, Massey segue Soja (1989), Gross (1981) e Foucault (1980) ao tecer importantes
15
“Film is the ultimate travel story. Film narratives generated by a place, and often shot on location,
transport us to a site.” 16
“an imaginary form of flânerie.” 17
“an urban ‘affair’, produced by the age of the metropolis, film imparts the metropoliltan transito, and its
ceaseless speed.”
37
críticas a essa posição filosófica. Em sua constante preocupação com o tempo, Bergson
teria não apenas negligenciado o espaço como também o conceituado de maneira
equivocada: “Não é tanto porque Bergson ‘despriorizou’ o espaço, mas porque, na
associação do espaço com a representação, ele foi privado de dinamismo e, radicalmente,
contraposto ao tempo” (2008, p. 45). Em Duração e Simultaneidade, por exemplo,
Bergson fala da indivisibilidade do tempo em oposição à divisibilidade do espaço ao tratar
das noções de “instante” e “duração”:
O tempo real não tem instantes. Mas formamos naturalmente a ideia de instante e
também a de instantes simultâneos desde que adquirimos o hábito de converter o
tempo em espaço. Pois, embora uma duração não tenha instantes, uma linha
determina pontos. ... O instante é o que terminaria uma duração se ela se
detivesse. Mas ela não se detém. O tempo real não poderia portanto fornecer o
instante; este provém do ponto matemático, isto é, do espaço. ... Instantaneidade
implica portanto duas coisas: uma continuidade de tempo real, ou seja, de
duração, e um tempo espacializado, ou seja, uma linha que, descrita por um
movimento, tornou-se por isso simbólica do tempo. (2006, p. 62)
Percebe-se aqui a preocupação de Bergson com a interpretação que ele julga errônea do
tempo como um recorte (espacial), equivalente a instantes, quantitativo. Daí o termo
“tempo espacilizado” em oposição à “duração”, e uma sombra negativa sobre a noção do
espaço, desprovido de duração ou movimento. Vejamos também de que modo Deleuze
resume a primeira tese de Bergson acerca do movimento, no primeiro capítulo de Cinéma
1: L’image-mouvement:
De acordo com a primeira tese, o movimento não se confunde com o espaço
percorrido. O espaço percorrido é passado, o movimento é presente, é o ato de
percorrer. O espaço percorrido é divisível, e mesmo infinitamente divisível,
enquanto que o movimento é indivisível, ou não se divide sem que mude de
natureza a cada divisão. O que já supõe uma ideia mais complexa: os espaços
percorridos pertencem todos a um mesmo espaço homogêneo, enquanto que os
movimentos são heterogêneos, irredutíveis entre si. (1985, p. 9) 18
18
“D’après cette première thèse, le mouvement ne se confond pas avec l’espace parcouru. L’espace
parcouru est passé, le mouvement est présent, c’est l’acte de parcourir. L’espace parcouru est divisible, et
38
Depreende-se a partir deste trecho o mesmo divórcio entre a noção de movimento e a
noção de espaço: “o movimento não se confunde com o espaço percorrido”; espaço =
passado, movimento = presente; espaço = divisível, movimento = indivisível; ou ainda
espaço = homogêneo, movimento = heterogêneo.
A tendência pela equivalência entre espaço e representação fica ainda mais clara ao
se analisar a resposta de Bergson ao paradoxo de Zenão acerca da ilusão do movimento
de uma flecha, que a cada momento do tempo em sua trajetória ocupa um espaço
equivalente ao seu volume, estando assim imóvel. O movimento então não existiria,
apenas uma sucessão de imobilidades, visto que o espaço pode ser dividido
indefinidamente. Em A Evolução Criadora, Bergson refuta o paradoxo ao sugerir que na
realidade o movimento ocorre no intervalo entre as imobilidades, na transição entre
estados, e não na sua acumulação (2005). Vê-se, portanto, que apesar de refutar o
paradoxo que existe em se pensar o movimento como uma série de espaços imóveis,
Bergson persiste no entendimento do espaço como um recorte do tempo, e trata no lugar
dos intervalos entre os espaços, da duração que não pode ser espacializada, representada.
Movimento, para Bergson, seria qualitativo e não quantitativo, e portanto indivisível.
A discussão se complica com a introdução do paradoxo cinematográfico, que
concretizaria o paradoxo de Zenão, visto que em um filme movimento e tempo são
criados a partir de imobilidades. Em The Emergence of Cinematic Time, Mary Ann
Doane explica de que modo Bergson problematiza a questão do tempo no cinema:
A falácia de Zeno encontra a sua incorporação tecnológica no cinema – na sua
espacialização [meu grifo] do tempo, seu investimento na realidade dos instantes.
même infiniment divisible, tandis que le mouvement est indivisible, ou ne se divise pas sans changer de
nature à chaque division. Ce qui suppose déjà une idée plus complexe: les espaces parcourus appartiennent
tous à un seul et même espace homogène, tandis que les mouvements sont hétérogènes, irréductibles entre
eux.”
39
... O cinema tenta reconstituir o movimento através de uma série de fotografias,
mas nenhuma dessas fotografias tem a ver com o movimento. Seus gestos são
estáticos, congelados. Bergson admite que para que se produza a ilusão do
movimento deve haver movimento real em algum lugar. Ele o localiza no
dispositivo, o projetor, que movimenta o filme para frente. (2002, p. 174)19
Assim, grosso modo, Bergson refuta o paradoxo de Zenão ao falar do movimento como
algo que ocorre nos intervalos entre espaços, e refuta a idéia de “tempo real” no cinema,
transferindo o movimento para o projetor. Deleuze refuta por sua vez a proposição de
Bergson e sugere que o movimento no cinema “pertence ao contrário a uma imagem
intermediária como dado imediato... Em resumo, o cinema não nos proporciona uma
imagem à qual ele adicionará movimento, ele nos dá imediatamente uma imagem-
movimento” (1985, p. 11)20
. Em seguida, Deleuze insiste em uma evolução do cinema de
um plano “espacial e formalmente imóvel” a um plano temporal, que aparece com o
movimento da câmera e a montagem, responsáveis pela “emancipação” da imagem
cinematográfica em relação à projeção, “a conquista de sua própria essência” (1985, p.
12). O “tout” (todo), que sofre uma mudança qualitativa através do movimento, é também
para Deleuze oposto aos “ensembles” (conjuntos), um conceito fechado, contido no
espaço, enquanto que o “todo” ou “todos” está na duração, em constante mutação (1985,
p. 21). Cito ainda outra passagem acerca da imagem-movimento, retirada de L’image-
temps: “A imagem-movimento possui duas faces, uma relativa aos objetos cuja posição
relativa ela faz variar, e a outra relativa a um todo sobre o qual ela exprime uma mudança
19
“Zeno’s fallacy finds its technological embodiment in the cinema – in its spatialization (meu grifo) of
time, its investment in the reality of instants. …[Cinema] becomes emblematic, for him, of our ordinary,
everyday pragmatic knowledge of time. Such knowledge is, of necessity, discontinuous and has what
Bergson refers to as a cinematographic quality. But for Bergson it is crucial to move beyond that
cinematographic impulse to grasp the true nature of duration and movement. The cinema attempts to
reconstitute movement with a series of still photographs, but none of these photographs has anything to do
with movement. Their gestures are static, frozen. Bergson admits that in order to produce the illusion of
movement there must be real movement somewhere. He locates it in the apparatus, the projector, which
moves the film forward.” 20
“appartient au contraire à l’image moyenne comme donnée immédiate. ... Bref, le cinéma ne nous donne
pas une image à laquelle il ajouterait du mouvement, il nous donne immédiatement une image-
mouvement.”
40
absoluta. As posições estão no espaço, mas o todo que muda está no tempo” (Deleuze,
1985b, p. 50)21
.
Os questionamentos de Bergson e Deleuze acerca do tempo/movimento
interessam aqui na medida em que revelam uma insistência em se equivaler o espaço à
imobilidade, ausência de vida, uma categoria divorciada do movimento, a despeito da
diferença entre “espaço” e “representação”. Em A Evolução Criadora, entretanto, Bergson
parece sugerir uma mudança ao admitir ao menos a necessidade de se distinguir entre
espaço e espacialização, e de se levar em conta a interpenetração entre espaço e tempo
(Bergson, 2005; Massey, 2008). De qualquer modo, me parece fundamental insistir nesta
questão para que a noção de espaço cinematográfico também deixe de ser encarada como
equivalente à imobilidade do fotograma, divorciada da duração. Se o cinema promove
uma espacialização (evidenciada nos fotogramas), o espaço fílmico, e o espaço em geral,
não equivalem a essa espacialização/representação. A noção de movimento deve ser
considerada como análoga ao tempo e ao espaço, visto que seria errôneo igualar o
congelamento do tempo no fotograma a um espaço sem tempo. Como ensina Doreen
Massey, o próprio entendimento do espaço não pode existir sem a noção de
movimento/tempo, distante da idéia de um recorte estático do tempo, de seu
congelamento: “O tempo não apenas não pode ser fragmentado (transformando-se de um
contínuo em uma multiplicidade discreta), como mesmo o argumento de que isso não é
possível não deveria se referir ao resultado como espaço” (2008, p. 47).
Não há dúvida que o cinema, através da imobilidade de seus quadros, aponta para
duas temporalidades distintas, a despeito da equivalência indexical entre a imagem em
movimento e a imagem congelada, conforme demonstra Laura Mulvey em Death 24x a
Second: Stillness and the Moving Image (2006). Com a introdução da tecnologia digital na
21
“L’image-mouvement a deux faces, l’une par rapport à des objets dont elle fait varier la position
relative, l’autre par rapport à un tout dont elle exprime un changement absolu. Les positions sont dans
l’espace, mais le tout qui change est dans le temps.”
41
produção de filmes, essa problemática atinge outras dimensões e a discussão anterior pode
parecer etérea diante do suposto desaparecimento do quadro estático ou da fotografia
como base da formação do movimento. Mas os avanços neste campo apontam
recentemente para um desejo de emular a captação do real em 24 quadros por segundo,
presente nas mais novas câmeras digitais desenvolvidas por empresas como a Sony,
Panasonic, Red e Cannon. Nessas câmeras, a captação ocorre mais como uma série de
imagens congeladas do que como um sinal de vídeo tradicional, de modo a evitar a perda
da imagem em suas bordas (edge tearing). Ademais, esse desejo nasce da percepção de
que o olhar do espectador acostumou-se a igualar o movimento cinematográfico à uma
imagem capturada e reproduzida a 24 quadros por segundo, e que de modo a aproximar-
se dessa imagem a tecnologia digital deveria buscar a mesma qualidade de movimento. A
fragmentação essencial da imagem cinematográfica subiste também na tecnologia
eletrônica ou digital de reprodução do filme, que segundo Mulvey põe ao alcance do que
ela chama de “espectador possessivo” (2006, p. 161) a possibilidade de refrear o tempo,
pausá-lo, e assim tomar posse da imagem. A crença na irreversibilidade do tempo
cultivada por Bergson, refutada pela ciência no século XX, encontra na tecnologia
doméstica de reprodução – antes apenas disponível ao montador – uma forma de
resistência. Logo, a advertência contra a noção estática de espaço no cinema – noção essa
que se originara na materialidade do quadro estático – ainda parece atual diante da
imobilidade da imagem obtida com a pausa no aparelho de reprodução doméstico, e do
desejo digital de emulação do quadro estático da película.
A SIMULTANEIDADE DE TRAJETÓRIAS MÚLTIPLAS
Partir de uma abordagem espacial do cinema traz à tona, mesmo que de modo indireto,
toda uma problemática acerca da noção de espaço, reconhecido principalmente a partir
42
da década de 1970 como categoria organizadora e como termo de análise e descrição da
sociedade e culturas moderna e pós-moderna. Já em 1967 Michel Foucault declarava que
“a época atual seria talvez a época do espaço. Estamos na época do simultâneo, da
justaposição, do próximo e do longínquo, do lado a lado, do disperso” (1984, p. 46).22
Nesse ensaio intitulado “Des Espaces Autres”, Foucault alude à simultaneidade e à
justaposição de espaços para desenvolver seu conceito de “heterotopia”, um espaço que
conteria todos os outros espaços, a ser discutido mais atentamente no quinto capítulo.
A noção de espaço não é pacífica e confunde-se frequentemente com os termos
“lugar” e “paisagem”. Os três termos são essenciais aos estudos da geografia cultural e
também encontram um caminho dentro dos estudos do cinema. Milton Santos faz
importante advertência em A Natureza do Espaço acerca da inseparabilidade do natural e
do artificial e do natural e do político (2009, p. 101) ao definir o espaço geográfico como
um híbrido, “um resultado da inseparabilidade entre sistemas de objetos e sistemas de
ações” (2009, p. 100). Para Santos, “o espaço é sempre um presente, uma construção
horizontal, uma situação única” (2009, p. 103). A isso Santos opõe a estabilidade e a
transtemporalidade da noção de paisagem. Já De Certeau enfatiza a instabilidade espaço
ao contrapô-lo à noção de lugar, propondo a conhecida fórmula “em suma, o espaço é um
lugar praticado”, criado através da experiência, do mover-se através, da interação humana
(2007, p. 202). Doreen Massey por sua vez também insiste na necessidade de se pensar o
espaço como dotado de movimento, distinto de uma noção estática e divorciada do
tempo:
Filosoficamente eu defenderia uma conceituação do espaço que incorporasse
justamente este princípio: nenhum espaço é estável, se tomado por todo o tempo;
todos os espaços são transitórios e um dos aspectos mais cruciais a respeito da
22
“L’époque actuelle serait peut-être plutôt l’époque de l’espace. Nous sommes à l’époque du simultané,
nous sommes à l’époque de la juxtaposition, à l’époque du proche et du lointain, du côte à côte, du
dispersé.”
43
espacialidade é que ela está sendo feita constantemente. A mobilidade das cidades
é uma versão exagerada da espacialidade em geral (Lury e Massey, 1999, p. 231).23
A conceituação de Santos, De Certeau e Massey do espaço como um elemento
transitório, em constante mutação, é central para que se dissipe a idéia de algo fechado,
imóvel, desprovido de movimento. Em Pelo Espaço, Massey busca criticar a
desvalorização do espaço como um recorte estático através do tempo, ou a equivalência
entre espaço e representação, algo que amorteceria o fluxo da vida. Sem eliminar a
separação entre espaço e tempo, a geógrafa inglesa chama a atenção para a necessidade de
entendê-los de maneira imbricada, e para uma visão do espaço como uma produção
aberta contínua, “a dimensão de trajetórias múltiplas, uma simultaneidade de estórias-até-
agora”, ou ainda “a dimensão de uma multiplicidade de durações” (2008, p. 49).
Tendências recentes no campo da geografia urbana de fato incorporam o que foi
chamado de “paradigma da mobilidade”, sugerindo que “é ao mesmo tempo possível e
produtível interpretar as cidades como organizadas a partir de múltiplas formas de
movimentos, ritmos e velocidades” (Latham et al 2009, p. 33).24
Essa observação também
aponta para uma definição da cidade não apenas como um espaço isolado mas através de
suas relações de longa distância com outros espaços, como por exemplo proposto por
Saskia Sassen em sua investigação definitiva dos processos econômicos internacionais e
sua subsequente conceituação da “cidade global” (2001). Além disso, a cidade é cada vez
mais entendida não apenas como uma estrutura física mas também como um espaço de
significações, experiências, trocas e memórias (Latham et al 2009, p. 11).
23
“And philosophically I would argue anyway for a conceptualization of space which incorporated
precisely this principle: no spaces are stable, given for all time; all spaces are transitory and one of the
most crucial things about spatiality (a characteristic which lends both its continual openness and, thus its
availability to politics) is that it is always being made. The mobility of those cities is a hyperversion of
spatiality in general.” 24
“It is both possible and productive to interpret cities as organised through multiple forms of movement,
rhythms and speeds.”
44
O CINEMA COMO FORMA DE PRODUÇÃO ESPACIAL
Massey acredita que o cinema, por ser um meio que viaja por espaços diversos, molda-se
perfeitamente às características espaciais de movimento e abertura para o novo, em
contínua produção:
O cinema é fantástico para retratar a intensa e inesperada justaposição que
caracteriza o espaço e particularmente as cidades. ... Justamente por sua
mobilidade, por sua capacidade de viajar, criar novas justaposições, novas
cartografias como diria Giuliana Bruno, o filme tem o potencial de apresentar
esse outro aspecto do nosso espaço mundial. (Lury e Massey, 1999, p. 232)25
Espaço então se define a partir da simultaneidade de trajetórias múltiplas, um
entendimento que rejeita a idéia da equivalência entre espaço e representação. Incorpora-
se assim a idéia do movimento, de um espaço que está sempre a ser produzido, além de
existir de forma interconectada com outros espaços, como uma dimensão da
simultaneidade e da coexistência, distinguindo-se aqui da sucessão que caracteriza o
tempo. Se o espaço não pode prescindir da noção de movimento, passagem e circulação,
é possível pensar o cinema como uma arte da produção espacial, o que não equivale a
uma arte da representação espacial. Ao atravessar a cidade, a lente da câmera e seus
movimentos, as mudanças de ângulo e a montagem vão assim costurando um espaço
fílmico, definido a partir da idéia da prática, da passagem, do movimento. Um espaço
cinematográfico híbrido, emprestando a terminologia de Santos (2009).
Parto então da hipótese de que esse espaço cinematográfico híbrido seja resultado
de uma influência estrutural da cidade real na estética e na narrativa dos filmes
selecionados. Esses serão estudados a partir de novas concepções teóricas que enxergam o
25
“Film is fantastic at portraying this aspect of intense and unexpected juxtaposition, which is a
characteristic of space, and of cities in particular. Precisely because of its mobility, its ability to travel, to
make new juxtapositions, new cartographies as [Giuliana] Bruno puts it, film has the potential powerfully
to present this other aspect of our spatial world as well.”
45
cinema como uma arte espacial, uma abordagem que propicia o questionamento acerca
do real da locação e da questão do realismo, do movimento através da cidade e suas
implicações narrativas, da memória como um evento espacial, da capacidade de
preservação pelo cinema de um espaço efêmero, e do parentesco entre o cinema e a
arquitetura de jardins. Investigo também a hipótese de que esses filmes refletem as
próprias mudanças pelas quais atravessam as cidades e o modo de se pensá-las,
diretamente ligados ao entendimento do espaço como um conceito dinâmico e ao
paradigma da mobilidade. Assim, cada um dos temas estudados lida com um aspecto da
mobilidade e da instabilidade do espaço urbano no cinema, características identificadas
com o espaço urbano real. A abordagem empregada, por sua vez, inspira-se na
justaposição e conectividade essenciais ao espaço ao propor um modelo original para o
estudo da relação entre o cinema e a cidade, fruto de um método comparativo que
interconecta filmes e espaços urbanos distintos e distantes, levando-os por novas
trajetórias, em direção a novos mapas. Em suma, uma nova geografia para o cinema
urbano recente e contemporâneo.
COORDENADAS PARA UM MAPA
O primeiro capítulo promove a aproximação entre os filmes Na cidade de Sílvia (En la
Ciudad de Sylvia, José Luis Guerin, 2007) e Xiao Wu (Jia Zhang-ke, 1997) do ponto de
vista de seu deslocamento através das cidades de Estrasburgo e Fenyang, respectivamente.
Nos dois filmes, realizados em cidades quase opostas, uma na França e a outra na China, a
narrativa é guiada por um personagem masculino, que caminha pela cidade e a observa
através de um olhar, inquisitivo ou oblíquo. São assim ao mesmo tempo voyeurs e
voyageurs, a câmera permanecendo sempre à altura da rua. Levando em consideração o
paradigma neo-realista, investigo as consequências narrativas e estéticas das an-danças
46
urbanas dos dois rapazes, que em ambos os filmes acarretam a perda do ímpeto para
frente da narrativa, levando-a por círculos de volta ao mesmo lugar. Esse capítulo explora
também de que modo a cidade real condiciona o estilo cinematográfico, resultando em
um posicionamento romântico no filme de Guerin e em um posicionamento realista no
filme de Jia.
O movimento do cinema através da cidade também guia as análises dos filmes no
segundo capítulo, no qual investigo o deslocamento sobre duas rodas nos filmes Caro
diário (Caro diario, Nanni Moretti, 1993), Os 12 trabalhos (Ricardo Elias, 2006) e A
bicicleta de Pequim (Shi qi sui de dan che, Wang Xiaoshuai, 2001). Esses filmes desvelam
o espaço urbano real a partir de um personagem central masculino que atravessa Roma,
Pequim e São Paulo em uma Vespa, uma bicicleta e uma motocicleta, respectivamente.
São portanto unidos por um “estilo móvel” ou “em movimento” que parece emanar do
próprio espaço urbano no qual se inserem. Ao se deslocarem através da cidade, movidos
pelo trabalho ou pela simples contemplação, esses personagens criam trajetórias diversas,
frequentemente pontuadas por encontros inesperados. Ao contrário dos filmes analisados
no capítulo anterior, a prática espacial é aqui indissossiável do veículo no qual os
personagens se deslocam. A mobilidade e o mapeamento das cidades ganha então um
certo grau de velocidade e improviso – qualidades relacionadas aos veículos sobre duas
rodas – e a interação da câmera com o espaço urbano aparece em grande medida de
modo mediado.
No terceiro capítulo o movimento ocorre entre duas cidades em Terra Estrangeira
(Walter Salles e Daniela Thomas, 1996), Que horas são aí? (Ni neibian jidian, Tsai Ming-
liang, 2001), Contra a parede (Gegen die Wand, Fatih Akin, 2004) e Import/export
(Ulrich Seidl, 2007), filmes que promovem o encontro entre duas geografias distintas. As
cidades, além de locações reais, são nesses filmes construídas através de imagens,
impressões e sensações vividas pelos personagens, em seu país de origem ou estrangeiros
47
em outras terras. Aqui, investigo o que chamo de transnacionalismo estético, partindo da
ideia da narrativa de viagem que une dois espaços urbanos separados, mas que convivem e
interagem através do recurso da montagem alternada. Será também esse recurso de
montagem – e não o flashback – que articulará a memória contida em um outro espaço, o
que coloca em evidência tanto o caráter espacial de qualquer memória quanto a sua
condição presente.
O quarto capítulo trata de filmes que abordam a efemeridade da paisagem urbana,
de Taipei através dos filmes A passarela se foi (Tianqiao bu jianle, Tsai Ming-liang, 2002),
Adeus, Dragon Inn (Bu San, Tsai Ming-liang, 2003) e It’s a dream (Shi meng, Tsai Ming-
liang, 2007) para Feng Jie e Pequim na China continental com Em busca da vida (Sanxia
haoren, Jia Zhang-ke, 2006) e 100 Flowers Hidden Deep (Chen Kaige, 2002). Os filmes
serão analisados a partir de seu desejo urgente de filmar o desaparecimento de um aspecto
urbano, de um bairro ou de uma cidade inteira, que se traduz, de modo quase
contraditório, em uma lentidão de estilo e em um realismo de inspiração baziniana.
Assim, caberá investigar a capacidade do cinema de registrar e preservar o real, ou em
termos bazinianos a ontologia da imagem fotográfica diante de um espaço efêmero. Ao
mesmo tempo, esse desejo ontológico vem aliado à sua possível perda, no momento em
que a imagem digital parece não se definir por sua indexicalidade, a tradução semiótica de
Wollen da ontologia de Bazin. Essa transformação, anunciada por Tsai no final de A
passarela se foi e abraçada por Jia em seu filme, sugere uma analogia entre a cidade
efêmera e o cinema efêmero, no cerne das análises propostas.
Por fim, o quinto capítulo olha para os filmes O mundo (Shijie, Jia Zhang-ke,
2004), Cry me a river (Heshang aiqing, Jia Zhang-ke, 2008) e Antes do pôr-do-sol (Before
sunset, Richard Linklater, 2004) e sugere uma análise a partir de sua afinidade com a
arquitetura de jardins, e no caso dos filmes de Jia com a arquitetura de jardins chinesa. A
prática espacial ocorre nesses filmes através do deslocamento por jardins ou espaços
48
análogos, organizados a partir do princípio da alternância de pontos-de-vista, de diferentes
enquadramentos e trajetos, que encontram um paralelo na própria arte cinematográfica. O
mundo será analisado a partir da relação entre jardins e a História da China, um império
milenar fundado no isolamento, e que começa agora a abrir suas portas. Os outros dois
filmes, um realizado em Suzhou e o outro em Paris, nascem do encontro de antigos
amantes após anos de separação, e promovem um deslocamento por jardins que evoca
uma memória, ou em outras palavras faz aparecer – a partir do movimento através de uma
topografia externa – uma topografia interna.
Os cinco temas delineados estão longe de representar categorias estanques,
interconectando-se e enriquecendo-se à medida que avançam. Como as análises esperam
demonstrar, o engajamento do cinema com a cidade real não ocorre sem que, por um
lado, ela deixe sobre ele sua marca, e, por outro lado, ele a transforme e a transporte.
49
CAPÍTULO I: O PRINCÍPIO DA AN-DANÇA URBANA
Filmes: Na cidade de Sílvia (En la Ciudad de Sylvia, José Luis Guerin, 2007), Xiao Wu
(Jia Zhang-ke, 1997).
Cidades: Estrasburgo, Fenyang
A certa altura do filme Na cidade de Sílvia, dirigido pelo catalão José Luis Guerin em
2007, o rapaz que erra pelas ruas de Estrasburgo se senta em um banco de parque, abre
seu caderno de desenhos e passa a folheá-lo de modo desordenado. As folhas brancas
contêm esboços de desenhos a lápis, o traçado de ruas e rostos de mulheres sem contorno
nem nitidez. Nestas folhas estão refletidas também as sombras das folhas das árvores,
entrecortadas pela luz, e animadas pelo vento, em movimento. A ponta do lápis então
ensaia o contorno das sombras, na tentativa de trazer as folhas das árvores para a folha do
caderno, buscando fixar o fugidio, mas desiste. A sequência de pouco mais de um minuto
é introduzida por dois planos: o primeiro, de 25 segundos, segue o rapaz que caminha por
um parque, observado de frente por um travelling da câmera; o segundo, de seis
segundos, detém-se na folhagem de árvores que balançam ao vento, pintando todo o
quadro de verde.
Guerin parece tecer aqui um belo comentário que reverbera outra cena em outro
filme, que por sua vez também comentava o mesmo fenômeno cinematográfico das folhas
que se movem. Ismail Xavier, em seu ensaio “Maquinações do olhar: a cinefilia como ‘ver
além’, na imanência” (2007), ressalta a referência feita por Jean-Luc Godard – através de
um plano de folhas que se mexem ao vento em Duas ou três coisas que eu sei dela (Deux
50
ou trois choses que je sais d’elle, 1967) – à observação de Georges Méliès após sua
primeira sessão de cinema. Pois foram justamente as folhas que se moviam no pano de
fundo da cena familiar de Le repas de bébé, captada pelos irmãos Lumière em 1895, que
saltaram ao olhar privilegiado do mágico e futuro diretor. Xavier ressalta em sua análise o
modo como o cinema estava sintonizado com as inquietações artísticas do final do século
XIX, que, em suas palavras, pareciam buscar “um corpo a corpo com o mundo instável,
com as ocorrências fugazes, sejam as observadas na natureza ou aquelas da vida urbana
moderna” (Xavier, 2007). O Movimento Impressionista tornou-se emblemático deste
momento artístico ao eleger a luz e o ar como objetos pictóricos, buscando tornar visível o
instante, algo que o cinema de algum modo cumpriu.26
Volto então à cidade de Sílvia:
pintar a luz é o que parece tentar fazer o rapaz (interpretado por Xavier Lafitte) que, por
alguns segundos, segue com seu lápis o movimento da sombra das folhas das árvores na
folha branca de seu caderno. O comentário de Guerin amplia a dimensão tátil do olhar de
Méliès, posto que este movimento das folhas é trazido do plano de intersecção – que
reverbera a citação de Godard – ao alcance da mão do protagonista, para dentro de seu
caderno. Ele parece tocar este movimento, manejar a sombra das folhas que remetem ao
âmago do próprio cinema. Pois se o “olhar de Méliès” fala da tentativa de captar o
instante, o fugidio, levando a considerações sobre o tempo, ele também aponta para a
dimensão do movimento, que une tempo e espaço em sua especificidade cinematográfica:
o movimento do espaço fílmico, o movimento do corte, o movimento do olhar.
Neste capítulo analisarei dois filmes que ensaiam um elogio do movimento através
de sua produção espacial, Na cidade de Sílvia e Xiao Wu (Jia Zhang-ke, 1997). Realizados
em países, momentos históricos e culturas completamente distintas, esses filmes fundam-
26
Em L’Oeil interminable: Cinéma et peinture (Paris: Librairie Séguier, 1989) Jacques Aumont empresta
do diálogo em La Chinoise (1967) o nome de um dos capítulos, “Lumière, ‘le dernier peintre
impressionniste’”, corroborando a afinidade proposta por Jean-Luc Godard entre o primeiro cinema dos
irmãos Lumière e o impressionismo.
51
se em um mesmo princípio, o movimento a pé através de uma cidade, e tratam da íntima
relação estabelecida entre o andar e o olhar do personagem principal e o espaço urbano
real. Com a aproximação dessas duas experiências análogas, será possível avaliar de que
modo a relação com a cidade e com o princípio do movimento se manifesta esteticamente
nos dois filmes. Para tal, será analisada a qualidade do olhar e do andar que guiam a
trajetória, no primeiro caso um olhar inquisitivo e direto, que reorganiza o real através de
uma visão subjetiva, produto de um posicionamento romântico no qual o indivíduo é
maior do que o entorno, e no segundo um olhar oblíquo, envergado pelo real da cidade,
produto de um posicionamento realista no qual o entorno condiciona o indivíduo. Serão
levados em conta também os movimentos de câmera e a montagem – que se confundem
com as características reais do espaço; os sons deste espaço; além das especificidades do
realismo contingencial da locação. Através desta análise espero evidenciar de que modo os
dois filmes partem de uma premissa similar para chegar a resultados distintos,
condicionados em grande medida pela resposta estética a um espaço real dado. Assim,
será avaliado de que modo Guerin emprestou de Estrasburgo sua qualidade atemporal
para criar uma história de busca, com sobretons medievais e românticos, e de que modo o
filme de Jia está decididamente localizado na China contemporânea, oferecendo uma
reflexão sobre seus processos de transformação.
O ELOGIO DO MOVIMENTO
A sequência das folhas ao vento em Na cidade de Sílvia aparece em um momento de
pausa, no qual o rapaz interrompe por alguns minutos sua busca por uma mulher, a Sílvia
do título, que encontrara em Estrasburgo seis anos antes. A busca é a razão pela qual está
na cidade, seu principal objetivo, mas ao mesmo tempo parece pouco urgente, e
confunde-se aos poucos com um exercício do olhar. Ele vai ao café do conservatório
52
musical onde ela estudava, e lá fica a observar e escrutinar rostos e detalhes de diversas
outras mulheres. No parque sua atenção logo passa das folhas para um grupo de amigas
nadando em um riacho. Em um bar a câmera se detém igualmente nos rostos das
frequentadoras. Assim, Na cidade de Sílvia é antes de tudo um filme arquitetado sob a
égide do olhar. A construção de diferentes modos de observação visual e o engajamento
do filme com a cidade parecem reminiscentes de “The Man of the Crowd” (“O Homem
da Multidão”), escrito por Edgar Allan Poe em 1845. No conto, o narrador está
posicionado diante de uma janela em um café de Londres a observar os passantes da rua,
detendo-se longamente em seus detalhes ou peculiaridades. Finalmente uma figura o atrai
– o homem da multidão – e ele passa a segui-la de modo inconspícuo. Uma passagem
similar ocorre no filme de Guerin, no qual o protagonista se senta em um café (mas do
lado de fora) e, após longos planos de observação desinteressada, acaba vislumbrando um
rosto através da janela (do lado de dentro do café, no inverso de Poe). No momento em
que a dona do rosto (interpretada por Pilar López De Ayala) deixa o café ele passa a segui-
la pela cidade.
Percebe-se então que Na cidade de Sílvia não é arquitetado sob a égide de
qualquer olhar, mas sim de um olhar masculino. É inevitável notar o caráter voyeurista
deste olhar, que se presta até mesmo de forma esquemática a uma leitura com base na
crítica da imagem – sobretudo daquela produzida no contexto do cinema hollywoodiano –
proposta por Laura Mulvey (1989) em seu célebre “Prazer visual e cinema narrativo”. No
ensaio, a teoria psicanalítica provê os fundamentos para o desmascaramento desta imagem
como produto da predominância do olhar masculino, ao qual corresponderia a imagem
da mulher como objeto passivo deste olhar. Indisfarçadamente voyeurista e animado por
uma escopofilia fetichista (vide seus desenhos) é o olhar do protagonista masculino no
filme de Guerin, mas do mesmo modo que seus esboços mal traçados parecem sugerir
sua incapacidade de reificar a mulher, seu voyeurismo contamina-se o tempo todo por um
53
outro olhar, um olhar que se move, que viaja. Pois Na cidade de Sílvia, como indica o
plano das folhas ao vento, é também um filme fundado sobre o movimento, através das
ruas e dos parques de Estrasburgo, por onde um rapaz se desloca, caminha, viaja: um
olhar em trânsito que o transforma, nos termos de Giuliana Bruno, de voyeur (o que vê)
em voyageur (o que viaja).
Viajante par excellence, o catalão José Luis Guerin demonstra através de sua obra
um intimidade entre o cinema e a viagem. Seu último filme Guest: diario de registros sept
2007-sept 2008 (2010) é um travelogue por entre festivais de cinema durante o período
apontado no subtítulo, no qual o diretor viajou com Na cidade de Sílvia por diversos
países. Repleto de imagens urbanas, quartos de hotéis e veículos em movimento, Guest
parece confirmar o impulso motriz do olhar do diretor, cuja crença na inclinação natural
da arte cinematográfica pelo deslocamento parece também impregnar o estilo móvel de
Na cidade de Sílvia. Outro diretor itinerante do cinema mundial contemporâneo é o
chinês Jia Zhang-ke. Um breve olhar para sua obra, de seu primeiro filme Xiao Wu,
realizado em 1997 em sua cidade natal Fenyang na província de Shanxi, China
Continental, até o mais recente Memórias de Xangai (Hai Shang Chuan Qi, 2010),
filmado na China, Hong Kong e Taiwan, revela uma inclinação pela mobilidade e pela
transiência. Jia realizou filmes em diferentes partes de seu país, da capital Pequim às
cidades regionais de Fenyang e Datong em Shanxi; de Chendu em Sichuan a Feng Jie nas
Três Gargantas; e de Guangzhou a Suzhou27
. Em artigo publicado na revista Cahiers du
Cinéma em 2004, Jia aludiu à sua natureza errante ao escrever “no passado, os poetas
27
Em Pequim: Um dia em Pequim/You Yi Tian, Zai Beijing, 1994; Xiao Shan volta para a casa/Xia Shan
Hui Jia, 1995; O mundo/Shi Jie, 2004; Em Fenyang e Datong: Xiao Wu; Plataforma/Zhantai, 2000; Em
público/Gonggong Changsuo, 2001; Prazeres desconhecidos/Ren Xiaoyao, 2002; Inútil/Wu Yong, 2007;
Em Chendu: Cidade 24 /Ershisi Cheng Ji, 2008; Em Feng Jie: Em busca da vida/San Xia Hao Ren, 2006;
East/Dong, 2006; Em Guangzhou: Inútil; Em Suzhou: Cry Me a River/Heshang de Aiqing.
54
chineses tinham o hábito de compor poemas na estrada. Eu também amo viajar, ir a
pequenas cidades ou vilarejos desconhecidos” (2004, p. 22).28
Esta qualidade itinerante empresta-se igualmente à mobilidade dos personagens de
Jia, presente de modo exacerbado em seu primeiro longa-metragem, Xiao Wu. Realizado
dez anos antes de Na cidade de Sílvia, em uma cidade muito diferente de Estrasburgo, o
filme se estrutura como o de Guerin no caminhar do personagem central por uma cidade.
Ambos os filmes também incorporam ao título um nome próprio, no de Guerin o da
mulher procurada, a “dona” daquela cidade, e no de Jia o de seu personagem principal, o
pequeno Wu (Wang Hongwei), batedor de carteiras local. Olhares e transportes
movimentam Xiao Wu através do que Linda Chiu-Han Lai chamou de “método
digressivo, que permite que o errante estabeleça conexões aleatórias com eventos e
pessoas” (2007, p. 209).29
Para Lai, o sujeito enunciador em Xiao Wu desce da altura
ocupada pelo ‘voyeur’ e posiciona-se ao nível da rua, lado a lado com o habitante comum
da cidade (2007, p. 219). Se em seus próximos filmes Jia assume progressivamente uma
posição dupla, alternando-se entre a paisagem urbana vista de cima e o nível da rua, em
Xiao Wu, à exceção de uma breve cena na qual o personagem observa a cidade de um
terraço do primeiro andar de um prédio, o diretor enxerga e escuta Fenyang da altura de
Xiao Wu. Trata-se, portanto, de um olhar que viaja pelas ruas, similar em seu movimento
e posicionamento ao olhar do rapaz em Estrasburgo: Xiao Wu tampouco é apenas um
voyeur, mas também um voyageur.
28
“Dans le passé, les poètes chinois ont toujours eu pour coutume de composer des poèmes en voyageant.
De même, j’aime beaucoup voyager, aller dans des petites villes ou villages inconnus.” 29
“Digressive method that allows the drifter to make random connections with events and people.”
55
DO ÓTICO AO HÁPTICO, DE SIGHT A SITE, DE VOYEUR A VOYAGEUR
Tais olhares que percorrem a cidade em um movimento constante, e que assim
não apenas vêem como também viajam, parecem corresponder ao próprio olhar do
espectador sob a luz de novas teorias que procuram uma alternativa ao paradigma ótico,
pondo em relevo a dimensão háptica e emocional da experiência do cinema.
Isso significa que a imagem em movimento cria pelas cidades trajetórias que, além de
mapear o real da locação e criar através da prática o espaço fílmico, conduz o olhar do
espectador imóvel do cinema, que passa então a viajar através de múltiplos espaços e
tempos. Daí a comparação entre o olhar em movimento dos rapazes errantes em
Estrasburgo e em Fenyang e a formulação voyeur-voyageur de Giuliana Bruno, que rejeita
o modelo teórico de inspiração Lacaniana e retoma a discussão a partir da (e)moção do
espaço fílmico. Diz Bruno:
A língua inglesa faz uma transição oral sem emendas entre sight (visão) e site
(lugar). O site-seeing também é uma passagem. O movimento do ótico para o
háptico propõe uma crítica à pesquisa acadêmica focada no olhar fílmico, que não
levou em conta a emoção do espaço que se dá a ver. Muitos aspectos da imagem
em movimento – por exemplo, os atos de habitar e atravessar espaços – não foram
explicados pelo arcabouço teórico Lacaniano, que não estava interessado em
explorar o afeto da espacialidade, mesmo em termos psicanalíticos. Preso em um
olhar Lacaniano, cujo impacto espacial mantinha-se inexplorado, o espectador do
cinema foi transformado em um voyeur. Por contraste, quando falamos de site-
seeing sugerimos que, devido à mobilização espaço-corporal do cinema, o
56
espectador é na realidade um voyageur, um passageiro que atravessa um terreno
háptico e emotivo.30
(2007, pp. 15-6)
Bruno elucida a passagem do ótico para o háptico como uma passagem de modelo
teórico. Como é sabido, a teoria do dispositivo cinematográfico (Baudry, 1986) e o
entendimento da espectatorialidade como análoga à regressão à fase do espelho Lacaniana
(Metz, 1982), propostos a partir do final dos anos 1960 pela crítica de influência
estruturalista, semiótica e psicanalítica, passaram por diversas revisões desde o início dos
anos 1990. Em The Cinematic Body (1993), Steven Shaviro criticou radicalmente este
modelo e trouxe à tona os elementos ativos e corpóreos da experiência cinematográfica.
Shaviro inspirou-se, entre outros, na obra de Gilles Deleuze, que em Mille Plateaux:
Capitalisme et Schizophrénie 2 (1980), com Félix Guattari, e em seu estudo sobre o pintor
Francis Bacon (1981) pôs em evidência a função tátil ligada à visão. Desde então uma
série de outros estudos no campo da teoria do cinema vem privilegiando a qualidade tátil
do olhar, dentre os quais se destacam as noções de ‘embodied spectator’ (espectador
corporificado) de Vivian Sobchack (2004) e de ‘haptic visuality’ (visualidade háptica) de
Laura U. Marks (2000).
Esta função tátil recebe o nome de háptica, palavra de origem grega que designa a
ciência do tato, empregada pela primeira vez no campo da estética pelo historiador
austríaco Alois Riegl, curador do setor de arte têxtil do Museu de Arte e Indústria de
Viena de 1887 a 1897. Conforme observa Giuliana Bruno (2007, p. 247), Riegl se referiu
30
“The English language makes this transition from sight to site aurally seamless. Site-seeing, too, is a
passage. As it moves from the optic into the haptic, it critiques scholarly work that has focused solely on
the filmic gaze for having failed to address the emotion of viewing space. Many aspects of the moving
image – for example, the acts of inhabiting and traversing spaces – were not explained within the
Lacanian-derived framework, which was not interested in pursuing the affect of spatiality, even in
psychoanalytic terms. Locked within a Lacanian gaze, whose spatial impact remained unexplored, the film
spectator was turned into a voyeur. By contrast, when we speak of site-seeing we imply that, because of
film’s spatio-corporeal mobilization, the spectator is rather a voyageur, a passenger who traverses a haptic,
emotive terrain.”
57
à experiência háptica como um estágio inferior na evolução da percepção moderna em
direção ao ótico. Foi Walter Benjamin quem subverteu essa evolução de háptico para
ótico proposta por Riegl, sugerindo ao contrário que a percepção moderna seria acima de
tudo uma experiência háptica, tátil. E foi além ao fazer a ligação expressa entre essa
percepção moderna háptica e o cinema, em seu famoso estudo de 1935 “A obra de arte
na era de sua reprodutibilidade técnica”:
O elemento de distração no filme é também essencialmente tátil, baseado em
mudanças de lugar e de foco que periodicamente assediam o espectador.
Comparemos a tela do cinema à tela da pintura. A pintura convida o espectador à
contemplação; diante dela, o espectador pode se abandonar às suas associações.
Ante à tela do cinema ele não pode fazê-lo. Assim que seus olhos captam uma
cena ela já se alterou (1999, p. 231).31
A ênfase na natureza háptica da experiência cinematográfica também pôs em xeque
abordagens acerca do espaço no cinema tais como a de Stephen Heath (1976), afinada à
tradição teórica de inspiração semiótico-psicanalítica. Para Heath, a narrativa seria o
elemento que asseguraria um posicionamento coerente ao espectador habituado ao ponto
de visto estático da perspectiva renascentista, garantindo a coerência espacial a despeito da
mobilidade inerente ao cinema. No processo de revisão pelo qual passou a teoria
cinematográfica a ideia do cinema como herdeiro direto da perspectiva Renascentista foi
plenamente rechaçada, e a apreciação do espaço fílmico passou a ser considerada acima
de tudo a partir da experiência tátil e do movimento.
31
“The distracting element of [the film] is also primarily tactile, being based on changes of place and focus
which periodically assail the spectator. Let us compare the screen on which a film unfolds with the canvas
of a painting. The painting invites the spectator to contemplation; before it the spectator can abandon
himself to his associations. Before the movie frame he cannot do so. No sooner has his eye grasped a scene
than it is already changed.”
