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1 MARINA CHIARA LEGROSKI SIGNIFICADOS: UMA ABORDAGEM DA SIGNIFICAÇÃO PELOS VIESES DA SEMÂNTICA DA ENUNCIAÇÃO EM COMPARAÇÃO COM A SEMÂNTICA CLÁSSICA E A PRAGMÁTICA. Monografia apresentada como requisito à obtenção do grau de bacharel em Letras, área de concentração Estudos Lingüísticos, no Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná. Orientadora: Prof. Dr. Claudia Mendes Campos. Curitiba 2007

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MARINA CHIARA LEGROSKI

SIGNIFICADOS:

UMA ABORDAGEM DA SIGNIFICAÇÃO PELOS VIESES DA SEMÂNTICA

DA ENUNCIAÇÃO EM COMPARAÇÃO COM A SEMÂNTICA CLÁSSICA E A

PRAGMÁTICA.

Monografia apresentada como requisito à obtenção do grau de bacharel em Letras, área de concentração Estudos Lingüísticos, no Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná.

Orientadora: Prof. Dr. Claudia Mendes Campos.

Curitiba

2007

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Sumário

Introdução e objetivos ................................................................................................. 1

1. A Significação em diversas linhas ............................................................................ 3

1.1 A inclusão da enunciação dentro dos estudos lingüísticos...................................... 4

2. As Semânticas da Enunciação e Clássica e a Pragmática: pressupostos

e instrumental............................................................................................................... 8

2.1 Semântica da Enunciação ....................................................................................... 8

2.1.1 Ducrot e suas contribuições ................................................................................. 11

2.2 A Semântica Clássica .............................................................................................. 19

2.2.1 O tratamento da referência ................................................................................... 24

2.3 O Tratamento da Pragmática ................................................................................... 28

3. Tratamento dos fenômenos pelas diferentes teorias ............................................. 31

3.1 Tratamentos de pressuposição ................................................................................ 31

3.2 Proposta de tratamento da sinonímia ....................................................................... 34

Considerações finais ................................................................................................... 37

Referências bibliográficas ............................................................................................. 39

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Introdução e objetivos

Dentro da lingüística existem diversas áreas que nos fascinam e que nos

assombram, seja pela sua complexidade, seja pela forma com que concordamos ou

discordamos delas. Nesse trabalho, dialogo de perto com as três coisas: pretendo

trabalhar com três áreas extremamente complexas, com as quais concordo e das quais

discordo ao mesmo tempo.

Pela sua complexidade, precisei fazer um recorte e escolher que tipo de coisas

trataria. Assim, escolhi trabalhar com a Semântica da Enunciação, a Semântica

Clássica1 e um pouco ainda com a Pragmática. Escolhi as três por serem disciplinas que

tratam da significação, um problema muito discutido dentro dos estudos da linguagem,

e por serem disciplinas que, ao mesmo tempo em que se afastam, se aproximam muito.

Dentro dessas áreas, então, escolhi recortar que tipo de tratamento fazem do

significado e o que incluem e o que excluem em suas abordagens. Além disso, pretendo

tratar dos problemas com que elas mais classicamente se ocupam, para fazer um

panorama, em certa medida pouco aprofundado, do que constitui cada uma delas.

Creio que esse trabalho tem relevância tanto para a Semântica da Enunciação

quanto para a Semântica Clássica e ainda a Pragmática, porque de certa forma trata de

coisas que interessam aos estudiosos de cada uma delas, embora alguns deles, por

vezes, não estejam ocupados em explicitar a delimitação que fazem de seus objetos de

pesquisa.

Para estudar esses fenômenos, então, li algumas obras mais ou menos

representativas dentro da Semântica Clássica, da Pragmática e, principalmente, da

Semântica da Enunciação, área a que, atualmente, me filio com mais intensidade. Foram

necessárias leituras de manuais introdutórios, artigos de comentadores e, por muitas

vezes, do próprio teórico em questão. O que, evidentemente, não significa que esgotei

todas as questões que poderiam ter sido abordadas nem que a bibliografia consultada

fosse a mais indicada para tal trabalho. De qualquer forma, creio que foi o suficiente

para tocar em alguns pontos e instigar um estudo mais aprofundado. 1 Estou chamando de Semântica Clássica a área dessa disciplina que mais tradicionalmente apresenta tratamentos para fenômenos semânticos, como referência, sentido, antonímia, sinonímia, ou seja, a área que mais tradicionalmente apresenta trabalhos para dar conta desses fenômenos de significação.

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Assim, pude observar um tratamento bastante diferente para fenômenos bastante

semelhantes, o que me intrigou e me fez pensar em um método de tratamento, dentro da

Semântica da Enunciação, de fenômenos que são tradicionalmente tratados pela

Semântica Clássica.

Meu trabalho se organiza, então, em 3 capítulos: um deles, o primeiro, introduz

as diferentes formas de se olhar para o significado e que tipos de pressupostos cada um

desses olhares toma, além de dar um panorama geral da inclusão do enunciador na

língua, na perspectiva feita por Benveniste.

No segundo capítulo, procuro dar um tratamento mais detido ao que é objeto de

cada perspectiva teórica escolhida e de como esses pressupostos funcionam quando

colocados em prática para análise de dados. Além disso, procuro identificar o que é

sentido e referência para essas áreas.

No terceiro capítulo, por fim, procuro exemplificar o que analisei até esse ponto

e proponho uma forma de tratamento da sinonímia dentro da Semântica da Enunciação,

nos moldes da apresentada por uma das teóricas que li. Esse tratamento, ainda bastante

inicial e primitivo, caracteriza uma originalidade dentro de meu trabalho, considerando

que não encontrei nada a respeito dentro da área.

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1. A Significação em diversas linhas

Sintetizar a abordagem que as sub-áreas da Semântica dão a seus objetos não é

um trabalho fácil. São muitos os aspectos a serem considerados e, assim, serão sempre

feitas reduções que, por vezes, deixam de fora aspectos muito importantes.

Uma dessas tentativas, entretanto, encontrei no texto “Semântica e Pragmática”2,

de Eduardo Guimarães. Nesse texto, o autor dá uma grande visão do que entende que

são os estudos lingüísticos do significado na atualidade. Para ele, a significação pode ser

vista, desde que a Semântica deixou de ser uma área que se ocupava das mudanças

históricas do significado das palavras, dentro de três grandes escolas: a Semântica

Formal, a Semântica da Enunciação e a Pragmática. Dentro delas, então, ele aponta

cinco formas diferentes de considerar a significação.

Segundo ele, a primeira dessas formas vê o significado como uma relação dentro

do eixo paradigmático da língua, seguindo o sistema estabelecido por Saussure. Dessa

forma, as palavras significam na relação de uma com as outras (“cadeira” é o que “sofá”

não é, “sofá” é o que “poltrona” não é e assim por diante) e dentro de um grupo de

sentidos semelhantes: “festa de aniversário”, “bolo”, “refrigerante”, “balões”,

estabelecem entre si uma relação que não estabelecem com “caminhão de bombeiros”,

“computador” ou “iglu”. Guimarães chama esse tipo de abordagem de “estruturalista”,

justamente porque empresta de Saussure a idéia do valor lingüístico, em que as palavras

têm seu significado dado pela relação opositiva entre os significados de cada uma.

A segunda forma, a que Guimarães chama “referencialista”, é a que entende

que as palavras possuem uma relação com o mundo e, além disso, uma relação com as

outras palavras que estão juntas numa mesma frase. Assim, uma frase que diz “O bolo

do aniversário estava bom” só significa quando se entende de que forma essas palavras

se relacionam na frase para fazer sentido e a que tipo de coisas no mundo esses

elementos lingüísticos se “referem”. É a abordagem da Semântica Clássica que

analisarei nesse trabalho.

2 GUIMARÃES, E., Semântica e Pragmática, In: GUIMARÃES, E.; ZOPPI-FONTANA, M. Introdução às Ciências da Linguagem: a palavra e a frase. Campinas: Pontes, 2006.

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No terceiro possível tratamento da significação, ela é entendida na relação entre

a intenção da pessoa ao comunicar e a receptividade do interlocutor, ou seja, na

comunicação. Ao falar de intenção, Guimarães mostra que existe uma abordagem

lingüística que incorpora a intenção no tratamento da linguagem que, a princípio, não é

parte do lingüístico, mas do interacional. O autor não nomeia, mas se trata da

Pragmática. Assim, nessa abordagem da significação, há que se levar em conta o

contexto em que a frase foi produzida, quais eram as pessoas envolvidas, ou seja, o

sentido não se dá apenas pelas palavras e sua relação no mundo, mas pelo que o falante

quis comunicar.

A quarta forma de tratar o significado considera que ele acontece através do

acionamento da linguagem pela pessoa que a está enunciando. Ou seja, cada enunciado

possui seu significado próprio, atualizado a cada vez que um novo enunciador ativa essa

linguagem; “(...) é resultado do sentido que as palavras têm na língua e que se atualiza

segundo as condições do funcionamento da língua no momento em que ela é posta em

funcionamento por aquele que fala”(op. cit., p. 117). Assim, a linguagem significa pelo

simples fato de ter sido colocada em uso por alguém, por ter deixado de ser apenas uma

possibilidade e ter sido, efetivamente, realizada.

A quinta concepção de significação se assemelha bastante à quarta, mas

considera ainda que esse falante aciona outros significados a depender de sua história,

sua posição social e econômica. Ou seja, uma frase como “O bolo do aniversário estava

bom” significa coisas diferentes se enunciada por uma confeiteira, pela mãe do

aniversariante ou ainda por um dos presentes na festa. Essa quinta concepção tem a ver

com o tratamento mais recente do significado feito por Eduardo Guimarães, a

Semântica do Acontecimento.

