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Vida e amores de Siá Maria do Carmo Regina Araujo

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Vida e amores de Siá Maria do Carmo

Regina Araujo

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Meus sinceros agradecimentos a minha sobrinha Célia Regina, aos meus irmãos – Roberto, Ieda, Dico – e,

principalmente, a minha parceira Nega, pela confiança, compreensão e amor que depositaram em mim

enquanto redigia essas memórias.

Agradeço especialmente ao meu amigo Amaury Nicolini pela crítica e incentivo e ao meu querido filho, João

Saraiva, pela idealização da capa e pelo lindo poema em homenagem a nossa querida Maria do Carmo.

Dedicado a

Ana Beatriz, minha neta

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ÍNDICE

Prefácio Introdução

Onde está a Margarida/Eu sou pobre, pobre, pobre

Vamos maninha Samba Lelê

Prenda minha Marcha soldado

Olê muié rendeira A linda rosa juvenil

Ciranda Se essa rua fosse minha

Nessa rua tem um bosque Peixe vivo

A barata diz que tem Passarás, não passarás

Fui na Espanha Vai abóbora

O cravo e a rosa Itororó

Pai Francisco Ai, eu entrei na roda

Balaio Meu limão, meu limoeiro

A canoa virou Cai, cai balão

Carneirinho, carneirão Alecrim

Atirei o pau no gato

Epílogo: Tintim, tintim, tintim olá lá Tributo a Siá Maria do Carmo

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PREFÁCIO

Melhor começar do início. E o início – não o sabemos todos? – é o nome. Uma espécie de cabide, onde penduramos os sonhos e as nossas realizações, e que nos acompanha até o final de nosso destino.

Maria do Carmo chamava a si própria de Maria do Carmo. Foi com essa alcunha, aliás, que ela preencheu, com cerca

de sessenta e oito anos de atraso, o item nome no registro de sua certidão de nascimento.

A questão do nome surgiu porque Maria do Carmo narrava,

ao longo de sua vida, a quem quisesse ouvir, que quando fora morar no engenho de cana de açúcar dos Cabral de Melo, ela encontrou lá uma homônima, já mocinha. Por essa razão – continuava ela em sua narrativa – dona Carmem lhe trocara o nome para Margarida, de modo não a confundir com o nome da outra aia mais antiga na casa. Tão logo Maria do Carmo saiu da casa grande dos Cabral de Melo, por volta de 1929, retomou seu nome original, dado por sua mãe.

Mas há uma outra hipótese: a de que o nome dela, dado

pela mãe, não era Maria do Carmo, e sim Margarida. E que Margarida gostou tanto da aia que atendia pelo nome de Maria do Carmo que o adotou como se fora seu e carregou-o pela vida afora. Assim, é muito provável que Margarida, então renomeada de Maria do Carmo, tenha incorporado algumas facetas do caráter da aia do Carmo como parte de sua própria personalidade, em detrimento do que tenha legado de Josefa.

Bem, não importa. Quer seu nome original seja Maria do

Carmo quer seja Margarida não haverá, neste livro, nenhuma tese a provar essa ou aquela opção. A escolha do nome original é tarefa, a propósito, deixada a cargo do leitor, se for de seu agrado. Para efeito exclusivamente de narração, chamaremos Maria do Carmo de Margarida no período em que ela assim foi chamada pela família dos Cabral de Melo.

Ao longo do relato da história de vida de Maria do Carmo, eventualmente surgirão algumas passagens sobre a história da

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família proprietária dos engenhos de cana de açúcar onde Maria do Carmo viveu dos oito aos dezoito anos. Tais referências foram adquiridas através da leitura de publicações biográficas de domínio público. Servem, tão somente, como testemunho da veracidade de fatos relembrados por Maria do Carmo, bem como, por falta de registro próprio e de testemunhos familiares, da veracidade de sua própria existência.

Numa homenagem ao primeiro amigo que Maria do Carmo

teve na vida, aqui e ali, algumas passagens serão iluminadas pela poesia de João Cabral de Melo Neto. Foram incluídos alguns trechos literários e musicais, inspirados pelas circunstâncias narradas e brotados da mesma gaveta onde guardamos as cantigas de roda que nomearam cada capítulo.

Além disso, a utilização da intimidade entre Maria do Carmo

e João Cabral, permitida pela proximidade com que Margarida e Jonjoca (como os dois se chamavam) conviveram em sua infância e juventude, será utilizada neste livro tão somente pelo fato de que, em muitas das vezes, o olhar do poeta quando menino, registrado ou não em sua poesia, poderia retratar (quem sabe?) a mesma paisagem que os olhos da menina – que lhe dava a mão – captavam.