58
Este trabalho, entretanto, não é dedicado a um estudo da espectatorialidade, mas
sim à construção do espaço fílmico a partir do espaço urbano real no cinema
contemporâneo. O que me parece mais importante e relevante nessa cruzada contra o
modelo ótico é a ênfase proposta por Giuliana Bruno no cinema como arte espacial, e na
mobilização corpórea e emocional proporcionada pelo potencial espacial da própria
linguagem cinematográfica. Partindo deste deslocamento teórico de sight (visão) para site
(local), de ótico para háptico, de voyeur para voyageur, Bruno aproxima o cinema da
arquitetura, duas artes análogas por serem práticas do espaço. Essa aproximação passa
pelas características cinematográficas das formas arquitetônicas das metrópoles do final do
século XIX, tais como estações de trem, pavilhões de exposições, lojas de departamentos,
galerias, entre outras estruturas marcadas pela mobilidade, redefinindo o tecido urbano na
virada do século. Para Bruno, tais estruturas funcionavam como “locais de trânsito” (“sites
of transit”), encarnando uma nova “geografia da modernidade” (“geography of
modernity”) (2007, p. 17). Já o cinema, filho da primeira modernidade, tem em seu
âmago a mobilidade – do filme que se move através da câmera ou do projetor, das
imagens em movimento, do corte – e não tardou a incorporar a cultura da viagem,
presente nos chamados filmes panorâmicos da era “silenciosa” (travelogues) e na
constante reinvenção do espaço inerente à própria linguagem cinematográfica (2007, p.
17). Desse modo, a experiência do espectador de cinema no início do século XX pode ser
equiparada a uma viagem, uma trajetória, ou ainda a uma flânerie através de diversos
espaços em movimento. E essas trajetórias parecem emanar principalmente de um ponto
de vista urbano (2007, p. 18), pronunciado nas primeiras duas décadas do século XX em
filmes dedicados a cidades e sua arquitetura (com destaque para as célebres sinfonias das
cidades). O hábito de acoplar a câmera a veículos em movimento tais como carros,
bondes, carroças ou trens explicita este desejo de incorporar a própria mobilidade da vida
urbana à máquina de filmagem, e à linguagem do cinema. Passado mais de um século o
59
cinema continua dialogando ativamente com o espaço urbano, e a compreensão deste
diálogo se beneficia do entendimento da experiência cinematográfica como uma viagem
através de espaços em movimento. Logo, minha análise da especificidade estética de
filmes urbanos contemporâneos aborda o cinema como uma prática espacial, que
partindo de um espaço real acaba por criar um outro, o espaço fílmico, costurado a partir
de vistas e sons urbanos em movimento, e através do qual o espectador viaja e sente.
PERAMBULAÇÕES PELA CIDADE REAL
Como ensina De Certeau (2007), a experiência mais básica da prática espacial urbana é o
andar. Andar sugere a condição presente, a instabilidade do espaço, as múltiplas trajetórias
marcadas pela simultaneidade e pela imprevisibilidade dos encontros. No cinema, o
paradigma da cidade real da locação desvendada pelo caminhar foi forjado pelo neo-
realismo italiano, através de uma série de filmes preocupados com a vida nas ruas. A
cidade neo-realista interessa a esse trabalho por duas razões principais. A primeira se
refere ao fato de ser um espaço real, histórica e socialmente determinado, contribuindo de
modo decisivo para o realismo revelatório dos filmes. A segunda e mais importante para
esse capítulo se refere à qualidade desse cinema como matriz da passagem e do
movimento cinematográficos através do espaço urbano real, cuja contingência contribui
para uma sensível distensão narrativa. Na cidade de Sílvia e Xiao Wu demonstram
afinidade com a experiência neo-realista, o primeiro por sua forma circular e sua narrativa
frouxa, alicerçadas sobre o deslocamento a pé pela cidade real, e o segundo por seu
realismo revelatório e sua incorporação estética da contingência urbana.
Roberto Rossellini, figura central do neo-realismo, assim o definiu:
O neo-realismo consiste em seguir um ser, com amor, através de suas descobertas
e impressões. Ele é um ser pequeno diante de algo que o domina e que, quando
60
menos esperar, o surpreenderá de modo atroz, no momento preciso em que ele se
encontra livremente no mundo. O que importa para mim é essa espera.
(Rossellini, 1984, p. 41)32
A definição subjetiva de Rossellini contém algumas características fundamentais do
paradigma neo-realista, cujos ecos podem ainda ser sentidos em filmes contemporâneos
fundados no deslocamento pela cidade real: a presença de um personagem-guia, a ser
seguido pelo diretor através do espaço; o posicionamento realista a partir do qual o
entorno é maior do que o homem; e a espera. Rossellini não se refere aqui
especificamente ao espaço urbano, e seria errôneo definir o neo-realismo italiano como
um movimento citadino. Como bem advertem Mark Shiel (2006, pp. 63-4) e Stéphane
Bouquet (2005, p. 186), há um interesse equivalente entre o campo e a cidade nos filmes
neo-realistas, mesmo se a obra dos diretores emblemáticos do movimento Vittorio De
Sica, Roberto Rossellini e Luchino Visconti verte decididamente para o urbano. Mas
talvez seja possível argumentar que o impacto e a persistência deste momento da história
do cinema estejam diretamente relacionados ao que se costumou chamar de saída para as
ruas, para o espaço real da locação. Mais eficaz dentro do projeto neo-realista de
revelação, denúncia e reflexão eram as cidades, que exibiam as cicatrizes da guerra de
modo mais evidente do que o campo. Assim, não espanta que o movimento tenha muitas
vezes passado para a memória como um movimento urbano, colado à vida das ruas e aos
seus habitantes, contaminando-se da liberdade da locação real.
Conforme observa Ivone Margulies, a cidade, por ser uma paisagem social inscrita
em um momento histórico preciso, representou e representa um importante cenário para
a arte realista: “A cidade é um tema reconhecido em discussões acerca do realismo ... O
que a qualifica como um importante cenário para a arte realista é o fato de ser, assim
32
“Le néo-réalisme consiste à suivre un être, avec amour, dans toutes ses découvertes, toutes ses
impressions. Il est un être tout petit au-dessous de quelque chose qui le domine et qui, d’un coup, le
frappera effroyablement au moment précis où il se trouve librement dans le monde, sans s’attendre à quoi
que ce soit. Ce qui importe pour moi c’est cette attente.”
61
como o rosto, uma paisagem socialmente inscrita. Sua natureza construída a localiza
facilmente em um momento histórico preciso” (2003, pp. 12-13).33
É importante lembrar
que a presença da cidade no cinema, excluindo-se o exemplo óbvio das cidades
imaginárias ou futurísticas, prescinde com freqüência do uso de locações reais. Nowell-
Smith lembra que a decisão de se filmar em locação ou em estúdio é “por vezes uma
escolha estética, por vezes uma escolha econômica, e com freqüência uma combinação de
ambas”34
(2001, p. 102). A cidade recriada dentro dos estúdios foi até o pós-guerra a
norma na grande maioria das produções comerciais, ainda mais após o advento do som e
a decorrente dificuldade de sua captação direta em locação. Em seu estudo do realismo
poético do cinema francês nos anos 1930, Mists of Regret, Dudley Andrew recorda a visão
de Marcel Carné que “insiste que é possível e por vezes preferível trazer a cidade para
dentro a levar a câmera para as ruas” (1995, p. 261)35
. Interessante também notar como
nas últimas décadas grandes produções comerciais tendem cada vez mais a abandonar as
locações, substituídas pela recriação digital de cidades e mesmo de mundos inteiros. Estar
dentro de um estúdio ou recriar digitalmente um espaço nega em princípio o arbitrário e o
imprevisível da locação, anulando a especificidade dos espaços reais.
Já a presença da cidade real parece explicitar as tensões entre a representação e a
literalidade inerentes ao cinema. Estar em locação na cidade exacerba aquilo que não se
pode controlar, a imprevisibilidade do real, ou seja, a contingência. Nowell-Smith faz uma
importante observação acerca do caráter indomável da cidade real no cinema, o que
elevaria o coeficiente contingencial das imagens captadas: “A cidade funciona como um
fator condicionante na ficção precisamente por sua característica recalcitrante e por sua
33
“The city is a recognised theme in discussions of realism... What qualifies it as an important setting for
realist art is the fact that, like the face, the city is a socially inscribed landscape. Its constructed nature
easily places it in a precise historical moment.” 34
“Shooting on location is sometimes an aesthetic choice, sometimes an economic one, often probably a
mixture.” 35
“Carné insists that, given the new conditions of sound, it is possible and often preferable to bring the city
indoors to the camera rather than to take the camera to the street.”
62
inabilidade em ser subordinada às demandas da narrativa. A cidade se torna um
protagonista, mas ao contrário dos personagens humanos ela é um protagonista não-
ficcional” (2001, p. 104).36
Em 1863, Baudelaire escrevia que “a modernidade é o
transitório, o efêmero, o contingente, é a metade da arte, sendo a outra metade o eterno e
o imutável” (1992, p. 355)37
, e o cinema, em diversos momentos da sua história, parece se
contaminar da qualidade efêmera e contingencial da experiência urbana.
Assim foi com mais evidência durante o pós-guerra, período no qual o neo-
realismo italiano e subsequentemente os cinemas novos através do mundo caracterizaram-
se por um desejo de levar o cinema para fora dos estúdios. Por um lado, pode-se dizer
que o cinema neo-realista buscou soluções estéticas para restrições técnicas em um
período marcado pela destruição e pela reconstrução, física, social e moral. A própria
destruição dos estúdios e de material cinematográfico na Itália derrotada em grande parte
impeliu o cinema a encarar um maior corpo-a-corpo com o real da locação. Já no final da
década de 1950 desenvolvimentos tecnológicos propiciaram maior mobilidade aos
equipamentos de filmagem além de maior velocidade às películas, culminando na
possibilidade de gravação de som sincronizado em 16 mm nos anos 1960, o que
aumentou o coeficiente de real do produto filmado, levando a novas definições de
realismo.
O “sair para as ruas” de uma parte significativa dos filmes neo-realistas trouxe para
o cinema uma outra cidade – diferente das metrópoles modernas da primeira metade do
século como Paris, Nova York ou a Berlin de Weimar (Shiel, 2006, p. 66). Como
observou Deleuze, “a cidade deixa de ser aquela vista do alto, a cidade ereta, com arranha-
céus e contreplongées, para se tornar a cidade deitada, a cidade horizontal ou à altura do
36
“City... acts as a conditioning factor on the fiction precisely by its recalcitrance and its inability to be
subordinated to the demands of narrative. The city becomes a protagonist, but unlike the human characters
it is not a fictional one.” 37
“La modernité, c’est le transitoire, le fugitive, le contingent, la moitié de l’art, dont l’autre moitié est
l’éternel et l’immuable.”
63
homem ...” (1985, p. 279)38
. Essa observação de Deleuze rima com outra observação,
anotada por Rossellini por conta da visita que fez a Berlim em 1947. Neste ano o diretor
italiano estava na França e teve a idéia de pedir ao governo francês uma autorização para
realizar em Berlim o último filme de sua trilogia do pós-guerra, iniciada por Roma, cidade
aberta (Roma, città aperta, 1945) e seguida de Paisá (Paisà,1946). Ele conseguiu um
acordo com a Union Générale Cinématographique, e sem nenhuma idéia pré-concebida
foi visitar Berlim. Lá chegou por volta das cinco da tarde, de carro, com o sol poente, e
teve de atravessar grande parte da cidade até chegar no setor francês: “A cidade estava
deserta, o céu cinza parecia inundar as ruas, e da altura de um homem podia-se ver todos
os tetos” (1984, p. 43)39
. Rossellini então filma Berlim do chão, em meio às ruínas,
mostrando a cidade horizontal por excelência, uma cidade arrasada na qual o menino
Edmundo, de 12 anos, decide envenenar seu pai doente acreditando estar cometendo um
ato heróico. Alemanha ano zero (1948) é emblemático do uso da cidade real no cinema
neo-realista, pois esposa em suas escolhas formais a ideia de que o ambiente determina o
indivíduo, ao mesmo tempo que reflete sua miséria interior. A sequência inicial emprega
este procedimento realista ao abrir com longas panorâmicas da cidade de Berlim, um
espaço arrasado que simboliza o fim da guerra e o início da reconstrução, o “ano zero”. E
será apenas depois de passar pelo espaço urbano que Rossellini se aproximará de
Edmund, visto pela primeira vez, não por acaso, cavando covas em um cemitério.
A incorporação de Berlim em Alemanha ano zero vai além do recurso realista
descrito, pois a contingência da locação real exerce sobre este cinema uma força
dispersiva. Isso se traduz na perda da cronologia e coerência narrativas no momento em
que Edmund se dá conta de sua tragédia, e isso vem à tona através de uma caminhada
38
“La ville … cesse d’être la ville d’en haut, la ville debout, avec gratte-ciel et contreplongées, pour
devenir la ville couchée, la ville horizontale ou à hauteur d’homme…” 39
“La ville étai déserte, le gris du ciel coulait dans les rues et, à hauteur d’homme, on dominait les toits du
regard.”
64
pela cidade, em uma das sequências mais comentadas do neo-realismo. Edmund é
rejeitado sucessivamente pelo seu professor, pelos amigos adolescentes que trabalham no
mercado negro e por algumas crianças que jogam futebol nas ruas. Suas andanças sem
rumo por Berlim o levam através do que Deleuze chamou de “espaços-quaisquer, câncer
urbano, tecido diferenciado, terrenos vagos, que se opõem aos espaços determinados do
antigo realismo” (1985, p. 286).40
A cidade arrasada produz uma cronologia cheia de
buracos, que torna impossível saber quantas horas ou dias se passaram, para onde ele vai e
no que está pensando.
Outro filme emblemático da incorporação do espaço urbano no cinema neo-
realista é Ladrões de bicicleta (Ladri di biciclette, Vittorio De Sica, 1948). Nas ruas de
Roma, a contingência mais uma vez se combina ao cinema através do elemento
imprevisível da filmagem em locação, levando a um relaxamento das relações de causa e
efeito asseguradas pela narrativa cinematográfica clássica. André Bazin, que definiu o neo-
realismo antes por sua estética do que por seu mais imediato conteúdo social, demonstrou
através de sua análise definitiva do filme de De Sica de que modo a deriva das
personagens pelo espaço urbano confundia-se com a deriva narrativa. Bazin resumiu o
filme como “a estória das andanças de um pai e seu filho pelas ruas de Roma” (2002, p.
303)41
. Partindo de uma “intriga popular e mesmo populista: um incidente da vida
quotidiana de um trabalhador” (2002, p. 297)42
, Ladrões de bicicleta trata do banal,
prolongado por um dia, durante o qual Antonio procura sua bicicleta roubada. Ao
realismo da fábula – que transforma o banal em algo merecedor de tratamento artístico –
alia-se uma narrativa relaxada, que se recusa a emanar a onisciência dos eventos,
convidando no seu lugar a ambiguidade e a contingência. Assim, ao caminhar por Roma,
40
“Dans la ville en démolition ou en reconstruction, le néo-réalisme fait proliférer les espaces
quelconques, cancer urbain, tissu dédifférencié, terrains vagues, qui s’opposent aux espaces déterminés de
l’ancien réalisme.” 41
“l’histoire de la marche dans les rues de Rome d’un père et de son fils.” 42
“Intrigue ‘populaire’ et même populiste: un incident de la vie quotidienne d’um travailleur.”
65
Antonio e seu filho Bruno estão à mercê da cidade: se chover, devem se abrigar e esperar
a chuva passar; se Bruno precisa urinar, deve ir até a esquina e urinar; se um carro aparece
inesperadamente, corre-se de volta à calçada. Esses eventos atrasam a narrativa,
interrompem a busca, criando fissuras no tecido ficcional. Mais importante do que o
credibilidade do percurso é a contingência do espaço real, que acarreta na perda do
ímpeto narrativo, criando eventos que não se relacionam por causa e efeito.
Como é sabido, a conceituação de Deleuze de imagem-movimento e imagem-
tempo deriva da inflexão observada por Bazin (2002) entre o que chamou de “cinema
clássico” e “cinema moderno”, localizada principalmente a partir do pós-guerra com o
neo-realismo italiano. Para Deleuze, o neo-realismo teria forjado as principais
características da crise da imagem-ação, variante da imagem-movimento, que inclui a
situação dispersiva (como por exemplo a cidade não-globalizante mas sim à altura do
homem), as ligações fracas (relaxamento da narrativa de causa e efeito) e a forma-balada (o
ir e voltar, a perambulação) (1985, p. 280, 285). A despeito da indiscutível presença dessas
características nos filmes neo-realistas e naqueles analisados neste e no próximo capítulo,
acredito que a terminologia de Deleuze “imagem-movimento” e “imagem-tempo” deixa
por um lado transparecer a ênfase na noção de tempo em detrimento do espaço,
problematizada neste estudo, e por outro lado perpetua o que Jacques Rancière chamou
de “retórica da ruptura” (2002, p. 59). Rancière demonstra a
existência de um paradoxo no pensamento de Deleuze, apresentado como uma
classificação de tipos de signos ao modo da “história natural”, mas que ao mesmo tempo
estão separados por uma ruptura, uma crise, que coincide com um evento histórico (a
Segunda Guerra Mundial) (2001, p. 147, 155). Rancière problematiza também a
classificação das imagens com base em dados ficcionais da narrativa, revelando a
fragilidade da distinção entre movimento e tempo em Deleuze (2001, p. 155). Assim, visto
66
que o presente trabalho não se volta para uma era definida por uma ruptura, seu recorte
temporal funcionando apenas como um guia passível de relaxamento, o emprego da
terminologia de cunho historicista será substituído pelo conceito de ‘cinema of delay’
(cinema da demora), desenvolvido por Laura Mulvey em relação à obra de Abbas
Kiarostami (2006). Mulvey propõe o seu cinema of delay de forma abrangente e
democrática ao escrever
a forma narrativa na qual se traduz o princípio da demora pode variar de forma
significativa, construída em torno, por exemplo, de uma estética do suspense ou,
no outro extremo, da intrusão da digressão ou das ‘perambulações aleatórias’ que
Gilles Deleuze associou ao relaxamento da imagem-movimento, como, por
exemplo, em Viagem à Itália de Rossellini. (2006, p. 124-5)43
Assim, tanto Ladrões de bicicleta quanto Gosto de Cereja (Ta’m e guilass, Abbas
Kiarostami, 1997), Xiao Wu, Na cidade de Sílvia, Alemanha ano zero, e inúmeros outros
filmes realizados antes ou depois da Segunda Guerra Mundial, antes ou depois da
introdução do digital, da queda do muro de Berlim ou do 11 de Setembro podem ser
pensados a partir da ideia do “cinema da demora” de Mulvey, um cinema que deriva e
hesita, “um cinema incerto” (Mulvey, 2006, p. 123).
OLHARES INQUISITIVOS NA CIDADE DE SÍLVIA
Na cidade de Sílvia coloca em prática o princípio da demora descrito por Mulvey em seu
estilo móvel e circular. Estrutura-se em três tableaux, cada qual introduzido por uma
cartela preta com as inscrições “Primeira Noite”, “Segunda Noite” e “Terceira Noite”,
seguidas de planos estáticos de um quarto de hotel. A primeira sequência merece atenção
por condensar em cinco imagens os principais motivos do filme. Trata-se de um quarto
43
“The narrative form into which the principle of delay translates may vary significantly, built around, for
instance, an aesthetic of suspense or, at a further extreme, the intrusion of digression or the ‘aleatory
strolls’ that Gilles Deleuze associates with the loosening of the movement image, as, for instance, in
Rossellini’s Journey to Italy.”
67
desprovido de movimento, construído por uma sucessão de seis planos estáticos: a parede
recoberta de papel com padrão de folhas; uma mala desfeita; dois planos próximos de
mapas empilhados, chaves, cadernos e frutas; uma janela através da qual pode-se entrever
uma folhagem; e finalmente o protagonista sentado na cama. Esta série de naturezas-
mortas, escuras e imóveis, é animada por um movimento vindo de fora, o movimento da
cidade e seus carros, que projetam luzes e sombras sobre o quarto. O plano da janela é
por sua vez animado pelo vento que balança as folhas, e indica o nascer do dia. As
imagens contêm referências à viagem tais como o quarto de hotel, a mala e os mapas,
dentre os quais se destaca um desenhado no porta-copos de um bar chamado –
sugestivamente – Les Aviateurs. A presença dos mapas prenuncia o que talvez seja a
principal função do filme, um remapeamento de Estrasburgo a partir das andanças de um
rapaz, cujo olhar confunde-se com o olhar do diretor e do montador, guiando-os através
do espaço. Este remapeamento indica, portanto, um posicionamento romântico e não
realista, visto que reorganiza o real a partir de um ponto de vista subjetivo.
Já as sombras que animam os planos iniciais parecem remeter ao teatro de
sombras chinês ou até mesmo à outra experiência com imagens em movimento, objeto do
documentário de Werner Herzog A caverna dos sonhos esquecidos (Cave of Forgotten
Dreams, 2010). No filme em 3D do diretor alemão, a caverna pré-histórica de Chauvet na
França, coberta de pinturas paleolíticas de cerca de 32 mil anos, ganha vida através do jogo
de luz e sombras das lanternas da equipe. A pintura de um bisão e de outros animais com
oito pernas no lugar de quatro, sugerindo movimento, tende a corroborar a tese de que a
caverna representa uma espécie de experiência proto-cinematográfica: as pinturas
rupestres, ou o nascimento da arte, parecem conter o fascínio da imagem em movimento
que o cinema iria sedimentar. Herzog também chama a atenção em seu documentário
para o fato das paredes da caverna não serem lisas ou retas, seu relevo acidentado
adicionando ainda mais movimento às pinturas. Em Na cidade de Sílvia, Guerin ensaia
68
seu primeiro “elogio do movimento” através de planos que se assemelham à pinturas, à
naturezas-mortas, banhadas e animadas por um jogo de luzes e sombras. As imagens
revelam também um gosto por texturas e camadas, no papel de parede, nos mapas
empilhados, nos planos de lençóis enrugados que introduzem o segundo tableau, e dos
corpos nus (do protagonista e de uma mulher irreconhecível) na cama na terceira noite,
sempre animados pela luz exterior em movimento.
As cartelas anunciam três noites, mas Na cidade de Sílvia se desenrola
principalmente durante o dia. O primeiro deles dura exatos nove minutos, durante os
quais o rapaz sai do hotel e se senta no café do conservatório musical de Estrasburgo. O
segundo dura 56 minutos e meio, e é tomado por três sequências principais: a primeira
ocorre no mesmo café do dia anterior, no qual ele se senta e observa diversas mulheres
por 16 minutos; a segunda consiste na “perseguição” da suposta Sílvia pelas ruas da
cidade, por cerca de 30 minutos; e a terceira se ocupa da visita noturna ao bar Les
Aviateurs, precedida do interstício no parque, onde tenta desenhar as folhas em
movimento. O terceiro dia dura 19 minutos, durante os quais a câmera passeia por
algumas locações já visitadas anteriormente, e volta ao café do conservatório, onde o rapaz
parece ver Sílvia uma segunda vez.
Realizado quase exclusivamente a partir de externas, as filmagens em locação na
cidade real conferiram ao filme um grau de contingência que, segundo Guerin (2007), o
posicionou entre “o cálculo e o azar”, ou em outros termos entre a ficção e o
documentário. Elementos como a meteorologia, o trânsito dos bondes, as fachadas das
casas e o traçado das ruas ocupam o espaço da recalcitrância ao qual se referiu Nowell-
Smith em relação ao neo-realismo, e até certa medida vale a afirmação do diretor de que
esperava também se surpreender com o próprio filme (2007), impregnado como estava
destes elementos urbanos que resistem ao controle. Outras sequências, entretanto,
parecem se guiar pela prevalência do cálculo sobre o azar, a despeito do imprevisível da
69
locação. Vejamos por exemplo o primeiro plano-sequência do filme, que vem
imediatamente depois das imagens dentro do quarto de hotel na primeira noite. A câmera
está parada e focaliza uma rua relativamente estreita, que termina nos muros de outra rua.
Em ordem, passam pela rua principal uma mulher correndo e um homem empurrando
uma mala, e pela rua lateral bicicletas e pessoas em ambas as direções. Trinta segundos
depois emerge o rapaz de dentro do “Hotel Patrícia”, localizado do lado direito da rua.
Ele carrega em suas mãos um mapa, olha para os dois lados, caminha em uma direção
mas volta e toma a direção contrária. Ele sai de quadro após trinta segundos, mas o corte
só vem quase um minuto depois, durante os quais passam duas crianças com mochilas
conversando em inglês, uma bicicleta, um vendedor de flores manco e um carro na rua
lateral. Desta descrição depreendem-se algumas características formais que ditarão o resto
do percurso. O primeiro comentário se refere à duração do plano em relação ao
personagem principal, que “entra em cena” 30 segundos após o seu início e “sai de cena”
um minuto antes de seu final. Há nesses cortes uma intenção explícita em reforçar o
desejo de captar a vida nas ruas, que é maior do que a própria narrativa. Ao mesmo
tempo os cortes produzem o efeito Brechtiano de distanciamento ao colocar em evidência
os restos normalmente eliminados pela montagem, revelando a “construção” do filme.
Estes cortes alargados, entretanto, não captam simplesmente a contingência da cidade,
visto que há aqui uma tentativa de coreografá-la muito explícita – presente também nas
teatrais “entrada” e “saída” de cena do rapaz. Se nem todos os movimentos foram
ensaiados, é quase certo que alguns deles o foram, uma suspeita corroborada pelas
entrevistas com o diretor e a diretora de fotografia que acompanham a edição inglesa do
DVD (2007). Guerin contou durante as filmagens com uma equipe dedicada a recrutar
em meio aos habitantes/ambulantes de Estrasburgo figurantes para cada uma das cenas,
que deveriam assinar um termo de autorização antes de participar das filmagens. Outros
figurantes eram atores-extras que se encaixavam no espaço de modo programado. Isso
70
também fica evidente através da repetição de figuras humanas na cidade, neste caso das
crianças e do vendedor de flores, que serão vistos novamente em outros momentos. Do
mesmo modo, outras cenas apresentam figurantes que irão reaparecer em um dado
momento, tais como um vendedor ambulante que porta um chapéu em forma de guarda-
chuva, visto em três momentos e locais diferentes, uma moça que pede cigarros e uma
moradora de rua.
Esta contingência ensaiada se reforça pela trilha sonora, que já neste primeiro
plano apresenta uma série de motivos que também se repetirão durante o filme,
demonstrando seu caráter programado e quase musical. Alternam-se os sons diegéticos de
passos, da mala que se arrasta no chão, do carro e da bicicleta com o som de passarinhos,
de um tenor amador e de diversos trechos de conversas que vem e vão, em diferentes
línguas – pelo menos quatro apenas nesse plano (alemão, francês, espanhol e inglês).
Nenhuma das conversas se completa, são apenas sussurros quase imperceptíveis,
recorrentes durante todo o filme nessas e em outras línguas. Também recorrentes na trilha
serão o canto dos passarinhos, o soar dos sinos, da buzina do bonde ou das frequentes
bicicletas, e trechos de músicas diegéticas tocadas na rua, no violino ou na sanfona. Toda a
trilha parece ter sido composta a partir de leitmotifs, oriundos da cidade real mas
retrabalhados através de uma textura sofisticada, confirmando a ideia da contingência
ensaiada, ou seja, da coreografia cuidadosa dos elementos do real que se tornam variações
sobre o mesmo tema.
Tanto a trilha quanto a repetição de figuras na cidade são indicativos da estrutura
circular do filme, que alterna o deslocamento a pé do protagonista pelas ruas de
Estrasburgo com momentos de pura observação, nos quais domina seu olhar inquisitivo.
A estrutura de montagem que prevalece em todo o filme é o clássico campo/contra
campo, através do qual se estabelece uma continuidade ilusória a partir da fragmentação
essencial dos planos, posicionando o espectador no espaço entre eles. Como é sabido, o
71
campo/contra campo é a técnica mais comum na montagem de diálogos no cinema de
narrativa clássica, mas neste filme, onde quase nada se fala, o recurso é usado para
estruturar o observador e o observado, o olhar e o objeto. Assim, a cena de 16 minutos no
café no segundo dia é inteiramente montada a partir do campo/contra campo. Os planos
vão de médios a primeiros, aproximando-se de algum detalhe e depois se afastando,
sempre voltando ao rapaz como regra, para aquele que observa, que guia o olhar da
câmera e o corte. Se não está sentado neste café ao ar livre, onde um grupo de violinistas
proporciona a trilha sonora diegética, o rapaz caminha pela cidade, cujas ruas, avenidas,
travessas e praças aparecem de modo proeminente, repletas de pedestres, bicicletas,
carros, bondes, em um mover-se harmônico e elegante. As sequências de movimento,
com destaque para a “perseguição” da suposta Sílvia, emprestam da própria cidade seu
estilo, e talvez resida aqui a chave para a compreensão da relação deste filme como o
espaço urbano.
Estrasburgo não foi escolhida ao acaso para locação, e as razões desta escolha
iluminam alguns aspectos da própria estrutura do filme. O centro histórico da cidade,
conhecido pelo nome de Grande île, foi listado pela Unesco como Patrimônio Mundial
em 1988. Seu traçado medieval se prestava perfeitamente à estória de uma busca por uma
mulher (uma donzela?), nos moldes das lendas da Idade Média. Além de medieval,
Estrasburgo é uma cidade de mais de dois mil anos, e tem esta longa história impressa em
sua arquitetura, o que lhe confere um ar atemporal, próprio ao exercício do olhar e ao
elogio do movimento encenados por Guerin. A cidade é também estrangeira para o
diretor catalão, o que casa bem com sua natureza de viajante. Sede do Parlamento
Europeu e de diversas outras instituições européias, Estrasburgo ocupa um espaço híbrido
entre a França e a Alemanha, próprio a um filme que resiste uma identidade nacional
fechada, dirigido por um catalão e realizado em co-produção pela França e a Espanha. O
diretor se sentiu igualmente atraído pela harmonia da cidade, que apesar de seu médio
72
porte não se caracteriza pelo tráfego e movimentação intensos, contando também com o
bonde que adquire no filme “um valor semântico importante”, nas palavras de Guerin
(2007). Esse foi um dado decisivo na escolha, visto que facilitou a coreografia arquitetada
sob a égide dessa harmonia, unindo os personagens, as ruas, os veículos e os figurantes.
Nesta cidade ao mesmo tempo particular e geral, antiga e atemporal, a câmera
Super 16 mm de Guerin (o diretor operou a câmera e a direção de fotografia ficou a cargo
da argentina Natasha Braier) segue o protagonista ou através de planos gerais fixos, que
dão conta de um largo espaço a ser atravessado, ou através de travellings, capturados com
a câmera montada em trilhos ou em Steadicam. Isso confere leveza e estabilidade ao
movimento, inspirado na leveza e na ordem da própria cidade.
Exemplo dessa contaminação do estilo do filme pelo espaço real, além de indicativa da
natureza circular da narrativa, típica do cinema da demora, é a sequência central na qual o
protagonista segue a mulher que pensa ser Sílvia. Como descrito no início do capítulo, o
rapaz sentado do lado de fora do café entrevê, através da fachada de vidro, um rosto que
chama sua atenção. Neste vidro estão também refletidos outros rostos de mulheres, que se
confundem em um emaranhado de imagens. O uso da superfície refletora parece sugerir,
além da já aludida ênfase em texturas e camadas, a dimensão subjetiva desta cidade, que
vemos através dos olhos e das memórias de um rapaz. Assim, este rosto que o intriga
sobremaneira parece ser uma imagem mental, produto de suas lembranças, visto que foi
neste café que encontrara Sílvia seis anos antes. Outras superfícies refletoras aparecem no
filme, tais como vitrines de lojas e as janelas dos bondes, sobre as quais se projetam rostos,
carros, prédios e outros elementos em movimento.
A dona do rosto se levanta e sai do café, observada pelo rapaz em um plano geral
no qual se destaca seu vestido vermelho, adornado por uma bolsa bege. Ele por sua vez
está vestido de bege com uma bolsa vermelha, e após alguns segundos paga a conta de
modo abrupto e sai na direção da mulher. A perseguição abre com um plano estático,
73
atravessado por ela e, trinta segundos depois, por ele. A trilha sonora segue o padrão já
comentado, intensificando-se nas ruas mais movimentadas. O plano estático é sucedido
por uma série de campos/contra campos em movimento, captados por Steadicam, numa
bela coreografia de planos e corpos por ruas comerciais do centro. Estas ruas contêm a
harmonia e leveza desta cidade especialmente fotogênica, e destaca-se a ausência de
carros, substituídos pelos mais elegantes bondes e bicicletas. Há um número considerável
de pedestres que também se move de modo harmonioso, como parte integrante da
coreografia da contingência ensaiada por Guerin. A câmera por vezes parece seguir rente
aos trilhos do bonde, próxima ao chão, e outras vezes eleva-se à altura dos olhos,
movendo-se constantemente durante quase toda a sequência de trinta minutos. O uso do
Steadicam confere-lhe a leveza própria do espaço atravessado. Essa “perseguição” adiciona
à narrativa, que até agora pouco ou nada avançara, um certo elemento de suspense, que
também pode ser entendido a partir do princípio da demora, visto que o filme atrasa o
momento em que responderá às questões inevitáveis: Será ela Sílvia? Será que ele vai falar
com ela? Será que ela se lembrará? Outras questões – as mais importantes – ficarão sem
resposta, em consonância com o estilo de narrativa aberta e circular empregado: O que
aconteceu entre os dois no passado? Por que ele volta a Estrasburgo? Por que não estão
mais em contato? Tudo isso de fato não importa.
Nesta rua principal a imagem do bonde oferece mais uma instância do elogio do
movimento promovido por Guerin, ecoando o jogo de luz e sombras no quarto e as folhas
ao vento, presente também no plano de um vestido que dança pendurado ao lado de fora
de uma janela, observado pausadamente pela câmera/olhar do rapaz. Aqui, ele e ela
andam em lados opostos dos trilhos, e ao passar o bonde a câmera capta seus rostos
através das janelas, num estranho campo/contra campo entre imagens que parecem a
própria película cinematográfica, dividida em quadros equidistantes. A cena se repete duas
vezes, seguindo a mesma estrutura. Até aqui ele a mantém sob seu campo de visão, mas
74
em um dado momento ela desaparece. Após rondar em sua busca, voltando pelas
mesmas ruas já atravessadas a olhar por todos os lados, o rapaz acaba por entrever a
mulher através de uma vitrine de loja, em mais uma instância do uso da superfície
refletora ligada à subjetividade. A busca continua, mas aos poucos se nota que o labirinto
de ruas do centro de Estrasburgo é cada vez mais familiar, e que o movimento do casal e
da câmera, ao invés de progredir para frente, dá voltas, hesita, se perde. Ela afinal embarca
em um bonde, seguida pelo rapaz, e será lá dentro que ele finalmente a abordará. A
cidade em movimento vista através da janela do bonde imprime dinamismo e variações de
luz e sons ao único diálogo do filme, travado dentro do veículo. Ele diz em francês: “Eu
guardei o mapa que você fez para mim no guardanapo do Les Aviateurs”. Ela, por sua vez,
diz não reconhecê-lo, demonstrando-se incomodada por ter sido seguida, e confessando
que estava andando em círculos. “O teu itinerário, foi por minha causa?”, ele pergunta,
como se houvera um laço entre os dois, apesar de seu erro de memória. Ao mesmo
tempo percebe-se que a circularidade ditada pelo percurso da mulher condicionou o
percurso do homem, conduzindo a narrativa do filme através de um labirinto, no qual ela
pareceu perder qualquer ímpeto de resolução. A mulher desce do bonde e lhe deseja
“boa viagem”. Sua despedida lacônica alude a um dos principais motivos do filme,
prenunciado nos primeiros planos do hotel e presente em uma série de signos imagéticos
e sonoros tais como passantes empurrando malas, os mapas, o bar Les Aviateurs (“os
aviadores”) e a canção francesa Voyage Voyage (“viagem viagem”), que toca
diegeticamente no café.
No terceiro dia uma série de planos estáticos de diversas locações – pelas quais o
filme já passou – aponta mais uma vez para o atraso e a circularidade estruturais: ruas,
esquinas, praças, muros pichados, vendedores ambulantes, lojas, tudo aqui parece se
repetir. No café ele revê a mulher do dia anterior, que o atrai mais uma vez para um
ponto de bonde. Mas ao vê-la embarcar em um ele não a segue, preferindo ficar no ponto
75
sempre a olhar outras mulheres, outros rostos, dentre os quais um severamente
deformado, sem um dos olhos. O filme termina com um plano geral de um
entroncamento de ruas, já visto no segundo dia no momento em que a suposta Sílvia
desce do bonde, distanciando-se do rapaz que a segue com o olhar através da janela. Mas
neste último plano já não fica claro quem está a observar o quê, pois a montagem não
funciona como contra campo do olhar do rapaz. Finalmente livre, a câmera está apenas lá,
a preservar a cidade real, ao mesmo tempo coreografada e recalcitrante.
OS OLHARES OBLÍQUOS DE XIAO WU
Jia descreveu as filmagens de seu terceiro longa-metragem Prazeres desconhecidos como
uma “conversa paciente com a cidade, através da câmera” (2002), e o mesmo poderia ser
dito de Xiao Wu. Seu primeiro longa-metragem parte de uma premissa similar à de Na
cidade de Sílvia, aplicada a um contexto e a um espaço completamente diferentes. O filme
é também arquitetado a partir do olhar de um personagem central masculino através de
uma cidade, e através deste olhar e de suas andanças a narrativa atrasa o passo e perde-se
em círculos. A aproximação entre os dois filmes demonstra de que modo a cidade real da
locação exerce uma influência estrutural e estética sobre o cinema, resultando em soluções
similares e ao mesmo tempo distintas. Se Estrasburgo, uma cidade estrangeira para
Guerin, foi escolhida por se adequar a um projeto pré-existente, Fenyang, cidade natal de
Jia, que há alguns anos se mudara para Beijing para trabalhar e estudar, foi a principal
fonte de inspiração para o filme, sua raison d’être. Michael Berry explica: “O aspirante a
diretor não voltava para casa há um ano e meio e, ao se deparar com as monumentais
mudanças que lá ocorriam – da demolição dos prédios às mais sutis mudanças pessoais
76
em seus velhos amigos – Jia se sentiu imediatamente impelido a capturar o que estava
acontecendo em sua cidade natal” (2009, p. 23). 44
Xiao Wu nasce então do desejo explícito de filmar uma cidade e suas
transformações. Se Estrasburgo fascina pela preservação de seu centro histórico, Fenyang
esconde as marcas do passado, e aquelas poucas reminiscentes estão sendo rapidamente
apagadas. Logo, há uma urgência neste cinema que pretende preservar um presente
instável, um ponto a ser discutido com mais atenção no quarto capítulo deste livro. Aqui,
pretendo investigar de que modo este espaço instável condicionou o olhar e a câmera do
diretor, mediados pelo olhar de soslaio de Xiao Wu, resultando em uma prática espacial
definida por um posicionamento realista, diverso do posicionamento romântico do rapaz
na cidade de Sílvia. De que modo então a cidade de Fenyang condiciona o olhar e o andar
de Xiao Wu (e de Jia Zhang-ke)? O filme, apesar de não empregar o recurso brechtiano
de tableaux presente em Na cidade de Sílvia, também possui uma estrutura tripartite, não
temporal mas sim temática: Xiao Wu volta à sua cidade natal mas lá não encontra a
acolhida do lar: é progressivamente rejeitado por seus amigos de infância e ex-colegas
ladrões, como Jin Xiaoyong, agora um empresário de sucesso no ramo dos cigarros, que
não o convida para seu casamento; pela prostituta Mei Mei (Hao Hongjian), com quem
tem um breve envolvimento mas que deixa a cidade sem ao menos se despedir; e
finalmente por sua família, sendo expulso de casa na terceira parte do filme aos gritos e
golpes de marreta por seu pai. Xiao Wu acaba sendo preso pela polícia local, e o filme,
fundado a partir de seu movimento, encontra o seu final narrativo na imobilidade. A
despeito de uma estrutura pontuada por rejeições, Xiao Wu se contamina do mesmo
relaxamento narrativo observado em Na cidade de Sílvia, derivado principalmente da
44
“It had been a year and a half since the aspiring director has been home and, struck by the monumental
changes taking place there – from the widespread demolition of old buildings to the more subtle personal
changes affecting his old friends – Jia was immediately driven to capture what was happenings to his
hometown.”
77
influência do neo-realismo e de sua relação com o espaço real, configurando-se como
mais um exemplo do cinema da demora. Isso porque o filme emprega também uma
estrutura circular, onde os eventos-chave não se distinguem por um avanço narrativo, visto
que servem para colocar o personagem repetidamente de volta no mesmo lugar, ou seja,
na exclusão, do lado de fora da cidade ou na prisão.
Xiao Wu, assim como Na cidade de Sílvia, foi filmado com uma câmera 16 mm.
Como é sabido, este formato ganhou força nos anos 1960 como uma espécie de
instrumento da verdade, uma câmera capaz de captar o real de modo mais próximo,
liberando o cinema da escravidão histórica ao produto comercial, ligado ao 35 mm.
Assim, tornou-se fundamental ao cinema underground e aos movimentos documentaristas
dos anos 1960, levando a novas definições de realismo. Nesse sentido, o uso de Jia Zhang-
ke da câmera 16 mm é mais próximo dessa qualidade utópica do que aquele de Guerin
em Estrasburgo. Afinal, Xiao Wu foi realizado na clandestinidade, tornando-se um dos
marcos do cinema chinês independente da geração urbana dos anos 1990, que driblava o
regime para filmar de maneira livre, em busca da China real. Logo, seu realismo é antes
de tudo um realismo revelatório, de cunho representacional, visto que busca promover
uma extensão social da representação, nos termos de Raymond Williams (1977, p. 63), ao
se voltar para uma figura à margem da sociedade, observada em seu próprio meio, sob um
pano de fundo real. Isso significa que do ponto de vista do realismo da fábula Xiao Wu
comunga do mesmo credo neo-realista, disposto a revelar, mostrar o não visto,
problematizar uma realidade social específica. Mas assim como demonstrou Bazin acerca
do neo-realismo, Xiao Wu combina o ímpeto revelatório e representacional a um
realismo formal, que se manifesta principalmente através do que chamo de consequências
estéticas da cidade real, colada à forma do filme, o que parece conferir-lhe sua verdadeira
força revelatória.
78
Assim, os movimentos da câmera 16 mm pela cidade de Fenyang não apresentam
a leveza e a harmonia vistas em Estrasburgo. O que se pode observar em Xiao Wu é um
espaço desorganizado, movimentado, atravessado constantemente por um tráfego intenso
de carros, ônibus, bicicletas, motocicletas e pedestres, que na falta de calçadas caminham
em meio aos veículos. A câmera reproduz essa intensidade ao mover-se de modo ágil, ou
montada em veículos ou na mão, resultando em imagens dinâmicas e tremidas. Ao
contrário do filme de Guerin, no qual houve um esforço para controlar ou coreografar o
espaço real, Fenyang aparece como uma cidade quase indomável, impondo sua
contingência em todos os planos do filme. Nota-se a intimidade estabelecida entre a
câmera e o espaço, que deriva principalmente dos métodos documentais utilizados
durante a produção, facilitados pelo 16 mm. Em Jia Zhangke’s ‘Hometown Trilogy’
(Berry, 2009, p. 26), o diretor de fotografia Yu Lik-wai relembra que as filmagens
atraíram grandes contingentes de curiosos nas ruas da cidade. Entre esconder câmeras,
filmar e correr, esperar até que se cansassem ou a curiosa técnica do ‘boi de piranha’ (uma
câmera para distrair e outra para filmar), Jia e Yu fizeram de tudo para dispersar os
passantes e assim captar a vida nas ruas através da observação, preservando ao menos um
pouco da ilusão de sua narrativa. Mas aqui a “recalcitrância” da cidade real mostrou-se
irresistível, levando Jia a incorporar os olhares curiosos, o que adicionou uma nova
camada de realismo ao filme.