Dessa forma, Guimarães demonstra que, para tratar o mesmo objeto, que é o

significado, existem diversos pressupostos teóricos diferentes configurando diferentes

linhas teóricas. Para este trabalho, interessa pensar em quatro dessas abordagens: a

primeira e a quarta que, juntas, constituem a Semântica da Enunciação, a segunda, que é

a abordagem da Semântica Clássica, e a terceira, que é a abordagem da Pragmática.

1.1 A inclusão da enunciação dentro dos estudos lingüísticos

Saussure, considerado o pai da ciência da linguagem como a conhecemos

modernamente, em seu Curso de Lingüística Geral (1916), constitui, como objeto de

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estudo, a língua enquanto oposição à fala. Nessa percepção, a língua é um sistema

composto por signos que se inter-relacionam e que se definem nessa inter-relação: um

signo é o que outro não é e se estabelece e se fundamenta sozinho, sem precisar recorrer

a nada exterior a ele. Assim, tudo o que está fora desse sistema, ou seja, o sujeito, a

história, o referente e o mundo, estão no domínio da fala, não mais da língua. Essa é a

chamada “teoria do valor”, da qual rapidamente falei quando apresentei as formas de

tratamento do significado na concepção de Eduardo Guimarães.

Isso fica fortemente fundamentado no seu Curso: considerando o signo como

formado por uma parte significado e uma parte significante, Saussure inclui a

significação dentro do sistema. Essa significação, no entanto, é uma relação entre os

signos, e o significado em um signo é o que não é significado no outro. Assim não há

uma relação com o mundo (porque foi excluído no corte epistemológico proposto), mas

dentro da própria língua.

O que foi excluído pelo corte saussureano, entretanto, vem sendo incorporado

aos estudos lingüísticos pela Semântica e também pela Pragmática, que fazem essa

inclusão de forma bastante pertinente e justificada.

Desde muito cedo, os filósofos que se ocupam de questões da significação e da

relação entre o mundo e a forma de acessá-lo, através da linguagem, e os semanticistas,

que fazem o mesmo trabalho, têm tentado incluir a relação com o mundo nos estudos

lingüísticos, uma vez que a linguagem também pode ser vista por meio da relação que

estabelece com o mundo. (Evidentemente, para Saussure isso é o domínio da fala, mas

certamente pode ainda ser considerado como domínio da linguagem.) De qualquer

forma, para esses estudos da significação, a unidade de análise não é mais o signo, mas

o eixo das relações sintagmáticas que ele pode estabelecer.

A incorporação do falante nos estudos semânticos se deu, principalmente, pelos

estudos de Èmile Benveniste, que desenvolve uma teoria lingüística voltada para a

enunciação. Antes dele houve estudos nesse sentido, inclusive de um aluno de Saussure,

Charles Bally, e também com Roman Jakobson, que é um teórico bastante conhecido

pela sua teoria da comunicação. Benveniste, no entanto, dá um passo a mais

desenvolvendo um modelo teórico que assume que a estrutura da língua e o sujeito que

acessa essa estrutura estão relacionados.

Por ser um estruturalista, sua teoria não poderia deixar de passar pela idéia

saussureana de língua como sistema; a grande diferença está na inclusão do falante

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como o “realizador” da língua. Para ele, sem alguém que acesse esse sistema, a língua

não é língua de fato: é apenas uma possibilidade não realizada.

Benveniste, em alguns dos seus artigos, posteriormente publicados em livro,

discute diversas questões que concernem a esse estudo3. Para mostrar o que entende por

significação, esse autor a separa em dois níveis: o semiótico, que ele considera ser o

mesmo do estruturalismo saussuriano (de onde ele recupera a noção de ‘estrutura’ para

definir o signo como uma unidade semiótica), é aquele que dá um significado relacional

dentro da estrutura da língua; e o nível semântico, que é o significado resultante da

atividade do locutor quando coloca a língua em funcionamento. Assim, a ‘referência’

existe apenas no nível semântico, porque a língua é capaz de referir para a exterioridade

do sistema a partir da enunciação, i.e., durante a atividade enunciatória, o enunciador e

o co-enunciador atribuem sentido para as construções que são próprias da estrutura, as

frases. Dessa forma, a teoria sustenta que há uma inserção da subjetividade na

linguagem, uma vez que ela está sendo usada por um falante e precisa de um

interlocutor para que possa significar, ou seja, precisa necessariamente passar pelas

experiências desses dois sujeitos. Isso porque ela é acessada por meio do falante, i.e., a

língua precisa do falante para significar.

Para correlacionar, então, o discurso à subjetividade, o autor propõe uma

distinção entre personalidade e subjetividade. Dessa forma, as pessoas do discurso eu

e tu seriam subjetivas e ele, categorizado como não-pessoa, seria apenas o elemento

sobre quem o discurso incide. O eu é interior ao discurso, i.e., é a forma pronominal que

o locutor usa para referir a si mesmo; é a única pessoa subjetiva, uma vez que a língua é

acessada pelo sujeito para falar algo a partir dele e do momento em que ele vive. O tu,

por outro lado, precisa sair do discurso para ter um referente e, por isso, não é subjetivo,

mas uma pessoa. O ele, como não faz parte do discurso, tem sua significação apenas no

nível semiótico, dentro do sistema sintático.

Além disso, para Benveniste, o par eu-tu é discursivo porque estabelece um tipo

de referência enunciativa, pois se refere ao momento da enunciação e às pessoas que

participam dela. Nesse sentido, Benveniste chega à conclusão de que essas pessoas do

discurso têm uma função dêitica, porque seu referente está no tempo, no local e nos

locutores que estão presentes naquele momento de enunciação. Disso depreende-se que

3 Para apresentar essas questões, tomo por base uma apresentação feita dos estudos de Benveniste feita por FLORES, Valdir N. e TEIXEIRA, Marlene. (2005) Introdução à Lingüística da Enunciação. São Paulo: Contexto.

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há um princípio de inversibilidade, já que o discurso se constitui quando cada sujeito se

assume como ‘eu’ em cada nova enunciação.

Com isso, o autor pode afirmar que a língua também é dêitica, já que precisa de

um locutor para ser acessada – e esse locutor é também dêitico; i.e., a “ponte” entre os

níveis semiótico e semântico, o falante, é quem vai fazer a língua referir a alguma coisa

fora do sistema. E isso sempre a partir da dêixis do sujeito, que enuncia a partir do seu

tempo, no seu espaço. No artigo “Aparelho formal da enunciação”4, o autor mostra que

a diferença da sua concepção em relação às outras é a apropriação pelo locutor do

aparelho formal da língua, ou seja, sua sintaxe, sua fonologia, seus paradigmas, são

preenchidos de significação apenas por meio do locutor.

E se a enunciação é, pois, a língua sendo posta em uso em um ato individual de

utilização, podemos perceber que Benveniste estabelece uma diferença entre língua e

enunciação. A língua é, assim, um sistema que funciona quando é posto em

funcionamento, ou seja, na enunciação. Além disso, só existe uma enunciação quando

há um locutor e um co-locutor, i.e., um alocutário, que vai junto com ele produzir

sentido para o enunciado. Para Benveniste, isso estabelece uma certa relação com o

mundo, porque enquanto o locutor se apropria da língua para referir ao mundo, o co-

locutor pode co-referir da mesma forma. Essa referência, entretanto, possui um centro

interno ao falante porque, ao se apropriar da língua, o locutor introduz aquele que fala

(ele próprio) na sua fala, criando um centro de referência interno. Não se trata de referir

o mundo, então, mas de referir o tempo, o espaço e o locutor.

Dessa forma, mesmo quando não está explicitado, o enunciado é marcado pela

subjetividade do sujeito. Isso se dá, por exemplo, com as formas verbais, sempre

produzidas a partir do “centro da enunciação”, i.e., possuem um referente dentro do

discurso. Assim, “agora” e verbos no presente significam “o momento em que o

enunciador fala”, “ontem” e verbos no passado significam “antes da enunciação” e

verbos e advérbios de futuro significam “depois da enunciação”.

Com a inclusão do falante na significação, Benveniste funda uma linha teórica

que possui ramificações bastante diferentes entre si e uma dessas ramificações é a

Semântica Enunciativa. Benveniste inclui a significação dada pelo falante dentro do que

concerne à lingüística, porque o falante é apresentado como grande formador de sentido

no discurso.

4 BENVENISTE, É. Problemas de lingüística geral. 2 v. Campinas: Pontes, 1989.

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2. As Semânticas da Enunciação e Clássica e a Pragmática: pressupostos e

instrumental

2.1. A Semântica da Enunciação

No mesmo “Semântica e Pragmática”5, pouco mais adiante, Guimarães também

apresenta a sua conceituação de sentença e enunciado e afirma que enquanto “a

semântica formal tem como unidade de análise a sentença, a semântica da enunciação e

a pragmática tomam como unidade de análise o enunciado” (op. cit., p.123).

Por enunciado, ele entende um conjunto de sentenças inter-relacionadas que

significam sozinhas (e, dessa forma, podem inclusive significar relacionadas a outros

enunciados) e em conjunto no momento em que foram enunciadas. Entretanto, ele

afirma que a sentença, tomada isoladamente, não necessariamente precisa ser deixada

de lado nos estudos da enunciação: apenas não é o tratamento que ele pretende dar.

