SIMMEL - Questões Fundamentais - eBook

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  • 1-O mbito da sociologia

    A tarefa de apontar diretrizes para a cincia da sociologia encon-tra a primeira dificuldade em sua pretenso ao ttulo de cincia, uma vez que essa pretenso no est, de maneira alguma, isenta de controvrsias. Mesmo quando o ttulo lhe atribudo, disse-mina-se, a respeito de seu contedo e seus objetivos, um caos de opinies cujas contradies e pontos obscuros sempre alimentam a dvida para saber se a sociologia tem a ver com um questiona-mento cientificamente legtimo.

    ~ falta de uma definio indiscutvel e segura poderia ser contornada se ao menos existisse um conjunto de problemas sin-gulares, que~ deixados de lado por outras cincias, ou por estas ainda no esgotados, tivesse o fato ou o conceito de "socieda-de" como um elemento a partir do qual tais problemas possus-sem um ponto nodal em comum. Se esses problemas singulares fossem to diversos em seus outros contedos, direcionamentos e encaminhamentos a ponto de no se poder trat-los adequa-

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    1 Se, para a primeira crtic3, a s.Q_c_i~~j_qe ~!g.fl_i_fi

  • 10 Questes fundamentais da sociologia

    real - concluir que cada conhecimento, no que diz respeito s suas S:!JJc;;ses, tome para si como objeto abstraes especulativas

    -:::::. irrealidade.s. Nosso pensamento tende q'{1l(lSe seriJj?te a sintetizar tanto mais os dados como constructos ( Gebilde) que como obje-tos cientficos. que tais ima~ns no encontram uma correspon-dncia nQ_,t:~~l imediato.

    Ningum se il!!]!!l~da ao falar, por exemplo, do desenvol-virp.ento do estilo gtico, ainda que no exista em lugar algum um estilo gtico como existncia demonstrvel, mas sim obras isoladas nas quais os elementos estilsticos no se encontram evidentemente separados dos elementos individuais. O estilo gtico, como objeto coerente do conhecimento histrico, um constructo intelectual proveniente da realidade, mas no em si uma realidade imediata. Po:_}~_~_

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    aquela singularidade, mas sim__QLgregos-e.ospersas- evidente-mente.uma..GQ.nstru~o--intei-ramente diversa, qu..e vem tona por lll~io de certa sQ_~~~~ intele;_ty._l, e no por intermdio da oh~ servao de indivduos considerados isoladamente. Seguramente cada um dessesein.d,ix!Quos tem seu comportamento conduz~do

    por um out~o, c~ desenyQJyimento de.algum nwdo diferente, e .P_!OYavelmente nenhum se comporta exatamente como o outro; em nenhum indivduo se encontram postos, lado a lado, o ele-mento que o iguala e o elemento que o separa dos demais; ambos os elementos con.s_tt:oe~ a unidade indivisvel da vida pessoal. a partir deste conceito, todavia, ~J~~n1amos a unidade mais

    el~da, as_ab~r, os .gregos e os pers.'ils. Mesmo a reflexo mais des-cuidada mostra que, com tais conceitos, podemos nos lanar constantemente s existncias individuais.

    Se somente as existncias individuais fossem "verdadeiras", e quisssemos descartar de nossa rea de conhecimento todos os novos constructos intelectuais, ela se . privaria de sua substncia mais legtima e inquestionvel. Mesmo a afirmao recorrente de que s h indivduos humanos, e que por este motivo some_!lte estes seriam objetos concretos de uma cincia, no nos pode im-pdir de falar da histria do catolicismo, da socialdemocracia, dos estados, dos imprios, do movimento feminista, da situao da manufatura e ainda de outros milh:J,_!"~S de fenmenos conjuntos e formas coletivas, inclusive da prpria/'sciedad.,". Assim formu-

    \..........-'" ... lada, a "sociedade" certamente um conce"it abstrato, mas cada

    ~ . ~ -

    um dos incontveis agrupamentos e configuraes englobados em tal conceito um objeto' a ser investigado e digno de ser pesquisa-do., e de maneira alguma podem ser constitudos pela particulari-dade das formas individuais .de existncia.

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    Mas isso ainda poderia denotar uma imperfeio de nosso co-nhecimento, uma imperfeio transitria inevitvel que faria que nosso conhecimento tivesse de procurar sua plenitude, seja esta al-canvel ou no, nos indivduos entendidos como existncias con-cretas definidas. Todavia, a rigor, os indivduos tambm no so os elementos ltimos, os "tomos" do mundo humano. A unidade efetiva e possivelmente indissolvel que se traduz no conceito de "indivduo" no de toda maneira um objeto do conhecimento, mas somente um objeto da vivncia; o modo pelo qual cada um sabe da unidade de si mesmo e do outro no comparvel a qual-quer outra forma de saber.

    O que cientificamente conhecemos no ser humano so traos individuais e singulares, que talvez se apresentem uma nica vez, talvez mesmo em situao de influncia recproca, e em cada caso exige uma percepo e deduo relativamen-te independentes. Essa deduo importa, em cada indivduo, na considerao de inmeros fatores de natureza fsica, cultural e pessoal que surgem de todos os lados, alcanando distncias temporais incalculveis. apenas medida que nos isolamos e compreendemos tais elementos - que os reduzimos a elementos mais simples, profundos e distanciados- que nos aproximamos do que realmente "ltimo", real e rigorosamente fundamental para qualquer sntese espiritual de ordem mais profunda. Para esse modo de observao, o que "existe" so as molculas cro-mticas, as letras e as gotas d'gua; e assim a pintura, o livro e o rio so snteses que existem como unidade somente em uma conscincia na qual os elementos se encontram. Evidentemente, porm, esses supostos elementos tambm so constructos extre-mamente complexos.

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    E se ento a realidade verdadeira corresponde somente s uni-dades ltimas, e no aos fenmenos nos quais essas unidades en-contram uma forma- e toda forma, que sempre uma articulao estabelecida po~: um sujeito articulado r-, torna-se patente que a rea-lidade a ser conhecida se nos escapa rumo total incompreenso. A linha divisria que culmina no "indivduo" tambm um corte tota.lmente arbitrrio, uma vez que o "indivduo", para a anlise ininterrupta, apresenta-se necessariamente como uma composio de qualidades, destinos, foras e desdobramentos histricos espec-ficos que, em relao a ele, so realidades elementares tanto quanto os indivduos so elementares em relao "sociedade".

    Assim, ao remeter ao infinito e buscar o in~t!ngvel, o su-posto realismo que tal crtica procura contrapor ao conceito de sociedade - e, portanto, ao conceito de sociologia - faz com que qualquer realidade cognoscvel desaparea. Na verdade, o conhecimento precisa ser compreendido segundo um princpio estrutural totalmente diferente, segundo um princpio que, par-tindo do complexo de fenmenos que aparentemente constitui uma unidade, dele retire um grande nmero de variados obje-tos do conhecimento especficos - com especificidades que no impeam o reconhecimento desses objetos de maneira defini-tiva e unitria. Pode-se caracterizar melhor esse princpio com o smbolo das diferentes distncias que o esprito se coloca em relao ao complexo de fenmenos. nelas que se insere o esp-rito. Quando vemos um objeto tridimensional que esteja a dois, cinco, dez metros distante, temos uma imagem diferente a cada vez, e, a cada vez, uma imagem que estar "corret' a seu modo e somente nesse modo, e tambm no escopo desse modo que se cria margem para equvocos.

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    Por exemplo, se o detalhe de um quadro observado minucio-samente tal como visto com a maior proximidade ptica poss-vel for submetido posteriormente a um exame que corresponda a uma distncia de alguns metros, essa ltima perspectiva seria considerada totalmente equivocada e falseada - por mais que, partindo de conceitos superficiais, tomssemos tal exame deta-lhado como "mais verdadeiro" do que o produzido pela imagem distanciada. S que a observao extremamente aproximada tam-bm guarda alguma distncia, cujos limites subjacentes no po-dem, todavia, ser estabelecidos. A imagem obtida a partir de uma distncia, qualquer que seja ela, tem sua prpria legitimidade e no pode ser substituda ou corrigida por outra de origem diversa. Ao nos aproximarmos de certa dimenso da existncia humana, podemos ver precisamente como cada indivduo se desvincula dos demais; assumindo um ponto de vista mais distanciado, per-cebemos o indivduo enquanto tal desaparecer e, em seu lugar, se nos revelar a imagem de uma "sociedade" com suas formas e cores prprias, imagem que surge com a possibilidade de ser conheci-da com maior ou menor preciso, mas que de modo algum ter menor valor que a imagem na qual as partes se separam uma das outras, ou ainda da imagem na qual serve apenas como estudo preliminar das "partes". A diferena existente somente aquela que se d entre os diversos propsitos de conhecimento, os quais correspondem a diferentes posies de distanciamento.

    A legitimidade da independncia da perspectiva sociolgica diante do fato de que todo evento real s se produz em seres indi-viduais poderia ser justificada de modo ainda mais radical. Nem por um momento correto pensar que poderamos compreen-der a realidade imediata por meio do conhecimento de sries de

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    fenmenos individuais. Essa realidade dada, em um primeiro momento, como um complexo de imagens, como uma superfcie de fenmenos continuamente justapostos. Se articularmos essa existncia (Dasein) realmente original aos indivduos, se atribuir-mos a evidncia simples dos fenmenos a portadores individuais, e se, ao mesmo tempo, neles acumularmos fenmenos como se fossem pontos nodais, ento tratar-se-ia tambm de uma poste-rior formalizao intelectual do real imediatamente dado, que s aplicaramos a partir do hbito rotineiro e como algo obviamente dado na natureza das coisas.

    Essa realidade , caso se queira entender dessa maneira, to subjetiva quanto objetiva, posto que produz tanto uma imagem v-lida do conhecimento como uma sntese dos dados sob a categoria de sociedade. Somente os propsitos especficos do conhecimento decidem se a realidade imediatamente manifestada ou vivida deve ser investigada em um sujeito individual ou coletivo. Ambas so igualmente "pontos de vist' que no se relacionam entre si como realidade e abstrao, mas sim como modos de nossa observao, ambos distantes da "realidade" - da realidade que, como tal, no pode de qualquer maneira ser da cincia, e que somente por inter-mdio de tais categorias assume a forma de conhecimento.

    A partir de um outro ponto de vista, totalmente diferente, admite-se que a existncia humana s se realiza nos indivduos, sem que todavia com isso se reduza a validade do conceito de sociedade. Entendido em seu sentido mais amplo, o conceito de sociedade significa a interao psquica entre os indivduos. Essa definio no pode gerar o equvoco causado por alguns eventos limtrofes que nela no se adaptam: quando duas pessoas cruzam olhares fugazmente, ou quando se acotovelam em uma fila de

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    bilheteria, no poderamos dizer que esto se saciando (vergesells-chaftet). Ness~s casos, a sociao ainda to superficial e fugaz que somente se poderia falar em sociao segundo seu padro caso se considerasse que tal efeito recproco estivesse se tornando mais freqente e intenso, e que deveria ser considerado em conjunto com outros vrios efeitos que em geral lhes fossem semelhantes.