Xiao Wu começa justamente com olhares curiosos: em uma estrada, uma família
cercada de bagagens aguarda um ônibus e olha diretamente para a câmera, no que parece
ser o primeiro plano de um documentário. O personagem ficcional Xiao Wu é visto logo
após os créditos iniciais à beira da mesma estrada, através de dois planos metonímicos de
suas mãos (ele é, afinal, um batedor de carteiras), segurando um maço de cigarros. Ele
embarca em um ônibus em direção à cidade, dentro do qual tenta bater uma carteira e se
esquiva de pagar a passagem, dizendo ao cobrador que é um policial. Já na cidade Xiao
79
Wu é visto na garupa de uma bicicleta, em meio ao caótico trânsito de veículos e pessoas.
Aos poucos fica claro que ele está retornando à sua cidade natal, assim como o próprio
diretor, após um período de ausência. O retorno então motiva o filme, mas ao contrário
de Na cidade de Sílvia, onde voltar a Estrasburgo confunde-se com a viagem de turismo,
trata-se aqui de um reencontro com o familiar. Este familiar, entretanto, aparece desde o
início como um espaço instável, em processo de transformação, prenunciando a
inadaptação de Xiao Wu à sua própria cidade natal. Um aviso de evicção aos 11 minutos
do filme, por exemplo, revela que a loja de seu amigo será demolida, assim como as
outras lojas do mesmo quarteirão. O caractere chinês 拆 (chai) – que significa “demolição”
– estampa muros e prédios da cidade, onde se pode igualmente observar novas
construções em andamento. Dentro da lógica realista de Jia, a cidade instável aparece
como reflexo da própria instabilidade de Xiao Wu, que por sua vez é produto desta
instabilidade.
Conforme observei, Na cidade de Sílvia faz uso recorrente de imagens de
superfícies refletoras tais como vidros, espelhos e janelas que, além de marcar a
porosidade entre o exterior e o interior, sugere a porosidade entre a cidade e o
protagonista, cujas memórias parecem projetadas nessas superfícies. O próprio corpo da
cidade então é visto como um reflexo das impressões subjetivas do rapaz, em consonância
com o posicionamento romântico que reorganiza a cidade a partir de um olhar. Em Xiao
Wu a porosidade entre o exterior e o interior, entre o público e o privado, além de
também sugerir a interpenetração entre o espaço urbano e o protagonista, ganha uma
conotação de cunho cultural e político que a diferencia de Na cidade de Sílvia, em
consonância com o posicionamento realista assumido. Sob o ponto de vista cultural, pode-
se dizer que em uma cidade chinesa, e Fenyang não é exceção, a vida na rua se configura
como uma extensão da vida nas casas. As lojas, por exemplo, tendem a ser inteiramente
80
abertas, sem uma vitrine protetora que as separem da calçada; há uma profusão de
barraquinhas que preparam e servem comida nas ruas; a presença ubíqua de camelôs
enche calçadas e ruas com bancas que vendem desde frutas até aparelhos de som, tocando
em altos brados fitas cassete ou discos pirateados; até mesmo um karaokê parece ocorrer
do lado de fora, atraindo um aglomerado de pessoas. Além das atividades comerciais que
transbordam para o espaço público o filme mostra Xiao Wu jogando bilhar no meio da
rua e lavando seu rosto do lado de fora da casa, em uma torneira externa; Mei Mei, por
sua vez, telefona para seus pais em sua cidade natal de uma banca na rua, e luta com o
barulho constante da cidade para escutá-los; em sua casa a torneira também fica do lado
de fora, onde sua amiga vai buscar água para a chaleira. A cidade também guarda em seu
corpo marcas do passado de Xiao Wu e Jin Xiaoyong, na forma de riscos gravados no
muro para indicar suas alturas. Os anos que os viram crescer na cidade estão assim
registrados na pedra, como um signo público e não doméstico da persistência da
memória, tocado alternadamente por Xiao Wu e Jin Xiaoyong em dois planos distintos.
As locações internas que ocupam metade do tempo de projeção reforçam esta
porosidade ao transbordar para fora e ao convidar a cidade externa para dentro. Xiao Wu,
por exemplo, vai a um banho público, e acima da banheira uma grande janela deixa
escapar o vapor para o lado de fora; a estação de polícia conta também com uma grande
janela que atrai os olhares curiosos dos passantes após sua prisão; lojas, restaurantes e
cabeleireiros contêm janelas ou cortinas que pouco os protegem da rua, ou por vezes
nenhuma separação. A solução formal que dá conta no filme dessa interpenetração é
primeiramente o enquadramento, que privilegia as janelas nas cenas internas, de modo a
reforçar a presença da cidade real do lado de fora, e a autenticidade da locação. Em
segundo lugar, longos planos-sequência em locações internas evidenciam outro aspecto
essencial à construção de uma barreira porosa entre o público e o privado em Fenyang,
que é a trilha sonora. O mais longo deles, de seis minutos, ocorre na casa de Mei Mei,
81
onde ela convalesce em uma cama e joga conversa fora com seu pretendente. Uma
enorme janela ocupa a parte superior do quadro, e a luz externa incide diretamente sob a
lente da câmera. A conversa entre os dois ocorre em meio aos sons da cidade, e chega até
mesmo a ser abafada pelas buzinas, gritos e outros barulhos da rua.
Costurada em camadas, a banda sonora de Xiao Wu contém, além dos esperados
barulhos de buzinas e veículos motores, presentes em qualquer cidade (mas, é claro, com
muito mais intensidade aqui do que em Estrasburgo), o constante barulho de demolições
e construções, de aparelhos de televisão e de som e de conversas nas ruas. Ainda mais
peculiar é a presença do som de alto-falantes, que divulgam assuntos de interesse político
nacional (tal como a reunificação de Hong Kong) a curiosidades e anúncios locais (como
por exemplo, “se alguém quiser um pedaço de carne de porco, venha até minha casa”) –
reverberados aos quatro cantos da cidade, e que se tornam parte integrante da trilha. Por
fim, outro capítulo poderia ser escrito exclusivamente sobre o uso da música pop no filme,
que pontua diversos momentos diegética e não-diegeticamente, tornando-se uma das
marcas estilísticas do diretor neste e outros filmes. Para o propósito atual cabe notar o
modo como a trilha de Jia se estrutura a partir da noção de camadas ou texturas,
inspiradas, assim como a trilha Guerin, na realidade dos sons da cidade. Aparecem então
as variações sobre o mesmo tema a partir da repetição de sons e canções, da presença
constante do barulho das buzinas, das demolições ou construções, e dos anúncios
públicos. Berry relata em Hometown Trilogy o desentendimento entre Jia e a operadora
de som Lin Xiaoling, “que sentiu que sua reputação profissional seria comprometida pelas
repetidas demandas do diretor para que tornasse a qualidade de som a mais áspera
possível” (2009, p. 27),45
o que a levou a deixar o projeto, substituída por Zhang Yang. A
aspereza da qualidade do som significa que a trilha se impõe sobre todos os planos,
45
“Who felt her professional reputation would be compromised if she followed the director’s demands to
repeatedly make the sound quality ‘even coarser’”.
82
externos ou internos, uma opção estética que reforça a qualidade real da cidade em sua
confusão entre o público e o privado.
Essa característica de Fenyang, que pode ser estendida a outras cidades chinesas (e
em parte a outras cidades do sudeste e sul asiáticos), parece um reflexo espacial da
porosidade imposta por anos de regime comunista entre o público e o privado, o coletivo
e o individual. Assim, em um país que não tem entre suas prioridades a noção de
liberdade individual, priorizando sempre o bem coletivo regulado por um poder maior,
não surpreende que as atividades diárias de comércio e lazer aconteçam no espaço
coletivo, público. O alto-falante também funciona como uma constante lembrança da
presença inescapável do poder público chinês na vida do cidadão, invadindo não só as
ruas como também os locais privados. Mas talvez a ligação entre a estética e a característica
política da vida chinesa possa ir além do legado comunista, e isso aparece em Xiao Wu no
emprego da arquitetura vernacular chinesa, tradicionalmente destinada à construção de
residências. No norte da China, as casas familiares tendiam a ser formadas por uma
sequência de prédios, interconectadas por pátios internos e corredores que se abriam para
a rua e para dentro dos quartos. Esse tipo de construção, com sua ênfase no pátio ou
pátios como o centro das atividades da casa, reforçava a interpenetração entre o interior e
o exterior. Esse modelo tinha a vantagem de ser facilmente adaptado através da
construção de adendos e novos pátios, atendendo ao crescimento da família (Cai & Ly,
2006, p. 114). Xiao Wu é visto em uma série de planos-sequência atravessando
corredores, portas e pátios construídos a partir desse princípio arquitetônico, e é difícil por
vezes perceber se ele caminha do lado de fora ou de dentro dos muros, ou se está em um
pátio residencial ou público. O filme então incorpora esta peculiaridade arquitetônica,
principalmente através da câmera subjetiva em plano-sequência, para indicar mais uma vez
o relaxamento das barreiras entre o público e o privado, exacerbado por mais de 60 anos
de regime comunista.
83
Outro ponto a ser comentado diz respeito ao olhar-guia do personagem que dá
nome ao filme, assim como o olhar de outros habitantes da cidade, e mais uma vez o
paralelo com Na cidade de Sílvia pode iluminar a análise por suas semelhanças e
diferenças. Em Xiao Wu, conforme apontado no início do capítulo, o olhar não mediado
dos passantes atraídos ou surpreendidos pela câmera é um olhar inquisidor e curioso, que
quebra constantemente a quarta parede e funciona como um documento dentro do tecido
ficcional, contribuindo para um relaxamento narrativo ao introduzir de modo explícito o
elemento contingencial da locação. Esse olhar direto e curioso tanto para a câmera quanto
para seu objeto lembra o olhar igualmente direto e curioso do rapaz na cidade de Sílvia,
responsável pela articulação romântica do espaço real. Tanto o olhar-tátil do rapaz em
Estrasburgo, que não raro se transfere ou se transforma em desenhos, quanto o olhar-
documento dos habitantes de Fenyang, interessados no próprio cinema, parecem se
confundir com o olhar dirigido do espectador, imitando-o ou retribuindo-o. Já o olhar de
Xiao Wu, mediado por um óculos de aro negro com lentes grossas, é oblíquo, cabisbaixo,
de soslaio, escondido, próprio à sua profissão de batedor de carteiras, o que lhe confere
um certo charme e a candura dos tímidos. Adiciona-se a esse olhar um andar
cambaleante, dissimulado, quase uma an-dança gauche de idas e voltas, na tentativa vã de
atingir algum equilíbrio. O remapeamento de Fenyang promovido por Jia é resultado
desse desequilíbrio e desse olhar oblíquo. Isso resulta em uma cidade sempre vista da
altura de uma pessoa, desprovida de uma imagem totalizante pela ausência de planos
gerais de qualquer espaço maior do que uma rua.
A última sequência resume as características discutidas nesse capítulo e encerra o
filme – arquitetado sob o signo da mobilidade – com uma imobilidade ficcional
emblemática, a prisão de Xiao Wu, que ao mesmo tempo confunde-se formalmente com
o final de seu percurso. Após ter sido levado para a delegacia durante a noite, um plano-
sequência de dois minutos e meio mostra o prisioneiro sendo conduzido no dia seguinte
84
para o lado de fora, acompanhado pelo policial que, por ter algo a fazer, o algema a um
cabo de ferro no meio-fio, como se ele fora um cachorro a esperar pelo dono. Lá ele fica
de cócoras, olhando alternadamente para o chão e para seu entorno de modo oblíquo, e a
câmera – que permaneceu durante quase todo o filme na altura do homem – abaixa-se
ainda mais, assumindo com Xiao Wu a posição agachada. O plano-sequência realiza uma
espécie de decupagem, passando de plano geral (a dupla sai da delegacia e atravessa a rua)
para plano médio (o policial prende Xiao Wu no cabo de ferro), e finalmente para um
plano primeiro (Xiao Wu de cócoras, demonstrando desconforto). Neste plano primeiro
é possível ver à distância, através da profundidade de campo, algumas poucas figuras
curiosas, que observam Xiao Wu (e as filmagens) sem que ele se dê conta. Aos poucos
seu incômodo cresce e, ainda sem cortes, a câmera acompanha seu olhar (movimentando-
se para a direita e para cima), revelando do outro lado uma turma ainda maior de
curiosos, aglomerada à sua volta. Por um minuto e quinze segundos a câmera observa
aqueles que observam Xiao Wu, movimentando-se da direita para a esquerda e vice-versa.
Um dos méritos deste sofisticado plano-sequência é reunir os dois tipos de olhar
observados durante o filme, o olhar oblíquo de Xiao Wu e o olhar direto e curioso da
multidão. Aqui, a curiosidade adquire também uma conotação de reprovação, pois
promove a humilhação de Xiao Wu em praça pública. Michael Berry (2009) traça um
paralelo, corroborado pelo diretor, entre o papel da multidão no final de Xiao Wu e na
novela de Lu Xun A verdadeira história de Ah Q (1922), adaptada para o cinema em
1958 e 1986. Sequências de humilhação pública são recorrentes no cinema e na literatura
chinesas, e ocorriam de fato no país até pelo menos 2010, tendo sido muito frequentes
durantes os anos da Revolução Cultural (1966-76). Ao algemar seu protagonista no meio-
fio, à mira dos olhares curiosos e críticos espontaneamente atraídos pela câmera, Jia
salienta mais uma vez a interpenetração entre o público e o privado que permeou todo o
85
filme. Se nesta cidade come-se na rua, telefona-se da rua, joga-se bilhar na rua, lava-se o
rosto na rua, não surpreende que se possa ficar algemado na rua, ou à rua.
O plano-sequência final também dá conta das diferentes camadas de realismo
presentes no filme, que enfatizei a partir da incorporação do espaço urbano real. No plano
da fábula, Xiao Wu cumpre o papel da extensão social ao eleger um batedor de carteiras e
seu ambiente como principal foco da representação. Assim, esse realismo está
diretamente ligado à revelação de algo previamente ignorado ou escondido, e a locação
real ocupa um papel decisivo ao deixar-se “revelar” pela câmera. Além disso, por tratar-se
de um plano sequência com profundidade de campo, recurso do qual lança mão com
frequência durante o filme, Jia preserva a continuidade do tempo e do espaço através de
seu impulso baziniano, resultando em um realismo estético de inspiração neo-realista. Por
fim, o plano possui também o anti-ilusionismo brechtiano dos olhares diretos para a
câmera, funcionando como um elemento reflexivo que escancara o real da atividade
cinematográfica. Mas aqui esses olhares podem ser vistos dentro da ficção quase como
uma outra ilusão, pois quem quebra a quarta parede e encara a câmera são os habitantes
da cidade, e não o ator que interpreta Xiao Wu. Isso provoca uma impressão documental,
como se o que estivesse sendo registrado fosse verdadeiro, real, e não uma ficção. Logo,
esse recurso por um lado exacerba o realismo do meio (Nagib, 2011) ao assumir-se como
cinema, e por outro lado participa da ilusão documental gerada espontaneamente durante
as filmagens, que não deixam de ser a resposta real das ruas à uma situação criada pela
câmera. Laura Mulvey observou o modo pelo qual Viagem à Itália (Viaggio in Italia,
Roberto Rossellini, 1953) desdobra-se em dois finais, um “hollywoodiano” (o beijo do
casal) e o outro documental (o movimento de pessoas na cidade): “A vida continua. Um
final para, o outro flui” (2006, p. 122). Em Xiao Wu, mesmo que sua imobilidade
signifique a imobilidade da câmera e a imobilidade do filme, ou seja, seu fim, a vida
também parece continuar nos olhares inquisitivos dos curiosos. São estes olhares que
86
abrem e fecham o filme com a quebra da quarta parede, e que acabam prevalecendo
sobre o olhar oblíquo de Xiao Wu, envergado pela cidade, cujo peso chega a deixá-lo de
cócoras no final. Aqui, o real da cidade é maior do que o indivíduo, sedimentando a
posição realista do diretor.
87
CAPÍTULO II: O CINEMA ATRAVESSA A CIDADE
Filmes: Caro diário (Caro diario, Nanni Moretti, 1993), Os 12 trabalhos (Ricardo Elias,
2006), A bicicleta de Pequim (Shi qi sui de dan che, Wang Xiaoshuai, 2001)
Cidades: Roma, São Paulo, Pequim
Este capítulo é dedicado a três filmes realizados em cidades distintas, uma na Ásia
(Pequim), uma na Europa (Roma) e uma na América do Sul (São Paulo). Caberá analisar
de que modo os filmes Caro diário (Caro diario, Nanni Moretti, 1993), Os 12 trabalhos
(Ricardo Elias, 2006) e A bicicleta de Pequim (Shi qi sui de dan che, Wang Xiaoshuai,
2001) empregam uma prática espacial sobre duas rodas, desvelando o espaço urbano real
a partir de um personagem central masculino que atravessa Roma, Pequim e São Paulo
em uma Vespa, uma bicicleta e uma motocicleta, respectivamente. Esses filmes são unidos
por um “estilo móvel” ou “em movimento” que parece emanar do próprio espaço urbano
no qual se inserem. Ao se deslocarem através da cidade, movidos pelo trabalho ou pela
simples contemplação, esses personagens criam trajetórias diversas, frequentemente
pontuadas por encontros inesperados. Ao contrário dos filmes analisados no capítulo
anterior, a prática espacial é aqui indissociável do veículo no qual os personagens se
deslocam. A mobilidade e o mapeamento das cidades ganha então um certo grau de
velocidade e improviso – qualidades relacionadas aos veículos sobre duas rodas – e a
interação da câmera com o espaço urbano aparece em grande medida de modo mediado.
Conforme proposto na introdução, a noção de espaço não pode ser confundida
com a espacialização, ou em outras palavras com a sua representação. Nesse sentido, deve-
se usar com cautela o termo “representação” ou “mapeamento” em relação à prática
espacial cinematográfica, visto que ela nada tem de estática. Trata-se na realidade de um
88
mapear constante do espaço, e que por essa razão se caracteriza pela transitoriedade. O
cinema parece de fato ser o meio mais adequado para a exploração de um espaço, visto
que contém em seu cerne diversas categorias de movimento (da câmera, da montagem, do
próprio real captado e reproduzido, do projetor). São Paulo, Pequim e Roma são grandes
cidades, capitais de seus respectivos países ou, no caso de São Paulo, sua maior cidade, e
aparecem nos filmes analisados sob o princípio desse movimento essencial. Como bem
explica Doreen Massey (Lury e Massey, 1999), as cidades são espaços que exageram a
característica geral de constante movimento presente em todos os outros espaços. Ao se
pensar em uma grande cidade, é provável que venha à mente o constante movimento das
pessoas que caminham de um lado para o outro, os carros, motocicletas, ônibus e
bicicletas que atravessam as ruas, e os aviões e helicópteros que cruzam os céus; poder-se-
ia pensar também na mobilidade subterrânea das águas e esgotos, dos fios elétricos
(também aérea), e das ondas radiofônicas e dos sinais telefônicos. Grandes cidades
encarnam o estado puro do movimento, e um dos desafios da geografia urbana
contemporânea é dar conta dessa característica nos pensamentos acerca do espaço
urbano. Em Key Concepts in Urban Geography, Latham, McCormack, McNamara e
McNeill ensinam que na realidade a geografia urbana se preocupa com a mobilidade
desde a década de 1920 e 1930, época em que sociólogos da Escola de Chicago
relacionaram a ideia de “fluidez” com a metrópole americana (2009, p. 27). Os geógrafos
lembram também que nas décadas de 1950 e 1960 a chamada geografia quantitativa levou
adiante o estudo da mobilidade através de suas preocupações com as distâncias
percorridas e suas implicações econômicas. Assim, nessas décadas e também na década
de 1970 o ramo da geografia do transporte tornou-se um dos principais campos de estudo
dentro da geografia humana (2009, p. 28).
Tais correntes, todavia, não abarcavam toda a gama de movimentos que animam
qualquer cidade, e ainda mais as grandes cidades, que aparecem no vocabulário da
89
geografia humana contemporânea como “globais” (Sassen, 2001). Como advertem
Latham et al, a geografia do transporte
não menciona a circulação de água e esgoto da qual dependem as cidades. Não
leva em conta o movimento dos habitantes não-humanos das cidades, as plantas, a
vida selvagem, os bichos de estimação, os alimentos vivos, etc., que são uma parte
integrante das cidades. Também não abre muito espaço para se pensar a respeito
de todo o movimento que ocorre nas cidades mas que não significa viajar de um
destino a outro; os prazeres de se passear nas ruas ou de carro, caminhadas no
domingo, andar com o cachorro ou fazer cooper, para citar alguns exemplos. Em
outras palavras, a geografia do transporte é simplesmente preocupada com o
movimento entre A e B, e não com a viagem (o movimento) em si; é voltada para
o instrumental. Assim, o tipo puramente quantitativo das análises favorecidas pela
geografia do transporte tende a congelar o movimento descrito, reduzindo-o a um
vetor abstrato entre dois pontos. (2009, p. 29)46
De modo a cobrir esse vácuo deixado pela geografia do transporte, surge nos últimos anos
o chamado paradigma da mobilidade, uma abordagem interdisciplinar que procura
investigar o movimento das cidades de modo abrangente. Um dos campos de investigação
inclui, por exemplo, o automóvel, visto como um dos principais veículos dessa
mobilidade, configurando, mais do que um simples meio de transporte, um estilo de vida
(Latham et al, 2009, p. 31). Já a bicicleta e a motocicleta aparecem, principalmente nas
cidades asiáticas, como um meio de transporte comum, mais acessível e por vezes
eficiente do que o automóvel, estando igualmente ligados aos constantes movimentos
urbanos. O cinema se apropria desses veículos com frequência, e nos filmes aqui
discutidos os incorpora integralmente à narrativa e à sua forma, forjada no seio da cidade.
46
“makes no mention of the circulation of water and waste upon which cities depend. It does not take any
account of the movement of non-human habitants of cities, plants, wildlife, pets, livestock, etc that are
such an integral part of what cities are. Nor does it allow much space to think about all the movement that
takes place in cities not oriented towards travelling from one destination to another; the pleasures of street
cruising and hanging out in cars, Sunday strolls, dog walking or jogging, to name just a few examples. Put
another way, transport geography is simply about getting from A to B, it is not about the journey (the
movement) itself; it is oriented towards the narrowly instrumental. As such, the purely quantitative
accounts favoured by transport geography tend to freeze the movement they are describing, reducing it to
an abstract vector between two points.”
90
Caro diário, Os 12 trabalhos e A bicicleta de Pequim, portanto, refletem
esteticamente a proposição do paradigma da mobilidade, que insiste em uma definição do
mundo a partir do movimento e não da stasis. Já a necessidade de aproximar essas cidades
e esses cinemas, proposta através da presente análise, está em consonância com outra
proposição desse paradigma, que pensa o mundo como uma multiplicidade heterogênea
de tempos e espaços (Latham et al, 2009, p. 33). Logo, isolar um cinema ou uma cidade
para se discutir sua prática espacial parece menos eficaz diante da inegável interconexão
geográfica que define os tempos atuais. A emergência do que se pode chamar de nova
ordem espacial global foi analisada por Saskia Sassen a partir do conceito de “cidade
global”, que aparece com a intensificação dos processos econômicos inter-fronteiras no
campo privado, ocupando o lugar das transações entre Estados. Assim, a noção de
“nacional” vem se enfraquecendo como unidade espacial diante da globalização da
economia e da mobilidade do Capital, que vê a aglomeração das atividades financeiras e
dos serviços em algumas cidades espalhadas pelo globo, e a transferência da manufatura
para outras. Na atual conjuntura, pelo menos 70 cidades no mundo podem ser
consideradas como globais, conectando de modo inédito diversos países e traçando uma
nova geografia do poder. No campo da estética cinematográfica, tendo em mente o fato de
o cinema ser um meio que viaja, interessa também esboçar novas geografias do cinema
mundial, através das quais será possível aproximar filmes que empregam um certo
“paradigma da mobilidade” em seu estilo, não obstante sua distância no mapa, e suas
diferenças.
A CANETA, A CÂMERA E A VESPA: OS ENSAIOS DE NANNI MORETTI
Em Caro diário, filme dirigido pelo italiano Nanni Moretti em 1993 e pelo qual recebeu o
prêmio de direção do Festival de Cannes no ano seguinte, Roma aparece no primeiro
capítulo – com duração de 27 minutos – em constante movimento, a partir da fruição do
91
espaço e do olhar atento do condutor da Vespa, o próprio Moretti. Uma das cidades mais
“cinematografadas” do mundo, a capital italiana tem entre suas presenças simbólicas a
“Vespa” (o nome vem da semelhança com o inseto), um tipo de motocicleta com design
diferenciado que inclui uma prancha de apoio para os pés e rodas de diâmetro pequeno.
O veículo começou a ser fabricado no imediato pós-guerra pela companhia italiana
Piaggio, antigo fabricante de aeronaves de combate. Com as restrições impostas ao país
após sua derrota para as forças aliadas, a Piaggio abandonou o ramo militar e encontrou
um nicho na produção de veículos simples, baratos e mais adequados às condições
precárias das ruas das principais cidades, muitas delas destruídas pela guerra. Assim surgiu
a “Vespa” em 1946, como a alternativa de transporte privado para a nova Itália da
reconstrução, tornando-se parte da iconografia do país. Com o passar dos anos as vendas
do produto cresceram e finalmente atingiram seu auge na primeira metade da década de
1950, impulsionadas, curiosamente, por um filme. Trata-se do clássico de William Wyler
A princesa e o plebeu (Roman Holiday, 1953). A princesa é Ann (Audrey Hepburn), que
deseja conhecer Roma com a liberdade dos comuns, longe de suas obrigações reais. O
plebeu é Joe Bradley (Gregory Peck), um jornalista americano que a encontra e, fingindo
desconhecer sua identidade, a acompanha em suas aventuras pela cidade. O filme abre
com a cartela “este filme foi inteiramente fotografado em Roma”47
, deixando explícita a sua
“ligação ontológica” com o real da locação. Os créditos se desenrolam sobre imagens da
cidade, e a uma certa altura Joe leva Ann para um giro a bordo de uma Vespa. Ele conduz
e aponta para ela os principais monumentos pelos quais passam, mas aproveitando uma
pausa a princesa se aventura como condutora, e sai de modo desajeitado com a Vespa de
Bradley, causando um grande caos pelo caminho. No clássico de Wyler, então, a Vespa
aparece como um signo da liberdade que a princesa experimenta pela primeira vez em sua
vida, na garupa e na direção.
47
“This film was photographed in Rome in its entirety.”
92
Nanni Moretti também empresta da Vespa a liberdade, quarenta anos depois. A
bordo do emblemático veículo italiano, realiza uma exploração auto-biográfica de sua
cidade, Roma, situando Caro diário de início na zona cinzenta entre a ficção e o
documentário. O filme abre com a cartela “Capítulo I – De Vespa / Capitolo I – In
Vespa”, seguida de um primeiríssimo plano de uma caneta que escreve em um caderno:
“Caro diário, há uma coisa que gosto de fazer mais do que qualquer outra…”.48
O corte
passa para um plano de uma rua, a câmera em um movimento para frente, e após alguns
segundos Moretti entra em quadro fazendo aquilo que mais gosta: pilotando sua Vespa
pelas ruas da cidade, sempre observado à distância por uma câmera que o segue num
suave deslizar. Assim, ele aparece já em movimento, sem um ponto de partida fixo, e esse
detalhe passa a dominar todo o primeiro capítulo. De início, Moretti apresenta três planos
longos acompanhados da música “Batonga” da cantora e compositora beninense
Angélique Kidjo, lançada no início dos anos 1990. Nesses três primeiros planos já é
possível notar que esse movimento pela cidade não segue um roteiro pré-determinado,
visto que o prazer está no próprio deslocamento, e não no destino. A voz over do
diretor/ator entra aos três minutos e meio e funde-se com a música africana. É verão em
Roma, e as ruas estão desertas. A maioria das salas de cinema também está fechada, mas
ele vai assistir a um filme italiano. Esta será a primeira parada em seu circuito, que incluirá
interações esparsas com o dono ou dona de uma casa em seu bairro preferido, Garbatella,
na qual ele toca a campainha para matar sua curiosidade de conhecê-la por dentro, com a
desculpa de que está procurando locações para um filme sobre (ele improvisa) “um
doceiro trotskista na Itália dos anos 1950, um musical”; uma tentativa de diálogo com um
rapaz parado no farol em seu carro conversível, no final de uma bela ponte; um grupo de
pessoas que dança salsa ao som de uma banda ao vivo, no meio da rua, com quem
Moretti canta brevemente no palco e expressa seu profundo desejo por aprender a dançar;
48
“Caro diario, c’è una cosa che mi piace fare pìu di tutte...”
93
um rapaz sentado em uma mureta no bairro de Spinaceto, a quem diz que o bairro não é
assim tão ruim quanto ele esperava; um senhor em frente à sua casa no bairro de Casal
Palocco, a quem pergunta por que decidiu ir morar nos anos 1960 tão afastado da cidade,
trocando a beleza de Roma pelas casas com grades, cachorros, vídeos-cassete e chinelos; a
interpelação no meio da rua da atriz americana Jennifer Beals, estrela de Flashdance
(Adrian Lyne, 1983), admirada por Moretti por sua habilidade na pista de dança; outra ida
ao cinema para ver Henry: retrato de um assassino (Henry: Portrait of a Serial Killer, John
McNaughton, 1986), seguida de uma cena na qual ele tortura o crítico de jornal que havia
recomendado o filme com a leitura de seus próprios textos, pretensiosos e sem sentido; e
finalmente um passeio até Ostia apresentado em dois planos-sequência (o segundo de três
minutos), local do assassinato de Pier Paolo Pasolini e no qual há um discreto e mal-
cuidado monumento ao diretor.
Todas essas paradas são breves e separadas por longos planos de deslocamento
pela cidade, a câmera acompanhando Moretti por trás ou pela frente, ocasionalmente se
aproximando de seu rosto coberto pelo capacete e por óculos escuros. O movimento da
câmera então imita o movimento do veículo através da cidade com o emprego recorrente
do tracking shot, que leva o espectador a experimentar o prazer do deslocamento junto a
Moretti. A cidade aparece em um fluxo constante, pontuado por breves paradas aqui e ali,
que podem pertencer ao tempo presente da ficção ou aos sonhos e desejos do diretor.
Mas além do fluxo constante a cidade aparece também em toda a sua materialidade,
através da insistência em seus prédios, suas casas, suas construções, uma materialidade que
explicita a própria tensão inerente a esse tipo de cinema entre o real e o ficcional, entre a
re-presentação e a a-presentação. Moretti explica em voz over o quanto gosta de observar
as casas, e não somente do exterior – daí suas eventuais paradas nas quais tenta entrar em
residências alheias com alguma desculpa esfarrapada.
94
O diretor/ator expressa também seu desejo de fazer um filme apenas com
panorâmicas de casas – e completa com o que talvez já seja uma realização parcial desse
desejo, uma série de planos panorâmicos de diferentes tipos de prédios e casas, por ele
identificados pelo nome e pelo ano de construção. Na citação abaixo, Giuliana Bruno
compara o filme de Moretti aos chamados “filmes panorâmicos” da era silenciosa:
Assim como nos antigos filmes panorâmicos do gênero “viagem”, nós somos
literalmente transportados, pois quando o filme se torna uma lente que viaja o
espectador se torna um viajante, viajando até mesmo através da História....
Figurações arquitetônicas diversas são montadas de modo a criar um travelogue de
atmosferas específicas. A arquitetura, experimentada em movimento e remontada
para o tour espectatorial, é feita para se mover. Roma se torna uma paisagem
arquitetural em movimento. (2007, p. 36)49
A comparação entre essa “paisagem arquitetural em movimento” e os filmes panorâmicos
da era silenciosa remete ainda a outro paralelo que pode ser engendrado entre Caro diário
e as primeiras décadas da arte cinematográfica, visto que o primeiro capítulo do filme
pode ser lido como uma instância de flânerie baudeleriana. Os passeios de Moretti são
essencialmente desvinculados do trabalho, movidos pelo desejo de fruir o espaço da
cidade de modo fortuito, e nesse sentido se aproximam da experiência do flâneur na
primeira modernidade, identificada por Baudelaire e estudada por Benjamin. O paralelo
pode ser ainda desdobrado ao levar-se em conta a proposição de Anne Friedberg em seu
Window Shopping: Cinema and the Postmodern, no qual sugere que o espectador do
primeiro cinema é o sujeito de uma flânerie imaginária, experimentando um tipo de olhar
visualmente e temporalmente móvel:
49
“As in the early panoramic films of the travel genre, we are literally transported, for when film becomes
a travelling lens the spectator becomes a voyager, travelling even through history…Diverse architectural
figurations are edited together to create a travelogue of specific atmospheres. Architecture, locally
experienced in motion and reassembled for the spectatorial tour, is made to move. Rome becomes a
moving architectural landscape.”
95
A flânerie servirá como um dispositivo explicativo para traçar mudanças na
representação e na experiência estética no século XIX. Como uma construção
social e textual de uma visualidade móvel, a flânerie pode ser historicamente
situada como um fenômeno urbano ligado, de modo gradual ou direto, à nova
estética da recepção encontrada na experiência do cinema. Como irei demonstrar,
a flânerie imaginária da experiência cinematográfica oferece uma visualidade
espacialmente móvel, mas também, fundamentalmente, uma mobilidade temporal.
(Friedberg, 1993, p. 3)50
Tanto o estilo quanto a forma narrativa do Capítulo I de Caro diário – evidentes nos
movimentos de câmera em tracking, no uso da cidade real e no princípio da aleatoriedade
dos encontros e dos trajetos, transformam Moretti e por conseguinte o espectador em
flâneurs, remapeando Roma a partir de uma visão de mundo pessoal. Ademais, Moretti
parece convidar o espectador a acompanhá-lo em seus passeios através do endereçamento
direto e anti-ilusionista de frases tais como “Então vamos lá ver Spinaceto”51
, aproximando
seu filme do primeiro cinema pré-narrativo, o que Tom Gunning chamou de “cinema de
atrações” (1997), um cinema essencialmente exibicionista, que evidencia sua visibilidade, e
que está disposto a solicitar a atenção do espectador, incitando a curiosidade visual e
oferecendo prazer através de um espetáculo, seja ficcional ou documental.
Assim, depreende-se de cada um desses momentos de interação do diretor com
outros habitantes ou passantes de Roma, além de sua voz over que comenta a cidade, seus
desejos, experiências, gostos pessoais e impressões sobre a vida e os filmes que assiste, que
o filme trata de um mapeamento subjetivo da cidade, guiado por um discurso em primeira
pessoa (no diário, na voz over). As passagens oferecem a Moretti diferentes oportunidades
de expressar suas ideias, uma espécie de reflexão sobre a cidade e que muitas vezes
extrapola a própria cidade. Conforme explica Laura Rascaroli em relação à estrutura geral
do filme,
50
“Flânerie will serve as an explanatory device to trace changes in representation and the aesthetic
experience in the nineteenth century. As a social and textual construct for a mobilized visuality, flânerie
can be historically situated as an urban phenomenon linked to, in gradual or direct ways, the new aesthetic
of reception found in “moviegoing”. As I will argue, the imaginary flânerie of cinema spectatorship offers
a spatially mobilized visuality but also, importantly, a temporal mobility.” 51
“Allora, andiamo a vedere Spinaceto”
96
Caro diário de Moretti apresenta uma estrutura não usual – é dividido em três
episódios, “InVespa”, “Isole” e “Medici”, que correspondem a três capítulos do
diário epônimo que o autor aparece escrevendo durante o filme. O filme adapta a
forma fragmentária e diversa do diário para a linguagem cinematográfica, e assim
apresenta uma mistura de autobiografia e distância crítica, confissão privada e
comentário sobre assuntos de interesse público. (2003, p. 87)52
Rascaroli chama a atenção para o fato de todo o filme ser baseado de certa forma no
deslocamento, no segundo capítulo “Ilhas/Isole” entre diferentes ilhas no arquipélago das
Eólias, e no terceiro capítulo “Médicos/Medici” entre diferentes médicos, que Moretti
visita em busca de uma explicação e um tratamento para uma condição misteriosa.
Rascaroli por fim conduz sua análise do primeiro capítulo “In Vespa” a partir de uma
leitura das atitudes do diretor como “verdadeiramente pós-modernas” (2003, p. 89)53
, a
despeito de sua relação positiva e prazerosa com o espaço da cidade, típica da moderna
flânerie. Para Rascaroli, o trânsito de Moretti funciona como uma instância de nomadismo
urbano, nos termos de Deleuze e Guattari (2003, p. 89), e o “espaço urbano
contemporâneo, fragmentado e disperso, pode ser visto como simultaneamente alienante
e frustrante, positivo e liberador” (2003, p. 89)54
. Moretti seria então um nômade pós-
moderno em Roma, desfamiliarizando a cidade através de seu olhar que evita as locações
familiares ao cinema, complementado por uma trilha sonora de world music, tornando a
cidade “quase não-italiana” (2003, p. 90)55
.
Essa possível leitura do filme incorre na possibilidade de obscurecer certos
aspectos importantes do tipo de mapeamento da cidade praticado por Moretti. Gostaria
52
“Moretti’s Caro diario presents an unusual structure - it is divided into three episodes, “In Vespa”,
“Isole”, and “Medici”, corresponding to three chapters of the eponymous diary which the author is shown
writing during the film. The film adapts the fragmentary and diverse form of the diary to cinematic
language, and therefore presents a mix of autobiography and critical distance, private confession and
comment on public affairs.” 53
“truly postmodern.” 54
“The fragmented and dispersed contemporary urban space can be seen simultaneously as alienating and
frustrating, and as positive and liberating...” 55
“almost non-Italian”
97
de sugerir uma análise a partir do conceito de ensaio cinematográfico, que possa se
distanciar da ideia de fragmentação como um traço essencialmente pós-moderno. Como é
sabido, a definição do que seria o ensaio cinematográfico é fluida e parece resistir a
qualquer tipo de positivação. Não obstante, alguns traços podem ser delineados de modo
a sugerir de que modo o estilo literário inaugurado por Michel de Montaigne no século
XVI encontra no cinema um paralelo. Em linhas gerais, pode-se dizer que o ensaio
perpassa gêneros, situando-se entre a ficção e o documentário. Em seguida, destaca-se a
marca da subjetividade, exposta de forma radical, e que cria uma relação tensa com
qualquer teor de verdade almejado. No cinema, isso se traduz também no filmar de forma
íntima e solitária, com condições técnicas que prescindem de grandes equipes. A forma
ensaística solicita também a presença de uma dimensão reflexiva, manifesta em dois
planos, ou seja, na obra que se pensa e na presença do sujeito-autor. O ensaio propõe
uma reflexão sobre um assunto em pauta na cultura e na sociedade, através de um estilo
que se pode chamar de experimental, baseado no risco, no novo e na invenção. Isso
significa que o ensaio parte da coragem do pensamento e da capacidade de resistir a ideias
pré-concebidas. Há também em qualquer ensaio uma certa medida de dialogismo na
forma de expor, que aparece com frequência através de citações. A essas características
juntam-se a heterogeneidade e o hibridismo da mistura de gêneros e estilos, da
descontinuidade e da interrupção do fluxo; a incompletude que lhe confere um caráter
inacabado; e um impulso anti-sistêmico, que vai de digressão em digressão, deixando-se
levar pelo pensamento e pelo humor do autor.
Todas essas características supra-citadas parecem descrever o primeiro capítulo de
Caro diário, logo é possível sugerir que Moretti realizou um ensaio cinematográfico
arquitetural, através das ruas da sua cidade. A presença do ator/diretor no filme significa
também a presença do autor, uma marca auto-reflexiva que escancara de que modo esse
filme foi construído a partir de uma visão subjetiva. Nada mais simbólico, então do que a
98
caneta que escreve o diário em primeira pessoa – vista no primeiríssimo plano que abre o
filme. Essa caneta em seguida se confunde com a câmera, no que poderia ser uma
tradução semiótica do texto fundador de Alexandre Astruc “La Caméra Sytlo”, que lançou
em 1948 as principais ideias que levariam os jovens turcos dos Cahiers du Cinéma a
desenvolver sua noção de cinema de autor nos anos 1950. Moretti aproxima então a
caneta e a câmera ao decidir filmar o seu diário, posicionando-se escancaradamente como
o autor desse filme, um posicionamento reforçado ainda mais pela presença de seu corpo
e de sua voz. Mas adiciona ainda um terceiro vetor à união caneta-câmera, pois em Caro
diário não é somente a câmera que “escreve”, e sim também a própria Vespa, que risca
seus trajetos por Roma, a cidade re-escrita, re-mapeada e re-traçada pelo
diretor/autor/ator, através de sua Câmera-Caneta-Vespa.
Através dessa aproximação entre os três vetores descritos acima, a câmera, a caneta
e a Vespa, Moretti faz imperar em seu filme a confusão entre a ficção e o documentário,
as marcas de subjetividade, a dimensão reflexiva, as citações (inclusive de filmes dentro do
filme), a heterogeneidade, a interrupção do fluxo e o impulso anti-sistêmico, características
definidoras dos ensaios escritos por Montaigne no século XVI. Há também em Caro
diário uma reflexão acerca de algo que está posto na cultura e na sociedade, que vai do
preço das casas aos bairros populares de Roma, de seus subúrbios ricos às críticas
cinematográficas sem sentido, dos filmes italianos a uma homenagem a um dos maiores
diretores do país, Pasolini, que encerra o capítulo. O diário de Moretti é então um diário
ensaístico, visto que não se restringe às suas impressões acerca de assuntos pessoais,
levando a reflexões maiores sobre os mais diversos assuntos. A trilha sonora que
acompanha sua trajetória ensaística inclui, além da já mencionada “Batonga”, a canção do
canadense Leonard Cohen “I’m Your Man”, “Didi”, hit da música Raï do
cantor/compositor argelino Khaled, e “The Köln Concert” do pianista e compositor
americano Keith Jarrett, que acompanha a peregrinação à Ostia. Mais do que
99
simplesmente um passeio por hits da world music (termo por si discutível) do início da
década de 1990, a trilha parece emergir simplesmente da discoteca do próprio
diretor/ator/autor, um reflexo ensaístico e nada mais. Roma é ainda Roma, cidade italiana
par excellence, povoada por pessoas de todos os cantos e por italianos que escutam
música de todos os cantos, e nada no filme parece sugerir o contrário.