Aparentemente, temos aqui uma relação muito semelhante àquela entre nível semiótico

e semântico, apresentada anteriormente, dentro da teoria de Benveniste: a sentença

pertence, assim, ao nível semiótico, enquanto o enunciado pertence ao semântico.6

A diferença entre sentença e enunciado, assim, é muito semelhante à proposta

por Benveniste. Por ‘sentença’, ele entende o tipo de construção lingüística, dotada de

significado, tomada isoladamente, fora do seu contexto de enunciação. Ou seja, a

sentença é a unidade da língua saussureana. Não se trata, portanto, de abrir mão da

noção de sentença, como querem alguns, mas de incorporá-la e suplantá-la. O

‘enunciado’, por outro lado, é a sentença tomada dentro de seu contexto, ou seja, ele é o

funcionamento dessa sentença em uma situação de enunciação. Dessa forma, mesmo

que uma sentença seja repetida diversas vezes em um mesmo texto, significará coisas

diferentes em cada uma dessas vezes, porque será parte de um novo enunciado.

5 GUIMARÃES, E., Semântica e Pragmática, In: GUIMARÃES, E.; ZOPPI-FONTANA, M. Introdução às Ciências da Linguagem: a palavra e a frase. Campinas: Pontes, 2006. 6 A diferença fundamental, então, entre a Semântica da Enunciação e a Pragmática seria, então, para Guimarães, que “a semântica da enunciação, ao considerar o sujeito que enuncia, o toma como lingüístico, diferente da pragmática que o considera psicologicamente”. (op. cit., p. 123)

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A significação de um enunciado, dentro da perspectiva da Semântica da

Enunciação, se dá pela intersecção de algumas das formas de estudo do significado

citadas anteriormente no texto “Semântica e Pragmática”, de Guimarães: da primeira

forma, que trata da relação dos significados pelo valor lingüístico, e da quarta forma,

que toma o acionamento da linguagem dada pelo falante no momento em que ele

enuncia. A depender de que momento da teoria se observa, também podemos citar a

quinta forma, que inclui o acontecimento. Assim, o significado de uma sentença como:

(1) O bolo do aniversário estava bom.

se dá pelo significado de “bolo”, da especificação que “do aniversário” faz em “bolo”,

da predicação que “estava bom” exerce em “bolo do aniversário” e assim por diante,

caso houvesse mais elementos nessa sentença. Há que se considerar, de acordo com

Guimarães, que não é necessário nada além do funcionamento lingüístico para

interpretar essa sentença, porque é apenas uma unidade da língua tomada isoladamente.

Essa significação, no entanto, é limitada porque pode adquirir significados diferentes

em encadeamentos diferentes. Por exemplo:

(2) O bolo do aniversário estava bom, mas o do ano passado estava melhor.

(3) O bolo do aniversário estava bom, comi uns cinco pedaços.

Esse tipo de observação é muito similar a uma já feita por Ducrot (1987), que é

um dos teóricos que estão no pano de fundo da teoria de Guimarães. Os exemplos de

Ducrot são:

(4) São quase oito horas. Apresse-se.

(5) São quase oito horas. Já é tarde.7

7 DUCROT, Oswald. Polifonia y argumentación, citado por CAMPOS, Claudia M. “O percurso de Ducrot na Teoria da Argumentação na Língua”, Revista da Abralin, no prelo.

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e servem para demonstrar que o funcionamento da sentença é puramente lingüístico, e

não determinado por algum funcionamento externo.8 Entretanto, são úteis para

demonstrar que, fora do seu contexto de enunciação, o significado da sentença é apenas

parcial.

Um enunciado traz consigo uma relação com a pessoa que o enunciou. Assim,

ele não é mais uma sentença, significando sozinha, mas um acontecimento que tem seu

significado dado pela pessoa que falou, de onde, falou, e, além disso, com quem falou.

Isso fica mais evidente quando temos um enunciado como:

(6) O bolo do meu aniversário estava bom.

Essa sentença traz consigo algo que não há como ser interpretado sem que se

busque um referente, ou seja, quando alguém diz “meu”, o significado só pode ser

atribuído em relação a quem disse “meu”9. Essa é uma marca bastante forte, uma vez

que o significado de “meu” não está na língua, mas no funcionamento lingüístico desse

pronome (que é algo como procurar quem disse “meu” e só então atribuir a esse

enunciador o significado de “meu”, antes mesmo de atribuir significado a “o bolo do

meu aniversário”.) A significação de uma sentença como essa é vista como parte de um

processo de colocar essa unidade lingüística em uso, e não só como um processo

sintático.10

Podemos pensar um pouco mais profundamente nisso tomando por base um

outro exemplo, citado pelo próprio Eduardo Guimarães:

8 Ou seja, como os dois encadeamentos começam com a mesma frase, podemos ver que nelas mesmas não há nada que determine uma interpretação ou outra. 9 Estudos da significação dos pronomes foram feitos, anteriormente, por Èmile Benveniste, a quem se credita o fato de demonstrar que a língua é subjetiva por trazer todo o tempo marcas do momento em que é enunciada, ou seja, que toda a língua é dêitica porque sempre faz referência ao hic/nunc, como disse anteriormente. Sublinho que o sentido de dêitico para Benveniste não é o mesmo que para os referencialistas, pois ele não está lidando com a relação entre a língua e seus referentes no mundo, mas com o que ela acessa a partir do seu momento de enunciação. 10 Neste texto, Guimarães ainda distingue a língua enquanto sistema de regularidades, ou seja, o sistema saussureano, e enquanto objeto histórico, exemplificando que uma pessoa que fala português como língua materna é afetada por essa língua de uma maneira diferente de uma pessoa que fala português como língua estrangeira e, além disso, que a língua é constituída pelos seus falantes, ou seja “para pensar a enunciação podemos considerar que as línguas (idiomas) se distribuem enquanto constituem seus falantes. Assim, o falante (...) é aquele que é tomado enquanto tal pelas línguas que fazem dele um falante”. (op. cit., p. 124) Entretanto, esse tipo de trabalho está mais fortemente desenvolvido em seu livro “Semântica do Acontecimento”, que não interessa tratar nesse trabalho, por se tratar de estudos mais focados em outras áreas de interesse.

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(7) Você poderia me trazer um jornal amanhã?

Nesse exemplo, não sabemos ao certo o significado desse enunciado, porque está

descolado de qualquer contexto. Não podemos saber se isso é uma ordem, um pedido ou

mesmo um conselho, justamente porque é uma sentença fora da sua situação

comunicativa. Dessa forma, o significado, que vem da relação entre o locutor e o

alocutário (o falante e seu interlocutor), não pode ser estabelecido. Em uma situação em

que o falante é o chefe do interlocutor, por exemplo, o enunciado seria uma ordem.

Caso fosse um colega de repartição, seria um pedido, e assim por diante. O que ele quer

ressaltar aqui é que a sentença significa, mas que o seu significado se amplia na medida

em que seu contexto é trazido junto, ou seja, em que é vista como um enunciado11.

2.1.1. Ducrot e suas contribuições

Venho, até aqui, justificando a Semântica da Enunciação como pertencente a

uma linha que parte de Benveniste, através da inclusão do enunciador nos estudos

lingüísticos. O enunciador, para a Semântica Clássica, como veremos adiante, não faz

parte da teoria. Não se leva em conta a enunciação, o contexto, o falante: apenas o

sistema lingüístico importa. Entretanto, como já citado anteriormente, para Benveniste o

sistema também conta, e o falante faz parte dele.

O sistema lingüístico é fundamentalmente importante também para os trabalhos

de Oswald Ducrot. Ele, aluno de Benveniste e, por isso, alguém que assume as mesmas

concepções teóricas para dar início aos seus estudos, junto com J.C. Anscombre (na

primeira parte de sua teoria e, mais recentemente, acompanhado de Marion Carel),

desenvolve estudos para incluir, também no sistema, a argumentação dentro da

enunciação. A partir do momento que o enunciador fala, portanto, não pode deixar de

argumentar porque esse ato está inscrito na estrutura da língua.

Ducrot cria espaço para sua teoria, primeiramente, suplantando o que ele chama

de “concepção tradicional da argumentação” (que é a encontrada em diversos lugares, e

11 Nesse trecho, (p. 125-126), Guimarães deixa claro que não se trata da situação, mas do acontecimento. Esses dois termos estão diferenciados explicitamente dentro de seu trabalho. Entretanto, uso esses termos indistintamente porque são apenas para introduzir e porque não faz parte do meu trabalho discutir essas questões.

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está exemplificada na Encyclopédie Philosophique Universelle12). Ele a chama de

tradicional porque é a utilizada pela maioria dos autores que se referem à argumentação

e por representar a concepção de argumentação da retórica clássica. (Entretanto, como

essa idéia ainda não parece muito difundida, encontram-se ainda hoje equívocos entre

lingüistas no tratamento dessa questão.) Essa concepção entende que a argumentação é

um ato retórico que tem por base a apresentação de um argumento que leva a uma

conclusão, passando por uma lei moral ou social já conhecida, que é o que sustenta a

argumentação.

Assim, um falante que quisesse argumentar deveria “impor a seu ouvinte uma

conclusão através da apresentação de uma razão13”. Essa razão se desmembraria em

“argumento” e “lei”, que seriam os responsáveis por fazer o ouvinte chegar do

argumento à conclusão. Essa lei, moral ou social, não necessariamente precisaria estar

explícita porque, se é de fato conhecida por todos, pode ser compreendida

implicitamente.

Assim, teríamos, por exemplo:

(8) João não dirige mais o carro porque levou um susto na estrada.

(A): João levou um susto na estrada

(C): João não dirige mais.

(L): “Gato escaldado tem medo de água fria”

onde (A) é o argumento, (C) a conclusão e (L) a lei social (no caso, um ditado popular).

Uma fórmula para representação visual seria algo como A C (L), ou seja, A que

aponta para C passando por uma L.

