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ANTOLOGIA POÉTICA Selecção e prefácio por Inês Marques Miguel Ferreira Rita Sampaio

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Page 1: Sim

ANTOLOGIA POÉTICA

Selecção e prefácio por

Inês Marques

Miguel Ferreira

Rita Sampaio

Page 2: Sim

Prefácio:

Este livro é uma antologia poética constituída por obras de poetas de

diferentes partes do Mundo, mas sobretudo de países de língua oficial

portuguesa. A maior parte dos poemas que foram inseridos nesta obra não são de

interpretação fácil, mas a exigência faz parte do período de aprendizagem pelo

qual nós, seleccionadores do conteúdo das páginas que estão prestes a ler,

estamos a passar.

Os poemas não estão ordenados por alguma ordem em especial, apenas com a

ordem pela qual os encontrámos e escolhemos segundo os nossos gostos,

segundo os critérios pessoais de cada um. Não há, portanto, nenhuma temática

específica que o livro procure abordar mais a fundo. O leitor poderá aqui

encontrar e envolver-se em trabalhos de autores que vão desde Camões, poeta

amplamente traduzido e admirado, considerado por muitos a figura cimeira da

língua e literatura portuguesas, ou Fernando Pessoa (e seus heterónimos, com os

quais conseguiu criar diversas personalidades e estados de espírito), a Florbela

Espanca, onde o sofrimento, a solidão, o desencanto, aliados à imensa ternura e

a um desejo de felicidade plena, que só poderá ser alcançada no infinito,

constituem a temática veiculada na sua magnífica linguagem poética, passando

por músicos como José Afonso e James Morrison.

O nosso objectivo é que desfrutem tanto desta leitura como nós,

seleccionadores, desfrutámos da pesquisa e de pôr mão à obra, criando esta

compilação. Esperamos que se possam sentir através deste mar de poesia, acima

de tudo, felizes e que todo o tempo a nós dedicado seja tempo ganho.

Cumprimentos poéticos.

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«He hum não querer mais que bem querer»

(X)

Eu queria mais altas as estrelas,

Mais largo o espaço, o sol mais criador,

Mais refulgente a lua, o mar maior,

Mais cavadas as ondas e mais belas;

Mais amplas, mais rasgadas as janelas

Das almas, mais rosais a abrir em flor,

Mais montanhas, mais asas de condor,

Mais sangue sobre a cruz das caravelas!

E abrir os braços e viver a vida,

- Quanto mais funda e lúgubre a descida

Mais alta é a ladeira que não cansa!

E, acabada a tarefa... em paz, contente,

Um dia adormecer, serenamente,

Como dorme no berço uma criança!

Florbela Espanca

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Adeus Tristeza

Na minha vida tive palmas e fracassos

Fui amargura feita notas e compassos

Aconteceu-me estar no palco atrás do pano

Tive a promessa de um contrato por um ano

A entrevista que era boa

E o meu futuro foi aquilo que se viu

Na minha vida tive beijos e empurrões

Esqueci a fome num banquete de ilusões

Não entendi a maior parte dos amores

Só percebi que alguns deixaram muitas dores

Fiz as cantigas que afinal ninguém ouviu

E o meu futuro foi aquilo que se viu

Adeus tristeza, até depois

Chamo-te triste por sentir que entre os dois

Não há mais nada pra fazer ou conversar

Chegou a hora de acabar

Na minha vida fiz viagens de ida e volta

Cantei de tudo por ser um cantor à solta

Devagarinho num couplé pra começar

Com muita força no refrão que é popular

Mas outra vez a triste sorte não sorriu

E o meu futuro foi aquilo que se viu

Na minha vida fui sempre um outro qualquer

Era tão fácil, bastava apenas escolher

Escolher-me a mim, pensei que isso era vaidade

Mas já passou, não sou melhor mas sou verdade

Não ando cá para sofrer mas para viver

E o meu futuro há-de ser o que eu quiser

Fernando Tordo

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Dies irae

Apetece cantar, mas ninguém canta.

Apetece chorar, mas ninguém chora.

Um fantasma levanta

A mão do medo sobre a nossa hora.

Apetece gritar, mas ninguém grita.

Apetece fugir, mas ninguém foge.

Um fantasma limita

Todo o futuro a este dia de hoje.

Apetece morrer, mas ninguém morre.

Apetece matar, mas ninguém mata.

