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Segundo Capítulo O valor substancial do dinheiro I A discussão sobre a essência do dinheiro está em toda parte atravessada pela questão: se o dinheiro em sua tarefa de medir, trocar, representar os valores, é e tem de ser também um valor ou se para isso é suficiente que, sem substância própria, seja um mero signo e um símbolo, como um rastro, que substitui os valores sem ser igual a eles. Todo esse debate histórico concreto sobre uma questão que toca fundo na teoria do dinheiro e na teoria do valor seria supérfluo se pudesse ser decidido por um argumento lógico frequentemente citado. Um instrumento para realizar medidas, diz-se, deve ser do mesmo tipo do objeto que mede: uma medida de comprimento deve ser longa, uma medida para peso, pesada, uma medida para volumes, espacialmente extensa. Por isso, uma medida para o valor deve ter valor. Duas coisas que eu comparo podem não ter nada a ver uma com a outra – mesmo em relação a todas as suas outras determinações – mas no que diz respeito às qualidades que uso como parâmetro, elas devem concordar. Toda igualdade ou desigualdade quantitativa ou numérica que afirmo sobre dois objetos não teria sentido se não se referisse a quantidades relativas de uma mesma qualidade. Sim, essa concordância na qualidade não deve ser muito geral; não se pode comparar a beleza de uma arquitetura com a beleza de uma pessoa, embora haja em ambas a qualidade unitária da “beleza”, pois só as belezas arquitetônicas específicas ou as belezas humanas específicas permitem a possibilidade de comparação entre si. Mas se na ausência de toda qualidade comum quiséssemos considerar a comparabilidade na reação que liga o sujeito que sente aos objetos; e se a beleza de uma obra arquitetônica e a beleza do ser humano pudessem ser comparadas através do prazer que sentimos ao contemplar uma ou outra; então estaria se falando também aqui de uma igualdade de qualidades sob aparências diferentes. Pois a igualdade do efeito sobre o mesmo sujeito significa imediatamente a igualdade entre os objetos na relação aqui questionada. Dois fenômenos completamente diferentes que proporcionam ao mesmo sujeito uma mesma alegria são, apesar de todas as diferenças, iguais em força ou em sua relação com esse sujeito; como uma lufada de vento e uma mão humana que, apesar da impossibilidade de comparar suas qualidades, ao quebrar um galho de árvore, atestam uma igualdade de força. Assim, a matéria do dinheiro e tudo aquilo que é medido por ela podem ser totalmente diferentes, mas sobre um ponto devem concordar: ambos têm valor; e ainda quando o valor é apenas um sentimento subjetivo com o qual respondemos às Georg Simmel - A filosofia do dinheiro trad. Antonio Carlos Santos - tradução ainda a revisar - favor não citar 1

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Segundo Capítulo

O valor substancial do dinheiro

I

A discussão sobre a essência do dinheiro está em toda parte atravessada pela questão: se o dinheiro em sua tarefa de medir, trocar, representar os valores, é e tem de ser também um valor ou se para isso é suficiente que, sem substância própria, seja um mero signo e um símbolo, como um rastro, que substitui os valores sem ser igual a eles. Todo esse debate histórico concreto sobre uma questão que toca fundo na teoria do dinheiro e na teoria do valor seria supérfluo se pudesse ser decidido por um argumento lógico frequentemente citado. Um instrumento para realizar medidas, diz-se, deve ser do mesmo tipo do objeto que mede: uma medida de comprimento deve ser longa, uma medida para peso, pesada, uma medida para volumes, espacialmente extensa. Por isso, uma medida para o valor deve ter valor. Duas coisas que eu comparo podem não ter nada a ver uma com a outra – mesmo em relação a todas as suas outras determinações – mas no que diz respeito às qualidades que uso como parâmetro, elas devem concordar. Toda igualdade ou desigualdade quantitativa ou numérica que afirmo sobre dois objetos não teria sentido se não se referisse a quantidades relativas de uma mesma qualidade. Sim, essa concordância na qualidade não deve ser muito geral; não se pode comparar a beleza de uma arquitetura com a beleza de uma pessoa, embora haja em ambas a qualidade unitária da “beleza”, pois só as belezas arquitetônicas específicas ou as belezas humanas específicas permitem a possibilidade de comparação entre si. Mas se na ausência de toda qualidade comum quiséssemos considerar a comparabilidade na reação que liga o sujeito que sente aos objetos; e se a beleza de uma obra arquitetônica e a beleza do ser humano pudessem ser comparadas através do prazer que sentimos ao contemplar uma ou outra; então estaria se falando também aqui de uma igualdade de qualidades sob aparências diferentes. Pois a igualdade do efeito sobre o mesmo sujeito significa imediatamente a igualdade entre os objetos na relação aqui questionada. Dois fenômenos completamente diferentes que proporcionam ao mesmo sujeito uma mesma alegria são, apesar de todas as diferenças, iguais em força ou em sua relação com esse sujeito; como uma lufada de vento e uma mão humana que, apesar da impossibilidade de comparar suas qualidades, ao quebrar um galho de árvore, atestam uma igualdade de força. Assim, a matéria do dinheiro e tudo aquilo que é medido por ela podem ser totalmente diferentes, mas sobre um ponto devem concordar: ambos têm valor; e ainda quando o valor é apenas um sentimento subjetivo com o qual respondemos às

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impressões que as coisas nos causam, é preciso que pelo menos a qualidade – mesmo não isolável – que lhes permite atingir, por assim dizer, o sentido de valor humano seja a mesma em ambos. O dinheiro não pode se furtar à qualidade de valor, em virtude do fato de ser comparado com valores, isto é, de entrar em uma equivalência quantitativa com eles.

A essa série de reflexões, contraponho outra, com um resultado distinto. Só podemos comparar, no exemplo acima, a força do vento que quebra um galho, com a da mão que faz o mesmo, na medida em que essa força é qualitativamente a mesma em ambos. Só que nós podemos medir a força do vento também pela espessura do galho que ele quebrou. Certamente, o galho quebrado não exprime em si e para si o quantum de energia do vento no mesmo sentido que a força da mão pode exprimir; mas a relação de força entre duas lufadas de vento e, portanto, a força relativa de cada uma, pode ser medida porque uma quebrou o galho que a outra não conseguiu nem danificar. O exemplo seguinte me parece decisivo. Os objetos mais diferentes que nós conhecemos, os polos da imagem de mundo que nem a metafísica nem as ciências naturais são capazes de reduzir um ao outro – são os movimentos da matéria e os fenômenos da consciência. A pura extensão de uma e a pura intensidade da outra fazem com que, até agora, não se tenha descoberto nenhum ponto que pudesse valer como sua unidade de modo convincente para todos. Ainda assim o psicofisiologista pode medir as mudanças relativas de força em nossa percepção consciente segundo as modificações nos movimentos externos que afetam como estímulo nosso aparelho sensorial. Na medida em que haja entre os quanta de um e os de outro fator uma relação constante, as grandezas de um determinam as grandezas relativas do outro, sem que precise existir qualquer relação ou igualdade entre eles. Com isso, o princípio lógico que parecia tornar a capacidade do dinheiro de medir valores dependente de seu próprio valor cai por terra. Isso é certo: só podemos comparar os quanta de objetos diferentes quando são da mesma e única qualidade; onde o medir pode ocorrer por meio de uma comparação imediata entre dois quanta, ele pressupõe a equivalência qualitativa. Mas onde uma alteração, uma diferença ou a relação de quaisquer duas quantidades deve ser medida, basta que as proporções das substâncias medidoras se reflitam naquelas das substâncias medidas para que essa possa ser determinada, sem que seja necessária qualquer equivalência essencial entre as substâncias. Duas coisas qualitativamente diferentes não se deixam então comparar e sim duas proporções entre duas coisas qualitativamente diferentes. Dois objetos m e n podem estabelecer uma relação que não é absolutamente uma relação de igualdade qualitativa de modo que nenhuma delas pode servir de medida para a outra; a relação estabelecida entre ambos pode ser de causa e efeito, simbólica ou de relação conjunta com um terceiro objeto ou algo assim. Suponhamos agora um objeto a do qual sei que é um quarto de m; e um objeto b do qual se sabe apenas que é uma fração qualquer de n. Se existe uma relação entre a e b que corresponda à relação entre m e n, deduz-se então que b tem de ser igual a um quarto de n. Apesar de toda

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diferença de qualidade e da impossibilidade de uma comparação direta entre a e b, é possível determinar a quantidade de um pela do outro. Certamente não é possível estabelecer nenhuma relação de igualdade, por exemplo, entre certo quantum de víveres e a necessidade de alimentação imediata que ele pode satisfazer completamente; mas quando há tantos víveres de modo a satisfazer a metade dessas necessidades, posso então, com isso, determinar imediatamente que esse quantum disponível é igual à metade daquele primeiro. Em tais condições, basta que haja uma relação global para medir os quanta de cada parte entre si. Se fosse possível considerar a medida dos objetos em dinheiro como um esquema desse tipo, então a comparação direta de ambos e consequentemente a exigência lógica de atribuir um caráter de valor ao dinheiro deixariam de fazer sentido.

Para passar dessa possibilidade, por assim dizer, meramente lógica para a realidade, pressupomos uma relação de medida geral entre um quantum de bens e um quantum de dinheiro, tal como ela se mostra no nexo muitas vezes encoberto e rico em exceções, é verdade, entre reservas crescentes de dinheiro e alta dos preços, e entre reservas crescentes de bens e queda dos preços. Concebemos a partir daí, salvo determinação mais precisa, o conceito de reserva global de mercadoria, de reserva global de dinheiro e uma relação de dependência entre elas.

Cada mercadoria singular é, então, uma parte determinada de uma quantidade global disponível de mercadorias; chamemos esse último de a, então aquele é 1/m a; o preço que ele requer é a parte correspondente da quantidade global de dinheiro, de modo que se chamamos esse de b, então será 1/m b. Se conhecêssemos as grandezas a e b e soubéssemos qual a parte de uma determinada mercadoria em relação ao total das mercadorias postas à venda, saberíamos então seu preço em dinheiro, e vice-versa. Portanto, totalmente independente do fato de o dinheiro e o objeto de valor terem uma igualdade qualitativa, e também independente do fato de o dinheiro ser ou não em si mesmo um valor, uma certa quantidade de dinheiro pode determinar ou medir o valor de um objeto. – Deve-se ter sempre em mente o caráter totalmente relativo do ato de medir. Quantidades absolutas equivalentes entre si são medidas em um sentido completamente diferente das quantidades parciais postas em questão aqui. Se temos como hipótese que a soma de dinheiro global – sob determinadas restrições – representa o contravalor da soma global dos objetos postos à venda, não precisaríamos então reconhecer que essa equação serve para medir um com o outro. É somente a relação de ambas com o ser humano que estabelece valores e seus objetivos práticos que as coloca em uma relação de equivalência entre si. A tendência de tratar o dinheiro em geral e a mercadoria em geral como correspondentes é tão forte como nos mostra o fenômeno seguinte, observado em mais de um lugar. Quando uma tribo primitiva dispõe de uma unidade de troca natural e entra em contato com um vizinho mais desenvolvido possuidor de moeda de metal, então muitas vezes a unidade natural é tratada como se tivesse o mesmo valor

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da unidade monetária. Assim, os antigos irlandeses, quando entravam em contato com os romanos, estabeleciam sua própria unidade de valor, a vaca, como equivalente a uma onça de prata; as tribos selvagens das montanhas de Anan, que só praticam a troca natural, têm o búfalo como valor fundamental e no contato com os habitantes mais cultivados da planície, estimam a unidade de valor desses últimos, uma barra de prata de certa grandeza, como igual a um búfalo. A mesma característica fundamental encontramos em uma tribo selvagem do Laos: só praticam o escambo e sua unidade é a enxada de ferro. Mas retiram ouro do rio e vendem às tribos vizinhas, sendo o único objeto que pesam. Para isso não têm outro meio que o grão de milho; vendem então um grão de milho de ouro por uma enxada! Dado que a unidade de mercadoria no escambo torna perceptível a idéia de valor de todo o conjunto dos objetos, assim como a unidade monetária representa a idéia de valor do complexo monetário, podemos formular o seguinte: um contra um – apenas a expressão ingênua da equivalência dos conjuntos em questão. Pode-se admitir que a relação das unidades é sentida, ao menos, como exposição simbólica da relação das totalidades.

Mas se há equivalência entre esses conjuntos, efetiva mesmo que não consciente, ela apresenta, para além da contingência subjetiva, uma proporção objetiva entre quantidades parciais. Pois agora existe realmente alguma coisa igual de ambos os lados: a saber, a divisão entre cada uma das duas quantidades parciais e o quantum absoluto ao qual ambas pertencem. Pressupondo um completo equilíbrio entre todos os deslocamentos e irregularidades ocasionais na formação de preços, podemos observar no âmbito da troca dinheiro-mercadoria que a relação entre toda mercadoria e seu preço é a mesma que a relação entre todas as mercadorias economicamente ativas em um dado momento e a totalidade do dinheiro ativo nesse mesmo momento. Se existe uma ligação conceitual, qualitativa, entre um e outro, não tem aqui nenhuma importância. Se uma mercadoria custa 20m, isto quer dizer 1/n da reserva monetária em geral; ou seja, ela vale 1/n das reservas de bens em geral. Por meio desse expediente, 20m podem medir completamente essa mercadoria, mesmo que se trate de coisas totalmente diferentes; mas é preciso ressaltar sempre que o pressuposto de uma relação simples entre todas as mercadorias e todo o dinheiro é provisório, cru e esquemático. Caso se pretenda equalizar imediatamente uma mercadoria singular a um valor monetário, seria uma exigência correta que a mercadoria e o seu parâmetro tivessem a mesma essência. Entretanto, para as finalidades da troca e da determinação do valor é preciso apenas determinar a relação das diversas (ou todas) mercadorias entre si (ou seja, o resultado da divisão da mercadoria singular por todas as outras) e a equiparar à relação da quantidade de dinheiro, isto é, equiparar à fração correspondente do estoque de dinheiro atuante. E para tanto é necessário apenas uma grandeza determinável de algum modo numericamente. Se há relação entre a mercadoria n e a soma A de todas as mercadorias à venda, assim como entre a unidade monetária a e a soma B de todas as unidades monetárias dadas: então o valor econômico de n é expresso por a/B. Se no mais das

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vezes não se representa as coisas dessa maneira, é porque B assim como A são totalmente autônomos – suas mudanças não nos são facilmente perceptíveis – e por isso não tomamos consciência de sua função de denominadores; o que nos interessa nesse caso singular são os numeradores n e a. Daí poderia nascer a ideia que n e a, em si e para si, se correspondessem imediata e absolutamente e que portanto seriam da mesma natureza. O fato de o fator geral, que é o fundamento de toda relação, cair no esquecimento, ou seja, de atuar concretamente, mas não conscientemente, seria um exemplo para um dos traços mais decisivos da natureza humana. A capacidade de percepção limitada de nossa consciência, por um lado, e a oportunidade de economizar energia em sua utilização, por outro, fazem com que apenas uma pequena parte dos inúmeros aspectos e determinações de um objeto de interesse seja realmente notada. Aos diferentes pontos de vista que precedem a escolha e a classificação dos momentos da percepção pela consciência corresponde o fato de podermos encadeá-los em uma escala sistemática; essa, por sua vez, começa com uma série de fenômenos nos quais apenas aquilo que é comum a todos é percebido, apenas o fundamento que partilha com os outros se torna consciente; do outro lado da escala, o característico é que, de cada fenômeno, só vem à consciência justamente aquilo que o diferencia de todos os outros, o absolutamente individual, enquanto o universal e o fundamental permanecem aquém do limiar da consciência. Entre esses dois extremos e em vários níveis estão esses pontos ou aspectos do fenômeno total aos quais a consciência dá a mais alta atenção. De modo geral, pode-se então dizer que o interesse teórico orienta mais a consciência para os traços comuns e o interesse prático mais para a individualidade das coisas. Para o pensador interessado na metafísica, as diferenças individuais entre as coisas muitas vezes desaparecem por não serem essenciais; ele se mantém aferrado a ideias tão gerais como ser ou devir que são simplesmente comuns a todas as coisas. Ao contrário, a vida prática exige que percebamos em todas as partes, nos seres e circunstâncias que nos concernem, as diferenças, particularidades e nuances com a mais aguda consciência, enquanto as qualidades humanas gerais ou o fundamento comum a todas as circunstâncias em questão são tidos por óbvios e não atraem a atenção de maneira especial, e mesmo tal atenção só com muito esforço poderia torná-las claras. No interior de uma vida familiar, por exemplo, as relações conscientes que se estabelecem entre os diferentes membros se constroem sobre a experiência das qualidades individuais pelas quais cada um se distingue dos outros, enquanto os traços familiares comuns não são objeto de uma atenção particular da parte daqueles que os compartilham, tão pouca que apenas quem está longe é capaz de descrevê-los. Isso não impede que o fundamento geral e inconsciente tenha efeitos psicológicos. As qualidades individuais dos membros de uma família suscitam, de fato, relações muito diferentes entre eles de acordo com o caráter e a atmosfera geral que reina em toda a família; esse caráter geral constitui o fundo não percebido sobre o qual as qualidades individuais podem desenvolver seus efeitos claramente determinados. O mesmo vale para círculos mais amplos. Claro que todas as relações humanas repousam sobre condições específicas que cada singular traz

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consigo, portanto se elas se realizam efetivamente em sua maneira determinada é porque, para além delas, existem certos fatos e pressupostos totalmente universais que constituem o denominador geral com o qual as diferenças individuais se relacionam como numeradores determinados, comprovando assim a totalidade da relação. Exatamente a mesma relação psicológica poderia valer em relação ao preço em dinheiro. A equivalência entre o valor de uma mercadoria e o valor de uma soma em dinheiro não significa uma equação entre fatores simples e sim uma proporção, ou seja, a igualdade entre duas frações cujo denominador, por um lado, é a soma de todas as mercadorias, por outro, a soma de todo dinheiro – ambos naturalmente precisando ainda de maiores determinações – de um círculo econômico determinado. Como equação, ela acontece porque ambas as somas, por razões práticas a priori, são dadas como equivalentes; ou melhor: a relação prática que aplicamos às duas categorias se reflete na consciência teórica na forma de uma equivalência. Sendo o fundamento geral de todas as equações entre mercadorias singulares e preços singulares, essa forma não se torna consciente, mas constitui, para os elementos que nos interessam singularmente e que são, por isso, percebidos singularmente, o fator inconsciente sem o qual esses elementos não teriam nenhuma possibilidade de relação. A enorme importância dessa equação absoluta e fundamental tornaria tão pouco inverossímil, ou melhor, tão verossímil sua inconsciência como no caso das analogias aqui tratadas.

Claro que, supondo um dinheiro em si sem valor, o preço em dinheiro não teria nenhuma relação com as mercadorias cujo valor deveria expressar, se a observação se limitasse a esses dois momentos; não se saberia por que tal objeto deveria implicar um preço muito alto ou muito baixo ou outro qualquer. Tão logo, porém, como pressuposto absoluto de toda relação, colocamos a soma de tudo o que pode ser vendido e a soma de todo dinheiro como equivalentes – num sentido de “soma” que será discutido mais tarde – ,a determinação do preço de uma mercadoria singular acontece simplesmente como uma divisão entre seu valor e aquele valor total, que se repete como a divisão entre seu preço e o quantum total de dinheiro. Isso não implica, o que já foi indicado outras vezes, o círculo vicioso: a capacidade de uma determinada soma em dinheiro de medir o valor de uma mercadoria singular se baseia na relação de equivalência entre todo dinheiro e toda mercadoria, pressupondo essa já a mensurabilidade de uma pela outra; a questão de saber se toda mensuração exige uma igualdade essencial entre o objeto e seu padrão de medida, não seria mais pertinente em um caso concreto e ficaria insolúvel, grudada a esse pressuposto. De fato, só é possível medir quantidades relativas na medida em que suas quantidades absolutas estejam em algum tipo de relação, que não precisa ser uma medida ou uma igualdade. Não há certamente entre a espessura de um tubo de ferro e uma força hidráulica determinada nenhuma igualdade ou mensurabilidade; mas quando as partes integradas de um sistema mecânico produzem um efeito determinado de força, posso então, sob circunstâncias conhecidas de mudança da força hidráulica, medir exatamente, dada uma certa modificação dessa, qual o diâmetro do tubo no sistema.

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Mesmo que as mercadorias em geral e o dinheiro em geral não possam ser medidos um pelo outro; basta que ambos desempenhem um certo papel para a vida dos seres humanos no âmbito de seus sistema dos fins práticos, de modo que a modificação quantitativa de um represente o índice para a modificação do outro. Essa redução significativa da quantidade de dinheiro enquanto tal a uma fração que não diz nada sobre a grandeza absoluta, da qual representa uma quantidade determinada, tem a ver com o fato de os romanos marcarem sua moeda – com uma exceção especificamente justificada – por seu peso relativo e não pelo absoluto. Assim, ás significa apenas um todo composto de 12 partes que tanto se refere a uma herança quanto à medida ou ao peso, tanto à libra quanto a qualquer parte dela. E que no caso apenas a relatividade da medida seja consciente e efetiva não se altera com a hipótese segundo a qual teria significado nos tempos antigos uma barra de cobre de peso determinado.

Temos agora de lidar com a restrição mencionada acima ao conceito de quantum global de dinheiro. Não se pode dizer simplesmente que há tanto dinheiro para gastar quanto mercadorias a comprar e isso não se relaciona à diferença quantitativa que existe entre todas as mercadorias acumuladas, de uma parte, e todo dinheiro acumulado, de outra. Como não há para ambos nenhum padrão de medida comum, como para as coisas qualitativamente semelhantes, não existe então entre eles nenhum mais ou menos imediato. Nenhuma quantidade de mercadoria tem por si mesma uma ligação determinada com certa quantidade de dinheiro, já que, por princípio, toda finalidade do dinheiro pode ser alcançada com qualquer pequena quantidade de dinheiro. A que ponto isso pode acontecer realmente sem impedir a circulação nos mostra o fato relatado: na Rússia, há alguns séculos, havia moedas de prata tão minúsculas que não se podia pegá-las da mesa com a mão; era preciso esvaziar a bolsa sacudindo-a, separar a soma a pagar para então cada um pegar sua parte com a língua e recolocá-la na bolsa cuspindo-a. Poder-se-ia dizer: seja qual for o volume absoluto de reserva de dinheiro, na medida em que presta o serviço do dinheiro, será sempre “dinheiro” suficiente; o que varia é o quantum que esse signo ou peça representa em outra relação, ou seja, enquanto material de qualquer tipo, mas seu quantum como dinheiro não precisa mudar por isso. Assim, comparar diretamente todas as mercadorias com todo dinheiro não nos leva a nenhuma conclusão. A desproporção entre a totalidade do dinheiro e a totalidade de mercadorias, como denominador daquelas frações que exprimem o valor, repousa antes no fato de que o suprimento de dinheiro como um todo se transforma muito mais rapidamente do que o valor mercadoria como um todo. Pois, enquanto pode evitar, ninguém deixa uma grande soma de dinheiro sem uso e, de fato, quase sempre se pode evitar; mas nenhum comerciante pode impedir que partes importantes de suas reservas permaneçam longo tempo sem uso antes de poder vendê-las. Essa diferença na velocidade de transformação se torna ainda maior se contamos com os objetos que não são postos à venda, mas que podem sê-lo, em certas ocasiões e em oportunidades sedutoras. Se partirmos então dos preços realmente pagos por mercadorias singulares e perguntarmos o quantum de

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dinheiro seria necessário para comprar toda a reserva, veremos certamente que essa ultrapassa em muito a reserva de dinheiro efetiva. A partir desse ponto de vista, é preciso dizer que há muito menos dinheiro do que mercadorias e que a fração entre mercadoria e preço não é a mesma que entre todas as mercadorias e todo o dinheiro, ao contrário, e isso se deduz facilmente do que se disse antes, é consideravelmente menor. Mas há duas maneiras de se salvar nossa proporção de base. Primeiro, poder-se-ia ver o quantum total de mercadorias como aquele que se encontra atualmente à venda. Em termos aristotélicos, mercadoria não vendida é apenas uma mercadoria “em potencial” e se torna mercadoria “em ato” só no momento de sua venda. Assim como o dinheiro só é realmente dinheiro no momento em que compra algo, ou seja, em que exerce a função de dinheiro, da mesma forma, a mercadoria só o é quando vendida; antes, só é objeto à venda em virtude de e no interior de uma antecipação ideal. Desse ponto de vista, é totalmente evidente e idêntica a proposição de que há tanto dinheiro quanto objetos à venda – com o que, naturalmente, se entende como dinheiro todos os substitutos possíveis como crédito e transações bancárias. Ora, na verdade, as mercadorias momentaneamente em repouso não são de modo algum economicamente inativas e a vida econômica seria incalculavelmente alterada se as reservas de mercadoria alguma vez entrassem a cada momento totalmente em circulação como faz a reserva de dinheiro. Mas olhando mais de perto me parece que a reserva de mercadorias em repouso só tem efeito sobre o dinheiro efetivamente em circulação de três maneiras: sobre o tempo de circulação do dinheiro, sobre a produção da matéria monetária ou equivalente, sobre a relação do gasto de dinheiro com as reservas. Mas esses momentos já exerceram seus efeitos sobre as transações em curso; sob sua influência se formou a relação empírica entre mercadoria e preço e eles não nos impedem de modo algum de compreender, em nossa relação proporcional de base, o quantum total de mercadoria como constituído pelas vendas realmente realizadas em um dado momento. Em segundo lugar, isso também pode ser reconhecido como consequência do fato de que o mesmo quantum de dinheiro, que não é consumido da mesma maneira que as mercadorias, possibilita um número ilimitado de transações e que sua diminuta soma total, em relação à soma das mercadorias que se constitui em cada momento isolado, seja compensada pela velocidade de sua circulação. Em alguns pontos altos do sistema monetário, fica muito claro o papel irrelevante da substância do dinheiro na compensação de valores por ela mediada: em 1890, o Banco da França registrou em contas correntes 135 vezes a soma de dinheiro efetivamente depositada (54 bilhões contra 400 milhões de francos) e o Deutsche Reichsbank, 190 vezes. No total da soma de dinheiro em uso que determina o preço em dinheiro das mercadorias, a soma de dinheiro é de grandeza irrelevante em relação ao total disponível como resultado de sua circulação. Pode-se afirmar então sobre um período de uma determinada extensão temporal, mas não sobre cada instante singular, que a quantidade total de dinheiro corresponde à soma total dos objetos à venda no mesmo período. O singular faz suas despesas, aceita particularmente os preços para as grandes transações não em relação ao

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dinheiro disponível no momento e sim em relação ao conjunto das entradas de dinheiro em um período maior. Em nossa proporção, a fração de dinheiro pode ser igualada à fração de mercadorias pelo fato de seu denominador não indicar a quantidade de substância monetária efetivamente existente, mas um múltiplo determinado do número de trocas efetuado em um certo período de tempo. A partir desse ponto de vista, podemos resolver a antinomia entre as mercadorias potencialmente disponíveis e as mercadorias atuais como contravalores do dinheiro e manter a afirmação de que entre a soma total de mercadorias e a de dinheiro, em um círculo econômico fechado, não pode haver uma desproporção fundamental – tão certo quanto se pode divergir sobre a relação correta entre uma mercadoria singular e um preço singular, tão certo quanto podem existir oscilações e desproporções no caso de uma determinada grandeza das frações em questão ser fixada psicologicamente enquanto paralelamente deslocamentos objetivos estabelecem uma outra, e tão certo, particularmente, quando um aumento rápido da circulação pode produzir uma escassez temporária de meios de pagamento. As importações e exportações de metal resultantes de uma carência ou de um excesso de dinheiro em relação aos valores das mercadorias de um determinado país são apenas compensações no interior de um círculo econômico cujas províncias são formadas pelos países participantes e significam que a relação geral entre os dois termos que existe naquele momento no sistema econômico é restabelecida graças ao deslocamento de uma parte singular. Com base nessa suposição, a pergunta se um preço é adequado ou não seria imediatamente respondida por duas perguntas anteriores: primeiro, quais as somas de dinheiro e de objetos à venda atualmente ativas, e, segundo, que parte tem o objeto considerado na quantidade total de mercadorias disponíveis. Essa última é a questão decisiva e a equação entre a fração representando o objeto e a fração representando o dinheiro pode ser objetiva ou numericamente verdadeira ou falsa, enquanto na equação que liga a totalidade dos objetos à totalidade do dinheiro se trata apenas de adequação ou inadequação e não de uma verdade logicamente demonstrável. Essa relação das totalidades entre si tem, de alguma forma, o significado de um axioma que não é verdadeiro no mesmo sentido em que o são as proposições baseadas nele; apenas essas são comprováveis, enquanto aquele não pode se referir a nada de onde se poderia deduzi-lo logicamente. Aqui aparece uma regra metodológica de grande importância que vou ilustrar com um exemplo tirado de uma categoria de valores totalmente diferente. A afirmação de base do pessimismo é que a totalidade do ser demonstra um excedente considerável de sofrimento em relação às alegrias; o mundo do ser vivo, visto como uma unidade ou na média, experimenta muito mais dor do que prazer. Uma tal afirmação é desde logo impossível. Pois ela pressupõe que o prazer e a dor, como grandezas qualitativamente semelhantes com sinais trocados, poderia se equilibrar e se compensar diretamente uma à outra. Mas isso não acontece na realidade, pois não há um padrão de medida comum para ambos. Em nenhum quantum de sofrimento, poderia haver em si e para si uma quantidade da mesma grandeza de alegria de modo a atingir um equilíbrio. Como se pode explicar que tais comparações sejam feitas continuamente,

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como podemos afirmar nos assuntos cotidianos, nas conexões do destino, no conjunto da vida singular que a medida da alegria tenha sido inferior ou superior à da dor? Isso só é possível na medida em que a experiência de vida – com mais ou menos precisão – nos ensine como alegria e tristeza se repartem efetivamente, quanto sofrimento em média é preciso aceitar para poder obter a esse preço certa quantidade de prazer e quanto de ambos apresenta o destino típico do ser humano. Só quando se forma uma certa ideia a respeito, mesmo que inconsciente ou indefinida, se pode dizer que em um caso específico se obteve um prazer a preço muito alto – ou seja, com um quantum de sofrimento muito alto – ou que um destino humano singular demonstra um excesso de dor em relação ao prazer. Mas essa média não pode ser ela mesma “desproporcional” já que, ademais, é ela que determina desde logo se a relação dos sentimentos em um caso específico é ou não adequada – assim como tampouco se pode dizer que a média das pessoas seja alta ou baixa, pois é justamente essa média que fornece o padrão para medir o ser humano singular – e só ele pode ser grande ou pequeno; como também se pode dizer erroneamente que “o tempo” passa rápido ou devagar, pois o passar do tempo, ou seja, o tempo dos acontecimentos sentido e vivido como média, é o padrão a que se refere a rapidez ou a lentidão no fluxo das vivências singulares, sem o qual a própria média não seria rápida ou lenta. Portanto a afirmação do pessimismo de que a vida humana apresenta na média mais sofrimento do que prazer é tão metodologicamente impossível quanto a do otimismo de que haja mais prazer do que sofrimento na média; a quantidade total de prazer e dor sentida (ou dito de outra forma, sua média para um indivíduo ou um período de tempo) é o fenômeno primordial cujas partes não podem ser comparadas porque para isso seria necessário um padrão que estivesse fora de ambas e que as englobasse equitativamente.