Ducrot, entretanto, percebe que nem sempre as sentenças que utilizamos para

levar a uma conclusão passam por uma lei social. Dessa forma, ele desenvolve a teoria

da “argumentação na língua”14, i.e., entende que a argumentação é algo que está inscrito

12 In CAMPOS, Claudia. Efeitos argumentativos na escrita infantil ou a ilusão da argumentação. Tese de doutorado. Campinas, 2005. 13 Idem. 14 Em francês, L’Argumentation dans la Langue, o que nos passa a idéia de “inserido na”, como sendo algo interior a ela.

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na estrutura interna da língua e que ela acontece mesmo que não se leve em conta o

mundo exterior.

Nesse ponto da teoria, Ducrot postula, então, os topoi argumentativos:

apresentados como princípios internos ao enunciado, são responsáveis por várias

possibilidades diferentes de conclusões a partir de um mesmo enunciado. Assim, a

partir do mesmo A usado no exemplo (8), em que concluímos C, podemos chegar a uma

C’:

(9) Porque levou um susto na estrada, João agora dirige melhor.

Aqui, C’ é oposta a C, que era apoiada em L, mas não há no enunciado nenhuma

evidência que mostre que C’ não possa ser aceita, ou seja, que apenas C pode ser aceita

a partir daquele enunciado. Como não há nenhum problema em aceitarmos esse

enunciado, percebemos então que a conclusão C’ não se apóia em nada a não ser no

próprio argumento A.

Se a teoria dos topoi não é a mesma utilizada pela retórica, podemos perceber

que ela não se pretende a explicar se o enunciador convence ou não o seu interlocutor (o

que parece ser uma das principais bases da retórica) e nem mesmo diz se há ou não uma

lei por trás disso: a preocupação é meramente estrutural e apoiada no sistema lingüístico

interno.

Isso significa dizer que a intenção está fora dos planos desse estudo e, além

disso, que a conclusão tirada a partir do enunciado depende unicamente do interlocutor,

por que o enunciador apenas produz um efeito de sentido: a conclusão não é dada pela

sua vontade. Por exemplo, um enunciado como:

(10) O tempo está bom. Vamos levar as crianças ao cinema.

não traz nada anterior a ele, i.e., não há um dito popular ou uma lei social internalizada

aos falantes que postule que, toda e qualquer vez que o tempo estiver bom, as pessoas

devam levar as crianças ao cinema. Até mesmo porque, a depender da situação, o

enunciador pode não entender “o tempo está bom” como argumento para levar crianças

ao cinema (ou porque não há cinema na cidade, ou porque ele não tem crianças, ou

mesmo porque pode estar fazendo muito calor para sair de casa). Além disso, o tempo

estar bom não é uma condição essencial para que as crianças sejam levadas ao cinema

Page 16: Significados: Uma abordagem da significação pelos vieses da ...

16

(em dias de tempo nublado, com vento ou com chuva, por exemplo, elas também podem

ser levadas ao cinema). O que importa nessas observações é o fato de que (C), de

qualquer forma, é a conclusão para (A) no exemplo (10) porque o enunciador fez essa

escolha. (Caso o enunciado não trouxesse explicitada a conclusão, ela dependeria

unicamente do interlocutor que poderia entender, assim, qualquer uma das opções dadas

acima ou ainda outras, porque são muitas as possibilidades.)

No entanto, a teoria de Ducrot vai além dessas observações. Para comprovar que

a tal lei social não predetermina uma conclusão, ele apresenta um exemplo em que dois

enunciados iguais apontam para conclusões diferentes (até mesmo opostas):

(4) São quase oito horas. Apresse-se.

(5) São quase oito horas. Já é tarde.

Isso nos mostra que (C) não necessariamente é acionada por uma lei externa,

porque o conteúdo informativo das duas sentenças é exatamente o mesmo. A conclusão

não pode, então, depender do que está sendo informado ou mesmo de algo exterior e

subentendido, mas o é apenas lingüisticamente. Vemos, então, que os topoi são

elementos determinados a partir do “contexto”, i.e., do momento histórico da

enunciação, de quem são os falantes em questão, de quais conclusões são passíveis de

serem tiradas de um mesmo argumento. De fato, as conclusões não parecem ser tiradas

de leis sociológicas antecedentes, mas do momento em que a enunciação se dá. A

responsabilidade sobre qual conclusão deve ser tirada pertence, portanto, à língua, ao

topos: princípio argumentativo que é o “elo” lingüístico responsável pelo “salto” de (A)

para (C).

Os topoi são entendidos, por Ducrot, como princípios com três características

que explicam seu funcionamento na língua: são universais, gerais e graduais.

Possuir uma universalidade não significa ser conhecido por todas as pessoas ou

possuir um antecedente cognitivo (isso levaria a uma semelhança preocupante com as

leis sociológicas), mas ser entendido como universal no momento da enunciação. Para

que uma conclusão seja acessada, é necessário que todos aqueles que participam da

enunciação, naquele momento, tratem a conclusão como sendo a única possível.

(11) Estou feliz porque voltou a chover.

Page 17: Significados: Uma abordagem da significação pelos vieses da ...

17

Nesse exemplo, podemos apenas retirar a conclusão “estou feliz” se eu e meu

interlocutor estivermos “de acordo” quanto ao fato de que é uma coisa boa que chova,

i.e., voltar a chover é um argumento válido na direção dessa conclusão nesse momento.

Caso o topos da frase não seja entendido dessa forma, poderíamos causar um

desentendimento, ou seja, meu interlocutor poderia me questionar, por exemplo, “como

assim? Chover é ruim, atrapalha as coisas”. Por isso, no momento da enunciação, o

topos é tratado como universal – mesmo que seja compartilhado por apenas duas

pessoas – para que a conclusão apontada seja entendida como possível.

Por outro lado, a generalidade dos topoi os torna “utilizáveis” em diversas

situações. Isso significa que não são úteis para apenas uma situação, mas aplicáveis a

diversas outras. Nas palavras do próprio Ducrot: “é geral, ou seja, é aceito como

princípio aplicável a uma infinidade de situações análogas e não só a situação em que é

aplicado como base do encadeamento dos enunciados”15. Em (12) temos, por exemplo:

(12) É bom que tenha voltado a chover.

Aqui, podemos ver que a conclusão a que o argumento leva não é aplicada em

todas as situações (mesmo porque eu já mencionei que essa conclusão pode ser

questionada; por exemplo, em casos em que a região esteja passando por um período de

enchentes), mas ela também se aplica a diversas outras situações, por exemplo quando a

região passa por uma estiagem severa. Assim, em qualquer caso em que haja um

racionamento de água ou que a chuva seja muito necessária, esse topos pode ser

acessado. A generalidade trata das diversas aplicações do mesmo topos, a depender da

situação.

Por fim, a gradualidade mostra que os topoi podem ser colocados em “escalas

argumentativas”, como sendo mais ou menos fortes para uma determinada conclusão.

Assim, duas escalas argumentativas podem ser comparadas entre si.

Como Ducrot define É gradual, porque estabelece uma relação gradual entre duas escalas argumentativas; atente-se para o fato de que a gradualidade considerada alude a uma propriedade dos predicados na língua e não dos objetos, qualidades, ações ou estados nomeados nos enunciados; ou seja, a “gradualidade resulta do fato

15 DUCROT, citado por ZOPPI-FONTANA, Mónica. “Retórica e Argumentação”. In ORLANDI, E. e LAGAZZI-RODRIGUES, S. (orgs) Discurso e Textualidade. Campinas: Pontes Editores, 2006.

Page 18: Significados: Uma abordagem da significação pelos vieses da ...

18

de que as palavras exprimem possibilidades de encadeamento, conclusivos, ou exceptivos, e que a força destes encadeamentos é ela mesma gradual”. 16

página

Isto significa que os topoi podem ser colocados num gráfico de

proporcionalidade: sempre que o argumento sobe, a conclusão sobe; por outro lado,

pode também ocorrer que sejam inversamente proporcionais e, assim, quando um lado

sobe, o outro desce. Vejamos um exemplo:

(13) Voltou a chover, então não há mais motivo para preocupação.

Nesse caso, o argumento “voltou a chover” leva a conclusão de que “a falta de

chuva é motivo para preocupação”. (Evidentemente, como já dito anteriormente, em

casos em que a chuva é motivo para enchentes o argumento não valeria, mas não

perderia sua gradualidade, ou seja, a relação escalar ainda seria mantida.)

(Lê-se “quanto mais chuva, menos preocupação. Quanto menos chuva, mais

preocupação.”)

Se, por outro lado, a relação for invertida, ainda assim a gradualidade se

mantém:

(Lê-se: “quanto mais chuva, mais preocupação. Quanto menos chuva, menos

preocupação.” Esse topos seria válido no caso das enchentes, como citado acima. Como

vimos, a operação é basicamente lingüística porque funciona apenas com os elementos

da sentença. Se colocamos em cena operadores argumentativos, como as conjunções,

16 ANSCOMBRE e DUCROT, citados por ZOPPI-FONTANA, Mónica. “Retórica e Argumentação”.

Gráfico 1

chuva preocupação

Gráfico 2

preocupação chuva

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19

podemos ver mais facilmente como a força argumentativa aumenta (e, assim, o

argumento sobe na escala)):

(14) O jantar estava bom. Maria repetiu.

mas

(15) O jantar estava bom. Até Maria repetiu.

Quer dizer, com o uso desse operador argumentativo, o argumento ganha uma

maior força, porque pelo seu funcionamento ele destaca o argumento a que precede

como mais forte. O interlocutor pode não saber quem é Maria, mas o uso do “até” faz

com que ela seja imediatamente identificada como alguém que não gosta muito de

jantares ou mesmo de comer. Mas, se alguém nos diz que ela repetiu, e mais do que

isso, que “até ela repetiu”, podemos concluir que o jantar estava bom.

