Sobre a Teoria Do Romance Lukacs

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  • 7/22/2019 Sobre a Teoria Do Romance Lukacs

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    UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANASDEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA

    Antonio Vieira da Silva Filho

    Dialtica e formalismo conceitual: sobre as contradiesinternas Teoria do romance

    So Paulo

    2011

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    Antonio Vieira da Silva Filho

    Dialtica e formalismo conceitual: sobre as contradies

    internas Teoria do romance

    Tese apresentada ao programa de Ps-Graduao em Filosofia doDepartamento de Filosofia daFaculdade de Filosofia, Letras eCincias Humanas da Universidade deSo Paulo, para obteno do ttulo deDoutor em Filosofia sob a orientaodo Prof. Dr. Paulo Eduardo Arantes.

    So Paulo

    2011

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    Eu sou a f [...] queprotesta, [...] o veto pormisso. S o co tem umamo. Ugocsa non coronat.

    Ady

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    Agradecimentos

    Ao meu orientador, Paulo Arantes, pelas reflexes verdadeiramente orientadoras,

    pela confiana e por estar sempre disponvel.

    Aos membros da Banca de Qualificao, professores Arlenice Almeida da Silva e

    Franklin Leopoldo e Silva, pelas observaes e sugestes, bem como pelas

    crticas, que ajudaram a indicar um norte para o prosseguimento do trabalho.

    Ao parecerista da FAPESP, cujos pareceres ajudaram muito no desenvolvimento

    da pesquisa.

    Ilana, pelos dilogos que possibilitaram a efetivao do projeto de pesquisa,

    assim como pela leitura da tese, que muito contribuiu, com sugestes eobservaes, para todo o processo.

    Dona Oneide, minha me, pelo amor, carinho e incentivo. Lidiane, Renato,

    Roberto e Adriano, meus irmos. A este ltimo, pela amizade e presena

    constante e Celiane, minha cunhada.

    Ao seu Leonardo, pelo afeto, pelo interesse sempre reiterado e pela leveza na

    convivncia.

    Aos amigos de So Paulo, pela acolhida e carinho com que sempre me receberam

    e recebem, Sybil, Talita, Jlia, Llian, Pablo, Josberto, Clarissa e Wilson.

    Aos amigos, Ktia, Emiliano, Estnio, Fernando, Mano que esto sempre

    presentes. Ao Emiliano tambm pela disponibilidade em ler a verso final.

    Ao Eduardo Rodrigues (Dudu), pelas aulas de ingls e pela ajuda com traduo.

    Ao Alexandre Cmara Vale pela disponibilidade e solidariedade.

    Ao talo Moura, pela ajuda. Ainda mais na ltima hora.

    Maria Grande e a Elielza (Ded), por manterem a ordem na casa e ajudarem

    com as (no poucas) crianas.

    Otlia, pelas muitas vezes em que, de diferentes maneiras, se envolveu com a

    possibilidade de continuidade desta pesquisa e do doutorado.

    Ao prof. Milton Meira, pela compreenso e gentileza.

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    Mari, Maria Helena e todas as meninas da Secretaria do Departamento de

    Filosofia da USP.

    Aos professores que aceitaram o convite em participar da banca examinadora.

    FAPESP, que me concedeu a bolsa, tornando materialmente possvel a

    confeco da tese.

    Por fim, especialmente, minha mulher, que com seu afeto tornou o percurso, na

    correria do dia-dia, mais suave, florido.e perfumado. Aos meus (nossos) filhos,

    Leonardo, Helosa, Joo, Maria e Luca.

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    Ao meu pai, seu Antnio (In memoriam),que ficaria feliz.