OS 12 TRABALHOS E A BICICLETA DE PEQUIM
O tom ensaístico de Caro diário, que dá espaço para a emergência da subjetividade do
diretor/ator/autor através da liberdade de seus trajetos pelo espaço urbano, está longe da
prática espacial identificada em Os 12 trabalhos e A bicicleta de Pequim. Nesses dois
filmes, os rapazes que se deslocam são entregadores, um motoboy em São Paulo, outro
courier em Pequim, e seus trajetos são tudo menos livres, dominados como são pela
lógica do trabalho. Do mesmo modo que a trajetória livre de Moretti resultou em uma
forma e narrativa ensaísticas, a trajetória controlada dos rapazes resulta nos outros dois
filmes em uma forma e narrativa mais afinadas ao cinema clássico, ou seja, mais rígidas e
programadas. Ao levar-se em conta os espaços urbanos nos quais esses filmes foram
realizados, pode parece estranho que Roma, uma cidade um tanto mais harmoniosa e
organizada que Pequim ou São Paulo, tenha inspirado justamente a forma mais livre e
fragmentada do ensaio. Talvez tenha havido nos filmes brasileiro e chinês um desejo de
reorganização do caótico através da narrativa bem amarrada, e tanto o filme de Elias
quanto o de Wang podem ser incluídos em uma tendência supranacional de roteirização,
observada por Lúcia Nagib em seu artigo “Going Global - The Brazilian Scripted Film”
(2006b). Nagib se refere aqui à reconstrução narrativa observada nos filmes brasileiros do
período da retomada, mas que também aparece em diversas outras cinematografias, e que
se opõem ao desconstrutivismo pós-modernista da década de 1980. Baseados em roteiros
desenvolvidos por um considerável período de tempo, dedicados a histórias bem
100
amarradas, esses novos filmes encontram por sua vez uma nova audiência na classe média
educada, pronta a apreciar um produto que parece ficar no meio do caminho entre o
cinema comercial e um cinema mais experimental. Destacam-se as seguintes características
identificadas por Nagib nesse cinema “roteirizado”: (1) o realismo através do uso de
locações reais, que conferem ao filme uma certa autenticidade e um pano de fundo
documental através do qual os espectadores podem viajar por cidades e países
desconhecidos. (2) o herói-privado, a pessoa comum que se confrontará durante o filme
com eventos extraordinários, dando ensejo à ficção que se desenrola sob um pano de
fundo documental, mas sempre em consonância com o ilusionismo e as regras do cinema
narrativo clássico. (3) um evento improvável mas que se torna convincente através da
construção do roteiro e devido ao fato de estar confinado ao mundo privado do herói
comum, um mundo despolitizado. Por mais improváveis que sejam, esses eventos tornam-
se críveis pelos roteiros bem construídos e coerentes, que transformam as pessoas comuns
em “heróis privados”, vivendo em um mundo despolitizado (Nagib, 2006b, p. 97).
Essas características aparecem de forma clara em Os 12 trabalhos, no qual o herói-
privado é Heracles, um motoboy que se depara com circunstâncias improváveis durante
seu primeiro dia de trabalho, tendo como pano de fundo a cidade real de São Paulo. Os
12 trabalhos pertence a um momento maior de retorno desta cidade como locação real às
telas dos cinemas, que ocorreu de modo pronunciado a partir do final dos anos 1990.
Desde então pode-se observar um número cada vez mais freqüente de produções não
somente filmadas em São Paulo como também ávidas por exibi-la, percorrê-la, discuti-la.
O cinema nacional mostrou vigor em filmes tais como O invasor (Beto Brant, 2002),
Antônia (Tata Amaral, 2006), Linha de passe (Walter Salles e Daniela Thomas, 2008),
entre tantos outros intimamente ligados à cidade. Na década de 2000, diversos artigos nos
principais diários paulistas testemunharam essa tendência, e suas manchetes atestam a
novidade do reaparecimento da cidade real no cinema brasileiro: “Um Corpo a Corpo
101
com a Cidade: A Via Láctea, novo filme de Lina Chamie, usa São Paulo como
personagem” (Luiz Zanin Oricchio, Caderno 2, O Estado de S. Paulo, 26 de janeiro de
2007); “Bem na Fita: São Paulo seduz cineastas, exibe o lado fotogênico na atual safra de
filmes nacionais e atrai produções de fora” (Folha Ilustrada, Folha de S. Paulo, 1 de julho
de 2007); “Na Epiderme da Cidade: Gente comum, lutando para sobreviver em São
Paulo, inspira três novos filmes” (Caderno 2, Estado de S. Paulo, dia 6 de fevereiro de
2008); “Prefeitura cria escritório para fazer da cidade um cenário” (Caderno 2, O Estado
de S. Paulo, 9 de junho de 2007), sobre a criação pela Secretaria
Municipal de Cultura do
Escritório de Cinema de São Paulo (Ecine), que fornece apoio a produtores que desejam
filmar na cidade; além de inúmeros outros artigos dedicados aos filmes paulistanos
Antônia, Os 12 trabalhos, Não por acaso (Philippe Barcinski, 2007), O signo da cidade
(Carlos Alberto Riccelli, 2007), A casa de Alice (Chico Teixeira, 2007), Linha de passe,
Quanto dura o amor? (Roberto Moreira, 2009), Salve geral (Sergio Rezende, 2009) É
proibido fumar (Anna Muylaert, 2009), e programas de televisão tais como 9mm: São
Paulo (2008).
Ricardo Elias, formado na cidade de São Paulo, dirigiu em 2003 um outro filme
paulistano, intitulado De passagem, que já contém no próprio nome a idéia de
deslocamento que virá a dominar Os 12 trabalhos, realizado três anos depois em 2006.
Em De passagem, a viagem pela cidade é motivada pela morte de Washington, irmão de
Jeferson, que atravessa São Paulo ao lado do amigo de infância Kennedy para encontrar o
corpo do irmão e identificá-lo. Os dois sugestivamente nomeados amigos devem
atravessar a cidade e para isso caminham a pé, tomam ônibus, metrô e também andam de
carro para chegar ao seu destino. A viagem a bordo dos diversos transportes através da
cidade suscita memórias de infância, e parte do filme se desenrola em flashback. Essa
mobilidade do deslocamento urbano já presente em De passagem ganha ainda mais força
102
em Os 12 trabalhos, filme em que o veículo para o descerramento de São Paulo é o jovem
Heracles (Sidney Santiago).
Dos presidentes americanos Ricardo Elias vai à Grécia antiga para nomear o
protagonista de seu filme. Heracles é o nome grego posteriormente romanizado para
Hércules, e o título do filme não deixa dúvidas da referência explícita ao semideus da
mitologia, filho de Zeus/Júpiter com uma mortal. O Heracles do filme é um jovem da
periferia paulistana, morador de um bairro que mais tarde se descobre pertencer à zona
norte da cidade. Os primeiros planos do filme combinam um ponto de vista individual,
ligado à tradição romântica ocidental, com um ponto de vista coletivo, ligado à tradição
realista. Sobre a tela preta ouve-se primeiramente a voz em off de Heracles, que diz: “O
começo é só confusão, de imagens, de coisas que a gente colheu aí na vida, coisas que a
gente viu, viveu, até meio que inventou. Velho, vai vindo uma vontade forte de ajeitar tudo
isso que fica pesando dentro da cabeça, ajeitar aqui e ali, e nessas daí que nasce uma
história”. Essa voz tem um caráter metalingüístico, e parece falar da feitura de um filme,
do contar uma história através de imagens e sons, reorganizados a partir da montagem. O
filme passa da voz para os olhos do protagonista, em primeiríssimo plano. Heracles
informa um interlocutor fora de quadro que roubava carros, que passou dois anos na
Febem e que saiu há dois meses (aqui há uma referência à famosa cena em Os
incompreendidos, dirigido por François Truffaut em 1959, na qual Antoine Doinel é
entrevistado por alguém não visto, apenas ouvido – essa referência se transforma em
citação direta no fim do filme). O interlocutor responde após um corte para um primeiro
plano de Heracles: “Você vai fazer entregas por um dia, e se tudo der certo eu te
contrato”.
A breve entrevista de emprego antecede a cartela com o título do filme, e em
seguida a voz em off de Heracles retorna, dessa vez sobre uma panorâmica da paisagem
da periferia. O jovem infrator então tece comentários acerca dessa cidade e desse bairro,
103
trazendo o filme do seu ponto de vista individual (seus olhos) para o coletivo (a paisagem).
Inicia com comentários mais gerais, antes de passar para o mais específico: “Uma cidade é
cimento, pedra, ferro, gente se agitando em seus espaços, vãos; a pedra e o ferro
permanecem, os seres que se agitam vem e vão. A cidade é um mundo em criação, e
qualquer mundo tem suas fronteiras, seus lugares proibidos. Bairros indicam classes, ruas
indicam quem você é. Cara, dependendo de onde você nasceu, já é. Tua história tá escrita
antes de começar.” Heracles descreve a cidade como um espaço “em criação”, aludindo à
abertura para o novo e à noção de movimento. De modo quase ilustrativo, a panorâmica
revela um amontoado de casas típicas da arquitetura efêmera e improvisada da periferia
paulistana. E sua fala deixa bem clara a intenção realista do filme, que passa em poucos
minutos dos olhos do indivíduo, um posicionamento romântico, para o ambiente que o
cerca e que moldará suas atitudes. Difícil não se remeter aqui ao início de Alemanha ano
zero, já discutido no primeiro capítulo por seu procedimento realista, que posiciona o
garoto Edmund como produto do meio, sua imagem precedida pela destruição de Berlim.
Ricardo Elias coloca esse comentário na boca de seu Heracles logo nos primeiros minutos
do filme, explicitando essa crença na importância do meio como determinante na vida do
indivíduo.
O plano geral de bairros de periferia paulistanos, tomados de um ponto de
observação vantajoso (a casa de Heracles fica em um ponto alto), é recorrente em filmes
da safra recente realizada na cidade. Em Antônia, por exemplo, o primeiro plano é
análogo ao plano de Os 12 trabalhos, e o filme também se inicia na Zona Norte, mais
precisamente na Vila Brasilândia. Aqui, ao invés do mar de concretos que domina um
outro tipo de iconografia familiar de São Paulo, vê-se um mar de tijolos, de casas sem
reboque, inacabadas e amontoadas. O cinema vem desde sempre participando da
construção de vistas urbanas, e isso envolve com freqüência o uso de planos de paisagens,
tomados de um ponto de observação vantajoso. O fato é que esse tipo de vista favorece
104
uma leitura crítica do ponto de vista externo do diretor, alguém que pretende falar de um
ambiente ao qual não pertence. Muito foi escrito a esse respeito em relação aos filmes
chamados de kitchen-sink dramas, realizados na Inglaterra no início dos anos 1960, nos
quais diretores de classe média adaptavam romances e peças de teatro de escritores
oriundos da classe trabalhadora para o cinema (Hill, 1986; Mello, 2006). O uso de planos
paisagísticos das cidades industriais do norte da Inglaterra, tais como o do início de Os 12
trabalhos, foi objeto de duras críticas por parte de teóricos ingleses, como se contaminados
pelo ponto de vista externo dos diretores, configurando-se marcas de enunciação
indesejáveis. Um comentário análogo poderia ser feito acerca do filme paulistano, visto
que Ricardo Elias não pertence à periferia da cidade, seu olhar aqui sendo ainda mais
distante do que o dos diretores ingleses, visto que não se sanciona pelo ponto de vista
interno de um escritor, mas sim de um personagem ficcional, inspirado na realidade. Nas
palavras de Elias, “me apropriei da figura do motoboy para falar da cidade e de um jovem
que quer mudar” (citado em Guerra, 2007, p. 2), apropriação essa que procura justamente
algum tipo de sanção.
É questionável a eficácia do diretor de Os 12 trabalhos em falar de um ambiente
ao qual não pertence. De qualquer modo, há desde o início uma tentativa de dar voz à
Heracles, seu olhar desde o primeiro plano estabelecido como dominante. O plano da
paisagem no início também vem aliado ao seu discurso acerca da cidade e do meio que
condiciona o indivíduo, a faixa de som problematizando assim a idéia de distância que a
imagem poderia sugerir. Ademais, apesar da noção de paisagem parecer desprovida do
movimento e da qualidade háptica do olhar que a produz, ligada como está à
representação pictórica por um observador longínquo, o modo como o cinema apresenta
a paisagem urbana põe em questão seu predicado estático. Conforme observa Michel
Collot, “o cinema, arte do movimento, é refratário a tal parada sobre a imagem, condição
105
para a apresentação em forma de quadro do plano paisagístico” (2007, p. 6)56
. Nesse artigo
intitulado “Paysages en mouvement: l’image émotion” (“Paisagens em movimento: a
imagem emoção”), Collot questiona a definição limitada de paisagem como herdeira do
modelo pictórico erigido durante a Renascença no Ocidente, que passa pela construção
racional de um espaço, fundado sob a perspectiva linear e um ponto de fuga. Levando-se
em conta que a paisagem apareceu na pintura européia antes da invenção desse
dispositivo, e que a tradição oriental funda-se na mobilidade e na multiplicidade de focos
no que tange a representação de paisagens (a pintura em rolo chinesa seria aqui o melhor
exemplo), deve-se suspeitar da simples equivalência entre a paisagem e a imobilidade.
Heracles recebe logo no início do filme sua missão: trabalhar por um dia, e se tudo
der certo conseguir um emprego. Seus 12 trabalhos aparecem, assim como os de
Heracles/Hércules, quase como uma punição e uma prova. No mito grego, Heracles, filho
de Zeus/Júpiter com uma mortal, é alvo da fúria de Hera/Juno, mulher de Zeus, que um
dia lança sobre ele uma maldição que o enlouquece temporariamente. Acometido de
loucura, Hércules mata sua mulher e filhos, e após recobrar a consciência se dá conta do
horror cometido e vai ao oráculo de Delfos buscar um modo de compensar seus erros.
Recebe então a incumbência de se apresentar ao Rei Eurystheus e de se submeter a
quaisquer castigos que ele o propuser. O oráculo também comunica a Hércules que se
tivesse sucesso em suas empreitadas se tornaria imortal. Assim originam-se os seus 12
trabalhos, que devem ser cumpridos em 12 anos. Já o Heracles paulistano parece também
receber uma incumbência decorrente de um erro do passado, seu envolvimento com a
criminalidade que o levara à Febem. Seus 12 trabalhos devem ser completados não em 12
anos mas em um dia, e caso isso se realize ele obterá, não a imortalidade, mas um
emprego.
56
“Art du mouvement, le cinéma est réfractaire à um tel arrêt sur image, qui seul permettrait au plan
paysager de se déployer en tableau.”
106
O dia se inicia então com a panorâmica da paisagem, que em um movimento para
a direita acaba por revelar a casa de Heracles e seu primo. Os dois atravessam o portão de
ferro e logo deixam a paisagem para trás, seguindo viagem de motocicleta em direção à
agência de motoboys durante a sequência dos créditos. Assim, Elias abandona a visão de
conjunto e passa a apresentar São Paulo através do deslocamento de Heracles em sua
motocicleta, pelas ruas e avenidas na qual negocia um espaço com milhares de outros
carros, motos, ônibus, caminhões, bicicletas e pedestres. A paisagem aqui se torna espaço
definido pela passagem e pela cinética, e a cidade cumpre a promessa de ser um “mundo
em criação”. Heracles percorre pontos facilmente identificáveis (para aqueles que
conhecem São Paulo) tais como o Minhocão, a Rua da Consolação, Avenida Sumaré, ruas
do centro velho, o Viaduto do Chá, Avenida São João, Rua Amaral Gurgel e Avenida
Paulista, entre tantos outros. A câmera está muitas vezes montada na própria motocicleta
de modo subjetivo, incorporando assim o “corpo-a-corpo” com as ruas vivenciado pelo
motociclista, em alta velocidade.
A motocicleta, fetichizada por seu potencial de velocidade e liberdade, move-se
pela cidade aludindo metaforicamente ao constante movimento da paisagem urbana. Jean
Baudrillard se refere ao que chama de “milagre do deslocamento” sem esforço,
proporcionado pelo automóvel e potencializado pela motocicleta: “O movimento por si só
constitui certa felicidade mas a euforia mecanicista da velocidade vem a ser outra coisa: é
fundada, no imaginário, sobre o milagre do deslocamento. A mobilidade sem esforço
constitui uma espécie de felicidade irreal, de suspensão da existência e de
irresponsabilidade” (1993, p. 75). Mas a motocicleta se difere essencialmente do
automóvel por permitir uma maior interação entre a exterioridade do espaço urbano e o
condutor. Paula Montero faz importante observação sobre essa característica própria da
moto ao referir-se ao trabalho do motoboy, retratado no documentário Em trânsito de
Henri Gervaiseau (2005):
107
Ao contrário dos outros meios de locomoção que criam uma espécie de
espacialidade própria e autocontida, a motocicleta compartilha, com o caminhante,
o confronto físico com a rua. Mas a rua aqui é puro movimento... A liberdade não
é idéia, não é emblema, é o prazer físico do próprio movimento. Embora não
possa escolher aonde ir, pois são os pedidos que lhe traçam o caminho, ele se
sente dono de seus próprios movimentos e de suas decisões. (2008, p. 196)
Na cidade de São Paulo, a presença dos motoboys vem se avolumando a cada ano,
fenômeno que confere atualidade a Os 12 trabalhos. Se o deslocamento a bordo da
motocicleta proporciona uma sensação de liberdade, proporciona também a mobilidade
diante de uma cidade cada vez mais atolada de carros, não raro parados por horas em
gigantescos congestionamentos. Para que a cidade possa continuar funcionando, a figura
do motoboy aparece como aquela que burla a pane do sistema de trânsito, passando pelas
frestas criadas pelas filas de carros e ônibus presos nas ruas e avenidas, criando novas
trajetórias, cortando caminhos, e não raro arriscando sua vida para que uma entrega seja
feita. Logo, a mobilidade da cidade de São Paulo encontra não no carro mas na
motocicleta sua consumação. Para o filme de Elias, os atores Sidney Santiago e Flavio
Bauraqui, que interpreta Jonas, o primo de Heracles, também um motoboy, passaram por
aulas de moto-escola e foram treinados por verdadeiros motoboys nos seus trejeitos e
modos de falar. Levando-se em conta que a intenção era apresentar a cidade através do
movimento do motoboy, um dublê foi utilizado em algumas das cenas, de modo a
conferir a destreza e a credibilidade necessárias para algumas manobras de trânsito
subversivas.
O estilo móvel de Os 12 trabalhos acarreta até certo ponto uma tímida perda do
ímpeto narrativo e um relaxamento das relações de causa e efeito. Tudo se passa em um
dia, e à exceção da morte de Jonas e da fuga para o mar no final do filme, os 12 trabalhos
de Heracles se desenrolam em ordem aleatória, cuja variação não acarretaria grandes
mudanças para o filme. O motoboy vai a um prédio no centro da cidade, no apartamento
108
de uma professora aposentada, na casa da filha da professora, no aeroporto, busca comida
no restaurante chinês, passa em uma repartição pública, faz uma entrega no apartamento
de um rapaz viciado, daí segue para um prédio de escritórios sofisticado, leva um senhor
para um laboratório de exames médicos, passa na casa da ex-namorada do primo, até que
testemunha sua morte em um acidente na Avenida Juscelino Kubitschek e desce a serra
em direção ao mar. Ricardo Elias comenta no making-of de seu filme, incluído na edição
em DVD, que empregou deliberadamente movimentos mais suaves na primeira parte do
filme, através de planos de grua e do uso dos recursos de uma Steadicam. Já na segunda
metade a câmera não raro passa para a mão, adquirindo assim um ritmo mais tenso em
consonância com o porvir. A fuga de Heracles no final do filme relaciona-se com seu
desejo de sair de São Paulo, expresso a seus colegas motoboys durante o intervalo de
almoço. Diante da morte do primo Jonas, aquele que o ajudara a conseguir a chance de
emprego e que significava sua chance de redenção em um ambiente inóspito, Heracles
parte em direção ao litoral, viajando durante à noite e atravessando os túneis da rodovia
dos Imigrantes em sua moto. O filme termina com uma citação do final de Os
incompreendidos, citação esta recorrente na história do cinema, reaparecendo em filmes
tais como Sweet Sixteen (Ken Loach, 2002) e This is England (Shane Meadows, 2006).
No contexto do cinema brasileiro, Lúcia Nagib dedica um capítulo de seu A utopia no
cinema brasileiro às imagens do mar, e Os 12 trabalhos parece oferecer ainda outro
comentário acerca da utopia marítima formulada por Glauber Rocha em Deus e o diabo
na terra do sol em 1964. Nagib escreve que
embora conceitualmente ligada à história do Brasil, a imagem de mar glauberiana
extraiu sua concepção estética de um modelo estrangeiro. Trata-se da sequência
final de Os incompreendidos, marco inaugural da nouvelle vague e o primeiro
longa-metragem de François Truffaut, de 1959, em que o garoto Antoine Doinel,
na célebre interpretação de Jean-Pierre Léaud, parte em corrida desabalada até
encontrar o mar que nunca vira. (2006, p. 33)
109
Em Deus e o diabo..., a corrida de Manuel e Rosa pela caatinga acaba no corte para a
imagem do mar, o cinema cumprindo a profecia “o sertão vai virar mar, e o mar vai virar
sertão”. Elias em Os 12 trabalhos segue mais a onda dos diretores ingleses supracitados,
que em filmes dedicados a adolescentes problemáticos assim como os protagonistas de
Sweet Sixteen e This is England terminam seus filmes diante do mar, de forma aberta.
Heracles chega até mesmo a lançar olhares para a câmera de Elias na praia iluminada pelo
lusco-fusco do nascer do dia, ensaiando o mesmo olhar interrogativo do adolescente
infrator Doinel no filme de Truffaut.
A BICICLETA DE PEQUIM
A bicicleta de Pequim antecede o filme de Elias em cinco anos, e ganhou o Urso
de Prata no Festival Internacional de Cinema de Berlim em 2001. O filme pertence ao
grupo heterogêneo da Sexta Geração do cinema chinês, que ganhou força a partir de
meados dos anos 1990 com um cinema por vezes independente e marcadamente urbano.
Esse foi o primeiro filme oficial do diretor Wang Xiaoshuai, realizado com a prévia
autorização do governo chinês, mas subsequentemente banido devido ao fato do diretor
tê-lo enviado para festivais no exterior antes de receber uma resposta do órgão de censura
chinês. Trata-se de uma co-produção entre diversas companhias na China, França, além
da Arc Light Films de Taiwan – com quem a China continental vem gradualmente
retomando as relações, principalmente através das trocas comerciais. No filme, o garoto
Guei (Cui Lin) de 17 anos chega a Pequim vindo do campo, e arruma um emprego como
courier em uma firma especializada. O filme abre com planos médios de jovens como
Guei, que estão sendo entrevistados para o emprego. Assim como em Os 12 trabalhos, o
que faz supor que talvez Elias tenha visto o filme de Wang, a entrevistadora (aqui uma
mulher, como em Os incompreendidos) nunca é vista, a câmera permanecendo nos
110
rapazes que recomeçam suas vidas – ou a partir da mudança para a cidade grande, ou
após dois anos no reformatório, como é o caso de Heracles. Um time de garotos é
contratado, ganham novos uniformes, novas bolsas para carregar as encomendas, novo
corte de cabelo, novo boné e novas mountain bikes, que deverão pagar com o próprio
salário. Aparecem então perfilados como se pertencessem a um exército, e à sua frente o
gerente discursa de modo peremptório, explicando as regras do trabalho. Ele chama sua
atenção para um grande mapa de Pequim preso na parede atrás dos novatos, que aos
poucos se viram e se aproximam da representação espacial da cidade, que se tornará em
breve uma prática espacial através do cinema. O gerente diz: “Vocês devem conhecer cada
rua, cada hutong, como a palma de suas mãos”. Essa sequência encontra um eco em uma
outra sequência em Os 12 trabalhos, na qual Heracles conversa com um colega motoboy
na sede da agência diante de um enorme mapa da cidade de São Paulo pendurado na
parede. A cidade aí aparece cartograficamente, em seu formato de “cachorro”, conforme
notado por um dos motoboys. O olhar assustado de Heracles diante do gigantismo da
cidade e sua fala “eu sempre morei lá para cima, nunca andei por esses lados aqui, fico
meio confuso” confirmam o mesmo tipo de preocupação experimentada por Guei e seus
colegas diante da também gigante Pequim.
Mas lá há ainda um agravante, pois esses são rapazes do interior, não acostumados
com a cidade grande. Então não é por acaso que o gerente profere no final de seu
discurso a seguinte comparação: “De hoje em diante, vocês são os modernos ‘garotos do
riquixá’”. Yingjin Zhang (2010, p. 79) esclarece o paralelo feito pelo gerente entre os
novos entregadores de sua firma, os rapazes imigrantes que chegam a Pequim em busca
de novas oportunidades, e o personagem literário “Xiangzi” ou “O garoto do riquixá” do
romance de Lao She Luotuo Xiangzi, de 1936. Xiangzi é um garoto do campo que se
muda para Pequim. Lá, arruma um emprego como condutor de riquixá, e luta com
dificuldade para juntar dinheiro e comprar seu próprio veículo, aumentando assim suas
111
rendas. No romance, a cidade de Pequim aparece de forma proeminente nas descrições
de Lao She, como por exemplo no seguinte trecho:
Quando ele viu a agitação de pessoas e cavalos, ouviu o barulho estridente, cheirou
o odor seco da estrada e pisou na poeirenta sujeira cinza, Hsiang Tzu57
quis beijá-
la, beijar aquela sujeira cinza mal-cheirosa, terra adorável, a sujeira que fazia
crescer dólares de prata! Ele não tinha pai nem mãe, irmão ou irmã, e nenhum
parente. O único amigo que ele tinha era essa antiga cidade. Esta cidade deu-lhe
tudo. Mesmo morrendo de fome aqui era melhor do que passar fome no campo.
Havia coisas para olhar, sons para ouvir, cores e vozes em toda parte.
(Lao, 1970, p. 31)58
Essa passagem deixa clara a importância da cidade no percurso de Xiangzi, que reaparece
no filme de Wang em relação a um outro garoto vindo do campo para a cidade grande,
que também trabalhará com um tipo de transporte, a bicicleta, e que também vai usar o
primeiro dinheiro que receber para comprá-la da firma que o emprega. Assim como a
Vespa em Roma e a motocicleta em São Paulo, a bicicleta é um símbolo da capital
chinesa, que até o início da década de 2000 contava com mais de 10 milhões delas.
Mesmo com a expansão econômica da China e o aumento exponencial do número de
automóveis e motocicletas no país, a cidade ainda impressiona pela quantidade de
bicicletas em suas ruas, o principal meio de transporte para uma boa parcela da
população. Assim, mais uma vez a escolha do veículo empregado pelo filme para mediar
sua prática espacial foi tudo menos aleatória. Wang faz até mesmo o que se pode batizar
de “elogio à bicicleta”, em uma sequência de um minuto inserida após a primeira meia-
hora do tempo de projeção. Esse elogio já vinha sendo anunciado desde os planos iniciais
dentro da empresa de couriers, e um pouco mais tarde no momento em que Guei mostra
57
A transliteração do nome Xiangzi foi realizada por outro sistema nessa tradução. 58
“When he saw the bustle of people and horses, heard the ear-piercing racket, smelled the dry stink of the
road, and trod on the powdery, churned-up gray dirt, Hsiang Tzu wanted to kiss it, kiss that gray stinking
dirt, adorable dirt, dirt that grew silver dollars! He had no father or mother, brother or sister, and no
relatives. The only friend he had was this ancient city. This city gave him everything. Even starving here
was better than starving in the country. There were things to look at, sounds to listen to, color and voices
everywhere.”
112
sua bicicleta nova ao amigo, através de planos primeiríssimos que fetichizam o veículo,
recortando-o em pequenos pedaços tais como o pedal, as marchas, o guidão, a corrente, o
pára-lama etc. Mas será durante a sequência de um minuto que a bicicleta realmente
receberá toda a atenção do filme, a partir de uma série de planos de ruas da cidade real,
ocupadas por centenas de pessoas a bordo de suas bicicletas. Wang observa os diferentes
usos improvisados pela população, que não apenas se desloca como também transporta
uma série de objetos, móveis e até mesmo uma geladeira na garupa da bicicleta. São
planos que deixam clara a relação privilegiada da cidade e de sua população com suas
incontáveis bicicletas, e que fornecem à narrativa um momento de respiro, de
contemplação desinteressada e ao mesmo tempo essencial.
A bicicleta de Pequim, ao contrário de Os 12 trabalhos, alterna o foco entre dois
heróis privados, Guei e Jian (Li Bin), esse um colegial que vive com sua família em
Pequim e é frustrado por não possuir uma bicicleta. Jian sofre com essa falta que o
diferencia de seus colegas, e o impede de cortejar uma garota da escola. Finalmente, rouba
o dinheiro que seu pai havia economizado e compra uma bicicleta no mercado negro.
Acontece que essa bicicleta é a de Guei, que durante um entrega fora roubada, deixando o
rapaz desesperado. O roubo da bicicleta – seu meio de sobrevivência – referencia
abertamente Ladrões de bicicleta de De Sica, e Guei, assim como Ricci, passa a procurar
pelo seu “ganha-pão” através das ruas cidade. A sorte está a seu lado quando seu único
amigo na cidade, dono de uma lojinha de mantimentos, vê sua bicicleta com Jian,
reconhecendo a marca feita por Guei no dia em que começou a trabalhar, de modo a
identificá-la. O rapaz acaba localizando a bicicleta e a partir daí o filme se movimenta
entre Jian e Guei, que brigam repetidamente pela posse do veículo. Jian tem a seu lado os
colegas da escola, que em mais de uma ocasião recuperam à força a bicicleta de Guei.
Esse então vai até o pai de Jian, que descobre ter sido roubado pelo filho. Por fim, os dois
concordam em dividir a bicicleta, assim Guei pode voltar a trabalhar e Jian pode ser
113
novamente aceito pelo grupo. Mas isso ocorre tarde demais, pois a garota de seus sonhos
já o esqueceu e está saindo com Da Huan (Li Shuang), um rapaz popular e um ás na
mountain bike. Revoltado, Jian dá uma tijolada na cabeça de Da Huan, e vai ao encontro
de Guei que estava esperando pela bicicleta. Nesse meio tempo Da Huan convoca sua
gangue para a revanche. O encontro se dá nas ruas labirínticas dos hutongs (胡同 )de
Pequim, onde Jian – e Guei por tabela – acabam apanhando de modo violento e vêem sua
bicicleta ser completamente destruída.
A incorporação formal da cidade em A bicicleta de Pequim se dá principalmente
através da dicotomia entre os hutongs e as grandes avenidas da capital chinesa, ou em
outras palavras entre o velho e o novo, o tradicional e o moderno. Se nas primeiras
sequências do filme Wang faz uso recorrente de imagens de Guei pedalando por entre as
grandes avenidas da cidade, seu olhar “virgem” a observar a pujança dos grandes arranha-
céus (similar de certo modo ao de Heracles, principalmente em suas interações com os
grandes edifícios de escritórios), o resto do filme – partindo do roubo da bicicleta – se
desenrola principalmente nas pequenas vielas que formam os antigos bairros da cidade,
assemelhando-a à informalidade e à precariedade do campo. Elizabeth Wright explica
aqui a presença dos hutongs no filme:
Um componente muito especial de A bicicleta de Pequim é a evocação de Wang
das ruelas e becos antigos de Pequim conhecidos como hutongs. Muitos foram
construídos durante as dinastias Yuan, Ming e Qing. Tradicionalmente, milhares
de corredores, becos e pátios tornaram-se áreas residenciais para as pessoas que
vivem na capital. Na metrópole emergente que é a Pequim contemporânea, esses
becos e vielas ocupam cerca de um terço da cidade e ainda existem como
residências para muitos moradores da cidade chinesa (apesar de seu status de
“desaparecimento” e sua substituição gradual por prédios altos). (2002)59
59
“A very special component of Beijing Bicycle is Wang’s evocation of Beijing’s lanes and ancient alleys
known as hutongs. Many were built during the Yuan, Ming and Qing dynasties. Traditionally, thousands
of lanes, alleys and quadrangles became residential areas for the people living in the capital. In the
burgeoning metropolis that is contemporary Beijing, these alleys and laneways occupy approximately one
third of the city and still exist as dwellings for many Chinese city residents (despite their ‘disappearing’
status and gradual replacement by high-rise buildings).”
114
O modelo urbanístico chinês, grosso modo, vem combinando a partir de sua intensa
modernização o aparecimento de largas avenidas principais, perfiladas por altas torres de
escritórios ou residenciais, e quarteirões entrecortados por pequenas ruelas (os hutongs),
muitas vezes não pavimentadas, nas quais encontram-se os siheyuan (四合院), que
significa literalmente um pátio rodeado de quatro prédios de um andar, um tipo de
conjunto residencial típico do norte da China e muito comum em Pequim. Conforme
explica Zhang, o cinema chinês, tradicionalmente mais afinado com a moderna Shanghai,
enxergou Pequim com frequência como uma cidade presa no passado, idealizada em
imagens de casas de chá, riquixás e hutongs (2010, p. 78). Nas últimas duas décadas, ainda
segundo Zhang, as novas gerações de diretores chineses vem tentando dar conta da cidade
que gradualmente se configura como um misto de tradição e modernidade. Em A
bicicleta de Pequim, essa dicotomia aparece por exemplo em um plano emblemático, no
qual Wang passa de Jian e seus amigos fazendo manobras em suas bicicletas em um andar
alto de um prédio em construção para uma vista aérea dos hutongs e siheyuans. O mesmo
plano então encapsula a cidade em suas várias camadas urbanísticas e arquitetônicas, e
comenta as transformações que a assolam com intensidade desde o início da abertura
econômica do país.
Conforme mencionado anteriormente, apesar do diretor fazer uso do prédio em
construção como local de encontro dos jovens, além de imagens e sons das enormes
avenidas pequinesas que pontuam alguns momentos da trajetória de Guei – com destaque
para a sequência final na qual o rapaz carrega sua bicicleta destruída em meio à
movimentação urbana, a maior parte do filme se passa mesmo nos hutongs. É lá que
moram Guei e seu amigo e Jian e sua família. Em outra cena emblemática, Wang lança
mão do plano-sequência para dar a medida exata de como se organizam esses espaços
115
residenciais. De manhã, Jian, já vestido com o uniforme da escola, sai de sua casa em
direção à rua. Ele havia escondido a bicicleta no primeiro corredor de acesso ao siheyuan
onde mora com a família. Nesse plano, a câmera segue Jian por trás, e ele leva um minuto
para chegar até a porta de entrada do complexo residencial. No caminho, que passa por
vários corredores e pátios, ele cruza com um senhor que pratica Tai Ji Quan, com uma
mulher que passa com um balde nas mãos, outra com uma bacia, para brevemente em um
tanque externo para lavar o rosto enquanto outra moça escova os dentes, passa ainda por
um homem que faz a barba em outro tanque externo, outro que come algum vegetal e
uma senhora com uma chaleira nas mãos. A trilha sonora aqui é composta de fragmentos
de canções, noticiários radiofônicos e outros sons, que se alternam com a passagem do
rapaz. Chegando até a porta, ele procura a bicicleta mas descobre que alguém a levou.
Todo o plano dura um minuto e meio. Fica claro que a escolha estética de Wang pelo
plano plano-sequência está relacionada a seu desejo de enfatizar o real da locação, sua
autenticidade. O deslocamento do rapaz então ocorre sem cortes por um complexo
residencial real, de dentro para fora, o que revela também sua ligação orgânica com aquele
espaço, ao mesmo tempo privado e coletivo60
.
Além de servir de morada, os hutongs aparecem no filme como um espaço que –
devido à sua natureza labiríntica – propicia toda série de encontros inesperados,
espionagens, perseguições emocionantes, e até mesmo acidentes ou momentos de
tranquilidade e contemplação, que parecem estar (a despeito da proximidade) a milhas de
distância do caos das ruas e avenidas centrais de Pequim. Assim, é nos hutongs que Guei
conversa, come e espia uma vizinha de um prédio moderno construído ao lado,
acompanhado de seu amigo; é também nos hutongs que Jian passeia com seus amigos e se
encontra depois da escola com a colega que está paquerando, em mais de uma ocasião; a
60
Para uma discussão mais aprofundada dessa característica urbanística chinesa, ver o Capítulo V “Sobre
Cinemas e Jardins”.
116
primeira perseguição à Guei – da primeira vez que ele consegue recuperar sua bicicleta –
ocorre através dos hutongs; é em frente à casa de Jian que seu pai o questiona sobre o
sumiço do dinheiro e a compra clandestina, na presença de seus amigos e de Guei; é lá
também que Jian e Guei passam a se encontrar para revezar a bicicleta; e finalmente será
nos hutongs que Jian atacará Da Huan, levando à sequência de perseguição que faz uso
extensivo da geografia confusa e antiga dessa peculiaridade urbanística pequinesa.
Não fica claro no filme se Jian e Guei moram perto um do outro, em que parte da
cidade esses encontros acontecem, e quais as distâncias percorridas. O espaço urbano é
reduzido a uma massa indistinta de hutongs, e Pequim – por toda a sua modernidade e
enormidade (a cidade possui cerca de 20 milhões de habitantes) – aparece no filme como
um espaço relativamente pequeno, negociável, e onde é até mesmo possível o encontro de
uma entre 10 milhões de bicicletas. Assim, tendo a discordar com a afirmação de Zhang
que A bicicleta..., “ao remapear Pequim através de duas histórias paralelas de deriva, pinta
uma paisagem urbana alarmante e distópica, na qual a esplêndida fachada da globalização
aparece como estrangeira aos desfavorecidos locais, e os bairros familiares dos hutongs
estão ameaçados de demolição” (2010, p. 81)61
.
Apesar da demolição dos hutongs ser um dado de realidade, nenhuma menção é
feita a isso no filme, a não ser pelo comentário do plano supra-citado no qual o novo e
velho são contrastados. Os conflitos apresentados parecem na maior parte das vezes
aquilo que são, brigas entre colegiais, entre um pai e um filho, entre dois rivais pela
mesma garota. Até mesmo Guei, que depende da bicicleta em teoria para sobreviver, tem
um chefe compreensivo que o aceita de volta e um bom amigo em quem confiar. Assim,
não há em nenhum momento do filme, a não ser pelo final com sobretons
61
“In remapping Beijing through two parallel stories of drifting, Beijing Bicycle paints an alarmingly
dystopian cityscape, where the splendid façade of globalization appears alien to the underprivileged local,
the familiar hutong neighborhoods are threatened with demolition.”
117
melodramáticos, o mesmo dado de realidade testemunhado em Ladrões de bicicleta,
onde a Roma do pós-guerra parecia de fato um lugar difícil de sobreviver.
Talvez a mais importante dicotomia estabelecida em A bicicleta de Pequim seja
entre o campo e a cidade. Guei vem do campo, assim como seu amigo que o acolhe. Os
dois espiam uma garota através de um buraco na parede de tijolos, e a ela se referem
repetidas vezes como “gente da cidade”, ou dizem “as garotas da cidade são assim, trocam
de roupa o tempo todo”. Os dois moram em uma rua não-asfaltada, precária, com uma
urbanização antiga. Assim, os hutongs parecem muitas vezes fazer parte do universo do
campo ou das cidades pequenas, caracterizados pela familiaridade, pela informalidade e
pela tranquilidade – o contrário da moderna Pequim, essa sim a cidade grande comme il
faut. A própria obstinação de Guei, que não dorme nem come enquanto não encontra sua
bicicleta, e que passa por todo tipo de dificuldade sem se curvar, remete a personagens
clássicos do cinema e da literatura chineses normalmente ligados ao campo. Em
“Representing rural migrants in the city: experimentalism in Wang Xiaoshuai’s So Close to
Paradise and Beijing Bicycle”, Jian Xu observa que o campo veio a ocupar um espaço
fundamental na reconstrução da China como República Popular comunista, sob a
liderança de Mao Zedong. Como é sabido, a tríade humana sobre a qual Mao procurou
construir a nova nação era composta do soldado, do operário e do camponês. Essas três
figuras foram elevadas à categoria de principais arquitetos da nova ideologia, e muita
ênfase foi posta no campo, visto como o bastião da autenticidade nacional chinesa. Xu
observa então de que modo o cinema chinês da Quinta Geração preservou a cultura do
campo de modo nostálgico
na imagem do camponês teimoso e inflexível que persevera contra todas as
probabilidades em seu esforço de alcançar aquilo que acredita ser certo e justo:
nos filmes de Zhang Yimou, por exemplo, temos Qiuju em A história de Qiu Ju (1992), Zhaodi em O caminho para casa (1999), e a professora-criança em
Nenhum a menos (1999). Apesar dessas imagens terem sido criadas em um
118
momento no qual os movimentos socialistas estavam sendo desacreditados, elas
funcionam como uma lembrança de que a cultura rural na qual dependia a
revolução ainda existia, e que havia talvez um caminho de volta para a utopia rural
que ela representava”. (2005, p. 435)62
Guei é construído em A bicicleta de Pequim em grande parte a partir dessas características
levantadas por Xu: a perseverança, a teimosia, o esforço desmedido, que carregam a
narrativa para frente e levam o filme a terminar em movimento, nas ruas, através das quais
um Guei todo machucado ainda consegue carregar nos braços a bicicleta semi-destruída.
Essas características o diferenciam dos garotos da cidade e suas futilidades, suas roupas
importadas, sua violência e seus modos pouco respeitáveis. Wang guarda algum crédito
para Jian apesar de seu desejo materialista e sua necessidade exagerada de “pertencer”,
pois tenta explicar suas atitudes através dos erros dos pais, que prometem e não cumprem,
se preocupam mais com sua irmã pequena do que com ele e quando julgam necessário
usam da violência física contra o filho. De qualquer modo, o filme parece construir um
espaço urbano que ainda guarda algo da frescura do campo, preservada nos hutongs.
Trata-se de uma Pequim idealizada, por vezes dura mas por outras amigável, pequena e
familiar.
62
“in the image of a stubborn and unyielding peasant who perseveres against all the odds in his/her effort
to accomplish what s/he thinks right and just: in Zhang Yimou’s films alone, for example, we have Qiuju
in Qiuju da guan si/The Story of Qiuju (1992), Zhaodi in Wo de fu qin mu qin/The Road Home (1999), and
the child teacher in Yi ge dou bu neng shao/Not one less (1999). Although these images were created at a
time when the socialist movements were being discredited, they function as reminders that the rural culture
on which the socialist revolution depended still existed, and that there was perhaps still a way back to the
rural utopia it represented.”
119
CAPÍTULO III: UM CONTO DE DUAS CIDADES
Filmes: Terra estrangeira (Walter Salles e Daniela Thomas, 1995), Que horas são aí? (Ni
Neibian Jidian, Tsai Ming-liang, 2001), Contra a parede (Gegen die Wand, Fatih Akin,
2004), Import/export (Ulrich Seidl, 2007).
Este capítulo discutirá a presença do espaço urbano nos filmes Terra estrangeira (Walter
Salles e Daniela Thomas, 1995), Contra a parede (Gegen die Wand, Fatih Akin, 2004),
Que horas são aí? (Ni Neibian Jidian, Tsai Ming-liang, 2001) e Import/export (Ulrich
Seidl, 2007). Esses filmes foram selecionados porque se estruturam a partir do movimento
entre duas cidades, situadas em dois países diferentes, respectivamente São Paulo e
Lisboa, Hamburgo e Istambul, Viena e Snizhne, e Taipei e Paris. Minha intenção é
estudar como esse movimento promove o encontro entre duas geografias, suscitando
questões relacionadas ao tempo, ao espaço e à fabricação da memória. O recurso da
montagem alternada empregado nesses filmes aproxima dois espaços urbanos e produz
uma memória que os conecta, integrando as cidades reais e outras cidades indexicais do
evento profílmico. Isso evidencia a natureza espacial e a condição presente da memória,
ao contrário do flashback, que evidencia sua conotação temporal e os laços com o
passado.