Na escala:

Com isso, podemos ver que as três propriedades com as quais os topoi se

identificam evidenciam que a argumentação está inscrita na língua e é apenas o seu

funcionamento que determina uma ou outra interpretação e, mesmo independente das

conclusões a que apontem, os topoi mantêm as mesmas propriedades. Portanto, para a

teoria de Ducrot, a língua é o que define a argumentação.

Nessa mesma linha, Eduardo Guimarães surge como um teórico preocupado em

dar conta da polifonia dentro dessa argumentação por meio da análise de conjunções.

Ou seja, ele assume a polifonia e o estudo das conjunções iniciados por Ducrot para

Gráfico 3

Maria repetiu.

Até Maria repetiu.

r : O jantar estava bom.

Page 20: Significados: Uma abordagem da significação pelos vieses da ...

20

formular um modelo que dê conta desses estudos em português.17 Assim, em seu livro

Texto e argumentação, Guimarães propõe um estudo do funcionamento polifônico e

argumentativo de algumas conjunções demonstrando, inclusive por meio de gráficos,

como podemos destacar os enunciadores que caracterizam essa polifonia.

Ao entrar em contato com o conceito de polifonia, não podemos deixar de lado

a carga histórica desse termo, cunhado pelo estudioso da linguagem russo Mikhail

Bakhtin para explicar o romance de Fiódor Dostoiévski. Para Bakhtin, tal romance seria

“polifônico” porque existem muitas vozes narrativas se entrelaçando no decorrer do

texto. A concepção de polifonia utilizada aqui não é essa, embora tenha sido baseada

nela. Por polifonia, Guimarães entende, emprestando o termo de Ducrot, um

funcionamento de conjunções que coloca em cena, no discurso, duas orientações

diferentes. Para simplificar, enquanto uma voz coloca em cena um argumento, outra voz

coloca em cena outro argumento. A depender da conjunção utilizada, prevalece um ou

outro. Vejamos um exemplo:

(16) Embora não goste de carne vermelha, Maria freqüenta churrascarias.

Podemos perceber que há nessa frase dois “fragmentos”: o primeiro diz “Maria

não gosta de carne vermelha” e o segundo diz “freqüenta churrascarias”. Esses dois

“fragmentos” seriam, a princípio, contraditórios entre si, mas podem ser colocados em

uma mesma frase graças ao funcionamento da conjunção ‘embora’. A esses dois

fragmentos, chamamos “vozes enunciativas”, ou seja, vêm de “enunciadores”

diferentes. Isso não significa que são duas pessoas afirmando coisas diferentes, mas que

na mesma frase podemos ter dois “pontos de vista” incorporados no discurso da mesma

pessoa. Essa é a “polifonia” ou “polifonia argumentativa”. Além do ‘embora’, existem

outras conjunções que possuem esse funcionamento, como o ‘mas’, o ‘entretanto’, e ‘no

entanto’, por exemplo.

Outra conjunção que apresenta uma configuração polifônica bastante

interessante é a conjunção ‘até’, que foi objeto de estudos não só de Guimarães como

também de Ducrot, que a viu como uma conjunção que é capaz de estabelecer uma

escala, relacionando argumentos mais ou menos fortes. Além de ser estudado por

17 Eduardo Guimarães possui diversos trabalhos posteriores a esses que estou utilizando e lançou, recentemente, uma edição revista e ampliada de Texto e Argumentação, incluindo estudos que não dizem respeito exatamente à mesma linha adotada por Ducrot. Ele parte dela, mas dá um passo em outra direção.

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21

Ducrot, o ‘até’ é também apresentado em Texto e Argumentação, mas com um viés que

inclui a polifonia, que relaciona mais que dois argumentos em direção a uma conclusão.

Vejamos um exemplo:

(17) João não fez a lição de casa, tirou nota baixa e até levou suspensão por um

dia.

Ou seja, para apontar na direção de uma conclusão como “João não está bem na

escola”, são elencados três argumentos:

(A1) João não fez a lição de casa.

(A2) João tirou nota baixa.

(A3) João levou suspensão por um dia.

Apresentados assim, esses três argumentos têm, lingüisticamente, o mesmo

valor. Ou seja, não há evidência na língua de que um é mais forte que o outro. Quando o

até introduz um deles, este passa a ser mais forte pelo valor que o ‘até’ lhe confere.

Assim, podemos ver que na direção da conclusão “João não está bem na escola”, o

argumento que “ele levou suspensão por um dia” é o mais forte.

O funcionamento das conjunções é bastante emblemático para que entendamos o

que essa teoria chama de polifonia e de argumentação. Aqui, o que está em jogo não é

apenas a carga semântica, mas a utilização dos elementos lingüísticos dentro de um

enunciado, em um determinado momento. A Semântica da Enunciação, ao contrário da

Pragmática (que poderia ser entendida como uma área que se ocupa de questões

semelhantes), pretende ficar no nível lingüístico da relação entre os constituintes da

frase, enquanto a Pragmática se ocuparia do contexto e das situações interacionais que

dão margem a diversas interpretações.

2.2 A Semântica Clássica

A fim de complementar os estudos da significação, considerei necessário voltar

os olhos, ainda que muito mais rapidamente do que o necessário, para questões

concernentes à Semântica Clássica. Para citar Roberta Pires de Oliveira (2001), “a

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22

Semântica Formal (...) historicamente (...) antecede as demais, o que a torna o

referencial teórico e o grande inimigo a ser destruído”18. Embora não seja parte do meu

objetivo com esse trabalho “destruir o grande inimigo”, pretendo discutir alguns

pressupostos dessa área porque certamente as outras formas de estudar o significado

travam com ela um debate muito forte, ou seja, é o referencial teórico com que, depois

dela, se dialogou ou o que se refutou para postular novas teorias.

Para lidarmos com o tratamento que a Semântica dá para as sentenças,

precisamos antes conhecer alguns de seus conceitos. Existem na Semântica diversos

estudos em campos mais lexicais, ou seja, relações como sinonímia, antonímia,

hiponímia, que não são de especial interesse neste trabalho, porque me interessa

particularmente o tratamento dado às sentenças.

Começaremos com o conceito de acarretamento, uma das mais iniciais, mas nem

por isso menos importante. Na Semântica Clássica, diz-se que uma sentença acarreta

outra quando o sentido de uma está contido no sentido da outra, ou seja, quando a

verdade de uma sentença depende da verdade de outra.

Assim, uma sentença como:

(18a) Isto é um bolo de morango.

contém o sentido de

(18b) Isto é um bolo e é de morango.

Se a sentença 18b for negada, haverá uma contradição em relação à 18a, ou seja,

não se pode dizer “Isto é um bolo de morango, mas isto não é um bolo”, ou ainda, “Isto

é um bolo de morango, mas não é de morango”. Ou seja, o sentido de 18b está contido

no sentido de 18a.

Da mesma forma, uma frase como:

(19a) João chegou atrasado na festa.

contém o sentido de

18OLIVEIRA, Roberta P. “Semântica” in BENTES, Anna Christina e MUSSALIN, Fernanda (orgs.) Introdução à Lingüística: Domínios e Fronteiras. Volumes 1 e 2. São Paulo: Cortez Editora. 2001

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23

(19b) Alguém chegou atrasado na festa.

Se é verdade que “João chegou atrasado na festa”, então também é verdade que

“alguém chegou atrasado”.

Entretanto, uma sentença como:

(20a) Houve um roubo no shopping.

não acarreta

(20b) O shopping foi roubado.

pois, como podemos imaginar, alguém que estava dentro do shopping pode ter sido

roubado e isso não significa que quem foi roubado tenha sido o shopping. Logo,

podemos negar (20b) sem que a sentença (20a) fique contraditória.

Assim, podemos dizer, como encontramos em Cançado (2005) que

“duas sentenças estabelecem uma relação de acarretamento quando: a sentença (a) é verdadeira, a sentença (b) também é verdadeira; a informação da sentença (b) está contida na informação da sentença (a); a sentença (a) e a negação da sentença (b) são contraditórias” (op. cit, p. 30).

Logo, é a partir de testes como os que fizemos acima que comprovamos ou refutamos o

fato de uma sentença acarretar a outra.

Uma noção bastante próxima do acarretamento é a pressuposição. Este é um

conceito bastante estudado por diversas linhas e que interessa diretamente a áreas dentro

da Semântica. A abordagem que tomarei aqui é a mesma discutida por Cançado (2005),

que é conhecida como “referencialista”19.

Assim, a pressuposição é um pouco diferente do acarretamento porque este é

resultado apenas do conteúdo estritamente semântico de uma sentença. O acarretamento

19 Evidentemente, como estou usando diversos conceitos da Semântica Referencialista, é uma forma de tornar o trabalho mais coerente adotar a mesma linha para tratar dos diversos fenômenos. Cançado mostra, no entanto, que a abordagem feita por ela é a mesma adotada, por exemplo, por CHIERCHIA, 2003. LYONS, 1977; KEMPSON, 1977; entre outros, em oposição a correntes que tratam separadamente as pressuposições semânticas e as pragmáticas, como LEECH, 1981, e os que a entendem somente como uma relação pragmática, como STALKANER, 1974, por exemplo.

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24

é apenas o que podemos extrair do sistema lingüístico sem precisarmos recorrer a

exterioridades. Mas existe em determinadas sentenças, como observou Frege (1892)20,

um tipo de conteúdo que não é afetado quando mudamos a sua estrutura, ou seja, que

mesmo que a neguemos, ou a coloquemos numa forma interrogativa ou ainda que

façamos uma condicional, há algo nela que permanece imutável.