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    Resumo

    Este trabalho tem como ponto de orientao a relao da Teoriadoromancede

    Lukcs com a filosofia da arte de Hegel. O confronto com Hegel se coloca comotentativa de aclarar conceitualmente as relaes da obra do jovem Lukcs com assuas categorias esttico-filosficas, na medida em que essas ltimas apontampara o problema da arte na experincia moderna. A relao entre as duasreflexes estticas se apresenta entrecortada pelos dilogos do autor hngarocom o crculo weberiano historicista, que evidenciam certa divergncia da Teoriado Romancecom os CursosdeEstticade Hegel. O trabalho busca mostrar umconflito interno Teoria do romance entre a perspectiva histrico-dialtica, quedemarca a retomada por Lukcs da unidade hegeliana entre forma artstica econtedo histrico, e o uso metodolgico, de inspirao antidialtica, do mtodotpico-ideal, que se constitui a partir do corte epistmico entre os planos dosconceitos e o da realidade. Esse conflito tem como ponto de partida a divergnciade Lukcs acerca da valorao positiva por Hegel da experincia moderna,valorao que se articula ao diagnstico hegeliano do fim da arte como forma deexposio da verdade moderna e sua substituio pela verdade mediada dafilosofia, capaz de apresentar a liberdade moderna como experincia de totalidadefigurada no Estado. Lukcs, com Hegel, aponta o princpio da subjetividade comofundamento constitutivo da modernidade e do romance. O romance, contudo, emoposio a Hegel, entendido como a exposio verdadeira da nova relao dohomem com a liberdade. Isto se d porque, segundo Lukcs, o princpioconstitutivo da subjetividade romanesca coincide com a experincia fragmentadado mundo moderno. A liberdade subjetiva demarca, como para Hegel, umaexperincia do homem que rompe com as experincias pr-modernas. Elapermanece todavia, para Lukcs, caracterizada pela fragmentao, peloisolamento do homem em relao s estruturas sociais. A totalidade do romance,assim, entendida, por ele como a expresso do carter formal da busca desuperao da fragmentao pelo sujeito isolado da modernidade.

    Palavras-chave: Teoriadoromance, romance, jovem Lukcs, Hegel, pica.

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    Abstract

    This work takes as its point of orientation the relation between Lukcs The Theoryof the Noveland Hegel's philosophy of art. The confrontation with Hegel arises asan attempt to conceptually clarify the relationship of the work of the young Lukcs

    with their aesthetic-philosophical categories to the extent that the latter point to theproblem of art in modern experience. The relation between the two aestheticreflections is presented with intersected dialogues by the hungarian author with theweberian historicist circle, which show some disagreement between The Theory ofthe Noveland theAesthetics Courseby Hegel. The work seeks to show an internalconflict in The Theory of the Novel between the historical-dialectic perspective,which marks the resumption from Lukcs of the hegelian unity between artisticform and historical content, and the methodological use, anti-dialectical inspired, ofthe ideal-typical method, which is constituted from the epistemic cut between theplans and concepts of reality. This conflict has as its starting point the divergenceof Lukcs on the positive evaluation by Hegel of modern experience, valuation

    which is linked to the diagnosis of the hegelianend of art as a way of exposing thetruth and its replacement by truth mediated from philosophy, able to present themodern freedom as an experience of totality figured in the State. Lukcs, withHegel, points the principle of subjectivity as a basis which constitutes modernityand the novel. The novel, however, in opposition to Hegel, is understood as thetrue exhibition of the new relation between man and freedom. This is because,according to Lukcs, the constitutive principle of subjectivity romanesque coincideswith the fragmented experience of the modern world. Freedom subjective marks,as for Hegel, a man's experience that disrupts the pre-modern experience. Itremains, however, for Lukcs, characterized by the fragmentation, by the isolationof man in relation to social structures. The totality of novel is then understood by

    him as the expression of the formal character in a search to overcome thefragmentation of the isolated subject of modernity.

    Keywords: Theory of the novel, romance, young Lukacs, Hegel, epic.

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    Sumrio

    Introduo A Teoria do Romance entre Hegel e Weber 10

    I. Sociedade civil burguesa, lrica e romance

    1. Dialtica histrica, reconciliao e crtica da Modernidade 301.1 A Estticade Hegel e a modernidade 322. O princpio da particularidade na arte e a sociedade civil burguesa 373. Os gneros e o lirismo como princpio da modernidade 423.1 A modernidade, o princpio lrico e o romance 453.2 A crtica do lirismo e o problema da nostalgia 544. A subjetividade, a contradio e os locitranscendentais 584.1 A totalidade do romance e o domnio da forma 65

    4.2 A alma separada do Estado e o problema do esprito 734.3 Esprito e histria 814.4 A recusa lukacsiana da segunda natureza: entre a dialtica e a forma doconstruto 90