Um fantasma percorre

Os motins onde a alma se arrebata.

Oh! Maldição do tempo em que vivemos,

Sepultura de grades cinzeladas,

Que deixam ver a vida que não temos

E as angústias paradas!

Miguel Torga

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Natal

Nasce um Deus. Outros morrem. A Verdade

Nem veio nem se foi: o Erro mudou.

Temos agora uma outra Eternidade,

E era sempre melhor o que passou.

Cega, a Ciência a inútil gleba lavra.

Louca, a Fé vive o sonho do seu culto.

Um novo deus é só uma palavra.

Não procures nem creias: tudo é oculto.

Fernando Pessoa

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O dia em que eu nasci, moura e pereça

O dia em que eu nasci, moura e pereça

Não o queira jamais o tempo dar,

não torne mais ao mundo e, se tornar,

eclipse nesse passo o sol padeça.

A luz lhe falte, o sol se escureça,

mostre o mundo sinais de se acabar,

nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar,

a mãe ao próprio filho não conheça.

As pessoas pasmadas, de ignorantes,

as lágrimas no rosto, a cor perdida,

cuidem que o mundo já se destruiu.

Ó gente temerosa, não te espantes,

que este dia deitou ao mundo a vida

mais desgraçada que jamais se viu

Luís de Camões

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"Requiem" de Mozart

I

Ouço-te, ó música, subir aguda

à convergente solidão gelada.

Ouço-te, ó música, chegar desnuda

ao vácuo centro, aonde, sustentada

e da esférica treva rodeada,

tu resplandeces e cintilas muda

como o silente gesto, a mão espalmada

por sobre a solidão que amante exsuda

e lacrimosa escorre pelo espaço

além de que só luz grita o pavor.

Ouço-te lá pousada, equidistante

desse clarão cuja doçura é de aço

como do frágil mas potente amor

que em teu ouvir-te queda esvoaçante.

II

Ó música da morte, ó vozes tantas

e tão agudas, que o estertor se cala.

Ó música da carne amargurada

de tanto ter perdido que ora esquece.

Ó música da morte, ah quantas, quantas

mortes gritaram no que em ti não fala.

Ó música da mente espedaçada

de tanto ter sonhado o que entretece,

sem cor e sem sentido, no fervor

de sublimar-se nesse além que és tu.

Ó vida feita uma detida morte.

Ó morte feita um inocente amor.

Amor que as asas sobre o corpo nu

fecha tranquilas no possuir da sorte.

Jorge de Sena

Page 9: Sim

Já não me importo

Já não me importo

Até com o que amo ou creio amar.

Sou um navio que chegou a um porto

E cujo movimento é ali estar.

Nada me resta

Do que quis ou achei.

Cheguei da festa

Como fui para lá ou ainda irei

Indiferente

A quem sou ou suponho que mal sou,

Fito a gente

Que me rodeia e sempre rodeou,

Com um olhar

Que, sem o poder ver,

Sei que é sem ar

De olhar a valer.

E só me não cansa

O que a brisa me traz

De súbita mudança

No que nada me faz.

Fernando Pessoa

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A Morte Saiu à Rua

A morte saiu à rua num dia assim

Naquele lugar sem nome para qualquer fim

Uma gota rubra sobre a calçada cai

E um rio de sangue de um peito aberto sai

O vento que dá nas canas do canavial

E a foice duma ceifeira de Portugal

E o som da bigorna como um clarim do céu

Vão dizendo em toda a parte o Pintor morreu

Teu sangue, Pintor, reclama outra morte igual

Só olho por olho e dente por dente vale

À lei assassina, à morte que te matou

Teu corpo pertence à terra que te abraçou

Aqui te afirmamos dente por dente assim

Que um dia rirá melhor quem rirá por fim

Na curva da estrada há covas feitas no chão

E em todas florirão rosas de uma nação.

José Afonso

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Pedra Filosofal

Eles não sabem que o sonho

é uma constante da vida

tão concreta e definida

como outra coisa qualquer,

como esta pedra cinzenta

em que me sento e descanso,

como este ribeiro manso

em serenos sobressaltos,

como estes pinheiros altos

que em verde e oiro se agitam,

como estas aves que gritam

em bebedeiras de azul.

Eles não sabem que o sonho

é vinho, é espuma, é fermento,

bichinho álacre e sedento,

de focinho pontiagudo,

que fossa através de tudo

num perpétuo movimento.