É importante relembrar a definição aberta e dinâmica de espaço que guia esta
obra, visto que estou a tratar da simultaneidade temporal promovida pela montagem
alternada, uma arma que o cinema tem a seu dispor há pelo menos 100 anos. A
impressão provocada por esse recurso de montagem, que enfatiza através da
descontinuidade espacial uma simultaneidade temporal, parece reger a experiência diária
do mundo globalizado. Nos tempos atuais, essa impressão foi mais do que nunca
evidenciada pelo aparecimento da Internet, que tanto na esfera privada quanto na esfera
120
pública possibilitou um grau de conectividade sem precedentes históricos. A proliferação
de contatos virtuais em alta velocidade através do mundo também colocou em evidência a
conectividade e a justaposição que regem a noção de espaço.
Outro elemento integrante da crescente sensação de inter-conectividade nos
tempos atuais foram os avanços nos meios de transporte e na infra-estrutura globais. O
clichê “as distâncias encurtaram” reflete a relativa facilidade com a qual é possível se
locomover através do mundo nos dias atuais – sem que se leve em conta questões
econômicas ou políticas. De fato, o presente argumento aponta mais para uma mudança
de percepção do que para uma realidade concreta, a despeito da aferível intensificação das
viagens no âmbito global. A facilidade do deslocamento e o rompimento dos lapsos
espaciais e temporais reside no âmago da arte cinematográfica, habituada à prática da
viagem desde a sua origem, tanto através da sua estética quanto das suas formas narrativas.
Nos filmes selecionados para análise, dois espaços distintos são conectados através de uma
viagem, que adquire um caráter subjetivo impresso na forma do filme. Assim, o
movimento localizado entre duas cidades, e que funciona como um ímpeto para frente, ou
um ímpeto de vai-e-vem, desencadeia nos personagens viajantes, e naqueles que ficaram
para trás, uma série de impressões, emoções e memórias, essa que é a matéria-prima dos
espaços urbanos.
PRÁTICAS TRANSNACIONAIS
Terra estrangeira, Contra a parede, Import/export e Que horas são aí? são co-produções
internacionais, entre Brasil e Portugal, Alemanha e Turquia, Áustria, Alemanha e França,
e Taiwan e França, respectivamente. Podem também ser descritos como transnacionais
devido ao fato de promoverem uma viagem entre dois países distintos. O emprego dos
termos “co-produção internacional” e “transnacional”, e não de um em detrimento do
121
outro, requer uma explicação mais cuidadosa. O termo transnacional, que transita por
diversas disciplinas, tem sido alvo de debates recentes na teoria do cinema. É preciso,
antes de tudo, diferenciar entre “cinemas transnacionais”, que se referem a filmes assim
qualificados por razões diversas que vão de sua produção à sua representação, e “estudos
de cinema transnacionais”, que se referem a correntes teóricas preocupadas com questões
que problematizam ou vão além da noção de cinema nacional. No artigo de abertura da
revista acadêmica inglesa Transnational Cinemas (Cinemas Transnacionais, 2010), Higbee
e Lim advogam o que chamam de “transnacionalismo crítico nos estudos de cinema”,
uma posição também defendida por Chris Berry em relação ao Cinema Chinês lato sensu
(2010). Os três teóricos problematizam, em primeiro lugar, o uso do termo
“transnacional” como adjetivo que se cola aos “estudos do cinema”. Higbee e Lim
identificam três grandes linhas de pesquisa que vêm lançando mão do termo nos últimos
anos, grosso modo, aqueles que preferem a abertura do transnacional em detrimento da
restrição do nacional; os que descrevem como transnacional cinemas oriundos de regiões
separadas por fronteiras geopolíticas mas unidas por uma herança cultural e/ou linguística;
e por fim o campo dedicado aos cinemas diaspóricos e pós-coloniais, que questionam a
construção ideológica ocidental do conceito de nação a partir da análise da representação
de identidades culturais (2010, p. 3).
A ênfase na noção de transnacionalidade na teoria contemporânea pode ser vista
como uma reação à miopia da crítica de influência psicanalítica e semiótica em relação às
interconexões entre diferentes cinematografias e geografias, principalmente do ponto de
vista da produção. Se por um lado essa revisão é necessária, por outro lado o uso do
termo “transnacional” corre o risco de sugerir, como advertem Higbee e Lim, que a noção
de cinema nacional pode simplesmente ser descartada, “quando na verdade o nacional
122
continua a exercer a força da sua presença mesmo no contexto das práticas
cinematográficas transnacionais” (2010, p. 10)63
.
Para elucidar ou complicar ainda mais a questão, Zhang Yingjin introduz de modo
convincente a defesa dos “estudos comparativos do cinema” ao escrever que “enquanto o
termo ‘comparativo’ denota flexibilidade ao mapear um campo interdisciplinar e
multimídia, o termo ‘transnacional’ permanece obscuro principalmente por conta das
múltiplas interpretações do nacional no transnacionalismo” (2007, p. 37)64
. Em princípio,
tendo a concordar com o argumento de Zhang de que os estudos comparativos “capturam
de maneira mais adequada as múltiplas direções através das quais os estudos do cinema
olham simultaneamente para fora (transnacionalismo, globalização), para dentro (tradições
culturais e convenções estéticas), para trás (história e memória), e para os lados
(intermedialidade e interdisciplinaridade)” (2007, pp. 29-30)65
. Entretanto, se o termo
“transnacional” traz o risco de obscurecer o nacional, o termo “comparativo” refere-se de
modo aberto à existência de fatores distintos, ou em outras palavras à existência de dois
cinemas nacionais distintos. Diante dessa advertência, Zhang rapidamente propõe sua
visão crítica da abordagem comparativa, através da qual “devemos ir além do modelo do
estado-nação e especialmente além da sua hierarquia implícita entre culturas nacionais (o
Ocidente contra o resto), que sustentava os estudos comparativos literários e
cinematográficos no passado” (2007, p. 30)66
.
Com essa admoestação em mente, acredito que a proposição de Zhang acerca dos
estudos comparativos do cinema é mais adequada para descrever o tipo de estudo que
63
“when in fact the national continues to exert the force of its presence even within transnational film-
making practices.” 64
“Whereas the term “comparative” denotes flexibility in mapping an evolving field of interdisciplinarity
and cross-mediality, the term “transnational” remains unsettled primarily because of multiple
interpretations of the national in transnationalism.” 65
“better captures the multiple directionality with which film studies simultaneously looks outwards
(transnationalism, globalization), inwards (cultural traditions and aesthetic conventions), backwards
(history and memory), and sideways (cross-medial practices and interdisciplinary research)” 66
“we must move beyond the nation-state model, especially its implicit hierarchy of national cultures (the
West versus the rest), which sustained both comparative literature and film studies in the past”
123
venho realizando, que tende a olhar para fora, para frente, para trás e para os lados através
de um questionamento guiado pela identificação de problemas, por teorias e pelo
‘teorizar’, e não por uma Teoria. A intersecção entre filmes realizados em diferentes
cidades não nega em princípio a importância da noção de cinema nacional, mas propõe
que diferentes cinemas devam ser considerados a partir de suas possíveis conexões, o que
em certa medida relativiza esse conceito. Mas o que dizer acerca do uso do termo
transnacional para se referir aos filmes individualmente? Tanto Berry quanto Higbee/Lim
fazem uma importante distinção entre a co-produção internacional, que ocorre “entre
duas ou mais companhias separadas nacionalmente em dois ou mais países”, e a produção
transnacional, que envolve “uma companhia que opera em mais de um país ao mesmo
tempo” (Berry, 2010, p. 121)67
. Se a definição de transnacional for tomada em termos
exclusivamente comerciais (de produção), os filmes em questão devem apenas ser
descritos como co-produções internacionais, visto que foram realizados a partir da
colaboração entre produtoras localizadas em dois países diferentes. Mas o termo
transnacional ainda pode ser aplicado de modo produtivo para qualificar estes filmes, e
nesse sentido poder-se-ia dizer que esse capítulo promove o “estudo comparativo” de
“filmes transnacionais”.
Partindo da defesa de Higbee/Lim de um uso crítico do termo, que vai além do
descritivo ou prescritivo (2010, p. 12), localizo a qualidade transnacional desses filmes na
conexão por eles promovida entre duas ou mais tradições culturais e artísticas, conexão
esta que se manifesta narrativamente através da viagem e do cruzamento de fronteiras,
visível ou implícito, e esteticamente através da articulação dessas tradições na própria
forma do filme. Isso não significa, como já apontado, abandonar a noção de especificidade
nacional, mas sim considerá-la de modo imbricado, uma análise à qual esses filmes se
67
“between two or more nationally separated companies in two or more nation states”; “where a company
operates across borders.”
124
prestam visto que nascem justamente dessa interconexão. O uso do termo então sugere
uma ênfase nas manifestações estéticas da transnacionalidade, no lugar de uma análise
voltada para a questão da identidade nacional e sua representação no cinema, com a qual
o termo vem normalmente associado. Grande parte das leituras de Terra estrangeira,
Contra a parede e Import/export de fato identificam nesses filmes o encontro com “o
outro”, e partem daí para considerações acerca da construção de identidades nacionais ou
transnacionais, devidamente julgadas adequadas ou inadequadas em sua capacidade para a
promoção de um entendimento crós-cultural (ver, por exemplo, Berghahn, 2006; Petek,
2007; Burns, 2009; Brady and Hughes, 2008; Elsaesser, 2005). Que horas são aí? de Tsai
Ming-liang foi por sua vez poupado desse tipo de leitura, visto que a viagem por ele
promovida dificilmente poderia ser descrita como diaspórica ou migratória. Não é meu
objetivo invalidar essas abordagens, mesmo porque os três filmes mencionados oferecem
material suficiente para uma discussão acerca da identidade nacional, da relação entre
metrópole e colônia e do papel do imigrante. É também verdade que a análise da
representação do espaço urbano revela, excluindo-se mais uma vez o exemplo de Tsai
Ming-liang, uma diferença entre o tratamento da cidade natal ou do país do diretor (São
Paulo, Hamburgo e Viena) e o tratamento da cidade estrangeira (Lisboa, Istambul e
Snizhne), que se manifesta através do uso de planos de paisagem (a cidade vista de cima, o
olhar distante do estrangeiro) e no uso de planos fragmentados ou locações internas (o
olhar crítico). Esse aspecto será comentado adiante, mas a ênfase recairá aqui sobre a
questão da memória como manifestação estética e não sobre a questão da identidade
nacional. Tendo a concordar com o diretor Fatih Akin em sua recusa a ser definido como
um diretor hifenizado, ou seja, o alemão-turco marcado pela “dupla ocupação” identitária,
nos termos de Elsaesser (2005, pp. 27-8). Seu filme Contra a parede não pode ser visto
através deste prisma apriorístico sem que se incorra em um julgamento de sua boa ou má
representação da dita “dupla ocupação”. Assim, é minha intenção propor uma abordagem
125
alternativa a partir da ideia de transnacionalidade estética, que enxerga esses filmes não
através das noções apriorísticas de “cinema acentuado” (Naficy, 2001) ou pós-colonial,
mas sim através da especificidade de sua produção espacial, e da emergência e produção
da memória como uma manifestação pessoal e cultural diretamente ligada ao espaço.
TERRA ESTRANGEIRA
Em Terra estrangeira, a cidade de São Paulo dialoga com Lisboa e indiretamente com San
Sebastián no país Basco, Espanha. Saudado como um dos primeiros sinais da retomada
do cinema brasileiro em meados dos anos 1990, Terra estrangeira ecoa o cinema pós-
moderno de citações dos anos 1980, declaradamente influenciado por obras como O
terceiro homem (The Third Man, 1949) de Carol Reed, em suas sequências noir através
das ruas escuras de Lisboa, e pela obra de diretores como Wim Wenders, Orson Welles,
John Huston e Michelangelo Antonioni, entre outros. Mas Terra estrangeira também
pode ser incluído em uma categoria de filmes que se caracteriza por um “liame ontológico
entre o cenário da ficção e a locação real”, nas palavras de Geoffrey Nowell-Smith (2001,
p. 103)68
, visto que as cidades de São Paulo e Lisboa estão diretamente ligadas ao estado
mental dos personagens. Não surpreende portanto a afirmação dos diretores Walter Salles
e Daniela Thomas acerca da prospecção de locações, através da qual muitos lugares
acabaram por se impor ao filme, impactando a versão final do roteiro (2005).
Terra estrangeira começa naquela que poderia ter sido uma ocasião feliz na
história recente do Brasil se Fernando Collor de Mello tivesse sido a promessa redentora
daqueles que o elegeram democraticamente em 1990, dando cabo a 25 anos de ditadura
militar. Bem ao contrário, as primeiras medidas do que acabou se configurando como
uma administração interrompida incluíram o congelamento das contas bancárias da
68
“ontological link between nominal setting and actual location.”
126
população, um plano econômico com consequências desastrosas. Nessa década, o Brasil,
até então um país tradicionalmente de imigração, passou a ser um país de emigração, de
onde muitos saíram em busca de um futuro economicamente mais seguro. O rapaz Paco
(Fernando Alves Pinto) mora com sua mãe Manuela (Laura Cardoso) em São Paulo, em
um apartamento pequeno de frente ao minhocão, cuja imagem estática abre o filme.
Originalmente de San Sebastián, Manuela nutre o desejo de voltar à sua terra natal, que
deixara ainda moça, assim como outros incontáveis imigrantes que integram a tapeçaria
social brasileira. Ela trabalha como costureira e é vista pela primeira vez embaixo do
minhocão, voltando a pé para casa do supermercado. Manuela, carregada de sacolas, se vê
obrigada a subir pelas escadas já que o elevador do prédio está quebrado. Seu cansaço
exagerado, à primeira vista apenas um reflexo da idade, esconde na realidade um
problema de coração. Sozinha em casa à noite ela assiste pela televisão o pronunciamento
da então Ministra da Fazenda Zélia Cardoso de Mello, no qual ela expõe as diretrizes do
novo plano econômico do governo, que incluem o congelamento das contas bancárias. Ao
perceber que seu sonho de retorno a San Sebastián foi colocado em xeque, Manuela sofre
um infarto fulminante, pronunciando a palavra aitá (que significa “pai” na língua basca)
antes de morrer. Paco se vê perdido diante da morte da mãe, e vasculha suas gavetas em
busca de recordações. Ao encontrar um cartão postal de San Sebastián decide realizar o
sonho de Manuela, partindo para a Europa em busca de suas origens. A questão
financeira é resolvida através de um encontro casual com uma figura mefistofélica, Igor
(Luís Melo), com quem faz um pacto garantindo a viagem até Lisboa, em troca do
transporte e entrega de um violino.
Até então as imagens de São Paulo revelam uma cidade cinza e sombria, em
consonância com a dor de Paco. A imobilidade do minhocão, complementada por um
irônico outdoor das calcinhas Hope (“esperança”), parece funcionar como reflexo da
estagnação do personagem, um estudante de física que deseja ser ator mas que emudece
127
durante o teste para o papel de Fausto, a ele conferido pela realidade, nas palavras de
Carolin Ferreira (2006, p. 734). O minhocão, construído nos anos 1960 pelo então
prefeito Paulo Maluf, é um traço característico da decadência urbana paulistana, visto ao
mesmo tempo como uma aberração e uma brutalidade. Sua imagem torna-se
particularmente simbólica após a morte de Manuela, como a representação imagética de
seu coração que parou de bater (Salles/Thomas, 2005). O filme então começa com a stasis
que precede o movimento: o elevador parado, o congelamento das contas bancárias, o
emudecimento de Paco e finalmente a morte. Mas a stasis contém em seu âmago a
sugestão da viagem, visto que os planos de abertura do minhocão são acompanhados pela
voz off de Paco, que ensaia o papel de Fausto para o teste de elenco, repetindo os versos
“sinto a coragem, o ímpeto de ir ao mundo; que o manto mágico seja meu, e me carregue
para terras estrangeiras”.
Do outro lado do Atlântico, Terra estrangeira vê e escuta Lisboa pela primeira vez
através do olhar turístico. A capital portuguesa aparece através de imagens de barcos que
cruzam o rio Tejo, combinadas à melodia de um fado, composto pelo brasileiro José
Miguel Wisnik. O filme, fotografado em preto e branco, parece mais preto em São Paulo
e mais branco em Lisboa, também conhecida como Cidade Branca, alcunha à qual se
refere Alex (Fernanda Torres) em diálogo com seu namorado Miguel (Alexandre Borges)
durante a primeira sequência na cidade. O casal parece ter deixado o Brasil por razões
econômicas, mas enquanto ela trabalha como garçonete em um bar ele nutre uma carreira
fracassada como músico e um vício em drogas intravenosas. Durante os primeiros 40
minutos, o filme emprega a montagem alternada, movendo-se de uma cidade para a outra
14 vezes, com sequências uniformes de cerca de seis minutos em cada uma,
intensificando-se à medida que a viagem de Paco se aproxima. Cada corte tem uma pista
visual ou narrativa precisa. Por exemplo, a primeira referência à San Sebastián no filme
128
motiva o primeiro corte para Lisboa69
, sugerindo uma interconexão entre a memória de
Manuela e o futuro destino de Paco. Já a confissão de Alex de temer um dia ter que voltar
para o Brasil é seguida da imagem do minhocão, em uma outra instância da memória
espacial evidenciada na montagem. Os cortes também parecem seguir a tensão
estabelecida desde o primeiro plano entre stasis e movimento, aos poucos ganhando
intensidade e finalmente abraçando as convenções do gênero do suspense uma vez que
deixam o Brasil, seguindo Paco em sua viagem para a terra materna (Espanha), com escala
na terra paterna (Portugal).
Paco parte então para Lisboa em viagem arranjanda pelo misterioso Igor, uma
figura apátrida que fala português com um sotaque inclassificável. Os dois haviam se
conhecido no tradicional Bar Brahma, localizado no centro de São Paulo, onde Paco
afogava suas mágoas após o enterro de sua mãe e seu fracasso no teste de elenco,
segurando o cartão postal de San Sebastián que encontrara em sua gaveta. Igor demonstra
interesse no rapaz e em suas origens bascas, e ao descobrir que ele deseja ir à Europa vê
nele uma presa fácil para seu esquema de contrabando de diamantes, disfarçado de
comércio de antiguidades. Os dois vão à loja de Igor onde ele profere um discurso teatral,
enaltecendo suas peças como “vestígios de uma aventura, dos conquistadores, das
navegações”, e encerrando em tom filosófico: “A memória foi embora com os
missionários e com o ouro, com os santos barrocos e com Aleijadinho... Estamos a viver o
império da mediocridade, meu amigo”. Como observa Lúcia Nagib, “através do discurso
culto de Igor ... aprende-se sobre a tradição brasileira, desde os tempos coloniais, do
contrabando de ouro e pedras preciosas dentro de santos do pau oco” (2010, p. 198)70
. O
que Paco não sabe ou não quer saber é que está prestes a embarcar na versão atualizada
69
Para uma análise aguçada da significância deste corte e da cidade de San Sebastián em Terra
estrangeira ver o ensaio de Lúcia Nagib “Back to the margins in search of the core: Foreign Land’s
geography of exclusion”, in Dina Iordanova, David Martin-Jones & Belén Vidal (eds), Cinema at the
Periphery: Industries, Narratives, Iconography, Detroit: Wayne State University Press, 2010. 70
“Through Igor’s cultivated speech … one learns about a Brazilian tradition, harking back to the colonial
times, of smuggling gold and precious stones inside hollow wooden statues of saints.”
129
desta tradição, carregando para Igor um violino que esconde diamantes, com a missão de
entregá-lo para Miguel, o receptador em Lisboa. Mas este por sua vez está envolvido em
uma série de imbróglios com outros contrabandistas, e acaba por ser assassinado antes que
a entrega possa ser feita. Em sua busca por Miguel Paco acaba por encontrar Alex, com
quem se envolverá emocionalmente. Os dois acabam fugindo juntos de Lisboa no carro
do amigo português Pedro, em direção à fronteira espanhola, e no caminho encontram
um navio emborcado na praia, cuja imagem estática se relaciona com a imobilidade inicial
do minhocão e pressagia os trágicos acontecimentos finais.
CONTRA A PAREDE E TERRA ESTRANGEIRA
Contra a parede também começa com a stasis que precede o movimento: Cahit (Birol
Ünel), um cidadão alemão da cidade de Hamburgo, dirige seu carro em alta velocidade
contra uma parede, em uma tentativa de suicídio. A sequência de cortes rápidos e fim
abrupto é apropriadamente acompanhada por “I Feel You” na trilha sonora, escrita por
David Gahan da banda Depeche Mode durante seu período suicida. Mas a música
também contém – assim como a fala de Paco no início de Terra estrangeira – um tom
premonitório em seu refrão “esta é a alvorada do nosso amor” (this is the dawning of our
love). Isso porque Cahit, um viúvo que trabalha em um clube noturno recolhendo copos
vazios, e que sofre com as memórias dolorosas da morte de sua mulher, irá em breve
encontrar Sibel (Sibel Kekilli) e com ela viver um novo e conturbado amor. Assim como
Cahit, Sibel é uma cidadã alemã de origem turca, e o encontro do casal acontece dentro
de um hospital, onde ela também está internada após uma tentativa de suicídio. O fim da
estrada (a parede) e a pulsão de morte estão de um modo geral associados ao fim da
narrativa, mas aqui se encontram logo no início, funcionando como o impulso inicial para
o filme e para uma nova vida, um recomeço. Isso se configura no hospital, onde Sibel
130
decide propor a Cahit um casamento de conveniência, para que assim possa se livrar do
jugo familiar e viver como bem lhe aprouver. Após muita insistência Cahit acaba
concordando com o plano, mas ao dividirem o mesmo teto os dois acabam por se
apaixonar. Confuso diante dos sentimentos conflituosos que passa a sentir, Cahit se
envolve em uma briga de bar com um dos amantes de Sibel e acaba por matá-lo
acidentalmente. Ele é preso e ela parte para Istambul em busca de um segundo recomeço,
prometendo esperar por ele. Após anos na prisão, ele viaja para a Turquia na esperança
de reencontrar Sibel.
Contra a parede é o quarto longa-metragem do diretor Fatih Akin, natural de
Hamburgo e descendente de turcos, assim como seus personagens. Pelo menos dois
terços do filme se desenrolam na cidade alemã, em locações internas e externas no bairro
de Altona, onde mora o diretor. Assim, os bares e restaurantes vistos são os mesmos
frequentados por Akin, o cartório onde se casam Cahit e Sibel é o mesmo onde se casou,
em suma, o ambiente por ele filmado é o seu. Referências turcas podem também ser vistas
em diversos pontos da cidade, tais como lojas, restaurantes e o clube noturno Taksim, que
recebe o mesmo nome de uma das praças centrais de Istambul, atraindo grandes
contingentes que dançam ao som da música pop turca, integrada aos sons pós-punk de
Depeche Mode, The Birthday Party e The Sisters of Mercy na trilha sonora do filme. Mas
Istambul está presente desde o primeiro plano do filme, na imagem recorrente de um
conjunto musical que interpreta canções tradicionais turcas às margens do Chifre de Ouro,
com uma imagem “cartão postal” da cidade ao fundo. As músicas tocadas aludem ao
amor, à perda, à memória, à distância, afinadas à dor de Cahit e Sibel. Essa imagem
servirá de abertura para cada novo tableau do filme, que viaja entre as duas cidades cinco
vezes.
Tanto Terra estrangeira quanto Contra a parede, a despeito das diferenças relativas
à questão da identidade, apresentam a viagem para uma nova cidade como a possibilidade
131
de um reinício, na tentativa de deixar para trás memórias dolorosas relacionadas à
experiência de perda e morte (da mãe para Paco, da primeira mulher para Cahit, e de
Cahit para Sibel). Imagens do avião, da chegada ao aeroporto e ao “Grand Hotel de
Londres” em Istambul, assim como planos panorâmicos da paisagem urbana, encontram
uma ressonância em imagens similares em Terra estrangeira, nas quais Paco é igualmente
visto chegando ao aeroporto, se hospedando em um charmoso hotel em Lisboa com vista
para o mar, e onde Alex e Miguel conversam diante de uma bela vista da cidade. É
também notável o fato de São Paulo e Hamburgo, as cidades mais próximas aos diretores,
não aparecerem em planos panorâmicos, recebendo um tratamento mais fragmentado e
internalizado, enquanto Istambul e Lisboa são mostradas mais de uma vez através de
planos de paisagem – do topo de uma colina, da janela do hotel, do topo de um prédio –
vistas em toda a sua glória turística.
Finalmente, ambos os filmes terminam na estrada, em um movimento mais uma
vez contaminado pela sensação de perda ou morte. Em Terra estrangeira, Alex e Paco
fogem em direção à San Sebastián, dirigindo ilegalmente através da fronteira espanhola
em uma estrada remota. Mas Paco acaba de ser baleado pela gangue de contrabandistas
liderada por Igor, e está morrendo no colo de Alex. Na Turquia, Cahit embarca em um
ônibus na rodoviária de Istambul em direção à sua cidade natal Mersin, mas Sibel, que
prometera se juntar a ele, percebe que não pode abandonar a vida de estabilidade que
conseguira achar após anos de auto-destruição e dor, tanto em Hamburgo quanto em
Istambul. Dois casais, duas ausências, duas estradas, que levam suas histórias a novos e
desconhecidos territórios, ao mesmo tempo trazem os filmes ao fim.
132
IMPORT/EXPORT, CONTRA A PAREDE E TERRA ESTRANGEIRA
Se em Terra estrangeira e Contra a parede as fronteiras são mostradas de modo
proeminente, em Import/export elas permanecem inconspícuas, o Oeste e o Leste da
Europa construídos como “dois mundos que cada vez mais se parecem”, nas palavras do
diretor austríaco Ulrich Seidl (2007, p. 5)71
. Seidl pode ser descrito como o enfant terrible
do cinema contemporâneo, tendo dirigido uma série de filmes que desafiam
qualquer categorização, ocupando uma área cinzenta entre a ficção e o documentário e
empenhados em uma crítica inclemente à sociedade austríaca.72
Com Import/export o
diretor se aventura para além das fronteiras de seu país ao propor, como indica o título,
um movimento duplo: o de Olga (Ekateryna Rak) , uma enfermeira da cidade de Snizhne
no extremo leste da Ucrânia, que se muda para Viena em busca de novas oportunidades,
deixando para trás sua mãe e filha pequena; e o de Pauli (Paul Hofmann), um segurança
que perde seu emprego e embarca em uma viagem de carro com seu padrasto através das
cidades de Kosice na Eslováquia e Uzhgorod no oeste da Ucrânia, instalando máquinas de
chiclete e fliperamas em conjuntos habitacionais. O filme usa subtítulos para informar o
nome das cidades que atravessa, enfatizando assim o real das locações.
Não surpreende que os primeiros planos de Import/export também anunciem
imobilidade ao invés de movimento. O primeiro revela um homem em Viena que tenta
repetidamente dar a partida em uma motocicleta, pisando em vão no acelerador. Um
corte leva a Snizhne, onde elenco e equipe filmaram sob temperaturas extremas de 30
graus negativos. Lá, a paisagem urbana é nada menos do que desoladora, e Olga aparece
71
“two worlds that are increasingly coming to resemble each other” 72
Ver por exemplo Tierische Liebe/Animal Love (1996); Models (1999); Zur Lage: Osterreich in sechs
Kapiteln/State of the Nation: Austria in Six Chapters (2002); Jesus, Du weisst/Jesus, You Know (2003);
Hundstage/Dog Days (2001).
133
pela primeira vez vestida de branco, cambaleando através de um atalho coberto de neve
em sua bota de salto agulha. Se em Terra estrangeira as contas bancárias foram
congeladas, aqui toda a cidade parece assim estar, e a imagem de um avião militar,
transformado em escultura no meio de uma praça, dialoga com a motocicleta que insiste
em não funcionar no primeiro plano, com o minhocão emborcado em São Paulo e com a
parede contra a qual Cahit joga seu carro, igualmente simbólicos da estagnação que
precede a viagem.
Conforme mencionado anteriormente, o tratamento das cidades de São Paulo (os
diretores de Terra estrangeira são cariocas mas trabalham com frequência na capital
paulista) e Hamburgo (cidade natal de Fatih Akin) se diferencia do tratamento das
cidades-destino por sua fragmentação e interiorização. É também fato notório que Lisboa
e Istambul são cidades consideravelmente mais fotogênicas e turísticas do que São Paulo e
Hamburgo, convidando assim o olhar mais distanciado do turista, que revela o ponto de
vista externo dos diretores em relação ao espaço urbano. Mas em ambos os filmes esse
ponto de vista é sancionado pelos personagens que também se configuram como externos
ao ambiente. Os imigrantes Alex, Miguel, Paco, Sibel e Cahit, apesar de se relacionarem
por laços sanguíneos ou históricos com a cidade-destino, se definem até certo ponto por
seu olhar estrangeiro. A chegada de Cahit em Istambul é especialmente significativa: no
caminho do aeroporto para o hotel ele encontra um motorista de taxi turco-alemão,
procedente de Munique (um Bávaro, como diz Cahit), com quem conversa em alemão, e
ao encontrar a prima turca de Sibel se vale da língua inglesa, visto que seu turco é
rudimentar.
Em Import/export, nota-se a mesma diferença entre o tratamento de Viena e
Snizhne. A capital austríaca, cidade natal do diretor, é raramente vista em externas, mas
quando o é aparece sempre a partir do nível da rua e nunca em um plano de paisagem.
Snizhne, por sua vez, é vista em mais de uma ocasião a partir de pontos altos, em planos-
134
gerais que ressaltam o frio da neve e a paisagem urbana industrial, conformando-se a um
certo clichê iconográfico do leste comunista. Aqui, Seidl não tem em Olga um olhar
sancionador, mas o tratamento estético de Viena funciona também de modo à aproximá-la
desta iconografia, com a ênfase em planos estáticos que favorecem o enquadramento de
conjuntos habitacionais, nem tão distintos dos vistos no leste europeu. Isso demonstra o
desejo de Seidl de borrar as fronteiras entre as duas regiões, presente também na opção
por não mostrar as fronteiras físicas que separam os países. O diretor revela também que a
decisão de filmar no leste europeu nasceu de sua afinidade com a região, do fato de por lá
ter viajado extensivamente e de se sentir próximo às pessoas e às suas mentalidades
(Ciment e Rouyer, 2009, p. 29). Assim, seu olhar é ao mesmo tempo distanciado e
familiar.
Além da aproximação estabelecida entre leste e oeste através da montagem
alternada, que persiste até o final do filme, um importante ponto de contato aparece entre
as duas cidades antes do início das viagens de Olga e Pauli. Isso ocorre através de um
estabelecimento de sexo via internet, no qual Olga trabalha por um breve período. Aqui, a
voz do outro lado da tela do computador fala alemão com sotaque austríaco, e Olga
responde em alemão rudimentar, incapaz de compreender as instruções de seu cliente. A
simultaneidade das relações espaciais, impressa na forma do filme através da montagem,
encontra na fábula sua mais perfeita manifestação. Mas o real da locação e o corpo das
atrizes não-profissionais confere uma autenticidade a essa sequência que evidencia a
tensão entre a (re)presentação e a literalidade, uma tensão que permeia todo o filme.
Assim, a simultaneidade é ao mesmo tempo representada e real, visto que os
computadores, as camas, as câmeras e o som que se pode escutar vindo dos quartos fazem
parte de uma estabelecimento autêntico, que diariamente faz a ponte entre o oeste e o
leste europeus.
135
Import/export corta 21 vezes do leste para o oeste, e apesar de parecer
esquemático a partir dessa breve descrição confunde expectativas em diferentes níveis. O
antecipado encontro entre Olga e Pauli, por exemplo, nunca ocorre. Olga pega um trem
em Snizhne e chega à estação de Viena, onde sua amiga e compatriota Natasha a aguarda.
As duas se abraçam e vão embora juntas. Pauli é visto antes e depois no que aparenta ser
o interior de uma estação de metrô, talvez a mesma do trem, mas isso não fica claro.
Apesar de tanto um quanto o outro serem humilhados em seus empregos – Pauli por um
grupo de jovens de aparência turca que o amarram e atormentam dentro do
estacionamento do prédio onde trabalha como segurança, e Olga pelas famílias austríacas
nas quais trabalha como faxineira – nenhum dos dois é apresentado como vítima. No caso
de Olga, a tentação em mostrá-la como a imigrante sofredora é a todos os momentos
rechaçada pelo diretor, visto que as fronteiras da qual trata parecem ser mais de cunho
social do que geográfico. No fim, tanto Pauli quanto Olga se esforçam para driblar seus
destinos ao mesmo tempo que preservam sua dignidade. Olga termina o filme
conversando animadamente com suas colegas faxineiras em um hospital geriátrico em
Viena, sua futura permanência no país um tanto incerta. Pauli por sua vez abandona seu
horripilante padrasto em um quarto no hotel Intourist em Uzhgorod, e parte sozinho por
uma estrada, pedindo carona. Assim como em Terra estrangeira e Contra a parede, o
tropo da estrada reaparece no final, apontando para novas direções e novas viagens. Mas o
último plano do filme confere novamente à essa estrada uma conotação pessimista, ao
mostrar um quarto no hospital geriátrico no qual uma das pacientes repete três vezes a
palavra “morte”.
136
QUE HORAS SÃO AÍ?
E é precisamente uma morte que dá início ao filme de Tsai Ming-liang Que horas são aí?,
uma reflexão acerca da viagem, do fuso horário e da reencarnação. Trata-se desta vez da
morte do pai de um jovem rapaz, Hsiao Kang (Hsiao Kang). Um plano-sequência estático
com profundidade de campo revela Miao Tien (Miao Tien) dentro do apartamento onde
mora com a mulher e o filho, sentado à mesa de jantar fumando um cigarro. Ele se
levanta e anda lentamente até o fim do corredor, que se abre para o terraço. O próximo
corte dá conta de sua morte, introduzindo um novo plano-sequência, no qual de Hsiao
Kang, carregando as cinzas do pai em uma urna, viaja através dos viadutos e avenidas de
Taipei no banco de trás de um carro. O jovem é um vendedor de relógios ambulante na
capital Taiwanesa, que monta sua banca em uma passarela de pedestres em frente à
estação central da cidade. Shiang-chyi (Shiang-chyi) está de partida para Paris e procura
um relógio com horário duplo. Ao atravessar a passarela ela encontra Hsiao Kang e
procura em sua banca um modelo que a satisfaça. Mas ao ver um relógio no pulso do
rapaz imediatamente decide que é aquele que quer comprar. De sua parte ele recusa,
alegando que por estar em luto pela morte de seu pai o relógio poderia acarretar má sorte.
Ela vai embora mas não desiste facilmente, ligando para ele e explicando que, por ser
cristã, ela não se sente afetada por crenças supersticiosas. Ele acaba por conceder e ela
compra o relógio antes de embarcar para Paris. Esse encontro casual, assim como a morte
de Miao Tien, são os principais motivos que impulsionam o filme. Hsiao Kang, ainda em
Taipei, passa a ter que lidar com duas ausências: a de seu pai e a de Shiang-chyi, que após
a compra do relógio parece ter ficado impregnada em sua memória. Ele a mantém viva
no estranho e obsessivo hábito de acertar relógios (os seus, os de uma loja, em um cinema,
o da cozinha de seu apartamento, e até mesmo o relógio da estação central) ao horário
137
francês, numa vã tentativa de suplantar o lapso espacial que os separa através da aparente
anulação do lapso temporal.
Em Que horas são aí?, a manifestação estética do ponto de vista interno ou
externo do diretor em relação ao espaço urbano não segue a tendência anteriormente
explicitada. Aos olhos do diretor chinês nascido na Malásia mas baseado em Taipei desde
os anos universitários, Paris, a mais fotogênica e turística das cidades, não aparece a partir
do ponto de vista externo do turista, mas sim a partir de um tratamento internalizado que
impede uma visão globalizante ou total da cidade. Apesar de ter sido inteiramente filmado
em locações reais, Que horas… possui poucas cenas externas em Paris. O diretor se
esforçou ao contrário para criar uma atmosfera de solidão e isolamento, sem parecer
minimamente interessado no caráter pitoresco da cidade. Como escreveu De Bruyn na
revista Positif , a capital francesa “foi filmada sem um fotograma de exotismo” (2001, p. 6)
73
. Com um novo corte de cabelo, assim como Sibel ao se mudar para Istambul (ambas
passaram de longo para curto), Shiang-chyi é vista dentro de seu quarto de hotel, em um
café, em um restaurante, no metrô, fazendo uma ligação de um telefone público, e em
todos as instâncias sua desconexão em relação ao ambiente é evidenciada: ela está sempre
sozinha; fica parada na escada rolante enquanto os outros caminham; é interceptada pelos
inspetores do metrô; espera um trem que chega na plataforma oposta; não compreende o
cardápio em um restaurante; tenta fazer uma ligação mas um francês neurastênico na
cabine ao lado a espanta; e por fim acaba vomitando após beber muitas xícaras de café.
Assim, fica claro que Shiang-chyi sofre de um lapso temporal em relação ao espaço
urbano a sua volta.
Que horas… concentra-se em Shiang-chyi, Hsiao Kang e sua mãe, Lu Yi-ching (Lu
Yi-ching), que passa todo o filme tentando lidar com a morte do marido. Convencida de
que ele reencarnará dentro do apartamento, ela promove toda uma série de rituais
73
“filmée sans un photogramme d’exotisme”
138
budistas, de modo a criar um ambiente propício à sua volta. O filme é estruturado a partir
da montagem alternada, e corta entre Taipei e Paris 24 vezes, com um total de 13
sequências em cada cidade. Os cortes por si não são motivados por conexões explícitas
entre os espaços e os três personagens, mas a estrutura geral de vai-e-vem, apoiada na
conexão estabelecida através do relógio, aproxima as duas cidades de modo ainda mais
intenso do que nos outros três filmes, mantendo o paralelismo até o final. Já a penúltima
sequência do filme é montada de modo a criar relações explícitas entre Shiang-chyi, Hsiao
Kang e Lu Yi-ching, que simultaneamente passam por uma experiência de cunho sexual.
Que horas... termina em Paris com a abertura para a locação externa do Jardin de
Tuileries, onde Shiang-chyi dorme em uma cadeira sem se dar conta de que sua mala
flutua à sua frente, em uma das fontes do jardim. Quem finalmente acaba por “pescar” sua
mala com um guarda-chuva é a reencarnação do pai de Hsiao Kang, que também parece
ter viajado de Taipei para Paris. Uma roda-gigante localizada na Place de la Concorde, em
frente ao portão principal do jardim, é vista primeiramente refletida na fonte e em seguida
como pano de fundo para o fantasma de Miao Tien, que caminha em sua direção no
último plano-sequência do filme. Esta roda sugere mais uma vez o tropo da estrada, mas
ao invés de apontar para novas trajetórias ela parece simbolizar a renovação perpétua, a
reencarnação e o movimento entre a vida, a morte e a vida, em consonância com as
crenças budistas expressas e nutridas por Lu Yi-ching durante todo o filme.
CIDADES DE MEMÓRIAS
Ao reinventar a geografia de duas cidades, que aparecem como um tanto impessoais e
claustrofóbicas, Tsai parece propor que cidades podem ser encontradas internamente,
construídas a partir das memórias e dos sentimentos de cada indivíduo. Vale resumir a
epígrafe que abre a introdução desta obra, “as cidades são um aglomerado de tantas
139
coisas: de memórias, de desejos, de sinais de uma linguagem” (Calvino, 2009, pp. ix-x),
para sugerir que esses filmes reúnem a cidade real, a cidade indéxica e a cidade
interiorizada ao promoverem, através de suas produções espaciais, a comunicação de
memórias. Como é sabido, o recurso do flashback é o modo clássico através do qual o
cinema evoca a memória individual, acessando-a, por exemplo, através de uma fusão.
Neste caso, a sobreposição de imagens representa a ligação entre o presente e o passado e
por vezes entre dois espaços distintos, levando de uma imagem em geral mais objetiva
para uma imagem mental e subjetiva. A relação entre cinema, memória e cidade encontra
sua matriz no filme Hiroshima meu amor (Hiroshima mon amour), realizado em 1959
por Alain Resnais. Baseado em um roteiro da escritora Marguerite Duras, uma das
principais figuras do nouveau roman francês, o filme une as cidades de Hiroshima no
Japão e de Nevers na França através da personagem central, conhecida simplesmente pelo
pronome “ela”, vivida por Emmanuelle Riva. “Ela” é uma atriz francesa na cidade
japonesa do título, onde trabalha em um filme sobre a paz. Na véspera de seu retorno à
França ela encontra “ele” (Eiji Okada), um engenheiro ou arquiteto japonês com quem
vive um romance extraconjugal de 24 horas. O filme se passa nessas 24 horas mas é
interrompido temporalmente por flashbacks. O corpo de seu amante em Hiroshima
remete à uma outra cidade e a um outro tempo, vivos em sua memória, tornada visual
pelo filme. Foi em Nevers, sua terra natal, que no ano de 1944 ela se apaixonou por um
soldado alemão, morto durante a Libertação. O primeiro flashback a violar o tempo
presente é motivado pela posição da mão do amante japonês que dorme na cama do
hotel. Resnais passa da subjetiva de seu corpo para um plano médio da atriz francesa que
o observa, e então para um plano detalhe da mão do corpo do soldado alemão, na mesma
posição. A trilha sonora antecipa a imagem do flashback com o desaparecimento do som
ambiente (de Hiroshima, do tempo presente) no momento em que o corte revela o rosto
da mulher. Hiroshima meu amor rompeu radicalmente convenções narrativas através da
140
fragmentação da escritura poética de Duras, e seu uso do flashback é extremamente
sofisticado por relacionar dois tempos, dois amores e duas cidades que se confundem
com uma série de dualismos problematizados no filme: a realidade e a ficção, a França e o
Japão, Nevers e Hiroshima, o bem e o mal, o cinema e a literatura, a imagem e a palavra,
a tragédia individual e a tragédia coletiva, a guerra e o amor, o passado e o presente, a
memória e o esquecimento. A dimensão geográfica deste amor atinge seu ápice no final
do filme, no qual “ela” diz a “ele” “Hi-ro-shi-ma. C’est ton nom” (Hiroshima é teu nome)
e “ele” a “ela” “Ton nom à toi est Nevers” (Teu nome é Nevers) (Duras, 1997, p. 124).
Em Hiroshima ..., a associação da memória com o tempo (o passado) é posta em
evidência através do recurso do flashback, assim como sua conexão com o presente
daquela que se recorda. Já nos filmes analisados neste capítulo, a troca ocorre entre duas
cidades separadas pelo recurso igualmente clássico da montagem alternada (também
conhecida pelo termo em inglês cross-cutting), através do qual a simultaneidade temporal
é sugerida através da descontinuidade espacial, em consonância com nossa experiência
contemporânea do tempo e do espaço. Esse recurso cinematográfico substitui nesses
filmes o flashback como instigador da memória, apontando para seu caráter espacial,
independente do tempo. Em The Analysis of Mind (A análise da mente), Bertrand
Russell descreve como a memória de um evento passado está na realidade contida, ou tem
uma relação causal, com o presente:
Tudo que constitui uma crença-memória está acontecendo agora, não no tempo
passado ao qual a crença parece se referir. Não é uma necessidade lógica para a
existência da crença-memória que o evento lembrado tenha ocorrido, ou mesmo
que o passado tenha sequer existido... Logo as ocorrências que são chamadas de
conhecimento do passado são logicamente independentes do passado; elas são
plenamente analisáveis através de conteúdos presentes, que podem, teoricamente,
ser apenas o que são, mesmo que nenhum passado tenha existido. (1924, pp. 159-
160)74
74
“Everything constituting a memory-belief is happening now, not in that past time to which the belief is
said to refer. It is not logically necessary to the existence of a memory-belief that the event remembered
141
A memória vista como contida no presente, independente até mesmo da existência de um
passado, emerge nesses filmes através dos cortes e através de pontos conectivos
estabelecidos entre dois espaços, cuja simultaneidade é sedimentada pela montagem
alternada. Giuliana Bruno descreveu as cidades como “camadas de sedimentos, a soma de
tudo aquilo que seus habitantes carregam dentro de si. São os reflexos das imagens que
formamos delas através do tempo. É sobretudo através do espaço e não do tempo que se
movem as memórias” (citada em Broggi, 2005, pp. 23-4).75
No tempo presente, a
dimensão espacial da memória é posta em evidência, pois como sugere Edward Casey a
corporificação como condição necessária para o ato de relembrar aponta para um lugar:
“assim como a existência corporificada se abre para o lugar, ocorre em um lugar, nossa
memória do que experienciamos no lugar é igualmente espacial” (2000, p. 182)76
. A
memória é portanto um ponto de conexão entre o evento lembrado, a pessoa que o
lembra e o espaço da lembrança.