    II. O Problema da Forma: a modernidade e a subjetividade contraditria

    1. A forma e a liberdade subjetiva: formalismo e exposio da contradio 1071.1O problema da forma e a dialtica da Teoria do romance 1141..2 A forma na Teoria estticae a Teoria do romance 1161.3 A formao, o formar e a experincia moderna 126

    1.4 O cristianismo e o luciferino como determinaes da subjetividade 1411.5 Os gneros e a composio reflexiva 1482. Os antigos, os modernos: Hegel e a Teoria do romance 1583. A Ironia: da exigncia composicional ao viver a arte 1683.1 A ironia como esforo autocorretivo da subjetividade 1683.2 A ironia entre a autocorreo e a ilimitao 1723.3 A volpia da subjetividade e a normatividade pica 187Concluso 202Bibliografia 220

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    IntroduoA Teoria do Romanceentre Hegel e Weber

    Ao contrrio da maior parte dos comentrios Teoria do romance, esta

    exposio no pretende ler essa obra a partir da pergunta pela sua relao com a

    trajetria de seu autor na primeira fase de sua produo. No se trata, assim, de

    buscar l-la em razo da pergunta pela sua conexo com os outros textos juvenis

    de Lukcs, embora essa observao no descarte que tambm tais relaes

    possam nos interessar. Ela visa, antes, demarcar o foco da nossa investigao e,

    nesse sentido, apontar que as conexes da Teoria do romancecom as demais

    obras de Lukcs nesse perodo, bem como sua diferena especfica com a

    produo do autor em sua maturidade, sero pensadas, quando for o caso, com

    base no objetivo fundamental da nossa leitura da Teoria do romance, qual seja, o

    de perscrutar os seus conceitos centrais no sentido de esmiuar as relaes entre

    essa obra de juventude do autor hngaro e os conceitos esttico-filosficos de

    Hegel.

    No livroAs formas e a vida de Carlos Eduardo Jordo Machado, Hegel

    chamado para participar de uma contenda especfica com o autor da Teoria do

    romance. Machado faz uma longa citao da carta de Lukcs para Paul Ernst, na

    qual destaca a refutao, por parte de Lukcs, da substancializao hegeliana do

    esprito objetivo. O autor de As formas e a vida dedica uma pequena, todavia

    fecunda, discusso relao entre Hegel e o autor da Teoria do romance.1No se

    trata, para ns, como dito, de investigar a Teoria do romance em relao

    trajetria lukacsiana na juventude, tal como se apresenta, por exemplo, em certa

    medida e mantendo suas especificidades, nas referncias Teoria do romancefeitas por Machado, Lwy, Arato e Breines e/ou ainda em Mary Gluck2, mas se

    1Cf. Machado, Carlos Eduardo Jordo.As formas e a vida: esttica e tica no jovem Lukcs(1910-1918). So Paulo: Editora UNESP, 2004, pp. 63-66.2Cf. Lwy, Michael. Para uma sociologia dos intelectuais revolucionrios. A evoluo poltica deLukcs (1909-1929). Traduo de Helosa Helena A. Melo e Agostinho Ferreira Martins. SoPaulo: Lech Livraria Editora Cincias Humanas, 1979. Arato, Andrew; Breines, Paul. El jovem

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    trata de buscar examinar as conexes da Teoria do romancecom as premissas e

    concluses da Estticade Hegel.

    Esses comentadores de Lukcs partem em geral do problema da

    reflexo tico-esttica do jovem hngaro tendo como pano de fundo as reflexes

    do Lukcs maduro, para construir um problema referente obra juvenil. Assim, por

    exemplo, Arato e Braines se perguntam pelo conceito de alienao na obra juvenil,

    Machado pelas relaes entre alma e forma, Lwy pelo lugar da obra juvenil na

    trajetria intelectual de Lukcs. Mapeiam seu problema, como ele se desenvolve e

    se articula nas suas obras de juventude e apenas com base nesse problema, se

    perguntam sobre A teoria do romanceque, assim, entra sempre como momento

    subordinado a essas outras questes. Tomemos, por exemplo, o livro de Arato e

    Breines, O jovem Lukcs e as origens do marxismo ocidental, no qual o conceitode alienao rastreado e discutido no decorrer do processo de desenvolvimento

    na obra juvenil de Lukcs at chegar quela que seria considerada a obra de

    transio (j inserida na fase marxista de Lukcs) entre a juventude e a

    maturidade ou entre o primeiro Lukcs pr-marxista e suas demais obras

    marxistas.