    Estaramos, porm, nos aprisionando ao emprego superficial do termo - certamente til para a prxis externa - se condicions-semos a denominao de "social" somente s interaes duradouras, quelas que j tenham sido objetivadas em formas que se cons-tituem em unidades perfeitamente caracterizadas como: Estado, famlia, corporaes, igrejas, classes, associaes etc. Alm destas, porm, h inmeras formas de relao e modos de interao en-tre os seres humanos que aparecem em casos isolados de maneira insignificante, mas que, inseridos nas formalizaes ditas oficiais e abrangentes, sustentam, mais que tudo, a sociedade tal como a conhecemos. A restrio quelas formas de interao equivale en-contrada nos primrdios das cincias da anatomia humana, que se restringiam ao estudo de grandes rgos claramente delimitados, como corao, fgado, pulmes, estmago etc., descuidando-se dos inmeros rgos e tecidos desconhecidos e sem denominao de uso corrente, e sem os quais, porm, aqueles rgos mais funda-mentais jamais produziriam um corpo vivo.

    A partir dos constructos moldados com base no modo mencio-nado, segundo o qual se formam os objetos tradicionais da cin-cia social, no possvel fazer uma composio a partir da expe-rincia apresentada na vida social; sem que sejam articuladas as interaes dos efeitos intermedirios entre inmeras snteses, que, isoladas, permaneceriam menos abrangentes, haveria um estilha- .

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    amento da vida social em inmeros sistemas desconexos. Os laos de associao entre os homens so incessantemente feitos e desfei-tos, para que ento sejam refeitos, constituindo uma fluidez e uma pulsao que atam os indivduos mesmo quando no atingem a forma de verdadeiras organizaes. Que os seres humanos troquem olhares e que sejam ciumentos, que se correspondam por cartas ou que almocem juntos, que paream simpticos ou antipticos uns aos outros para alm de qualquer interesse aparente, que a gratido pelo gesto altrusta crie um lao mtuo indissolvel, que um per-gunte ao outro pelo caminho certo para se chegar a um determina-do lugar, e que um se vista e se embeleze para o outro - todas essas milhares de relaes, cujos exemplos citados foram escolhidos ao acaso, so praticadas de pessoa a pessoa e nos unem ininterrupta-mente, sejam elas momentneas ou duradouras, conscientes ou in-conscientes, inconseqentes ou conseqentes. Nelas encontramos a reciprocidade entre os elementos que carregam consigo todo o rigor e a elasticidade, toda a variedade policromtica e a unidade dessa vida social to clara e to misteriosa.

    Todos esses grandes sistemas e organizaes supra-individuais, aos quais se deve o conceito de sociedade, no passam de cristaliza-es - dados em uma extenso temporal e em uma imagem imacu-lada - de efeitos mtuos imediatos, vividos a cada hora e por toda uma existncia, de indivduo para indivduo. No h dvida de que assim adquirem existncia e leis prprias, com as quais tambm po-dem reciprocamente se defrontar e contrapor tais expresses vivas autnomas. Mas a sociedade, cuja vida se realiza num fluxo inces-sante, significa sempre que os indivduos esto ligados uns aos ou-tros pela influncia mtua que exercem entre si e pela determinao recproca que exercem uns sobre os outros. A sociedade tambm

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    algo funcional, algo que os indivduos fazem e sofrem ao mesmo tempo, e que, de acordo com esse carter fundamental, no se deve-ria falar de sociedade, mas de sociao. Sociedade , assim, somente o nome para um crculo de indivduos que esto, de uma maneira determinada, ligados uns aos outros por efeito das relaes mtu-as, e que por isso podem ser caracterizados como uma unidade -da mesma maneira que se considera uma unidade um sistema de massas corporais que, em seu comportamento, se determinam ple-namente por meio de suas influncias recprocas.

    Diante desta ltima definio, ainda seria possvel insistir, afirmar que somente as partes materiais so a "realidade" autn-tica, e que os movimentos e modificaes causados por seus efei-tos mtuos jamais sero algo tangvel ou, em certa medida, que constituem uma realidade de segundo grau. Teriam lugar, pois, somente em suas partes substanciais. A mencionada unidade seria apenas uma viso conjunta dessas existncias materiais especfi-cas, cujos impulsos e formalizaes recebidos e partilhados teriam permanecido em cada uma das partes.

    No mesmo sentido, podemos certamente insistir no aspecto de que as realidades verdadeiras seriam apenas os indivduos hu-manos. Com isso nada se ganha. A sociedade no , sobretudo, uma substncia, algo que seja concreto para si mesmo. Ela um acontecer que tem uma funo pela qual cada um recebe de ou-trem ou comunica a outrem um destino e uma forma. Em busca apenas do que tangvel, encontraramos somente indivduos, e, entre eles, nada alm de espao vazio. Trataremos posteriormente das conseqncias dessa perspectiva. Mas se ela tambm atribui a "existncia", em sentido estrito, somente aos indivduos, ento tambm precisa deixar de lado, como algo "real" e digno de ser in-

  • O mbito da sociol,ogia vestigado, o acontecimento, a dinmica da ao e do sofrimento a partir da qual esses indivduos reciprocamente se modificam.

    O carter abstrato da sociologia/

    Qualquer cincia extrai dos fenmenos uma srie ou uma parte da totalidade ou da imediaticidade vivida, e a subsume a um conceito especfico. A sociologia no procede de maneira menos legtima que rodas as demais cincias ao dissipar as existncias individu-ais para novamente reuni-las segundo um conceito que lhe seja prprio, e assim perguntar: o que ocorre com os seres humanos e segundo que regras eles se movimentam- no exatamente quan-do eles desenvolvem a totalidade de suas existncias individuais inteligveis, e sim quando eles, em virtude de seus efeitos mtuos, formam grupos e so determinados por essa existncia em grupo? Assim ser permitido sociologia tratar da histria do casamento sem precisar analisar a vida conjugal de casais especficos; estudar o princpio de organizao burocrtica sem que seja necessrio descrever um dia na repartio; ou fundamentar as leis e os resul-tados das lutas de classe sem entrar nos detalhes do curso de uma greve ou das negociaes em torno de uma taxa salarial.

    Certamente os objetos dessas perguntas foram estabelecidos por meio de processos de abstrao. Mas assim a sociologia no se diferencia de cincias como a lgica ou a economia terica, que procedem da mesma maneira; ou seja, sob a gide de conceitos determinados -l, do conhecimento, c, da economia-, retiram da realidade formas sintticas e nelas descobrem leis e evolues, enquanto essas formas no existem como a,lgo que possa ser expe-rimentado isoladamente.

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    Caso a sociologia se mostre como uma abstrao perante toda realidade - aqui levada a cabo sob o jugo do conceito de socie-dade -, ainda assim mostra-se fraca a crtica que lhe acusa de ser irreal. Essa crtica proveniente da tendncia que atribua realidade somente aos indivduos, uma vez que essa perspectiva ainda protege a sociologia da sobrecarga que eu antes citei como um risco nada desprezvel para sua existncia como cincia. Posto que o homem est, a cada instante de seu ser e fazer, determinado pelo fato de ser social, parece ento que todas as cincias do homem teriam de se amalgamar na cincia da vida social. Essas cincias seriam apenas canais isolados e especificamente formados atravs dos quais fluiria a vida social, a nica portadora de toda fora e sentido.

    Mostrei como, com esse procedimento, nada se ganha alm de um novo nome comum para todos os conhecimentos que con-tinuaro a existir, imperturbveis e autnomos, em seus mtodos e temas, em suas tendncias e denominaes. Mesmo que esta seja uma ampliao equivocada da concepo de sociedade e de socio-logia, em seu cerne se encontra um fato significativo e fecundo. Entender que o ser humano, em toda a sua essncia e em todas as suas expresses, determinado pelo fato de que vive interativa-mente com outros seres humanos deve levar a um novo modo de observao em todas as chamadas cincias do esprito.

    At o sculo XVIII, todos os grandes temas da vida histri-ca - a linguagem, a religio, a formao dos estados e a cultura material - eram explicados como "inveno" de personalidades isoladas. Mas quando o entendimento e os interesses das pessoas no pareciam ser suficiemes para isso, restava apelar s foras transcendentais- para as quais o "gnio" de um inventor singu-lar representava um estgio intermedirio, pois com o conceito

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    de gnio somente se expressava que as foras conhecidas e con-cebveis do indivduo no eram suficientes para a produo do fenmeno. Assim, a linguagem era a inveno de um indivduo ou uma ddiva divina; a religio - como acontecimento histrico - era a inveno de sacerdotes perspicazes ou de uma vontade divina; as leis morais eram cunhadas por heris das massas, ou da-das por Deus, ou, ainda, presenteadas ao homem pela "naturez' - uma hipstase no menos mstica.

    O ponto de vista da produo social representa uma liberao dessas duas alternativas insuficientes. Todas aquelas formaes se produzem na relao recproca dos seres humanos, ou por vezes so tambm elas mesmas relaes recprocas, mas de uma maneira tal que no podem ser deduzidas do indivduo observado em si mesmo. Paralelamente a essas duas possibilidades encontra-se uma terceira- a produo de fenmenos atravs da vida social, que ain-da se d por meio de dois sentidos. Em primeiro lugar, pela conti-gidade de indivduos que agem uns sobre os outros; assim, o que produzido em cada um no pode ser somente explicado a partir de si mesmo. Em segundo lugar, por meio da sucesso das geraes, cujas heranas e tradies se misturam indissociavelmente com as caractersticas prprias do indivduo, e agem de modo tal que o ser humano social, diferentemente de toda vida subumana, no somente descendente, mas sobretudo herdeiro.

    A sociologia como mtodo

    Por meio da conscientizao do modo de produo social, que se insere entre o modo puramente individual e o transcendental, surgiu em todas as cincias do esprito um mtodo gentico, uma

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    nova ferramenta para a soluo de seus problemas- quer estes atin-jam o Estado ou a organizao da Igreja, a lngua ou a Constitui-o. A sociologia no somente uma cincia com objeto prprio, delimitado e reservado para si, o que a oporia a todas as outras cin-cias, mas ela tambm se tornou sobretudo um mtodo das cincias histricas e do esprito. Para que se aproveitem desse mtodo, essas cincias no precisam de modo algum deixar seu lugar, no pre-cisam se tornar parte da sociologia - como exigia aquele conceito fantasticamente exagerado da cincia da sociedade.