Pois esse livro tem o desejo simples de contar a história de

vida de Maria do Carmo para seus descendentes. Para os que não a puderam ouvir ou que não tiveram a oportunidade de conviver com uma pessoa tão formidável como ela era. Mas o relato, contudo, deverá manter-se fiel à mesma forma como ela tenha vivido: sem nenhuma reverência e sem nenhum pudor. Além disso, do mesmo modo que Maria do Carmo reservou para si o direito de nomear como quisesse os personagens de sua história, apresentá-los como desejasse, conduzindo o roteiro e modificando-o a cada vez que narrava suas reminiscências, assim também utilizaremos aqui e ali, dessas mesmas prerrogativas.

Esse livro, por fim, é pretensioso sim, na medida em que

seja tela, pincel e tintas com os quais se almeja esboçar a fisionomia dessa mulher, antes que seus traços se desvaneçam nas brumas do esquecimento.

Rio de Janeiro, 8 de outubro de 2003.

Regina Araujo

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Na casa de minha meninice quem fazia o café da manhã era

o meu pai, o espanhol. Um café encorpado, desses que deixavam borra no fundo da xícara. Bastava um tantinho só e o copo de leite mais dois dedos de açúcar se achocolatavam... À tardinha, no entanto, minha mãe nos brindava com seu delicioso café que era exatamente como ela: doce e suave. Ela o acompanhava de bolachas de maisena ou – quiçá – empadinhas e risólis de camarão, bolinhas de queijo ou coxinhas de galinha... tudo quentinho. O café, apesar de doce, era fraco e ela redundamente o chamava de café popopó... (A história de vida de Maria do Carmo foi dosada com parcimônia neste livro. Da mesma forma com que nossa protagonista dosava o pó para o seu delicioso café).

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INTRODUÇÃO

Maria do Carmo, aos oito anos de idade, foi deixada por sua mãe, Josefa, no portão da casa-grande do engenho de cana de açúcar, em Poço do Aleixo, São Lourenço da Mata.

Se, um dia, Ana Beatriz, minha neta, me perguntasse: “Vó, quem foi Maria do Carmo?”

Eu lhe responderia assim: Numa tapera bem tosca, na Zona da Mata, vivia Josefa e

José Hermenegildo. Além de uma penca de filhos... Josefa e Zé eram cortadores de cana-de-açúcar. Seus filhos seguiriam seus passos, tão logo se erguessem

bem sobre as pernas, para cortar um montão de cana naquele marzão verde que era o canavial.

Numa manhã, após uma noite de muita ventania, bateu na porta da tapera um velho bem velho.

“Oi, Siá, me dê um pouco de beber e de comer”. Josefa não negou o pedido. Encheu de água fresca uma

cuia e num prato de alumínio ajeitou feijão preto recém colhido, cozido de cedo, e um punhado de farinha de mandioca recém torrada no fogão de lenha.

Josefa ficou satisfeita com a voracidade do velho que depois do banquete se revela:

“Eu sou o Senhor de Todos os Tempos. O Senhor dos Ventos. O Senhor de todos os Mares. O Senhor da Vida e da Morte”.

Brandindo o bastão que trazia nas mãos, continuou: “Eu venho, de quando em quando, para testar a Bondade. Amanhã bem cedinho pegue sua filha mais velha e a leve até a casa da Sinhá. Este é o meu presente”.

Josefa não contestou a ordem do velho porque viu logo de saída quem ele era na verdade: o Senhor de Todos os Tempos.

Assim, na manhã seguinte, acorda a sua mais velha e a leva pela mão até o portão do castelo, ou melhor, da casa-grande do engenho de cana de açúcar, onde o Sinhô Dr. Luiz Antonio e a Sinhá Carmem Cabral de Melo reinavam.

Diante da Sinhá, Josefa deixa sua menina com a recomendação do Senhor de Todos os Tempos para ela ser criada e batizada.

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A Sinhá abraça a menina, a chama pelo nome de Margarida e, conduzindo-a para o interior da propriedade, se apresenta: “a partir de hoje, Margarida, eu sou a sua Nha Dinda”.

Foi assim que a mais velha de Josefa, ainda uma margaridinha de nada, passaria a fazer parte da criadagem na casa-grande do engenho.