    No se trata, claro, de impugnar as vias de acesso Teoria do

    romanceapresentadas nos comentrios referidos, mas de apontar certa lacuna

    mesmo porque o ponto de partida desses comentadores no o desenvolvimento

    da relao Lukcs-Hegel deixada por tais comentrios, acerca da relao com a

    Esttica de Hegel. Essa relao pode, segundo pensamos, apresentar interesse

    na avaliao das respostas oferecidas por Lukcs, naquele texto juvenil, ao

    problema da arte moderna em sua conexo com o romance, em particular a partir

    da sua compreenso de que o romance aparece como momento propriamente

    artstico-formal de exposio das aporias da experincia histrico-social moderna.

    O carter antagnico, prprio sociedade civil burguesa e essencial

    configurao do mundo pelo romance , segundo pensamos, o tema central na

    Teoria do romance. Esse trao peculiar da sociedade civil burguesa, ao ser

    Lukcs y los orgemes del marxismo occidental. Novo Mxico: Fndo de Cultura Econmica,1986Gluck, Mary. GeorgLukcs and his generation 1900-1918. Cambridge, Massachusetts anLondon, England: Harvard University Press, 1991.

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    articulado tematizao hegeliana do fim da arte processo de esvaziamento

    desta forma como verdadeira forma absoluta de apreenso e explicitao da

    totalidade da experincia moderna permite fazer vir tona, atravs da discusso

    da resposta de Hegel ao carter antagnico da sociedade civil, a especificidade da

    resposta indicada na Teoria do romancecomo uma conexo categorial dupla com

    a Estticade Hegel: de um lado, como assuno positiva do problema do romance

    e das categorias essencialmente modernas que o compe, por outro lado, como

    distanciamento ou recusa das concluses apresentadas pelo autor da Estticano

    que concerne s relaes entre a forma do romance, o Estado e a forma do

    conceito.

    O confronto com Hegel, mediado pelas interrogaes acerca da relao

    problemtica da Teoria do romancecom a Estticae entrecortado pelas conexesdo autor hngaro com o crculo historicista alemo, pode resultar num aclaramento

    conceitual de certos ncleos problemticos da recepo, por Lukcs, da Esttica

    hegeliana. A tese busca evidenciar, em particular, um conflito interno Teoria do

    romanceentre, de um lado, a perspectiva histrico-dialtica, presente na obra de

    Lukcs com base na referncia s Lies sobre a Estticade Hegel,e, de outro, o

    uso metodolgico, tambm essencial obra de 1916, de certo corte de inspirao

    antidialtica, entre o plano dos conceitos e o da realidade, corte explicitado, por

    exemplo, em conceitos como locus transcendental (transzendentalOrt), cujo uso

    por Lukcs foi fortemente influenciado pela epistemologia neokantiana das

    cincias do esprito atravs de suas relaes com o crculo de Weber.

    Lukcs elabora posteriormente, no Prefcio de 1962, essa mescla de

    mtodos diametralmente opostos, que, entretanto, aparecem intimamente

    relacionados na Teoria do romance.3No Prefcio nosdiz ele que [...]A teoria do

    romance a primeira obra das cincias do esprito (geisteswissenschaftliche) em

    que os resultados da filosofia hegeliana foram aplicados concretamente a

    3 importante esclarecer que a referncia ao Prefciode 1962 no significa uma adeso destatese ao ncleo esttico-filosfico das assertivas do autor da Teoria do romanceem sua maturidadequanto sua obra de juventude. Trata-se apenas de indicar que nos apropriamos de elementospontuais dessa leitura sempre que os consideramos fundamentais perspectiva de interpretaoque aqui buscamos, assertivas com as quais tambm nos confrontaremos de modo polmico emoutros momentos.