    A sociologia se aclimara a cada campo especfico de pesquisa, tanto no da economia como no campo histrico-cultural, tanto no tico como no teolgico. Dessa maneira, ela no procede de modo diferente daquele tpico do mtodo indutivo em seu tempo, que, como princpio de pesquisa, invadiu todos os grupos de problemas, auxiliando na soluo de questes que pareciam insuperveis. Mas nem por isso a induo se tornou uma cincia especfica ou uma cincia abrangente, e o mesmo se d com a sociologia. medida que insiste no fato de que o ser humano deve ser entendido como ser social, e que a sociedade a portadora de todo evento histri-co, a sociologia no possuir qualquer objeto que j no tenha sido tratado antes em uma das cincias existentes. Possuir um caminho comum a todas elas, um mtodo da cincia que, justamente em razo de sua aplicabilidade totalidade dos problemas, no uma cincia com um contedo que lhe seja prprio.*

    * Esta ltima frase e algumas outras so retiradas de minha obra Sociologia-estudos sobre as formas de sociao, que desenvolve algumas idias tratadas neste trabalho de maneira mais extensa e, concretamente, com uma funda-mentao mais ampla sobre fatos histricos.

  • O mbito da sociologia 23

    Justamente porque esse mtodo possui tal universalidade, ele forma um fundamento comum para todos os grupos de proble-mas que antes careciam de alguns esclarecimentos que cada um s poderia receber de outro; a generalidade do ser socializado, que permite que as foras dos indivduos se determinem mutuamen-te, corresponde generalidade do modo sociolgico de conheci-mento, graas ao qual se torna vivel resolver e aprofundar um problema em uma regio do conhecimento cujo contedo seja totalmente heterogneo. Menciono aqui apenas alguns exemplos que vo do mais particular ao mais geral.

    Com base em uma investigao sociolgica sobre a psicolo-gia do pblico de teatro, o criminalista pode aprender bastante sobre a natureza do chamado "crime de mass'. Temos aqui o estmulo de um comportamento coletivo e impulsivo, que pode ser claramente averiguado. Alm disso, esse comportamento se d na esfera da arte, que abstrata e perfeitamente delimitada. Nesse caso - o que muito importante para o estudo do problema da culpa nos "crimes de mass' -, a determinao do indivduo por uma massa fisicamente prxima dele e a extenso pela qual os juzos de valor subjetivos e objetivos possivelmente se eliminam pelo impacto do contgio podem ser observadas sob condies puramente experimentais- como em nenhum outro lugar.

    O estudioso da religio ficar inclinado, de mltiplas ma-neiras, a explicar a vida religiosa das comunidades e sua dispo-sio para o sacrifcio em termos de sua devoo a um ideal que comum a todos. Ele pode ser tentado e subordinar a conduta da vida presente, inspirado em todos pela esperana num estgio perfeito que esteja situado para alm da vida dos indivduos vi-vos, ao poder dos contedos da f religiosa. Caso lhe digam que

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    um sindicato socialdemocrata exibe os mesmos traos de compor-tamento comum e recproco, tal analogia poder ensinar a esse estudioso que o comportamento no est exclusivamente ligado a um contedo religioso, porm representa uma forma humana universal que se realiza sob o estimulo no somente de objetos transcendentes, mas tambm de outras motivaes sentimen-tais. Tambm entender algo que ser essencial para ele: o fato de que, mesmo em uma vida religiosa autnoma, esto contidos elementos no especificamente religiosos, mas sociais. Com cer-teza esses elementos - tipos especficos de comportamentos e atitudes - se fundem organicamente com a disposio religiosa. Mas quando so sociologicamente isolados, podemos mostrar, dentro do complexo religioso geral, que elementos podem ser com legitimidade considerados puramente religiosos - e, por-tanto, independentes de tudo o que social.

    Finalmente, um ltimo exemplo que trata do enriquecimen-to recproco dos grupos de problemas sugeridos pela partilha co-mum de objetos no processo de sociao dos seres humanos. O historiador da poltica e da histria geral da cultura atualmente sente-se inclinado, de vrias maneiras, a deduzir, por exemplo, o carter da poltica interna e das leis de um pas a partir de causas suficientes dos processos econmicos correspondentes. Suponha que ele tenha explicado o forte individualismo da constituio poltica da primeira fase da Renascena italiana com base na libe-rao das relaes econmicas de suas amarras cannicas e corpo-rativas. A contribuio de um historiador da arte pode ser valiosa para qualificar essa concepo. O historiador da arte constata, j no incio da poca em questo, a monstruosa disseminao de retratos em forma de bustos e seu carter individual e naturalista.

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    Mostra com isso como a valorao pblica desloca a nfase do que comum aos homens- e que por isso pode ser relegado facilmen-te a esferas abstratas e idealizadas - para o que compete ao indiv-duo, ao significado da fora pessoal, ao que sobressai do concreto perante a lei geral vlida para o todo. Essa descoberta indica que o individualismo econmico observado era j a expresso de uma mudana sociolgica fundamental, que encontrou sua configura-o no campo da arte, assim como da poltica, sem que uma fosse a causa imediata da outra.

    Essas analogias sociolgicas nos permitem chegar a uma concepo que supera o materialismo histrico e que mais profunda que ele: talvez as mudanas histricas, de acordo com sua camada realmente ativa, sejam transformaes sociolgicas; talvez interfiram no modo como os indivduos se comportam em relao aos outros; como o indivduo se comporta em rela-o ao seu grupo; como as nfases nos v~lores, as acumulaes, as prerrogativas e fenmenos semelhantes se movem entre os ele-mentos sociais. Talvez sejam essas as coisas que verdadeiramente tornam os acontecimentos fatos de poca. Se a economia quiser determinar todas as outras reas da cultura, ento a verdade por trs dessa aparncia sedutora s pode consistir no fato de que a economia tambm determinada por transposies sociolgicas que igualmente determinam outros fenmenos culturais. A for-ma econmica somente uma "superestrutura" sobre as relaes e as mudanas da estrutura sociolgica pura, que constitui a ltima instncia histrica- o elemento que determina todos os outros contedos da vida, mesmo que em certo paralelismo com os contedos econmicos.

  • 26 Questes fundamentais da sociologia

    - Os principais problemas da sociologia

    O estudo sociolgico da vida histrica ( .. sociologia geral")

    Partindo dessas ponderaes, para alm do mero conceito de mtodo, abre-se o olhar para o primeiro e principal conjunto de problemas da sociologia. Mas embora esse olhar abranja quase rodo o campo da existncia humana, ele no perde com isso o carter daquela abstrao que todavia unilateral, carter do qual nenhuma cincia pode se desvencilhar. Pois embora socialmente determinado, embora cada aspecto econmico, espiritual, polti-co, jurdico e mesmo do religioso e da cultura geral seja simulta-neamente atravessado pelo social, essa determinao tecida, em cada aspecto, no interior de outras determinaes provenientes de outras reas. Sobretudo da circunstncia de que as coisas tm um puro carter objetivo. sempre um contedo objetivo de tipo tcnico, dogmtico, intelectual ou psicolgico, que traz consigo o desenvolvimento das foras sociais e que sustenta esse desenvolvi-mento em direes e fronteiras determinadas por intermdio de suas prprias caractersticas, suas leis e lgicas.

    Todo fenmeno, independentemente do material de que se realize, precisa se submeter lei desse material; toda atividade in-telectual ata-se, quaisquer que sejam os percalos, a leis objetivas de pensamento e comportamento dos objetos; toda srie de cria-es mantm uma certa ordem, seja no campo artstico, poltico, legal, mdico, filosfico ou sobretudo no das invenes. Essa or-dem nos possibilita compreend-las em termos de relaes objeti-vas de seus contedos- desenvolvimento, conexo, diferenciao, combinao etc. Nessa circunstncia, nenhuma vontade ou poder humanos pode se permitir dar passos de forma arbitrria, nenhu-

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    ma vontade ou poder humanos pode se permitir caprichosa-mente saltar distncias e realizar snteses, devendo, pois, seguir a precisa lgica interna das coisas. Ento seria possvel construir a histria da arte como um desenvolvimento plenamente inteli-gvel medida que as obras de arte sejam apresentadas por si mesmas, de forma totalmente annima em sua ordenao tem-poral e evoluo estilstica; correlativamente, seria possvel fazer o mesmo com o desenvolvimento do direito, que seria apresen-tado como a sucesso das instituies e leis; com a produo cientfica, que seria uma mera srie histrica ou sistemtica de seus resultados conquistados etc.

    Aqui, da mesma forma como se considera uma cano com base em seu valor musical, uma teoria fsica com base na sua verda-de, e uma mquina com base na sua utilidade, se evidencia o fai:o de que todos os contedos da vida humana, mesmo quando ela se rea-liza somente por meio das condies e da dinmica da vida social, propicia uma forma de observao que seja totalmente indepen-dente em relao a essa dinmica e a essa determinao. Os objetos corporificam suas prprias idias; eles tm significado, leis, padres de valor que so independentes da vida social e individual, e que possibilitam defini-los e compreend-los em seus prprios termos. Perante toda a realidade, mesmo esse entendimento envolve uma abstrao, uma vez que nenhum contedo objetivo se realiza por sua lgica prpria, mas s pode faz-lo por meio de foras histricas e espirituais. A cognio no pode apreender a realidade em sua total imediaticidade- o que chamamos de contedo objetivo algo concebido a partir de uma categoria especfica.

    Sob uma dessas categorias a histria da humanidade aparece como comportamento e produto de indivduos. Assim como a

  • 28 Questes fundamentais da sociologia

    obra de arte pode ser observada a partir de seu significado pura-mente artstico e situada dentro de uma srie de produtos artsticos como se tivesse "cado do cu", ela tambm pode ser apreendida a partir da personalidade, do desenvolvimento, da vivncia e das tendncias de seu criador, como pulsao ou resultado imediato da vida individual, de cuja continuidade, vista nesse sentido, no se desvencilha. Certos fatos da cultura se adaptam mais facilmen-te a essa perspectiva, sobretudo a arte e tudo o que ainda pode ser sentido como sopro da criao; o principal perceber que esse suporte do sujeito, ativo ou receptivo, tpico ou extraordinrio, uma das possibilidades de traduzir para o entendimento essa uni-dade de toda produo humana, e aparece como um dos momen-tos no qual todos participam e que, segundo suas leis, formam ao mesmo tempo um patamar no qual se pode projetar o todo.