Teve como mestras amas e aias mais antigas na casa e mais velhas na vida:

Siá Floripes vai lhe ensinar toda a arrumação da casa, como lidar com a despensa, o pomar, as criações. Além, é claro, de como cuidar de crianças.

Enquanto a do Carmo, tudo de cozinha. Tanto Siá Floripes quanto a do Carmo ensinam a Margarida

outras coisas práticas: nadar no rio, pescar lambari, pregar botão, contar histórias.

De todas as histórias que Margarida aprendeu na vida, a que mais gostou foi a da Dorothy que sonhava ir além do arco-íris, e para isso teve de procurar pelo Mágico, nas terras de Oz.

É que Margarida também sempre desejou ir além, muito além do horizonte, ao encontro de seu próprio lugar nesta vida.

Um dia, Nha Dinda viaja as pressas. Uma semana depois está de volta e traz no colo um nenezinho franzino. Magrinho de dar dó. Ele recebe o nome em homenagem ao avô paterno: João Cabral de Melo – e para não pairar dúvidas, finalizaram o nome com Neto.

Mas, para Margarida, seu nome será apenas Jonjoca. Para sempre.

Jonjoca não foi o primeiro nem seria o último filho da casa. Antes dele, e antes que Margarida chegasse, já tinha nascido o Virginho. Que, ao contrário do segundo, não era esmirrado não.

Para Jonjoca e Virginho Margarida revela um de seus dons. Contar histórias com desfechos diferentes e sempre inéditos.

Jonjoca, que acompanhava atento os relatos, reclamava porque uma história contada num dia não terminava nunca da mesma maneira quando repetida.

“Margarida, não foi assim que a história terminou ontem” – dizia ele aborrecido.

Dois anos depois de Jonjoca nasceu Leda, que era encantada. Tinha uma estrela na testa. E sua luz era capaz de iluminar tudo ao redor.

Um belo dia, o Senhor de Todos os Tempos apagou a luzinha e levou a menina para viver uma outra fábula. E Leda se foi, mas sua partida originou um mistério.

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"Por que, Margarida, papai-do-céu levou Ledinha?" - perguntava Jonjoca vez e outra.

Depois de Leda nasceram outros filhos de Nha Dinda e Sinhô, num total de sete. Mas Margarida cuidou apenas de Leda, Virginho e Jonjoca.

Quando Jonjoca e Virginho foram para a escola, a família passou a se deslocar entre a casa-grande do engenho e a casa-grande da cidade. Só nas férias escolares é que eles retornavam a vida rural. Margarida os acompanhava para uma casa e outra.

Um dia, escondido do resto da casa, Jonjoca ensinou Margarida a ler. Tanto os contos da carochinha quanto os livrinhos de literatura de cordel, comprados nas feiras-livres.

Através da leitura Margarida tomou conhecimento de uma porção de coisas. Da existência de cidades como São Paulo e Rio de Janeiro que eram destinos almejados pelos nordestinos retirantes, que sonhavam encontrar o seu próprio lugar no mundo.

Assim, ir para o Rio de Janeiro, passou a ser o sonho maior que Margarida esperava realizar. Mesmo sem ter sapatinhos vermelhos, como os da Dorothy.

Para a jornada, Margarida estocou seus próprios tesouros: um lenço florido, presente de Siá Floripes, seria útil para cobrir a careca. O vestido de missa e a sandália de couro serviriam para a fuga.

Para passar pela guarita do portão, enganar o vigilante e ganhar a estrada, Margarida já guardara, de há muito, uma lata de manteiga vazia, bem como um plano muito bem arquitetado.

À medida que ia retirando, como na canção, uma a uma, as pedras do muro do castelo que a prendia, Margarida decidira trocar seu nome para Maria do Carmo.

E carregou, além da bagagem, o segredo da partida de Ledinha.

Mas isso já é outra história.

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Onde está a Margarida olê, olê, olá

onde está a Margarida, olê?

Ela está em seu castelo, olê, olê, olá

ela está em seu castelo, olê, seus cavalheiros!

Em cinco de outubro de 1979, Maria do Carmo preenchendo sua própria Certidão de Nascimento, perante o escrivão do cartório da Quarta Circunscrição, no fórum do Rio de Janeiro, tendo sua filha caçula e o amigo desta, Pedro Façanha, como testemunhas, declarara ter nascido em 1913.