Vejamos um exemplo:

(21) João parou de fumar.

a’João não parou de fumar.

a”João parou de fumar?

a”’Se João parou de fumar, Maria está feliz.

b. João fuma.

Em todas essas sentenças, permanece o conteúdo “João fuma”. Esse conteúdo é

anterior ao que está sendo afirmado na sentença (21); precisamos assumir o sentido de

‘b’ para que qualquer uma dessas sentenças possa ser dita.21 Um caso diferente ocorre,

por exemplo, quando a sentença é:

(22) Maria acha que João fuma.

a’ Maria não acha que João fuma.

a” Maria acha que João fuma?

a”’Se Maria acha que João fuma, então deve estar louca.

b. João fuma.

Não é necessariamente verdade que “João fuma” para que Maria ache que ele

fuma, ou seja, mesmo que ele não fume, ela poderia pensar que ele fuma, por qualquer

outro motivo. Então, mesmo que João não fume, a sentença 22 não necessariamente

20 FREGE, On sense and reference, apud CANÇADO, M. Manual de Semântica, 2005. 21 Não estou, com isso, afirmando que não possa haver nenhuma implicação pragmática para essa sentença. Obviamente, se conhecemos João e sabemos que ele fuma podemos entender a sentença e até mesmo localizar a referência da sentença. Entretanto, o que é semântico nesse caso é o fato de que não é preciso que conheçamos João, nem saibamos que ele fuma, para sabermos que ele fuma quando ouvimos a sentença “João parou de fumar”.

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25

deixa de ser verdadeira.22

Empresto de Cançado (2005, p. 35) a definição de pressuposição: “A sentença

(a) pressupõe a sentença (b) se, e somente se, a sentença (a), assim como também os

outros membros da família da sentença (a) tomarem a sentença (b) como verdade.” (Por

família, ela entende as quatro formas testadas acima, ou seja, a asserção, a negação, a

interrogação e a condicional.)

Além dos conceitos de acarretamento e de pressuposição, pretendo também

discutir o conceito de sinonímia, uma propriedade do significado que é algo bastante

complexo. Não vou discutir aqui sinonímia entre palavras, algo que certamente é

motivo de grandes questionamentos na Semântica, mas sim entre sentenças. Para

emprestar a definição de Ilari & Geraldi23, “podemos dizer que duas palavras são

sinônimas sempre que podem ser substituídas no contexto de qualquer frase sem que a

frase passe de falsa a verdadeira, ou vice-versa”. Evidentemente, não é assim tão

simples classificar as sentenças como sinônimas simplesmente pelo seu contexto,

porque o contexto não é algo considerado formal para muitas teorias, embora ainda seja

parte do lingüístico. Para inserir a sinonímia dentro de um tratamento formal, diz-se que

“a sentença (a) é sinônimo de conteúdo da sentença (b) quando (a) acarretar (b) e (b)

acarretar (a)” (Cançado, ibidem, p. 45). Isso significa, basicamente, que as duas

sentenças devem possuir uma relação entre si tal que o significado de uma esteja

contido no significado da outra e vice-versa. Um exemplo de sinonímia seria:

(23) Eu fiz um bolo.

e

(24) Um bolo foi feito por mim.

22 Há uma regularização bastante interessante para os verbos que desencadeiam pressuposições e verbos que não desencadeiam. Os verbos chamados factivos, como por exemplo saber, esquecer, adivinhar, pressupõem a verdade do que está sendo afirmado. (Pensemos em “Maria sabe que João fuma.”) Já os verbos não-factivos, como é o caso do achar supracitado e mesmo de imaginar, pensar, desconfiar, não pressupõem a verdade do que está sendo afirmado. (Cf. Cançado 2005, p. 38-39) Entretanto, como sabemos, o falante não é ingênuo ao escolher determinadas formas e, pragmaticamente, escolher uma forma em detrimento da outra já possui um significado. As relações de significação da pragmática serão discutidas posteriormente nesse trabalho. 23 ILARI, R. e GERALDI, J.W. Semântica, 1987, apud CANÇADO, M. Manual de Semântica, 2005.

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26

porque, se é verdade que eu fiz um bolo, é verdade que um bolo foi feito por mim.

Sentenças na voz passiva são geralmente entendidas como sinônimas de sentenças na

voz ativa (embora existam exemplos em que essa relação não se verifique, como em

(25) Eu fiz as malas.

E

(26) As malas foram feitas por mim,

em que o sentido de 25 não necessariamente é o mesmo de 26). O principal aqui é

mostrar que existe um teste para verificar se duas frases são sinônimas para essa

abordagem: quando há um acarretamento mútuo entre as duas.

Assim, uma frase como:

(27) Eu fiz um bolo de laranja.

acarreta que eu fiz um bolo, então ela seria sinônima da frase (23) e da frase (24) , mas

não acarreta que

(28) Eu fiz um bolo de cenoura.

ou seja, (27) não é sinônimo de (28).

Embora essas exemplificações pareçam bastante óbvias e intuitivas, é necessário

ressaltar que o que quero é mostrar que linguisticamente essas sentenças apresentam

informações muito semelhantes, mas que ainda assim não se acarretam mutuamente, o

que não as torna sinônimas. Além disso, é interessante notar que (23) e (27) também

não se acarretam mutuamente e, portanto, não são sinônimas. O fato de apenas uma

possuir relação de acarretamento com a outra não é suficiente para que se tornem

sinônimas.

2.2.1 O tratamento da referência

Antes de começar esse trabalho, foi necessário fazer um recorte de que tipo de

estudos semânticos gostaria de confrontar, uma vez que muita coisa já foi feita dentro

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27

dessa área e que, em um trabalho dessa extensão, não seria conveniente tentar explicar

as diversas correntes porque resultaria em um trabalho superficial. Dessa forma, uma

das vertentes teóricas escolhidas foi a Semântica Referencialista, como apresentada,

entre outros, por John Lyons, que se interessa por questões que mais tarde também

foram abordadas por Eduardo Guimarães e por outros teóricos da Semântica da

Enunciação. Dentro desse recorte, optei por, primeiramente, entender o que são sentido

e referência dentro dessa abordagem para, assim, confrontar e estabelecer parâmetros

entre as diversas linhas teóricas.

Em primeiro lugar, é importante recortar dos estudos do significado a

representação individual, mental, que cada “palavra” suscita. Em todas as vezes que eu

usei “bolo” como exemplo, todos os meus possíveis interlocutores tiveram uma

“imagem” diferente em suas cabeças. Essa imagem mental é deixada de lado nessa

perspectiva. O que o estudo do significado recorta é o que há de comum, ou seja, de

objetivo, no significado de “bolo”. Como todos nós somos capazes de chamar coisas

semelhantes de “bolo” e como muitos de nós concordaremos que “bolo” é diferente de

“pudim” e que se eu chamar um “bolo” de “pudim” isso vai causar um estranhamento,

poderemos perceber, então, qual é a diferença entre sentido e referência. É o sentido da

palavra “bolo” que me permite chegar à sua referência, ou seja, “o bolo que foi comido

no dia em que eu fiz aniversário”, só para permanecer no mesmo exemplo que usei no

texto todo. Quando eu chamo um “bolo” de “pudim”, estou usando um sentido diferente

do usual para a referência que é “pudim”.

Essa diferença entre referência e sentido é clássica, e foi estabelecida por Frege

(1892). Ele percebeu que a referência permanecia a mesma mesmo quando o sentido

mudava. Em seu clássico exemplo,

(29) A estrela da manhã é a estrela da tarde.

isso fica evidente. Para entendermos qual o significado dessa frase, precisamos

entender, em primeiro lugar, que as expressões “estrela da manhã” e “estrela da tarde”

apresentam a mesma referência (o planeta Vênus), mas não o mesmo sentido. Isso

significa dizer que existe uma mesma coisa no mundo que pode ser acionada por

diversas formas, ou seja, por meio de diversos sentidos.

Se não fosse assim, a frase acima poderia ser reescrita como:

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28

(30) Vênus é Vênus.

o que não parece ser uma reescrita possível, uma vez que essa sentença não informa

nada, ao contrário da frase (29), que pode informar a alguém que não saiba que a

“estrela da manhã” é a mesma “estrela da tarde”. Só podemos entender que essas duas

frases são coisas diferentes e, mais, que dizem coisas diferentes, porque o seu sentido é

diferente, apesar de possuírem a mesma referência. Em todos os casos, estou falando do

mesmo “planeta que fica antes da Terra na ordem da distância do sol”, por vias

lingüísticas diferentes. (Inclusive, acabei de mudar o sentido da expressão para dar o

exemplo acima.)

Dessa forma, como discutida por Lyons em seu livro Semântica, a referência é o

modo como, pela linguagem, o falante aciona o sentido. Parece haver um consenso entre

as diferentes áreas da Semântica em adotar (pelo menos como base para discussões

posteriores) essa clássica diferenciação.

“O sentido é, pois, o que nos permite chegar a uma referência no mundo”24, (p.

21) como coloca Roberta Pires de Oliveira. Para permanecer na astronomia, Frege

propõe uma analogia com um telescópio, que está apontado para a lua. A lua é a

referência. Ela está lá, não importa que estejamos ou não observando-a. As imagens

formadas no telescópio, a depender do ângulo pelo qual estamos observando nesse

telescópio, são os sentidos diferentes. A cada mudança no ângulo, saberemos outra

coisa a respeito da lua. A cada mudança de sentido, novas informações podem ser dadas

sobre essa referência. As imagens formadas no cérebro de cada um estão excluídas

desses estudos, como havia mencionado anteriormente (e isso não faz com que deixem

de ser objeto para outros, como a Psicologia, por exemplo).