    O objetivo dessa discusso consiste em mostrar que no exis-te apenas vida social como fora fundadora da vida humana, ou como sua frmula. Essa vida deve ser deduzida e interpretada nesses termos, e deve ser finalmente concebida na tessitura da natureza com a criatividade dos indivduos. Talvez ainda haja ou-tras categorias de interpretao que ainda no foram totalmente elaboradas. Essas anlises e modos de estruturao de nossa vida e criao imediatas so experimentadas como unidade de tudo isso-esto no mesmo nvel e tm o mesmo direito. Por conseguinte - e disso que se trata agora -, nenhuma delas poder ser o ca-minho nico e adequado do conhecimento- nem mesmo aquela que for determinada pela forma social de nossa existncia, porque tambm ela somente parcial, complementar s demais e por elas complementada. Com essa qualificao, contudo, ela pode em princpio representar uma forma de conhecimento diante da totalidade da existncia humana.

  • O mbito da sociologja 29

    Pode-se indagar se os fatos da poltica, da religio, da eco-nomia, do direito, dos estilos culturais em geral, da linguagem e outros, podem ser concebidos no como realizaes do sujeito, ou em seu significado objetivo, mas como produtos e desenvol-vimentos da sociedade. Nem a ausncia de uma definio exaus-tiva e indiscutvel da natureza da sociedade tornam cognoscvel o valor dessa abordagem ilusria. Trata-se de uma peculiaridade do esprito humano o fato de ser capaz de erguer uma estrutura sli-da sobre fundaes conceitualmente ainda frgeis. As proposies fsicas e qumicas no sofrem com o obscuro e problemtico con-ceito de matria; proposies jurdicas no padecem com a quere-la sobre a natureza do direito e de seus primeiros fundamentos; e as afirmaes psicolgicas no so prejudicadas pelo fato de que a "essncia da alm' nos parea algo altamente questionvel.

    Portanto, se o "mtodo sociolgico" for aplicado para estudar a decadncia do Imprio Romano, ou da relao entre religio e economia nas grandes civilizaes; ou a origem da idia de Estado nacional alemo; ou o domnio do estilo barroco; isto , se tais acontecimentos ou circunstncias se apresentam como as somas das interaes individuais, ou como estgios da vida de grupos supra-individuais, ento essas investigaes devem ser definidas como sociolgicas, justamente por estarem conduzidas de acordo com o mtodo sociolgico.

    Somente a partir dessas investigaes emerge uma abstrao que pode ser caracterizada como o resultado de uma cultura cien-tfica altamente diferenciada. Essa abstrao produz um conjunto de problemas sociolgicos no sentido estrito do termo. Se, por conseguinte, todos os fatos da vida forem observados como algu-ma coisa que se realiza em um grupo social e por intermdio dele,

  • 30 Questes fundamentais da sociologia

    isso indica que h elementos em comum nas suas materializaes (ainda que, dadas as diferentes circunstncias, no sejam os mes-mos em todas as partes). Tais elementos em comum s emergem se, e somente se, a prpria vida social se mostra como origem ou objeto dos eventos.

    A esse contexto pertencem algumas perguntas, tais como: seria possvel achar, a partir de um fato, uma lei comum, um ritmo, de vez que, nos variados modos de desenvolvimento histrico, o referente factual que lhe d sustentao ocorre apenas uma ve:z? Sempre se afirmou, por exemplo, que todas as evolues histricas se realizaram, em seu primeiro estgio, como unidade indissolvel de mltiplos elementos; no segundo estgio haveria uma articula-o diferenciadora desses elementos anteriormente unidos, agora estranhos um com relao ao outro; no terceiro momento, forma..: se uma nova unidade, que consistiria em uma harmnica interpe-netrao dos elementos que se preservaram em sua especificidade.

    Em resumo, o caminho de todos os desenvolvimentos ple-namente vividos parte da unidade indiferenciada, passa por uma multiplicidade diferenciada e atinge uma unidade diferenciada. Ou, ainda, pode-se pensar a vida histrica como um processo gradual da generalidade orgnica at a simultaneidade mecnica. Propriedade, trabalho e interesses teriam surgido, primeiramente, da solidariedade dos indivduos, os portadores da vida do grupo; depois, estes teriam se dividido em pessoas egostas em busca ape-nas de seus prprios benefcios, e somente por isso se relacionando com os outros. O primeiro estgio a manifestao de uma von-tade na sua natureza mais profunda, que se expressa unicamente como sentimento. O segundo estgio, em contraste, o produto de uma vontade arbitrria e da razo calculista. De acordo, ainda,

  • O mbito da sociologia ' 31

    com uma diferente concepo, possvel estabelecer uma relao definida, em uma dada poca, entre a viso de mundo espiritual e sua situao social, medida que ambas seriam apenas expresses de desenvolvimentos biolgicos.

    Finalmente, existe a idia de que o conhecimento humano como um todo atravessaria trs estgios. O primeiro, teolgi-co, explica os fenmenos da natureza a partir de uma vontade arbitrria de qualquer tipo de entidade. No segundo estgio, o metafsico, as causas sobrenaturais so substitudas por leis que so de tipo mstico e especulativo (como "fora vital", "objetivos da naturez' etc.). Por fim, o estgio positivo, representado atual-mente pela cincia experimental e ex'\ta. Por intermdio desses estgios se desenvolve cada rea do saber. Cada ramo particular do conhecimento se desenvolve passando por esses trs estgios.

    Outra questo sociolgica no interior dessa categoria o pro-blema relativo s condies do poder de grupos em sua diferena com relao s condies de poder dos indivduos. As condies para o poder dos indivduos so imediatamente claras: intelign-cia, energia, combinao apropriada entre pertincia e flexibili-dade etc.; mas preciso que existam certas foras obscuras que sustentem devidamente o poderio histrico de fenmenos como Jesus, de um lado, e Napoleo, de outro, fenmenos que de modo algum seriam explicados por meio de designaes como "persua-so", "prestgio" etc. Quando os grupos exercem seu poder, seja sobre os indivduos, seja sobre outros grupos, eles operam com outros fatores. Alguns deles so: a capacidade de intensa con-centrao, assim como de dissoluo em atividades individuais especficas; a crena consciente em espritos de liderana, assim como em nebulosos impulsos expansionistas; o paralelismo entre

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    32. Questes fundamentais da sociologia

    egosmo dos indivduos e a devoo sacrificial diante do todo; o dogmatismo fantico e uma liberdade espiritual evidente a cada instante. Tudo isso no somente culmina na ascenso de unidades polticas - e tambm, por negao, na sua decadncia -, como tambm em todos os agrupamentos possveis de tipo econmico, religioso, partidrio e familiar. Mas a pergunta no como se ori-gina a sociao como tal, mas qual o destino da sociedade como algo j constitudo - e esse destino verificvel.

    H uma outra questo que surge diante de todos os fen-menos e condies de natureza sociolgica: qual a relao de comportamento, ao e representaes de pensamento coletivos, segundo os seus valores, com aqueles valores correspondentes que se expressam imediatamente por intermdio dos indivduos? Que diferenas de nvel existem, medidas com um parmetro ideal, entre os fenmenos sociais e os individuais? A estrutura interna e fundamental da sociedade torna-se aqui o menor dos problemas. Essa estrutura j pressuposta, e os fatos da vida so observados com base em tal pressuposio. A pergunta, ento, : que prin-cpios gerais se mostram nesses fatos quando colocados sob essa perspectiva? No prximo captulo iremos examinar o problema dos nveis, entendido como exemplo de um tipo sociolgico que se poderia chamar de "sociologia geral".

    O estudo das formas societrias tsociologia pura ou formal") Partindo de uma outra direo, a abstrao cientfica demarca ainda mais uma linha na concretude plena dos fenmenos sociais, relacionando tudo aquilo que sociolgico a partir de um sentido que ser tratado logo a seguir. Ao fazer isso, a abstrao cientfica produz uma forma consistente de cognio. Percebe que, na rea-

  • O mbito da sociologia 33

    lidade, o fenmeno sociolgico no existe nessa forma isolada e recomposta, e sim a partir de uma abstrao feita de um conceito surgido a partir da unidade da vida desta mesma realidade. Todos os fatos sociais no so, como j foi mencionado aqui, somente sociais. H sempre um contedo objetivo (de tipo sensorial, espi-ritual, tcnico ou psicolgico) socialmente corporificado, produ-zido e propagado, gerando assim a totalidade da vida social.

    Se a sociedade concebida como a interao entre indiv-duos, a descrio das formas de interao tarefa de uma cincia especfica, em seu sentido mais estrito, assim como a abstrao geomtrica investiga a simples forma espacial de corpos que exis-tem somente empiricamente como formas de contedos mate-riais. Caso se possa dizer que a sociedade a ao recproca entre indivduos, ento a descrio das formas dessas aes recprocas constituiria a tarefa da cincia social no sentido mais prprio e rigoroso de "sociedade". Se o primeiro crculo de problemas foi abarcado pela totalidade da vida histrica ( medida que social-mente formada, conquanto que essa socialidade seja sempre um todo abrangente), o segundo crculo ser abarcado pelos prprios modos que transformam uma simples soma de seres humanos vivos em sociedade e sociedades.

    Assim como a gramtica, que isola as formas puras da lingua-gem dos contedos nos quais elas vivem, esta pesquisa- talvez se pudesse cham-la de "sociologia pura" - colhe dos fenmenos o seu momento de sociao, desprendendo-o indutiva e psicologica-mente da multiplicidade de seus contedos e objetivos que ainda no so sociais para si. De fato, encontramos nos grupos sociais, por mais que estes sejam diferentes de acordo com seus propsitos e significados, os mesmos modos formais de comportamento dos

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    34 Questes fundamentais da sociologia

    indivduos entre si. Dominao e subordinao, concorrncia, imitao, diviso do trabalho, formao de partidos, representa-o, simultaneidade da unio interna e da coeso perante o mun-do exterior e outras incontveis formas semelhantes se encontram tanto em sociedades de Estado como em comunidades religiosas, em um grupo de conspiradores como na camaradagem econmi-ca, em uma escola artstica como em uma famlia .

    Por mais que sejam variados os interesses dos quais resulta a sociao, as formas nas quais eles se realizam podem ser as mes-mas. Por outro lado, o interesse por um mesmo contedo pode se apresentar em sociaes formadas de maneiras distintas. Por exemplo, o interesse econmico se realiza tanto na concorrncia como na organizao planejada dos produtores; em um acordo contra outros grupos econmicos ou com esses prprios grupos. Os contedos religiosos da vida demandam - embora permane-am os mesmos em seu contedo - uma forma social livre ou uma forma social centralizada. Os interesses, que esto na base das relaes entre os sexos, precariamente se realizam numa quase infinita multiplicidade de formas familiares.