Isso basta para caracterizar o tipo de conhecimento com que estamos lidando aqui. No interior do campo mencionado e em muitos outros, os elementos primários que constituem o campo não podem ser comparáveis entre si porque possuem qualidades diferentes e portanto não podem ser medidos entre si ou por um terceiro. Mas o fato de que um elemento exista em certa medida e o outro elemento, em outra constitui o padrão para o julgamento de casos, acontecimentos e problemas singulares e parciais nos quais ambos os elementos cooperam. Na medida em que repetem a proporção da quantidade total, os elementos do acontecimento singular estão em uma relação “correta”, ou seja, normal, média, típica, enquanto o afastamento dela aparece como “preponderância” de um elemento, como “desproporcionalidade”. É claro que em si e para si os elementos desses casos singulares possuem tão pouca relação com correção ou falsidade, igualdade ou desigualdade, quanto sua totalidade; antes, só chegam a isso quando a medida da quantidade total forma o absoluto segundo o qual o individual, como relativo, é avaliado; mas o próprio absoluto não está submetido às determinações da comparabilidade, que por sua vez possibilitam o relativo. – Esse tipo poderia ser a relação entre o objeto à venda e seu preço em dinheiro. Talvez ambos não tenham como

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conteúdo nada em comum, talvez sejam tão desiguais qualitativamente quanto quantitativamente incomparáveis. Só quando tudo o que pode ser vendido e todo o dinheiro formam juntos um mundo econômico, o preço de uma mercadoria pode ser “adequado”, só quando representa uma determinada parte da quantidade total de dinheiro efetivo do mesmo modo que a mercadoria em relação à quantidade total de mercadorias efetivas. Não é preciso um “valor” igual entre uma mercadoria e uma determinada soma de dinheiro para fundamentar sua proporcionalidade recíproca; o preço em dinheiro não precisa de modo algum de um valor ou pelo menos de um valor nesse sentido, ele só precisa constituir com a quantidade total de dinheiro a mesma fração que a mercadoria estabelece com todos os valores mercadorias. Mesmo o caso de uma economia individual mostra quanto o preço em dinheiro de uma mercadoria é dependente da relação dessa mercadoria com a totalidade das mercadorias. Diz-se que só fazemos um sacrifício de dinheiro – que para nós já é penoso – quando obtemos um contravalor adequado. Toda poupança nesse sacrifício é vista como um ganho positivo. Mas só é um ganho porque permite realizar o mesmo sacrifício em outra ocasião. Se eu não soubesse o que fazer com o dinheiro daria então todo o que possuo por esse objeto que o exige. A adequação do preço significa que eu – como um ser médio – depois de tê-lo pago tenho de ter ainda o suficiente para comprar o restante dos objetos igualmente desejados. O gasto com cada objeto singular deve se orientar pelo fato de eu querer ainda comprar outros objetos além desse. Quando cada um regula sua despesa privada de tal sorte que, para cada tipo de mercadoria, ela é proporcional ao total de suas entradas, isso significa que sua despesa singular está para suas despesas totais assim como o significado do objeto singular procurado está para a totalidade dos objetos desejados e disponíveis. E esse esquema da economia individual não é apenas uma analogia da economia em geral, pois de sua utilização generalizada resulta obrigatoriamente a fixação dos preços médios: as contínuas ponderações subjetivas sedimentam a relação objetiva entre mercadoria e preço que depende tanto da proporção entre as reservas globais e efetivas de mercadorias e a quantidade total de dinheiro quanto – salvo qualquer modificação – da proporção entre as necessidades globais do singular e as receitas globais que dispõe para isso.

Toda nossa argumentação até agora não tocou de modo algum na questão de saber se, na realidade, o dinheiro é ou não um valor; mas apenas no fato de sua função, medir valores, não o obrigar a ter um valor próprio. Essa simples possibilidade, no entanto, libera a via para o conhecimento não apenas de seu processo de desenvolvimento real, mas, acima de tudo, de sua essência interna. Em períodos econômicos primitivos, valores de uso aparecem por todo lado no papel de dinheiro: vaca, sal, escravos, tabaco, peles, etc. Seja qual for a maneira com que o dinheiro se desenvolveu, no começo, em todo caso, ele tinha de ser um valor – imediatamente percebido como tal. A troca de uma coisa valiosa por um pedaço de papel impresso só se torna possível em virtude da grande extensão e confiabilidade da série dos fins, pois é

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ela que garante que aquilo que é diretamente privado de valor nos ajuda a conseguir, em seguida, um valor. Pode-se, então, encontrar uma série de deduções lógicas que conduza a conclusões convincentes através de elos impossíveis ou contraditórios – mas só quando esse pensamento está muito seguro de sua direção e de sua exatidão; um pensamento primitivo, ainda hesitante, perderia em tal ponto totalmente sua direção e seu objetivo e seria obrigado, por isso, a exercer suas funções com argumentos o mais possível concretos e de uma exatidão tangível – naturalmente em detrimento da mobilidade do pensamento e da amplitude de seus objetivos. De modo correspondente, a realização das séries de valor através daquilo que não tem valor intensifica bastante sua extensão e sua eficácia, mas isso só acontece graças à maturidade intelectual do singular e a uma organização permanente do grupo. Ninguém é tão tolo a ponto de abandonar um valor por algo que não pode utilizar imediatamente se não está seguro de poder transformar esse algo novamente em valor. Por isso só se pode pensar que a troca era originalmente um escambo, ou seja, uma troca direta de valores. Supõe-se que objetos que eram frequentemente trocados, que circulavam justamente em virtude de sua demanda geral e que também com muita frequência tinham seus valores medidos na relação com outros objetos, puderam psicologicamente dar origem a um padrão de medida geral. Em aparente contradição com o resultado obtido anteriormente, segundo o qual o dinheiro em si e para si não precisa ser um valor, vemos aqui que, antes de tudo, é justamente o mais necessário e o mais valioso que tende a se tornar dinheiro. O mais necessário não no sentido psicológico; ao contrário, por exemplo, a necessidade de se enfeitar com adornos pode ter um papel dominante entre as coisas percebidas como “necessidades”; de fato ouvimos falar de povos naturais que consideram os adornos de seu corpo, assim como os objetos utilizados para esse fim, os mais valiosos entre todas as coisas que para nós parecem muito mais necessárias. A necessidade das coisas é para nós sempre um acento que nossa sensibilidade concede a seus conteúdos em si igualmente justificados – ou melhor: em si de modo algum “justificados” – e que depende exclusivamente da meta que nos colocamos – então é desde logo impossível determinar quais são simplesmente os valores imediatamente prementes que tendem a assumir o caráter de dinheiro; a única suposição incontornável me parece ser a de que esse caráter tenha originalmente se ligado a objetos que, por serem percebidos como necessários, aparecem muitas vezes na troca com uma variedade de outras coisas. O dinheiro não teria podido originar-se como meio de troca, nem como medida de valor, se não fosse sentido de modo imediato como valioso, em virtude de sua matéria.

Comparando com a situação atual, não resta dúvida que o dinheiro não é mais valioso para nós porque sua matéria é vista como imediatamente necessária, como um valor indispensável. Nenhuma pessoa de cultura européia crê hoje em dia que uma moeda seja valiosa por se deixar produzir como um objeto de adorno. O valor dinheiro de hoje não pode voltar a seu valor de metal justamente porque agora o metal precioso existe em quantidades muito grandes para que se possa encontrar uma utilização

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rentável meramente como jóia ou com alguma finalidade técnica. Se pensarmos em uma tal transição como terminada, nos termos da teoria do valor metálico da moeda, haveria uma tamanha pletora de objetos produzidos com metal precioso que seu valor cairia ao mínimo. Avaliar o dinheiro por sua possível conversão em outros objetos de metal só é possível no caso dessa conversão não acontecer ou acontecer apenas em quantidades ínfimas. Mesmo que no começo desse desenvolvimento, ou seja, quando havia muito pouco metal precioso, sua utilização como adorno pudesse ter determinado seu valor monetário, essa ligação desaparece à medida que sua produção se intensifica. Essa evolução é ainda reforçada pelo fato de o ser humano primitivo, como já mencionei acima, considerar como uma necessidade vital se enfeitar de uma determinada maneira; mas o desenvolvimento posterior das escalas de valor inclui esse interesse na categoria dos “dispensáveis” ou “supérfluos”. O ornamento não tem mais na vida cultural moderna o mesmo papel social que constatamos com espanto não só nos relatos etnológicos, mas também nos medievais. Essa circunstância nos serve ainda para reduzir o significado que o dinheiro tira de seu material. Pode-se dizer que o valor do dinheiro passa cada vez mais de seu terminus a quo para seu terminus ad quem e que assim a moeda em metal, no que concerne à capacidade psicológica de comparação ligada ao valor de seu material, se situa no mesmo nível do papel moeda. Não se deve declarar como irrelevante a falta de valor material do papel moeda por ele ser apenas uma referência ao metal. Contra isso há o fato de que mesmo um papel moeda totalmente descoberto sempre será avaliado como dinheiro. E mesmo se quiséssemos invocar a pressão política, que somente ela permite ao papel moeda circular, então isso significaria que justamente outras razões que não a utilização material imediata podem dar a uma determinada matéria seu valor monetário, o que fazem realmente. A crescente substituição da moeda de metal por papel moeda e pelas mais variadas formas de crédito age inevitavelmente sobre o caráter daquela primeira – mais ou menos como quando uma pessoa se faz representar constantemente por outra e no fim ganha apenas o apreço que é atribuído a seus representantes. Quanto mais extensos e variados os serviços a que o dinheiro é convocado e quanto mais velozmente a quantidade singular circula, tanto mais o seu valor funcional precisa ultrapassar o seu valor substancial. O desenvolvimento moderno da circulação monetária tende a se sobrepor cada vez mais ao dinheiro como portador de um valor substancial e ele deve necessariamente tender a isso, pois, mesmo intensificando a produção de metais preciosos, não seria suficiente para saldar todas as transações em moeda. As movimentações bancárias, por um lado, e as letras de câmbio internacionais, por outro, são apenas pontos relevantes dessa tendência geral cujas manifestações primeiras e características serão tratadas na última parte desse capítulo.

Em termos gerais, quanto mais primitivas são as representações econômicas, tanto mais o medir pressupõe uma relação sensível-imediata entre os valores comparados. A concepção exposta acima: que a equação de valor entre uma mercadoria

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e uma soma de dinheiro representa a igualdade das frações entre ambas como numeradores e que as quantidades globais de mercadoria e de dinheiro atuam economicamente como denominadores – é obviamente efetiva em toda parte, pois só ela transforma um objeto realmente em dinheiro; mas dado que o dinheiro só aparece gradualmente, esse modo só vai se desenvolver a partir do modo mais primitivo de comparação direta entre os objetos de troca. O nível mais baixo, talvez, nos seja dado por um caso da Ilha Nova Bretanha. Os nativos utilizam como dinheiro conchas cauri enfiadas em um cordão que eles chamam de dewarra. Esse dinheiro é usado em função de sua extensão: a extensão de um braço, etc.; para comprar peixe se dá, em regra, tanta dewarra quanto sua própria extensão. Sobre esse dinheiro cauri se conta ainda que o modo de compra consiste no fato de duas mercadorias de mesma medida valerem a mesma coisa: uma medida de grãos, por exemplo, vale a mesma medida de conchas cauri. Aqui a equivalência direta entre mercadoria e preço atinge sua expressão mais acabada e mais simples; diante dela, uma comparação de valor que não desemboque em uma congruência quantitativa representa um processo intelectual mais alto. Um rudimento dessa avaliação igual de quantidades iguais se encontra no fenômeno relatado por Mungo Park no século XVIII a respeito de algumas tribos do oeste africano. Lá circulava uma moeda com forma de barra de ferro que servia para designar as quantidades de mercadoria de modo que uma determinada medida de tabaco ou de rum fosse denominada uma barra de tabaco ou uma barra de rum. Aqui a necessidade de considerar a igualdade de valor como igualdade quantitativa – obviamente um ponto de apoio forte, que impressiona os sentidos, na formação do valor primitivo – se refugiou na expressão lingüística. E, sob aspectos bem diferentes, outros fenômenos podem ser atribuídos à mesma sensação fundamental. Da cidade de Olbia, no Dnieper, uma colônia de Mileto, nos chega uma moeda de bronze em forma de peixe com inscrições que significam, provavelmente, atum e cesta de peixe. Supõe-se então que esse povo de pescadores utilizava originalmente o atum como unidade de troca e – talvez em razão de suas relações com tribos vizinhas mais primitivas – julgasse necessário, com a adoção da moeda, representar o valor de um atum em uma moeda; assim, através da igualdade de sua forma, ela concretizaria diretamente a igualdade do valor com o objeto que substituía, enquanto em outros casos menos evidentes, mas mesmo assim não renunciando à correspondência externa, se cunhava na moeda apenas a imagem do objeto (boi, peixe, machado) que havia constituído a unidade fundamental na época do escambo e cujo valor a moeda representava. O mesmo sentimento fundamental aparece quando o Avesta prescreve que o médico deve exigir como honorário para o tratamento do proprietário de uma casa o valor de um boi ruim, para o de um chefe de um vilarejo, o valor de um boi médio, para um prefeito municipal, o de um boi valioso, para um governador de estado, uma quadriga; para o tratamento da mulher de um proprietário, uma jumenta, da mulher de um chefe de vilarejo, uma vaca, da mulher de um prefeito, uma égua, da mulher de um governador, uma camela. A correspondência dos sexos entre o serviço prestado e sua remuneração demonstra também aqui a tendência de se

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basear a equivalência entre valor e contravalor em uma igualdade externa imediata. Do mesmo modo, o dinheiro no início de seu desenvolvimento consistia em peças grandes e pesadas: peles, gado, cobre, bronze; ou muito numerosos como a moeda cauri; daí vem o fato de a primeira nota de banco que conhecemos e que foi conservada, da China do século XIV, medir 18 polegadas inglesas de comprimento por 9 de largura. Vale aqui ainda a regra do camponês: riqueza atrai riqueza – à qual se associa um sentimento natural que só pode ser superado por um empirismo mais refinado e reflexivo. Também no caso do dinheiro feito com metais preciosos encontramos as moedas maiores quase que exclusivamente entre povos de culturas menos desenvolvidas ou vivendo em uma economia natural: as maiores peças de ouro são o lool dos anamitas que vale 880 marcos, o obang japonês (220 marcos), o benta dos asantes; há também em Anam uma moeda de prata que vale 60 marcos. Desse mesmo sentimento, de que o importante é a quantidade, o direito de cunhagem é reservado, no caso das grandes moedas, aos mais altos detentores do poder, enquanto as pequenas (do mesmo metal) são produzidas por instâncias inferiores: assim, o grande rei da Pérsia cunhava as grandes peças, e os sátrapas a pequena moeda de ouro de menos de 25 centavos. Esse caráter quantitativo enorme não é próprio apenas das formas primitivas da moeda em metal, mas também dos tipos de moeda que lhe precederam: os eslavos, que no primeiro século de nossa era se instalavam entre o Saale e o Elba e que eram um povo extraordinariamente rude, usavam como dinheiro peças de linho; o poder de compra de uma tal peça alcançava 100 galinhas ou grãos para 10 homens durante um mês! E mesmo no interior do sistema monetário desenvolvido é notável como o conceito de dinheiro se torna cada vez menos determinado pelo valor metal. O florim medieval era uma moeda de ouro do valor de um ducado – que hoje vale 100 cruzados de cobre; o antigo groschen era uma grossa (grossus) peça de prata; o antigo marco valia uma libra de prata e uma libra esterlina 70 marcos. Em condições primitivas e de economia natural, a circulação do dinheiro estava reservada não às pequenas necessidades diárias, mas aos objetos relativamente grandes e valiosos e, em relação a eles, a tendência à simetria, própria a todas as civilizações pouco desenvolvidas, também dominava as trocas monetárias e exigia para um objeto extremamente grande um signo monetário igualmente grande: que uma desigualdade quantitativa extrema entre fenômenos permita uma igualdade de força, de significado e de valor, só pode ser concebido por estágios evolutivos superiores. Onde a prática requer a execução de equivalências, exige-se inicialmente uma imediaticidade a mais visível da equivalência, como demonstra a quantidade imponente de dinheiro primitivo em relação a seus contravalores. A abstração que permite, mais tarde, um pequeno pedaço de metal seja reconhecido como equivalente de qualquer objeto muito maior intensifica-se, no mesmo sentido, com a finalidade de que um lado da equivalência do valor não mais funcione como valor em si e para si, mas sim como expressão abstrata para o valor do outro lado. Por isso, a função do dinheiro como instrumento de medida que, desde o início, é a menos ligada à materialidade de seu substrato, é a que menos mudou ao longo das transformações da economia moderna.

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Estabelecer uma proporção entre duas grandezas, não mais por comparação direta, uma diante da outra, mas de tal modo que cada uma delas entre em relação com outra grandeza e que ambas as relações sejam iguais ou desiguais entre si – esse é um dos maiores progressos que a humanidade fez, a descoberta de um mundo novo a partir do material do velho mundo. Duas potências de níveis muito diferentes se manifestam – e se tornam comparáveis porque, em relação à quantidade de força que cada uma tem de empregar, elas representam a mesma tensão da vontade e o mesmo sacrifício; dois destinos se encontram distantes um do outro na escala da felicidade – mas eles adquirem logo uma ligação mensurável desde que se considere cada um deles em função da quantidade de mérito que torna o portador digno ou indigno dessa felicidade. Dois movimentos que possuem velocidades completamente diferentes obtêm homogeneidade e igualdade tão logo observamos que a aceleração em relação ao momento inicial é em ambos a mesma. Não somente para nosso sentimento se trama uma espécie de afinidade entre dois elementos – na verdade, eles são estranhos um ao outro em seu caráter imediato e substancial, embora suas relações com um terceiro e quarto elemento sejam iguais – mas é justamente por isso que um se torna um fator para se calcular o outro. E agora indo mais longe: não importa o quão incomparáveis duas pessoas possam ser em suas qualidades específicas, uma relação com uma terceira funda uma igualdade entre elas; tão logo a primeira demonstra o mesmo amor ou ódio, o mesmo domínio ou sujeição em relação a uma terceira, assim como a segunda em relação a uma quarta pessoa, então essas relações fundamentaram uma igualdade profunda sob a alteridade do ser-para-si delas. Finalmente, um último exemplo. Não poderíamos comparar entre si o grau de perfeição de obras de arte de natureza distinta, seus valores não se ordenariam segundo o nexo de uma escala, se cada uma não tivesse uma relação determinada com o ideal peculiar à sua categoria. A partir do problema, do material, de seu estilo, nasce em nós uma norma e com ela sua realidade tem uma relação perceptível de proximidade e distância que, obviamente, pode ser igual ou comparável, apesar da grande variedade de obras. A possível igualdade de tais relações cria, a partir de obras singulares, totalmente estranhas entre si, um mundo estético, uma ordem precisa, uma afinidade ideal segundo o valor. E isso se estende não apenas ao mundo da arte, pois, que da matéria de nossas avaliações isoladas se origine um conjunto de significados de importância igual ou gradual, que o desarmônico só seja percebido através da exigência de uma ordem unificadora e de uma ligação íntima dos valores entre si – esse traço essencial, nossa imagem de mundo deve à capacidade de considerar não só duas coisas, mas também as relações dessas duas com outras duas e de condensá-las na unidade de um juízo de igualdade ou semelhança. O dinheiro, como produto dessa força ou forma fundamental inerente a nós, é não somente seu exemplo mais amplo, mas, por assim dizer, nada menos que sua própria encarnação. Pois o dinheiro só pode expressar as relações de valor das coisas entre si realizadas na troca de modo que a relação da soma singular com um denominador obtido de alguma maneira é a mesma que entre a mercadoria correspondente a essa soma e a totalidade das

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mercadorias em questão na troca. O dinheiro não é, de acordo com sua essência, um objeto valioso, cujas partes entre si ou face ao todo teriam, por acaso, a mesma proporção que outros valores entre si; ele esgota seu sentido ao exprimir a relação de valor justamente desse outro objeto face a outro, o que ele consegue em virtude daquela capacidade do espírito cultivado: de equivaler as relações das coisas mesmo ali onde as próprias coisas não possuem equivalência ou similitude alguma. Que essa capacidade tenha se desenvolvido gradualmente a partir da capacidade mais primitiva de julgar e expressar a equivalência ou semelhança entre dois objetos de modo imediato, isso demonstram os fenômenos mencionados acima ao tentarmos levar também o dinheiro a uma ligação imediata desse tipo com seus contravalores.

Na economia moderna, essa transição começa, por exemplo, com o sistema mercantil. O esforço dos governos de levar ao país o máximo de dinheiro possível é, na verdade, ainda guiado pelo princípio “riqueza atrai riqueza”; mas o objetivo final com o qual devia colaborar era o estímulo à indústria e ao mercado. Um novo progresso nessa direção seria pensar que os valores que servem a esses fins não precisam da forma dinheiro, antes, é muito mais o produto imediato do trabalho como tal que representa o valor decisivo. É um pouco como o objetivo da velha política: conquistar o máximo de território possível e povoá-lo com o máximo de gente possível: até quase o fim do século XVIII, nenhum homem de Estado poderia imaginar que a grandeza nacional pudesse ser promovida de outra maneira que não através da conquista territorial. A justificativa para tais fins em determinadas circunstâncias históricas não nos impediu de pensar que essa abundância substancial é importante apenas como fundamento de uma evolução dinâmica que demanda, finalmente, apenas um limitado apoio desse tipo. Tornou-se evidente que, para o crescimento da produção e da riqueza, é cada vez menos importante a presença física do equivalente monetário, embora a “abundância” de dinheiro não seja buscada apenas por si mesma e sim por fins funcionais determinados que podem ser alcançados por, digamos, processos flutuantes que excluem o dinheiro – o que particularmente comprova a moderna troca internacional de mercadorias. O significado do dinheiro, expressar o valor relativo das mercadorias, é, segundo nossos modelos acima, totalmente independente de um valor próprio que lhe seja inerente; assim como é indiferente para que se meça o tamanho de um espaço que a escala seja de ferro, madeira ou vidro, o que importa é a relação de suas partes entre si, ou seja, com uma terceira grandeza – portanto a escala que o dinheiro oferece para a determinação de valores nada tem a ver com o caráter de sua substância. No que se refere a seu significado ideal como padrão e expressão do valor das mercadorias, ele permaneceu totalmente inalterado, enquanto como mercadoria intermediária, como meio de conservação e de transporte de valor, mudou, em parte, de caráter e, em parte, ainda vai mudar mais: a partir da forma da imediaticidade e da substancialidade em que realiza essa incumbência, passa à forma ideal, ou seja, exerce seus efeitos simplesmente como ideia que se liga a qualquer símbolo representativo.