Entretanto, Lyons admite que “há outras maneiras de definir a noção de

referência” e admite que “uma expressão pode ter uma referência independentemente da

utilização que dela faz um locutor para se referir a uma dada entidade”(Lyons, 1977. p.

148). Isso, entretanto, faz parte de diversos outros estudos, sobre os quais não me

debruçarei nesse trabalho. 24 Evidentemente, há muitas controvérsias a respeito do significado da palavra “mundo”. Quando usamos essa palavra, precisamos levar em conta que para diferentes teorias o mundo é uma coisa diferente. Para alguns, mundo existe separadamente da linguagem. Para outros, o que acontece é que criamos uma ontologia para a qual nos referimos quando usamos as palavras. Essa discussão não está sendo posta aqui. O que quero colocar é que usamos uma expressão lingüística, nomeadamente, “bolo”, para nos referirmos a alguma coisa que convencionalmente é um bolo. Se esse bolo é parte do mundo ou recortado pela linguagem é assunto para outro trabalho.

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29

Lyons25 faz uma ressalva dizendo que o tipo de abordagem que ele faz não é o

único possível e que coexistem diversas formas de pensar tanto o sentido quanto a

referência e que essas formas se apresentam em teorias diversas. Porém, para ele, a

referência “tem a ver com a relação existente entre uma expressão e aquilo que ela

designa ou representa em ocasiões particulares da sua enunciação”26 (op. cit., p. 145).

O que depreendemos disso é, então, que o processo pelo qual acessamos algo no

mundo é lingüístico, e, assim, é feito por meio de expressões da língua, a que Lyons

chama de “expressões referenciais”. A referência é, então, aquilo que, por meio de uma

expressão referencial, pode ser referido no mundo. Assim, “o bolo do aniversário” é

uma expressão lingüística, referencial, que aciona aquilo que, no mundo, é “o bolo que

foi feito por ocasião do aniversário de alguém”, ou “o tipo de bolo que se costuma fazer

em aniversários”, ou “o bolo de morango com cobertura de chocolate”, ou “o bolo que

estava em cima da mesa” e assim por diante, de modo que qualquer uma dessas

expressões seja capaz de recuperar, no mundo, o bolo em questão.

Assim, podemos, por exemplo, ter uma frase como:

(31) O bolo do aniversário da Maria era de morango.

para dar uma informação a alguém que é capaz de recuperar, no mundo, a informação

“o bolo de aniversário da Maria” e associar a ele o predicado “era de morango”. Essa

recuperação é lingüística e, se “for bem sucedida, a expressão referencial permitirá que

o interlocutor identifique o indivíduo [objeto] em questão” (op cit, p.147).

Entretanto, algo pode ter a mesma referência mas sentidos diferentes. O exemplo

clássico é a frase discutida por Frege (1892), que citei no tópico anterior:

(29) A estrela da manhã é a estrela da tarde.

em que podemos observar que, porque a "estrela da manhã" e a "estrela da tarde" se

referem ambas ao planeta Vênus, são duas expressões que possuem o mesmo referente

(o planeta Vênus), mas não possuem o mesmo sentido. O teste que Frege propõe para

25 LYONS, John. Semântica I. Lisboa: Editorial Presença/Martins Fontes, 1977. 26 Discutiremos adiante o conceito de enunciação nos demais autores que são objeto de estudo desse trabalho, bem como as suas conseqüências em cada teoria.

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isso seria informar a uma pessoa que desconhece o fato de que as duas expressões se

referem ao mesmo planeta que “A estrela da manhã é a estrela da tarde”. Essa frase não

apresenta nenhum problema, como apresentaria caso os sentidos fossem os mesmos. É o

que discuti acima: uma sentença só pode informar que duas coisas apresentadas como

diferentes têm o mesmo referente no mundo caso as expressões lingüísticas possuam

sentidos diferentes.

A diferenciação entre sentença e enunciado (que, como vimos, é fundamental

para a Semântica da Enunciação, como veremos adiante) também é apresentada por

Lyons, embora com objetivos bastante diferentes do que faz a Semântica da

Enunciação, por exemplo. Para exemplificar, a distinção entre locutor e enunciador não

existe, porque o locutor é apenas uma virtualidade, é apenas aquele personagem que fala

e, por isso, não recebe um tratamento mais específico. Como essa distinção não é

relevante para a Semântica Clássica, deixo de lado essa discussão.

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3. Tratamento dos fenômenos pelas diferentes teorias

3.1 Tratamentos de pressuposição

Como venho dizendo desde o começo desse trabalho, a Semântica, como

qualquer disciplina científica, é composta por diversas áreas, que se ocupam de questões

por vezes diferentes, por vezes semelhantes. Como o que me interessa nesse trabalho é

mostrar as diferenças nos seus pressupostos teóricos e, portanto, de seus objetos, uma

vez que é o ponto de vista, a teorização, que o define e caracteriza o objeto, olharei com

mais cautela para os fenômenos observados pelas áreas em questão e verei que tipo de

tratamento é dado por elas.

A respeito disso, o texto supracitado de Roberta Pires de Oliveira, “Semântica”,

demonstra as diferenças entre três áreas de estudos semânticos no Brasil,27 (que,

segundo ela, são as que mais fortemente foram desenvolvidas), através da especificação

do tratamento de cada uma a respeito da pressuposição.

Ora, a pressuposição é um fenômeno bastante caro aos estudos semânticos e é

extremamente interessante que saibamos que tipo de tratamento cada uma dessas áreas

dá a ele. Roberta Pires de Oliveira nos mostra qual é o da Semântica Clássica.

Quando temos uma frase do tipo

(32) João parou de fumar.

27 A saber, a Semântica Formal, a Semântica da Enunciação e a Semântica Cognitiva. Para esse trabalho, no entanto, deixaremos de lado os pressupostos da Semântica Cognitiva.

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não estamos afirmando apenas que João parou de fumar, mas lingüisticamente somos

capazes de, mesmo não sabendo que João fumava, compreender isso. Ou seja, não se

pode dizer que “João parou de fumar” e depois negar que João fumava, porque uma

informação está contida dentro da outra.

No caso de uma sentença como

(33) O bolo do meu aniversário estava bom.

as pressuposições podem ser: “houve um aniversário” e “havia um bolo”. Não posso

dizer (34) sem dizer que “houve um aniversário”. Se eu digo isso a uma pessoa que não

sabia do aniversário, ela vai entender, ainda assim, que houve um aniversário. Não

posso, tampouco, dizer (34) e em seguida

(34) Mas não tinha bolo no meu aniversário.28

Se eu formulo uma pergunta (apenas para fazer um dos testes que apresentei no

capítulo anterior),

(35) O bolo do meu aniversário estava bom?

ainda se pode entender que houve um aniversário. Se eu digo isso a alguém que não foi

convidado, posso estar criando um mal-estar.

Entretanto, pode ser que depois de enunciar (35) eu negue alguma coisa nela. E

lingüisticamente, a única negação possível sem que haja contradição é a da asserção que

se faz. Eu posso dizer (35) e, em seguida, alguém me responder

(36) Mas o bolo não estava bom.

porque, para a Semântica Formal, não cabe a negação de um pressuposto, porque ele é

dado como conhecido. Ao que parece, muitas sentenças com um quantificador definido

trazem uma pressuposição de existência. O que estou dizendo é que não se pode negar o

28 Evidentemente seremos capazes de encontrar um contexto para que essas duas frases não sejam contraditórias, mas o que nos interessa aqui é o sistema, ou seja, não nos interessa nesse momento achar contextos possíveis.

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fato de ter havido um aniversário, nem o fato de ter havido um bolo, mas que é possível

que alguém responda (36) e então teremos uma ambigüidade. Supondo que um diálogo

assim pudesse ser executado,

(37) – O bolo do seu aniversário estava bom?

(38) – O bolo do meu aniversário não estava bom.

teríamos uma ambigüidade. Não sabemos, por exemplo, se a pessoa está negando o

pressuposto ou o posto. Para isso, precisaremos recorrer à noção de escopo, ou seja,

haverá interpretações diferentes a depender do escopo da negação. Podemos, então,

estar negando:

(38a) O bolo do meu aniversário não estava bom (porque eu não fiz festa de

aniversário).

(38b) O bolo do meu aniversário não estava bom (não havia bolo no meu

aniversário).

(38c) O bolo do meu aniversário não estava bom (porque o bolo estava ruim).

O tratamento dado pela Semântica da Enunciação, embora não uniformemente

aceito por todas as vertentes, mas em grande parte do modo como é vista por Ducrot e

outras correntes, algumas das quais chamadas também de Semântica Argumentativa, é

diferente e não precisa da noção de escopo. Porque assume a noção de enunciador desde

o começo, o tratamento da pressuposição toma uma nova perspectiva, ou seja, quando

alguém enuncia (34), não o faz por meio de um enunciador, mas de vários.

(33) E: O bolo do meu aniversário estava bom.

E1: Houve um aniversário.29

E2: Nesse aniversário, havia um bolo. 29 Há um certo tipo de controvérsia em relação a adotarmos um enunciador apenas para dizer que “houve um aniversário”, porque essa abordagem coloca em cena um tipo de questão não tratado muito fortemente pela Semântica da Enunciação. Entretanto, se assumimos que os enunciadores fazem, de fato, o mesmo papel que a pressuposição para a Semântica Formal, esse tipo de asserção deve ser introduzida porque é um dos conteúdos pressupostos dessa sentença.

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E3: Esse bolo estava bom.