    Assim como os contedos mais divergentes podem ser idn-ticos forma na qual se realizam, o contrrio tambm verdadei-ro: a matria pode persistir a mesma, enquanto a comunho dos indivduos que a sustenta se movimenta em uma multiplicidade de formas. Desse modo, a anlise em termos de forma e conte-do transforma os fatos - que, em sua imediaticidade, apresentam as duas categorias com a unidade indissolvel da vida social - de modo a justificar o problema sociolgico. Este demanda a ordena-o sistemtica, a fundamentao psicolgica e o desenvolvimen-to histrico de puras formas de sociao. Nesse caso, ao contrrio

  • O mbito da sociologia 35'

    do primeiro grupo de problemas, a sociologia no uma cincia especial quanto ao contedo de seus problemas. Mas em termos de seu modo particular de responder s questes, ela uma cin-cia especfica. A discusso da "sociabilidade",* no Captulo 3, ir fornecer um exemplo que serve para simbolizar a imagem geral da investigao na sociologia pura.

    O estudo dos aspectos epistemolgicos e metafsicos da sociedade (sociologia filosfico")

    O enfoque moderno da cincia com relao aos fatos levanta ainda um terceiro mbito de questes em torno da sociedade como fato. Visto que essas questes so adjacentes s fronteiras superiores e inferiores desse fato, elas certamente s podem ser definidas como sociolgicas em sentido amplo, pois, de acordo com seu carter prprio, seriam mais bem definidas como filosficas. Seu conte-do constitudo simplesmente pelo fato. Cada particularidade real interrogada tomando por base seu sentido para a totalidade do esprito - da vida, e sobretudo da existncia - e com fundamento na legitimao atribuda por essa totalidade. Assim se d tambm com a natureza e a arte, a partir das quais imediatamente desenvol-vemos a cincia da natureza e a cincia da arte, mas que tambm produzem os objetos da filosofia natural e da filosofia da arte, cujos interesses e mtodos se situam em outra camada do pensamento.

    Assim como qualquer outra cincia exata- uma cincia que se dirija para o entendimento imediato do que dado -, a cincia

    Gostaria de assinalar que minha obra anteriormente mencionada trata de descrever as "Formas de sociao" da maneira que at agora est a meu alcance- embora no esteja absolutamente completa.

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    36 Questes fundamentais da sociologia

    social est limitada por dois mbitos filosficos. O primeiro abran-ge as condies, os conceitos fundamentais, os pressupostos da pesquisa concreta que no podem ser apreendidos pela pesquisa, pois constituem sua base. No outro mbito, a pesquisa especfica dirigida a concluses, conexes, problemas e conceitos que no tm lugar no contexto da experincia e do saber objetivo imedia-to. O primeiro mbito da teoria do conhecimento, o segundo, a metafsica da disciplina particular.

    As tarefas das cincias sociais especficas - como o estudo da economia e das instituies, a histria dos costumes e dos partidos, a teoria demogrfica e o questionamento da estru-tura profissional - no podem ser tratadas sem que se pres-suponham, de modo indiscutvel, certos conceitos, axiomas e procedimentos. Caso no aceitssemos certa tendncia egosta de ganho e prazer, mas tambm se no aceitssemos um limi-te para essa tendncia imposto pela obrigao, o costume e a moral; se no nos dssemos o direito de falar das opinies da massa como uma unidade, por mais que muitos de seus ele-mentos somente participem dela superficialmente, ou mesmo que dela discordem; se no declarssemos como compreendi-do o desenvolvimento dentro de uma rea cultural, de modo que pudssemos reproduzi-lo em ns mesmos como uma lgi-ca psicolgica e evolutiva, ento no poderamos transformar inmeros fatos em contextos sociais.

    Em todos esses exemplos, e ainda em muitos outros, se encon-tram modos de proceder do pensamento com os quais este penetra a matria bruta dos acontecimentos isolados, para, a partir deles, ad-quirir um conhecimento cientfico da sociedade- da mesma manei-ra como o pensamento extrai fenmenos externos a partir de certos

  • O mbito da sociologia , 37

    pressupostos a respeito de espao, matria, movimento e calculabili-dade, sem os quais jamais teria sido criada a cincia da fsica.

    Cabe a cada cincia social especfica aceitar sem questiona-mentos sua prpria base; sim, cada cincia social no poderia tratar dessa base dentro de seu prprio terreno, porque ela evi-dentemente teria de abarcar todas as demais cincias sociais. aqui que se introduz a sociologia como teoria do conhecimento das cincias sociais especficas, como anlise e sistematizao dos fundamentos de suas formas e normas.

    Assim como esses questionamentos perpassam os funda-mentos dos conhecimentos concretos da existncia social, ou-tros questionamentos vo mais adiante por meio da hiptese e da especulao do carter inevitavelmente fragmentrio dos conhecimentos concretos, esses questionamentos tentam fazer deste ou de qualquer conhecimento emprico um quadro geral fechado; ordenam em sries os acontecimentos caticos e con-tingentes que devem seguir uma idia ou almejar um propsito; questionam onde o desenrolar indiferente e naturalmente or-denado dos eventos daria sentido a fenmenos singulares ou ao todo; eles afirmam ou duvidam- as duas atitudes so igualmen-te procedentes de uma viso do mundo supra-emprica - que em todo esse jogo de fenmenos scio-histricos reside um sig-nificado religioso, ou alguma relao cognoscvel ou imaginvel com o fundamento metafsico do ser.

    Surgem em especial perguntas como as seguintes: a socieda-de o objetivo da existncia humana ou simplesmente um meio para o indivduo? O valor definitivo do desenvolvimento social se situa na formao da personalidade ou na associao? O sentido e o propsito existem previamente como tais nos quadros sociais,

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    38 Questes fundamentais da sociologia

    ou esses conceitos se realizam somente no esprito individual? Mostrariam os tpicos estgios de desenvolvimento da sociedade uma analogia com a evoluo csmica, de modo que haja aci-ma de tudo uma frmula ou ritmo universal de desenvolvimen-to - como a alternncia de diferenciao e integrao - que se revelaria tanto nos fatos sociais como nos materiais? Seriam os movimentos sociais ditados pelo princpio da economia de fora, por motivos materiais ou ideais?

    Evidentemente, esse tipo de pergunta no pode ser respon-dido pela averiguao dos fatos. Trata-se antes da interpretao de fatos comprovados e dos esforos para formar uma viso global dos elementos relativos e problemticos da realidade social. Essa viso no concorre com a empiria justamente porque atende a necessidades totalmente diferentes dela.

    evidente que o tratamento desses problemas nesse mbito baseia-se mais estritamente nas diferenas de vises do mundo, dos valores individuais e partidrios, das convices ltimas e in-demonstrveis do que no interior das outras duas outras regies da sociologia, ambas rigorosamente demarcadas pelos fatos. Por isso, o tratamento de uma questo singular tomada como exemplo no po-deria mostrar a objetividade exigida no momento. Tambm no poderia, como nas outras, ilustrar na mesma medida a totalidade da tipologia. Esse o motivo pelo qual me parece mais aconselhvel traar, no Captulo 4, uma linha das teorias pertinentes tal como se desenvolveram no curso de inmeras controvrsias, durante um perodo particular da histria geral do esprito.

  • 2-O nvel social e o nvel individual (Exemplo de sociologia geral)

    Nas ltimas dcadas, quando a socializao, a vida de grupos entendidos como unidades, tornou-se propriamente objeto de questionamento sociolgico - portanto, no se tratava de destino histrico ou da prtica poltica de indivduos, e sim daquilo que lhes comum justamente por constiturem "sociedades" -, fez-se imediatamente necessria a pergunta sobre a diferena entre as ca-ractersticas essenciais deste sujeito da sociedade e da vida individual enquanto tal. A partir de uma perspectiva externa, as diferenas so bvias. Por exemplo, a imortalidade fundamental dos grupos se con-trape transitoriedade do indivduo humano; a possibilidade que os grupos tm de descartar elementos importantes sem contudo se extinguirem, movimento que significaria, de modo correspondente, a extino para a vida individual, e fenmenos similares.

    Essas questes, sempre que vinham tona, contudo, pos-suam uma natureza interna, e pode-se dizer psicolgica. No en-tanto, caso se tome por fico ou realidade a unidade do grupo

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    40 Questes fundamentais da sociologia

    que se sustenta sobre os indivduos seus componentes - com o fim de interpretar os fatos-, essa unidade precisa ser tratada como se ela fosse um sujeito com vida, leis e caractersticas internas pr-prias. E, para fundamentar com legitimidade o questionamento sociolgico, foroso esclarecer justamente as diferenas entre es-sas determinaes e aquelas da existncia individual.

    - As determinaes do grupo e as hesitaes do indivduo

    Apresentou-se aqui, ento, a afirmao -a partir da qual podem ser puxados vrios fios para que se possam estabelecer diferenas entre as determinaes anteriormente mencionadas -de que as aes das sociedades teriam um propsito e uma objetividade muito mais definidos que os individuais. O indivduo pressionado, de todos os lados, por sentimentos, impulsos e pensamentos contraditrios, e de modo algum ele saberia decidir com segurana interna en-tre suas diversas possibilidades de comportamento - que dir coin certeza objetiva. Os grupos sociais, em contrapartida, mesmo que mudassem com freqncia suas orientaes de ao, estariam con-vencidos, a cada instante e sem hesitaes, de uma determinada orientao, progredindo assim continuamente; sobretudo saberiam sempre quem deveriam tomar por inimigo e quem deveriam con-siderar amigo. Entre o querer e o fazer, os meios e os fins de uma universalidade, h uma discrepncia menor do que entre os indiv-duos. Nesses termos, os indivduos se mostram "livres", enquanto as aes de massa seriam determinadas por uma "lei natural". Por mais polmica que seja essa formulao, ela somente extrapola uma diferena factual e altamente perceptvel entre os dois fenmenos.

  • O nvel social e o nvel individ~al 41

    Essa proposio se origina no fato de que os objetivos do esprito pblico, de uma coletividade em geral, correspondem queles que o indivduo deve apresentar para si mesmo como os mais fundamentalmente simples e primitivos. A esse respeito, s nos enganam o poder que tais objetivos adquirem, por meio da expanso de seu domnio e da tcnica altamente complexa com a qual o ente pblico moderno realiza tais objetivos, me-diante a aplicao de inteligncias individuais. proporo que o indivduo, em seus propsitos mais primitivos, no apresenta hesitaes nem se equivoca, podemos pensar que a mesma me-dida vale para o grupo social. O asseguramento da existncia, a aquisio de novas propriedades, o desejo de afirmar e expandir a prpria esfera de poder, a defesa das posses conquistadas -estes so impulsos fundamentais para os indivduos, impulsos a partir dos quais ele pode se associar de modo conveniente a muitos outros indivduos, a seu gosto.