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Desse modo, o desenvolvimento do dinheiro parece se inserir em uma tendência cultural profundamente estabelecida. Podemos caracterizar as diferentes camadas culturais da seguinte forma: qual a amplitude e em que pontos elas têm uma relação imediata com os objetos que lhe interessam e, por outro lado, em que medida servem como mediação entre símbolos. Se, por exemplo, as necessidades religiosas são satisfeitas através de ritos e fórmulas simbólicas ou através de uma comunicação direta do indivíduo com seu deus; se a consideração que pessoas têm umas com as outras se manifesta em um esquematismo rígido em que as posições respectivas são indicadas através de determinadas cerimônias ou de uma cortesia, de um devotamento e de um respeito informal; se compras, acordos e contratos são realizados pela simples enunciação de seu conteúdo ou devem ser legalizados e sancionados por atos solenes de caráter simbólico; se o conhecimento teórico se dirige diretamente à realidade sensível ou à sua representação mediante conceitos gerais e símbolos metafísicos ou mitológicos – tais são as diferenças mais profundas que separam as orientações vitais. Mas essas diferenças não são, naturalmente, rígidas; a história interna da humanidade, antes, demonstra um contínuo fluxo e refluxo entre elas; por um lado, cresce a simbolização da realidade, mas ao mesmo tempo, em um movimento inverso, os símbolos não param de se dissolver sendo reduzidos a seus substratos originais. Tomo um exemplo bem singular. Os assuntos sexuais sempre estiveram encobertos pela disciplina e pela vergonha, enquanto as palavras que os descrevem se mantêm ainda intocadas; só nos últimos séculos, elas passaram a ser objeto de cautela – o símbolo se confunde com o significado afetivo da realidade. Agora, nesses tempos modernos, se abre novamente uma solução para essa ligação. A orientação naturalista em arte chamou a atenção para a falta de diferenciação e de liberdade no caso de à palavra, mero símbolo usado com finalidade artística, se ligarem as mesmas sensações que às próprias coisas; a representação da indecência não é uma representação indecente e é preciso separar as sensações de realidade do mundo simbólico em que cada arte, inclusive a naturalista, se movimenta. Talvez, em relação a isso, apareça uma maior liberdade geral nos estratos mais cultos no que tange à abordagem de assuntos delicados; onde se pressupõe uma mentalidade objetiva e pura é muitas vezes permitido se falar do que antes era proibido – o sentimento de vergonha se dirige exclusivamente às coisas, deixando as palavras, seus meros símbolos, novamente livres. Assim nos domínios mais estritos, como nos mais amplos, a relação entre realidade e símbolo oscila e se chega quase a acreditar – mesmo se tais generalidades se deixassem demonstrar – que ou todo nível de cultural (ou toda nação, todo círculo, todo indivíduo) demonstra uma certa proporção de simbolismo ou realismo direto no tratamento dos objetos que lhe interessam ou que justamente essa proporção permanece no todo imutável e apenas os objetos, aos quais ela se refere, se submetem à mudança. Talvez se possa afirmar com mais precisão que uma acentuação particularmente marcada de simbolismo é própria tanto a estratos mais primitivos e ingênuos, quanto aos mais desenvolvidos e complexos; e que, no que tange aos objetos, o desenvolvimento progressivo no campo do conhecimento nos libera cada

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vez mais dos símbolos, mas no campo prático os torna cada vez mais necessários. Ao contrário do simbolismo nebuloso da visão de mundo mitológica, o simbolismo moderno demonstra uma incomparável imediaticidade na apreensão dos objetos; a acumulação extensiva e intensiva dos momentos vividos, por sua vez, faz com que se opere muito mais com resumos, condensações e substituições na forma de símbolos do que era necessário em relações mais simples e estritas; o simbolismo, que nos graus mais baixos da vida, significa amiúde desvio e dispêndio de força, nos graus mais elevados serve justamente a uma economia de forças e a uma atitude com relação a fins dominadora das coisas. Podemos pensar aqui na técnica diplomática, tanto no que diz respeito à política internacional, quanto àquela dos partidos. É certamente a relação de forças reais que decide sobre uma saída em caso de conflito de interesses. Mas esses não se medem mais imediatamente, ou seja, na luta física, uns contra os outros, e sim através de meras representações. Por trás dos representantes de qualquer potência coletiva existe, na forma potencial condensada, a força real de seu partido e é na medida exata dessa força que sua voz se faz ouvir e que seus interesses podem triunfar. Ele mesmo é, por assim dizer, o símbolo desse poder; o movimento intelectual entre os representantes dos diferentes grupos de poder simboliza aquilo que poderia acontecer na luta real, de tal modo que o vencido se submete ao resultado como se tivesse sido suplantado na batalha. Lembro, por exemplo, das negociações entre trabalhadores e patrões sob a ameaça de uma greve. Cada partido trata de ceder apenas no ponto em que, segundo sua avaliação das forças, seria forçado a fazê-lo pela deflagração da greve real. Assim se evita a ultima ratio antecipando os eventos em representações condensadas. Se sempre fosse possível com certeza tal substituição e medida das forças reais através de meras representações, poder-se-ia então poupar qualquer batalha. Aquela proposta utópica: decidir as guerras vindouras em uma partida de xadrez entre os generais – é absurda porque o desfecho de uma partida de xadrez não nos diz nada sobre o desfecho de uma batalha, não podendo, portanto, simbolizá-la e representá-la com resultados válidos; ao contrário, uma espécie de jogo de guerra em que todos os exércitos, todas as chances, toda inteligência de comando encontrasse uma expressão simbólica acabada, sob a impossível pressuposição de sua factibilidade, poderia tornar as batalhas físicas desnecessárias.

A riqueza dos momentos – forças, substâncias e acontecimentos – que toda vida evoluída deve ter em conta nos impele a uma condensação em símbolos totalizantes; com eles, fazemos cálculos seguros de que teremos o mesmo resultado que teríamos se tivéssemos operado com a total amplitude das singularidades; de modo que esse resultado vale sem reservas para essas singularidades e pode ser a elas aplicado. Isso só se torna possível à medida que as relações de quantidade entre os objetos vão, por assim dizer, se tornando autônomas. A diferenciação crescente de nossas representações traz com ela uma certa separação psicológica entre a pergunta sobre o quanto e a pergunta sobre o que – mesmo que isso pareça, em termos lógicos, fantasioso. Ocorreu

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inicialmente e com maior sucesso na formação dos números, quando de uma quantidade qualquer de objetos se retirou essa quantidade qualquer para transformá-la em um conceito autônomo. Quanto mais os conceitos se estabelecem segundo seu conteúdo qualitativo, mais o interesse se dirige às suas relações quantitativas e, por fim, acaba-se por declarar como o ideal do conhecimento dissolver todas as determinações qualitativas da realidade em determinações puramente quantitativas. Essa seleção e ênfase da quantidade facilita o tratamento simbólico das coisas: de fato, dado que as coisas mais diferentes no que tange ao conteúdo podem coincidir em termos quantitativos, então as relações, as determinações e os movimentos de um objeto podem fornecer uma imagem válida das de outro objeto; os exemplos mais simples são as fichas que ilustram visivelmente as determinações numéricas de quaisquer objetos ou o termômetro à janela que nos indica na escala numérica o mais ou menos do sentimento de calor que devemos esperar. A possibilidade de símbolos através da separação psicológica da dimensão quantitativa das coisas, que hoje nos parece óbvia, é uma realização do espírito de consequências extraordinárias. Mesmo a possibilidade do dinheiro está ligada a ela na medida em que ele, abstraindo toda qualidade do valor, expõe a pura quantidade do valor em forma numérica. Um exemplo muito característico dessa passagem da expressão que pode ser determinada qualitativamente para uma determinação quantitativamente simbólica nos oferece um relato da velha Rússia. Lá se utilizou primeiro a pele de marta como meio de troca. Mas no transcorrer das transações o tamanho e a beleza das peles singulares perderam qualquer influência sobre seu valor de troca de tal modo que cada pele tinha simplesmente o valor de uma pele, o mesmo que todas as outras. Como consequência, apenas o número importava e à medida que cresciam as transações se utilizava, para facilitar, apenas a ponta de uma pele como dinheiro até que, finalmente, pedaços de pele, provavelmente validados pelo governo, circularam como meio de troca. Aqui se mostra claramente como a redução ao ponto de vista puramente quantitativo dá sustentação para a simbolização do valor, sobre a qual então repousa a realização absolutamente pura do dinheiro.

Ao contrário, parece que um dinheiro que fosse desde o início apenas ideal não poderia satisfazer às exigências econômicas mais altas, apesar do fato de a ausência de relação direta com todos os valores presentes – que implica uma relação igual entre elas – o tornar apto a uma difusão particularmente grande. A extraordinária expansão do dinheiro cauri, que circula há mil anos em uma grande parte da África, antes na região do oceano Índico e na Europa pré-histórica, não teria sido possível se não fosse puramente ideal. Nos estágios inferiores da economia, se encontram os maiores contrastes entre os valores monetários; de um lado, um dinheiro de valor absolutamente concreto como o gado ou pedaços de algodão que circulavam nas Filipinas como grandes moedas; de outro, um totalmente ideal, como o cauri, como o dinheiro da casca da amoreira, que Marco Polo descobriu na China, como as peças de porcelana com ideogramas chineses válidos no Sião. Um certo desenvolvimento funcional para além

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dos tipos de dinheiro de valor concreto começa quando artigos naturais que são ao mesmo tempo artigos de exportação passam a valer como meio de troca: o tabaco, na Virginia, arroz na Carolina, bacalhau salgado na Nova Escócia, chá na China e peles em Massachusetts. No produto de exportação, o valor se destaca psicologicamente do caráter imediato próprio ao consumo interno dessa moeda-mercadoria. Mas o ponto ótimo entre os tipos de dinheiro abstrato que já mencionamos e essa moeda produto do consumo é a moeda feita de jóias, portanto, ouro e prata, porque não é nem tão arbitrária e destituída de sentido como os primeiros, nem tão grosseira e singular como os segundos. Esse é o suporte que conduz o dinheiro mais facilmente e de modo mais seguro à sua transformação em símbolo; é preciso passar pelo estágio dessa ligação para atingir o máximo de sua eficácia e parece que não poderá totalmente se desligar dele num futuro previsível.

À medida que símbolos secundários – como se pode nomeá-los para fazer a diferença com um simbolismo ingênuo de estados espirituais ingênuos – vêm substituir cada vez mais na prática a apreensão imediata dos objetos e dos valores, cresce extraordinariamente o significado do intelecto para a condução da vida. Tão logo a vida não mais transcorre entre singularidades sensíveis, mas se deixa determinar através de abstrações, médias e condensações, então, particularmente na relação entre os humanos, a execução mais rápida e mais precisa dos processos de abstração produz um considerável avanço. Se em tempos mais rudes, a ordem pública só podia ser mantida pela força física, hoje basta a mera presença de um funcionário; se apenas uma assinatura nos obriga incondicionalmente em termos internos e externos; se, entre pessoas refinadas, é suficiente uma palavra levemente sugerida ou um gesto mínimo para estabelecer uma relação duradoura e sólida, enquanto entre os menos evoluídos isso só acontece após longas negociações ou comportamentos longamente acumulados; se estamos obrigados a sacrifícios em função de contas escritas em um papel, entre os mais ignorantes só se pode arrancar através da reação dos fatores em questão – é porque o significado obtido por objetos e atos simbólicos só se torna possível com uma intelectualidade muito elevada, só com a existência de uma força espiritual tão autônoma que dispense a intromissão de singularidades imediatas.

Conduzi as coisas até aqui para mostrar claramente como o dinheiro também se insere nessa corrente cultural. O princípio cada vez mais ativo da economia de forças e substâncias leva à utilização cada vez mais ampla de substituições e símbolos que não têm nenhuma afinidade de conteúdo com aqueles que representam; o mesmo acontece quando operações com valores se concretizam em um símbolo, que perde cada vez mais a relação material com as realidades definitivas de seu domínio e se torna mero símbolo. Essa forma de vida pressupõe não apenas um incremento extraordinário dos processos psíquicos – que pressupostos psicológicos complexos já não exige, de fato, a cobertura de notas bancárias através reservas monetárias! – mas também uma aceleração deles,

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uma virada fundamental da cultura para a intelectualidade. A ideia de que a vida deva se apoiar essencialmente no intelecto que, entre todas as nossas energias psíquicas, é tida como a mais valiosa em termos práticos – como nossas reflexões posteriores vão nos mostrar – anda lado a lado com a penetração da economia monetária; assim como no interior do campo comercial, particularmente onde acontecem apenas transações com dinheiro, o intelecto é, sem dúvida, o soberano. O aumento das capacidades intelectuais e de abstração caracteriza a época em que o dinheiro se torna cada vez mais um símbolo puro indiferente a seu valor próprio.

II

É preciso ter em mente que assim apenas uma direção do desenvolvimento é determinada, aquele que começa com o valor real do dinheiro material coordenado a todos os outros valores. Por isso, devem ser refutadas algumas concepções próximas que aparentemente concordam com a nossa, sobre a ausência de valor da substância dinheiro, na medida em que acentuam a diferença que o dinheiro apresenta em relação a todos os outros valores e com isso tentam provar que o dinheiro não pode ser fundamentalmente um valor do mesmo tipo dos outros valores. Como ocorre muitas vezes, é fixado desse modo na forma do enrijecimento e da antecipação o que só pode ser alcançado com infinitas aproximações. Ao rejeitar o valor dogmático do dinheiro, não devemos cair no dogma de seu não-valor, ao qual poderiam nos conduzir as seguintes noções. Parece que até o objeto mais útil tem de renunciar à sua utilidade para funcionar como dinheiro. Se na Abissínia, por exemplo, pedras de sal cortadas de modo específico circulam como moedas, elas só são dinheiro por não serem mais utilizadas como sal. Na costa da Somália, circulavam antigamente peças de algodão azul, de dois côvados cada, como dinheiro; seja qual for o progresso realizado no sentido de uma melhora na circulação do dinheiro em relação à moeda de pano, que pode ser cortada e recomposta à vontade, essa forma de uso indica a tendência a se renunciar à utilização do pano como pano. O possível uso do ouro e da prata para fins técnicos e estéticos não pode mais ser concretizado tão logo ambos passam a circular como moeda; e assim com todos os outros tipos de dinheiro. Todos os inúmeros efeitos irradiados pelo dinheiro material no campo de nossas finalidades devem se calar para que seu efeito como dinheiro aconteça. No momento em que esses metais preciosos desenvolvem seu valor prático, estético ou outro qualquer, são retirados de circulação e deixam de ser dinheiro. Todos os outros valores devem ser comparados entre si e trocados segundo a medida de seu quantum de utilidade com o objetivo de se apropriar justamente desse quantum; o dinheiro está completamente fora dessa série. Pois tão logo é usado no mesmo sentido do contravalor a ser obtido, deixa de ser dinheiro. Sobre a tendência específica dos

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metais preciosos a se tornar dinheiro material, pode-se dizer que eles voltam muito facilmente à forma dinheiro, mesmo depois de terem sido utilizados sob outras formas para fins diversos; mas por isso mesmo estão sempre diante da alternativa de ser dinheiro ou jóia, dito de outro modo: de funcionar como dinheiro ou como valor de uso. Com isso, pode parecer que o dinheiro é novamente inserido nas outras categorias de valor. Pois se eu compro um metro de lenha, avalio também sua substância pelo serviço que ela me presta como matéria que produz calor e não por outros usos possíveis. Mas na verdade não é bem assim. Se afirmamos que o valor do dinheiro consiste no valor de sua substância, isso significa que ele se encontra nos aspectos ou nas forças dessa substância segundo os quais ou pelos quais ele justamente não é dinheiro. O contra-senso que essa afirmação parece conter indica que o dinheiro não requer necessariamente como suporte certas substâncias que são valiosas “em si”, ou seja, segundo outras relações, mas que basta transferir a capacidade de funcionar como dinheiro a quaisquer outras substâncias irrelevantes. Se uma tal renúncia a todas aquelas funções de valor sobre as quais se fundou o valor necessário da substância monetária nos permite decidir com razão pela possibilidade de o dinheiro ser sempre apenas dinheiro e nada além disso – é o que nos resta provar.

Trata-se aqui do fenômeno extremamente importante do objeto com muitas possibilidades funcionais das quais apenas uma, com a exclusão de todas as outras, pode ser concretizada, e da questão de se saber como o sentido e o valor dessa função concretizada são modificados pela retirada das outras. Para compreender a coexistência de diferentes possibilidades é preciso ressaltar como a sucessão de múltiplas funções afeta aquela que finalmente sobrevive. Se o pecador arrependido deve ter mais valor na ordem ética mundial do que o justo que nunca teve um tropeço, a grandeza moral de uma tal avaliação não é extraída do momento em que ela realmente acontece – pois o conteúdo ético desse mesmo momento não é diferente, dados os pressupostos, da situação do justo desde sempre – e sim dos que o precederam, orientados eticamente de modo diverso, e do fato de esses momentos não mais existirem. Se após fortes entraves e constrangimentos externos à nossa atividade, reconquistamos a liberdade e a autodeterminação, a essa ação se liga um sentimento de bem-estar e de valor que não brota de modo algum do conteúdo singular ou do sucesso de tal ação e sim exclusivamente da superação da forma de dependência: a mesma ação, em meio a uma série ininterrupta de ações autônomas, careceria do encanto que brota da simples supressão daquela forma de vida anterior. Esse resultado do aquilo-que-não-é para aquilo-que-é parece algo modificado e nossa questão específica – apesar da estranheza dos conteúdos – está mais próxima do significado que a vida sentimental imediata tem para a obra de arte lírica ou musical. Pois na medida em que a lírica e a música se constroem sobre a força de emoções íntimas subjetivas, seu caráter de arte exige que essa imediaticidade seja superada. A matéria crua do sentimento com sua impulsividade, suas limitações pessoais, sua eventualidade heterogênea constitui sem dúvida a

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condição da obra de arte, mas a pureza da arte exige distância, afastamento dessas emoções. Pois esse é todo o sentido da arte para o criador, assim como para aquele que a desfruta: o de nos elevar para além da relação imediata com nós mesmos e com o mundo; seu valor depende daquilo que deixamos para trás e que continua a agir como aquilo que não está mais lá. E quando se diz que o encanto da obra de arte vive na ressonância desse sentimento autóctone, dessa comoção originária da alma, estamos admitindo que o específico desse encanto não reside no que é comum à forma imediata e à forma estética do conteúdo afetivo, mas na nova tonalidade que a forma estética adquire, enquanto a forma imediata se desvanece. E finalmente o caso mais decisivo e geral desse tipo, pouco observado em virtude de estar profundamente radicado em nossas avaliações fundamentais. Parece-me que o encanto que um número enorme de conteúdos vitais exerce sobre nós deve sua intensidade ao fato de deixarmos inexploradas, por causa deles, inúmeras chances de outros prazeres e ocasiões para nos pôr à prova. Não apenas nos encontros e desencontros das pessoas, em suas separações após um breve contato, na completa estranheza em relação a tantos outros, a quem poderíamos dar tanto e que poderiam também nos dar tanto – não é em si e para si apenas um dispêndio suntuoso, uma grandeza descuidada da existência, mas para além do valor próprio desse não-gozo se irradia dele sobre o que possuímos de fato agora um encanto novo, elevado e concentrado. O fato de somente uma das inúmeras possibilidades da vida ter se tornado realidade lhe empresta um tom de vitória e sua marcha triunfal é constituída pelas sombras de uma plenitude vital não remida e não desfrutada. Mesmo isso que se dá ao outro tira muitas vezes seu valor daquilo que se retém ou decididamente se guarda para si. A doação amigável, em especial a pessoas socialmente inferiores, perde valor a seus olhos quando passa de um certo limite, quando se é muito pouco reservado. Quanto mais o beneficiário percebe que o outro conserva alguma coisa para si mesmo, alguma coisa que não dá a ele – mais é importante para ele que o outro lhe dê uma parte de si. E assim indefinidamente no significado de nossas ações e criações para nós mesmos. Exigências prementes súbitas nos ensinam que ainda temos talento e forças para tarefas que até agora pareciam distantes, energias que poderiam permanecer latentes para sempre, se nenhuma necessidade fortuita as obrigasse a sair. Isso demonstra que em cada pessoa, além das forças que ela comprova, repousa uma quantidade indeterminada de outras potências de modo que, finalmente, qualquer pessoa poderia ter se tornado qualquer coisa de muito diferente do que se tornou de fato. Se de todas as possibilidades a vida permite apenas um número muito limitado, essas nos parecem tão mais importantes e valiosas quanto mais claramente percebermos a escolha que elas representam, quantas formas de atividade permaneceram não desenvolvidas e têm de sacrificar seu quantum de força para que elas alcancem seu desenvolvimento. À medida que uma multiplicidade dessas confirmações é sacrificada para que se possa chegar a uma realização determinada, essa representa, por assim dizer, um extrato de energias vitais de alcance muito mais amplo e retira da recusa ao desenvolvimento daquelas um significado e uma precisão, um tom de

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distinção e força acumulada que fazem dela, para além da província de nosso ser a ela destinada, o ponto focal e o representante de sua totalidade.

É nesse tipo geral de formação do valor que o dinheiro pode se inserir. É bem verdade que os outros valores do dinheiro material precisam deixar de funcionar para que este se torne precisamente dinheiro; mas o valor que ele possui enquanto tal e que o permite funcionar como tal pode ser determinado por aquelas possibilidades de valorização de que ele precisa abdicar. Como em todos os outros casos, o valor percebido da função concretizada se compõe de seu conteúdo positivo e da negação simultânea das outras funções sacrificadas. O importante aqui não é o fato de as outras funções agirem e sim o fato delas não agirem. Se aquilo que determina o valor de um objeto é o sacrifício feito em seu favor, então o valor da substância monetária reside no fato de que todas as suas possibilidades de valorização precisam ser sacrificadas, para que ele seja dinheiro. Esse tipo de avaliação tem, naturalmente, um efeito duplo, ou seja, o dinheiro material deve sofrer uma valorização de suas outras utilidades na medida em que se renuncia a seu uso como dinheiro. Quando o wampun dos índios era feito de conchas que serviam como dinheiro, mas também era usado na cintura como adorno, essas duas funções se achavam em pura interação: o significado das conchas como ornamento adquire certamente um tom particular de distinção justamente pelo fato de, por sua causa, se recusar sua utilização potencial imediata como dinheiro. Podemos considerar todos esses tipos como um caso de valor por sua raridade. Em geral, esse valor implica que um objeto corresponda a uma determinada necessidade que existe em muitos indivíduos ou em grande intensidade. Ora, se diversas necessidades que podem ser satisfeitas por um mesmo objeto entram em concorrência – seja com o mesmo indivíduo, seja entre muitos indivíduos diferentes – então tudo vai depender dos limites da reserva que não permitem que cada uma dessas necessidades encontre sua satisfação. Assim como o valor de troca do grão se baseia no fato de não haver grãos suficientes para satisfazer a toda fome sem problemas, o mesmo acontece com o dinheiro material que não existe em quantidade suficiente para satisfazer, além das necessidades de dinheiro, todas as outras que se apresentam. Em vez, então, da renúncia a outras utilizações rebaixar o metal como dinheiro ao mesmo nível de valor das matérias totalmente sem valor, vemos que os usos potenciais não concretizados contribuem enormemente para seu valor como dinheiro.

Mais diretamente que a opinião refutada aqui sobre a falta de valor do dinheiro material, a próxima quer nos fazer acreditar que o dinheiro não pode ser um valor. Pensemos em uma personalidade absolutamente poderosa que no interior de um determinado círculo tivesse o direito despótico de dispor de qualquer coisa que desejasse – como se diz dos chefes nos mares do Sul que eles “não podem roubar”, porque tudo lhes pertence desde sempre –, um tal ser não teria nunca ocasião de se apropriar também do dinheiro desse círculo, pois pode se apropriar diretamente de tudo

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aquilo que o dinheiro pode comprar. Se o dinheiro fosse um valor que se juntasse aos outros valores, seu desejo poderia se dirigir tanto a ele quanto a qualquer outro. Como isso não acontece nos casos hipotéticos aqui mencionados, parece que se pode deduzir que o dinheiro é, na verdade, um mero representante do valor real do qual não se tem mais necessidade tão logo temos acesso direto aos objetos sem ele. Esse raciocínio simples supõe o que ele quer demonstrar: que o substrato monetário não tem valor próprio além de sua função como dinheiro. Se tivesse, poderia ser desejado pelo déspota não por seu significado como dinheiro e sim por seu outro valor, por seu valor substancial. Se esse valor falta desde sempre, sua falta não precisa novamente ser comprovada. Para além de sua inconsistência lógica, esse caso esclarece a modalidade peculiar de valor do dinheiro. O valor que o dinheiro possui enquanto tal, ele o adquiriu como meio de troca; quando não há nada para trocar, ele não tem nenhum valor. Pois seu significado como meio para conservar e transportar valor não é do mesmo gênero e sim derivado de sua função como meio de troca; sem ela, não poderia exercer mais nenhuma outra função enquanto sua função como meio de troca é independente. O dinheiro tem tão pouco valor para quem, por alguma razão, não atribui valor aos bens que ele pode comprar, assim como para aqueles que não precisam de dinheiro para alcançá-los. Em resumo, o dinheiro é expressão e meio da relação, do estar-referido-aos-outros dos seres humanos, sua relatividade, que faz com que a satisfação dos desejos de um dependa sempre mutuamente de outro; ele não encontra lugar onde não há relatividade alguma – seja porque não se deseja nada mais das pessoas, seja porque se está muito acima delas – portanto, por assim dizer, em nenhuma relação com elas – e a satisfação de qualquer desejo pode ser alcançada sem contrapartida. Visto dessa forma, o mundo do dinheiro está para o mundo dos valores concretos como o pensamento e a extensão para Spinoza; um não pode penetrar no outro, porque cada um expressa para si e em sua própria língua todo o mundo; ou seja, a soma dos valores em geral não se constitui da soma dos valores das coisas mais a soma do valor do dinheiro; o que há é uma certa quantidade de valor, que se realiza por um lado naquela forma, por outro nesta.

Se o dinheiro se reduzisse a seu próprio valor e fosse destituído de toda coordenação com os objetos preciosos em si e para si, então realizaria no campo econômico a concepção extraordinária que fundamenta a teoria das idéias de Platão. A profunda insatisfação com o mundo sensível, ao qual no entanto continuamos presos, moveu Platão a conceber um reino das idéias, supra-empírico e acima do espaço e do tempo, que conteria a essência própria e absoluta das coisas. Em seu benefício, a realidade terrena é esvaziada, por um lado, de todo ser verdadeiro e de todo significado, por outro lado, no entanto, algo se irradia para ela dessas idéias, ao menos como sombra pálida desse reino iluminado do absoluto ela participa dele e adquire, através desse desvio, uma importância que lhe é negada em si e para si. Essa relação encontra, de fato, uma repetição ou confirmação no campo do valor. A realidade das coisas, tal como

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aparece ao puro espírito que conhece, ignora – assim estabelecemos no início dessas investigações – tudo sobre o valor; ela transcorre em meio a essa legalidade indiferente que destrói o mais nobre para poupar o mais vil, porque não procede justamente segundo as hierarquias, os interesses e os valores. Esse ser objetivo e natural nós o submetemos a uma hierarquia de valores, criamos uma articulação em seu interior em termos de bom e mau, nobre e vil, caro e sem valor – uma articulação que não toca o próprio ser em sua realidade palpável, de onde, porém, vem todo o significado que ele pode ter para nós e que percebemos, com toda a clareza sobre sua origem humana, estar em contradição ao simples humor e vontade subjetiva. O valor das coisas – o ético assim como o eudemonístico, o religioso assim como o estético – paira sobre elas como as ideias platônicas sobre o mundo: estranho ao ser e intangível, um reino governado por normas internas próprias que no entanto confere ao mundo seu relevo e suas cores. Ora, o valor econômico se origina de uma deriva desses valores primários imediatamente percebidos em que os próprios objetos, na medida em que podem ser trocados, são pesados uns em relação aos outros. No interior desse campo, não importa como ele se constituiu, o valor econômico ocupa a mesma posição específica em relação aos objetos singulares que o valor em geral: é um mundo para si que estrutura e classifica a concretude dos objetos segundo normas próprias, estranhas a eles: as coisas, ordenadas e ramificadas por seu valor econômico, constituem um cosmos totalmente diferente de sua realidade natural e imediata. Se fosse apenas a expressão do valor das coisas externas a ele, o dinheiro se comportaria em relação a essas coisas como as ideias, que Platão imaginava como substanciais, como seres metafísicos, em relação à realidade empírica. Seus movimentos: equivalências, acumulações e escoamentos – representariam imediatamente as relações de valor entre as coisas. O mundo dos valores, que paira sobre o mundo real, aparentemente desligado dele, mas dominando-o, encontraria no dinheiro a “forma pura” de sua representação. E assim como Platão interpreta a realidade, de cuja observação e sublimação vieram as ideias, como um mero reflexo dessas ideias, assim também as relações econômicas, os ordenamentos e flutuações das coisas concretas, parecem derivados de seu próprio derivado: ou seja, como representantes e sombras do significado atribuído a seus equivalentes monetários. Nesse sentido, nenhuma outra espécie de valor se encontra em uma posição mais favorável do que o valor econômico. Enquanto o valor religioso se encarna nos sacerdotes e na igreja, os valores éticos e sociais, nas administrações e instituições visíveis do poder do estado, o valor cognitivo, nas normas da lógica, nenhum deles está mais separado das coisas e dos processos concretos de valor, nenhum é o simples suporte abstrato de valor e nada além disso, em nenhum a totalidade do campo de valor em questão está tão bem refletida.