Ela escolhera o dia 10 de outubro como sendo o dia em que sua mãe a tenha parido. As lembranças quanto ao local de seu nascimento e de seus primeiros anos em companhia dos pais e irmãos seriam muito vagas. Assim, para preencher esse item, decidira-se pelo Recife como sendo sua cidade natal. Nome da mãe? Josefa de Oliveira. Nome do pai?

Maria do Carmo tem uma vaga idéia de que seu pai se chamava José Hermenegildo. Pois o tempo consumira suas certezas, assim prefere deixar esse item como ignorado. Na verdade, esse nome também não apareceria nas certidões de nascimento de seus filhos. Deixemos então como está.

Após pesquisa e comparação com a biografia de João Cabral de Melo Neto, disponível na internet e em livros biográficos, acreditamos que Maria do Carmo tenha nascido numa casa de taipa, nas cercanias do engenho de cana de açúcar de Poço do Aleixo, no município de São Lourenço da Mata, em Pernambuco. Mas não em 1913, e sim em 1911, sendo, portanto, nove anos mais velha que o sinhozinho "menino-de-engenho" e futuro poeta.

Vou pensando no mar

que daqui ainda estou vendo; em toda aquela gente

numa terra tão viva morrendo. Através deste mar

vou chegando a São Lourenço,

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que de longe é como ilha no horizonte de cana aparecendo.

(Trecho de O Rio, de João Cabral de Melo Neto)

São Lourenço da Mata fica a 18 km do Recife. Limitado

pelas localidades de Paudalho, Chã de Alegria, Vitória de Santo Antão, Camaragibe, Jaboatão dos Guararapes e Moreno.

É banhado pelo Rio Capibaribe, que nasce na serra do Jacarará, no município do Brejo da Madre de Deus, na divisa de Pernambuco com a Paraíba. Seu curso tem cerca de 250 quilômetros e sua bacia, aproximadamente, 5.880 quilômetros quadrados.

São Lourenço é banhado também pelo Beberibe, com 30 km de extensão, que nasce nessas terras, e que, na foz, corre paralelo ao mar e se encontra com o braço norte do Capibaribe para desembocarem juntos no oceano. Mas isso já é lá em Recife.

O Município de São Lourenço da Mata foi fundado em 13 de junho de 1884. Na região, viviam antes os índios Tabajaras. Sua população conta, na atualidade, com mais de 90 mil habitantes.

É muito provável que os pais de Maria do Carmo tivessem

mesmo tais nomes: Josefa e José Hermenegildo. Isso porque uma menina de oito anos já é capaz de memorizar o nome de seus pais, ainda mais quando essa exatidão pode significar ou não um reencontro. Um provável retorno a casa paterna. Mas não se poderia dizer o mesmo quanto ao sobrenome.

Apesar de que de Oliveira seja um sobrenome trivial, comumente encontrado no nordeste, é possivelmente originário de Portugal.

Levando-se em conta a descrição de Maria do Carmo quanto à aparência física de seus pais – Josefa seria uma mestiça, descendente de três raças: negra, indígena e branca; de tez parda clara e cabelos compridos e lisos. Já José Hermenegildo, um mestiço de tez escura e cabelos encrespados; bem como pelo fato de que Maria do Carmo, tendo os olhos negros veio a gerar uma filha com olhos claros, sendo, portanto, geneticamente falando para este caráter cor dos olhos, híbrida. Pois olho claro, como sabemos, é caráter recessivo, ao contrário de olho escuro que é um caráter dominante. E olho claro é característico de europeus, de raça branca. Assim, é possível que Josefa seja filha ou neta de português, ou mesmo de holandês. O que vem a corroborar com

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essa possibilidade é o fato de que Josefa e José Hermenegildo poderiam ser “curumbas”, descritos como pessoas que desciam do sertão à procura de trabalho nos engenhos, como cortadores de cana, ou mesmo como colonos sem terra, moradores nascidos na região, mestiços de índios, portugueses, talvez holandeses e negros africanos.

Maria do Carmo, em meados de 1919, aos oito anos de

idade, fora deixada por sua mãe, Josefa, no portão da casa-grande do engenho de Poço do Aleixo.

Josefa ao entregar sua filha, combinara com a esposa do senhor do engenho, a senhora Carmem Carneiro Leão Cabral de Melo – a Sinhá – que sua filha seria ensinada, pelas outras aias da casa, para os serviços domésticos essenciais de lavar, passar, cuidar de crianças e cozinhar. Em troca de tais tarefas, Maria do Carmo seria batizada, alimentada e educada, para servir, daí por diante, como cria da família.