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    problemas estticos.4 O conflito entre as duas orientaes metodolgicas, que

    devemos explicitar quanto s suas significaes conceituais para as

    consideraes estticas desenvolvidas pelo jovem filsofo hngaro, parece

    constituir aquilo que prprio esttica da Teoria do romance, em razo do que a

    sua explicitao torna-se aqui um imperativo. O que pretendemos mostrar a

    relevncia crucial da assuno das categorias estticas de Hegel na construo

    da arquitetura conceitual da Teoria do romance, projeto que implica tambm a

    necessidade de demarcao dos distanciamentos assumidos pelo jovem Lukcs

    com respeito esttica e a filosofia hegelianas, distanciamentos cuja expresso

    conceitual mediada por sua relao com o crculo de Weber nos primeiros anos

    do sculo passado.

    * * *

    Hegel inicia a anlise diga-se, pouco sistemtica e pouco demorada

    do romance, enquanto desenvolvimento imanente da epopia, com a clebre frase

    que afirma que o romance a modernes brgerliches Epope.5Lukcs, por sua

    vez, comea a sua exposio das duas formas da grande pica afirmando que

    o romance a epopia de uma era para aqual a totalidade extensiva da vida no mais dada de modo evidente, para a qual a

    4 Lukcs, Georg. A teoria do romance: um ensaio histrico-filosfico sobre as formas da grandepica. Traduo, Posfcio e notas de Jos Marcos Mariani de Macedo. So Paulo: DuasCidades; Ed. 34, 2000, p. 11. Doravante, A Teoria do romance ser referida apenas como TR.Todas as citaes e referncias Teoria do romance so cotejadas com o original alemo: Lukcs,Georg. Die Theorie des Romans. Ein Geschichts-philosophischer Versuch ber die Formen derGrossen Epik. Mnchen: DTV, 1994, p. 9. Doravante, o texto original ser referido apenas comoTdR.5Cf. Hegel, F. Cursos de Esttica, vol. IV. Tr. Marco Aurlio Werle e Oliver Tolle So Paulo:EDUSP, 2004, p. 137. Os volumes II e III so traduzidos tambm por Marco Aurlio Werle e OliverTolle: EDUSP, 2000 e 2002, respectivamente. O volume I traduzido por Marco Aurlio Werle 2ed.: EDUSP, 2001; Vorlesungen ber die sthetik, v. 15 (abreviatura: VuAe), p. 392. Doravante asedies brasileiras sero referidas apenas como Esttica, seguida pelo volume. As citaes ereferncias das obras de Hegel so cotejadas com o original alemo. Hegel, Georg WilhelmFriedrich. Werke [in 20 Banden], Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1986. A primeira vez que forreferida vir com o nome da obra no original, volume e abreviatura, depois, apenas a abreviatura eo volume (no caso da Estticaque so em trs volumes, nas outras.obras aparecero apenas aabreviatura).

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    imanncia de sentido vida tornou-seproblemtica, mas que tem por inteno atotalidade.6

    Ambos afirmam, com palavras diferentes, a mesma coisa, qual seja: que o

    romance uma expresso potica da atual configurao prosaica do mundo. Para

    Hegel, o mundo moderno com suas relaes prosaicas no um mundo propcio

    para a poesia, pois as verdadeiras paixes, situaes e a liberdade no aparecem

    mais de forma imediata, mas so mediadas pelas instituies e pela vida tica no

    Estado. O romance , segundo Lukcs, a pica do mundo moderno e, enquanto

    pica, precisa configurar a extenso da vida da qual ela faz parte. Extenso da

    vida significa a principal caracterstica da pica: a narrao objetiva do momento

    histrico-filosfico. Em unidade com isto est a exigncia de uma configuraofechada em si mesma, ou seja, a narrao de uma totalidade. Ora, mas como

    afirma Lukcs, seguindo as pegadas de Hegel, a totalidade do mundo burgus

    no mais evidente como a do mundo da epopia homrica. O mundo moderno

    infinitamente grande e multifacetado para que a forma artstica possa fornecer

    uma unidade efetiva da sua exposio. A frmula lukacsiana para sustentao da

    configurao romntica7 apresentada do seguinte modo: a forma romance tem

    que reduzir ou estreitar aquilo que configura,8 isto , no mais a totalidade

    extensiva da vida o que em termos hegelianos significa dizer a efetividade que

    o romance tem que configurar, mas apenas um recorte, um mundo particular no

    qualo qual o indivduo se move.