Esse caráter de puro símbolo dos valores econômicos é o ideal almejado pelo desenvolvimento do dinheiro, que ele jamais alcança completamente. Ele se encontra originalmente – e isso tem de ser levado em conta – em série com todos os outros

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objetos de valor e seu valor substancial concreto se contrapõe ao deles. Com a necessidade crescente de meios de troca e de padrões de valor, ele deixa cada vez mais de ser apenas um elemento da equação para se tornar a expressão dela e portanto cada vez mais independente do valor de seu substrato. Ainda assim não pode se desfazer de um resto de valor substancial e não certamente por razões internas que decorrem de sua essência e sim por causa de certas imperfeições da técnica econômica. Uma delas diz respeito ao dinheiro como meio de troca. A substituição do valor próprio do dinheiro por um significado meramente simbólico pode resultar, como vimos, do fato de a proporção entre a mercadoria singular e o quantum global de mercadorias economicamente ativas naquele momento ser igual, com algumas modificações, àquela entre uma soma de dinheiro e o quantum global de dinheiro economicamente ativo naquele momento; do fato de os denominadores dessa fração terem efeitos práticos mas não conscientes, pois só os numeradores variáveis que determinam a circulação verdadeira interessam realmente; e do fato de que, nessa circulação, parece ter lugar uma equivalência entre uma mercadoria e uma soma de dinheiro que, certamente, repousa sobre bases totalmente distintas da equivalência primária entre o objeto e o valor substancial do dinheiro – mas uma se transformando gradualmente na outra. Se admitirmos essa evolução, então os fatores que emergem da respectiva soma global de valores se situam entre fronteiras extremamente flutuantes e a estimativa instintivamente adquirida só pode ser muito imprecisa. Talvez essa seja a razão pela qual não se pode renunciar totalmente a uma equação de valor imediata entre mercadoria e dinheiro. A porção de valor próprio, material, incluída no dinheiro, é o suporte e o complemento que precisamos, já que nosso conhecimento não consegue determinar a proporção que tornaria supérflua uma igualdade essencial entre aquilo que é medido e o padrão de medida, ou seja, o valor próprio do dinheiro. Quando se percebe, e se mostra na prática da economia, que essa proporção necessária não possui nenhuma exatidão, então o ato de medir exige uma determinada unidade qualitativa entre o padrão de valor e os próprios valores. Talvez não seja de todo inútil esclarecer um caso análogo de utilização estética de metais preciosos. A propósito da exposição de 1851, em Londres, um conhecedor fala sobre a diferença no trabalho com ouro e prata entre ingleses e indianos: no caso dos ingleses, o fabricante parece se esforçar para comprimir a maior quantidade possível de metais em um mínimo de forma; no dos indianos, “a esmaltação, a incrustação, a perfuração etc. são tão utilizadas que uma quantidade mínima de metal acolhe a maior quantidade possível de trabalho altamente qualificado. Mas não é certamente indiferente para o significado estético desses trabalhos que o pouco de metal em que as formas se expressam seja justamente metal precioso. Aqui também a forma, ou seja, a mera relação das partes substanciais, se torna o mestre em detrimento da substância e de seu valor próprio. No entanto, mesmo que se tenha chegado ao ponto de a quantidade de metal utilizada ter apenas um valor evanescente, é preciso que esse mínimo seja sempre uma matéria nobre para que o objeto enfeite da melhor maneira e agrade esteticamente. Não é seu valor material

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próprio que não está mais em questão e sim o fato de que apenas a mais nobre das matérias pode ser o suporte adequado para uma relação formal entre partes.

É evidente que o retraimento do valor material do dinheiro a um princípio de complementação e de suporte referido a meras relações não suficientemente certas é apenas uma interpretação de processos que transcorrem totalmente na subconsciência daqueles envolvidos no processo econômico. As interações econômicas ocorrem em todo caso em uma conformidade a fins tão maravilhosa, em uma integração tão finamente organizada dos inúmeros elementos que é preciso admitir como condutor um espírito surpreendente dotado de uma sabedoria supra-individual, se não se quer voltar ao desígnio inconsciente da forma de vida humana. A vontade e a previsão conscientes do singular não bastariam para manter a atividade econômica em harmonia ao lado de suas tremendas dissonâncias e insuficiências; é preciso além do mais admitir experiências e cálculos inconscientes acumulados ao longo no processo histórico da economia regulando seu curso. Mas não se deve esquecer que representações inconscientes não dão conta de um esclarecimento suficiente, sendo apenas uma expressão auxiliar que se constitui sobre um sofisma. Certas ações e certos pensamentos nascem em nós em razão de determinadas ideias ou raciocínios. Mas tão logo afloram em nós sem esses antecedentes, então deduzimos que eles já estavam lá, só que de forma inconsciente. Mas isso é logicamente injustificável. Transformamos o fato meramente negativo de nesse caso não termos consciência de nenhuma representação fundadora, em algo positivo, a existência de representações inconscientes. Na verdade, não sabemos nada sobre processos que produzem resultado psíquico sem pressupostos conscientes e as representações, as experiências e as conclusões inconscientes são apenas a expressão do fato de que esses efeitos ocorrem como se fossem o resultado de motivos e ideias conscientes. Ao instinto de esclarecimento resta somente investigá-los e tratá-los como causa – inconsciente – efetiva pois são mero símbolo de um curso real. No estágio atual do conhecimento é inevitável, e por isso legítimo, interpretar as formações do valor, suas fixações e suas flutuações, como processos inconscientes, segundo as normas e as formas da razão consciente.

A segunda razão para não se deixar o dinheiro se dissolver em seu caráter simbólico reside em seu significado como elemento da circulação. Enquanto as funções de troca do dinheiro, vistas como abstratas, puderem ser preenchidas por um mero dinheiro-símbolo, nenhuma potência humana poderia dar garantias suficientes contra possíveis abusos. A função de troca e a função de medir do dinheiro estão associadas claramente a uma determinada limitação de sua quantidade, a sua “escassez”, como se diz. Se for válida a proporção entre o quantum singular e o quantum global de mercadorias e dinheiro, então parece que ela fica inalterada, mesmo com um aumento qualquer na quantidade de dinheiro, e pode se manter com o mesmo significado para a formação do preço. A fração monetária mostrava apenas que para cada incremento do

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denominador corresponde outro do numerador, sem que seu valor se modifique. Mas na verdade quando a quantidade de dinheiro cresce em demasia, essa proporcionalidade nas alterações não mais acontece. Enquanto na realidade o denominador da fração cresce bastante, o numerador permanece o mesmo até que todas as relações de troca tenham se conformado ao novo fundamento. Também o preço que se constitui da grandeza absoluta do numerador permanece provisoriamente o mesmo, enquanto em termos relativos, ou seja, como fração, fica muito menor. Como consequência, o detentor de novas massas de dinheiro, em primeiro lugar o governo, se encontra em uma situação extremamente vantajosa diante de todos os vendedores de mercadorias, razão pela qual aparecem as inevitáveis reações que abalam profundamente as relações de troca, principalmente quando as próprias receitas do governo se transformam em dinheiro desvalorizado. O numerador da fração – o preço da mercadoria – só aumenta então proporcionalmente quando as enormes reservas do governo são despendidas substancialmente. Assim, diante do aumento no preço de suas necessidades, o governo se encontra novamente com uma reserva monetária deprimida, situação tentadora para se recorrer a uma nova emissão de dinheiro, o que faz o jogo recomeçar. Menciono isso apenas como um exemplo dos fracassos numerosos e muitas vezes estudados provocados pelas emissões arbitrárias de moeda. Pois estas se tornam perigosamente tentadoras assim que deixa de existir uma ligação fixa do dinheiro a uma substância cujo aumento é limitado. Ora, um fenômeno extremamente contraditório o comprova de maneira decisiva. No século XVI, um estadista francês propôs que não se usasse mais futuramente a prata como dinheiro e sim que se cunhassem moedas de ferro – e isso porque a entrada massiva de prata proveniente da América roubava desse metal sua escassez. Se, ao contrário, tomássemos um metal que obtém seu valor exclusivamente da cunhagem estatal, garantiríamos melhor a limitação exigida do quantum de dinheiro; enquanto se todo possuidor de prata pudesse convertê-la imediatamente em dinheiro, não haveria nenhum limite para a massa monetária. Essa proposta curiosa deixa clara a sensação de que o metal precioso como tal só é a matéria apropriada para o dinheiro na medida em que impõe um limite imprescindível à fabricação de moeda; de modo que, quando deixa de fazê-lo, algum outro substrato, mais confiável em termos de limitação, entra em cena; como em geral são apenas determinadas qualidades funcionais dos metais preciosos que lhe atribuem preferência como meio de circulação, quando por algum razão elas falham aparece em seu lugar um meio de circulação melhor qualificado nesse sentido: em Gênova, no ano de 1673, a condição declaradamente pobre da moeda e sua variedade obrigaram as transações a se basearem no câmbio e em ordens de pagamento. Ora, hoje sabemos certamente que apenas os metais preciosos, e mais especificamente o ouro, garantem as qualidades exigidas, particularmente a limitação quantitativa, e que o papel moeda só afasta o perigo do abuso de um incremento arbitrário na emissão através de uma ligação determinada com o valor do metal, seja ele fixado por lei ou através da própria economia. A que ponto pode ser eficaz uma limitação que se apropria até da especulação primária individual – é o que

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nos mostra o fenômeno seguinte. Durante a Guerra da Secessão nos Estados Unidos, a circulação de papel moeda – os greenbacks – estava proibida de fato nos estados do Oeste; embora fossem meios de pagamento legais, ninguém ousava pagar com eles por um empréstimo em ouro, operação que daria um lucro de 150%. Algo semelhante aconteceu no início do século XVIII com os bônus que o governo francês emitiu em virtude da grande necessidade de dinheiro. Apesar de determinar em lei que um quarto de cada pagamento deveria ser realizado com esses bônus, eles despencaram muito rapidamente a uma fração muito baixa de seu valor nominal. Tais casos comprovam que as próprias leis de circulação conservam o significado do dinheiro de metal. E isso não acontece apenas nos exemplos aqui citados. Quando o Banco da Inglaterra deixou de resgatar suas notas entre 1796 e 1819, sua desvalorização em relação ao ouro foi de apenas 3 a 5%; mas o preço das mercadorias aumentou por causa disso de 20 a 50%! E quando um câmbio forçado deixa em circulação exclusivamente papel e moedas pequenas, só se pode evitar o pior se o ágio no longo prazo apresenta oscilações mínimas, o que só é possível, por sua vez, através de uma limitação precisa na emissão de papel-moeda. Mas o ouro e, antes dele, a prata, não têm esse significado regulador imprescindível em função de sua equivalência de valor com os objetos cuja troca ele permeia, e sim por causa de sua escassez, que impede a inundação do mercado com dinheiro e com isso a destruição permanente da proporção sobre a qual repousa a equivalência entre uma mercadoria e um determinado quantum de dinheiro. E de fato a destruição dessa proporção acontece dos dois lados. O aumento excessivo de dinheiro produz na população pessimismo e desconfiança e por causa disso se procura dispensar o mais possível o dinheiro e voltar à troca natural ou às ordens de pagamento. Na medida em que a demanda por dinheiro diminui, cai o valor da moeda que circula, pois ele depende justamente da demanda. Como a instância que emite dinheiro opera essa desvalorização através de um aumento crescente na emissão, a distância entre oferta e demanda se torna cada vez maior e o circulus vitiosus dos efeitos recíprocos indicados faz o valor desse dinheiro despencar. A desconfiança em relação ao valor do dinheiro cunhado pelo Estado – em comparação à confiabilidade no puro valor do metal – pode também tomar a forma que prevaleceu no final da república romana com as moedas circulando apenas no varejo, enquanto no atacado se utilizava principalmente dinheiro por peso; só assim se acreditava estar a salvo das crises políticas, dos interesses partidários e das influências do governo.

Dito isso, parece que se poderia atribuir as inconveniências de um incremento ilimitado na emissão de moeda não a si mesmo mas apenas à maneira de sua distribuição. Choques, hipertrofias e estagnações só ocorrem porque o dinheiro criado do nada se encontra desde sempre em uma única mão e a partir dela se espalha de modo desigual e caótico; mas tudo isso parece contornável, se encontramos uma maneira de repartir a massa monetária igualmente ou segundo um princípio determinado de justiça. Foi dito que se todos os ingleses descobrissem subitamente que o dinheiro em seu bolso

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duplicou, haveria um corresponde aumento em todos os preços sem que ninguém tirasse disso nenhuma vantagem; a grande diferença seria ter de calcular em cifras mais elevadas as libras, os shillings e os pence. Com isso, não apenas a objeção contra o dinheiro-símbolo seria suprimida, como surgiria também a vantagem de uma multiplicação do dinheiro fundada no fato empírico de que uma maior quantidade de dinheiro significa sempre também um aumento de circulação, conforto, poder e cultura.

Por mais que não valha a pena discutir essas construções tranquilizadoras por si mesmas porque se baseiam em pressupostos irrealizáveis, elas nos levam todavia ao conhecimento das reais condições em que atuam e ao fato de que a dissolução progressiva do valor substancial do dinheiro nunca pode alcançar totalmente seu ponto final. – Se admitimos a situação ideal em que o incremento na emissão de moeda tem como efeito um aumento igual nos bens individuais, então uma conclusão: a de que tudo permanece como antes porque todos os preços também sobem – contradiz a outra, a de que ao incremento na emissão de moeda corresponderia o estímulo e a elevação da totalidade das transações. Então é muito tentadora a ideia de que as relações entre os indivíduos, ou seja, a posição social de cada um em relação a quem está mais abaixo ou mais acima permaneceria a mesma; ao contrário, os bens culturais objetivos seriam produzidos de maneira mais viva, mais intensiva e mais extensiva de modo que finalmente os conteúdos e prazeres vitais de cada singular, tomados absolutamente, seriam elevados junto com a totalidade dos níveis sociais sem que nada tivesse sido alterado nas relações de riqueza ou de pobreza que são determinadas exclusivamente através de uma relação com o outro. Vale ressaltar que a cultura moderna da economia monetária tornou acessível aos pobres uma série de bens – instituições públicas, possibilidades de formação, meios de entretenimento – que antes faltava mesmo aos ricos sem que se tenha deslocado a posição relativa de ambos em proveito dos mais pobres. A possibilidade de que o incremento na emissão de moeda, distribuído de modo proporcional, aumente a cultura objetiva, ou seja, o conteúdo cultural da vida singular tomada em termos absolutos, enquanto as relações dos indivíduos entre si permanecem inalteradas – vale certamente ser debatida. Observando mais de perto, porém, um tal resultado objetivo só acontece se o incremento na emissão de moeda – pelo menos a princípio – se dá pela via de uma distribuição desigual. O dinheiro, configuração exclusivamente sociológica que, limitada a um indivíduo, não tem nenhum sentido, só pode provocar uma mudança qualquer em um determinado estado de coisas se houver mudança nas relações dos indivíduos entre si. A agitação e a intensidade crescentes da circulação econômica que se segue a uma pletora de dinheiro estão relacionadas ao fato de que com elas aumenta também o anseio dos indivíduos por mais dinheiro. O desejo de embolsar ao máximo o dinheiro dos outros é certamente crônico mas só se revela suficientemente agudo a ponto de levar o singular ao esforço e à atividade quando se toma consciência de modo particularmente acentuado e premente de sua pobreza em relação aos outros; nesse sentido se diz: les affaires – c’est l’argent des autres. Se é

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válido o pressuposto da teoria: que o incremento do quantum de dinheiro mantém inalteradas as relações das pessoas entre si e dos preços das mercadorias entre si, não haveria tal estímulo às energias gastas com o trabalho. Igualmente, essa duplicação mágica da quantidade de dinheiro só não traria consigo nenhuma mudança nas relações existentes se não se baseasse em uma diferença de riqueza. Pois dobrar, por exemplo, três rendimentos de 1.000, 10.000 e 100.000 marcos desloca consideravelmente a relação recíproca de seus detentores em comparação ao estado precedente: não se compra com os mil marcos suplementares simplesmente o dobro do adquirido com os primeiros mil marcos. Haveria, em primeiro lugar, por exemplo, uma melhora na alimentação, em segundo, refinamento da cultura estética e, em terceiro, tentativas arriscadas de especulação. Pressupondo uma igualdade absoluta anterior, os níveis subjetivos permaneceriam de todo modo inalterados, mas também os objetivos – enquanto esse último seria, de maneira imprevisível, alterado e a melhoria louvada só poderia se mostrar se a diferença de riqueza entre os singulares fosse mais decisiva que antes ou assim percebida.

Ainda mais próximo de nosso alvo está a consideração que se liga ao lado objetivo dessa teoria: a de que a duplicação desse dinheiro deixe tudo inalterado, pois haveria simultaneamente uma duplicação igual no preço das mercadorias. Só que essa argumentação é falsa e esquece uma característica peculiar e profundamente decisiva do dinheiro que se poderia chamar de a sua falta relativa de elasticidade: um novo quantum de dinheiro distribuído no interior de um círculo econômico não eleva os preços segundo as proporções até então estabelecidas, mas cria novas relações de preço entre eles, sem que o poder dos interesses individuais afete esse deslocamento. Ele deriva antes do fato de que o preço de uma mercadoria, apesar de sua relatividade, da falta de seu nexo interno com as mercadorias, adquire a longo prazo uma certa fixidez de modo que parece um equivalente objetivo. Quando o preço de uma mercadoria se mantém por longo tempo em um certo nível médio dentro de limites de oscilação determinados, ele não se modifica por causa de uma mudança no valor do dinheiro sem criar alguma resistência. A associação – segundo conceitos ou interesses – entre o objeto e seu preço se torna psicologicamente tão forte que nem o vendedor aceita a baixa, nem o comprador a alta que obrigatoriamente acontece quando a equivalência entre o valor do dinheiro e o valor da mercadoria resulta do mesmo mecanismo perfeito em virtude do qual um termômetro sobe ou desce conforme a temperatura do ar sem perturbar a proporção exata entre causa e efeito que advém da mudança no grau de resistência ao movimento. Mesmo quando subitamente se tem o dobro de dinheiro no bolso do que antes, ninguém se dispõe a gastar o dobro pela mesma mercadoria; talvez, tomados pela euforia da nova riqueza, não nos inquietássemos com o preço cujo significado seria avaliado não por causa do novo padrão, mas segundo o antigo, ao qual já estávamos acostumados. Mas a transgressão do nível agora convencionado, assim como uma posição aquém desse nível, mostra que não se trata de uma regulação proporcional de

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preços, pelo menos nos primeiros tempos de uma pletora de dinheiro, e que, ao contrário, a associação fixa entre a mercadoria e a margem de jogo de seu preço intervém sempre nessa regulação para desviá-la. Além do mais, a demanda por mercadorias se deslocará muito em função do aumento ou da diminuição na quantidade de dinheiro, mesmo se ambos atingem igualmente todos aqueles envolvidos no processo econômico. No primeiro caso, por exemplo, objetos até então vendidos costumeiramente poderão ter uma queda, até uma certa medida de quantidade ou de fluidez, para a metade de seus preços; mas para além de um certo limite, não encontrarão mais comprador. Por outro lado, no caso de um incremento generalizado de dinheiro, aparecerá uma demanda turbulenta por bens desejados por uma ampla massa de pessoas, isto é, por bens que estão bem acima de seu atual padrão de vida; tanto no caso das necessidades básicas – cuja capacidade de consumo é psicologicamente limitada – assim como no das mais altas e refinadas – que só contam em círculos diminutos e de crescimento lento – a demanda não apresentaria um crescimento significativo. A alta de preços atingiria aqueles bens médios de maneira extrema, a custo dos outros, relativamente presos a seus preços; não se trata de uma distribuição proporcional do excesso de dinheiro sobre todos os preços. Em termos teóricos: a doutrina que declara indiferente a quantidade absoluta de dinheiro disponível, que se baseia na relatividade dos preços, é portanto falsa porque essa relatividade não acontece totalmente na prática da formação de preços, sendo constantemente quebrada por um processo psicológico que torna os preços de certas mercadorias fixos e absolutos.

Pode-se argumentar que essas dúvidas sobre a inocuidade de um incremento de dinheiro não limitado por nenhuma barreira externa são válidas apenas em períodos intermediários de ajuste entre dois diferentes níveis de preços. Seu pressuposto é justamente que o processo como um todo provém de uma proporcionalidade de preços determinada segundo as relações de quantidade entre as mercadorias e o dinheiro. Mas mesmo essa proporcionalidade pode ser estabelecida também em outro nível e as oscilações futuras eliminadas como as precedentes. Aquelas dúvidas valem apenas para a modificação do estado de coisas, mas não para o estado de coisas já alterado que não pode ser responsabilizado por desequilíbrios, sobressaltos e dificuldades de transição. Certamente, não se pode conceber um meio de troca em que finalmente não se dê um ajuste perfeito, ou seja, segundo o qual o preço em dinheiro de uma mercadoria não possa traduzir de maneira justa a proporção entre seu valor e o valor do quantum global de mercadorias no mesmo momento; portanto nenhum incremento de dinheiro poderia perturbar essa proporção permanentemente. – Isso é correto. Só que não prova que a remoção de todas as barreiras internas ao incremento de dinheiro seja possível, dadas as condições humanas de insuficiência. Se fosse possível, tal estado de transição, cujas oscilações e dificuldades admitimos, seria permanente e não permitiria alcançar a adaptação que, por princípio, pode ser alcançada com qualquer quantum de dinheiro.

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Poder-se-ia resumir essas considerações da seguinte forma: o dinheiro preenche melhor suas funções quando não é meramente dinheiro, ou seja, quando não representa simplesmente o lado de valor das coisas, na forma da pura abstração. Que os metais preciosos possam ser utilizados como adorno ou para finalidades técnicas é também, certamente, valioso, mas é preciso diferenciar o fato primeiro do segundo: aqueles devem seu valor ao dinheiro enquanto esse tem como determinação primeira e única ser valor. Mas justamente a realização dessa exigência conceitual, a transição da função do dinheiro para um dinheiro-símbolo puro e sua separação total daquele valor substancial que limita a quantidade de dinheiro, não é tecnicamente factível, embora o progresso desse desenvolvimento ocorra como se fosse terminar nesse ponto. Isso não é uma contradição já que inúmeros desenvolvimentos obedecem a esse mesmo esquema: eles se aproximam de um ponto determinado, são determinados por ele inequivocamente em sua direção – mas se o atingissem realmente perderiam justamente as qualidades que mantinham enquanto lutavam para atingi-lo. Um fenômeno eminente da economia pode a princípio esclarecer esse ponto e fornecer, ao mesmo tempo, uma analogia para as consequências de um incremento ilimitado de dinheiro, em situações individuais. O esforço do singular no sentido de obter cada vez mais dinheiro tem um enorme significado econômico-social. À medida que procura os maiores rendimentos possíveis, o especulador da Bolsa de Valores provoca a agitação das negociações, o ajuste recíproco entre oferta e demanda, a inclusão de valores outrora estéreis no circuito econômico. Mas a realização de grandes ganhos na Bolsa só pode ser obtida quando há excessiva flutuação nas taxas de câmbio e preponderância de elementos puramente especulativos. Com isso, no entanto, a produção e o consumo de mercadorias, sobre os quais repousa o interesse social em última instância, é por vezes exageradamente estimulado, por outras, negligenciado, de qualquer modo empurrado para fora daquele desenvolvimento que corresponde às condições intrínsecas e às necessidades reais. É portanto a partir da essência bem específica do dinheiro que o interesse individual e o interesse social desenvolvem sua divergência depois de ambos terem caminhado juntos até um determinado ponto. Só quando o valor das coisas se separa dessas mesmas coisas, adquirindo uma existência própria em um determinado substrato, pode o dinheiro criar em si interesses, movimentos e normas que ocasionalmente vão entrar em total oposição com aqueles inerentes aos objetos simbolizados. O esforço econômico privado, ligado ao dinheiro, pode favorecer o esforço econômico social, finalmente ligado à produção e ao consumo de bens, na medida em que se mantém, por assim dizer, como um puro esforço – enquanto a obtenção final de seu objetivo pode minar a dos fins sociais. Encontramos com mais frequência e de modo mais decisivo esse tipo de fenômeno lá onde impulsos afetivos se esforçam em direção a um objetivo absoluto sem se dar conta que a satisfação esperada só pode advir de uma aproximação relativa e se atingido completamente pode até mesmo se transformar em seu contrário. Lembro aqui do amor que recebe do desejo de união íntima e durável todo seu conteúdo e seu colorido para, muito frequentemente, perder ambos quando esse é atingido; do ideal

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político que dá à vida de muitas gerações sua força, seu ímpeto moral e espiritual, mas após sua realização através desses movimentos não provoca de modo algum uma situação ideal e sim a paralisia, o materialismo prático e o filistinismo; do anseio de tranquilidade e serenidade existencial que dão um objetivo às penas e aos trabalhos para justamente, depois de obtidos, se transformarem em vazio e insatisfação íntima. Já se tornou uma trivialidade que mesmo o sentimento de felicidade, um objetivo absoluto de nossos esforços, se tornaria simples tédio se conseguíssemos realizá-lo como eterna felicidade; apesar de nossa vontade agir como se devesse desembocar em um tal estado, ele o desmentiria tão logo fosse alcançado e só a adição de seu contrário em fuga, o sofrimento, poderia lhe trazer seu sentido. Pode-se descrever mais precisamente esse tipo de desenvolvimento da seguinte forma: a eficiência com relação aos fins de certos elementos da vida, ou talvez de todos, depende de que existam ao seu lado elementos de sentido contrário. A proporção em que uma coisa e seu contrário, unidos, interagem da maneira mais adequada é certamente variável e, muitas vezes, no sentido de que um elemento sempre aumenta e o outro sempre diminui; a direção do desenvolvimento parece funcionar como se ela progredisse mediante a total eliminação de um pelo outro. Mas no momento em que isso acontecesse e qualquer traço do segundo elemento desaparecesse completamente, também a eficácia e o sentido do primeiro ficariam paralisados. É o que ocorre, por exemplo, na oposição entre as tendências individualista e socialista. Há épocas históricas em que, por exemplo, o socialismo domina a evolução e certamente não apenas na realidade, mas também como resultado de convicções ideais e como expressão de uma constituição social em progresso que tende à perfeição. Mas se a política partidária de uma tal época decide o seguinte: como todo progresso agora repousa sobre o crescimento do elemento socialista, então o domínio completo desse elemento é a condição mais avançada, ideal – ela esquece que todo o sucesso de medidas de cunho socializante está ligado ao fato de terem sido implementadas em uma ordem econômica ainda individualista. Todos os progressos devido a sua multiplicação relativa não autorizam a concluir que sua imposição absoluta representaria um progresso ainda mais amplo. Acontece o mesmo em períodos de individualismo crescente. O significado de suas medidas está ligado ao fato de existirem ainda instituições de caráter centralista e socializante que podem ser cada vez mais restritas, mas cujo total desaparecimento teria efeitos inesperados e diferentes dos obtidos até agora por essas mesmas medidas. Algo semelhante ocorre no desenvolvimento artístico com as tendências naturalista e estilizante. Cada momento específico da evolução da arte é uma mistura do simples reflexo da realidade com sua transformação subjetiva. Ora, do ponto de vista do realismo, a arte poderia alcançar um desenvolvimento mais perfeito através do crescimento permanente do elemento objetivo. Só que no momento em que esse se constituísse no único conteúdo da obra de arte, o interesse nele até então crescente se transformaria em indiferença porque a obra de arte não se diferenciaria mais da realidade e o significado de sua existência particular se perderia. Por outro lado, a intensificação do momento generalizante e idealizante, por mais que enobrecesse por

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um tempo a arte, chegaria a um ponto em que a eliminação de toda contingência individualista o privaria de relação com a realidade em geral que o movimento idealista deveria justamente representar em formas cada vez mais puras e perfeitas. Em resumo, uma série de desenvolvimentos importantes se constitui segundo o esquema: a preponderância crescente de um elemento dado intensifica cada vez mais um certo resultado sem que a soberania absoluta desse e a eliminação completa de seu oposto elevem esse resultado a sua mais alta realização; ao contrário, roubaria desse elemento seu caráter mais específico. – Segundo tais analogias, pode-se desenvolver a relação entre o valor próprio substancial do dinheiro e sua essência meramente funcional e simbólica: cada vez mais a segunda substitui o primeiro, mas em alguma medida o primeiro precisa ainda estar presente, pois a realização absoluta desse desenvolvimento comprometeria a significação prática e a consistência do caráter funcional e simbólico do dinheiro.