Eles não sabem que o sonho

é tela, é cor, é pincel,

base, fuste, capitel,

arco em ogiva, vitral,

pináculo de catedral,

contraponto, sinfonia,

máscara grega, magia,

que é retorta de alquimista,

mapa do mundo distante,

rosa-dos-ventos, Infante,

caravela quinhentista,

que é cabo da Boa Esperança,

ouro, canela, marfim,

florete de espadachim,

bastidor, passo de dança,

Colombina e Arlequim,

passarola voadora,

pára-raios, locomotiva,

barco de proa festiva,

alto-forno, geradora,

cisão do átomo, radar,

ultra-som, televisão,

desembarque em foguetão

na superfície lunar.

Eles não sabem, nem sonham,

que o sonho comanda a vida,

que sempre que um homem sonha

o mundo pula e avança

como bola colorida

entre as mãos de uma criança.

António Gedeão

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Blues Fúnebre

Parem todos os relógios, desliguem o telefone,

Impeçam o cão de latir com um osso enorme,

Silenciem os pianos e ao som abafado dos tambores

Tragam o caixão, deixem as carpideiras carpir suas dores.

Deixem os aviões aos círculos a gemer no céu

Rabiscando no ar a mensagem Ele Morreu,

Ponham laços crepe nas pombas brancas da nação,

Deixem os sinaleiros usar luvas pretas de algodão.

Ele era o meu Norte, meu Sul, meu Este e Oeste,

Minha semana de trabalho, meu Domingo de festa

Meu meio-dia, meia-noite, minha conversa, minha canção;

Pensei que o amor ia durar para sempre: foi ilusão.

As estrelas já não são precisas: levem-nas uma a uma;

Desmantelem o sol e empacotem a lua;

Despejem o oceano e varram a floresta;

Porque agora já nada de bom me resta.

W.H.Auden

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Como Visto Nos Uffizi

Uma audiência de pastores

Assiste em adoração

Enquanto Maria embala

O bebé com devoção.

Ao lado de Maria está José.

Ele olha para o infinito.

Seu fito é a meia distância.

Desejaria que tivessem ido

Pela montanha alta acima

Pela borda ao povoado

Morar por entre os pastores

Até tudo acalmar um bocado

Dan Brown

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Sei um ninho

Sei um ninho.

E o ninho tem um ovo.

E o ovo, redondinho,

Tem lá dentro um passarinho

Novo.

Mas escusam de me atentar:

Nem o tiro, nem o ensino.

Quero ser um bom menino

E guardar

Este segredo comigo.

E ter depois um amigo

Que faça o pino

A voar...

Miguel Torga

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Liberdade

Ai que prazer

Não cumprir um dever,

Ter um livro para ler

E não o fazer!

Ler é maçada,

Estudar é nada.

O sol doira

Sem literatura.

O rio corre, bem ou mal,

Sem edição original.

E a brisa, essa,

De tão naturalmente matinal,

Como tem tempo não tem pressa...

Livros são papéis pintados com tinta.

Estudar é uma coisa em que está indistinta

A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto é melhor, quanto há bruma,

Esperar por D. Sebastião,

Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças...

Mas o melhor do mundo são as crianças,

Flores, música, o luar, e o sol, que peca

Só quando, em vez de criar, seca.

O mais que isto

É Jesus Cristo,

Que não sabia nada de finanças

Nem consta que tivesse biblioteca...

Fernando Pessoa

Page 16: Sim

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,

muda-se o ser, muda-se a confiança;

todo o Mundo é composto de mudança,

tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,

diferentes em tudo da esperança;

do mal ficam as mágoas na lembrança,

e do bem (se algum houve), as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,

que já coberto foi de neve fria,

e, enfim, converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,

outra mudança faz de mor espanto,

que não se muda já como soía.

Luís de Camões

Page 17: Sim

Acordo de noite subitamente

Acordo de noite subitamente.

E o meu relógio ocupa a noite toda.

Não sinto a Natureza lá fora,

O meu quarto é uma coisa escura com paredes vagamente brancas.

Lá fora há um sossego como se nada existisse.

Só o relógio prossegue o seu ruído.

E esta pequena coisa de engrenagens que está em cima da minha mesa

Abafa toda a existência da terra e do céu...