Em Que horas…, a montagem alternada favorece o aparecimento de pontos
conectivos entre as duas cidades, mantendo viva a memória de Hsiao Kang e Taipei em
Shiang-chyi: o relógio com horário duplo é um desses pontos, aparecendo ostensivamente
nas sequências em Paris como uma lembrança do encontro na passarela, que estabeleceu
uma ligação entre os dois, manifesta abertamente (no caso dele) e sutilmente (no caso
dela) durante todo o filme. Ademais, se o passado é trazido para o presente através de
uma memória, ativada pelo espaço, não espanta que o filme e a cidade sejam habitados
por fantasmas: o quarto do hotel de Shiang-chyi em Paris, por exemplo, parece
should have occurred, or even that the past should have existed at all. …Hence the occurrences which are
called knowledge of the past are logically independent of the past; they are wholly analysable into present
contents, which might, theoretically, be just what they are even if no past had existed.” 75
“Le città sono strati di sedimenti, la somma di tutto quello che chi le vive e le percorre porta dentro di sé.
Sono il riflesso stesso dell’immagine che abbiamo di esse attraverso lo scorrere del tempo. Più che nel
tempo è soprattutto attraverso lo spazio che la memoria si muove.” 76
“As embodied existence opens onto place, indeed takes place in place and nowhere else, so our memory
of what we experience in place is likewise place-specific.”
142
assombrado por barulhos misteriosos que vêm do andar de cima; o pai de Hsiao Kang,
que também viaja de Taipei a Paris, reencarna nas Tulherias; e finalmente o Cemitério de
Montmartre, visitado por Shiang-chyi, é o local de um encontro casual com ninguém
menos que Jean-Pierre Léaud. Neste espaço heterotópico, no qual o diretor francês
François Truffaut está enterrado, a câmera encontra seu ator-fetiche, cuja relação com o
diretor ecoa a própria relação entre Tsai Ming-liang e Hsiao Kang. Jean-Pierre Léaud se
senta em um banco do cemitério e conversa com Shiang-chyi, que procura em sua bolsa
um número de telefone, possivelmente o de Hsiao Kang. Sua presença aparece aqui como
mais um ponto conectivo entre as duas cidades, visto que uma versão mais jovem do ator
– além do fantasma de François Truffaut – viajam na direção oposta à do fantasma de
Miao Tien, em uma das sequências mais memoráveis do filme, comentada a seguir.
Se Shiang-chyi parece lembrar de Taipei através da relação estabelecida com o
relógio de Hsiao Kang que ela carrega no pulso, ele – obcecado como está pela
eliminação do lapso temporal que os separa – não pode se lembrar de Paris, visto que
nunca lá esteve. Sua solução é comprar um filme realizado em Paris, Os incompreendidos
(Les 400s Coups, 1959), cuja cópia pirata encontra na banca de um outro camelô em
Taipei. Será através deste filme que ele poderá fabricar uma memória virtual daquela
cidade, nos termos de Giuliana Bruno:
As cidades são por excelência espaços que não apenas evocam as memórias, mas
as constroem e as contêm. O mesmo ocorre em relação à memória virtual que
construímos através das telas, historicamente a cinematográfica, hoje também a da
televisão, do computador e do celular.
(citada em Broggi, 2005, pp. 23-24)77
77
“Le città sono per eccellenza spazi che non solo evocano la memoria, ma la costruiscono e la
contengono. Lo stesso accade per la memoria virtuale che ci costruiamo attraverso gli schermi,
storicamente quelli cinematografici, oggi anche quelli dei televisori, dei computer, dei cellulari.”
143
Ao posicionar Hsiao Kang como um espectador de Os incompreendidos, deitado em sua
cama no escuro em frente à televisão, Tsai presta homenagem ao seu filme preferido, que
viu pela primeira vez ao se mudar da Malásia para Taipei, e através do qual também pôde
fabricar uma memória virtual de Paris. Como observa Song Hwee Lim, “a consumação
cinéfila de Tsai do filme de Truffaut produziu um cinema intertextual que costura os dois
autores e seus protégés numa complexa rede de conexões” (2007, p. 236)78
. Esse diálogo
entre os dois autores ocorre primeiramente através da cena no parque de diversões, na
qual Doinel (Jean-Pierre Léaud) entra em um brinquedo no estilo “Chapéu Mexicano”.
Esta cena conta também com uma participação cameo de Truffaut, que entra no
brinquedo redondo com Doinel. Como explica Lúcia Nagib, “Truffaut fica ao lado de
Doinel dentro do chapéu mexicano, filmado de modo a reproduzir o mecanismo do
praxinoscopo, um predecessor do cinematógrafo”. Nagib ainda comenta que “a
experiência física da força centrífuga, que cola os participantes à parede do brinquedo, une
o personagem, o ator e o autor em uma bem arquitetada fusão da fábula do filme e da
vida real” (2011, p. 65)79
. Esta cena metalinguística ganha ainda outra camada a partir de
sua inserção em Que horas..., unindo Hsiao Kang e Tsai à Jean-Pierre/Doinel e Truffaut.
A cena se relaciona também com as próprias memórias de infância de Tsai, que quando
criança frequentava um brinquedo similar em um parque de diversões em Kuching. Por
fim, o “Chapéu Mexicano” introduz o motivo circular no filme, que reaparece nos últimos
planos das Tulherias em conexão com a reencarnação.
Se Paris se torna uma memória virtual, fabricada através da tela da televisão por
Hsiao Kang em Taipei, San Sebastián permanece até o fim de Terra estrangeira também
uma memória virtual para Paco, fabricada através de um cartão postal. Tendo chegado até
78
“Tsai’s cinephilic consumption of Truffaut’s film has produced an intertextual cinema that weaves the
two auteurs and their protégés in a complex web of network.” 79
“Truffaut stands next to Doinel inside a gyrating rotor machine, filmed in such a way as to reproduce the
mechanism of the praxinoscope, a predecessor of the cinematographe.”; “The physical experience of the
centrifugal force, which plasters participants against the rotor wall, unites character, actor and auteur in a
cleverly devised fusion of film fable and real life”
144
a Portugal mas impedido de seguir ao destino final no país Basco, a imagem do cartão
postal funcionará como o único ponto de conexão entre a terra de sua mãe e São Paulo. A
dimensão explícita da memória contida na imagem do postal aparece no momento em
que Paco remexe os pertences da mãe, retirando cartas, fotos e outros cartões postais de
sua gaveta, e mais tarde organizando-os no chão do apartamento, tal fora um quebra-
cabeças. Já sua natureza fluida, visto que foi criada a partir de uma cidade indéxica, ganha
uma tradução visual na sequência em que a água do banho transborda para a sala do
apartamento, molhando as fotos e cartões, que passam a boiar por sobre o chão. Lisboa,
por sua vez, está imbuída de uma nostalgia que parece provir das memórias de Manuela,
já que o primeiro corte para a cidade é motivado pela sua referência à San Sebastián,
gerando imagens que remetem a uma terra distante e idealizada, bem diferente do Brasil.
Pouco antes de morrer, Manuela estava entusiasmada com o fato de ter economizado
dinheiro suficiente para viajar ao país Basco, dizendo a Paco: “Pode se preparar para
conhecer a terra da sua mãe”. O rapaz, mais realista, tenta demovê-la da ideia, sugerindo
que o parcelamento de pacotes turísticos acarretaria um juros altos, muito além das suas
possibilidades financeiras, dizendo finalmente um simples “esquece San Sebastián”. “Você
não entende”, retruca Manuela, “é San Sebastián que não me larga”. Sua fala explicita a
dimensão interna das cidades, algo que naquele momento Paco não consegue
compreender, mas que fará sentido uma vez que embarcar em sua viagem transatlântica.
Istambul não possui a mesma função nostálgica e subjetiva para Cahit ou Sibel em
Contra a parede, mas também aparece no filme na forma de um cartão-postal. O ponto
conectivo mais proeminente entre as duas cidades, evidenciado pela montagem alternada,
aparece no cartão “vivo” que dá início a cada novo tableau do filme, conferindo-lhe sua
estrutura brechtiana. Assim, mesmo que cerca de dois terços do filme estejam
concentrados na Alemanha, a imagem da capital turca parece se impor sobre a Hamburgo
de Cahit e Sibel desde o princípio, antes mesmo que eles para lá partam. Essas imagens
145
estilo cartão-postal contêm uma dimensão temporal, visto que foram filmadas durante um
dia inteiro, do nascer ao pôr-do-sol, variando em sua tonalidade de acordo com a
luminosidade natural. Cada nova imagem então marca um novo capítulo, conecta as duas
cidades e aponta para a passagem do tempo – o tempo diegético e o tempo da projeção.
Além disso, as canções tocadas pela banda, composta por músicos ciganos e pela cantora e
atriz turca Idil Üner, invariavelmente “sangram” sobre as imagens em Hamburgo,
antecipando o corte para o cartão-postal às margens do Chifre de Ouro, braço do estreito
de Bósforo que divide em dois o lado europeu da cidade. Em Contra a parede, Istambul
se impõe como uma memória presente, de cunho coletivo, pertencente a Cahit e a Sibel, a
suas famílias, aos atores e ao próprio diretor. A ideia de que imagens e espaços contêm
memórias fica também evidente na sequência em que Cahit, em um movimento similar ao
de Paco, abre uma caixa e de lá retira fotos de sua falecida mulher, posicionando-as
igualmente sobre o chão de seu apartamento. A ideia ainda reaparece mais uma vez na
cena em que o pai de Sibel queima suas fotos após a revelação de seu caso extra-conjugal,
de modo a apagar qualquer traço de sua existência, ou em outras palavras de sua
memória.
Import/export, com sua estrutura de “duas mãos”, estabelece o primeiro ponto
conectivo entre Viena e Snizhne através da tela do computador e seu link de sexo ao vivo,
que evidencia através da fábula a característica de simultaneidade espacial, impregnada na
forma do filme pela montagem alternada. Com Olga já em Viena, empregada como
faxineira em um hospital geriátrico após algumas tentativas desastradas de trabalhar como
empregada doméstica, a ponte comercial/pornográfica é substituída por uma ponte
auditiva, que vem na forma de uma canção. ‘Serdtse’/‘Coração’, na versão de Pyotr
Leschchenko, é tocada pela primeira vez na Ucrânia em uma cena de otimismo, na qual
Olga, animada com a iminente partida para a Áustria, dança com uma amiga em um salão
de festas. A canção reaparece em duas outras ocasiões, evidenciando a cidade que ela
146
ainda carrega dentro de si, mesmo estando longe de casa. Na primeira cena, Olga dança
com um de seus pacientes do hospital geriátrico (o excelente Erich Finsches, “estrela” em
outro filme do diretor, Hundstage/Dog Days, 2001), por quem desenvolveu uma certa
afeição. O paciente, já velho, sugere que os dois se casem, assim ela garantiria o visto de
permanência na Áustria e ele uma enfermeira – e uma companhia – para o pouco que lhe
resta de vida. A cena ocorre no que parece ser uma sala no porão do hospital, onde os
dois dançam ao som de um pequeno aparelho de som. Esse é o primeiro momento desde
a chegada de Olga na estação em Viena que sua vida na Ucrânia é diretamente
referenciada. Mas a verdadeira ponte entre as duas cidades é estabelecida em outra cena,
na qual Olga faz um breve telefonema do hospital para sua filha pequena. Observada
através de um plano-sequência, Olga se esconde em uma sala vazia e faz uso do telefone
sem que ninguém perceba. Sua memória de Snizhne emerge através da canção, que
resume, diante do tempo exíguo, o que ela teria para falar. O telefonema e a música
conectam Olga com um outro espaço e aparecem em Viena como a dimensão interna de
Snizhne.
Em um mundo cada vez mais definido pela simultaneidade e pelas interconexões,
esses quatro filmes distintos de algum modo empregam recursos similares ou comparáveis
em sua articulação de espaços urbanos reais. Estruturados a partir de uma viagem entre
duas cidades, alguns motivos são ao mesmo tempo recorrentes e reveladores, tais como a
tensão entre a stasis e o movimento que permeia suas sequências de abertura, o tropo da
estrada que aponta para novas trajetórias ou para a renovação em suas sequências finais, e
o emprego da montagem alternada, possibilitando a emergência de pontos conectivos. Um
meio que viaja, o cinema foi desde o início capaz de atravessar longas distâncias, seja
através da distribuição e exibição ou através da montagem. Nesses exemplos notáveis do
impulso “viajante” do cinema contemporâneo, a montagem funciona como uma força
para trás e para frente, produzindo o que se pode chamar de um encontro significativo.
147
Além dos cortes, os pontos conectivos entre as duas cidades parecem perfurar o espaço e
se encontrarem no meio: um cartão postal, uma canção entoada por uma mãe ou tocada
por uma banda, uma tela de computador, um relógio com horário duplo, um fantasma,
um ator, um filme. Conexões que fabricam ou despertam uma memória, um fenômeno
tão espacial quanto temporal, assim como o próprio cinema.
148
CAPÍTULO IV: A CIDADE EFÊMERA
Filmes: A passarela se foi (Tianqiao bu jianle, Tsai Ming-liang, 2002), Adeus, Dragon Inn
(Bu san, Tsai Ming-liang, 2003), It’s a dream (Shi meng, Tsai Ming-liang, 2007), Em busca
da vida (Sanxia haoren, Jia Zhang-ke, 2006), 100 flowers hidden deep (Chen Kaige, 2002)
Cidades: Taipei, Feng Jie, Pequim
Este capítulo trata de filmes que abordam o movimento da própria cidade, que aparece
como um espaço instável e efêmero, em constante transformação. A passarela se foi
(Tianqiao bu jianle, Tsai Ming-liang, 2002), Adeus, Dragon Inn (Bu San, Tsai Ming-liang,
2003), It’s a dream (Shi meng, Tsai Ming-liang, 2007), Em busca da vida (Sanxia haoren,
Jia Zhang-ke, 2006) e 100 Flowers Hidden Deep (Chen Kaige, 2002) serão analisados a
partir de seu desejo urgente de filmar o desaparecimento de algum aspecto da cidade, de
um bairro ou de uma cidade inteira, que se traduz, de modo quase contraditório, em uma
lentidão de estilo e em um realismo de inspiração baziniana. Assim, caberá investigar a
capacidade do cinema de registrar e preservar o real, ou em termos bazinianos avaliar a
força da ontologia da imagem fotográfica diante de um espaço efêmero. Ao mesmo
tempo, esse desejo vem aliado à possível perda dessa qualidade fotográfica no cinema, no
momento em que a imagem digital substitui a película. Essa transformação, anunciada por
Tsai no final de A passarela se foi e abraçada por Jia em seu filme sobre a cidade de Feng
Jie, realizado inteiramente no formato digital, sugere uma analogia entre a cidade efêmera
e o cinema efêmero, presente no cerne das análises propostas.
149
A PASSARELA SE FOI, ADEUS, DRAGON INN E IT’S A DREAM
Os filmes do diretor malaio sediado em Taiwan Tsai Ming-liang ocupam uma posição de
centralidade no cinema mundial contemporâneo em seu engajamento privilegiado com o
espaço urbano e a arquitetura. Esse espaço urbano, a partir Os rebeldes do deus néon
(Qingshaonian Nezha) em 1992 até Goodbye, Dragon Inn (Bu san) em 2003, incluindo
seus teledramas, é a cidade de Taipei, capital de Taiwan. O espectador fiel desta obra
singular que, construída a partir de uma teia de temas, personagens e espaços afins que se
alimentam uns dos outros de filme a filme, começará em pouco tempo a criar intimidade
com o mundo cinematográfico de Tsai. Minha própria experiência com seu cinema guiou
grande parte das minhas investigações sobre a relação entre o cinema e o espaço urbano,
já que foi através do visionamento de seus filmes que senti como se estivesse ido repetidas
vezes a Taipei, antes mesmo de ter estado lá fisicamente. Eu conhecia as avenidas, os
mercados noturnos, as ruas cheias de motocicletas, o cinema, a passarela de pedestres, um
apartamento, e vários banheiros. O cinema, como tem sido proposto, é um meio que
viaja, e minha viagem para Taipei começou com ele.
Minha flânerie imaginária através de Taipei, impulsionada pelos filmes de Tsai,
criou uma memória dessa cidade que foi transformada pela Taipei real uma vez que a
viagem física substituiu a viagem cinematográfica. Conforme observado no capítulo
anterior, essas duas dimensões de uma viagem através do espaço urbano estão presentes
em Que horas são aí?, onde, em paralelo à flânerie real por Paris empreendida por
Shiang-chyi, Hsiao Kang embarca em sua própria flânerie imaginária na frente da tela da
televisão, que o levará em uma jornada através do espaço urbano em movimento. Os
filmes de Tsai analisados nesse capítulo dão uma dimensão ainda maior do que é estar em
Taipei, visto que se ocupam das transformações que vêm assolando a cidade nas últimas
décadas, e registrando lugares e espaços que hoje não estão mais lá. Desde o início desse
150
trabalho a ideia de espaço vem sendo proposta como algo dinâmico, definido acima de
tudo pela mobilidade. Partindo dessa premissa, é plausível supor que, em determinados
momentos históricos, uma determinada cidade ou cidades sofrerão com maior
intensidade do que outras do intrínseco fluxo espacial. Escrevendo na época do Segundo
Império francês e confrontado com as mudanças radicais promovidas pelo prefeito de
Paris, Georges Haussmann, que por 17 anos foi responsável por um programa de
modernização radical encomendado por Napoleão III, o poeta Charles Baudelaire
capturou a própria instabilidade do espaço urbano em seus “Tableaux Parisiens”, parte de
sua coleção de poemas Les Fleurs du mal (As Flores do Mal, 1857). Em “Le Cygne” (“O
Cisne”), por exemplo, ele escreve: “a velha Paris não é mais”, e encerra entre parênteses
“(a forma de uma cidade muda mais rápido, ai de mim! que o coração de um mortal)”
(1964, p. 107) 80
, encapsulando em apenas dois versos o impacto das transformações
espaciais no morador da cidade. Baudelaire foi o flâneur urbano par excellence,
atravessando a Paris que deixava para trás seu passado medieval e abraçava a
modernidade, com bairros antigos dando lugar a novas avenidas. Ele cantou sobre a forma
da cidade e o coração dos mortais, sugerindo como pode ser confuso e complexo lidar
com a instabilidade espacial, pois o espaço urbano está impregnado de memória e
emoções.
Nas últimas duas décadas, essa noção adquiriu um significado especial no contexto
das transformações radicais observadas em várias cidades asiáticas, que parecem estar
acontecendo com maior intensidade que em outros lugares, ou pelo menos com menos
respeito ao passado. Também é verdade que o cinema contemporâneo em diferentes
cidades em todo o mundo vem registrando esse espaço urbano instável. Um dos melhores
exemplos dessa preocupação com a cidade efêmera são os dois últimos filmes da Trilogia
de Fontainhas de Pedro Costa, No quarto da Vanda (2000) e Juventude em marcha
80
“La forme d’une ville change plus vite, hélas! que le coeur d’un mortel.”
151
(2006). Na China, o trabalho de Jia Zhang-ke é talvez o mais inspirador entre inúmeros
outros dedicados à filmagem do desaparecimento e ao surgimento do novo, conforme
será analisado nesse capítulo a partir de Em busca da vida, filme que trata do ápice da
efemeridade urbana ao viajar até Feng Jie, cidade às margens do rio Yangtze na China, e
que em 2006 estava prestes a ser completamente submergida pela represa da Usina das
Três Gargantas. O cinema, com a sua capacidade de captação do real sem paralelo,
parece nos permitir ver, mais do que qualquer outra arte, a natureza dessa instabilidade,
refletindo sobre ao invés de simplesmente refletir a cidade, nos termos de Dudley Andrew
(2010, p. 39).
Eu diria que o cinema de Tsai, assim como o de Costa e Jia, contém uma
preocupação análoga com o espaço urbano efêmero, e que ele articula essas preocupações
através de uma estética original nos filmes A passarela se foi, Adeus, Dragon Inn e It’s a
dream. Esses três filmes oferecem uma reflexão sobre o espaço mutante da cidade, mas
dão um passo adiante ao aliar essa reflexão a um questionamento correlato acerca da
tensão do cinema entre a permanência e o desaparecimento. Como mencionado
anteriormente, o espaço urbano no seio das preocupações temáticas e estéticas
encontradas em muitos dos filmes de Tsai, incluindo A passarela se foi e Adeus, Dragon
Inn, é Taipei e seus arredores. A cidade foi a principal base da ocupação japonesa de
Taiwan de 1895 a 1945, antes de virar a capital da República da China sob a liderança de
Chiang Kai-shek. Com a gradual abertura política nos anos 1970 e o consequente
relaxamento da legislação urbanística, que incluiu a rescisão da proibição de construção de
novos hotéis e arranha-céus, e principalmente após o levantamento da lei marcial em
1987, Taipei sofreu uma modernização apressada com planejamento esporádico ou
inexistente. Essa modernização foi seguida de um esforço para melhorar a qualidade de
vida na cidade densamente povoada, com a construção de uma rede subterrânea de metrô
(conhecida como o Municipal Rapid Transit - MRT), grandes avenidas e parques novos,
152
todos nas últimas duas décadas. Tais transformações tiveram um impacto sobre o cinema
de Tsai Ming-liang, como ele explicou em diversas entrevistas, especialmente durante os
anos 1990 e início de 2000. Aqui ele fala em 1997 com os Cahiers du Cinéma:
Taipei é uma cidade em constante mudança. E pude observar essas mudanças, de
um estágio simples e primitivo para a complexidade caótica de uma metrópole
moderna. ... Eu senti uma espécie de impotência diante dessa mudança inexorável.
A cada filme, tentei reconhecer as diferentes etapas desse processo. Gravamos All the Corners of the World [1989] antes da demolição da linha férrea que
atravessava a cidade. Esta linha férrea foi um símbolo de Taipei, e sua destruição
significou o fim do período de esplendor do tradicional centro da cidade – o bairro
dos cinemas – construído pelos japoneses. O desenvolvimento acontece agora no
oeste da cidade ... Juntamente com a linha férrea, havia fileiras de pequenas lojas
tradicionais, uma ao lado da outra, que ainda estavam lá quando filmamos Os rebeldes do deus néon, mas um dia após o término das filmagens foram todas
demolidas. Desta forma, nós gravamos outra mudança na história de Taipei. Eu
sou muito sensível à atmosfera da cidade: somos incessantemente confrontados
com as mudanças a nível visual e afetivo. (citado em Reynaud, 1997, p. 36)
Esta longa citação faz referência não só ao mesmo paralelo criado por Baudelaire entre a
forma da cidade e o coração dos mortais, mas também à forma como o cinema se
relaciona com estas mudanças, pois tem a capacidade de registrar e preservar um espaço
ameaçado de desaparecimento. A partir dessa habilidade, Tsai parece derivar uma
urgência com tons nostálgicos de filmar esse espaço instável, o que constitui uma das
principais motivações do cinema do diretor.
Um desses espaços é a área em torno da Estação Central de Taipei, onde
costumava haver uma passarela para pedestres sobre uma grande avenida. A passarela era
uma ligação entre lugares além de um lugar de passagem e de comércio, onde Shiang-Chyi
comprou o relógio de Hsiao Kang em Que horas são aí? antes de ir a Paris. Ela agora está
de volta e descobre que A passarela se foi neste filme de 25 minutos realizado em 2002,
concebido como uma coda para Que horas.... Os quatro primeiros planos do filme
revelam uma cidade coberta por superfícies que transmitem ou refletem imagens em
movimento, como o telão visto no primeiro plano, criando um efeito de mise-en-abîme,
153
bem como as superfícies reflexivas em torno dos edifícios, que formam uma infinidade de
ilusões óticas e contribuem para o efeito desorientador desse espaço efêmero em Shiang-
Chyi, assim como no espectador. É apenas um pouco mais tarde que se torna claro o que
ela estava procurando, ou seja, uma maneira de atravessar a avenida, ou talvez por Hsiao
Kang. Como lembra Lim, “A passarela não apenas parte da premissa do desaparecimento
da passarela em Taipei, mas também de modo autoconsciente constrói elementos
intertextuais da trama e dos personagens de Que horas em sua própria diegese, forjando
uma continuação que se desenvolve como um serial” (2007, p. 4).81
Shiang-Chyi acaba seguindo Lu Yi-Ching e ambas cruzam a avenida em um local
proibido. A dupla é parada por um policial de trânsito que lhes dá uma multa, e que
afirma que a passarela foi substituída por uma passagem subterrânea. Ao passar para
debaixo da terra a passarela tornou-se invisível, como de fato aconteceu na Taipei real,
algo que pode ser observado pelo espectador de Que horas e A passarela. Isto coloca em
evidência o que poderia ser chamado de impulso arqueológico do cinema, derivado da
qualidade ontológica da imagem fotográfica e de sua capacidade única de preservar o real
como um documento. Portanto, diante de um espaço instável, o cinema é capaz de
preservar as diferentes camadas da realidade, tomadas em tempos diferentes, para serem
percebidas e vivenciadas por audiências futuras. O cinema pode ser visto como um
arquivo da vida, desafiando a morte através da sua capacidade única de registro de
imagens sonoras em movimento.
Outra dimensão presente neste curta-metragem refere-se a como as memórias
estão contidas em espaços, apesar de muitas vezes serem percebidas como um fenômeno
puramente temporal. Shiang-Chyi procura pelo que estava escrito em sua memória do
81
“Skywalk not only premises itself on the actual disappearance of the skywalk in Taipei, it also self-
consciously builds intratextual plot and character elements from What Time into its own diegesis, forging a
continuation that develops like a serial.”
154
centro da cidade, sem sucesso. Esse é o caso de uma memória que está sendo ativado por
um espaço, um espaço alterado e marcado por uma falta. Ela dá seu cartão de
identificação para o policial e em seguida é vista em um café localizado em um edifício
alto, com vista para a travessia e a estação ferroviária, bem como para um canteiro de
obras. Ela pede café, o que desperta no espectador a memória de sua viagem a Paris, e de
como ela chegou a passar mal por beber muitas xícaras da bebida. Mas não há café,
apenas o arroz frito. Mais tarde, ela percebe que perdeu sua carteira de identidade,
voltando até o policial de trânsito para verificar se ele havia ficado com ela por engano. A
perda do cartão de identidade acentua sua própria confusão em um espaço estranho, que
não se encaixa em sua memória. Isso tem o efeito do que Freud conceituou como o
“estranho” em seu ensaio homônimo de 1919 (1976), ou para usar o termo em alemão o
unheimlich (em inglês un-homely), palavra que resume a ambivalência dessa classe de
“susto”, que contém dentro de si o familiar, escondido em algum lugar. Aqui, a cidade é
tanto familiar quanto assustadora para Shiang-Chyi, tanto heimlich quanto unheimlich, e o
espectador de A passarela se foi compartilha com ela uma experiência através da qual a
geografia do espaço urbano e sua própria geografia emocional parecem em desacordo.
Como destaca Brian Hu em “Goodbye City, Goodbye Cinema: Nostalgia in Tsai
Ming-liang’s The Skywalk is Gone”, tanto o cinema quanto a cidade são objetos de
nostalgia neste curta-metragem: “Como é vividamente demonstrado pelo telão colado em
um arranha-céu e gritando palavras de ordem para os pedestres abaixo, cidade e cinema
estão intimamente relacionados: a corrosão de um é paralela à deterioração do outro”
(2003)82
. Se a perda da carteira de identidade sugere a desorientação do personagem, ela
também simboliza a própria perda da identidade da cidade, um espaço diante do qual a
pessoa pode se sentir desorientada ou sem referências. A penúltima cena do filme, um
82
“As is vividly demonstrated by the giant television screen plastered on a skyscraper and screaming
slogans to the pedestrians below, city and cinema are closely related: the corrosion of one is paralleled by
the deterioration of the other.”
155
plano-sequência em que Hsiao Kang é visto em um teste de elenco para um filme pornô,
vestido como um médico e em frente a uma câmera mini-DV, amplia essa reflexão sobre
a cidade efêmera ao incluir os modos de produção do cinema. Aqui é a vez de Hsiao
Kang perder a sua identidade colocando o uniforme de médico, e o 35 mm é substituído
pela câmera digital, sinalizando a transformação de uma certa maneira de fazer filmes, e
de uma certa qualidade da imagem cinematográfica. Ecoando o epílogo de Um gosto de
cereja (Ta’m e guilass, 1997) de Abbas Kiarostami, em que, como observa Laura Mulvey
(2006) a morte do protagonista sugere a morte do próprio cinema, e seu renascimento é
operado por meio da imagem do vídeo, Tsai arquiteta em A passarela se foi uma analogia
entre o cinema e a cidade, ou o espaço instável e a imagem instável, à beira do
desaparecimento, ou talvez de um novo começo.
O filme seguinte a A passarela se foi, realizado em 2003, recebeu o título em
português e em inglês de Adeus, Dragon Inn (Goodbye, Dragon Inn). Em mandarim foi
chamado de Bu san, que por si só significa “não deixar”, “não deixou” ou “nunca
separados”, mas que é comumente usado em conjunto com bu jian para formar a
expressão “bu jian bu san”, que significa “não vamos embora até que nos encontremos”. A
outra metade dessa frase, Bu jian, foi dirigida por Hsiao Kang no mesmo ano, com o título
em inglês The Missing. Os dois filmes foram concebidos como um projeto comum e
compartilham o tema do desaparecimento. Em Bu san, um antigo cinema localizado em
Yong He, um distrito de Taipei, está condenado. O espectador do filme de Tsai
compartilha com os espectadores do cinema Fu Ho, e em particular com um jovem rapaz
japonês que se abriga da chuva no interior da sala, sua última sessão, com o clássico de
wuxia Dragon Gate Inn (Longmen kezhan), dirigido por King Hu em 1966. A primeira
frase dita por um personagem no filme de 1966, após a sua seqüência de créditos (que
pode ser vista na primeira seqüência de Adeus, Dragon Inn), contém a frase bu san para
se referir ao espírito do general Yu, decapitado pelo eunuco rival Zhao durante disputas
156
políticas travadas na China do século XV. Zhao sente a presença do espírito de Yu, que
não desapareceu (bu san), e decide matar seus filhos, em fuga desde o assassinato de seu
pai. Em Adeus, Dragon Inn Tsai brinca com a cronologia do filme de Hu, então mesmo
que o começo dos dois filmes coincida a frase bu san só aparece dezesseis minutos depois,
seguida da suspeita do jovem japonês de que o antigo teatro é assombrado por fantasmas
do passado.
Se em A passarela se foi o espaço urbano efêmero existe em paralelo às mudanças
no modo de produção do cinema, em Adeus, Dragon Inn o desaparecimento
arquitetônico da sala diz respeito às mudanças nos modos de exibição e consumo do
cinema. O Fu Ho era um dos muitos cinemas em cidades no mundo todo que durante
décadas fez parte do tecido urbano, antes de serem forçados a encerrar as atividades,
especialmente nos últimos vinte anos, incapazes de enfrentar a concorrência dos
multiplexes e dos “home theaters”. Como explica Chan, “o cinema Fu Ho representa a
época pré-vídeo, pré-multiplex, na qual os cinemas ocupavam em geral um edifício único,
com uma enorme tela para filmes Cinemascope, e com uma platéia com muitos assentos”
(Chan, 2007, p. 3)83
. O mesmo prédio havia servido como locação em Que horas são aí?,
em outra instância do que antes chamei de uma arqueologia da imagem em movimento
operando através dos vários filmes de Tsai, que registram e preservam o espaço em
desaparecimento. Neste caso particular, foi de fato um impulso urgente de documentar
um lugar específico que deu origem ao filme, pois o diretor descobriu por acaso que o
cinema estava fechando suas portas, e de um ímpeto ligou para o seu produtor, com a
idéia de alugar o prédio por seis meses e lá realizar um filme.
A escolha do filme para a última sessão, Dragon Gate Inn, não foi aleatória.
Primeiramente, o filme de Hu, realizado durante sua fase em Taiwan, pertence a um
83
“The Fu Ho Theatre represents a pre-video, pre-multiplex cinema, one that often occupies a single
building, has a huge screen for Cinemascope movies, and has a large audience sitting capacity.”
157
tempo em que um filme ainda conseguia encher um cinema gigantesco tal como o Fu Ho.
Em Adeus, Dragon Inn, Tsai reúne os dois filmes – o seu e o de Hu, separados por um
lapso de tempo de 37 anos – trazendo-os para um mesmo espaço, e a partir daí eles se
desenvolvem em um diálogo constante. Isso pode ser observado, por exemplo, em duas
seqüências seminais articuladas pelo campo/contracampo. A primeira mostra Shiang-Chyi,
que interpreta a bilheteira do cinema, abrindo uma porta abaixo da tela de projeção e
olhando para ela. Na próxima cena ela vai para detrás da tela, e seu rosto é visto em
primeiro plano, banhado por pontos de luz que atravessam a tela perfurada. Ao encarar
Chu Huei, uma mulher disfarçada de homem que vem a Dragon Inn para lutar contra os
aliados do eunuco, o vínculo entre as duas personagens femininas é evidenciado através de
uma série de cortes entre os seus rostos em close-up. Nesta sequência Chu está
enfrentando o inimigo do lado de fora da estalagem, e três planos de seu rosto estático,
filmados de diferentes ângulos, antecipam a sua decisão de atacar. Shiang-Chyi também
enfrenta uma tarefa difícil, evidente nos vários lances de escada que ela tem que subir a
despeito de sua dificuldade motora (ela tem uma deficiência física), para chegar ao
projecionista, Hsiao Kang, o objeto de seu amor.
Outro exemplo que concatena através da montagem personagens de 2003 e de
1966 ocorre no final do filme. Aqui, os dois atores Chun Shih e Miao Tien, este um dos
principais atores da obra de Tsai Ming-liang no papel de pai de Hsiao Kang, emocionam-
se com suas próprias imagens em Dragon Gate Inn, que vêm de tantos anos antes,
reanimadas pelo movimento do projetor e pela luz que o atravessa. Eles trocam um olhar,
sentados como estão em fileiras separadas, e uma série de campos/contracampos alterna
entre o espaço da platéia e o duelo na tela. A seqüência termina com um plano primeiro
de Chun Shih, cujos olhos se enchem de lágrimas. Em sua admiração de seu próprio
passado, a capacidade do filme de preservar as coisas, como aconteceu com a passarela e
com a sala de cinema, vem novamente à tona, desta vez no filme de 1966 que preservou e
158
imortalizou as versões jovens de Miao Tien e Chun Shih, mas não sem antes “matá-los”
em 24 quadros por segundo (Mulvey, 2006). Tsai comenta essa tensão entre a quietude e
o movimento, entre a vida e a morte, ao sugerir que “o filme pode transformar algo em
eterno. Ele preserva a juventude, mas também significa morrer. Tudo o que você filma
está também morrendo lentamente. Tudo o que você filma não está mais lá” (citado em
Reichert e Syngle, 2004)84
.
O paralelo entre os dois filmes também ocorre no uso de um espaço público
como o principal local onde se desenrolam os eventos. No filme de Hu esse local é a
estalagem, um tropo comum no gênero wuxia, no qual toda a ação está concentrada em
um só lugar. É dentro dos limites da pousada que heróis e vilões se encontram, e onde
todo tipo de intriga e trama acontecerá a portas fechadas, por meio de corredores e
passagens. O mesmo tipo de encontros casuais acontecem no cinema Fu Ho, também
composto de espaços fechados, bastidores escuros, longos e sinistros corredores, cortinas
e portas. Além disso, como salienta Wood, “os paralelos entre o cinema e a estalagem ...
já apareceram em uma cena anterior, quando vemos o personagem de Mitamura
buscando refúgio de uma tempestade dentro do cinema. Em Dragon Gate Inn dois
personagens também entram na estalagem buscando refúgio de uma tempestade” (2007,
p. 7)85
. A sala de cinema é, contudo, um prédio urbano, e o tipo de encontros que
promove também podem ser relacionados à atividade dos pedestres na cidade e a seu
aspecto contingente.
Esse tipo de sala antiga que prosperou até a década de 1970 geralmente ocupava
um único edifício, assim como um templo, convidando a uma experiência ritualística e ao
mesmo tempo privada e pública. Diferente da televisão, que pertence ao cotidiano, ao
84
“Film can keep something eternal. It saves the youthfulness, but it is also dying as well. Whatever you
film is slowly dying at the same time. Whatever you film is no longer there.” 85
“The parallels between the cinema and inn …have been drawn in a previous scene when we see
Mitamura’s character seeking refuge from a rainstorm in the cinema. In Dragon Gate Inn two characters
also come to the inn seeking refuge from a rainstorm.”
159
espaço “não santificado” da sala doméstica, a sala de cinema tinha uma aura, e foi definida
por Michel Foucault em Des Espaces autres (1984) como uma das instâncias de
heterotopia, um espaço que contém todos os outros espaços. Nessa heterotopia filmada
por Tsai, a contradição inerente ao cinema entre presença e ausência, entre o espaço
virtual e os corpos condenados à circulação, é exagerada por indícios de que a sala Fu Ho
é assombrada. A luz verde que permeia o longo corredor fora da sala de projeção, e que
banha uma mulher a comer sementes de abóbora (Yang Kuei-Mei) é um desses indícios,
esta cor tendo sido utilizada como uma convenção no cinema para designar as ligações
com o mundo do além, eternizada por Alfred Hitchcock em Um corpo que cai (Vertigo,
1958) 86
. A dupla presença das versões jovens e velhas de Miao Tien e Chun Shih é outra
indicação, provocando no rapaz japonês o sentimento do “estranho” ao olhar para os
atores e se perguntar se eles estão vivos ou mortos, se são reais ou irreais. Finalmente, o
diálogo estabelecido pela primeira vez no filme aos 44 minutos e 37 segundos de projeção
começa com a frase “Você sabia que esse cinema tem fantasmas?”, a palavra “fantasma”
sendo repetida três vezes.
Tanto a dimensão assombrada do cinema quanto os elementos autobiográficos
presentes em Adeus, Dragon Inn reaparecem no sonho do diretor Tsai, que ganha vida
em seu filme de 23 minutos It’s a dream (Shi meng), de 2007. Este filme, que tem uma
versão mais curta de três minutos e 19 segundos incluída no filme de episódios Cada um
com seu cinema (Chacun son cinéma, 2007), foi realizado em outro cinema abandonado,
desta vez na Malásia, terra natal do diretor. Este filme também sinaliza uma nova
dimensão nas mudanças que afetam os modos de exibição do cinema, pois encontrou
uma espaço, não nas salas de cinema, mas no museu, tendo sido inicialmente criado como
uma instalação em 2007 para a Bienal de Veneza, e depois transferido para o Museu de
86
Em Um corpo que cai, a luz de néon verde do lado de fora do apartamento de Judy a cobre assim que ela
sai do banheiro vestida como Madeleine.
160
Artes Plásticas de Taipei, como parte da exposição “Memória de uma viagem” (2010).
Significativamente, Visage, último filme de Tsai de 2009, foi uma encomenda do Museu
do Louvre na França, e também se tornou parte de sua coleção permanente. Em uma
entrevista com o Taipei Times o diretor comentou sobre o fato de o cinema estar
gradualmente encontrando novos lares, declarando que “isso soa como uma contradição,
mas os filmes precisam deixar as salas de cinema, a fim de ressuscitarem” (Buchan,
2010)87
.
Se Adeus, Dragon Inn pode ser visto como o canto do cisne das antigas grandes
salas de cinema, It’s a dream rememora a infância do diretor dentro de outra grande sala,
com assentos igualmente vermelhos, e igualmente obsoletos. Antes de entrar na instalação,
onde o filme rodado em 35 mm é projetado em formato DVD, o visitante do museu lê
um texto postado do lado de fora:
É um sonho Tsai Ming-liang
Você veio para assistir meu filme Você entrou e se sentou nos assentos vermelhos de nylon Velhos, batidos e cheios de manchas Eles vieram de um longínquo cinema fechado Arrancados, eles foram transportados até aqui Em uma cidade apagada, o cinema continua a apodrecer Aqui é onde eu realizo meu filme de 23 minutos Um sonho meu, na verdade Sonhei que eu tinha cinco anos Hsiao Kang interpretou o meu pai Minha mãe, ainda viva na época, fez o papel dela mesma. Ninguém na platéia, todos os lugares vazios Lá eu coloquei uma foto de uma avó morta, de uma família que eu não conheço
Jogando pedras e queimando incenso, pedi que ela voltasse Para interpretar a minha avó
Toda vez que ela me levava ao cinema, ela sempre me comprava algumas peras Na verdade, o cinema com que sonhei há muito foi demolido Em um lugar diferente, eu vi um cinema diferente Ele parecia estar me chamando: Filme-me! Apresse-se e venha me filmar!
88
87
“It sounds like a contradiction, but movies need to leave today’s theatres in order to be resurrected.” 88是夢
161
A última frase exprime, através de seu modo imperativo e os pontos de exclamação, um
sentimento de urgência diante do desaparecimento do cinema, e a inspiração espacial está
presente na idéia de que o próprio prédio do cinema estava chamando o diretor.89
Dentro
da sala, o público se senta em assentos desgastados vindos do cinema abandonado na
Malásia, posicionados de forma não-linear. Eles são os mesmos assentos vistos no filme,
logo existe uma forte ligação espacial entre a sala de exposições e o que está sendo
projetado na tela. Mais uma vez, o filme preservou aquilo que passou, e convida o público
a embarcar em um sonho, na memória de uma viagem pela infância do diretor e através
da sala de cinema.
A ideia para essa viagem veio com a descoberta dentro da sala de cinema da foto de
uma senhora idosa, colocada sobre um dos assentos. Seu filho explicou mais tarde para
Tsai que sua mãe adorava ir ao cinema, e que por isso ele ainda a levava lá após sua morte
(Burdeau, 2007, p. 47). A foto foi assim incorporada ao filme, e tornou-se a avó do
你決定看我的電影了。
你走進來坐在紅色尼線塑料沙發席上。
它們已經陳舊破損滿是污跡
從遠方一家歇嶪已久的老戲院拆運過來的。
那家老戲院在一個沒落的鄉鎮繼續腐爛著。
我在那裡拍了這部二十三分鐘的電影。
其實是我的夢。
夢到我五歲的模樣。
小康演我的父親。
當時還在世的母親演她自己。
無人的觀眾席上安置著一張不知誰家老太太的遺照。
上香擲杯情她也來參加演出。
演我的外婆。
她每次帶我去戲院總會給我買一串梨。
其實我夢中的戲院早就被拆掉了。
我在另一個地方遇見另一家。
它好像在對我召喚﹐拍我吧﹗趕快拍我吧﹗ 89
O diretor Tsai me contou em entrevista em Taipei (2010) que realizou seu último filme, Hudie Furen /
Madame Butterfly (2009), na estação central de ônibus de Kuala Lumpur, demolida um ano depois. Ele
brincou que as pessoas estão com medo de serem filmadas por ele, já que correm também o risco de
desaparecer. Curiosamente, o curta-metragem que filmou em São Paulo para a Mostra Internacional de
Cinema (Aquário, 2004) consistiu em uma observação do Edifício São Vito, no centro da cidade, demolido
em 2010/11.