Não se trata aqui apenas de uma analogia formal entre desenvolvimentos intrinsecamente diferentes e sim da unidade do sentido profundo da vida que se concretiza nessa igualdade externa. Com a pluralidade de elementos e de tendências que constituem a vida, só nos resta na prática deixar nosso comportamento ser governado absolutamente, em cada período e em cada campo específico, por um princípio homogêneo e unilateral. Nesse caminho, porém, a diversidade do real nos envolve entrelaçando nosso esforço subjetivo a todos os fatores opostos em uma existência empírica em que o ideal pode conviver com a realidade; isso não significa uma negação do ideal, ao contrário, a vida é orientada no sentido de tais esforços absolutos como algo que lhe é inerente, assim como o mundo físico a movimentos que, abandonados a si mesmos, conduziriam ao impensável, mas que colidindo com reações inibitórias resultam justamente em acontecimentos naturais racionais. E quando o mundo prático chega ao ponto de nossa vontade tomar a direção do infinito atingindo, com desvios e retornos, o estado de realidade, então a formação prática prefigura a teórica: nossos conceitos sobre as coisas são construídos inúmeras vezes de tal modo que a experiência não os mostra em sua pureza absoluta, mas através de atenuações e limitações no contato com tendências opostas que lhe conferem uma forma empírica. Esses conceitos, no entanto, não devem ser rejeitados por isso: ao contrário, justamente esse procedimento, que elabora conceitos e máximas exagerando e novamente reduzindo, estabelece a imagem de mundo destinada a nosso conhecimento. A fórmula com a qual nossa alma, à custa de um trabalho de estruturação a posteriori, adquire uma relação com a unidade imediata e não acessível das coisas é, na prática, assim como na teoria, algo primário muito forte, muito alto e muito puro que só um obstáculo inibidor confere a consistência e o volume de realidade e de verdade. Por isso, o conceito puro de dinheiro, expressão do valor das coisas medido reciprocamente, estranho a todo valor próprio, é totalmente justificado, embora a realidade histórica apareça sempre como depreciação desse conceito por meio do conceito contrário de dinheiro como algo que

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possui valor próprio. Nosso intelecto só pode dominar e compreender a realidade como uma limitação de conceitos puros que, embora se distanciem dela, se legitimam pelos serviços prestados à sua interpretação.

III

Trata-se agora de responder com a elaboração histórica à construção conceitual. A essência e o significado do dinheiro aparecem, segundo seus grandes nexos filosóficos e culturais, em um movimento que o conduz da prisão a uma substância determinada a seu puro conceito – ainda que essa via não possa alcançar o objetivo que lhe dá direção. Assim, ele segue a tendência geral da evolução que procura dissolver, em todas as áreas e em todos os sentidos, o substancial em processos flutuantes; e certamente ele ganha esse nexo em todas as formas possíveis: por um lado, como parte integrante de uma evolução maior, por outro, em razão de sua relação peculiar com os valores concretos, como símbolo deles; por um lado, como efeito de correntes culturais reguladas por essa evolução, por outro, como causa em si mesma eficiente dessa evolução. O que nesse nexo nos interessa é a formação do dinheiro como consequência da constituição e das necessidades da comunidade humana. Com a restrição, colocada de uma vez por todas, de que se trata aqui de uma via não levada a seu termo, trato agora do significado da função do dinheiro e sua intensificação até encobrir seu significado substancial.

Visto a partir de seus fundamentos últimos, a mencionada dissolução do conceito de dinheiro é menos radical do que parece. Pois, observado com mais cuidado, o valor substancial do dinheiro nada mais é do que um valor funcional. Mesmo que se apreciem os metais preciosos como mera substância, isso só acontece por serem eles objetos de adorno, de distinção, de uso técnico, objetos que proporcionam prazer estético, etc. – portanto, porque exercem uma determinada função; seu valor nunca pode constituir-se em seu ser em si, mas apenas em sua produtividade; sua substância, assim como a de todas as coisas práticas, meramente como tal e excluída de sua produtividade, é para nós totalmente indiferente. Pode-se dizer, da maioria dos objetos: eles não são valiosos, mas se tornam valiosos – e para isso têm de, permanentemente, sair de si mesmos e entrar em interação com os outros; é apenas a seus efeitos que se associa o sentimento de valor. Pois, mesmo quando uma disposição estética atribui aos metais preciosos aquele

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valor objetivo, cuja simples existência, para além de todo reconhecimento e fruição, torna o mundo em si e para si mais precioso e mais significativo – eles não entrariam com esse valor, de modo algum, na economia. Assim, todo valor permanece preso à sua produtividade e é apenas uma maneira arbitrária de encobrir sua verdadeira situação dizer que os metais preciosos possuem um valor substancial que poderia ser separado conceitualmente de sua produtividade como dinheiro; pois o valor substancial dos metais é igualmente valor funcional, além de sua função como dinheiro. Todos os valores dos metais preciosos constituem uma série que nada é além de uma série de funções. Quanto menos vivas forem essas funções na realidade, mais elas escapam ao conhecimento. Toda desconfiança da Idade Média contra os empréstimos a juros remete ao fato de o dinheiro, naquela época, parecer e ser mais rígido, mais substancial, mais compacto em relação aos objetos do que na época moderna em que ele atua e parece mais dinâmico, fluido e flexível. A adoção da doutrina aristotélica – é antinatural que o dinheiro gere dinheiro – e a condenação dos juros como roubo, pois o capital restituído já é igual ao capital emprestado; sua justificação por Alexandre de Hales: o dinheiro não se gasta com o uso e não perde sua utilidade para o credor, como acontece com os objetos de um contrato de locação; o ensino de São Tomás, segundo o qual, no caso do dinheiro, como desde sempre ele se destina a ser gasto, uso e consumo coincidem e que, por isso, não se pode vender à parte, como um imóvel – tudo isso nos mostra o quanto ele parecia rígido, desligado das flutuações da vida, apresentando muito pouco o caráter de força produtiva. A insignificância real de seus efeitos encobre completamente seu caráter funcional. Mas é esse mesmo sentimento fundamental em relação ao dinheiro que nos leva a considerar sua essência como ligada a uma substância metálica como tal. Também essa ideia o coloca, como na Idade Média, como um ens per se em relação aos movimentos dos objetos econômicos, em vez de incluí-lo entre eles e reconhecer que, seja qual for seu suporte, como dinheiro ele não tem uma função, mas é uma função.

O oposto da concepção medieval é constituído pelo sistema de crédito em que a ordem de pagamento substitui o papel do dinheiro. Para aquela, a substância do dinheiro, e não seu efeito, é a ideia dominante – o efeito se deixa muito pouco isolar, mas é reduzido ao mínimo – enquanto na concepção moderna do dinheiro ligado ao metal o ponto central é a substância operante, pois a economia baseada no crédito tende a isolar a substância, mantendo apenas seu efeito, que é o que interessa.

Para essa concepção superficial, contribui o velho esquema que divide os fenômenos em substância e acidentes. Claro que isso teve, historicamente, uma importância incalculável; que os fenômenos tenham sido divididos em um núcleo substancial e modos de expressão e qualidades relativos e móveis foi uma primeira orientação, um primeiro guia seguro para a enigmática ausência de forma das coisas, uma maneira de lhes dar forma e integrá-los em uma categoria geral adequada a nosso espírito; as simples diferenças sensíveis do primeiro olhar adquirem assim a

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organização e determinação da relação recíproca. Mas é da essência de tais formas, assim como das organizações sociais, existir sob a aparência e a exigência de uma duração infinita. Assim como a destruição de uma constituição social em beneficio de outra parece o fim de toda ordem e de toda constituição, a transformação dos sistemas intelectuais provoca a mesma impressão: a solidez objetiva e a compreensão subjetiva do mundo parecem esfacelar-se quando falta uma categoria que era até então, por assim dizer, a espinha dorsal da imagem do mundo. Mas o valor do dinheiro pode tão pouco resistir à sua redução a um valor funcional quanto a luz, o calor e a vida podem preservar seu caráter substancial peculiar e escapar à sua dissolução em tipos de movimento.

Observo agora, inicialmente, determinadas relações estruturais da esfera econômica.

Em que medida o dinheiro depende dessas relações e não de sua substância, em que medida é realmente dinheiro, ou seja, atua como dinheiro, é o que veremos com um exemplo negativo que será relacionado a uma reflexão fundamental. Observamos que, em uma relação entre duas pessoas, a forma externa raramente corresponde à expressão adequada de seu grau de intensidade interno; e de fato essa inadequação se apresenta de tal maneira que as relações internas se desenvolvem continuamente, enquanto as externas, aos saltos. Assim, mesmo se, em um determinado momento, elas se correspondessem, estas persistiriam na forma adquirida, enquanto aquelas se intensificariam. A partir de um determinado grau, há um repentino crescimento daquelas relações externas que, em regra geral – e aí reside seu traço característico – não se detêm no ponto que corresponde às relações internas naquele mesmo momento, mas, para além delas, antecipam uma intimidade ainda por vir. É o caso, por exemplo, da forma de tratamento entre amigos que acontece como a expressão final de uma tendência presente há muito tempo, mas sentida, nos primeiros momentos, muitas vezes como um pouco exagerada; ela cria, de repente, uma intimidade externa, que só vai encontrar seu correspondente interno com o tempo. Mas, algumas vezes, não se chega lá; muitas relações se desfazem por que sua forma, embora possa corresponder, em certa medida, à sua intimidade, nunca alcança totalmente essa intimidade. Algo semelhante acontece nas relações não pessoais. Certas forças da vida social, que buscam sua expressão em determinadas constelações do direito, das formas de troca e das relações de dominação, não conseguem, muitas vezes, ter sucesso por que a forma adquirida nesse campo facilmente se torna rígida. Mas se a mudança externa, exigida internamente, acontecesse, ela se produziria, às vezes, em uma medida para a qual as forças internas ainda não estariam maduras e cuja legitimação a posteriori não ocorreria. Assim surgiu, muitas vezes, a economia do dinheiro. Depois de as relações econômicas em geral pressionarem, durante longo tempo em sua direção, a economia do dinheiro se apresenta em fenômenos de tal magnitude que essas relações não lhe são

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suficientes; os fenômenos poderiam então ter um fim trágico, se a evolução das forças econômicas internas não alcançasse logo a forma que as antecipou. Foi essa situação que causou a perda dos Fugger e de todos os grandes banqueiros do sul da Alemanha no século XVI. Seus negócios, totalmente comparáveis às transações dos banqueiros internacionais modernos, ocorreram em uma época que já havia superado os limites estreitos da economia natural da Idade Média, mas que ainda não dispunha das comunicações, das certezas e dos usos necessários a tais negócios. As relações gerais ainda não se encontravam em um patamar que pudesse permitir recuperar dívidas na Espanha e com os soberanos. As novas formas de economia monetária levaram Anton Fugger a fazê-las exceder amplamente a medida que seria adequada às condições econômicas da Europa daquela época. Acontecia o mesmo com os devedores daquelas potências financeiras e pelas mesmas razões. As necessidades financeiras da Espanha, no século XVI, nasceram por que o dinheiro, certamente muito frequente na Espanha, faltava ali onde era mais necessário: nos Países Baixos; por isso, as dificuldades, os atrasos, os custos que contribuíram em muito para a ruína das finanças espanholas. Em condições locais distintas, instaura-se um outro modo de funcionamento do dinheiro: os Países Baixos tinham, em sua guerra contra a Espanha, uma enorme vantagem de poder usar seu dinheiro exatamente ali onde ele estava. Nas mãos dos holandeses, ele era realmente “dinheiro”, porque lá podia funcionar como tal sem obstáculos – embora, relativamente, possuísse muito menos substância do que na Espanha e sua existência estivesse baseada no crédito. Quanto melhores forem as condições locais para a função dinheiro, menor é a quantidade de substância necessária à sua operação, de modo que se pode dizer, paradoxalmente: quanto mais dinheiro real exista (segundo sua essência), menos ele precisa ser dinheiro (segundo sua substância).

Além da influência das condições locais, é a solidez e a confiabilidade das interações sociais, por assim dizer, a consistência da esfera econômica que prepara a dissolução da substância monetária. Isso é o que nos mostra, por exemplo, o fato de o dinheiro trazer consigo um número cada vez maior de efeitos, quando ele mesmo está em repouso. A ideia, algumas vezes levantada de que o significado econômico do dinheiro é produto de seu valor e da frequência de seu uso em determinado período, ignora os poderosos efeitos que o dinheiro provoca por causa da esperança e do medo, do desejo e da preocupação a ele associados; ele irradia esses afetos tão importantes também economicamente da mesma forma que o céu e o inferno: como simples ideia. A simples ideia da existência ou da falta de dinheiro em um determinado lugar cria tensão ou paralisia, e as reservas em ouro, que nos porões dos bancos cobrem as notas, comprovam, de maneira palpável, que o dinheiro, representado por um símbolo meramente psicológico, tem muitos efeitos; aqui ele pode ser realmente caracterizado como o “motor imóvel”. É claro que o efeito do dinheiro como pura potência depende totalmente da precisão e da segurança da organização econômica. Onde os laços sociais são frouxos, esporádicos e preguiçosos, só se vende contra dinheiro vivo, e o dinheiro,

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que está em repouso, não encontra os canais psicológicos através dos quais pode produzir efeitos. Encontra-se aqui também a dupla existência do dinheiro: por um lado, na forma ideal, extremamente importante, do crédito, por outro, como realidade na mão dos devedores. Como dívidas a receber, pertence aos bens dos credores e, embora ausente, produz um enorme efeito; por outro lado, mesmo que esse valor não esteja entre seus bens, o emprestador pode obter com ele os mesmos efeitos que teria se estivesse. Assim, com o empréstimo, o dinheiro tem sua atividade dividida em duas partes, e o resultado de sua energia econômica muito intensificado. Mas a abstração intelectual, que permite operar essa divisão, só pode chegar a bom termo em condições sociais consolidadas e aprimoradas para que se possa finalmente, com relativa segurança, emprestar dinheiro e fundamentar ações econômicas sobre suas funções parciais. Assim como o dinheiro para ser ativo precisa de certa extensão e intensidade nas relações sociais – antes não se diferenciava de outras mercadorias de troca –, da mesma forma é necessário um incremento considerável desse processo para espiritualizar seus efeitos. Nesses fenômenos intensificados, aparece de maneira particularmente transparente quanto o dinheiro, por sua essência profunda, está pouco ligado à concretude de seu substrato; como ele é totalmente um fenômeno sociológico, uma forma de interação entre as pessoas, sua natureza aparece de modo mais puro quanto mais condensados, fidedignos e agradáveis forem os laços sociais. Ora, é justamente em todos os aspectos externos da forma dinheiro que residem a solidez e a segurança geral da cultura da circulação. Só em uma esfera cultural garantida por uma proteção recíproca sólida e organizada é possível que uma matéria tão fina e facilmente destrutível como o papel se torne suporte do mais alto valor monetário e que uma série de perigos elementares – tanto de natureza externa quanto psicológica – seja suprimida; por causa disso, na Idade Média, se usava muito dinheiro de couro. Se o papel moeda, em virtude de sua essência, digamos, insubstancial, marcasse a dissolução progressiva do valor do dinheiro em mero valor funcional, então talvez o dinheiro de couro simbolizasse seu estágio preliminar: das qualidades que caracterizam o dinheiro substancial, o dinheiro de couro ainda guarda, no mínimo, a qualidade de uma relativa indestrutibilidade e, só em uma determinada estrutura avançada das relações individuais e sociais, pode a ela renunciar.

A prática e a teoria da política monetária parecem comprovar tanto a evolução do significado substancial do dinheiro para seu significado funcional quanto sua dependência das condições sociológicas. O fiscalismo da Idade Média e o mercantilismo podem ser definidos como políticas monetárias materialistas. Assim como o materialismo classifica o espírito com suas manifestações e seus valores pela matéria, o fiscalismo e o mercantilismo consideravam a essência e a força de movimento da vida sócio-econômica como ligadas à substância do dinheiro. Mas há entre eles a mesma diferença que há entre uma forma de materialismo bruta e outra refinada. A primeira sustenta que mesmo a ideia seria algo material e que o cérebro

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produz pensamentos como a glândula, seu fluido, como o fígado, a bílis. A segunda: a ideia não é ela mesma material, mas uma forma de movimento da matéria, e os pensamentos, como a luz, o calor e a eletricidade, consistem em tipos de vibrações de partes do corpo. A essa diferença de ponto de vista intelectual corresponde, por um lado, o fiscalismo que, no interesse do governo, procura tirar a maior quantidade possível de dinheiro vivo para uso direto do príncipe ou para fins do Estado; e, por outro, o mercantilismo que certamente atribui um valor capital ao dinheiro vivo, porém não para tirar dele sua substância, mas para animar, com sua função, o movimento econômico do país. Nessas orientações materialistas da política monetária, que ainda se baseiam profundamente na ideia de que a substância monetária seria o valor em si e para si, vemos surgir a virada do significado grosseiramente superficial dessa substância para o significado funcional. E isso corresponde à constituição política dos períodos em questão. Lá onde reinava o regime fiscal na Idade Média, o príncipe tinha uma relação superficial com seu país, muitas vezes totalmente inorgânica, estabelecida por casamento ou através de conquista, o que se expressa de modo perfeitamente adequado na tendência de arrancar o máximo de dinheiro do país – donde a venda frequente de territórios inteiros por dinheiro era a conclusão consequente; o interesse fixo no dinheiro meramente substancial que ligava soberanos e súditos demonstra o quanto ambos estavam desligados. Na relação sociológica entre as duas partes, a política da moeda, tão aplicada pelos soberanos na Idade Média, que consistia na contínua deterioração da moeda, era a técnica mais à mão; tais políticas só são possíveis em um conjunto completamente inorgânico, que dá a uns todos os benefícios e a outros, todos os prejuízos. A alegria de possuir dinheiro vivo, que parece ter nascido com os orientais, levou ao fiscalismo de seus príncipes que usam a prerrogativa de cunhar moedas para cobrar impostos sem se preocupar com a desvalorização da moeda: a contrapartida necessária é a paixão dos súditos em acumular ouro e prata. A emergência do Estado despótico, centralizado, significou uma relação mais estreita e viva entre os atores políticos: a ideia de sua unidade orgânica constitui aquilo que é comum aos ideais dos príncipes, do l’État c’est moi ao rei como primeiro servidor de seu povo. Também aqui o interesse do governo se prende à atração da maior quantidade possível de substância monetária, mas ele o faz para intensificar uma interação entre a cabeça e os membros do corpo estatal, para animar a existência do Estado enquanto tal, que não tem mais como objetivo final da aquisição de dinheiro sua posse substancial, mas sua fecundidade para o desenvolvimento da indústria. Quando então as tendências liberais levaram a vida do Estado a um fluxo cada vez mais livre, a uma flexibilidade sem entraves, a um equilíbrio cada vez mais instável entre seus elementos, estava assegurada a base material para a teoria de Adam Smith: o ouro e a prata são apenas instrumento, nada além de utensílios de cozinha, cuja importação por si só incrementa tão pouco o bem-estar dos países quanto o simples aumento no número de utensílios faz com que se tenha mais comida. E quando finalmente se dissolveram as antigas ordens substanciais a ponto de possibilitar ideais anarquistas, então se pode compreender que a direção da

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teoria monetária atinja também com esses ideais seu limite extremo. Proudhon, que descartava qualquer formação estatal fixa e reconhecia como única forma justa de vida social a interação livre e direta entre os indivíduos, lutava contra a utilização do dinheiro em geral; pois nele via um análogo preciso daquelas formações de dominação que retiram dos indivíduos sua interação viva para cristalizá-la em si mesmas. Seria preciso, por isso, fundar uma permutabilidade dos valores sem a intervenção do dinheiro, assim como o governo da sociedade sem a intervenção do rei; e como se atribui a cada pessoa o direito de voto, então qualquer mercadoria em si e para si pode representar o valor sem a intermediação do dinheiro. Com Adam Smith, está aberto o caminho para a teoria monetária aqui representada como transcendental, em contraposição à teoria materialista. Pois, enquanto o materialismo esclarece: espírito é matéria – a filosofia transcendental ensina: a matéria também é espírito. Não se trata aqui de um espírito no sentido do espiritualismo, que também é uma substância, um ser em repouso, ainda que imaterial; mas de saber que qualquer objeto, corpóreo ou espiritual, só se constitui para nós na medida em que é produzido pela alma em seu processo vital, ou melhor: na medida em que é uma função da alma. Contudo se a concepção materialista do dinheiro aparecesse como erro, a reflexão histórica nos mostraria que tal erro não foi casual, mas a expressão teórica adequada de uma situação sociológica real, que só pode ser ultrapassada com poderes reais, antes que sua contrapartida teórica possa ser vencida por forças teóricas.

O próximo nexo em que se coloca o caráter sociológico do dinheiro é o seguinte. Só podemos imaginar como ponto de partida de toda formação social a interação de pessoa a pessoa. Não importa o quão real sejam os primórdios históricos envoltos em sombras – sua análise genética e sistemática tem de levar em conta essa relação mais simples e mais direta a partir da qual vemos ainda hoje se originarem numerosas formações sociais novas. A evolução continuada substitui o caráter direto das forças de interação pela criação de formações suprapessoais superiores, que aparecem como suporte especial dessas mesmas forças e conduzem as relações dos indivíduos entre si, intermediando-as. Essas formações se manifestam nos mais variados fenômenos: na realidade palpável, assim como em puras ideias e produtos da fantasia, nas organizações com amplas ramificações, assim como na representação de pessoas singulares. Assim, a partir das necessidades e dos usos que se desenvolvem a princípio caso a caso na relação entre companheiros até se fixar finalmente, se formaram as leis objetivas dos costumes, do direito e da moral – resultados ideais da capacidade humana de imaginar e avaliar, que se situam, para nosso pensamento, bem além da vontade e da ação singulares, por assim dizer, como suas “formas puras” isoladas. Com a continuação desse processo, a lei do Estado se incorpora na classe dos juízes e em toda hierarquia administrativa; do mesmo modo a força de coesão de um partido político, na classe política e em toda representação parlamentar; assim como a coesão de um regimento se expressa em sua bandeira, a de uma união mística em seu cálice sagrado, etc. Então as

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interações entre os elementos primários, que criam a unidade social, são substituídas pela relação de cada um desses elementos com esse órgão que se coloca acima e entre eles. É a essa categoria de funções sociais que devém substância que pertence o dinheiro. A função de troca, uma interação direta entre indivíduos, se cristaliza com o dinheiro em uma formação autônoma. A troca de produtos do trabalho ou de alguma posse adquirida por quaisquer meios é, com certeza, uma das formas mais puras e primitivas de socialização humana e não a ideia de que a “sociedade” seria perfeita se aparecesse a troca em seu interior; a própria troca é uma das funções que fazem surgir, a partir de um simples estar junto dos indivíduos, sua ligação interna, a sociedade; pois a sociedade não é uma unidade absoluta que deveria, a princípio, existir para que todas as relações singulares de seus membros: superioridade e subordinação, coesão, imitações, divisão de trabalho, troca, ataques e defesas correspondentes, comunidade religiosa, formação partidária e muitas outras, se originassem dela como seu suporte ou moldura. Sociedade é apenas a suma ou o nome geral para o conjunto dessas relações de troca especiais. Claro que uma parte ou outra pode deixar de operar e a “sociedade” sempre permanecer – mas só quando a eliminação de uma deixa ainda um número suficientemente grande de outras em ação; se todas deixassem de existir, então não haveria mais sociedade: assim como a unidade vital de um corpo orgânico ainda poderia sobreviver se uma ou outra de suas funções, ou seja, as relações de troca entre suas partes, deixassem de existir, mas não se todas parassem – pois a “vida” não é nada além da soma de todas as forças em interação entre os átomos de um corpo. Por isso, é ainda um pouco ambíguo dizer que a troca produz socialização: ao contrário, ela é uma socialização, uma dessas relações cuja existência faz de uma soma de indivíduos um grupo social, porque a “sociedade” é idêntica à soma dessas relações.

O desconforto e a insuficiência, muitas vezes salientados da troca natural, são comparáveis àqueles que aparecem em outras interações sociais ainda no estágio da relação imediata: quando todas as medidas governamentais têm de ser deliberadas e aprovadas pelo conjunto dos cidadãos; quando a proteção externa do grupo ainda é efetuada pelo serviço militar primitivo de todos os membros do grupo; quando a associação e a organização repousam ainda exclusivamente na autoridade e no poder exercido pessoalmente; quando a administração da justiça acontece ainda através do voto direto da comunidade – resultam então, com a extensão e a complexidade crescentes do grupo, todas aquelas impropriedades, obstáculos e relaxamento que, por um lado, pressionam pela cessão dessas funções a órgãos específicos, por outro, pela criação de ideais e símbolos de representação e de coesão. A função da troca conduz efetivamente a dois tipos de formações: por um lado, à ordem dos comerciantes, por outro, ao dinheiro. O comerciante é o portador diferenciado das funções de troca antes exercidas diretamente pelos produtores; em vez das interações simples entre eles aparece a relação que cada um, por si, tem com o comerciante, assim como controle e coesão imediatos do grupo de cidadãos são substituídos pela relação comum com os

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órgãos do governo. E então, preparando um conhecimento mais preciso, pode-se dizer: assim como o comerciante se coloca entre os sujeitos que trocam, da mesma maneira está o dinheiro entre os objetos trocados. Em vez de seus equivalentes agirem diretamente, pondo um fim a seus movimentos, cada objeto entra por si em uma relação de igualdade e de troca com o dinheiro. Assim como o comerciante encarna a função da troca, o dinheiro encarna a função de ser trocado: ele é, como vimos antes, a simples relação substancializada das coisas entre si, tal como aparece em seu movimento econômico. Desse modo, ele se situa para além das coisas singulares, cada uma delas estando em relação com ele; como um domínio organizado por normas próprias, ele é a simples objetivação desses movimentos de compensação e de troca, que originalmente ocorriam entre as coisas singulares. Só que, como disse antes, isso é apenas uma visão preparatória. Pois, finalmente, não são as coisas, mas as pessoas que realizam esses processos e as relações entre as coisas, no domínio que nos interessa aqui, são apenas relações entre as pessoas. O que é ação na troca entre indivíduos se torna, com o dinheiro, forma concretizada, autônoma, fixada, por assim dizer, no mesmo sentido em que o governo representa o controle mútuo dos membros do grupo, como o paládio ou a arca, sua coesão, como a ordem dos guerreiros, sua defesa. Todos esses são exemplos semelhantes de um tipo mais amplo: a partir de fenômenos, de substâncias, de processos primários de um aspecto singular que só existem neles e com eles, como a qualidade em sua substância, a atividade em seu sujeito, deles se destaca cobrindo um corpo próprio: a abstração se realiza quando se cristaliza em uma formação concreta. Fora da troca, o dinheiro não é nada, assim como o regimento e suas bandeiras fora dos ataques e defesas da comunidade ou o sacerdote e o templo fora da religiosidade. A natureza dupla do dinheiro: ser ao mesmo tempo uma substância concreta e como tal muito estimada e ter sentido apenas em sua total dissolução em movimento e função – se baseia no fato de que consiste unicamente na hipóstase, na encarnação de uma função pura, a troca entre as pessoas.