Quando um interlocutor quiser negar a asserção, a ambigüidade não

necessariamente existe, porque podemos assumir que ele está negando E1, E2 ou E3, ou

seja, não precisamos da noção de escopo. Se ele nega E1, significa que não houve festa

de aniversário, e assim por diante. Dessa forma, não precisamos de um novo conceito na

teoria porque estamos utilizando o conceito de “enunciador” que, como vimos, já faz

parte do instrumental teórico de que dispomos. Além disso, a noção de pressuposição

existe, mas é entendida como cada um dos enunciadores.

3.2 Proposta de tratamento da sinonímia

Ainda tomando esse tipo de abordagem, o que pretendo propor é um tratamento

para a sinonímia dentro da Semântica da Enunciação. Proponho isso porque sinto que a

Semântica da Enunciação não parece se interessar por questões da Semântica Clássica e,

apesar de isso ser natural porque se tratam de duas áreas diferentes, penso que seria

interessante observar como o instrumental teórico de uma vertente serviria para tratar

questões que são mais classicamente tratados por outra. Uma dessas questões é o

tratamento da pressuposição30 que acabei de apresentar que, embora seja apresentado

pelo viés da Semântica da Enunciação, encontrei em um texto de uma semanticista

formal. Isso foi algo que me despertou especial curiosidade, porque vejo que existem

saídas interessantes para o tratamento desses conceitos dentro da Semântica

Enunciativa, mas que não são explicitados dentro dela e que, de certa forma, seriam

interessantes.

Com isso, no entanto, não pretendo preencher um vazio, mas apresentar um tipo

de abordagem que não encontrei em nenhum outro lugar e que, acredito, seja

interessante de ser observado dentro dessa linha, porque ela apresenta alguns subsídios

interessantes para fundamentar o que quero dizer.

30 Evidentemente, estou desconsiderando os trabalhos de Ducrot sobre pressuposição, que são bastante consistentes. Entretanto, não fazem parte propriamente dentro dos estudos da Semântica da Enunciação ou da Argumentativa, e por isso estão sendo considerados.

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Minha proposta de tratamento da sinonímia, assim, engloba diversos conceitos

dentro da Semântica da Enunciação. Pensemos, por exemplo, que o conteúdo de uma

sentença, sua informação, para Ducrot, pelo menos nas etapas com que estou

trabalhando aqui, não é o mais relevante: o que é de especial interesse é a conclusão

para que ela aponta. Basta lembrar do exemplo da sentença “São oito horas”, que

significa coisas diferentes a depender do encadeamento em que se insere. Dessa forma,

podemos assumir que argumentos iguais que levam a conclusões diferentes mostram

que não é o sistema que diz que eles não são a mesma sentença, mas o enunciado. E

podemos, então, assumir que argumentos diferentes que levam a conclusões iguais são

sinônimos, a depender do seu encadeamento.

Vejamos um exemplo. Se temos:

(34) A seleção deu um show de bola.

(35) O Brasil teve uma apresentação impecável.

R: O Brasil jogou bem.

Podemos assumir que o primeiro enunciado aponta na direção da conclusão ‘r’.

Também podemos assumir que o segundo enunciado aponta na direção da conclusão ‘r’.

Isso faria com que os dois enunciados pudessem ser encadeados num enunciado como

(36) A seleção marcou 5 gols e teve uma apresentação impecável, então jogou

bem.

O fato de serem encadeados juntamente faz com que não necessariamente sejam

sinônimos perfeitos, pelo contrário, não o são. Entretanto, se podem ser usados na

direção da mesma conclusão, podemos fazer um teste simples, como o utilizado para

saber se uma sentença é sinônima da outra. Encadeemos os dois e neguemos um deles:

(37)? A seleção teve uma apresentação impecável e não deu show de bola, então

jogou bem.

A sentença em questão não é agramatical, mas é de certa forma muito estranho

que se afirme que a seleção não deu um show de bola como argumento para que se

conclua que então ela jogou bem. Se fizermos isso negando a outra, teremos algo como

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(38)? A seleção deu um show de bola e não teve uma apresentação impecável,

então jogou bem.

Da mesma forma, a sentença causa um certo estranhamento.

(Nesse ponto, uma pergunta pode ser feita, e diz respeito justamente à conjunção

“e”, a qual jamais utilizaríamos para encadear dois argumentos contrários. Se é verdade

que o estranhamento é causado pelo “e”, então é mais uma prova de que a negação de

um argumento torna contraditório o argumento em seguida. Por outro lado, certamente

usaríamos uma disjunção para inserir um argumento contrário ao nosso na enunciação.

E esse é justamente o funcionamento polifônico do “mas”31 , que insere uma visão

contraditória para mudar o encadeamento argumentativo. Vejamos que se o enunciado

em questão fosse:

(39) A seleção teve uma apresentação impecável, mas não deu um show de bola,

então jogou bem.

O problema da contradição não estaria na negação de um dos argumentos, mas do

funcionamento argumentativo e polifônico da conjunção “mas”, que faz com que a

conclusão que prevaleça seja sempre a que ela introduz. Novamente, reitero que

defendo que o estranhamento causado na negação de uma das partes é uma evidência de

que os dois argumentos são sinônimos. Obviamente, não são sinônimos como a

Semântica Clássica entende, mas sinônimos dento de uma perspectiva discursivo-

enunciativa, como a apresentada pela Semântica da Enunciação.

É evidente, porém, que é necessário que se pense em testes mais elaborados para

tratar os encadeamentos de uma forma diferente dentro da Semântica da Enunciação,

uma vez que estou utilizando testes propostos pela Semântica Clássica. Quero reiterar

que, se esse teste me permite chegar a essa conclusão, é porque essa hipótese merece ser

testada novamente, especialmente em estudos mais aprofundados.)

31 Conferir, para isso, GUIMARÃES (1987).

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Considerações finais

Depois de analisar tantas correntes teóricas diferentes, evidentemente vejo uma

grande necessidade de aprofundar sobremaneira meus estudos e essas observações todas

feitas a respeito de cada uma delas. Quanto mais de perto se observam as teorias, mais

elas parecem se correlacionar, mas mais parecem se afastar também. Por diversas vezes,

enquanto fazia essa monografia, me perguntava se de fato eram tão diferentes entre si e,

em outras, me perguntava por que é que estava tratando de disciplinas tão diferentes e

tentando aproximá-las.

Evidentemente, isso acontece porque são áreas que olham para a linguagem, e

tratam de coisas muito semelhantes, que dizem respeito a confecção e interpretação de

sentenças e enunciados, o que não parece, aos olhos de um observador inicial, um

objeto muito extenso. Por outro lado, se assim não o fosse, não seriam possíveis tantas

ramificações e tantos modos diferentes de considerar o mesmo fenômeno.

Meus objetivos, que eram verificar de perto quais eram os escopos das teorias e

ver de que forma abordavam seu objeto foram parcialmente cumpridos uma vez que fiz

isso, mas ainda faltam muitas outras coisas a serem vistas. Uma das coisas que pude

perceber, assim, foi que a Semântica da Enunciação não se ocupa de questões

concernentes à Semântica Clássica, ou seja, as noções de pressuposição, acarretamento,

sinonímia e tantas outras não são tratadas por ela. Não posso afirmar com certeza se é

por que os incorpora, os dá como pressupostos, ou se porque não interessa tratar deles,

ou ainda se fala deles com nomes diferentes.

Entretanto, me despertou especial interesse o fato de que uma abordagem da

pressuposição para a Semântica da Enunciação (e isso já havia escrito anteriormente)

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veio dada por uma semanticista formal, e não por um teórico da área em questão. Por

isso, propus um tratamento da sinonímia pelo viés da Semântica da Enunciação:

obviamente, não é suficiente, nem tampouco o único a ser apresentado, mas é uma

tentativa de colaborar com o tratamento de questões tão clássicas para outras disciplinas

dentro dessa linha teórica.

Em relação à Semântica Clássica, sei que negligenciei diversas áreas e diversas

formas diferentes de ver a mesma coisa (penso principalmente nas maneiras lógicas de

ver o significado, como o cálculo de predicados e a Gramática Categorial, e na

Semântica Cognitiva), e não o fiz não porque não me interessam, mas porque era

necessário fazer um recorte para um trabalho dessa extensão. Para estudar o que eu

pretendia, no entanto, acho que as três áreas que abordei são suficientes.

Dessa forma, com esse trabalho pude perceber que os estudos da Semântica

Clássica são bastante diferentes das da Semântica da Enunciação, embora essa se filie,

inevitavelmente, àquela, por tomar para si o nome de Semântica, principalmente. Isso

porque é uma área que pretende estudar o significado e porque teve que passar por

alguma teoria Semântica antes de se constituir como área. Por outro lado, convive

bastante de perto com a Pragmática, por tratar do enunciado, e mais ainda com a

Análise do Discurso, área que também foi negligenciada nesse trabalho.

Notadamente, a Semântica da Enunciação dialoga bastante de perto com a

Análise do Discurso, de quem atualmente empresta muitos dos pressupostos teóricos e,

também, a noção de “vozes discursivas”.

Concluo que há ainda muito o que fazer dentro dos estudos de interface entre as

áreas, e seria certamente muito produtivo que isso acontecesse, uma vez que é bastante

interessante enquanto filosofia da ciência se preocupar em delimitar as fronteiras das

áreas, embora saibamos, de antemão, que quanto mais perto chegamos dessa fronteira,

mais elas se esfumaçam.

Além disso, seria certamente interessante que a abordagem que propus para o

tratamento da sinonímia dentro da Semântica da Enunciação fosse discutida e que mais

testes pudessem ser feitos, para ver se podemos comprovar ou refutar essa hipótese: em

ambos os casos, seria muito lisonjeiro que se pudesse discutir a minha proposta.

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Bibliografia consultada

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Como eu cito outra vez uma obra que eu já citei?