    Exatamente porque, nessas ambies primitivas, o indivduo no escolhe nem hesita, a ambio social, que rene as ambies primitivas, tambm no conhece escolha ou indeciso. Infere-se ento que, tal como o indivduo, de modo claramente determi-nado e seguro quanto a seus objetivos, realiza aes puramente egostas, tambm assim faz a massa em todos os fins a que se pro-pe; ela no conhece o dualismo entre impulsos egostas e desa-pegados, diante do qual o indivduo freqentemente se encontra perplexo e pelo qual, por tantas vezes, tentando se manter entre os dois plos, acaba por dar tiros n'gua. Corretamente definiu-se o direito, isto , as primeiras e essenciais condies de vida de conjuntos grandes e pequenos, como o "mnimo tico". As nor-mas, embora bastem escassamente para a existncia do todo, so

  • 42. Questes fundamentais da sociologia

    o mnimo para o indivduo, a condio sob a qual ele pode existir externamente como ser social; caso se limitasse a essas normas, caso no s~ ligasse a partir delas a uma grande quantidade de ou-tras leis, essa existncia individual seria uma anomalia tica, uma existncia impossvel.

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    Com isso insinua-se uma diferena de nvel entre a massa e o indivduo que s pode surgir e ser concebida desde que, no indi-vduo, as mesmas qualidades e os modos de comportamento com os quais ele "forma a mass' - e com o qual ele se introduz no es-prito comum- sejam separadas das demais, que simultaneamen-te constituem sua propriedade privada e com as quais ele, como indivduo, se separa do contexto partilhado com todos os demais. Mas aquela primeira parte de sua essncia evidentemente s pode ser formada a partir dos elementos mais primitivos e inferiores, entendidos a partir dos sentidos de sofisticao e inteligncia. E isso, em primeiro lugar, porque so eles que esto disponveis com relativa segurana em todos os indivduos.

    Quando, por exemplo, o mundo dos organismos realiza um desenvolvimento gradual, que o leva das formas mais inferiores at as mais superiores; as mais inferiores e primitivas tambm so as mais antigas. Mas tambm so as mais disseminadas, porque o le-gado da espcie ser transmitido ao indivduo de maneira to mais segura quanto mais longamente preservado e consolidado for esse legado. rgos recentemente adquiridos, como os superiores e mais complexos, so sempre variveis, e no se pode dizer com convico

  • O nvel social e o nvel indivicjual 43

    que cada exemplar da espcie ir dispor deles. A longevidade de um atributo herdado o lao que estabelece uma verdadeira unio entre as dimenses mais inferiores e sua expanso.

    Mas no est em questo somente a hereditariedade em senti-do puramente biolgico. Tambm os elementos espirituais que se objetivaram em palavras e conhecimentos, em inclinaes afetivas e normas de vontade e juzo, e que penetram o indivduo como tradies conscientes e inconscientes, fazem isso de maneira tan-to mais segura e universal quanto mais consolidada e evidente elas tenham crescido dentro do esprito de uma sociedade que se desenvolveu ao longo do tempo - isto , quanto mais antigas forem as tradies. Na mesma medida, porm, elas tambm so menos complexas, at mesmo mais rudimentares, e por isso ficam mais prximas s expresses imediatas e s necessidades da vida. medida que se elevam a um plano mais aprimorado e extraor-dinrio, diminui a possibilidade de que sejam de propriedade de todos, passando assim a um outro mbito: eles se tornam mais ou menos individuais, e apenas incidentalmente so partilhados com os outros indivduos.

    - Apreo pelo antigo e apreo pelo novo

    Com base nessa relao fundamental podemos explicar um fen-meno caracterstico de toda a histria da cultura: se, por um lado, o antigo enquanto tal desfruta de um apreo especfico, o mesmo se d com o novo e o excepcional. A respeito do primeiro no so necessrias muitas palavras. Talvez o apreo daquilo que sempre existiu e que foi herdado se deva no somente sua camada de

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    44 Questes fundamentais da sociologia

    antigidade e a seu encanto romntico-mstico, mas tambm circunstncia aqui j enfatizada: o que mais amplamente disse-minado tambm o que plantou razes mais firmes em cada in-divduo; dentro de cada um, a ancestralidade habita na camada-ou perto dela - em que brotam os juzos mais instintivos, inde-monstrveis e inatacveis.

    Quando, na alta Idade Mdia, se apresentavam perante a jus-tia dois documentos reais que se contradiziam a respeito de um objeto polmico, em geral o mais antigo possua mais fora. Isso no se dava tanto pela crena na justia mais apurada dos antigos, mas pelo fato de que o sentimento do que era mais justo estava determinado pela sua longa existncia e disseminado por um m-bito muito mais amplo que o documento mais recente; o docu-mento mais antigo era mais considerado porque a existncia mais longa constitua a causa real do que corresponde ao sentimento de justia da maioria. Admitindo que o mais antigo tambm o mais simples, o menos especializado e o menos articulado- o que de fato precisa ser admitido, apesar de todas as excees cabveis -, no exatamente por esses atributos que ele mais acessvel maioria, mas tambm porque simplesmente o mais antigo, sen-do assim algo que foi transmitido a cada indivduo, externa e internamente, com maior segurana, sendo por isso algo eviden-temente mais justo e valioso.

    Mas o mesmo pressuposto torna compreensvel a apreciao oposta. O dito de Lessing- "Os primeiros pensamentos so os pen-samentos de todos" -no significa outra coisa seno que os pensa-mentos instintivos- isto , aqueles que surgem das camadas mais slidas (porque vivas em ns h mais tempo)- so aqueles que esto mais amplamente disseminados. O que explica, por outro

  • O nvel social e o nvel individu,al 4)

    lado, o tom depreciativo de Lessing perante tais pensamentos. Assim, somente para alm destes se pode comear a ter pensa-mentos dignos de valor, nos quais a individualidade e a novidade se mostrariam reciprocamente indissociveis.

    Na ndia, vemos que a ordenao hierrquica dos ofcios de-pende de sua ancestralidade; os mais novos so, em geral, tidos em maior conta - em razo, precisamente, do fato de que so os mais complexos, aprimorados, difceis, e por isso somente realiz-veis por talentos individuais. A razo do apreo pelo novo e pelo excepcional reside na "sensibilidade para a diferen' que h na constituio de nosso esprito. O que nossa conscincia absorve, o que desperta nosso interesse, o que deve estimular nosso dina-mismo precisa de alguma maneira se desprender do bvio, do cotidiano que habita em ns e fora de ns.

    O significado sociolgico da semelhana e da diferena entre indivduos

    Acima de tudo o significado prtico do ser humano determi-nado por meio da semelhana e da diferena. Seja como fato ou como tendncia, a semelhana com os outros no tem menos im-portncia que a diferena com relao aos demais; semelhana e diferena so, de mltiplas maneiras, os grandes princpios de todo desenvolvimento externo e interno. Desse modo, a histria da cultura da humanidade deve ser apreendida pura e simples-mente como a histria da luta e das tentativas de conciliao entre esses dois princpios. Bastaria dizer que, para a ao no mbito das relaes do indivduo, a diferena perante outros indivduos

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    46 Questes fundamentais da sociologia

    muito mais importante que a semelhana emre eles. A diferenciao perante outros seres o que incemiva e determina em grande parte a nossa atividade. Precisamos observar as diferenas dos outros caso queiramos utiliz-las e assumir o lugar adequado entre eles.

    O objeto do interesse prtico e que forma a base evidente da o dinmica o que nos garante vantagem ou desvantagem perante os demais indivduos, e no aqueles aspectos pelos quais coincidimos com eles. Darwin conta que, em sua relao com cria-dores de animais, ele jamais encontrou um que acreditasse na ori-gem comum das espcies; o imeresse pelo desvio que caracterizava a variante obtida e o valor prtico que esta chegava a ter para ele ocupavam de tal modo a conscincia que no restava lugar, nela, para a similaridade em comum com as outras raas e espcies.

    compreensvel que esse interesse na diferena do que se possui expande-se conceitualmente para todas as relaes do in-divduo. Pode-se dizer que, ante uma igualdade no geral que to importante objetivamente como uma diferena, para o esp-rito subjetivo, a primeira existir mais na forma inconsciente, e a segunda, mais na forma consciente. A funcionalidade orgnica poupar a conscincia, naquele caso, justamente por ela ser neces-sria para os fins prticos da vida. O interesse pela diferenciao chega a ser grande o suficiente para produzi-la na prtica, mesmo onde no haja nenhum motivo objetivo para isso. Percebe-se, as-sim, que associaes - desde grupos legislativos at agremiaes com fins de diverso- com pontos de vista e objetivos unificados, aps algum tempo, se desmembram em faces que se relacionam entre si da mesma maneira que, quando unidos, se mobilizariam contra um grupo de tendncia radicalmente diferente. como se cada individualidade sentisse seu significado to-somente em

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    O historiador ingls E.A. Freeman observa algo semelhante ao afirmar que a Cmara dos Comuns uma corporao aristo-crtica quando se leva em considerao o nvel daqueles que a compem. Porm, reunidos, eles iriam se comportar exatamente da mesma maneira que um bando de democratas. O grande co-nhecedor das corporaes inglesas afirmou que muitas vezes as reunies dessa Cmara de tal modo chegavam s concluses mais tolas e prejudiciais que a maioria dos representantes abandonava-as em favor das assemblias de delegados.

    Isso confirmado por observaes que, insignificantes em seus contedos, tornam-se sociologicamente importantes, no somente pelo seu carter massivo, mas tambm porque so sm-bolos de situaes e acontecimentos historicamente importantes. O comer e o beber, as funes mais antigas e, espiritualmente falando, as mais vazias, so o meio de reunio- freqentemente o nico - que propicia a ligao entre pessoas e crculos mais heterogneos. Mesmo os encontros sociais entre pessoas muito cultas mostram a tendncia a desembocar no relato das anedotas mais baixas. com esses jogos sociais, que trazem consigo o ca-rter espiritualmente mais primitivo e despido de ambio, que se chega alegria sem limites e ao sentimento de unio despro-vido de qualquer reserva nos crculos dos mais jovens. Por isso, a necessidade de prestar tributo s grandes massas - e sobretudo a necessidade de se expor continuamente a elas - arruna facil-mente o carter: ela rebaixa o indivduo, retirando-o da posio elevada obtida por sua formao e levando-o a um ponto no qual ele pode se adequar a qualquer um.

    Quando se considera questionvel a pretenso de um jorna-lista, de um ator ou de um demagogo de "procurar conquistar o

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    so postas em movimento, os partidos radicais ganhem tanta for-a, enquanto os partidos mediadores, que insistem no direito dos dois lados, se enfraqueam.