A evolução da matéria do dinheiro exprime, cada vez mais, seu caráter sociológico. Os meios de troca primitivos, como sal, gado, tabaco, grãos, são, por causa de seu uso, determinados por puros interesses individuais, solipsistas, ou seja, são consumidos por um singular sem que, nesse momento, outras pessoas se interessem por eles. O metal precioso, ao contrário, por seu significado como ornamento, indica uma relação entre indivíduos; as pessoas se enfeitam para os outros. Enfeitar-se é uma necessidade social, e os metais preciosos, por seu brilho, se prestam a atrair os olhos para si. Por isso, certas joias estão reservadas a determinadas posições sociais: assim, na França medieval, usar joias de ouro estava proibido a toda pessoa inferior a uma certa categoria. Como a joia tem todo seu significado nos processos psicológicos, que, para além de seu suporte, desperta nos outros, o metal precioso se distingue radicalmente dos meios de troca mais originários, centrípetos, por assim dizer. A troca, como acontecimento sociológico puro, ou seja, como a interação mais acabada, encontra seu

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suporte correspondente na substância do ornamento, cujo significado, para seu possuidor, se mostra apenas indiretamente, a saber, como relação com as outras pessoas.

Quando essa encarnação do ato de troca em uma formação particular se realiza tecnicamente de tal modo que cada objeto, em vez de ser trocado diretamente por outro, é antes trocado por essa formação, cabe então a pergunta: qual é, vendo mais de perto, o comportamento correspondente das pessoas por trás dos objetos? – pois o comportamento comum em relação aos comerciantes, sendo causa e efeito da circulação do dinheiro, só pode servir aqui como metáfora. Ora, me parece claro que o fundamento e o suporte sociológico da relação entre os objetos e o dinheiro é a relação dos indivíduos econômicos com o poder central que emite e garante a moeda. O dinheiro só serve como instância intermediária absoluta entre produtos singulares quando sua cunhagem o eleva acima de seu mero quantum de metal – para não falar dos tipos de dinheiro naturais. A abstração do processo de troca, a partir da troca real singular e de sua encarnação em uma formação específica objetiva, só pode acontecer quando a troca já se tornou outra coisa além de um evento privado entre dois indivíduos totalmente encerrado em ações e reações individuais das partes. Ele se torna essa outra coisa mais ampla na medida em que o valor de troca, atribuído por uma das partes, não adquire seu significado para o outro diretamente, mas como mera indicação a outro valor definitivo – uma indicação cuja realização depende do conjunto do círculo econômico ou do governo como seu representante. Assim que o escambo é substituído pela compra a dinheiro, aparece uma terceira instância entre as duas partes: a totalidade social que põe à disposição desse dinheiro um valor real correspondente. O eixo da interação entre as duas partes recua continuamente, distanciando-se da linha que os une diretamente e deslocando-se para a relação que cada uma delas tem, por seu interesse no dinheiro, no circuito econômico que aceita o dinheiro e o comprova através da cunhagem por seu mais alto representante. Nisso repousa o núcleo de verdade da teoria segundo a qual todo dinheiro é somente uma ordem de pagamento dirigida à sociedade; ele aparece como uma letra de câmbio em que o nome do devedor não foi preenchido: em que o selo ocupa o lugar do aceite. Quando manifestamos nossa discordância em relação à doutrina que vê na moeda também um crédito, afirmando que o crédito funda um laço, enquanto o pagamento com moeda desfaz o laço, então esquecemos que o que é desenlace para o singular, para o conjunto pode ser ligação. A dissolução de qualquer laço privado, através do uso do dinheiro, significa que agora o conjunto assume o compromisso contra quem de direito. Há somente duas maneiras de se desfazer do laço criado por uma prestação de serviço: através de uma contraprestação direta ou de uma ordem de pagamento. É o dono do dinheiro que tem nas mãos essa ordem de pagamento e, na medida em que a devolve a quem lhe prestou o serviço, remete-a a um produtor anônimo que, por pertencer à mesma esfera econômica, toma para si o serviço prestado em troca desse dinheiro. A diferença entre papel moeda coberto ou descoberto, mencionado em razão de sua relação com o caráter de crédito do dinheiro, é nesse caso

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totalmente irrelevante. Diz-se que somente papel inconvertível é realmente dinheiro (papier-monnaie), enquanto o convertível é apenas uma ordem de pagamento (monnaie de papier)∗; vale a pena lembrar que essa diferença não tem nenhum sentido na relação entre comprador e vendedor, pois nela o papel reembolsável também não funciona como uma promessa de pagamento, mas como pagamento definitivo, diferente do cheque, que é apenas uma promessa entre comprador e vendedor. Toda essa discussão não penetra a realidade sociológica; para ela, não há dúvida que também a moeda é uma promessa e que ela só se distingue do cheque pelo tamanho do círculo que garante sua convertibilidade. A relação comum entre dono do dinheiro e comprador em um mesmo círculo social – a exigência do primeiro sobre um serviço prestado no interior desse círculo e a confiança do segundo de que essa exigência será honrada – é a constelação sociológica em que as trocas em dinheiro se realizam em contraposição às trocas naturais.

Na verdade, a moeda, que se tenta compreender como o oposto absoluto do crédito, esconde dois pressupostos entrelaçados de maneira peculiar. Primeiro, um exame da substância da moeda não é factível no decorrer das transações quotidianas. Sem a confiança do público no governo emitente ou, se fosse o caso, nas pessoas capazes de verificar o valor real da moeda em relação a seu valor nominal, não há transações com dinheiro vivo. A inscrição na moeda maltesa: non aes sed fides* – descreve muito bem o suplemento de confiança sem o qual mesmo uma moeda de pleno valor não conseguiria exercer sua função na grande maioria dos casos. Justamente, a pluralidade, muitas vezes a oposição, de razões para se aceitar um dinheiro mostra que o essencial não é sua capacidade objetiva de comprovação: em algumas regiões da África, o táler com a efígie de Maria Tereza tinha de ser muito branco e limpo, em outras, gorduroso e sujo, para que fosse aceito como autêntico! Em segundo lugar, era imprescindível a confiança de que o dinheiro que se tomava naquele momento pudesse ser usado com o mesmo valor. Também aqui o indispensável e decisivo: non aes sed fides – a confiança de que o círculo econômico vai nos restituir, sem prejuízo, o quantum de valor dado para um valor provisório recebido, a moeda. Ninguém pode se servir da moeda sem dar crédito nesses dois sentidos; só essa confiança dupla empresta à moeda suja, muitas vezes quase irreconhecível, sua determinada medida de valor. Assim como a falta de confiança mútua entre as pessoas esfacelaria a sociedade – pois quantas relações se baseiam realmente no pouco que uns sabem comprovadamente sobre os outros, quanto tempo durariam essas relações se a confiança não fosse tão forte e, muitas vezes, mais forte do que provas racionais ou até mesmo evidências! – sem confiança, também as transações em dinheiro fracassariam. Ela tem de certa maneira suas nuances. A afirmação de que todo dinheiro é simplesmente crédito, de que seu

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∗∗ Em francês no original (N.T.).

** Não o dinheiro, mas a confiança (N.T.).

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valor repousa sobre a confiança do receptor, de que, com esse instrumento de troca, pode obter uma certa quantidade de mercadoria – ainda não foi totalmente esclarecida. Pois, sobre esse tipo de confiança, repousa não somente a economia do dinheiro, mas qualquer economia em geral. Se o agricultor não acreditasse que naquele ano a terra seria tão fértil quanto no ano anterior, não semearia; se o comerciante não acreditasse que o público deseja suas mercadorias, ele não as adquiriria, etc. Esse tipo de confiança não é nada além de um saber indutivo atenuado. Só que, no caso do crédito, da confiança em alguém, entra em jogo também um momento mais amplo, difícil de ser descrito, que se concretiza de maneira mais pura na fé religiosa. Quando alguém diz que acredita em deus, não se trata apenas de um conhecimento imperfeito em relação a ele, mas de um estado de espírito que não vai na direção do saber, pois, por um lado, é certamente menor, por outro, maior do que ele. É uma forma de expressão muito fina e profunda dizer que “se acredita em alguém” – sem que se complemente melhor ou que se explique mais claramente em que consiste essa crença. É justamente o sentimento de que, entre nossa ideia acerca de um ser e esse mesmo ser, há, desde logo, um nexo, uma unidade, uma certa consistência em sua representação, uma segurança e falta de resistência na dedicação do eu a essa representação que advêm de certas razões, mas que não se justificam por elas. O crédito econômico também compreende, em muitos casos, um elemento dessa crença suprateórica, e essa confiança tem como efeito sobre a comunidade nada menos do que conduzi-la a nos garantir contravalores concretos para os símbolos contra os quais trocamos o produto de nosso trabalho. Como já mencionado, trata-se aqui, em larga medida, de uma conclusão indutiva, mas que inclui ainda um suplemento dessa “crença” sócio-psicológica semelhante à fé religiosa. O sentimento de segurança pessoal, garantida pela posse do dinheiro, é talvez a forma e a expressão de confiança mais concentradas e mais afiadas na organização e na ordem estatal e social. Esse processo subjetivo é, por assim dizer, a potência mais alta da ordem que cria o valor do metal: só quando esse valor é pressuposto, em virtude dessa confiança recíproca, ele então se torna prático. Por isso, também aqui se ressalta que o desenvolvimento do dinheiro como substância para o dinheiro como crédito é menos radical do que parece, pois o dinheiro como crédito deve ser entendido como evolução, autonomização e separação dos momentos de crédito que já existem de maneira decisiva no dinheiro como substância.

A garantia de poder reutilizar o dinheiro, que inclui a relação do contratante com a totalidade do grupo, tem, no entanto, uma forma específica. Em termos abstratos, ela não está dada de antemão, pois o dono do dinheiro não pode forçar ninguém a fornecer algo em troca de dinheiro, mesmo que esse seja incontestavelmente bom, como se pode sentir em casos de boicote. Só onde já existem obrigações, se pode forçar uma parte a saldar as obrigações, sejam lá quais forem, com dinheiro – e mesmo assim em nem todas as legislações. A possibilidade de a promessa contida no dinheiro não ser satisfeita confirma o caráter do dinheiro como um mero crédito; pois é da essência do crédito que

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a probabilidade de sua realização não seja total, mesmo que se aproxime bastante dela. Na verdade, o singular é livre para entregar ou não seu produto ou sua propriedade ao dono do dinheiro, enquanto a comunidade certamente está comprometida com ele. Essa divisão entre liberdade e obrigação, embora paradoxal, serve não raro como categoria de conhecimento. Assim, defensores das “leis estatísticas” afirmam que a sociedade tem, sob determinadas condições, de produzir, em função das leis naturais, um número determinado de mortes, de roubos e de nascimentos ilegítimos; mas o singular não é forçado a um tal comportamento, ao contrário, ele é livre para agir ou não segundo as leis morais; a lei estatística não determina que uma pessoa deva ou não realizar tais atos, mas que a totalidade, da qual ele faz parte, tem de produzir uma quantidade predestinada desses mesmos atos. Ouvimos dizer também: o conjunto da sociedade ou da espécie tem seu papel definido no plano divino, no desenvolvimento do ser em direção à sua transcendência teleológica; os portadores singulares disso, porém, são irrelevantes, eles teriam toda liberdade de repartir entre si, por assim dizer, o total dos serviços a serem prestados, e o singular poderia até se abster deles sem que o conjunto das tarefas seja afetado. Finalmente, foi ressaltado que as ações de um grupo são sempre determinadas por seus interesses, sem hesitação, segundo as leis naturais, assim como as massas da matéria pela gravidade; o indivíduo, por sua vez, é levado por teorias e conflitos, tem muitas possibilidades de escolher certo ou errado – ao contrário dos atos da coletividade que são desprovidos de qualquer liberdade em virtude de serem guiados por instintos e finalidades imutáveis. Não cabe aqui verificar o quanto essas ideias estão certas ou erradas, mas elas servem para mostrar como esse esquema vale para uma relação entre o geral e o indivíduo: para representar aquele como necessário, este como livre, para limitar a liberdade deste com a obrigação daquele e para integrar na determinação de um resultado global. A garantia de poder reutilizar o dinheiro, que o soberano ou representante da coletividade assume pela cunhagem da moeda ou impressão do papel moeda, significa aceitar a enorme probabilidade de que cada singular, apesar da liberdade de poder recusar o dinheiro, vai recebê-lo.

A partir dessas conexões, podemos observar que quanto maior é o círculo em que o dinheiro vale, maior é o valor da moeda. No interior de um grupo de dimensões locais, deve circular um dinheiro com menor valor. Assim ocorria na cultura mais primitiva: em Darfur, no interior de um distrito, circulavam meios de troca locais: enxadas, tabaco, bolas de algodão, etc.; a moeda mais alta, porém, era comum a todos: a roupa, o gado, o escravo. Acontece do papel moeda de um Estado ser limitado a uma província: na Turquia, em 1853, foram emitidas notas que só deviam valer em Constantinopla. Sociedades muito pequenas e solidamente ligadas concordam ocasionalmente em aceitar qualquer símbolo – mesmo a ficha de um jogo – como dinheiro. A ampliação das relações comerciais, no entanto, exige um dinheiro de alto valor, porque a necessidade de enviá-lo a grandes distâncias torna conveniente a concentração de seu valor nos menores volumes possíveis; de modo que os grandes

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impérios históricos, assim como os estados comerciais com círculos de troca extremamente vastos são levados a usar dinheiro com valor substancial relativamente alto. Alguns fenômenos apresentam também a prova com o contrário. A vantagem essencial do privilégio, de cunhar moedas na Idade Média, reside no fato de que o senhor da moeda podia produzir em seu domínio, a qualquer momento, novos pfennige e impor a troca de todas as moedas velhas ou estrangeiras que entrassem em seu território através das transações comerciais por outras novas; a cada desvalorização de sua moeda, portanto, ele lucrava com a diferença entre ela e a moeda trocada, melhor que a sua. Mas, como se pode ver, essa vantagem se deve ao fato de a área do senhor da moeda ser relativamente grande. Em áreas muito pequenas, o privilégio da cunhagem não vale muito por que o mercado para as moedas é muito limitado; de modo que, com a leviandade indescritível com a qual se distribuía o direito de cunhagem a cada vila, a cada pequena cidade, a desordem monetária na Alemanha teria sido muito pior se a vantagem da desvalorização da moeda não estivesse condicionada a um determinado tamanho da área. Justamente porque o círculo extenso de sua estrutura sócio-econômica exigia um dinheiro bom, a vantagem de uma moeda ruim e imposta é notavelmente grande nesse espaço. Isso acabou se provando positivo à medida que o crescimento das transações europeias, no século XIV, resultou na implantação do florim como unidade geral do sistema monetário e na eliminação do padrão prata pelo padrão ouro. Schillings e pfennigs eram apenas pequenas moedas que qualquer paisinho ou vilarejo podia cunhar, tão desvalorizados quanto quisesse, para seus negócios. Por isso, na Idade Média, a concessão do direito de cunhagem se restringia às moedas de prata; o direito de produzir moedas de ouro exigia uma autorização especial que só era concedida a um governo de grande território. Sobre essa correlação, vale lembrar que o último resíduo do império romano, que a corte de Bizâncio mantinha até o século VI, era o direito exclusivo de cunhar moedas de ouro. E finalmente essa correlação é ainda provada pelo seguinte exemplo, a ser acrescentado ao caso citado mais acima de restrição imposta à circulação de papel moeda dentro dos limites do Estado emissor: havia na França, em um determinado momento, notas que valiam em toda parte, menos nas cidades portuárias, ou seja, não nos pontos de circulação mais ampla. De maneira geral, à medida que o círculo se ampliava, era necessário que a moeda se tornasse aceitável e sedutora tanto para os estrangeiros quanto para os países fornecedores. Pois, com a ampliação do círculo econômico, há – ceteris paribus* – um certo relaxamento: a visão recíproca nas relações se torna menos perfeita, a confiança mais condicionada, a execução das exigências mais incertas. Em tais condições, ninguém forneceria mercadorias se o dinheiro usado como pagamento só pudesse ser usado com segurança no círculo do comprador, sendo de valor duvidoso em outros círculos. Ele vai, portanto, exigir um dinheiro que seja valioso por si, vale dizer, aceito em toda parte. O aumento do valor substancial do dinheiro significa crescimento no círculo de sujeitos no qual é

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** Mantido inalterado todo o resto. (N.T.)

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geralmente aceito, enquanto em um círculo mais restrito sua reutilização pode depender de certas garantias e conexões de ordem social, jurídica e pessoal. Vamos supor que a reutilização do dinheiro seja o motivo de sua aceitação, então seu valor substancial se assemelharia ao de um penhor, que poderia cair a zero se a utilização fosse garantida por outros meios e que crescesse à medida que o risco fosse maior. Ora, o crescimento da cultura econômica produz, no círculo que se amplia até se internacionalizar, certos traços que antes caracterizavam apenas grupos fechados: as condições econômicas e jurídicas vencem cada vez mais profundamente a separação espacial e operam de modo tão seguro, preciso e calculável à distância, quanto o faziam na proximidade. À medida que isso acontece, aquele penhor, ou seja, o valor próprio do dinheiro, pode perder importância. A ideia corrente entre os partidários do bimetalismo, de que ele só seria possível em escala internacional, é inerente a essa reflexão. Embora estejamos ainda muito distantes de um nexo mais estreito e confiável – tanto no interior de uma nação singular quanto entre as nações – é nesse sentido que caminha certamente o desenvolvimento: a crescente ligação e a unificação através de leis, hábitos e interesses de círculos cada vez maiores constituem o fundamento para que o valor substancial do dinheiro seja cada vez menor e cada vez mais substituído por seu valor funcional.

Vale ressaltar que a ampliação espacial das relações econômicas, que, como mencionado acima, incrementa o valor substancial dos meios de troca, conduz, na cultura moderna, à sua eliminação total: à compensação interlocal e internacional via operações bancárias ou letra de câmbio. Mesmo no interior de zonas de interesse singular do dinheiro, a evolução é dominada por essa forma. O imposto, por exemplo, recai nos dias de hoje preponderantemente sobre a renda e não sobre a propriedade. Na Prússia, um banqueiro rico, que havia perdido dinheiro nos últimos anos, ficou isento dos impostos, a não ser do ínfimo e também muito recente imposto sobre os bens. E nem mesmo a posse de dinheiro, mas o produto de seu trabalho, dinheiro que sai de dinheiro, é que decide sobre as obrigações e, à medida que o direito de voto depende dos impostos, decide também sobre os direitos diante da comunidade. Para saber em que direção vai o desenvolvimento do dinheiro, tomemos o papel do capital monetário na Roma antiga. Como ele mesmo foi conquistado por vias improdutivas – guerras, tributos, operações de troca – também não estava destinado à produção pelo emprestador, mas apenas ao consumo. Por isso, os juros não podiam obviamente passar por frutos naturais do capital, daí a relação pouco clara e inorgânica entre ambos, que aparece nas dificuldades em relação aos juros ao longo de toda a Cristandade e que só pode ser regulamentada e organizada pelo capital produtivo como conceito e efetividade. Esse é o maior contraste em relação à situação atual em que o capital não tem mais seu significado em si e para si, mas naquilo que produz: sua evolução o levou de elemento fixo, intrinsecamente estranho à produção, a uma função vivaz com a produção. Voltemos uma vez mais à garantia do dinheiro como seu nervo vital; ela perde naturalmente sua concisão à medida que a formação objetiva representante da

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totalidade representa apenas partes limitadas dessa totalidade ou seus interesses de modo incompleto. Assim, por exemplo, um banco privado é também um ser suprapessoal relativamente objetivo, que se imiscui nas transações de interesses individuais. Esse caráter sociológico o torna apto à emissão de dinheiro, mas, como não há vigilância do Estado para transferir a garantia para a formação central, verdadeiramente universal, fica patente na imperfeição do caráter de “dinheiro” de suas notas que a área de sua objetivação é puramente parcial. O mal da economia norte-americana, baseada no papel moeda, deriva em parte da opinião de que a moeda seja coisa do Estado, enquanto a produção de papel moeda cabe aos bancos privados, e o Estado não deve se imiscuir. Assim se esquece que a mera relatividade da diferença entre moeda de metal e papel moeda que ambas, na medida em que são dinheiro, consistem apenas em uma substancialização da função de troca através de uma relação comum dos interessados a um órgão objetivo e que o dinheiro só pode exercer sua função, ou seja, só pode representar diretamente o valor, na medida em que esse órgão emissor represente ou exprima realmente em si o círculo de interesses. Por isso, as moedas de governantes de pequenos Estados procuram, muitas vezes, obter pelo menos a aparência de pertencer a uma formação mais ampla. Depois de séculos da morte de Felipe e de Alexandre, ainda eram cunhadas, em diversos lugares, moedas com seus nomes e selos – formalmente, imperiais, mas, na verdade, moedas municipais. O desenvolvimento ascendente tende, na realidade, a uma expansão – no caso, a uma centralização – dos órgãos e poderes que garantem o valor da moeda. Nesse sentido, é notável que os títulos do Tesouro emitidos pelos Estados, antes do século XVIII, eram em geral baseados na renda singular da coroa e por ela garantidos. Só os exchequer bills ingleses do século XVIII eram ordens de pagamento sobre o conjunto das receitas do Estado; sua qualidade, portanto, não dependia em nada de circunstâncias particulares que deviam ser investigadas, residia apenas na confiança geral na capacidade de pagamento do Estado. Aqui aparece a grande tendência centralizadora da época moderna que não contradiz em nada a tendência individualizante simultânea: ambas são as faces de um mesmo processo, de uma diferenciação mais apurada, de uma nova síntese de dois aspectos da personalidade, um virado para a sociedade, outro para o sujeito. O desenvolvimento elimina da essência do dinheiro todos os elementos que o isolam e individualizam e faz das forças centralizadas de vastos círculos sociais seus suportes. A forma patrimonial abstrata do dinheiro beneficia, com esse desenvolvimento, tanto o crédito pessoal quanto o estatal. Os príncipes como pessoas possuíam, ainda no século XV e início do XVI, pouco crédito no total; não se questionava muito sua capacidade de pagamento pessoal, mas o valor das cauções e dos penhores. O crédito pessoal se baseia no pressuposto de que mesmo que os objetos que constituem a posse do devedor possam mudar, a soma do valor de sua posse será sempre suficiente para cobrir a dívida. Só quando os bens de alguém são taxados como valores, ou seja, em dinheiro, ele pode, como pessoa, ter um crédito duradouro; senão dependerá sempre das mudanças ocorridas em seus bens. Uma transição desse estágio ao estágio

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atual aparece no fato de que, no século XVIII, ainda a maioria das dívidas eram expressas em somas determinadas de moedas determinadas. O conceito de valor abstrato, separado de qualquer forma especial, não havia ainda se tornado totalmente efetivo – aquele valor que não tinha mais atrás de si uma determinação objetiva, mas apenas o Estado ou uma personalidade singular como garantia.