Quase que me perco a pensar o que isto significa,

Mas estaco, e sinto-me sorrir na noite com os cantos da boca,

Porque a única coisa que o meu relógio simboliza ou significa

É a curiosa sensação de encher a noite enorme

Com a sua pequenez...

Fernando Pessoa

Page 18: Sim

Pedras no caminho?

"Posso ter defeitos, viver ansioso e ficar irritado algumas vezes,

mas não esqueço de que a minha vida

é a maior empresa do mundo...

E que posso evitar que ela vá à falência.

Ser feliz é reconhecer que vale a pena viver

apesar de todos os desafios, incompreensões e períodos de crise.

Ser feliz é deixar de ser vítima dos problemas e

tornar-se um autor da própria história...

É atravessar desertos fora de si, mas ser capaz de encontrar

um oásis no recôndito da sua alma...

É agradecer a Deus a cada manhã pelo milagre da vida.

Ser feliz é não ter medo dos próprios sentimentos.

É saber falar de si mesmo.

É ter coragem para ouvir um 'não'!!!

É ter segurança para receber uma crítica,

mesmo que injusta...

Pedras no caminho?

Guardo todas, um dia vou construir um castelo..."

Fernando Pessoa

Page 19: Sim

Poema à Amizade

Pode ser que um dia deixemos de nos falar...

Mas, enquanto houver amizade,

Faremos as pazes de novo.

Pode ser que um dia o tempo passe...

Mas, se a amizade permanecer,

Um de outro se há-de lembrar.

Pode ser que um dia nos afastemos...

Mas, se formos amigos de verdade,

A amizade reaproximar-nos-á.

Pode ser que um dia não mais existamos...

Mas, se ainda existir amizade,

Nasceremos de novo, um para o outro.

Pode ser que um dia tudo acabe...

Mas, com a amizade construiremos tudo novamente,

Cada vez de forma diferente.

Sendo único e inesquecível cada momento

Que juntos viveremos e lembraremos para sempre.

Há duas formas para viver a vida:

Uma é acreditar que não existe milagre.

A outra é acreditar que todas as coisas são um milagre.

Albert Einstein

Page 20: Sim

Não Tocar na Terra

Não tocar na terra, não ver o sol

Nada mais a fazer a não ser fugir, fugir, fugir

Vamos fugir, vamos fugir

Casa no topo do monte, a lua jaz quieta

Sombras nas árvores testemunhando a brisa selvagem

Anda, querida, foge comigo

Vamos fugir

Foge comigo, foge comigo, foge comigo

Vamos fugir

A mansão é amena no topo do monte

Ricos são os quartos e os confortos lá

Vermelhos são os braços de luxuosas cadeiras

E não vais saber nada até entrares lá dentro

Corpo morto do Presidente no carro do condutor

O motor funciona a cola e alcatrão

Anda connosco, não vamos muito longe

Para Este conhecer o Czar

Foge comigo, foge comigo, foge comigo

Vamos fugir

Alguns foras da lei vivem junto ao lago

A filha do ministro está apaixonada pela serpente

Que vive num poço junto à estrada

Acorda, rapariga, Estamos quase em casa

Sol, sol, sol

Queima, queima, queima

Lua, lua, lua

Apanhar-te-ei em breve... em breve... em breve!

Eu sou o Rei Lagarto

Posso fazer qualquer coisa

James Douglas Morrison

Page 21: Sim

Às vezes, em dias de luz perfeita e exacta

Às vezes, em dias de luz perfeita e exacta,

Em que as coisas têm toda a realidade que podem ter,

Pergunto a mim próprio devagar

Porque sequer atribuo eu

Beleza às coisas.

Uma flor acaso tem beleza?

Tem beleza acaso um fruto?

Não: têm cor e forma

E existência apenas.

A beleza é o nome de qualquer coisa que não existe

Que eu dou às coisas em troca do agrado que me dão.

Não significa nada.

Então porque digo eu das coisas: são belas?

Sim, mesmo a mim, que vivo só de viver,

Invisíveis, vêm ter comigo as mentiras dos homens

Perante as coisas,

Perante as coisas que simplesmente existem.

Que difícil ser próprio e não ser senão o visível!

Alberto Caeiro

Page 22: Sim

Segue o teu destino

Segue o teu destino,

Rega as tuas plantas,

Ama as tuas rosas.

O resto é a sombra

De árvores alheias.

A realidade

Sempre é mais ou menos

Do que nós queremos.

Só nós somos sempre

Iguais a nós-próprios.