    Extraordinariamente caracterstico para estabelecer a diferen-a entre a natureza dos gregos e dos romanos era o fato de que os cidados gregos, como massa unificada, votavam sob a impresso imediata do orador, ao passo que os romanos o faziam por inter-mdio de grupos slidos, que se apresentavam de certa maneira como indivduos (centuriatim, trbutim etc). Tambm compreen-svel a relativa serenidade e a sensatez com as quais os romanos tomavam suas decises, em contraposio paixo e irreflexo que freqentemente marcavam as decises gregas. Dessa homo-fonia espiritual da massa surgem tambm certas virtudes negati-vas, que se opem queles que pressupem uma pluralidade de alternativas conscientes e simultneas: a massa no mente e no dissimula. Mas, com base nessa mesma constituio espiritual, falta-lhe em geral tambm a conscincia de responsabilidade.

    - A emotividade da massa e da atrao da massa

    Supondo-se uma seqncia evolutiva gentica e sistemtica das expresses do esprito, seria possvel tomar o sentimento (natural-mente no todos os sentimentos), em contraposio ao intelecto, como o que h de mais primrio e universal. De toda maneira, desejo e dor, assim como certos sentimentos instintivos que ser-vem preservao do indivduo e da espcie, desenvolveram-se antes de qualquer conceito, juzo e concluso. Na formao do intelecto, mais que em qualquer outra parte, fica sobretudo pa-

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    52 Questes fundamentais da sociologia

    tente o recuo do nvel social diante do individual, enquanto no mbito do sentimento acontece o contrrio.

    Perante as ponderaes apresentadas, no constitui contra-dio o que Carl Maria von Weber disse a respeito do grande pblico: "O indivduo a voz do asno, e o todo a voz de Deus." Essa a experincia do msico, a saber, clamar pelo sentimento da massa, e no pelo seu intelecto.

    Por esse motivo, qualquer pessoa que tenha pretendido agir sobre as massas sempre conseguiu fazer isso apelando para os sen-timentos, e muito raramente lanando mo da discusso terica articulada. E isso vale sobretudo para massas aglomeradas dentro de um espao determinado. Aqui h algo que se poderia chamar de nervosismo coletivo: uma sensibilidade, uma paixo, uma ex-centricidade freqentemente prprias das grandes massas, rara-mente demonstradas em qualquer um de seus integrantes consi-derado isoladamente.

    O mesmo pode ser observado nos animais que vivem em bandos: o mais silencioso bater de asas, o menor salto de um in-divduo provoca pnico em todo o bando. As massas tambm se caracterizam por estmulos casuais que produzem enormes efei-tos, pela avalanche da maioria dos impulsos de amor e dio, pela excitao s vezes totalmente incompreensvel, na qual ela, sem refletir, se precipita do pensamento ao, arrastando consigo o indivduo, sem qualquer resistncia. Esse fenmeno se deve pro-vavelmente influncia mtua, ocorrida por intermdio das ema-naes de sentimentos difceis de se detectar. Como se produzem entre todos e dentro de cada um, os sentimentos acabam por se somar, em cada um deles, a uma excitao que no se explica nem pela coisa, nem pelo indivduo em si.

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    Este um dos fenmenos estritamente sociolgicos mais pu-ros e mais reveladores: o indivduo se sente tomado pelo "humor" da massa como se fosse assaltado por uma violenta fora exterior que indiferente ao seu ser e querer individuais -e no entanto a massa consiste somente nesses indivduos. Sua interao pura e simples desenvolve uma dinmica a qual, por sua grandeza, apa-rece como algo objetivo que oculta de cada um dos participantes sua prpria contribuio particular. De fato, cada indivduo tam-bm arrebata, ao mesmo tempo que arrebatado.

    Essa elevao extremada do sentimento, dada somente pelo estar junto, pode ser constatada em um exemplo bem simples com base em um relato sobre os quacres. Nesse exemplo, por mais que a interioridade e o subjetivismo do princpio religioso con-tradigam na verdade toda comunho da missa, esta de fato se faz presente, ainda que freqentemente os quacres fiquem por v-rias horas sentados juntos em silncio. A comunho justificada pelo fato de que ela pode servir para nos aproximar do esprito de Deus. Posto que Deus consiste, para eles, somente em uma inspirao e uma exaltao nervosas, aparentemente, o mero es-tar junto em silncio tambm precisa evoc-lo. Um quacre ingls do sculo XVII descreve fenmenos extticos que ocorrem em um integrante do grupo reunido, e prossegue: em razo da unio de todos os membros de uma comunidade em um corpo, freqen-temente todos partilham desse estado, e de modo tal que uma apario enriquecedora e arrebatadora, dada luz do dia, arrasta irresistivelmente consigo muitas pessoas para o grupo. Inmeros casos ensinam que a intensificao do grau emocional - como se o nmero daqueles que esto fisicamente prximos fosse em certa medida o multiplicador da potncia do sentimento portado pelo indivduo- passa longe da intelecrualidade desse indivduo.

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    terra, que a iniciativa para a dotao financeira deveria pertencer Cmara dos Comuns. Um especialista em histria constitucio-nal daquela poca indica expressamente como motivo bsico para isso que era da competncia do mais pobre dos trs estados deter-minar a medida mxima da contribuio de todos. O que todos podem dar de maneira igual equivale cota do mais pobre. Aqui tambm se encontra o motivo mais puramente sociolgico entre todos: o usurpador que pretende subjugar uma sociedade j em si mesma dividida dever se apoiar sobre as camadas inferiores, pois para se elevar sobre todos da mesma maneira, ele precisa nivel-los. Mas isso no se obtm pela ascenso de quem est em plano inferior, e sim pela descida de quem est situado mais acima.

    Por esse motivo, totalmente ilusrio chamar de "mediano" o nvel de um conjunto visto como unidade e que na prtica atua como unidade. A "mdi' significaria que a dimenso de cada indi-vduo somar-se-ia igualmente de outro, e o resultado proviria da diviso pelo nmero de indivduos. Isso envolveria uma elevao daqueles que se situam em nvel mais baixo, o que no factvel. Muito mais prximo, porm, do nvel destes ltimos se encontra o da totalidade, medida que todos os seus portadores participariam dele com a mesma medida de valor e a mesma medida de eficcia. O carter do comportamento coletivo no se situa no "meio", e sim no limite inferior dos participantes. Se no me engano, o uso da linguagem j retificou internamente esse fato, visto que a palavra "mediocridade" no significa para ns, em absoluto, a real mdia dos valores de uma totalidade de existncias ou esforos, e sim um valor qualitativo que se situa bem abaixo da mdia.

    Nesse marco estreito s h espao para curtos trechos dos caminhos sociolgicos, e no para sua totalidade. Nossa preocu-

  • s6 Questes fundamentais da sociologia

    pao no deve se dirigir, portanto, para um estabelecimento de-finitivo da matria de que trata nossa cincia, mas apenas para um esboo da forma e do mtodo de lidar com essa matria. Assim, sugiro aqui, provisoriamente, duas das inmeras qualidades que podem ser mencionadas quando se trata da concepo geral dos nveis sociais que apresentei.

    Em primeiro lugar, esse nvel jamais ser fixado no mais infe-rior de todos os seus integrantes, e sim, como j indiquei, apenas tender a esse nvel, mantendo-se, na maioria das vezes, um tanto acima dele. Isso se deve ao fato de que os elementos mais elevados expressam, de diversas maneiras, uma resistncia contra o rebai-xamento coletivista. Essa resistncia se mistura a uma certa deten-o da ao coletiva antes que ela atinja seu nvel mais baixo.

    Mais profunda uma outra restrio que o prprio esquema encontra- e que a princpio reconhecida como correta. Essa res-trio afirma o seguinte: o ser e o ter igual para todos s pode ser aquele no qual quem menos tem o de nvel inferior. A criao da massa como constructo intelectual, contudo, a equiparao de nvel entre pessoas heterogneas. Isso s pode ocorrer por meio do rebaixamento dos elementos mais elevados, e jamais pela elevao-sempre impossvel - de tudo o que inferior.

    Esse mecanismo psicolgico deve ser questionado, porque o rebaixamento do que elevado nem sempre possvel. Toda essa ponderao se baseava - naturalmente de maneira muito grosseira e problemtica- na concepo de uma estrutura espi-ritual formada de diferentes camadas. Na parte inferior esto os elementos primitivos, desprovidos de esprito, biologicamente mais estabelecidos, e por isso supostamente universais; no topo se situam as camadas mais excepcionais pelo contedo, as mais

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    jovens e, finalmente, as mais sutis, que se diferenciam at a com-pleta individualidade.

    Isso permite-nos conceber uma possvel extirpao mesmo da formao mais elevada da individualidade, consciente ou in-conscientemente, e que o comportamento do indivduo poderia ser exclusivamente determinado pelas camadas mais primitivas. Da resultaria um esprito comum unitrio, composto por contri-buies iguais. S que, por mais freqentemente que isso ocorra, tal fenmeno nem sempre se d.

    Para alguns indivduos, as camadas inferiores esto ligadas s superiores de maneira to firme que torna aplicvel a sedutora analogia fsica, segundo a qual o homem pode sempre decair com facilidade, mas dificilmente pode ascender. No mbito tico isso , sem maiores delongas, bvio. Qualidades como nsia de prazer, crueldade, cobia e mentira so as que se encontram no nvel mais baixo das camadas do esprito. Para uma pessoa mais nobre- mes-mo que no esteja livre de rudezas e vontades inconfessveis-, seria impossvel se comportar nesse nvel em sua ao e abrir mo de suas qualidades, mesmo em prol de uma inofensiva queda de nvel. Essa impossibilidade ultrapassa de muito o mbito tico.

    O servial certamente no entende o heri justamente por-que no pode se elevar sua altura. Mas o heri tambm no entende o servial exatamente porque no pode se rebaixar sua posio de subordinado. Uma diferena altamente caracterstica entre os homens saber se esto em condies de silenciar suas foras e seus interesses perante as foras e os interesses inferiores, uma vez que estes, em alguma medida, tambm esto presentes neles. Este um dos motivos pelos quais, em todos os tempos, certas personalidades intelectuais e proeminentes se mantiveram

  • 58 Questes fundamentais da sociologia

    distantes da vida pblica, especialmente porque, em face de um possvel papel de lder, essas mesmas personalidades sentiam o que certa vez formulou um grande poltico ao seu partido: "Sou seu lder, portanto devo segui-los." Apesar da declarao de Bis-marck, segundo a qual a "poltica sempre corrompe o carter", esse desprezo no pode em si mesmo indicar que o indivduo abs-tinente mais valoroso que as pessoas de vida pblica. A declara-o antes revela certa fraqueza e deficincia de autoconfiana nas camadas mais elevadas, caso no ousem rebaixar-se drasticamente de nvel social, como exigido na luta contra a hierarquia - que sempre uma luta pelo nvel mais alto. Torna-se, assim, evidente que os seres humanos individualmente mais elevados, sempre que se omitem do contato com o nvel social inferior, impedem sua elevao social.