O principal é que o significado do metal para sistema monetário recua cada vez mais para a segurança de seu valor funcional garantido pela organização da comunidade. Pois originalmente o metal é sempre uma posse privada e, por isso, os interesses e as forças públicas não podem nunca se tornar senhores absolutos dele. Pode-se dizer que o dinheiro se torna cada vez mais uma instituição pública, no sentido estrito da palavra: ele consiste sempre mais no que o poder público, as instituições públicas, os modos de circulação e garantias reconhecidos pela comunidade fazem dele e nos objetivos dessa legitimação. Vale ressaltar, por isso, que, em épocas antigas, o dinheiro, por assim dizer, não podia manter-se sozinho em sua função abstrata; os negócios com dinheiro se apoiavam em atividades específicas ou na produção técnica das moedas ou no comércio com os metais preciosos. Assim, na Viena dos inícios do século XIII, eram os tintureiros que se ocupavam regularmente com as operações de câmbio, como na Inglaterra, e também em parte da Alemanha, eram os ourives. As operações de câmbio, que na Idade Média conduziam a circulação do dinheiro (já que, em cada lugar, por princípio, só se podia pagar com a moeda local), eram originalmente privilégio da própria moeda, da “corporação dos moedeiros”. Só quando mais tarde as cidades obtiveram o direito de cunhar moedas, o câmbio e o comércio de metais preciosos se dissociaram da moeda. A função da moeda é, portanto, antes de mais nada, ligada à sua matéria por uma união, por assim dizer, pessoal; desde que o poder público lhe dê garantia, ela se torna independente de suas ligações habituais, o câmbio e o comércio com seu material se torna livre para todos e isso justamente à medida que sua função como dinheiro ganha uma garantia supraindividual. A despersonalização crescente da moeda, sua relação cada vez mais íntima com um círculo social amplo e centralizado, se liga de modo preciso e efetivo à intensificação de suas funções autônomas em relação ao valor do metal. É sobre a segurança do dinheiro que repousa seu valor, e o poder político central, seu portador, cresce gradualmente reprimindo o significado direto do metal. Aqui aparece uma analogia com uma nuance negligenciada do sentimento de valor. Se o valor de um objeto repousasse sobre o fato de que ele torna um outro acessível para nós, seu valor então seria determinado por dois coeficientes: o valor intrínseco do objeto a ser adquirido e a segurança de que ele pode adquirir esse objeto; a diminuição de um coeficiente pode, até um certo limite, não atingir o valor global se o outro coeficiente aumentasse de modo correspondente. Assim, o significado de um conhecimento para nós é igual ao produto de sua segurança e da importância de seu conteúdo. Nas ciências naturais, o primeiro coeficiente tende a preponderar, enquanto nas ciências do espírito é o segundo que vale, o que torna fundamentalmente

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possível uma igualdade de seu valor global; só quando não se duvida da segurança de um conhecimento, como no caso de Aristóteles, pode seu valor depender exclusivamente do objeto. O valor de um bilhete de loteria é o produto da probabilidade de sua extração e da elevação de um ganho eventual, o valor de um comércio qualquer é igual ao produto da probabilidade de se alcançar um fim e da importância desse fim, o valor de um título de crédito é composto de segurança para o capital e aumento nos rendimentos. Ora, o dinheiro não se comporta exatamente assim, pois à sua segurança cada vez maior não corresponde uma queda no valor do objeto cuja aquisição garante; mas a analogia vale na medida em que, com a segurança crescente de seu uso, seu outro coeficiente de valor, o valor intrínseco do metal, pode cair em proporções indeterminadas sem alterar seu valor global. Por outro lado, a posição sociológica do dinheiro tem como causa direta, tanto como efeito imediato, multiplicar, reforçar e estreitar as relações entre o poder central do grupo e seus elementos singulares, porque agora as relações recíprocas desses elementos devem, por assim dizer, passar através dele. Assim, os carolíngios se esforçavam claramente para deslocar as trocas naturais ou através do uso do gado em favor da economia monetária. Eles exigiam sempre que a moeda não poderia ser recusada e castigavam duramente sua não aceitação. O direito de cunhar moedas era um privilégio exclusivamente real, pois a expansão da circulação da moeda significava a ampliação do poder real onde antes havia um modo de circulação meramente privado e pessoal. Do mesmo modo, a moeda romana de ouro ou prata, desde Augusto, era cunhada exclusivamente em nome e por ordem de César, enquanto o senado, por um lado, e as associações comunitárias, por outro, mantinham o direito de produzir pequenas moedas; e esse nexo se generaliza na medida em que grandes príncipes criavam poderosos sistemas monetários: Dario I, Alexandre, o Grande, Augusto, Diocleciano, até Napoleão I. Toda a técnica que permite, nas épocas de economia natural, a uma grande potência social manter-se consiste em sua auto-suficiência – como no caso de grandes senhores de terra desde os merovíngios – e no esforço de manter um Estado dentro do Estado; por outro lado, formações de poderes correspondentes em uma economia monetária se formaram e se mantiveram justamente em contato com organizações estatais. O Estado centralizador moderno cresceu também por causa do enorme desenvolvimento da economia do dinheiro impulsionado pela exploração, no início da era moderna, das reservas de metal americanas. A auto-suficiência das relações feudais foi destruída com a introdução da moeda em cada transação que se reportava ao poder central, situando as relações entre as partes para além de si mesmas, de modo que o poder do dinheiro de ligar mais os singulares à coroa acabou sendo considerado como o sentido profundo do sistema mercantil. Por outro lado, o fato de os imperadores alemães deixarem aos senhores de terra esse instrumento de centralização é uma das razões essenciais da fragmentação do império – enquanto os reis franceses e ingleses dos séculos XIII e XIV fundavam a unidade de seus reinos com o auxílio do movimento em direção à economia monetária. O império russo em sua totalidade já era indivisível quando Ivã III distribui a seus filhos mais jovens territórios

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onde podiam reinar como soberanos, reservando somente ao poder central, além da Alta Corte de Justiça, o direito de cunhar moedas. Ora, a esfera frouxa constituída pelas relações comerciais de um país que se estendem para além de suas fronteiras políticas adquire uma extensão e uma consistência extraordinárias desde que a moeda do país se torna, por sua solidez, válida em toda parte, ligando todos os pontos desse círculo ao país de origem e fazendo sempre referência a ele. Assim, a circulação do sovereign* inglês em Portugal e no Brasil deu um grande prestígio ao comércio inglês, mantendo a unidade das relações comerciais que se irradiavam nesses países. Na Alemanha, logo após a época carolíngia, o rei concedeu a pessoas e instituições o direito de cunhagem, reservando, no entanto, para si a determinação da qualidade e da forma da moeda. Mas, já antes do século XII, os agraciados com esse direito podiam fixar à vontade o padrão e o selo e, portanto, tirar todo lucro que queriam. Assim, a separação do sistema monetário do poder central caminha pari passu com a deterioração da moeda: ou seja, o dinheiro é tão mais dinheiro de verdade quanto mais o círculo sociológico extenso, assim como o poder central, o garantirem. A inversão desse nexo comprova o mesmo ponto: a deterioração do dinheiro provoca, por seu lado, a dissolução e o esfacelamento do grande círculo de cuja unidade ele dependia. Pode ser que uma relação puramente formal e simbólica tenha contribuído de alguma forma para esses fenômenos. Um dos traços essenciais do ouro e da prata é sua relativa indestrutibilidade, que faz com que seu quantum global permaneça quase constante durante longos períodos, pois qualquer quantidade acrescida através da prospecção é mínima em relação à já existente. Enquanto a maioria dos outros objetos se desgasta, desaparece no fluxo constante e é novamente substituído, o ouro permanece em sua quase ilimitada durabilidade intocado pela mudança das coisas individuais. Dessa forma, ele se coloca acima delas, como a unidade objetiva do grupo está acima da flutuação das personalidades. Pois é isso justamente que caracteriza a forma de vida dessas abstrações concretizadas nas funções dos grupos, ou seja, que elas estejam acima das realizações singulares, formações estáveis na torrente dos fenômenos individuais, por assim dizer, integrada a elas e novamente delas destacadas: é a imortalidade do rei que, ao lado de sua personalidade contingente, de suas decisões singulares, do destino sempre em mudança de seu grupo e para a qual a relativa eternidade da moeda que traz sua efígie, serve tanto como seu símbolo quanto como sua comprovação. Foram os negócios com os príncipes que, no século XVI, criaram o negócio com dinheiro em grande estilo; as relações com os príncipes provocadas por essas transações faziam com que o comércio de mercadorias, desde então ainda ligado a elas, parecesse coisa de plebeu enquanto o mercador de dinheiro se elevava, analogamente, à dignidade real. Assim, também o ódio dos socialistas às finanças não se deve unicamente à dita supremacia, em uma economia privada, do capitalista sobre o trabalhador, mas também a seus instintos antimonarquistas; pois mesmo que a objetivação da totalidade do grupo, necessária ao

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** Moeda de ouro inglesa no valor de uma libra esterlina. (N.T.)

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dinheiro, não ocorra na forma monárquica, foi justamente essa forma que permitiu, de modo mais marcante na história moderna, a introdução do poder central nas funções econômicas do grupo. Mesmo as residências fixas dos príncipes, que favoreciam a centralização, só foram possíveis graças aos impostos em dinheiro; aos impostos naturais não transportáveis corresponde o deslocamento da corte que os consome, em toda parte, in natura. É nesse mesmo sentido que a moderna política fiscal procura, muitas vezes, deixar às municipalidades o imposto sobre a propriedade, atribuindo ao Estado o imposto sobre a renda. Na medida em que se dirige apenas à receita do singular, a exigência fiscal do poder central compreende também a propriedade do objeto com o qual desde sempre mantém a mais estreita relação. A formação de funcionários intimamente ligados às finanças é somente um sintoma desse desenvolvimento centralista; a administração feudal descentralizada e a propriedade territorial do vassalo distante fazem com que ele se desinteresse da instância central, mas o pagamento sempre renovado em dinheiro o reconduz a ela, reforçando cada vez mais sua dependência. Por isso, em virtude da constante deterioração de sua moeda, a Porta* foi obrigada uma vez, no início do século XIX, a cunhar moedas para seus funcionários e oficiais duplamente mais pesadas, porque precisava, diante dos funcionários públicos, de um dinheiro que valesse realmente. Assim o crescimento e o aperfeiçoamento enormes do funcionalismo só foram viabilizados pela economia monetária; mas esse é somente um sintoma da relação entre o dinheiro e a objetivação dos nexos do grupo em uma formação central específica. Entre os gregos, essa relação era atribuída não à união do Estado, mas a uma unidade religiosa. Todo dinheiro helênico era antes de tudo sagrado, proveniente do corpo sacerdotal, assim como as outras unidades de medida válidas: peso, medida, contagem do tempo. E esse corpo de sacerdotes representava, ao mesmo tempo, a unificação das províncias; as associações mais antigas se baseavam unicamente em princípios religiosos que, muitas vezes, eram os únicos em uma região relativamente vasta. Os santuários tinham, para além dos particularismos, um significado centralizador, que era o que o dinheiro exprimia trazendo em si mesmo o símbolo da divindade comum a todos. A unidade social religiosa cristalizada no templo se tornava, por assim dizer, novamente fluida com o dinheiro que ele gastava, dando a esse dinheiro um fundamento e uma função para além de seu significado como peça individual de metal precioso. Fundamentado por essas constelações sociológicas e, ao mesmo tempo, fundamentando-as, a função do dinheiro cresceu às expensas de sua substância. Alguns exemplos e reflexões podem esclarecer esse processo e certamente, entre todos os serviços prestados pelo dinheiro e que lhe dão seu conteúdo, eu escolheria os seguintes: o favorecimento do comércio, a estabilidade do padrão de valor, a mobilização dos valores e a aceleração de sua circulação, sua condensação em uma forma mais concisa possível.

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** Porta, Sublime Porta ou Porta Otomana, referência ao governo do Império Otomano desde o século XVIII, era o grande portão ou portão principal (Bab i Ali) que dava acesso à sala no palácio Topkapi, em Istambul, onde o sultão recebia os embaixadores dos governos estrangeiros. (N.T.)

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À guisa de introdução, gostaria de ressaltar que as desvalorizações da moeda, mencionadas mais acima, feitas pelos príncipes em prejuízo das massas, esclarecem da maneira mais precisa o valor função do dinheiro em relação a seu valor como metal. O que obrigava os súditos a aceitar a moeda desvalorizada dando em troca outra de melhor valor era o fato de que a primeira realizava o objetivo de troca do dinheiro. A moeda que os senhores produziam era o equivalente indevidamente intensificado do valor função do dinheiro; por isso, os súditos tinham de aceitar a troca de moedas, ou seja, a abandonar por livre vontade seu valor como metal. Só que esse é somente o fenômeno geral para o qual, parece, temos a manifestação específica no fato de um dinheiro mais adaptado por sua forma às relações comerciais ser superior a outro não apenas no caso de um conteúdo substancial igual: ele pode até mesmo ultrapassar seu próprio significado substancial, como no exemplo seguinte. Quando, em 1621, a desvalorização da moeda na baixa Alemanha elevou o valor do reichstaler de 48 para 54 schillings, as autoridades de Holstein, Pomerânia, Lübeck, Hamburgo e outras publicaram um decreto segundo o qual o taler a partir de um determinado momento deveria valer apenas 40 schillings. Embora isso fosse geralmente visto como correto, saudável e aceitável, o taler continuou a valer 48 schillings por muito tempo em razão da facilidade de distribuição e de cálculo. É a mesma coisa, a um nível mais elevado e mais complexo, quando as bolsas hoje em dia, em relação aos títulos emitidos em partes grandes e pequenas, avaliam os últimos um pouco mais caros que os primeiros por que são mais procurados, mais propícios às pequenas trocas comerciais – mesmo que seus valores pro rata sejam exatamente iguais. Em 1749, um comitê de política monetária nas colônias americanas esclareceu: em países com economia pouco desenvolvida, que consomem mais do que produzem, o dinheiro tem obrigatoriamente de ser pior do que aquele do vizinho mais rico, senão migraria inevitavelmente para o país mais rico. Esse caso é também a intensificação e a culminância do fato, antes mencionado, que a qualificação de uma forma monetária determinada para cálculos e pagamentos cria para essa forma um valor que é elevado deliberadamente muito acima do objetivamente válido. A finalidade funcional do dinheiro superou aqui seu valor substancial a ponto de inverter seu significado. Aqui se incluem, como prova da passagem do valor metal para o valor funcional, todos os casos em que a pequena moeda totalmente desvalorizada em relação ao metal precioso alcança, muitas vezes, um preço incrível. Isso acontece, por exemplo, nas áreas de garimpo onde a riqueza obtida produz relações comerciais intensas, sem que se tenham meios de troca para as pequenas necessidades cotidianas. Havia, entre os mineiros de ouro no Brasil no final do século XVII, uma grande necessidade de dinheiro miúdo logo aproveitada pelo rei de Portugal, que trocava moedas de prata por um enorme ágio em ouro. Mais tarde, na Califórnia, assim como na Austrália, aconteceu de os garimpeiros pagarem de duas a 16 vezes o valor do metal em ouro para ter dinheiro miúdo. O pior caso desse tipo nos oferece a situação da moeda até pouco tempo atrás na Turquia – atualmente, diz-se, em processo de reforma. Lá não existia moeda de níquel nem de cobre, mas se usava como dinheiro trocado ligas de prata de má qualidade:

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altiliks, beschliks e metalliques, todas em uma quantidade insuficiente para o mercado. A consequência disso foi que essas moedas, cujo valor nominal foi desvalorizado pelo próprio governo, em 1880, em mais ou menos a metade, mantiveram esse valor quase inalterado, não fazendo nenhum deságio notável em relação ao ouro, e mesmo as metalliques, consideradas os piores símbolos monetários em circulação em todo o mundo, ficam, às vezes, em igualdade com o ouro! É exatamente isto que é muito característico: a moeda mais miúda é a mais importante para a circulação e é avaliada justamente por essa importância – razão pela qual também, em todo lado, as pequenas moedas são as primeiras vítimas das desvalorizações. O preço das metalliques contém o paradoxo de que um dinheiro pode ser tão mais valioso quanto menos valioso for – pois justamente sua ausência de valor substancial o torna apto a certos serviços funcionais, que podem elevar seu valor quase ilimitadamente.

A consciência crescente e a efetividade do significado funcional do dinheiro possibilitaram também as objeções contra o padrão prata: o que se exige do dinheiro é, antes de tudo, que seja necessariamente cômodo e manejável. Pode-se ter consigo alguma comida cuja utilização traga muitos inconvenientes desde que seja nutritiva e saborosa, da mesma forma alguma peça de roupa pouco confortável, por ser bela e quente. Mas um dinheiro pouco prático é como uma comida intragável ou uma roupa que não veste bem. Pois o objetivo principal do dinheiro é facilitar a troca de bens. A diferença com os bens, evocados aqui em comparação, é que o dinheiro tem, junto com sua qualidade principal, menos qualidades secundárias do que os outros bens. Como ele é a abstração absoluta acima de todos os bens concretos, toda qualidade exterior à sua determinação é impropriamente onerada e desviada.

Que a intensificação ou a diminuição da função do dinheiro possa elevar ou abaixar seu valor, independentemente de seu valor substancial, – vale mesmo para uma avaliação do dinheiro que parece estreitamente ligada a seu valor substancial: a estabilidade de seu valor. Os Césares romanos possuíam, como já mencionado, o direito exclusivo de cunhagem de moedas de ouro e prata, enquanto as moedas de cobre, isto é, as moedas para o gasto diário, eram produzidas pelo Senado e, no Oriente, pelas cidades. Isso representava, desde logo, uma garantia contra a possibilidade de o imperador inundar o país com dinheiro miúdo sem valor substancial. O resultado foi, finalmente, que o imperador se atinha à desvalorização da prata que estava à sua disposição; a partir daí, começou a queda vertiginosa do sistema monetário romano. Disso adveio uma curiosa inversão das relações de valor. Com a desvalorização, a prata despencou para o nível da moeda miúda, enquanto o cobre, por ter se mantido razoavelmente invariável, retomou em grande medida o caráter de moeda de valor. A qualidade da estabilidade do valor, em virtude de seu caráter relativamente elevado ou rebaixado, é aqui capaz de inverter completamente as características habituais das substâncias de metal como portadores do valor monetário. No sentido dessa

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preponderância do valor estabilidade sobre o valor substancial, já foi enfatizado aqui que a passagem, em um país, do papel moeda ao padrão ouro de modo algum deve trazer consigo de volta o pagamento em dinheiro. Em um país como a Áustria, por exemplo, cujas notas nem fazem mais deságio em relação à prata, foi através da passagem pelo simples cálculo sobre o ouro que se obteve a vantagem decisiva do padrão ouro, a saber, a estabilização do valor do dinheiro: a função da substância, que é o que importa, seria alcançável mesmo sem a própria substância. E recentemente o interesse pela estabilidade do valor da moeda fez com que se abandonasse completamente a cobertura das notas pelas reservas de ouro. Pois, ao existir, os diferentes países entram em um sistema comum que submete as transações internas de cada um a todas as flutuações que agitam os destinos políticos e econômicos dos outros! Um papel-moeda sem cobertura oferece, em virtude de não servir para a exportação, não apenas a vantagem de permanecer no país, disponível ali mesmo para qualquer empreendimento, mas, acima de tudo, para a estabilidade total de seu valor. Mesmo sendo uma teoria discutível, sua mera possibilidade nos mostra a separação psicológica do conceito de dinheiro do conceito de substância e sua crescente realização através da ideia de seu papel funcional. Ademais, todas as funções do dinheiro estão visivelmente submetidas às condições que se baseiam em sua dissolução generalizada em funções: a cada momento, valem apenas parcialmente e seus conceitos indicam uma finalidade de desenvolvimento que se situa no infinito. O fato de os valores que o dinheiro avalia e cuja relação recíproca deve exprimir serem algo meramente psicológicos impossibilita a estabilidade na medida de espaço e peso.

Entretanto, na prática contamos com a estabilidade do valor ao nos depararmos com a questão de saber como nos comportar, no caso da restituição de um empréstimo, quando o valor do dinheiro muda nesse meio tempo. Se isso acontecesse durante a queda do valor do dinheiro de tal modo que a mesma soma tem menos valor na hora da devolução, nada disso seria levado em conta pela legislação; a mesma soma em dinheiro vale certamente pelo mesmo valor. Quando a moeda se desvaloriza, seja pela qualidade da liga, seja pela mudança do padrão monetário, as leis decidem se será preciso restituir a soma correspondente, calculada a partir do novo padrão, de acordo com a mesma quantidade de metal de boa qualidade ou por seu valor nominal. De modo geral, portanto, vence a ideia de que o dinheiro mantém seu valor inalterado. Ora, essa estabilidade, assim como a dos objetos naturais, da qual ninguém duvida no momento do empréstimo, é uma ficção: meio quintal de batata que se pede emprestado na primavera para restituir mais tarde in natura pode valer então pouco mais ou pouco menos. Só que aqui podemos voltar ao significado imediato do objeto: enquanto o valor de troca da batata pode oscilar, seu valor de saciedade e de nutrição permanece exatamente o mesmo. Como o dinheiro não tem nenhum outro tipo de valor, a não ser o de troca, a hipótese de sua estabilidade é ainda mais surpreendente. O desenvolvimento voltado a fins tende a confirmar mais e mais essa ficção na prática necessária. Já foi

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ressaltado a respeito do dinheiro feito de metal precioso que sua ligação com as joias serve a estabilidade de seu valor: pois, sendo a necessidade de joias tão elástica, a cada aumento das reservas de metal, ela consome imediatamente uma grande quantidade, impedindo assim a forte pressão sobre seu valor, enquanto, em caso de necessidade crescente de dinheiro, as reservas de joias servem como reservatório de onde tirar o quantum necessário e limitar o aumento de preço. Mas a continuar essa tendência, o objetivo parece ser a eliminação da substância do dinheiro. Pois mesmo uma substância tão apropriada quanto o metal precioso não pode escapar totalmente às oscilações causadas por suas próprias condições de demanda, de produção, de fabricação, etc. e, até certo ponto, nada têm a ver com o papel de meio de troca e expressão do valor relativo das mercadorias. A estabilidade completa do dinheiro só seria atingida se ele não fosse mais nada para si, mas apenas a pura expressão das relações de valor entre os bens concretos. Assim, chegaria a uma imobilidade que seria tão pouco alterada pelas oscilações dos bens quando o metro pelas diferenças entre as grandezas reais que mede. E também o valor que ele teria pela prestação desse serviço atingiria um máximo de estabilidade, pois assim a relação entre oferta e demanda se deixaria regular de modo muito mais preciso do que em uma dependência de uma substância cujo quantum só se submete imperfeitamente à nossa vontade. Com isso não se quer negar que, em determinadas condições históricas e psicológicas, a ligação com o metal garanta ao dinheiro uma estabilidade ainda maior do que sua separação dele – como já assinalei mais acima. Então pode ser – para se retomar a analogia mencionada antes – que o amor mais profundo e mais sublime seja aquele que existe entre duas almas, sob total eliminação de qualquer resíduo terrestre – mas como esse amor é inacessível, um máximo de sentimento de amor vai manifestar-se lá onde a relação puramente espiritual obtém um suplemento e uma mediação através da proximidade e da atração sensível; assim o paraíso só cumpre as maravilhosas promessas de felicidade quando a consciência dessa felicidade não requer o contraste de sentimentos opostos – mas, enquanto formos humanos, só outros estados de alma existentes, como dor, indiferença, depressão, podem nos trazer, como sentimentos contrastantes, uma felicidade positiva. Se, em uma constituição social ideal, um dinheiro completamente destituído de sua substância fosse o meio de troca absolutamente adequado à sua finalidade, então até lá sua relativamente alta adequação aos fins estaria condicionada à sua ligação a uma substância. Esta última circunstância não significa nenhum desvio do caminho infinito que leva à dissolução do dinheiro em um suporte meramente simbólico de sua pura função.

Podemos observar um momento particular do processo de separação entre valor função e valor inerente do dinheiro nos casos em que, para a avaliação dos valores como padrão, utiliza-se um dinheiro com o qual não se efetuam os pagamentos na realidade. O dinheiro não pode prestar o serviço de troca, sem prestar também o serviço de medida; embora de certo modo o último se mostre independente do primeiro. No

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Egito antigo, os preços eram determinados pelo uten, um pedaço de fio de cobre torcido, mas os pagamentos eram efetuados com os mais diversos artigos de primeira necessidade. Na Idade Média, o preço em dinheiro era fixado de variadas formas, mas o comprador podia pagar in quo potuerit. Em muitos lugares da África, a troca de bens se realiza, hoje em dia, segundo um padrão monetário, muitas vezes, bastante complicado, mas, em geral, o dinheiro mesmo não é encontrado. Os negócios das feiras de troca extraordinariamente importantes dos genoveses do século XVI eram realizados segundo a unidade de valor do scudo de’ marchi. Esse não estava expresso em nenhuma moeda existente, era, antes, puramente imaginária: 100 scudi valiam cerca de 99 dos melhores escudos de ouro. Todas as obrigações eram feitas em scudi de’ marchi donde a medida monetária, justamente por seu caráter ideal, era uma moeda perfeitamente sólida, alheia às oscilações e confusões da moeda cunhada. Até a Companhia da Índia introduziu o rupee current para se contrapor à desvalorização, à deterioração e à falsificação da moeda indiana; uma moeda jamais cunhada, que correspondia a uma determinada quantidade de prata e que só estabelecia um padrão para as moedas reais deterioradas. Essas ganharam assim, através de um padrão ideal tão sólido, também a solidez de seu valor relativo. Assim chegamos quase ao ponto que um teórico do século XIX tinha diante dos olhos. Na medida em que ele afirma que todo dinheiro, seja na forma de moeda ou outra, que possibilite a circulação, é um título usado na troca de bens, chega enfim à negação da realidade do dinheiro: ele opõe simplesmente o dinheiro à moeda e designa a última como “título”, calculado a partir do dinheiro, enquanto dinheiro mesmo seria o padrão ideal para todos os valores correspondentes aos bens. Aqui, portanto, o princípio do scudi de’ marchi é transformado em teoria geral, o dinheiro, de tal modo idealizado em uma forma pura e em um conceito relacional, que não coincide mais com nenhuma realidade palpável, a única relação que tem com ela é a que a lei abstrata tem com o caso empírico (não entendi esse período). Nas ocorrências precedentes, a função de medida de valor se separa de seu suporte substancial: a moeda de cálculo aparece deliberadamente em oposição à moeda de metal, para estabelecer seu lugar para além de si mesma. No contexto em questão, o dinheiro ideal presta o mesmo serviço que o bom dinheiro, porque até este só é bom em virtude de sua função: a de segurança na mensuração de valores que se realizam com sua ajuda.

Ora, isso nos leva ainda mais longe, aos casos em que o valor do dinheiro é substituído por equivalentes na medida em que esses fazem aparecer a mobilização dos valores como um dos serviços essenciais do dinheiro. Quanto mais o significado do dinheiro como meio de troca, padrão de valor, meio de conservação, etc. cresce de sua insignificância original para a preponderância sobre o dito valor de substância tanto mais o dinheiro pode circular no mundo em outras formas que não a de metal. E o desenvolvimento que leva da rigidez limitada e da fixidez substancial do dinheiro a esses representantes continua valendo no interior desses últimos. Por exemplo, na evolução das notas promissórias que valem de pessoa a pessoa para o título ao portador.

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Os vários degraus dessa evolução devem ainda ser perseguidos. A cláusula que acompanha o reconhecimento da dívida que o portador, e não apenas aquele que verdadeiramente empresta, tem direito de cobrança, já existia na Idade Média; não para transferir seu valor, mas para facilitar a cobrança por um representante do credor. Essa mobilização puramente formal do papel se tornou mais efetiva com o billet em blanc que circulava na Bolsa de Lyon. Este reenviava formalmente a um devedor individual cujo nome não está ali escrito; mas desde que se escreva um nome no lugar vazio, então o devedor passa a ser determinado individualmente. As verdadeiras transações comerciais com simples títulos ao portador começaram no século XVI, na Antuérpia; sabemos que, no começo, eles seriam, muitas vezes, rejeitados no dia de vencimento se não tivessem uma nota de cessão particular, de modo que sua validade teria de ser fixada por uma ordem imperial. Temos aqui uma progressão bem clara. O valor em questão é, por assim dizer, ajustado através de títulos de dívida determinados individualmente entre credor e devedor; esse papel ganha sua primeira mobilidade quando pode ser resgatado pelo menos por uma outra pessoa, mesmo pago pelo credor original; esse movimento se amplia na medida em que o papel em branco é postergado, embora não se elimine a designação de um credor até que, finalmente, seu valor se torne totalmente móvel com o título ao portador, que, como uma moeda, pode passar de mão em mão. Isso aparece como a contraface ou a virada subjetiva, por assim dizer, da evolução, observada mais acima, nos títulos emitidos pelo Tesouro Nacional. Dado que esses eram estabelecidos não mais sobre a receita particular da coroa, mas sobre as receitas do Estado, eles perdem sua rigidez em relação aos devedores, saem de sua limitação substancial para entrar no movimento geral da economia do Estado e, como a comprovação de sua qualidade particular não mais existe, se tornam suportes com uma mobilidade infinitamente maior.

Com a aceleração geral da circulação dos valores, desenvolve-se imediatamente a relação entre a substância e a função do dinheiro. Contra uma concepção unilateral da relação entre o dinheiro e seus substitutos já foi ressaltado que esses últimos – cheques, letras de câmbio, warrants e giro bancário – não eliminam, mas provocam uma circulação mais rápida. Pode-se ver justamente essa função dos representantes do dinheiro no fato de as notas passarem de valores grandes e, portanto, de mobilidade difícil a valores cada vez menores: até 1759, o banco inglês não emitia nenhuma nota menor do que 20 libras, o Banco da França, até 1848, só as de 500 francos. Na medida em que esses substitutos aparecem no lugar dos pagamentos em dinheiro, o singular é poupado de ter em caixa uma grande soma em dinheiro, mas a maior vantagem é que o dinheiro disponível pode ser usado de outras maneiras, pelos bancos, por exemplo. O que se poupa aqui não é simplesmente o dinheiro, mas seu passivo estar ali, no caixa. Deve-se observar também que crédito e dinheiro vivo, longe de se substituírem um ao outro simplesmente, comunicam um ao outro um movimento mais animado. Quando grande parte do dinheiro vivo está no mercado, cresce também a economia do crédito

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atabalhoadamente e até de modo patológico: foi assim, no século XVI, quando à grande importação de metal se associou uma vasta e insegura expansão do crédito que, na Alemanha, resultou em uma corrida febril para a fundação de novas empresas. Que dinheiro e crédito incrementem reciprocamente sua importância significa somente a mesma vocação para o serviço de função; de modo que, quando essa função se apresenta no desenvolvimento de um de maneira muito acentuada, também o outro é atingido pelo mesmo movimento agitado. Isso não contradiz, de modo algum, a outra relação entre eles, em que o crédito torna o dinheiro supérfluo: nesse sentido, ouvimos que, na Inglaterra, já em 1838, apesar da produção em crescimento vertiginoso, havia menos dinheiro vivo do que 50 anos antes, na França, menos do que antes da Revolução. Entre dois fenômenos que provêm do mesmo motivo fundamental, há uma relação dupla: por um lado, intensificam-se mutuamente, por outro, eliminam-se e se substituem – coisa fácil de conceber e nada rara. Lembro que o sentimento fundamental do amor pode expressar-se de modo sensível ou espiritual, de tal modo que essas duas maneiras de se manifestar se fortaleçam reciprocamente, mas que também tendam a se excluir e que, muitas vezes, um jogo entre essas duas possibilidades realize, de maneira mais profunda e viva, esse sentimento fundamental; relembro, a respeito disso, como as diferentes atividades do impulso ao conhecimento, tanto quando ressaltadas reciprocamente, quanto quando se suprimindo umas às outras, demonstram, da mesma forma, a unidade do interesse fundamental; finalmente, as energias políticas de um grupo se condensam, segundo a natureza e o meio dos singulares, em partes divergentes que mostram sua medida de força tanto na paixão da luta entre si quanto na associação fortuita para uma ação comum no interesse de todos. Assim o significado do crédito, tendo, por um lado, com a circulação do dinheiro vivo, uma relação de impulso recíproco, por outro, substituindo-o, aponta para a unidade do serviço que ambos prestam.