Suave é viver só.

Grande e nobre é sempre

Viver simplesmente.

Deixa a dor nas aras

Como ex-voto aos deuses.

Vê de longe a vida.

Nunca a interrogues.

Ela nada pode

Dizer-te. A resposta

Está além dos deuses.

Mas serenamente

Imita o Olimpo

No teu coração.

Os deuses são deuses

Porque não se pensam.

Ricardo Reis

Page 23: Sim

Deus

Às vezes sou o Deus que trago em mim

E então eu sou o Deus e o crente e a prece

E a imagem de marfim

Em que esse deus se esquece.

Às vezes não sou mais do que um ateu

Desse deus meu que eu sou quando me exalto.

Olho em mim todo um céu

E é um mero oco céu alto.

Fernando Pessoa

Page 24: Sim

O Universo não é uma ideia minha

O Universo não é uma ideia minha.

A minha ideia do Universo é que é uma ideia minha.

A noite não anoitece pelos meus olhos,

A minha ideia da noite é que anoitece por meus olhos.

Fora de eu pensar e de haver quaisquer pensamentos

A noite anoitece concretamente

E o fulgor das estrelas existe como se tivesse peso.

Alberto Caeiro

Page 25: Sim

Autopsicografia

O poeta é um fingidor.

Finge tão completamente

Que chega a fingir que é dor

A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,

Na dor lida sentem bem,

Não as duas que ele teve,

Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda

Gira a entreter a razão,

Esse comboio de corda

que se chama o coração.

Fernando Pessoa

Page 26: Sim

Às vezes, em sonho triste

Às vezes, em sonho triste

Nos meus desejos existe

Longinquamente um país

Onde ser feliz consiste

Apenas em ser feliz.

Vive-se como se nasce

Sem o querer nem saber.

Nessa ilusão de viver

O tempo morre e renasce

Sem que o sintamos correr.

O sentir e o desejar

São banidos dessa terra.

O amor não é amor

Nesse país por onde erra

Meu longínquo divagar.

Nem se sonha nem se vive:

É uma infância sem fim.

Parece que se revive

Tão suave é viver assim

Nesse impossível jardim.

Fernando Pessoa

Page 27: Sim

Para ser grande, sê inteiro

Para ser grande, sê inteiro: nada

Teu exagera ou exclui.

Sê todo em cada coisa. Põe quanto és

No mínimo que fazes.

Assim em cada lago a lua toda

Brilha, porque alta vive

Ricardo Reis

Page 28: Sim

Epígrafe

Murmúrio de água na clepsidra gotejante,

Lentas gotas de som no relógio da torre,

Fio de areia na ampulheta vigilante,

Assim se escoa a hora, assim se vive e morre...

Homem que fazes tu? Para quê tanta lida,

Tão doidas ambições, tanto ódio e tanta ameaça?

Procuremos somente a Beleza, que a vida

É um punhado infantil de areia ressequida,

Um som de água ou de bronze e uma sombra que passa...

Eugénio de Castro

Page 29: Sim

Eu

Eu sou a que no mundo anda perdida,

Eu sou a que na vida não tem norte,

Sou a irmã do Sonho, e desta sorte

Sou a crucificada... a dolorida...

Sombra de névoa ténue e esvaecida,

E que o destino, amargo, triste e forte,

Impele brutalmente para a morte!

Alma de luto sempre incompreendida!

Sou aquela que passa e ninguém vê...

Sou a que chamam triste sem o ser...

Sou a que chora sem saber porquê...

Sou talvez a visão que Alguém sonhou,

Alguém que veio ao mundo pra me ver

E que nunca na vida me encontrou!

Florbela Espanca

Page 30: Sim

Torre de Névoa

Subi ao alto, à minha Torre esguia,

Feita de fumo, névoas, e luar,

E pus-me, comovida, a conversar

Com os poetas mortos, todo dia.

Contei-lhes os meus sonhos, a alegria

Dos versos que são meus, do meu sonhar,

E todos os poetas, a chorar,

Responderam-me então: "Que fantasia,

Criança doida e crente! Nós também

Tivemos ilusões, como ninguém,

E tudo nos fugiu, tudo morreu!..."

Calaram-se os poetas, tristemente...

E é desde então que eu choro amargamente

Na minha Torre esguia junto ao céu!...

Florbela Espanca

Page 31: Sim

Ser Poeta

Ser poeta é ser mais alto, é ser maior

Do que os homens! Morder como quem beija!