Ao se despedir da filha, Josefa não a alertara de que nunca

mais iria pegá-la de volta. Por conta disso, Maria do Carmo aguardava com ansiedade seu regresso, mesmo que apenas para uma visita ou para lhe trazer notícias da família. Mas a filha nunca mais veria a mãe. Nem tampouco Maria do Carmo tornaria a ver seu pai e seus irmãos.

Essa ruptura familiar causaria estragos na estrutura psicológica em formação da menina, resultando numa tristeza profunda, impossível de ser explicada e aplacada. Um peso pesado que Maria do Carmo levantaria, daí em diante, a cada dia, esperando inutilmente alguém chegar e dividir com ela tal peso.

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Eu sou pobre, pobre, pobre

de marré, marré, marré Eu sou pobre, pobre, pobre

de marré, de si

Eu sou rica, rica, rica de marré, marré, marré Eu sou rica, rica, rica

de marré, de si

Eu queria uma de vossas filhas de marré, marré, marré

Eu queria uma de vossas filhas de marré, de si

Que profissão darás a ela

de marré, marré, marré Que profissão darás a ela

de marré, de si...

Nha Dinda – a Sinhá – que prometera com perjúrio batizar Maria do Carmo, a entregara aos cuidados de Siá Floripes e do Carmo para que estas lhe ensinassem as tarefas domésticas com as quais, como forma de pagamento, receberia casa e comida. Afora uma rede e esteira para seu descanso no quarto das criadas, algumas peças de roupa, avental, e, mais tarde, uma bandagem branca com a qual ela, vez por outra, usaria como turbante.

Essa prática, de se tomar as filhas das famílias de colonos e

trabalhadores moradores nas roças dentro das propriedades dos latifundiários para educá-las como criadas, para servir na casa grande, era muito comum após a abolição da escravatura – e talvez muitos anos depois – principalmente nos engenhos de cana de açúcar, como resquício do trabalho escravo. A escravatura de negros africanos fora à força motriz, tanto na lavoura da cana e na produção do açúcar, quanto na criadagem que servia no interior das casas grandes. Apesar da escravidão ter sido abolida, por força de lei em 1888, na prática, em 1919 ainda continuava a ser

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exercida. De forma mais abrandada, é verdade: já sem a presença das senzalas e dos castigos antes infligidos aos negros.

Por causa dessa aia, a do Carmo, mais antiga na casa, responsável pela despensa e serviços de cozinha, Nha Dinda resolvera mudar – de acordo com as reminiscências de nossa Maria do Carmo – o seu nome original, de Maria do Carmo, para Margarida.

Assim, se alguém perguntasse: onde estaria a Margarida e qual profissão darias a ela? A resposta – já sabemos todos – é que no período de 1919 a 1929, Margarida aprendia o ofício de empregada doméstica, numa das casas grandes da família Cabral de Melo.

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Vamos maninha vamos, lá na praia passear

vamos ver a barca nova que do céu caiu no mar vamos ver a barca nova que do céu caiu no mar

Nossa Senhora está dentro,

os anjinhos a remar rema rema remador, que este barco é do Senhor rema rema remador, que este barco é do Senhor

O barquinho já vai longe

os anjinhos a remar rema rema remador, que este barco é do Senhor rema rema remador, que este barco é do Senhor.

Janeiro de 1920. Não completara um ano que Margarida vivia com os Cabral de Melo. Alguns dias após o Ano Novo ela escutara uns rumores na casa e Nha Dinda viajara para o casarão de seus pais no Recife, na rua da Jaqueira. Não vai com pressa pois o filho que guarda no ventre está sendo esperado lá para meados do mês. Assim, presumiriam ela e suas aias, que houvesse tempo de se preparar o quarto dos avós para o parto, cumprindo-se a tradição imposta pela família dos Carneiro-Leão.

Mas não aconteceu como o presumido. Jonjoca (João

Cabral de Melo Neto) nascera antes do previsto, como ele mesmo relataria no trecho de sua poesia "Autobiografia de um só dia":

No engenho poço não nasci:

minha mãe, na véspera de mim, veio de lá para a Jaqueira,

que era onde, queiram ou não queiram, os netos tinham de nascer,

no quarto-avós, frente à maré. Ou porque chegássemos tarde

(não porque quisesse apressar-me, e se soubesse o que teria

de tédio à frente, abortaria) ou porque o doutor deu-me quandos,