162
diretor, que através da queima de incenso e do jogar das pedras é trazida de volta à vida
por Pearlly Chua. A atriz malaia entra na sala, toma um lugar e começa a comer peras
arranjadas em um espeto, oferecendo-as ao homem fumante na fileira de trás. Antes dessa
aparição fantasmagórica, Hsiao Kang, no papel de pai do diretor, tinha acendido uma
espécie de lampião no qual se queima o incenso, e compartilhado com a mãe do diretor
(interpretada por sua mãe real) e com um menino, interpretado pelo sobrinho de Hsiao
Kang, pedaços de durians, uma fruta nativa do sudeste asiático, e de cheiro característico.
Na trilha sonora, a voz off de Tsai começa a relatar esse sonho: “Eu sonhei com meu pai
ainda jovem...”.
A cena final do filme, que dura cerca de dez minutos, tem Hsiao Kang sentado ao
lado do menino, da mãe e da fotografia da avó. Muito lentamente, começamos a perceber
que seus corpos estão desaparecendo de dentro do cinema. Juntas, suas imagens se
tornam cada vez mais granuladas, até que desaparecem por completo, deixando os lugares
vazios. Um deles, entretanto, não desaparece, e aqui se pode remeter ao ensaio seminal
“A Ontologia da imagem fotográfica” de André Bazin, no qual ele discorre sobre o
charme dos álbuns de família:
Aquelas sombras cinzas ou sépias, fantasmagóricas e quase indecifráveis, não são mais
os tradicionais retratos de família mas sim a presença perturbadora da vida
interrompida num determinado momento de sua duração, livre de seu destino, não
pelo prestígio da arte, mas pelo poder de um processo mecânico impassível; pois a
fotografia não cria a eternidade como a arte, ela embalsama o tempo, resgatando-o
simplesmente de sua própria corrupção. (2002, p. 14)90
Assim, em It’s a Dream, desaparecem o pai, a mãe e o menino Tsai, mas fica a fotografia
da avó desconhecida, “livre de seu destino”. Esse passado persistente, embalsamado na
90
“Ces ombres grises ou sépia, fantomatiques, presque illisibles, ce ne sont plus les traditionnels portraits
de famille, c’est la présence troublante de vies arrêtées dans leur durée, libérées de leurs destin, non par les
prestiges de l’art, mais par la vertu d’une mécanique impassible; car la photographie ne crée pas, comme
l’art, de l’éternité, elle embaume le temps, elle le soustrait seulement à sa propre corruption.
163
imagem fotográfica, sobrevive ao desaparecimento dos outros corpos, assim como o
cinema é capaz de preservar os vestígios do tecido urbano em constante mutação.
NOSTALGIA, CINEFILIA, FLÂNERIE E A CIDADE
Uma característica comum entre esses três filmes é a presença de versões completas de
antigas canções chinesas das décadas de 1940, 1960 e 1970. A passarela se foi traz “Nan
Ping Wan Zhong”, cantada por Chui Ping na década de 1970, que toca sobre as imagens
finais do céu azul, como uma lembrança daquela passarela91
que não está mais lá. A letra
da música em primeira pessoa relata a história de alguém que está perdido na floresta,
procurando por outro alguém, e que ao escutar o sino da noite sente saudades de um ente
querido. Adeus, Dragon Inn traz a canção “Liu Lian”, que toca durante os créditos na
versão de Li Yao dos anos 1960. Mais uma vez a letra se refere a um sentimento de
nostalgia, falando da incapacidade de deixar para trás as memórias do passado.
Finalmente, a canção “Shi Meng Shi Zhen”, cantada por Kung Chiu Hsiao nos anos 1940,
é tocada em It’s a dream. Seu título significa “isso é um sonho ou realidade?”, e a primeira
metade do mesmo coincide com o título do filme (Shi meng).
O uso de canções antigas complementa os subtextos nostálgicos desses filmes
sobre a transformação e o desaparecimento, no momento em que os modos de produção
e exibição do cinema estão mudando inexoravelmente com o advento da tecnologia digital
e a muito discutida perda da indexicalidade e a morte da cinefilia (Willemen, 1994;
Doane, 2002). Se for possível pensar que o traço indexical da imagem fotográfica pode
ainda persistir na imagem digital, parece inevitável que a forma de cinefilia associada ao
filme em película tenda realmente a desaparecer ou a se transformar em outra coisa. Aqui,
Adeus, Dragon Inn e It’s a dream são especialmente reveladores pelo fato de articularem
91
Passarela de pedestres em chinês é Tian Qiao天桥,cuja tradução literal é “ponte celeste”.
164
elementos tais como o desaparecimento arquitetônico das salas de cinema, a transferência
para uma nova casa no museu, as mudanças no tecido urbano e na forma de consumir e
amar o cinema. Pois a cinefilia é essencialmente um fenômeno urbano, e o cinéfilo habita
as salas de cinema, bem como se movimenta entre elas, passando de uma a outra através
da cidade. Como aponta Thierry Jousse, o cinéfilo é como um flâneur, um pedestre que
passeia pela cidade e suas salas de cinema, que são por sua vez um lugar urbano de
encontros. Se esses edifícios desaparecem, os cinéfilos urbanos também tendem a
desaparecer, pois o amor ao cinema, desde o advento do VHS na década de 1980 e com
mais intensidade com o DVD, torna-se cada vez mais um assunto doméstico. Os filmes do
diretor Tsai refletem sobre essas mudanças com melancolia e beleza, unindo cinema e
cidade, presença e ausência, permanência e desaparecimento, representação e
materialidade, assim como a vida e a morte, mas também a ressurreição.
Observação: a segunda parte desse capítulo sobre Em busca da vida e 100 Flowers
Hidden Deep não foi incluída nesse relatório por ainda necessitar de algumas revisões.
165
CAPÍTULO V: SOBRE CINEMAS E JARDINS
Filmes: O mundo (Shijie, Jia Zhang-ke, 2004), Cry me a river92 (Heshang de aiqing, Jia
Zhang-ke, 2008), Antes do pôr-do-sol (Before sunset, Richard Linklater, 2004)
Cidades: Pequim, Suzhou, Paris
No primeiro capítulo foi sugerido que a qualidade itinerante do diretor Jia Zhang-ke
parecia impregnar o impulso motriz de seus personagens. Em Xiao Wu, a trajetória
narrativa se confundia com as an-danças do batedor de carteiras, que erra pela cidade de
Fenyang durante todo o filme. Em busca da vida, conforme observado no quarto capítulo,
aponta a câmera e o microfone para os migrantes internos da chamada “geração
flutuante”, que viajam de províncias distantes para a região das Três Gargantas em busca
de trabalho. Observações similares poderiam ser feitas acerca de seus outros filmes, que
lançam um olhar crítico sobre a China e suas transformações. Em sua introdução ao livro
The Urban Generation: Chinese Cinema and Society at the Turn of the Twenty-first
Century, Zhang Zhen relaciona as próprias migrações de Jia às de seus personagens
através de um prisma sociológico: “A experiência em primeira mão de Jia (oposta ao
trabalho de campo etnográfico) como um sujeito urbano migrante ... o obrigou a colocar o
‘migrante-artesão’ no centro de seu cinema. Por essa razão Jia tem sido chamado, com
admiração, de ‘diretor migrante’ (mingong daoyan)” (2007, p. 16).93
92
O nome do filme está em inglês pois não recebeu título em português. A tradução literal é “o amor do
rio”. 93
“Jia’s firsthand experience (as opposed to ethnographic ‘fieldwork’) as a migrant urban subject … have
compelled him to place the ‘migrant-artisan’ at the center stage of his cinema. As a result Jia has been
called, admiringly, the ‘migrant-worker director’ (mingong daoyan).”
166
Essa característica do diretor também parece definir a mobilidade de seu estilo
cinematográfico. Em uma demonstração irrefutável da ligação orgânica entre forma e
conteúdo, seus filmes articulam a tensão entre mobilidade e imobilidade, tempo e espaço,
velho e novo, passado e futuro, e ainda permanecem firmemente enraizados no solo da
China contemporânea. Antony Fiant articula essa questão sob a forma de um duplo
questionamento, dedicado tanto à China quanto ao próprio cinema (2009, p. 14). Esse
duplo questionamento abarca tantas questões relativas à teoria do cinema contemporâneo
que não é de estranhar o elevado nível de atenção que a obra de Jia Zhang-ke vem
recebendo nos últimos anos. Inspirando-se em seu mestre Hou Hsiao-hsien, cujo Os
garotos de Fengkuei (Feng Gui Laide Ren, 1983) recebeu citações visuais em Em busca da
vida e O mundo (versão chinesa), bem como em Robert Bresson, Vittorio De Sica,
Yasujiro Ozu, Chen Kaige, entre tantos outros, Jia parece, no entanto, ser o diretor do
momento, realizando filmes que funcionam como um diagnóstico dos nossos tempos. Ele
também é o diretor mais importante de toda uma geração a surgir na década de 1990 na
China continental, a “geração independente urbana”, assim chamada por seu
envolvimento privilegiado com o espaço urbano real e com preocupações urbanas,
trabalhando, como aponta Zhang Zhen, tanto dentro como fora do sistema de estúdios
(2007, p. 1). Seu nome também foi ligado à Sexta Geração do cinema chinês, cujos filmes
urbanos do início dos anos 1990 contrastavam com a grandiosidade épica do cinema de
paisagem da Quinta Geração, de Zhang Yimou e Chen Kaige.94
Neste capítulo, proponho uma análise dos filmes O mundo e Cry me a river a
partir do ponto de vista de suas práticas espaciais, levando a uma reflexão acerca da
impureza do cinema através de sua afinidade com a arquitetura e, mais especificamente,
94
Zhang Zhen contesta a inclusão de Jia Zhang-ke na Sexta Geração do cinema chinês: “o aparecimento
no final dos anos 1990 de Jia Zhangke e seus filmes Xiao Shan Going Home (1995), Xiao Wu (1997) e
Plataforma (2000) inaugurou uma fase nova no movimento independente que efetivamente pois fim à era
da Sexta Geração”. “The appearance in the late 1990s of Jia Zhangke and his films Xiao Shan Going Home
(1995), Xiao Wu (1997), and Platform (2000) inaugurated a different phase in the independent movement
that effectively ended the era of the Sixth Generation’ (2007, p. 15).
167
com a arquitetura de jardins chinesa. Esses dois filmes se passam em jardins ou espaços
análogos dentro das cidades, tais como o parque “O Mundo” de Pequim (O mundo) e a
cidade-jardim de Suzhou, um dos principais destinos turísticos da China, listada como
Patrimônio Mundial da Humanidade pela UNESCO (Cry me a river). Ambos promovem
uma forma de prática espacial semelhante a aquela proposta por um jardim chinês, onde
o deslocamento através do espaço cria uma sucessão de vistas e uma série de emoções no
visitante/turista/espectador, ou em outras palavras onde uma paisagem interna é definida
pelo movimento através de uma paisagem externa construída. Partindo da premissa de
que a experiência cinematográfica promove uma viagem háptica através de espaços,
procuro enxergar O mundo e Cry me a river como práticas espaciais, que partem de um
espaço real e resultam em um novo, o espaço fílmico, tecido a partir de vistas e sons de
jardins em movimento, e através do qual os personagens – e os espectadores – viajam e
sentem. Primeiramente caberá abordar O mundo sob o ponto de vista de sua organização
espacial e sua relação com dois jardins imperiais chineses, construídos durantes a dinastia
Qing. Isso leva a considerações acerca da relação entre os jardins e a História da China,
antiga e recente. Em seguida, a análise de Cry me a river é estruturada a partir da
interconexão com o filme Antes do pôr-do-sol do diretor americano Richard Linklater, e
promove a análise do deslocamento através do jardim (e através das cidades de Suzhou e
Paris) sob o ponto de vista da memória subjetiva, que emerge através desse movimento.
CINEMA, ARQUITETURA, JARDINS
Conforme observa Giuliana Bruno, o diretor e teórico russo Sergei Eisenstein já chamava
a atenção na década de 1930 para o aparente paradoxo da imobilidade do espectador do
cinema, que ao se sentar em uma sala diante da tela era submetido a diferentes fragmentos
do espaço real em movimento, filmados de diferentes ângulos e unidos na montagem.
168
Tais observações aparecem no ensaio de Eisenstein “Montagem e Arquitetura” (2010
[1938]), no qual ele estabelece um paralelo entre o espectador imóvel do cinema diante da
mobilidade do filme, e o espectador móvel da arquitetura diante da imobilidade do lugar
ou do prédio construído. Diz Eisenstein:
A pintura não foi capaz de fixar a representação total de um fenômeno em sua
visualidade multidimensional. Apenas a câmera cinematográfica resolveu o
problema de trazer isso para a superfície plana, mas seu indubitável ancestral é ... a
arquitetura. (2010, p. 60)95
Para Eisenstein, há entre o espectador do cinema e o consumidor do espaço arquitetônico
uma experiência homóloga, visto que ambos embarcam em uma viagem através de
espaços. Assim, Eisenstein parece já apontar em seu ensaio para a dimensão móvel
presente na aparente imobilidade do olhar do espectador fílmico, aproximando o cinema
da arquitetura pelo viés da viagem espacial. Uma crítica ao modelo espectatorial de
inspiração Lacaniana avant la lettre.
Falar de uma função visual dotada de movimento está em consonância com o
entendimento dinâmico de espaço. Pode-se olhar um mapa, uma representação espacial,
mas um espaço apenas passa a existir no momento em que é atravessado, praticado
(Lefebvre, 1991; De Certeau, 2007). Assim, no cinema, deve-se entender o espaço não
como uma representação estática, mas como algo móvel, em constante produção, e o
olhar do espectador como dotado de mobilidade, um olhar que viaja. A idéia da prática
espacial talvez encontre seu mais perfeito exemplo no caminhar de um indivíduo através
de um prédio, um sítio arquitetônico, um jardim, um parque, uma cidade. Eisenstein de
fato tece suas considerações a partir de caminhadas através da Acrópole em Atenas, um
sítio arquitetônico concebido para ser visto de diferentes ângulos e explorado através do
95
“Painting has remained incapable of fixing the total representation of a phenomenon in its full visual
multi-dimensionality. Only the film camera has solved the problem of doing this on a flat surface, but its
undoubted ancestor in this capability is … architecture.”
169
andar. Pode-se vislumbrar a Acrópoles à distância, mas é apenas ao percorrê-la a pé que o
indivíduo constrói sentidos. Para o diretor russo,
os gregos nos deixaram os mais perfeitos exemplos de tipos de planos, das
transições entre planos e de sua duração (por exemplo a duração de uma
impressão específica). Victor Hugo chamou as catedrais medievais de ‘livros de
pedra’. A Acrópole de Atenas também poderia ser considerada um perfeito
exemplo de um dos filmes mais antigos. (2010, p. 60)96
Essa observação de Eisenstein pode ser estendida para a arquitetura de paisagens de um
modo geral, através da qual espaços são criados de modo a serem experimentados através
do movimento, da passagem.
Giuliana Bruno nota como a partir do século XVIII a idéia do movimento tornou-
se mais diretamente associada com a emoção a partir das teorias sobre a arte da
jardinagem ocidental, e como o jardim se tornou um “lócus privilegiado nessa busca por
um espaço emotivo”:
Um teatro da memória dos prazeres sensuais, o jardim era um exterior que
colocava o espectador em contato com o espaço interior. Ao se mover através do
espaço do jardim, um constante movimento duplo conectava as topografias
externas e internas. O jardim era, portanto, um exterior transformado em interior,
mas era também a projeção de um mundo interior na geografia exterior. Em uma
mobilização sensual, o exterior da paisagem foi transformado em um mapa do
interior - a paisagem dentro de nós – assim como este mapa interno foi
culturalmente mobilizado. (2007b, p. 24-5)97
96
“The Greeks have left us the most perfect examples of shot design, change of shot and shot length (i.e.
the duration of a particular impression). Victor Hugo called the medieval cathedrals ‘books in stone’. The
Acropolis of Athens could just as well be called the perfect example of one of the most ancient films.” 97
“A memory theater of sensual pleasures, the garden was an exterior that put the spectator in touch with
inner space. As one moved through the space of the garden, a constant double movement connected
external to internal topographies. The garden was thus an outside turned into an inside, but it was also the
projection of an inner world onto the outer geography. In a sensuous mobilization, the exterior of the
landscape was transformed into an interior map – the landscape within us – as this inner map was itself
culturally mobilized.”
170
Minha intenção é analisar como os jardins clássicos chineses das Dinastias Ming e Qing
são estruturados de uma maneira que também os configura como uma experiência pré-
cinematográfica, e como a obra de Jia Zhang-ke herda essa experiência espacial específica
em seu ímpeto motriz, atravessando jardins em O mundo e Cry me a river.
Existem inúmeros tipos de jardins chineses, variando geografica e temporalmente,
mas eles compartilham algumas características básicas que serão aqui esboçadas. Os mais
antigos registros sobre técnicas paisagísticas datam da Antiguidade chinesa, época da
Dinastia Shang (1600 - 1046 aC), mas como explica Lou Qingxi foi durante as Dinastias
Qin e Han (221 aC - 220 dC) que a prática mais específica da arquitetura de jardins se
originou, consolidando-se durante as Dinastias Wei, Jin (220-420 dC) e Tang (618-907
dC). Durante a Dinastia Song (960-1279 dC) a arquitetura de jardins passou a ser
considerada como uma forma de arte, finalmente atingindo seu apogeu durante as
dinastias Ming (1368-1644) e Qing (1644-1911), aliada a importantes evoluções na arte da
pintura. Foi também durante a dinastia Ming que apareceram os primeiros tratados sobre
a teoria da jardinagem (Lou, 2003).
A arquitetura de jardins chinesa é conceitual: as montanhas, lagos, plantas e
construções - e os espaços formados entre eles - criam não somente um ambiente natural
e construído como também uma atmosfera espiritual. Os dois principais elementos da
pintura de paisagem e da arquitetura paisagística chinesas, a Montanha (Shan 山) e a Água
(Shui 水), referem-se, segundo a tradição confucionista, às características de benevolência
humana e conhecimento. Portanto, construir montanhas e lagos em um jardim é aspirar a
essas características. Diferentes plantas, tais como a flor de lótus e os pinheiros, a
ameixeira e o bambu, também estão carregados de valor simbólico e ocupam um lugar
especial em jardins chineses. Os arquitetos, então, buscam tanto o simbólico quanto o
pitoresco ao construírem lagos, montanhas, ruas, avenidas e pavilhões. Levam também em
171
conta os dois modos diferentes de apreciação de um jardim chinês: o modo estático e o
modo dinâmico (Lou, 2003, p. 125). Para o primeiro, há uma série de edifícios
estrategicamente localizados de onde é possível admirar uma parte ou todo o jardim,
permitindo ao visitante uma pausa para sentar e admirar a vista. O modo dinâmico, que é
o predominante, segue rotas que podem ser sinuosas – indo para cima e para baixo, de
um prédio a outro, da montanha para o lago, através de corredores e janelas que
emolduram a vista. Ao se deslocar pelo jardim, diferentes paisagens se desenrolam para o
visitante como em uma pintura de rolo. Laikwan Pang explica:
Assim como a experiência de leitura da pintura tradicional chinesa está
condicionada pelos movimentos dos olhos daquele que a aprecia, o movimento no
espaço é também essencial para a estética dos jardins tradicionais chineses. Um
dos princípios fundamentais dessa estética é a orquestração de imagens em
constante mutação, criada pelo sujeito que anda. (2006, p. 6)98
Esse passeio arquitetônico, que põe em movimento uma série de vistas pitorescas, é
complementado pelos sons de pássaros, pelo cheiro das flores, pelas folhas que tocam a
pele, pelos diferentes tipos de pavimento pensados a partir da produção de um prazer
tátil, todos combinados em uma sinestesia intensa, na qual o movimento do corpo e o
movimento da mente funcionam de modo imbricado.
A relação entre a arquitetura de jardins chinesa e o cinema ganha novos contornos
no cenário do primeiro cinema chinês, como explica Laikwan Pang em seu artigo
“Walking into and out of the Spectacle: China’s Earliest Film Scene” (2006). Segundo
Pang, a pesquisa de historiadores do cinema chinês revela como as mais antigas sessões de
cinema em cidades chinesas eram realizadas em uma variedade de lugares, incluindo
jardins públicos, e mais comumente no interior de casas de chá localizadas dentro de
98
“Just as the experience of reading traditional Chinese paintings is conditioned by the movements of the
viewers’ eyes, movement in space is also essential to the aesthetics of traditional Chinese gardens. A core
aesthetic principle of the Chinese garden is the orchestration of constantly changing images created by the
walking subject.”
172
jardins. Pang investiga como esse espaço público influenciou e foi influenciado pelo
cinema (2006, p. 3), e como o movimento real do sujeito que caminha foi gradualmente
substituído pelo movimento imaginário:
Como se para acompanhar a velocidade acelerada da vida capitalista, a nova
experiência do jardim teve que pegar ritmo, mas conseguiu isso ao substituir o
movimento corporal por várias formas de entretenimento visual, inclusive filmes.
Andar passou a funcionar apenas como uma ligação entre um ponto e outro; os
visitantes eram incentivados a postar-se dentro dos limites de um auditório, em vez
de caminhar ao redor do parque, para experimentar este novo sentimento de
“liberdade”. (2006, p. 6)99
As mudanças na experiência do jardim na China no início do século XX ocorriam em
consonância com outras atividades modernas, tais como as viagens de trem e a
intensificação da velocidade da vida urbana, e assim passaram a integrar uma cultura visual
aliada a um novo conceito de “movimento”. É interessante notar então como a antiga arte
da arquitetura de jardins chinesa e a nascente arte do cinema se cruzaram nos primeiros
anos do século XX, como em uma confirmação da afinidade entre o que venho
estabelecendo como uma experiência pré-cinematográfica chinesa e a imagem em
movimento. Essa afinidade entre o jardim e o cinema está presente no primeiro filme
oficial de Jia Zhang-ke, co-produzido pela Shanghai Film Studio e aprovado para
lançamento comercial na China em 2004: O mundo.
99
“As if to catch up with the accelerated speed of capitalist life, the new garden experience had to pick up
the pace, but it achieved this by replacing bodily movement with various forms of visual entertainment,
including motion pictures. Walking only functioned as a connection between one spot and another; visitors
were encouraged to station themselves within the confines of an auditorium, instead of walking around the
park, to experience this new sense of ‘freedom’.”
173
O MUNDO: JARDINS E HISTÓRIA
Jason McGrath nota que, apesar do risco de que o primeiro filme do diretor aprovado
pelo governo teria sofrido com a censura interna, “a coerência temática entre O mundo e
o trabalho ‘independente’ de Jia em grande parte exonerou o diretor da acusação de haver
comprometido a sua visão” (2007 , p. 107)100
. Deve-se notar, contudo, que o filme possui
duas versões diferentes, uma chinesa (de 100 minutos) e uma internacional (de 140
minutos). A versão mais curta, linear e eficiente de O mundo foi uma tentativa intencional,
embora sem sucesso, de alcançar um público maior na China. Os comentários a seguir
referem-se às duas versões, a não ser que estejam indicados ao contrário. O mundo é o
segundo longa-metragem de Jia totalmente rodado em digital (após Prazeres
desconhecidos) pelo seu colaborador de longa data Yu Lik-wai. O diretor relata ter levado
Yu para visitar o Parque “O Mundo” de Pequim durante a prospecção de locações, e o
efeito dessa visita nas escolhas técnicas e estéticas para o filme:
No início do projeto, levei meu diretor de fotografia Yu Lik-wai para visitar o
parque; ele nunca havia estado lá. No fim da primeira meia-hora, se tornou claro
para nós que o filme seria rodado em HD e em Scope, com uma trilha sonora
eletrônica. Quanto mais o tempo passa, mas estou convencido de que o digital é o
formato do momento. Tenho muita confiança nesse formato, é a ferramenta mais
eficaz para mostrar a realidade contemporânea. (Jia, 2005, p. 34)101
O filme, estruturado a partir de quadros com o uso de intertítulos, é complementado por
seqüências de animação flash motivadas por mensagens de texto trocadas com freqüência
100
“The thematic consistency between The World and Jia’s “independent” works has largely exonerated
the director of the charge of compromising his vision.” 101
“Au début du projet, j’ai emmené mon chef opérateur Yu Lik-wai dans le parc; il n’en avait jamais
visité. Au bout d’une demi-heure, il s’est imposé à nous que le film serait en HD et en Scope, avec de la
musique électronique. Plus ça va, plus je trouve que le numérique convient à l’époque. J’ai une grande
confiance dans ce format, c’est l’outil le plus efficace pour montrer la réalité contemporaine.”
174
pelos personagens. O diretor comenta mais uma vez a criação de um “ambiente digital”
no filme:
Formalmente, eu tentei criar um ambiente digital em todos os níveis: HD,
animação em flash, SMS, música eletrônica, etc. Do ponto de vista da narrativa
quis criar uma estrutura em rede. Em vez de seguir um personagem de uma forma
linear, decidi seguir vários personagens, navegar de um para o outro, do tempo de
um para o tempo do outro, exatamente como fazemos online. (Jia, 2005, p. 34)102
Os personagens seguidos por Jia são os trabalhadores do parque Zhao Tao (Zhao
Tao, musa do diretor desde Plataforma), seu namorado Chen Taisheng (Chen Taisheng),
Erxiao (Ji Shuai), Wei (Jing Jue), Niu (Jiang Zhongwei), Anna (Alla Chtcherbarkova),
assim como Qun (Wang Yiqun), dona de uma fábrica de roupas, e os amigos de infância
de Chen, Sanlai (Wang Hongwei) e Zhijung Chen, apelidado Erguniang, que vieram de
Fenyang a Pequim para trabalhar na construção civil. Como declarou o diretor, O mundo
se desdobra como uma teia, sugerindo uma multiplicidade de trajetórias no espaço do
parque. Além da referência explícita à Internet como uma influência formal e narrativa,
pretendo abordar a prática espacial do filme a partir do ponto de vista de sua afinidade
com a experiência do jardim, cuja multiplicidade de trajetórias também parece configurar
uma teia, formada por caminhos, avenidas, ruas e pontes. O fato de que o filme foi
rodado quase inteiramente dentro do parque “O Mundo” de Pequim (Beijing Shijie
Gongyuan 北京世界公园)– a palavra chinesa gongyuan significa tanto parque quanto
jardim público), localizado na periferia da capital e onde um grande número de migrantes
e imigrantes vive e trabalha,103
informa minha opção por essa abordagem, tanto no plano
102
“Formellement, j’ai tenté de créer une ambiance digitale à tous les niveaux: le HD, les animations flash,
les SMS, la musique électronique, etc. Du point de vue du récit, je voulais une narration en réseau. Au lieu
de suivre un personnage dans un récit linéaire, je voulais suivre une foule de personnages et naviguer de
l’un à l’autre, du temps de l’un au temps de l’autre, comme on le fait sur Internet.” 103
Outro parque similar, chamado “Janela para o Mundo” ( localizado em Shenzhen) foi também utilizado
como locação durante as filmagens de O mundo.
175
formal quanto sob o ponto de vista da História, conforme será observado no final dessa
parte do capítulo.
Que tipo de espaço é, então, o parque “O Mundo”? Um sinal de néon
vislumbrado em algum ponto do filme resume a sua promessa ousada: “Dê-nos um dia e
lhe mostraremos o mundo”. O parque é de fato uma espécie de Epcot Center, mas
enquanto o seu homólogo americano possui pavilhões de 11 países, o parque chinês
possui impressionantes 106 reproduções de monumentos famosos dos cinco continentes,
em escala reduzida para 1/3 de seu tamanho real. Lá, o turista pode passear pelo Taj
Mahal, o Big Ben, a Torre Eiffel, a Torre de Pisa, as Torres Gêmeas, bem como
diferentes jardins adornados por reproduções de esculturas famosas. A fim de ver esse
estranho cemitério de tesouros da humanidade, o visitante pode tomar um monotrilho,
incorporado por Jia em seu filme de modo a atravessar o parque de pavilhão a pavilhão.
Zhao, por exemplo, é vista dentro do monotrilho em três seqüências, viajando de país
para país e falando em seu celular. Na primeira dessas sequências, ela está vestida com um
traje indiano, o mesmo que usou no espetáculo de dança que abre o filme. A gravação de
boas-vindas do monotrilho pode ser escutado na trilha sonora, enquanto a Torre Eiffel
passa pela janela. Zhao, em seguida, atende ao telefone e diz que está a caminho da Índia,
reforçando a noção de um mundo ao seu alcance. Um plano exterior, então, revela o
monotrilho passando da esquerda para a direita, e Zhao acenando para Erxiao da janela,
seguido de um movimento de câmera para baixo que revela um grupo de seguranças
carregando bujões de água e atravessando o deserto do Saara, com as pirâmides egípcias
ao fundo. O website do parque (se bem que incorreto104
) e a frase “Veja o mundo sem sair
de Pequim” são, então, sobrepostos à imagem das pirâmides, e um corte final revela o
parque visto à distância, com um grande lago ocupando a maior parte do quadro. O nome
do diretor e o título do filme se sobrepõem a essa imagem.
104
The correct website is www.beijingworldpark.com.cn and not www.worldpark.com
176
Nessa sequência, é possível observar o tipo de organização espacial empregado por
Jia ao longo do filme: a sucessão de planos passa da perspectiva a partir do deslocamento
do monotrilho, erguido acima do solo, para a perspectiva de Erxiao e dos outros
trabalhadores que atravessam o deserto ao nível do chão, e finalmente para um plano
geral do parque. O monotrilho, que como explica a gravação circunda o parque em
quinze minutos, é visto diversas outras vezes em planos gerais, viajando a distância de país
a país. A presença desse dispositivo como um caminho de orientação através do
parque/jardim, complementado pelas gravações que reforçam a natureza turística do
passeio, remete à estrutura peculiar do “corredor”, presente em diversos jardins chineses.
Há vários tipos de corredores – também conhecidos por “passeios”, tais como o corredor
coberto, a galeria em zig-zag, o corredor interno e externo, o corredor-escada e o corredor
semi-aberto. Sua função principal é interligar os edifícios do jardim, separando ambientes
e acentuando o cenário ao proporcionar diferentes perspectivas para o visitante. O mais
longo corredor em um jardim chinês pode ser encontrado no Palácio de Verão (Yihe
Yuan, 颐和园), um dos maiores exemplos da arquitetura chinesa de jardins, localizado
nos arredores de Pequim. Sua construção começou em 1750 por ordem do Imperador
Qianlong (1735-1799), um grande patrono das artes, e continuou durante toda a dinastia
Qing, sendo reavivado depois de sua destruição pelas tropas anglo-francesas no século
XIX pela Imperatriz Cixi. O jardim ocupa mais de 700 hectares, dos quais pelo menos
500 estão debaixo d'água, e há cerca de 3000 edifícios cuidadosamente distribuídos por
toda a sua extensão. O Palácio de Verão é um espaço aberto que oferece uma série de
possíveis trajetórias através de praças, pavilhões, templos, montanhas e pontes. A Torre da
Fragrância de Buda, por exemplo, está posicionada no ponto mais alto do jardim, de
modo a oferecer uma visão privilegiada de toda a sua impressionante extensão.
177
De modo a organizar e guiar a multiplicidade de trajetórias possíveis dentro do
jardim, o Palácio de Verão é entrecortado por um extraordinário “corredor coberto” de
728 metros de comprimento (Cháng Láng,长廊), que lembra um gigantesco caramanchão,
criando avenidas de passagem que interligam os diferentes pavilhões, prédios e templos.
Na sua parte central o corredor se espraia em quatro pavilhões octogonais, que
simbolizam as quatro estações do ano, incorporando uma dimensão temporal a essa
estrutura arquitetônica. Aqui, o espectador móvel da arquitetura aproxima-se do
espectador imóvel do cinema ao tornar-se também um viajante, percorrendo o espaço que
se dá a ver. Mas o longo corredor do Palácio de Verão se presta ainda mais ao paralelo
com a experiência cinematográfica, visto que suas vigas e seu teto são adornados de ponta
a ponta por mais de 14.000 imagens, pintadas no interior de semicírculos e em diferentes
níveis, o que reforça a impressão de profundidade. Algumas delas são reproduções de
paisagens do sul da China, pintadas por um grupo de artistas que viajaram pelo país sob
encomenda do Imperador Qianlong, com o intuito de trazer à Pequim vistas de lugares
distantes. Outras são imagens de flores, peixes e aves. Por fim, há uma série de lendas,
contos populares e romances clássicos chineses que se dão a ler ao visitante que atravessa
o corredor. A imobilidade de cada um dos quadros ganha mobilidade através do
movimento do “espectador”, e assim como no cinema é a soma de imagens fixas que
anima a narrativa. Mas a montagem aqui não se dá no movimento do corte e do projetor,
e sim através do movimento do próprio corpo, que segue os quadros e aos poucos
constrói uma ou várias histórias.
No parque “O Mundo”, o monotrilho funciona como uma espécie de corredor,
guiando os visitantes através do espaço, fazendo a ligação entre os pavilhões e abrindo
uma miríade de pontos de vista. Jia transforma esse dispositivo em parte integrante de sua
prática espacial, contribuindo para a profusão de pontos de vista empregada no filme.
178
Outro dispositivo explorado pelo diretor em três seqüências é o elevador dentro da Torre
Eiffel chinesa. Na primeira delas, Chen, um segurança de plantão, toma o elevador para o
piso superior. A seqüência explora o ponto de vista vantajoso oferecido pela torre ao
passar de Chen para uma panorâmica do parque visto de cima da torre, e lá ficar por
alguns segundos. Dentro do elevador outra gravação informa a altura exata da Torre: 108
metros. Em uma seqüência posterior Zhao pega o mesmo elevador, onde a ubíqua
gravação sugere: “Esperamos que esta visão panorâmica possa aumentar o seu
conhecimento do mundo”. Além de subir na torre e viajar no monotrilho, o diretor com
frequência desce ao nível do chão para seguir grupos de visitantes que caminham, tiram
fotos e desfrutam esse mundo um pouco fora de escala, além dos próprios funcionários
do parque. Assim, Jia alterna durante todo o filme entre planos vistos da altura do chão
para pontos de vista vantajosos, entre planos estáticos e planos em movimento, assumindo
ao mesmo tempo as posições de voyeur e voyageur em relação ao espaço.
Além do monotrilho, outros veículos em movimento, tais como carros e ônibus,
são empregados por Jia a fim de desvelar o parque a partir de diferentes pontos de vista. A
profusão de veículos em O mundo está diretamente relacionada a um dos principais
temas do filme: a dicotomia entre a mobilidade e a imobilidade, simbolizada pelo desejo
de conter o mundo em um só espaço, e pelo sonho oposto de atravessar fronteiras. Há
referências recorrentes a passaportes no filme, mas enquanto alguns possuem um e
conseguem viajar para o exterior (o ex-namorado de Zhao pega um trem para a Mongólia,
o pedido de visto francês de Qun é aprovado, e Anna cumpre seu sonho de ir para a Ulan
Bator), outros nunca viram um passaporte em todas as suas vidas. Logo, não há presença
mais simbólica no filme do que a do avião, que aparece em duas seqüências cruciais. Na
primeira delas, Zhao, vestida como uma aeromoça, beija Chen dentro de um avião
estático, uma das atrações do parque que visa, como explica mais uma vez a gravação,
reproduzir a experiência e a “profunda beleza das viagens aéreas”. A aeronave, que “antes
179
de se aposentar ligou a China ao resto do mundo por um longo período de tempo”, foi
preservada na sua aparência original, estando agora firmemente ancorada no solo. O
parque, portanto, não apenas contém o mundo, como também reproduz a experiência da
mobilidade, tornando desnecessária a viagem real. O uso de veículos imóveis é recorrente
no cinema de Jia, o que Michael Berry chama de uma “estratégia de estagnação” (2009, p.
116)105
. Em Prazeres desconhecidos, por exemplo, Qiaoqiao (Zhao Tao) encontra pela
primeira vez Xiao Ji (Wu Qiong) dentro de um veículo quebrado, estacionado em uma
rua movimentada. Curiosamente, o avião no parque “O Mundo” também remete a outros
veículos parados, tais como um deslumbrante barco de mármore estacionado no lago do
Palácio de Verão, e o avião visto na cidade de Snizhne em Import/export. A
incongruência da manutenção de um avião defunto, incapaz de voar, aparece nesses dois
filmes como o mais perfeito signo visual da dicotomia entre a mobilidade e a imobilidade
que permeia a vida de seus personagens.
Essa tensão também se faz sentir na segunda seqüência do filme envolvendo um
avião, desta vez um que voa. Zhao e Erguniang encontram-se em um vasto canteiro de
obras, no topo de um arranha-céu inacabado, uma espécie de jardim de concreto armado
e cabos de ferro. Em um dado momento um avião cruza o céu, e eles trocam o seguinte
diálogo:
Zhao: - Quem será que voa em aviões?
Erguniang: - Eu não conheço ninguém que tenha estado em um avião.
Zhang Yingjin relaciona o motivo recorrente do avião aos desejos “dos trabalhadores
migrantes e sua liberdade imaginada” (2010, p. 88). Esse desejo de ir além das fronteiras
da China pode ser visto como um sintoma da abertura sem precedentes do país em
105
“a strategy of stagnation.”
180
direção ao resto do mundo, no contexto das reformas econômicas que se iniciaram com a
Era das Reformas de Deng Xiaoping (Gaige Kaifang, 1978-1992). Os efeitos da orientação
da China para a economia de mercado foram sentidos com intensidade nos espaços
urbanos do país, e o trabalho de Jia, como visto no capítulo anterior, é movido por um
desejo urgente de filmar o desaparecimento, e assim registrar e preservar – através da
capacidade de gravação do cinema – uma paisagem efêmera.
A existência de um parque como “O Mundo” em Pequim, no entanto, aponta
para o passado da China como um Império milenar habituado a construir muralhas,
valorizando seu isolamento do resto do mundo no lugar da atitude expansionista por trás
de outras forças imperiais na História. Um testamento desse traço definidor do Império
Chinês, extraordinariamente articulado por Jia em seu filme, é um outro jardim da
Dinastia Qing, Yuan Ming Yuan (圆明园), também conhecido como o Antigo Palácio de
Verão ou o “jardim dos jardins”, que foi queimado pelas forças anglo-francesas em 1860,
durante o Segunda Guerra do Ópio. Esse jardim, que levou Victor Hugo a escrever
“mesmo todos os tesouros de todas as nossas catedrais não se comparam a este museu
suntuoso e magnífico do Oriente” (1861) 106
, reunia as características arquitetônicas das
etnias Han, Mongol e Tibetana, além de reproduzir paisagens de diferentes áreas do país.
Dentro do Yuan Ming Yuan, que servia de residência oficial dos imperadores da dinastia
Qing fora da Cidade Proibida, o visitante podia admirar as terras pantanosas do sul da
China, a paisagem montanhosa do noroeste e as planícies do norte, todas em um mesmo
espaço. O jardim era formado por mais de 150 paisagens diferentes, pequenos jardins
dentro de um jardim, como um museu da arte da jardinagem. O Yuan Ming Yuan
também referenciava a arquitetura ocidental, incluindo um grupo de edifícios de estilo
europeu em uma das colinas, desenhados pelos jesuítas Giuseppe Castiglione e Michel
106
Victor Hugo nunca esteve no Yuan Ming Yuan, mas a incursão das tropas de seu país na China e a
subsequente destruição do jardim o impeliu a escrever essa carta de protesto.
181
Benoist por ordem do Imperador Qianlong. Tal jardim feito de jardins, reproduzindo
diferentes partes do mundo, pode ser adequadamente descrito como uma heterotopia,
definida por Michel Foucault como um espaço que contém todos os outros espaços.
Foucault de fato inclui todos os jardins – bem como o teatro e o cinema – como instâncias
de heterotopia, agrupados sobre o terceiro princípio da definição em seu ensaio Des
espaces autres:
Terceiro princípio. A heterotopia consegue sobrepor, num só espaço real, vários
espaços, vários sítios que por si só seriam incompatíveis. Assim é o que acontece
num teatro, no retângulo do palco, em que uma série de lugares se sucedem, um
atrás do outro, um estranho ao outro; assim é o que acontece no cinema, essa
divisão retangular tão peculiar, no fundo da qual, numa tela bidimensional, se
podem ver projeções de espaços tridimensionais. Mas talvez o exemplo mais
antigo deste tipo de heterotopia, destes espaços contraditórios, seja o do jardim.
Devemos ter em conta que, no Oriente, o jardim era uma impressionante criação
de tradições milenares, e que assumia significados profundos e sobrepostos. Na
tradição persa, o jardim era um espaço sagrado que reiterava nos seus quatro
cantos os quatro cantos do mundo, com um espaço supra-sagrado no centro, um
umbigo do mundo (ocupado pela fonte de água) . Toda a vegetação deveria
encontrar-se ali reunida, formando como que um microcosmo. ... O jardim é a
menor parcela do mundo e é também a totalidade do mundo; tem sido uma
espécie de heterotopia feliz e universalizante desde os princípios da antiguidade (os
nossos modernos jardins zoológicos partem desta matriz). (1984, pp. 25-6)107
Como sugere Foucault, o jardim é um dos exemplos mais antigos de heterotopia, em seu
desejo de conter vários espaços geográficos e mentais. Ademais, o jardim ocupa um
espaço híbrido, que pode ser visto como uma ponte entre a cidade e o campo, e entre o
107
“Troisième principe. L'hétérotopie a le pouvoir de juxtaposer en un seul lieu réel plusieurs espaces,
plusieurs emplacements qui sont en eux-mêmes incompatibles. C'est ainsi que le théâre fait succéder sur le
rectangle de la scène toute une série de lieux qui sont étrangers les uns aux autres; c'est ainsi que le cinéma
est une très curieuse salle rectangulaire, au fond de laquelle, sur un écran à deux dimensions, on voit se
projeter un espace à trois dimensions; mais peut-être est-ce que l'exemple le plus ancien de ces
hétérotopies, en forme d'emplacements contradictoires, l'exemple le plus ancien, c'est peut-être le jardin. Il
ne faut oublier que le jardin, étonnante création maintenant millénaire, avait en Orient des significations
très profondes et comme superposées. Le jardin traditionnel des persans était un espace sacré qui devait
réunir à l'intérieur de son rectangle quatre parties représentant les quatre parties du monde, avec un espace
plus sacré encore que les autres qui était comme l'ombilic, le nombril du monde en son milieu, (c'est là
qu'étaient la vasque et le jet d'eau); et toute la végétation du jardin devait se répartir dans cet espace, dans
cette sorte de microcosme. ... Le jardin, c'est la plus petite parcelle du monde et puis c'est la totalité du
monde. Le jardin, c'est, depuis le fond de l'Antiquité, une sorte d'hétérotopie heureuse et universalisante
(de là nos jardins zoologiques).”