É ser mendigo e dar como quem seja

Rei do Reino de Áquem e de Além Dor!

É ter de mil desejos o esplendor

E não saber sequer que se deseja!

É ter cá dentro um astro que flameja,

É ter garras e asas de condor!

É ter fome, é ter sede de Infinito!

Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim...

É condensar o mundo num só grito!

E é amar-te, assim, perdidamente...

É seres alma, e sangue, e vida em mim

E dizê-lo cantando a toda a gente!

Florbela Espanca

Page 32: Sim

Amar!

Eu quero amar, amar perdidamente!

Amar só por amar: aqui... além...

Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente...

Amar! Amar! E não amar ninguém!

Recordar? Esquecer? Indiferente!...

Prender ou desprender? É mal? É bem?

Quem disser que se pode amar alguém

Durante a vida inteira é porque mente!

Há uma primavera em cada vida:

É preciso cantá-la assim florida,

Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!

E se um dia hei-de ser pó, cinza e nada

Que seja a minha noite uma alvorada,

Que me saiba perder... pra me encontrar

Florbela Espanca

Page 33: Sim

Terror de te amar

Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo

Mal de te amar neste lugar de imperfeição

Onde tudo nos quebra e emudece

Onde tudo nos mente e nos separa

Sophia de Mello Breyner

Page 34: Sim

Amor é um fogo que arde sem se ver

Amor é um fogo que arde sem se ver;

É ferida que dói, e não se sente;

É um contentamento descontente;

É dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;

É um andar solitário entre a gente;

É nunca contentar-se e contente;

É um cuidar que ganha em se perder;

É querer estar preso por vontade;

É servir a quem vence, o vencedor;

É ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor

Nos corações humanos amizade,

Se tão contrário a si é o mesmo Amor?

Luís Vaz de Camões

Page 35: Sim

Poema em linha recta

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.

Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,

Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,

Indesculpavelmente sujo,

Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,

Eu que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,

Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,

Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,

Que tenho sofrido enxovalhos e calado,

Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;

Eu, que tenho sido cómico criadas de hotel,

Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,

Eu que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,

Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado,

Para fora da possibilidade do soco;

Eu que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,

Eu que verifico que não tenho par nisto neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo,

Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu um enxovalho,

Nunca foi senão - príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Page 36: Sim

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana,

Quem confessasse não um pecado, mas uma infâmia;

Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.

Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?

Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!

Onde há gente no mundo?

Então só eu que é vil e erróneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,

Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!

E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,

Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?

Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,

Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

Álvaro de Campos

Page 37: Sim

Sou um guardador de rebanhos

O rebanho é os meus pensamentos

E os meus pensamentos são todos sensações.

Penso com os olhos e com os ouvidos

E com as mãos e os pés

E com o nariz e a boca.

Pensar numa flor é vê-la e cheirá-la

E comer um fruto é saber-lhe o sentido.

Por isso quando num dia de calor

Me sinto triste de gozá-lo tanto,

E me deito ao comprido na erva,

E fecho os olhos quentes,

Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,

Sei da verdade e sou feliz.

Alberto Caeiro

Page 38: Sim

O Suspiro

Voai, brandos meninos tentadores,

Filhos de Vénus, deuses da ternura,

Adoçai-me a saudade amarga e dura,

Levai-me este suspiro aos meus amores:

Dizei-lhe que nasceu dos dissabores

Que influi nos corações a formosura;

Dizei-lhe que é penhor da fé mais pura,

Porção do mais leal dos amadores:

Se o fado para mim sempre mesquinho,

A outro of'rece o bem de que me afasta,

E em ais lhe envia Ulina o seu carinho:

Quando um deles soltar na esfera vasta,

Trazei-o a mim, torcendo-lhe o caminho;

Eu sou tão infeliz, que isso me basta.

Bocage

Page 39: Sim

Este livro é uma antologia poética e contem textos da autoria

de diversos prestigiados poetas como Luís Vaz de Camões,

Florbela Espanca ou Fernando Pessoa. Os textos que nele

podem ser encontrados foram seleccionados por Inês Marques,

Miguel Ferreira e Rita Sampaio, que tiveram como critérios

de selecção os seus gostos pessoais e a tentativa de os adequar

com o gosto do leitor. Aliada à escolha dos textos poéticos está

ainda a elaboração de um breve prefácio explicativo da

criação da obra.