Surge então, no lugar do incremento da substância monetária, que parece fomentado pela intensificação das transações, a velocidade da circulação. Já mencionei anteriormente que, desde 1890, o banco francês havia posto em circulação 135 vezes mais dinheiro do que o que tinha depositado (54 bilhões para 400 milhões de francos), o Reischsbank alemão, 190 vezes. Raramente nos damos conta de que o dinheiro presta seu serviço com uma quantidade muito pequena de substância. O fenômeno notável de desaparecimento do dinheiro, no caso de irrupção de uma guerra ou de alguma outra catástrofe, como se ele desaparecesse sob a terra, significaria apenas a interrupção da circulação causada ou reforçada pelo medo do singular de se separar, mesmo que momentaneamente, de seu dinheiro. Em tempos normais, a velocidade de circulação leva a crer que a substância é muito maior do que na realidade é – como uma centelha brilhante que, no escuro, se move rapidamente em círculos e aparece como um grande círculo incandescente – para, no exato momento em que seu movimento termina, dissolver-se novamente em um mínimo de substância. É o que acontece de maneira

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mais acentuada com um dinheiro ruim. Pois o dinheiro pertence àquela categoria de fenômenos cuja atividade se mantém, sob condições de forma e duração regulares, em limites previsíveis e proporções determinadas, mas, no caso de desvios e deterioração, levam a prejuízos incalculáveis e quase ilimitados. Dois exemplos disso são o poder da água ou do fogo. Como o bom dinheiro não está carregado de tantos efeitos secundários quanto o ruim e, por isso, não exige em sua utilização tantas ponderações, atenção e medidas secundárias, pode então circular mais fácil e fluidamente como dinheiro. Quanto mais precisa for a forma com que o dinheiro presta seu serviço, tanto menor pode ser seu quantum e tanto mais fácil sua substituição por seu movimento. O incremento das transações tanto pode ser obtido através do aumento da substância monetária em circulação quanto da diminuição das moedas. A evolução das moedas vai, em geral, das maiores para as menores, e, sobre isso, menciono o seguinte caso: na Inglaterra, o farthing (igual a 0,12 gramas de prata) foi, durante muito tempo, a menor moeda; só a partir de 1843 foram cunhadas moedas de meio farthing. Até então todos os valores inferiores a um farthing estavam banidos das transações em dinheiro e todos os situados entre dois números inteiros de farthing dificultados. Um viajante conta que, na Abissínia, o comércio era extraordinariamente prejudicado pelo fato de se aceitar apenas um tipo determinado de moeda, o táler com a efígie de Maria Tereza de 1780, e que dinheiro trocado não havia. Se alguém quisesse comprar meio táler de cevada, teria que aceitar um outro objeto qualquer para o resto de seu dinheiro. Por sua vez, em Bornou, nos anos 60, diz-se que o comércio estava tão fácil por que o táler tinha sido dividido em 4 mil conchas de cauris e, por isso, o pobre dispunha de dinheiro para as quantidades muito pequenas de mercadoria. Claro que a diminuição da moeda tem como consequência o fato de não se fazer mais nada gratuitamente, emprestar e ajudar, que era a regra nos tempos primitivos, estão excluídos tão logo haja para os serviços mais mínimos um equivalente em dinheiro que, por isso mesmo, passa a ser exigido. Mas aquela doação sem contrapartida que, antes de tudo, é necessidade social, depois, dever moral ou gentileza voluntária, não representa ainda nenhuma economia verdadeira, capaz de desenvolvimento, assim como, ao contrário, o roubo também não. Para sê-lo, essa doação precisa vir junto com a objetivação das transações e de seus objetos. O procedimento subjetivo é certamente também de alto valor econômico – mas estabelece limites muito estreitos para a economia; e esses só podem ser ultrapassados por medidas que, por certo, destroem imediatamente esses valores, entre elas, a introdução de moedas diminutas. A evaporação da matéria monetária, por assim dizer, em átomos eleva a circulação extraordinariamente; na medida em que acelera o tempo das transações monetárias, ela aumenta seu número; ou seja, a maneira peculiar em que o dinheiro funciona é capaz de substituir o incremento quantitativo de sua substância.

Mas há também alguns préstimos do dinheiro que, desde logo, têm um sentido estranho à natureza da substância. Uma das funções do dinheiro consiste em não apenas expressar o significado econômico das coisas em sua própria língua, mas também

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condensá-lo. Na unidade da soma do dinheiro que serve para pagar um objeto, se condensam tanto os valores de todos os momentos de sua fruição, talvez divididos em um grande período, quanto os valores particulares de seus diferentes componentes, muitas vezes, distantes no espaço, assim como também os valores de todas as forças e substâncias que o prefiguram e nele deságuam. Um preço, seja qual for o número de unidades monetárias que o constituem, atua como uma unidade; graças à indistinção de suas partes que mantém seu sentido exclusivamente no nível da quantidade, formam essas partes uma unidade completa que quase não existe na vida prática. Quando se diz, mesmo de um objeto de grande valor e alta complexidade, como um terreno, por exemplo, que ele vale meio milhão de marcos, essa soma, sejam quais forem os pressupostos e as ponderações singulares que a fundamentam, resume o valor do bem em um conceito unificado, do mesmo modo que a avaliação de uma coisa unificada em si por uma moeda unificada em si, como, por exemplo: uma hora de trabalho vale um marco. Poderíamos, quando muito, comparar isso com a unidade do conceito que resume a essência de um monte de formas individuais; quando, por exemplo, concebo o conceito geral de árvore as características que abstraio das manifestações mais diversas de árvores singulares não estão mais umas ao lado das outras, mas integradas em uma entidade unificada. Como o sentido profundo do conceito é não ser uma mera junção de características, mas a unidade ideal onde essas características, apesar de todas as suas diferenças, se encontram e se fundem – também o preço em dinheiro faz convergir todo o múltiplo e extenso significado econômico do objeto para uma unidade concentrada. Parece certamente que esse caráter meramente quantitativo poderia evitar justamente o seguinte: que um marco nunca pudesse formar uma unidade com um outro marco da maneira como fazem os elementos de um corpo orgânico ou de um grupo social por que falta a eles essa relação mútua, eles permanecem para sempre ligados na forma da justaposição. Só que isso, na realidade, não vale nos casos em que a soma em dinheiro expressa o valor de um objeto. Meio milhão de marcos representa em si e para si, certamente, um simples conglomerado de unidades desconexas; mas como valor de um pedaço de terra é o símbolo unificador, a expressão ou equivalente de seu valor e tão pouco uma mera justaposição de unidades singulares do marco quanto uma temperatura de 20 graus não é a soma de 20 unidades singulares, mas um estado de calor em si totalmente unificado. Isso corresponde ao serviço prestado pelo dinheiro de condensar valores; assim, ele se junta às grandes potências culturais cuja essência é reunir a maior força possível no menor espaço e, graças à forma de concentração de energia, dominar as resistências ativas e passivas a nossos objetivos. Vale lembrar aqui a máquina e não apenas por que ela dirige as forças naturais de modo concentrado no sentido dos fins desejados por nós; mas também por que todo aperfeiçoamento da máquina e aumento de sua velocidade obriga o trabalhador a uma maior intensidade de trabalho. É por isso que os avanços de tecnologia e a redução do tempo de trabalho podem e devem andar juntos: porque as máquinas aperfeiçoadas colocam não apenas as forças naturais, mas também as forças humanas, sob uma forma mais concentrada, por assim dizer, porosa, a

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serviço de nossos objetivos. Vejo a mesma tendência cultural concretizar-se no interior de nossa imagem de mundo, no caso do domínio das leis da natureza: comparado com a prisão ao fenômeno singular, com a contingência e o isolamento do empirismo primário, a lei natural é uma condensação enorme de conhecimento; ela resume, em uma fórmula breve, o modo de aparição e desenvolvimento de inumeráveis casos singulares, pois o espírito comprime a extensão espacial e temporal do acontecimento em um sistema sintético em que o mundo inteiro se acha contido em estado latente. Em um outro polo, totalmente diferente, a substituição das armas brancas pelas armas de fogo demonstra a mesma forma de desenvolvimento. Há, na pólvora, uma enorme condensação de força que desencadeia, com um mínimo de esforço muscular, um efeito de uma extensão inalcançável diretamente. Talvez a importância e a diferenciação da personalidade no interior do movimento histórico, que aparece no lugar das organizações gentílicas, familiares e cooperativas, estejam submetidas ao mesmo princípio. Na medida em que se irradiam as forças em movimento de portadores cada vez mais individualizados e externamente mais limitados, elas parecem mais comprimidas do que antes, e os fatores do destino, que, na fusão do singular a seu grupo, estão divididos entre seus elementos, se concentram agora nele mesmo; a autodeterminação do ser humano moderno conforme a seus fins não poderia ter ocorrido se não estivesse ligada, sob a forma limitada da existência pessoal, a uma quantidade muito alta de possibilidades de ação. E isso não é contraditório com o fato de que, ao mesmo tempo, as funções dessas comunidades limitadas tenham se passado em grande parte ao grande Estado muito mais extensivo. Do ponto de vista das realizações efetivas, a forma de vida do Estado moderno, com sua organização de funcionários, seus meios de poder, sua centralização, é infinitamente mais intensa do que a das pequenas comunidades primitivas. O Estado moderno repousa sobre uma imensa concentração, imbricação e unificação de todas as forças políticas; de modo que se pode dizer diretamente: diante do desperdício de energia de uma nação subdividida em pequenas comunidades autônomas e encerradas em si mesmas, a personalidade livre e diferenciada, assim como, por outro lado, o grande Estado moderno, apresenta uma incomparável concentração de forças; as tensões sociais são aí levadas a uma forma tão concisa que, diante de qualquer exigência singular, basta um gasto mínimo de energia para se obter um máximo de resultado. É interessante notar como o dinheiro não apenas se inclui entre os exemplos dessa tendência histórica à condensação de forças, expressando o valor das coisas de modo mais sintético e concentrado, mas também tem uma relação direta com muitos outros fenômenos com a mesma orientação, mas pertencentes a domínios totalmente diversos. Na época do surgimento das armas de fogo, a pecunia se tornou nervus belli*, a pólvora tirou as armas dos cavaleiros e dos cidadãos e as colocou nas mãos dos mercenários, fazendo de sua posse e utilização um privilégio de quem tinha dinheiro. Nem é preciso demonstrar quanto o aparecimento e progresso da técnica está ligado à natureza do

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** Pecunia nervus belli – o dinheiro é o nervo da guerra. (N.T.)

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dinheiro. Mas cabe, a mim, comprovar, mais à frente, que o desenvolvimento que vai da formação dos grupos primários à liberação da individualidade, por um lado, e à ampliação do grande Estado, por outro, tem uma relação muito estreita com o surgimento da economia do dinheiro. Encontramos assim a tendência cultural à condensação de forças em toda sorte de conexões diretas e indiretas com a forma monetária do valor. Todos os significados indiretos do dinheiro para os outros aspectos do processo cultural dependem de seu serviço essencial, que o valor econômico das coisas obtenha com ele sua expressão mais concisa e um substituto de intensidade absoluta. Quando tradicionalmente contamos entre os principais serviços do dinheiro que ele é um meio de conservação e transporte de valores, nos atemos apenas aos aspectos mais grosseiros e secundários dessa função fundamental. Mas essa função fundamental não tem obviamente nenhuma relação íntima com o fato de o dinheiro estar ligado a uma substância; com ela fica mais claro que a essência do dinheiro são as representações investidas nele, para além de seu significado próprio como suporte. Quanto maior o papel do dinheiro como condensador de valores – e isso não pelo incremento do valor de seu quantum singular, mas através da extensão de sua função a cada vez mais objetos, através da condensação de valores sempre diferentes nessa forma – tanto mais ele se afasta de uma ligação necessária à substância; pois, em sua uniformidade e rigidez mecânica, a substância se torna cada vez mais inadequada à plenitude, à mudança e à diversidade dos valores que são projetados e condensados no conceito de dinheiro.

Pode-se chamar isso de espiritualização crescente do dinheiro. Pois a essência do espírito é proporcionar ao múltiplo a forma da unidade. Na realidade sensível, tudo está justaposto, mas no espírito há uma integração. Por meio do conceito, quaisquer traços característicos se fundem em uma unidade, por meio de um juízo, sujeito e predicado se tornam uma unidade para a qual não encontramos nenhuma analogia na percepção imediata. Como uma ponte que liga a matéria ao espírito, o organismo é certamente um começo disso, com a interação entrelaçando seus elementos, ele é um esforço continuado em direção a uma unidade perfeita e inalcançável. Só no espírito a interação dos elementos se torna uma verdadeira interpenetração. A interação na troca proporciona ao valor essa unidade espiritual. É por isso que o dinheiro, abstração dessa interação, só pode encontrar em tudo que é espacial e substancial um símbolo, pois a descontinuidade do sensível contradiz sua essência. Só quando a substância se afasta, o dinheiro se torna realmente dinheiro, ou seja, uma integração real e um ponto de unificação de elementos de valor em interação, o que só pode ser uma ação do espírito.

Quando os serviços prestados pelo dinheiro se realizam, em parte, próximos à sua substância, em parte, independentes de sua quantidade, e quando isso faz seu valor despencar – não significa que o valor do dinheiro em si tenha caído, mas o valor da quantidade de dinheiro concreta, singular. Ambos são tão diferentes que se pode dizer:

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quanto menor for a quantidade de dinheiro, mais valor tem o dinheiro em si. Pois só porque o dinheiro se tornou muito barato e qualquer soma dele menos valiosa, pode ele alcançar ampla difusão, rápida circulação e utilização em toda parte que garanta seu papel hoje. No interior do indivíduo, ocorre a mesma relação entre quantidades de dinheiro singulares e sua totalidade. As pessoas que gastam mais fácil e generosamente quando se trata de uma despesa particular são aquelas mais dependentes do dinheiro. É esse também o significado da expressão que diz que só uma pessoa que tem muito dinheiro pode desprezá-lo. Em épocas calmas e lugares tranquilos, com um tempo econômico mais lento, quando o dinheiro fica muito mais tempo em um mesmo lugar, sua quantidade singular se torna mais valiosa do que na febre econômica das grandes cidades de hoje em dia. A circulação rápida produz o hábito de gastar e de receber, torna qualquer quantidade singular psicologicamente indiferente e sem valor, enquanto o dinheiro em geral fica cada vez mais importante por que o comércio com dinheiro afeta mais intensiva e extensivamente o singular do que o faria em uma existência menos agitada. Trata-se aqui de um modelo amplamente difundido: o valor de um todo se eleva na mesma relação em que a de suas partes individuais diminui. Lembro, a propósito, que a medida e o significado de um grupo social crescem quanto menos a vida e os interesses de seus membros como indivíduos forem valorizados; que a cultura objetiva, com a multiplicidade viva de seus conteúdos concretos, alcança seu mais alto nível com a divisão do trabalho que expulsa, muitas vezes, o portador singular e participante dessa cultura para a especialização monótona, a limitação e a atrofia: o todo é tão mais perfeito e harmônico quanto menos o singular for ainda um todo harmônico. Essa forma se apresenta também objetivamente. O encanto particular e a perfeição de certos poemas consistem no fato de que as palavras em si não deixam passar nenhum sentido autônomo com ressonâncias psicológicas além daquele que serve o sentido dominante ou o fim artístico do todo; o conjunto das associações que constituem o significado próprio de uma palavra se retira completamente e, para a consciência, apenas aqueles dirigidos ao centro do poema são iluminados; de modo que o todo é da mesma maneira mais artisticamente perfeito na medida em que seus elementos perdem seu significado individual unicamente para si. E finalmente um exemplo totalmente exterior. O valor de produção, assim como o valor artístico, de um mosaico é tão maior quanto menores forem suas pedras; as cores do todo são mais exatas e matizadas quando cada parte oferece uma superfície colorida tão mínima quanto possível, tão simples e insignificante em si. No campo das avaliações, não é extraordinário que os valores do todo e das partes se desenvolvam de modo inversamente proporcional, e isso não se deve a um acaso, mas a uma causa direta: que qualquer soma de dinheiro singular tenha menos valor hoje do que há um século é a condição imediata para o enorme crescimento do significado do dinheiro. E essa condição depende, por seu lado, do crescimento do valor função do dinheiro em detrimento de seu valor de substância. Isso aparece não apenas no dinheiro em geral, mas também nos fenômenos singulares dele decorrentes: a taxa de juros se manteve extremamente alta enquanto havia poucos empréstimos a juros, em

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parte por causa da doutrina da igreja sobre a usura, em parte por causa das relações econômicas naturais; os juros adquirem uma importância maior à medida que se tornam mais baixos.

E mesmo do ponto de vista teórico seria um grande erro interpretar o desenvolvimento que vai da substância à prestação de um serviço como um devir “sem-valor” do dinheiro, como se tivessem tirado dele tanto quanto a alma a um ser humano – ou seja, tudo. Essa concepção passa longe do principal, porque as funções nas quais o dinheiro se dissolve são por si mesmas valiosas e fornecem a ele um valor, que, no caso do dinheiro de metal é adicional, mas no caso do dinheiro-símbolo é único; ele é tão seguramente um valor quanto o é uma locomotiva no exercício de suas funções de transporte, um valor maior do que seu material. Claro que ele pode exercer as funções de dinheiro por que é um valor; mas também se torna um valor por que exerce essas funções. Atribuir o valor do dinheiro a seu valor de substância significa o mesmo que atribuir o valor da locomotiva a seu peso em aço, acrescido ainda do valor de trabalho nela contido. Mas justamente essa analogia parece contradizer a admissão de um valor especial que emana da função. O preço de uma locomotiva – não é necessário nesse contexto fazer a distinção entre valor e preço – consiste evidentemente de valor material + valor forma, ou seja, + valor da força de trabalho aí investida. É por que a locomotiva, assim como o dinheiro, permite a troca de objetos que lhe atribuímos um valor, mas a medida desse valor não depende de modo algum disso; também a utilidade permite a inúmeros objetos que eles tenham um preço no mercado, embora o nível de tal preço seja determinado por outros motivos; a utilidade estabelece para esses objetos um limite além do qual o preço não deve subir, mas não pode determinar sua grandeza positiva. Como essa comparação vale, então parece que o valor do dinheiro retorna de suas funções à sua substância. Mas, no momento decisivo, ela não vale mais. Que uma locomotiva seja paga apenas por seu valor material e seu valor de forma depende unicamente do fato de qualquer um poder construir uma locomotiva e, por isso, a ideia, sem a qual material + força de trabalho não resultaria nunca em uma locomotiva, não tem nenhuma influência sobre a formação do preço. Se houvesse uma patente para as locomotivas, ela mostraria no preço elevado que lhes é concedido o valor que elas possuem para além da soma de valor material mais valor de trabalho; tão logo a ideia se torna um bem comum, suas realizações perdem o caráter de “raridade”, e só a raridade pode fazer com que o significado funcional exerça um efeito especial sobre o preço. Mas há alguma coisa no dinheiro que corresponde à patente: o direito de cunhagem dos governos que impede a realização da ideia do dinheiro a pessoas não autorizadas; sobre esse monopólio do governo repousa a “raridade” do dinheiro, seja parcialmente na forma de metal precioso, ou completamente quando é de papel ou moeda. No primeiro caso, uma lei chinesa expressa com a precisão característica o monopólio do governo punindo mais severamente os falsários que utilizam o metal puro do que os que usam metal de menor valor: porque, assim se justifica, o primeiro entra em flagrante

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concorrência com o governo e intervém muito mais profundamente em suas prerrogativas, do que o segundo! Se qualquer um pudesse cunhar moedas então seu valor cairia com certeza para a soma valor material + valor forma – com o que qualquer monopólio seria eliminado assim como suas vantagens. Por isso, já foi notado pelos etnólogos que onde qualquer um pode produzir dinheiro, como no caso das conchas, o lugar de poder dos ricos e dos chefes é facilmente abalado. Inversamente, todo aquele que possui dinheiro participa pro rata do privilégio do Estado de cunhar moedas – como o comprador de um objeto patenteado compartilha da patente do inventor. Graças ao direito de cunhar moedas reservado ao poder central, que garante ao dinheiro a possibilidade constante de funcionar como dinheiro, essas funções adquirem, por sua vez, a possibilidade de acrescentar ao valor material e valor forma do dinheiro uma quantidade de valor com efeitos mais amplos ou, no caso daqueles faltarem, de lhe conferir um valor. Muito característico a esse respeito é uma norma do direito romano, já da era republicana. Desde a introdução da moeda cunhada no lugar da moeda de cobre com base no peso, os romanos trataram de tornar aceitáveis estas últimas legalmente, por seu valor convencionado, mesmo que seu valor efetivo não correspondesse. Essa independência do metal exige, no entanto, uma cláusula suplementar: o dinheiro é então somente essa moeda, sendo todas as outras meras mercadorias; todas as ações por causa de dívidas devem se basear nessa moeda, as dívidas anteriores são, como as dívidas em mercadoria, pagáveis apenas em valor real e não por seu valor nominal como dinheiro (quanti ea res esti). Isso significa, portanto, que o valor do outro dinheiro não era valor monetário, mas valor material, porque só à moeda legal se reservava a função monetária. Por isso mesmo a moeda legal adquiriu um valor que as outras só podiam adquirir com seu suporte, justificando assim sua independência em relação a seu valor intrínseco. Assim como a medida de um litro tem valor econômico não por conter matéria e forma – porque se não fosse útil para alguma finalidade fora de si mesma, ninguém a desejaria – mas porque cumpre, conforme a seus fins, a função de medir, assim também o valor do dinheiro reside no serviço de medir, entre outros que presta. O fato desse valor só poder ser expresso com suficiente generalidade em dinheiro torna mais difícil reconhecê-lo do que a medida de um litro cujo valor é expresso por algo além dele mesmo. O serviço do dinheiro constitui seu “valor de uso”, que deve expressar-se de alguma forma em seu valor de troca; o dinheiro é um desses objetos cujo “valor de uso”, ligado à cunhagem pelo governo, contém ao mesmo tempo o “valor de raridade” que implica, como já demonstrei, essa cunhagem. A teoria da substância do dinheiro se defende da inevitável tendência do conhecimento de deslocar o significado das coisas de seu terminus ad quo para seu terminus ad quem; não é o que, mas o para que que empresta a ele seu valor, de tal modo que, mesmo que seja um valor original que o dispôs a exercer suas funções, ele adquire valor exercendo essas funções e obtém novamente em um grau mais elevado o que abandonou em um mais baixo.

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Se então, nos desenvolvimentos descritos acima, o dinheiro tendesse a um ponto em que, tornado símbolo puro, se voltasse totalmente a seus fins de troca e medição, inúmeros fenômenos paralelos mostrariam a tendência geral da história do espírito (Geistesgeschichte) que levam a essa direção. O interesse que temos, de modo primário e espontâneo, pelos fenômenos toma-os como um todo indiferenciado: como eles aparecem a nós como unidade de forma e conteúdo, então nosso sentimento de valor se liga tanto à sua forma, porque ela é a forma desse conteúdo, quanto a seu conteúdo, porque é o conteúdo dessa forma. Em níveis mais elevados, esses elementos se distinguem, e modos particulares de avaliação se dirigem para a função como pura forma. A pluralidade de conteúdos trazidos por ele é insignificante em relação a essa forma. Assim podemos, por exemplo, admirar uma atmosfera religiosa, mantendo uma indiferença em relação a seu conteúdo dogmático. A presença dessa elevação, dessa intensidade, dessa paz na alma, traços gerais no interior da infinita diversidade de conteúdos das crenças históricas – é o que sentimos como algo de valor. Assim, uma demonstração de força como tal nos inspira um respeito que recusaríamos a seus resultados. Portanto, um interesse estético refinado se dirige sempre mais àquilo que na obra de arte é arte pura, a forma da arte no sentido mais amplo, ficando indiferente a sua matéria, ou seja, a seu tema e aos sentimentos originais em cuja sublimação e objetivação ocorre a verdadeira função estética, tanto na produção quanto na recepção. Assim, percebemos o conhecimento como algo de valor, como essa pura função formal do espírito, de refletir o mundo em si, e indiferente ao fato de os objetos ou resultados do conhecimento são gratificantes ou não, utilizáveis ou puramente ideais. Essa diferenciação do sentimento de valor tem ainda um lado notável. Todo o desenvolvimento do espírito moderno naturalista caminha no sentido da destituição do conceito de universal e a sublinhar o singular como o único conteúdo representacional legítimo. Tanto na teoria quanto na prática da vida, o universal é tratado como coisa puramente abstrata que só pode encontrar seu significado na matéria, ou seja, na singularidade palpável; na medida em que se eleva acima disso, acredita-se cair no vazio. Todavia, o sentimento para a importância do universal, que atingiu seu ponto mais alto com Platão, não desapareceu, e só adquiriríamos uma posição satisfatória no mundo se cada ponto da imagem que temos dele conciliasse a realidade concreta do singular com a profundidade e a amplitude do universal-formal. Assim, o historicismo e a concepção social do mundo são uma tentativa de afirmar o universal negando, porém, seu caráter de abstração: de se elevar acima do singular, de derivar o singular do universal, sem sacrificar sua realidade material; pois a sociedade é o universal que não é abstrato. Nesse sentido, se encontra essa avaliação da função em sua separação do conteúdo. A função é o universal em relação a um fim específico que ela serve: o sentimento religioso é o universal em relação conteúdo da fé, o conhecimento, o universal em relação a seus objetos singulares, qualquer força em geral, o universal em relação a suas tarefas específicas, em relação a cuja multiplicidade ela se comporta sempre da mesma maneira – como uma forma ou suporte que recebe as matérias mais

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diversas. Nessa tendência evolutiva, o dinheiro parece tomar parte quando o sentimento de valor a ele ligado se torna independente de sua matéria e se transporta para sua função que é um universal, embora não seja abstrata. A avaliação, que, no começo, se dirigia a essa unidade constituída por uma matéria exercendo essa função, se diferencia e, enquanto o metal precioso como tal é cada vez mais estimado, sua função, supra-individual em relação a alguns de seus suportes materiais, adquire um valor particular e autônomo. Que o dinheiro seja o mediador de trocas e sirva para medir valores é, por assim dizer, a forma de sua existência para nós; à medida que o metal aceita essa forma, torna-se dinheiro – como as ideias sobre o supraterrestre se tornam religião à medida que a função religiosa do sentimento o aceita, e, como o mármore, se torna obra de arte quando a produtividade artística lhe dá a forma que não é nada além dessa função solidificada no espaço. O refinamento da percepção do valor desfaz essa imbricação original e deixa a forma ou a função transformar-se para nós em um valor autônomo. Claro que o valor do dinheiro tem de ter um suporte: porém, o mais importante é que ele não mais provém de seu suporte, mas, ao contrário, o suporte é o totalmente secundário e se sua natureza e seu ser em si importassem ainda alguma coisa seria apenas por razões técnicas exteriores ao sentimento de valor.

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