  • 3-A sociabilidade (Exemplo de sociologia pura ou formal)

    O motivo bsico pelo qual, aps sua descrio no captulo intro-dutrio, a "sociologia pur' se constituiria como rea especfica de problemas precisa ser agora novamente formulado por meio de um exemplo de sua aplicao. Pois esse motivo no determina somente o princpio de pesquisa mais geral e partilhado com os outros princpios, mas produz ele mesmo o material para o caso de aplicao a ser descrito.

    Contedos (materiais) versus formas de vida social

    O motivo decisivo se estabelece por intermdio de dois conceitos: possvel diferenciar, em cada sociedade, forma e contedo; a prpria sociedade, em geral, significa a interao entre indivduos.

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    E~~a interao surge sempre a partir de determinados impulsos ou da busca de certas finalidades. Instintos erticos, interesses

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    6o Questes fundamentais da sociologia

    objetivos, impulsos religiosos, objetivos de defesa, ataque, jogo, conquista, ajuda, doutrinao e inmeros outros fazem com que o ser humano entre, com os outros, em uma relao de convvio, de atuao com referncia ao outro, com o outro e contra o outro, em um estado de correlao com os outros. lss.o .. quer dizer que

    el~_exen:e efeito sobre o~. demais e tambr;n sofre efeitos por parte d9,es. Essas interaes significam que os portadores individuais daqueles impulsos e finalidades formam uma unidade -mais,exa-tamente, uma "sociedade". . r:.;.) ',-y'"' .' ~ r ' .. ... Ji' ,,,~

    . . I' ' ,...... ' : , ... Defino assim, simultaneamente, como contedo e mat-

    ria da sociao, tudo o que existe nos indivduos e nos lugares col!cretos de toda realidade histrica como impulso, interesse, finalidade, tendncia, condicionamento psquico e movime~to nosjndivduos -tudo o que est presente nele_'de m?do a en-gendrar ou mediatizar os efeitos sobre os outros, ou a receber esses efeitos dos outros.

    E~n si e para si, e~as m;ttrias com as quais a vida se pr~enc?e, essas motivaes que a impulsionam, no tm natureza so-cial. A fome, o amor, o trabalho, a religiosidade, a tcnica, as funes ou os resultados da inteligncia no so, em seu senti-do imediato, por si ss, sociais. So fatores da sociao apenas quando transformam a mera agregao isolaq~ dos indivduos em determinadas formas de estar com o outro e de ser para o ou-tro que pertencem ao conceito geral de interao. A sociao , portanto, a forma (que se realiza de inmeras maneiras distintas) na qual os indivduos, em razo de seus interesses - sensoriais, ideais, momentneos, duradouros, conscientes, inconscientes, movidos pela causalidade ou teleologicamente determinados -, se desenvolvem conjuntamente em direo a uma unidade no

  • A sociabilidade 61

    seio da qual esses interesses se realizam. Esses interesses, sejam eles sensoriais, ideais, momentneos, duradouros, conscientes, inconscientes, casuais ou teleolgicos, formam a base da socie-dade humana.

    - A autonomizao dos contedos

    Nessa conjuntura se aplica uma funo espiritual de significado altamente abrangente. Com base nas condies e nas necessidades prticas, nossa inteligncia, vontade, criatividade e os movimen-tos afetivos, elaboramos o material que tomamos do mundo. De acordo com nossos propsitos, damos a esses materiais determina-das formas, e apenas com tais formas esse material usado como elemento de nossas vidas. Mas essas foras e esses interesses se libe-ram, de um modo peculiar, do servio vida que os havia gerado e aos quais estavam originalmente presos. Tornam-se autnomos, no sentido de que no se podem mais separar do objeto que formaram exclusivamente para seu prprio funcionamento e realizao.

    Por exemplo, todo conhecimento parece ter um sentido na luta pela existncia. Saber o verdadeiro comportamento das coi-sas tem uma utilidade inestimvel para a preservao e o apri-moramento da vida. Mas o conhecimento no mais usado a servio dos propsitos prticos: a cincia tornou-se um valor em si mesma. Ela escolhe seus objetos por si mesma, modela-os com base em suas necessidades internas, e nada questiona para alm de sua prpria realizao.

    Outro exemplo a interpretao de realidades, concretas ou abstratas, segundo unidades espaciais, rtmicas ou sonoras, de

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    62 Questes fundamentais da sociologia

    acordo com seu significado ou organizao, que seguramente sur-giu das exigncias de nossa prtica. CoUliJ.,do, essas interpretaes tQtnam:.se fins em si mesmas e exercem seu efeito por sua pr.pcia ~c;a e_slla prpria lei, sel~tivas e criativas, independentemente .de _seu emaranhado com a vida prtica, e no por causa dela. Ai est a origem da arte, totalmente separada da vida e retirando dela s o g_1:1e lhe serve. A arte cria a si mesma, simultaneamente, pela se-gunda vez. E no entanto as formas por meio das quais ela cria e nas quais ela consiste se criaram nas exigncias e na dinmica da vida.

    A mesma dialtica determina o direito em sua essncia. A par-tir das exigncias impostas pela existncia da sociedade, firmam-se certos modos de conduta individuais que, nesse estgio, so vlidos e ocorrem exclusivamente por essas imposies prticas. medida que o "direito" j surgiu, este no mais o sentido de sua realizao. As condutas somente devem ocorrer porque so "legais", indiferen-tes vida que originalmente as produziu e as dominou at o jiat justitia, pereat mundus ("que se faa justia, mesmo que o mundo pere'). Por mais que o comportamento relativo ao direito tenha suas razes nas finalidades sociais da vida, o direito propriamente dito no tem qualquer "finalidade", justamente porque ele no mais meio. Ele se determina a partir de si mesmo, e no em funo da legitimao de uma outra instncia superior e extrnseca que ditaria como se deve formar a matria da vida.

    Essa guinada- da determinao das formas pelas matrias da vida para a determinao de suas matrias pelas formas que setor-nam valores definitivos- talvez opere de modo mais extensivo em tudo aquilo que chamamos de jogo. As foras, as carncias e os im-pulsos reais da vida produzem as formas de nosso comportamento desejvel para o jogo. Essas formas, contudo, se tornam autnomas

  • A sociabilidade 63

    dos contedos e estmulos autnomos dentro do prprio jogo, ou melhor, como jogo. Caar, conquistar, comprovar foras fsicas e espirituais, competir, pr-se merc do acaso e do capricho de po-deres sobre os quais no se tem qualquer influncia- tudo isso que antes aderia vida em sua seriedade, agora se subtrai a seu fluxo, sua matria, desapega-se da vida. Autonomamente, escolhe ou cria os objetos nos quais ir se testar e representar-se em sua pureza. Isso confere ao jogo tanto sua alegria quanto seu significado simblico, tornando-o diferente do puro divertimento.

    Aqui se encontra a analogia legtima entre jogo e arte. Tanto na arte como no jogo, as formas que se desenvolveram a partir da rea-lidade da vida criaram seu domnio autnomo com relao realidade. de sua origem- que as mantmatreladas vida-que retirarri sua fora e sua profundidade. Sempre que arte e jogo se esvaziam de vida, tornam-se artifcio e mero entretenimento [Spielerez]. Assim, seu significado e sua essncia se encon~ram jus-tamente nessa mudana fundamental pela qual as formas criadas pelas finalidades e pels matrias da vida se desprendem dela e se tornam finalidade e matria de sua prpria exist~cia. Assimilam das realidades da vida somente o que pode se conformar sua prpria natureza e ser absorvido em sua existncia autnoma.

    A sociabilidade como forma autnoma ou forma ldica da sociao

    Esse processo tambm opera na separao daquilo que denominei de "contedo" e "form' da existncia social. O que autentica-mente "social" nessa existncia aquele ser com, para e contra

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    64 Questes fundamentais da sociologia

    com os quais os contedos ou interesses materiais experimentam uma forma ou um fomento por meio de impulsos ou finalidades. Essas formas adquirem ento, puramente por si mesmas e por esse estmulo que delas irradia a partir dessa liberao, uma vida prpria, um exerccio livre de todos os contedos materiais; esse justamente o fenmeno da sociabilidade.

    Quando os homens se encontram em reunies econmicas ou irmandades de sangue, em comunidades de culto ou bandos de assaltantes, isso sempre o resultado das necessidades e de interesses especficos. S que, para alm desses contedos espec-ficos, todas essas formas de sociao so acompanhadas por um sentimento e por uma satisfao de estar justamente socializado, pelo valor da formao da sociedade enquanto tal. Esse impulso leva a essa forma de existncia e que por vezes invoca os conte-dos reais que carregam consigo a sociao em particular. Assim como aquilo que se pode chamar de impulso artstico retira as formas da totalidade de coisas que lhe aparecem, configurando-as em uma imagem especfica e correspondente a esse impulso, o "impulso de sociabilidade", em sua pura efetividade, se desvenci-lha das realidades da vida social e do mero processo de sociao como valor e como felicidade, e constitui assim o que chamamos de "socia~:>ilidade" [ Geselligkeit] em sentido rigoroso.

    No por mero acidente do uso da linguagem o fato de que a sociabilidade, mesmo a mais primitiva, quando assume qualquer sentido e consistncia, d grande valor forma, "for-ma correta". Pois a forma a mtua determinao e interao dos elementos pelos quais se constri uma unidade. Posto que, para a sociabilidade, se colocam de lado as motivaes concretas ligadas delimitao de finalidades da vida, a forma pura, a in-

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    ter-relao interativa dos indivduos, precisa ser acentuada com o mximo de fora e eficcia.

    A sociabilidade se poupa dos atritos por meio de uma rela-o meramente formal com ela. Todavia, quanto mais perfeita for como sociabilidade, mais ela adquire da realidade, tambm para os homens de nvel inferior, um papel simblico que preen-che suas vidas e lhes fornece um significado que o racionalismo superficial busca somente nos contedos concretos. Por isso, como no os encontra ali, esse racionalismo sabe apenas desmerecer a sociabilidade como se ela fosse um conjunto oco. Mas no des-provido de significado o fato de que, em muitas- talvez em todas - lnguas europias, "sociedade" signifique exatamente "convi-vncia socidvet'. Uma sociedade mantida por alguma finalidade consciente, seja ela estatal ou econmica, "sociedade" no sen-tido amplo do termo. Mas somente o socivel exatamente uma "sociedade", sem qualquer outro atributo, porque representa a forma pura, acima de todo contedo especfico de todas as "so-ciedades" unilateralmente caracterizadas. Isso nos fornece uma imagem abstrata, na qual todos os contedos se dissolvem em mero jogo formal.

    lrrealidade, tato, impessoalidade