182
natural e o artificial. O jardim funciona também como um espaço ao mesmo tempo
público e privado, onde é possível ver e ser visto, e ao mesmo tempo se esconder ou se
perder. No contexto específico dos jardins imperiais chineses, sua natureza heterotópica
aparece igualmente em seus usos múltiplos: era lá que os governantes recebiam seus
convidados, faziam reuniões políticas, comiam, escreviam poesia, descansavam,
caminhavam, se casavam ou rezavam.
Se todos os jardins contêm uma dimensão de um desejo heterotópico, seria justo
dizer que o Yuan Ming Yuan foi construído a partir de um exagero desse desejo. Assim
como seu contraponto contemporâneo “O Mundo”, o antigo Palácio de Verão trazia o
mundo para a China – e o resto da China para Pequim, a capital do País do Centro (中國
zhong guo), ao invés de ir para fora para ver ou conquistar o mundo. Nesse contexto, a
Mongólia, esmagada entre a China e a Rússia, adquire um significado especial diante da
Grande Muralha construída entre os dois países pelos chineses, de modo a conter a
invasão de povos nômades do norte. Em O mundo, o ex-namorado de Zhao toma um
trem para a Mongólia, e a russa Anna consegue embarcar em um avião para Ulan Bator.
Mas na versão chinesa do filme a cidade parece mais inacessível, já que Anna não é vista
dentro do avião, seu futuro permanecendo incerto. Ulan Bator existe apenas em um
subtítulo, na previsão do tempo vista na televisão, e em uma canção. O intertítulo – Noite
de Ulan Bator – antecipa a canção de mesmo nome e aparece de forma significativa no
final de uma seqüência em que os trabalhadores do parque brincam com um par de
binóculos: “O Niu não parece o Colombo?”, diz sua namorada Wei, e o grupo então
corre para admirar a cidade à noite a partir de um terraço, aos gritos de “vamos escalar até
o topo para ver o novo mundo!”. Zhao é então vista sozinha, usando um chapéu russo
(que lhe fora ofertado por Anna), observando Pequim através dos binóculos, mas após um
movimento panorâmico da câmera as palavras “Noite de Ulan Bator” aparecem
183
sobrepostas à imagem da cidade, como se os binóculos de Zhao pudessem enxergar até a
Mongólia, suplantando a Grande Muralha. “Noite de Ulan Bator” é na realidade uma
canção tradicional mongol, e aparece em dois momentos do filme. O primeiro mostra
Anna e Zhao no restaurante do parque. As duas não podem se entender, visto que Zhao
não fala russo e Anna não fala chinês. Assim, Anna decide cantar para Zhao uma canção,
“Noite de Ulan Bator”, revelando seu desejo de partir para a capital mongol em busca de
sua irmã. Anna chegara à China para trabalhar no parque, e na versão internacional do
filme seu passaporte é confiscado, assim como o de outros colegas russos, pelo “agente”
que para lá os levou. Anna acaba largando o emprego no parque e se prostitui para
angariar fundos, recuperar seu passaporte e partir para Ulan Bator. A canção que ela canta
para Zhao reaparece de modo não-diegético em uma outra sequência, na qual as amigas
viajam em um veículo aberto através do parque. Mas se no filme internacional Jia se
decidiu pela versão instrumental dessa canção mongol, no filme chinês ele escolheu a
versão cantada, não em mongol, mas sim em mandarim.
A tradução para o mandarim de uma música mongol parece confirmar o hábito de
transformar o estrangeiro em chinês, expresso no desejo de trazer o mundo para a China
através da cópia de monumentos e atrações turísticas, bem como de roupas e acessórios,
como visto na fábrica de Qun, especializada em falsificar grifes. Um dos triunfos de O
mundo é, portanto, introduzir uma dimensão histórica à questão contemporânea da
globalização e da mobilidade e imobilidade que permeia a vida dos personagens, num
momento em que a China das grandes muralhas e das cidades proibidas se abre para o
mundo. E isso é atingido através de uma sofisticada organização espacial caracterizada pela
afinidade com a arquitetura de jardins, simbolizada pelos jardins imperiais Yihe Yuan e
Yuan Ming Yuan, e pelo seu equivalente contemporâneo, o parque “O Mundo” de
Pequim.
184
CRY ME A RIVER E ANTES DO PÔR-DO-SOL: JARDINS E MEMÓRIA
Se em O mundo Jia propõe um diagnóstico criterioso das reformas contemporâneas da
China e de seu passado imperial, em Cry me a river, sua próxima experiência
cinematográfica inspirada pelo jardim, ele introduz a dimensão da memória como um
fenômeno tanto espacial quanto temporal. Em Public Intimacy: Architecture and the
Visual Arts, Giuliana Bruno refere-se ao cinema como uma “arte da memória”:
No seu teatro da memória, o espectador-passageiro, enviado em uma jornada
arquitetônica, infinitamente reconstitui os itinerários de um discurso definido
geograficamente, que localiza a memória em um lugar e lê as memórias como
lugares. Como um arte arquitetônica da memória, o site-seeing fílmico ...
configura-se como uma arte móvel do mapeamento: um mapeamento emocional.
(2007b, pp. 23-4)108
A citação de Bruno ajuda a elucidar um dos principais aspectos do média-metragem de Jia
Zhang-ke. Assistido por elementos da arquitetura de jardins, Cry me a river desenha uma
cartografia emocional da pitoresca e turística cidade de Suzhou, através do que Bruno
chamou de site-seeing fílmico. É lá que os velhos amigos Ma Qiang (Guo Xiaodong),
Zhou Qi (Zhao Tao), Xiaonian Tang (Wang Hongwei) e Bai Yu (Hao Lei) se reúnem
para um jantar em honra de seu antigo professor, e relembram os velhos tempos.
Originalmente inspirado no clássico de Fei Um Primavera numa pequena cidade
(Xiaocheng zhi chun, 1948), no qual antigos amantes se reencontram depois de anos de
separação, Cry me a river gira em torno de dois casais, agora afastados e levando vidas
separadas com novos parceiros, e que se reencontram dez anos depois. O deslocamento
108
“In its memory theater, the spectator-passenger, sent on an architectural journey, endlessly retraces the
itineraries of a geographically localized discourse that sets memory in place and reads memories as places.
As this architectural art of memory, filmic site-seeing … embodies a particular mobile art of mapping: an
emotional mapping.”
185
pela cidade-jardim de Suzhou evoca a memória de tempos passados, ainda viva nos quatro
amigos.
O filme tem seis sequências principais: na primeira, Ma Qiang e Tang Xiaonian
jogam basquete diante do olhar atento de Zhou Qi e Bai Yu. Os quatro amigos então são
vistos dentro de um apartamento, possivelmente o de Ma Qiang, pois ele ainda vive em
Suzhou. Eles verificam sua visão com a ajuda de um pôster de oculista pendurado na
parede, e então cada “casal” é visto separadamente. Tang viajou para Suzhou de Nanjing,
e Bai – numa demonstração de sua familiaridade com Tang – faz um comentário sobre a
duração da viagem. “Você ainda se lembra disso?”, diz Tang a Bai, que responde “Eu
tenho uma boa memória”, numa antecipação do tema principal do filme.
A terceira sequência se inicia com um plano dos quatro amigos caminhando à
beira de um dos canais da cidade, a câmera posicionada em um barco que se desloca com
eles, e o som da água corrente se fundindo a uma música tradicional chinesa, tocada à
distância. Em seguida três planos dão conta da cena do jantar: o grupo é visto pela
primeira vez dentro de um pavilhão do jardim construído sobre um lago, em uma imagem
emoldurada pelo que parece ser uma pequena janela de vidro, que se abre para a mesa de
jantar. Lá todos se sentam com o antigo professor e outros convivas, e o plano-sequência
de três minutos dá conta das apresentações, dos brindes e das primeiras recordações. A
câmera – posicionada atrás da abertura na parede e mantendo-se estática durante toda a
duração do plano, revela um intrincado esquema de molduras que recortam o quadro do
filme: em primeiro plano, os vidros que formam a janela deixam entrever partes da cena e
refletem outras, criando nas bordas da imagem um complexo jogo de reflexos. Ao fundo,
uma porta se abre para o pavilhão, criando por sua vez uma efeito de mise-en-abîme. A
água do lago e as cortinas de seda complementam um ambiente que parece convidar
recordações. As próximas duas imagens da cena do jantar são tomadas de fora do
pavilhão, e Jia mais uma vez mais integra essa estrutura da arquitetura paisagística em seu
186
estilo cinematográfico. O primeiro plano mostra o pavilhão e os convidados do jantar
entrevistos através das janelas. A câmera se move da esquerda para a direita e revela dois
cantores de ópera em roupas tradicionais, que se apresentam na plataforma sobre o lago.
À distância, a imagem de carros e caminhões passando funciona como um indício e um
lembrete de que os jardins são, essencialmente, um espaço urbano, localizado dentro ou
nos arredores das cidades. Um terceiro plano, então, revela um panorama completo, o
pavilhão enfeitado com luzes, os músicos, os cantores e todos os comensais visíveis, com a
arquitetura intricada do telhado do pavilhão esculpindo o céu noturno e o quadro do
filme.
A quarta seqüência mostra os amigos indo para uma escola (a sua antiga escola? a
escola onde Ma Qiang trabalha?) para jogar mah-jong após o jantar, e a conversa gira em
torno do tempo decorrido, de como envelheceram e das diferenças entre gerações. O
filme então introduz a seqüência final, em que o movimento pela cidade em um barco e
pelo jardim desengatilha a paisagem dentro dos próprios personagens. Os quatro
primeiros planos mostram o grupo a viajar em um barco que desce o canal, até que a
sequência se divide em duas, Ma e Zhou permanecendo no barco e Tang e Bai se
dirigindo a um jardim. Dentro do barco Ma confessa a Zhou: “Eu estou com você todos
os dias. Nos dez anos desde que nos formamos é com você que eu sonho”. No jardim,
Tang e Bai descem uma colina em direção ao lago, e sentam-se dentro de um outro
pavilhão, cuja qualidade de prédio ornamental que se abre para a paisagem e enquadra a
vista é mais uma vez usada por Jia como um meio de re-enquadrar de seus personagens.
Os dois conversam de forma íntima sobre seus problemas conjugais, e em seguida um
último plano revela os quatro amigos mais uma vez dentro do barco, descendo o rio.
“Love Song 1990” do cantor pop taiwanês Luo Da You toca sobre os créditos.
Cry me a river coloca em movimento uma viagem espacial através de uma cidade-
jardim, que funciona como uma evocação da memória. O elemento temporal está contido
187
no movimento da água que ocupa as ruas de Suzhou, no que pode ser entendido como
uma referência à idéia confuciana de tempo, fluindo para longe como as águas do rio. No
entanto, é a experiência do deslocamento através do espaço que parece carregada de
memórias e emoções. A matriz cinematográfica da intersecção entre cinema, jardim e
memória é O ano passado em Marienbad (L’Année dernière à Marienbad), dirigido por
Alain Resnais em 1961. Trata-se da segunda colaboração de Resnais com um escritor
representante do Nouveau Roman na França da década de 1950, Alain Robbe-Grillet (sua
primeira colaboração havia sido com Marguerite Duras em Hiroshima meu amor,
conforme observado no terceiro capítulo). No filme de 1961, Resnais transforma o
castelo, no qual uma mulher e dois homens se encontram ou se reencontram, em um
labirinto de planos que se movem por entre os corredores e salas, configurando um
espaço que empresta sua fragmentação ou desorientação do espaço subjetivo e mental, no
modo da vanguarda cinematográfica impressionista francesa. Giuliana Bruno chamou O
ano passado... de “uma exploração arquitetural da memória, talvez sustentada como um
espaço compartilhado entre duas pessoas” (2007, p. 39).109
Essa exploração arquitetônica
se estende para os jardins de um castelo, onde um homem diz ter encontrado uma mulher
no ano anterior. Esse jardim geométrico, no estilo francês, aparece no filme impregnado
da natureza incerta da memória, real ou imaginário, no presente ou no passado, no qual as
esculturas se confundem com os corpos, circundados pela câmera.
Já os jardins de Cry me a river aparecem dentro de uma chave realista, bem
diferente do filme fundador de Resnais, e não incorporam formalmente o caráter
fragmentário da memória. Mas o paralelo interessa aqui pela aproximação entre esses três
elementos, cinema, jardim e memória, ligados pelo deslocamento através do espaço real e
virtual que engendra um deslocamento emocional, impulsionado, nos dois casos, por um
reencontro (ou encontro) de antigos (ou novos) amantes. Outro filme ao qual Cry me a
109
“an architectural exploration of a memory, perhaps held as a shared space between two people.”
188
river se assemelha em sua produção espacial é Antes do pôr-do-sol (Before sunset, 2004)
de Richard Linklater, realizado nove anos depois de Antes do amanhecer (Before sunrise,
1995) com os mesmos dois atores, Ethan Hawke (Jesse) e Julie Delpy (Céline). O filme,
que também retrata o encontro de ex-amantes após nove anos de separação, está repleto
de referências à memória como uma condição espacial, contida no presente. Jesse, em
Paris para o lançamento de seu romance – no qual relata seu encontro com Céline em um
trem para Viena – explica aos presentes que seu próximo livro será sobre um homem,
infeliz no casamento, que é transportado de volta ao passado pela visão de sua filha de
cinco anos dançando em cima da mesa de jantar. Involuntariamente, ele se lembra de
quando tinha 16 anos e viu sua namorada da escola dançando em cima do carro ao som
da mesma música. O autor faz então um comentário crucial: “Ele sabe que não está se
lembrando dessa dança, ele está lá em ambos os momentos, simultaneamente”. A
memória torna-se assim uma condição presente, independente do passado e, portanto, um
fenômeno tanto espacial quanto temporal.
Jesse então vê Céline dentro da livraria, e os dois passam o resto do filme andando
pelas ruas de Paris, em outra instância de site-seeing fílmico a operar como um
mapeamento emocional. “Vamos por este caminho através do jardim, é muito agradável”,
diz ela, em um convite para uma viagem através do espaço – um jardim parisiense – que
irá despertar uma memória. O passeio pelo jardim marca o momento em que os dois
começarão a falar de seu passado. No filme anterior, os dois jovens, ele um americano
viajando de mochila pela Europa, e ela uma francesa voltando da Hungria para Paris, se
encontram por acaso dentro de um trem pouco antes de chegar a Viena. Os dois decidem
então passar um dia juntos visitando a cidade, e no percurso se apaixonam. Na manhã
seguinte, decidem não trocar telefone ou endereço mas marcam um encontro dali a seis
meses, na estação de trem da cidade. O filme acaba em uma nota de dúvida, e, nove anos
depois, Antes do pôr-do-sol responde a algumas dessas questões, ao mesmo tempo em
189
que lança outras. Descobre-se que ela não foi ao encontro marcado, mas ele sim. Que ele
está casado com filhos, mas infeliz. Que ela morou em Nova York na mesma época que
ele, mas nunca se encontraram. E que os dois continuam a viver com a memória de
Viena, que tem uma magnitude em suas vidas maior do que eles próprios gostariam de
admitir. O deslocamento através de Paris, então, funciona como o movimento que vai
trazer à tona a memória, evidente na fala de Céline a Jesse enquanto caminham pelo
jardim: “A memória é uma coisa maravilhosa se você não tiver que lidar com o passado”.
Na realidade, lidar com o passado nada mais é do que a condição presente de qualquer
memória. O casal passa do jardim para um passeio de barco, desta vez subindo o rio Sena,
prolongando o deslocamento no espaço e o lento emergir das lembranças.
Nesses exemplos do que pode ser chamado de psicogeografia fílmica, a arte do
cinema revela sua impureza através de seu parentesco próximo com a arquitetura, e nos
casos específicos de O mundo e Cry me a river com a arte da arquitetura de jardins
chinesa. Ao explorar essa impureza, Jia pratica um remapeamento de Suzhou, Pequim e
mesmo do “Mundo” todo a partir do ponto de vista das lembranças e emoções de seus
personagens, que atravessam e contemplam um espaço real, re-trabalhado no espaço
fílmico. Acredito que o foco nessa instância culturalmente específica de impureza pode ser
útil para a compreensão desses filmes a partir de uma perspectiva histórica, espacial e
memorial. Além disso, a aproximação estabelecida entre Cry me a river e Antes do pôr-
do-sol, entre Suzhou e Paris, demonstra mais uma vez como as trajetórias cinematográficas
e urbanas se comunicam através de interconexões ao mesmo tempo inesperadas e
esclarecedoras, enriquecendo o processo de análise e o entendimento da dimensão
espacial dos filmes e de seus jardins.
190
APÊNDICE:
ENTREVISTA COM TSAI MING-LIANG
Por Cecília Antakly de Mello
Taipei, 01 de maio de 2010
C: Seria correto dizer que o cinema é uma arte do espaço? Para você, o que é o cinema?
Tsai: Você me pergunta o que é o cinema? Essa é uma pergunta muito difícil de
responder, e preciso pensar um pouco antes. O cinema é uma arte única e ao mesmo
tempo uma arte que se relaciona com outras artes. O espaço do cinema é, para mim, algo
muito particular. Ele pode ser realista, mas ao mesmo tempo não-realista, e por vezes
surrealista. Eu sinto que o espaço recriado para o cinema nunca é o espaço original. Ele
pertence ao espaço do cinema. Vamos supor que você realize um filme em película, se
você não tiver as luzes certas, a iluminação correta, não poderá esculpir o espaço, ele
ficará plano, achatado. Se você souber utilizar as técnicas de iluminação, o espaço se torna
tridimensional, ele passa a existir a partir da luz e do tratamento que você confere à luz.
Assim, o espaço cinematográfico nasce no momento em que a luz incide no filme, e
depois através da revelação do filme. Ele já nasce em quadros, dividido, fragmentado. Mas
é a luz natural que atravessa o filme que faz nascer um sentimento do espaço. Ou
podemos usar a luz artificial, mas o espaço sempre precisa de luz, só a luz pode revelar
um espaço. Logo, eu acredito que a visão do diretor ou do artista passa necessariamente
pelo sentimento de esculpir um espaço através da luz. Isso significa partir de um espaço
original e esculpi-lo, fazer com que o filme construa um novo espaço. Na verdade os olhos
do artista vêem um espaço, mas ele precisa usar a luz para chegar nele. Por isso eu não
gosto de ver o cinema de hoje. Porque a luz do cinema de hoje e muito plana, não há uma
191
criação do sentimento do espaço. É um cinema que só se preocupa com a narrativa, com
a trama. Não há porque gostar disso. Nós na verdade gostamos mesmo do elemento de
pintura que existe em um filme, da imagem desse novo espaço, da sua estética. Assim, o
cinema para mim não funciona a partir das palavras, mas sim através de noções de
escultura e pintura. É fundamental pensar no cinema a partir dessa inter-relação com a
pintura e a escultura, trazer esses elementos para dentro do filme, no lugar das palavras.
Por isso gosto muito de filmes silenciosos, tais como os do Expressionismo alemão, pois lá
é possível observar claramente a criação de um espaço cinematográfico, que foi esculpido
pela luz.
C: De que maneira o espaço efêmero da cidade é importante para você? Você se sente
inspirado pela cidade na mesma medida em que se sente inspirado por corpos?
Tsai: Claro que sim, a cidade é fundamental. Nós vivemos dentro da cidade, e através da
passagem do tempo a cidade muda. Nós mudamos e a cidade também, e há sempre
tempos diferentes que convivem no mesmo espaço. Essa mudança, esse acúmulo do
tempo, talvez se manifeste de dois modos, que são ambos a marca do tempo. Por
exemplo, um tipo de marca do tempo aparece com as novas construções que vão se
acumulando sobre as velhas, um muro que é construído, uma extensão, uma reforma, que
passa por cima do velho. A outra marca aparece através da demolição de um prédio e a
construção de um novo, uma nova casa por exemplo. Ambas as marcas do tempo se
refletem através de uma mudança de aparência. O sentimento de cada pessoa é
inseparável do ambiente em que ela vive, isso não pode ser dissociado. Na verdade nós às
vezes somos muito contraditórios, nos entusiasmamos com o novo e às vezes lembramos
ou sentimos falta de algo antigo, que já passou. Os sentimentos são feitos disso. Por isso,
eu acredito que o espaço contém dentro dele o tempo. Logo, quando eu faço um filme eu
aproveito a aparência da cidade como reflexo do meu sentimento. Ou eu poderia dizer
192
que aproveito o espaço-tempo da cidade para refletir meu sentimento. É importante
mostrar o ambiente, mas também é preciso ir além e mostrar uma sensação de espaço-
tempo. Por isso quando eu filmo, todas as cenas são em lugares da cidade que eu
atravesso/passo. Depois eu procuro os mesmos lugares de novo, em busca de um
sentimento do tempo, das suas camadas que podem ser atravessadas, para que possa ser
mostrado novamente, em um processo de re-presentação.
Minha experiência pessoal como diretor me parece sempre passar pela interpretação de
um papel. No meu trabalho, eu preciso ter um olho para perceber os vestígios da vida, é
necessário buscar em um espaço esse vestígio da vida. Então não fui eu quem criou esse
espaço, mas eu preciso procurá-lo. Essa marca foi deus quem criou. Ou foi deus quem
esculpiu o tempo. Mas eu preciso transformá-lo no espaço do meu filme. Por exemplo,
quando eu filmei dentro da passagem subterrânea no Museu do Louvre algo de muito
interessante aconteceu. Quando a atriz correu pelo corredor, ela levantou muita poeira e a
lente ficou toda embaçada. No momento em que estávamos preparando a filmagem nós
não notamos a poeira, ela se levantou apenas quando a atriz correu. Assim, aquele espaço
se transformou a partir da filmagem. Essa poeira tornou-se imediatamente a coisa mais
preciosa daquele plano. É algo que eu não tenho como adicionar, eu realmente nunca
imaginaria colocar essa poeira lá dentro. Mas o tempo nos deu essa poeira, e eu então
esculpi o espaço com essa poeira. Por isso, para cada cena, eu sempre falo: ‘não mexam
em nada’. Meus olhos viram um espaço, muitas vezes eu não consigo ver, mas na maioria
das vezes eu já vejo antes de montar a cena. Mas há coisas que você não pode ver, e que
aparecem de surpresa, e se tornam parte do seu espaço.
C: Conte um pouco de que modo o seu cinema acompanhou as mudanças de Taipei.
Tsai: Em Taipei, o centro era em Ximen, na parte oeste da cidade. Esse bairro, incluindo
a Rua Kenan, Guozhai, e o Parque da Juventude, era o local no qual as pessoas se
193
reuniam, desde jovens até os mais idosos, todos os tipos de pessoa. Eu não sei se no Brasil
existem lugares assim. No momento esse espaço de Ximen está mudando. Por exemplo,
quando eu filmei Os rebeldes do deus néon ainda não havia mudado, ainda estavam
construindo o metrô. Isso era por volta de 1991, mas já em 1992 a passarela já estava
quase desmontada. Todas as coisas foram construídas subterrâneas, por baixo. A
mudança mais importante se refere a um prédio de comércio bem grande, um tipo de
galeria, Zhong Hua Shang Chang. Naquela época, ele era o símbolo do bairro, mas
também foi demolido logo após eu terminar de filmar. Atualmente você ainda pode ver
aquele bairro, mas ele está mudado. Antigamente Taipei não tinha metrô, agora tem em
todo o lugar, tudo é subterrâneo. A construção começou no inicio dos anos 1990. Eu
naquele tempo filmei bastante por lá, inclusive filmes para a TV. Era um bairro com
muitos teatros e vida noturna. Meu filme O rio também foi feito lá. Xinmen atraia jovens,
velhos, soldados aposentados, todos iam lá para tomar chá, jogar xadrez, fazer negócios,
ouvir música, etc etc. Hoje em dia na verdade aquele bairro ainda tem um pouco disso,
ainda é um bairro muito animado, bem diferente do leste, a parte nova da cidade.
C: Em Que horas são aí? você presta homenagem a Truffaut e a Os incompreendidos.
Qual a importância desse filme na sua carreira?
Tsai: Eu acho que talvez o cinema…, como dizer, assistir aos Incompreendidos foi a
experiência mais especial para mim – eu me senti como aquele menino, dentro da sua
vida. Quando eu vi esse filme, eu senti que seu melhor amigo não eram os colegas, mas
sim a cidade, Paris. A maior parte do tempo ele foge de casa, foge da escola. Ele vive nas
ruas de Paris. Truffaut não precisa usar diálogo para expressar isso, basta você ver a
imagem para entender. Para ele, é a cidade que faz sentido, que conversa com ele, algo
que não precisa passar pela linguagem. Então, quando ele vai para o reformatório, o mais
difícil de deixar foi a cidade de Paris, e por isso ele chora pela primeira vez. Eu assisti a
194
esse filme quando eu tinha 20 anos de idade e me mudei para Taipei, e o filme também
tinha 20 anos de idade. Naquela época eu não sabia quem era Truffaut, quem era Jean-
Pierre Léaud. Ao assistir ao filme, senti que era um reflexo da minha própria vida, na
Malásia, na cidade de Kuching, vivendo entre as culturas ocidentais e orientais por 20
anos. Esse filme parece trazer uma noção ou um sentimento que atravessa fronteiras. Ele
cria um espaço que você pode completar com a sua vida. Esse espaço para mim era
desconhecido. Eu nunca tinha ido para Paris, nunca tinha ouvido falar desse lugar. Mas ao
ver o filme, eu conheci Paris, e vi um pouco de mim lá. Quando eu era pequeno, eu fui a
um brinquedo igual ao do filme, era um grande “prato que girava” na feira da cidade.
Naquele tempo era moda esse tipo de brinquedo no mundo todo. Hoje em dia poucos
lugares ainda tem. Então, aquilo para mim foi um choque, eu com 20 anos assistindo a
esse filme e vendo aquele brinquedo que falava da minha própria experiência, e que
também carregava um significado simbólico.
C: Truffaut mostra Paris sem deixar dúvidas de onde estamos. Já em Que horas... você
escolheu deliberadamente não mostrar Paris, a não ser pela cena final. Por que você fez
essa escolha estética? O espaço da cidade continua sendo importante mesmo sem que ela
apareça externamente?
Tsai: Porque eu faço filmes sobre o sentimento da vida, e não sobre uma cidade turística.
Então quando eu abordo um espaço, eu estou sempre no centro, eu parto das minhas
próprias impressões. Eu sei que a audiência quer ver Paris, quer ver o personagem
passeando por Paris. Mas eu quero mais, quero um filme bem detalhado, eu quero ver
como foi Paris para Chen Shiang-chyi, a experiência dela nessa cidade. Isso é o mais
importante, e não fazer um filme que o público quer ver. Quando filmei Face dentro do
Louvre, não mostrei o museu que todos conhecem, minha idéia era outra. Eu morei em
Paris por um tempo curto, alguns meses, e aí desenvolvi um sentimento daquele espaço.
195
Eu geralmente me sentia muito sozinho, fiquei muito sozinho nessa época. A região de
turismo não me interessava muito, eu visitei mas não era aquela a minha Paris. Minha
experiência lá foi muito pessoal e particular. Naquela época das filmagens de Que horas...
eu levei a equipe francesa para visitar os lugares em que eu queria filmar, mas ninguém
entendeu. Todos diziam que eu deveria fazer um filme que mostrasse a Paris do turista,
não imaginavam que eu não queria aquilo. Tive que mostrar a minha vida em Paris, o
sentimento de solidão e calma que eu vivi.
C: Em A passarela se foi seria correto dizer que você traça um paralelo entre a mudança
da cidade e a mudança do cinema?
Tsai: Quando eu estou filmando eu não penso muito. Às vezes os conceitos são muito
vagos. Quando eu filmei A passarela se foi, estava preocupado com as mudanças na
cidade. Certas coisas desaparecem, somem, e depois você não sente mais nada, fica
acostumado com a mudança, anestesiado. Sumiu então sumiu, você procura e não
encontra um lugar, você procura e não acha uma casa velha, uma rua, uma passarela. No
filme O buraco, há uma cena que se refere a isso de outra maneira: um idoso procura um
molho de soja, que era típico aqui em Taiwan. Ele vai ao supermercado, na feira e não
encontra em nenhum lugar. Ele não sabe mais onde procurar, fica nervoso, e sente um
certo desespero diante das mudanças. Isso é algo que sempre acontece nas nossas vidas.
Aqui em Taipei muita coisa sumiu, muitos restaurantes sumiram, a passarela de pedestres
que nos cruzávamos todos os dias sumiu. E depois que esse sentimento passa você se
acostuma, fica cada vez mais anestesiado. Parece um treinamento, você pode treinar ate
não sentir mais. Em I don’t want to sleep alone, eu filmei na Malásia, e assim que eu
terminei a cena principal fui até um café que eu ia todos os dias mas ele não estava mais
lá, tinha fechado. Eu recentemente fiz um outro filme na Malásia, um média-metragem
em digital chamado Madame Butterfly. Eu filmei quase tudo em uma rodoviária em Kuala
196
Lumpur, um prédio enorme de onde você podia tomar um ônibus para vários lugares –
Tailândia, Singapura etc. Um ano depois das filmagens, a estação foi demolida! Era uma
estação muito velha e interessante, e muito grande. Agora as pessoas brincam que eu não
posso filmar nada que acaba sendo demolido. [Nesse momento informei o Diretor Tsai
que o edifício São Vito, por ele filmado em São Paulo, iria ser demolido, como de fato
foi]. O cinema tem uma capacidade muito estranha e especial. Ele pode preservar a
realidade em celulóide, reter essa realidade. O filme pode preservar a memória. Isso é
mais importante do que contar uma história. O cinema deixa um rastro, um “ponto”, e
não uma história. Antes de filmar, eu não discuto o conteúdo da cena com uma atriz ou
um ator. Nós discutimos por exemplo algumas paisagens, a cidade, as locações. É isso que
o cinema vai reter, e é isso que você deve tentar extrair da realidade, esse espaço, esse
ambiente. É isso que eu quero dizer.
ENTREVISTA COM TSAI MING-LIANG
Por Cecília Antakly de Mello
Taipei, 01 de maio de 2010
你问我,电影是什么?我觉得这个问题还满难回答的。
因为电影的确是很独特的媒台。因为你一定要使用它,渐渐来发展它。
根据他的问题, 都有关联性。我回答的时候, 我得思考一下, 会慢一点儿。
我觉得电影的世界, 对我来说,是一个很独特的空间。
这个空间可以说是很写实, 但是又可以说是非写实。而且又是很超现实。
197
那个写实。。。
等它被处理到电影的一个空间的时候, 它就不是原来的空间,我的感觉是这样。
它是属于电影的空间。如果你用赛璐珞拍电影, 如果没有适当的灯光,适当的打
灯技巧, 你不会有空间感。
其实那个空间透过打光, 那是一个很技术的东西。其实它是利用打光的概念来处
理。
它是透过感光的化学作用和冲洗的技术。 呈现出来的已经是分解的空间。
光线有自然光。 透过自然光来打光,来处理空间感。
或透过非自然光(灯光)来处理,它总是要有光,它才能呈现出那种空间。
所以我觉得透过导演或者艺术家的眼光来看到光线的雕塑的感觉。
透过影片雕塑一个空间出来,而它的基础的一个建筑的场景。
其实艺术家的眼睛看到的一个空间,它要用光线来雕塑到电影。
所以我为什么不太喜欢看现在的电影。 因为现在的电影的打光是非常平面的,
没有创造空间感。
它只是说故事的那个背景。所以为什么我们会很喜欢电影?
其实是我们很喜欢电影的图片。(喜欢电影里影像的空间)
我觉得是不能用记录的概念来起草它,它是有点像雕塑或绘画,就是用雕塑或者
绘画的概念, 非常强烈, 用来做观看电影的概念。所以我们特别喜欢像默片或
像德国的表现主义, 就很明显地是看到他们在创造空间, 电影的空间被它创造
出来,或者被它雕塑出来。透过光线。可能后来有色彩或者无色彩。
新的问题
198
那当然, 我想大部分的时间都生活在城市里。怎么讲?就是说,
我们住在城市里面, 有一个时间的累积, 城市也因为时间而改变。
它的改变可能有两种, 每种都是时间的痕迹。
表现的方式不同,比如说:有一种是一面墙叠上去的,建筑旧了。
或者一个房子被推倒了, 换一个新的大楼,它也是时间的概念,这些都是它的外
貌在改变。这种你生活在其中,你的情感当然是跟它密不可分。
我们其实有时候很矛盾,当然有时候喜欢看到新的东西,有时候又会怀旧。喜欢
新鲜感,可是同时也有怀旧感。 完全是情感在作祟。因为情感作祟的关系,所以
我觉得它刚提到的空间是依附在时间里面的。所以我在拍电影的时候, 常常要利
用城市的样貌来反应我的心情。
其实也可以说是利用空间的时间来反应我的心情。表达我对环境也好,对生命的
看法也好,这个东西是不可少的, 除非利用空间的时间的感觉,或时间留在空间
面上的感觉来处理。
所以我通常拍的电影的场景,都是我在城市里面所经历的场景,然后再把它找出
来,找到它的时间感。透过那层时间感。再呈现出来,所以有一个过程在里边。
我觉得我自己的经验是,我作一个导演,我常常扮演的角色。我的工作是我要有
一双眼睛, 我必须要有一个眼睛是会辨识出来一种可能是生活的痕迹。在一个空
间里边去找到一个生活的痕迹。所以那个空间可以说不是我创造的, 但是我必须
要去把它找到。那个痕迹是老天创造的。或者是上帝的杰作,或者是时间的雕
塑。但是,我必须要去把它辨识出来,变成我影片里面的那个空间。
比如说,我拍罗浮宫的地下道的时候,很好玩儿的是,那个地下道的女主角跑过
一个地下道,她跑完的时候,镜头就变得有点儿模糊,为什么?因为里面有很多
199
灰尘。你知道,你拍的时候,它没有灰尘,因为演员跑的时候,灰尘就扬起来。
它的空间就变了。然后呢?这个灰尘是我最珍贵的。我没有办法去加它,我真的
想都没想到,我要把灰尘放在里边。可是,时间会给你,把这个空间用灰尘去塑
造。所以,每次到一个场地,我都说:“不要动”。我看到了,就“不要动”。
我知道,就是说我的眼睛看到了一个我想要的空间。有很多东西我还没有看到,
可是大体上我已经决定了。有时候,为了要一些灰尘决定要用这个地方。
新的问题
在台北的地区,几乎以西门为中心。那个区块,包括克难街,国宅,大概就是年
青人很多的地方。台北西区以西门为中心,包括国宅,青年公园,比较杂,年轻
人,老年人,比较多的地方。
我不知道他们巴西有没有这样的地方。它有一点儿老社区的空间。那个老社区当
时是正在改变的。比如说,当时还没有改变。正在做捷运。九二年的时候,九一
年拍的,九二年拍完的时候,差不多天桥要被拆掉, 全部东西都往地下建设。
最重要的是有一个所谓的中华商场,在当时是那个区的一个地标, 也被拆除掉。
拍完的时候就被拆除掉。目前你还可以看到那个区,目前已经完全变掉了。
以前台北没有地下化的火车,现在都有了,全部都地下化了,都是从那个时候开
始。我那时拍的一些作品,不只是青少年跟我讲。前面的电视也是用那个区做背
景,因为那个区 有很多的戏院,我也常去那个区。
青少年有很多的“河流”都在那边拍,那个区有很多特征,不只是青少年喜欢
去,它是老人也喜欢去,退休的老兵都喜欢去。他们有很大的一群人,聚在那边
200
喝茶,下棋,做买卖,听歌等。现在那个区其实还是有部分被保留的,还可以看
到的。还是一个很热闹的区,它跟东区很不同,因为它比较旧。
那个区也有很多色情行业杂在里面,像万华,现在还可以看到,但它的外观跟以
前不同了。尤其是刚好那一块完全不一样了。
新的问题
我觉得可能电影直到。。,怎么讲,就是说,我看“四百集”最特别的经验是我
感觉到“四百集”的包含这个小孩,他的生活里面。我看完电影的时候,我的感
觉,他最好的朋友不是那个小孩,不是他的同学,是巴黎。大部分时间都从家里
逃出来,从学校逃出来,他都在巴黎混。那个是不用跟他有对话的。这个城市是
跟他有对话的,是不透过语言的。所以, 我觉得他被送到感化院,最舍不得的,
就是巴黎,所以他流泪。在电影里边第一次流泪是他被送离巴黎的车程中。我讲
这些经验刚好是我为什么在看“四百集”。比如说,我在看“四百集”的时候我
已经二十岁,而这个电影也是二十岁,你懂吗?
那个时候我也不认识 Truffaut 是谁, 我也不知道 Jean-Pierre Léaud 是谁,他们都
很年轻。我在看这部电影的时候,那种感觉,我好象是在过自己的生活。我的生活
是在马来西亚,一个城市,一个东方西方隔了二十年,它从小有一种生活的氛围
或者一种生活的状态都很接近。
这个电影变得好像是跨越的一个概念,应该是跨越国度吧。
它创造一个空间是你可以用你自己的生活来应对它。这一个空间不管。。
这个空间对你来说是多么陌生。巴黎我没去过,没听说过的地方。你看的时候,
你不是觉得看到巴黎,是你看到你自己的一个生活状态。所以我小时候有一个经
201
验是我坐过一个车,离心力的旋转车。 那个车有我自己玩过那个游戏,是一个大
的餐盘只有商业展览才有。那显然这个游戏全世界在那时候曾经风靡过。现在他
们有很少的地方还保留着。这样一个很笨重的游戏,它是城市的产物,提供城市
游乐的地方。原来它在全世界的城市都可以出现, 你懂吗?它已经没有了。你到
二十岁的时候在电影看到巴黎出现的那个东西,那个画面不只是说有过经验而
已,还有它的象征意义在那里。
新的问题
因为我不是台北地区的电影。这是我的习惯。全世界的城市都可以出现, 你懂
吗?
因为我拍的是生活的感觉,所以我处理每个地方的时候,我都是以自我为中心,
这种体验来出发。我都是看准了。观众要看巴黎,还是我要拍的陈湘琪去巴黎,
重点在这里。我要拍得很详细,重点在这边我要看陈怎样去巴黎,不是要拍观众
要看的巴黎,当然就是放在角色的状态。我在拍场景,你看不到罗浮宫,那个舞
台。意思是说,当然是不同的概念。电影你讲说感觉去巴黎旅行,我当时带他们
探亲,去巴黎的时候生活过一段时间。不长,有时候也是一样的概念。本来是对
观光区,我自己本身本来就对观光区兴趣不大,还是会去。但是我没有那么喜欢
去观光区。所以我在巴黎的生活是很随意的。
等到我们去巴黎看景的时候,我的工作人员都是法国人,他们都说我要拍摄那个
地方。所以他们没有想到过会去拍。
202
变的是我带他们去走,走的是我的生活,过得很静,这个感觉。他们没有想到是
这样,他们觉得我应该会去拍观光区。但是几乎都不是他们平常生活的地方。可
是他们没有想过要拍这个地方。
新的问题
我拍的时候没有我想太多。可是,因为中心的概念还是很模糊。
在那段时间特别有兴趣去。有一个点,那个城市改变的一个点,东西不见了,后
来也没有什么感觉,你就习以为常,你就麻木了。不见了就不见了,你找不到一
个地方,你找不到一个很老的家,只找到一个牌子。我记得电影一个“洞”,一
个老人正在找一个豆瓣酱,一种有牌子的食物。在市场里面他找不到,不晓得要
去那儿,他就很慌张,那种感觉。这些事情,其实是我们生活中不停地发生。很
大的餐厅不见了,每天走过的天桥不见了。然后这种不见的感觉,到最后你就习
以为常,也可以说你就比较麻木了。好像训练一样,你可以训练到,你对每一个
东西的来和去都变得没有什么感觉。我觉得,我想,大概是这样一个。。。
其实我的电影很有趣的地方是说,后来有很多可怕,有趣的事儿。
因为它的地方不见了。不久它的地方倒闭或者被拆掉了。
我不知道要怎么说‘黑眼圈’。。
我在马来西亚拍完了主要的场地,有一个咖啡听就关门了。我拍的时候,那时候
还在,他也没说要关,等我拍完,他就关了。
然后我最近拍了一个马来西亚的短片用数据,叫‘蝴蝶夫人’。是去年吧,一个
短片。是在一个吉隆坡车站,你可以坐任何公车去曼谷,和新加坡。我拍完之
后,一年以后车站不见了。那个车站是非常多的经验,因为它非常有意思,很
203
大。可是它就在我拍完后一年,就关了。当然,可能这是一个城市的改变,这个
速度非常快。你也可以感觉电影有一种很特殊的奇怪的状态。它被赛璐珞保留下
来。这个记忆的改变,透过影片把这个记忆保留下来。所以我再讲一个概念就是
说,他们跟我谈电影的时候, 我觉得别的导演拍的。。
因为重点在于我的焦点不在故事,我不是在讲这个故事,或者是在讲一个议题。
所以,变成是影片里面所有拍到的东西,就会变成一个重点。比如说场景一般都
会讨论角色,讨论内容,可是我的影片里面就会有一个所有的讨论的场景,比如
说那些城市的某一些景,某一些地点。你知道,那些空间的讨论。所以我就想
说,这样的一个讨论在显示出我们的习惯。这个电影,其实不是这样的。一般是
说,它不断地讨论我的这个电影,不断的经过这个训练。因为它不经过这个训
练,它就不太知道我在做什么,很多人,不是全部,他们都不太知道我在做什
么,因为它不是在呈现一个故事。所以,这些东西都会跑出来。你知道为什么
吗?空间会跑出来,环境会跑出来,城市会跑出来。因为你必须要把别的东西压
下去, 我觉得这是一个重点。
永和是台湾人口最密集的地方。很多这种中等家庭(军公教)。
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FILMOGRAFIA
CAPÍTULO I: O PRINCÍPIO DA AN-DANÇA URBANA
Filmes: Na cidade de Sílvia (En la Ciudad de Sylvia, José Luis Guerin, 2007), Xiao Wu
(Jia Zhang-ke, 1997).
Cidades: Estrasburgo, Fenyang
CAPÍTULO II: O CINEMA ATRAVESSA A CIDADE
Filmes: Os 12 trabalhos (Ricardo Elias, 2006), A bicicleta de Pequim (Shi qi sui de dan
che, Wang Xiaoshuai, 2001), Caro diário (Caro diario, Nanni Moretti, 1993)
Cidades: São Paulo, Pequim, Roma
CAPÍTULO III: UM CONTO DE DUAS CIDADES
Filmes: Terra estrangeira (Walter Salles e Daniela Thomas, 1995), Que horas são aí? (Ni
neibian jidian, Tsai Ming-liang, 2001), Contra a parede (Gegen die Wand, Fatih Akin,
2004), Import/export (Ulrich Seidl, 2007)
Cidades: São Paulo-Lisboa, Taipei-Paris, Hamburgo-Istambul, Snizhne-Viena
CAPÍTULO IV: A CIDADE EFÊMERA
Filmes principais: A passarela se foi (Tianqiao bu jianle, Tsai Ming-liang, 2002), Adeus,
Dragon Inn (Bu san, Tsai Ming-liang, 2003), It’s a Dream (Shi meng, Tsai Ming-liang,
2007), Em busca da vida (Sanxia haoren, Jia Zhang-ke, 2006), 100 Flowers Hidden Deep
(Chen Kaige, 2002)
Cidades: Taipei, Feng Jie, Pequim
CAPÍTULO V: SOBRE CINEMAS E JARDINS
Filmes: O mundo (Shijie, Jia Zhang-ke, 2004), Cry me a river (Heshang aiqing, Jia Zhang-
ke, 2008), Antes do pôr-do-sol (Before Sunset, Richard Linklater, 2004)
Cidades: Pequim, Suzhou, Paris
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