    6TR, p. 55; TdR, p. 47.7Lukcs, como Hegel, no separa o conceito de romance do de romntico. Para o autor da Teoria

    do romance, ambos os conceitos so sinnimos. Diz-nos Lukcs que o romantismo alemo,embora nem sempre esclarea em detalhes, estabeleceu uma estreita relao entre o conceito deromance e romntico. Com toda a razo, pois a forma romance, como nenhuma outra, umaexpresso do desabrigo transcendental. Para Hegel, o romance aparece como uma determinaoou diferenciao da forma de arte romntica. E, nesse sentido, como em Lukcs, o romanceapresenta a determinao central do conceito de romntico, qual seja: a subjetividade comoelemento constitutivo da forma e do contedo e a separao entre subjetividade e mundo exterior.Ibid, p. 37; Ibid, pp. 31-2. O romntico moderno, cujo paradigma, na Estticade Hegel, a figurados irmos Schlegel, efetiva e leva a termo o princpio subjetivo da forma de arte romntica.8Ibid, p. 36; Ibid, 30.

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    Se nos debruarmos sobre a arte romntica,9 mais especificamente

    sobre o tpico da autonomia do carter individual do personagem do romance na

    Estticade Hegel, veremos que este a grande referncia de Lukcs para pensar

    o conceito de romance. A determinao principal do contedo e da forma

    romntica , nos termos hegelianos, a subjetividade infinita, que quer dizer que o

    homem, a interioridade, a referncia para configurar, construir e produzir tudo

    que existe. O homem moderno, do romance, pode olhar para todas as direes e,

    nesse sentido, no h mais um contedo objetivo que o force a se fixar. A

    totalidade orgnica da epopia rompeu-se para sempre, isto , a unidade entre a

    ao autnoma do heri e o destino da comunidade, ou, se pensarmos na

    estrutura estatal da plis ateniense, a unidade entre cidado e o destino da plis,

    no mais possvel, porque, na sociedade moderna, tanto a ao individual, comoa engrenagem das instituies do Estado , segundo Hegel, regida por um

    contedo legal objetivo que deixa pouco espao para a subjetividade, para a ao

    individual do heri.

    O mundo moderno , para Hegel, mais desenvolvido, sob o ponto de

    vista da liberdade, que o mundo da epopia homrica, porque a arquitetnica da

    estrutura do mundo moderno comporta o lugar da particularidade, isto ,

    resguarda o lugar da ao individual no interior do Estado. A ao individual aqui,

    todavia, no encarna ou assume nenhum contedo substancial do todo, mas sua

    ao apenas uma ao individual particular entre tantas outras. O contedo

    assumido pelo indivduo um contedo particular, bem como os fins nesse mundo

    particular do sujeito so fins igualmente particulares. No mundo efetivo, do qual o

    romance a expresso, o indivduo burgus assume um contedo particular, cujo

    fim realizar a satisfao de suas carncias.10Da mesma forma o meio para a

    satisfao particular das carncias uma atividade particularizada: no trabalho o

    10 Cf. Hegel, G. W. F. Linhas fundamentais da filosofia do direito ou direito natural e cincia doEstado em compndio. Terceira parte: eticidade. Segunda seo: asociedade civil. Tr. MarcosLutz Mller, Campinas, IFCH/UNICAMP, 2000, 185; Grundlinien der Philosophie des Rechtes(abreviatura:PhRe), vol. 7, 185. Usaremos tambm a parte da Terceira seo: o Estado. Tr.Marcos Lutz Mller Unicamp: IFCH, 1998. Para o restante das partes da Filosofia do direitousaremos a traduo portuguesa de Vitorino. Hegel, F. Princpios da filosofia do Direito. Tr.Orlando Vitorino. Lisboa: Guimares Editores, 1959. Doravante as tradues sero referidasapenas como Filosofia do Direitoseguida do respectivo tradutor.

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    homem especifica e escolhe, dentre uma gama variegada que a natureza

    fornece, o material sobre o qual d forma de acordo com a carncia particular. 11

    Para o mundo da forma romance, o contedo particular do sujeito, o seu mundo

    particular, est em unidade com o fim particular subjetivo. por isso que,falando

    da forma de arte romntica, Hegel afirma que nesta, juntamente com o contedo e

    os fins particulares, est a individualidade viva, para a qual o carter se limita em

    si mesmo.12 Ora, mas tal mundo do carter individual aparece para Hegel como

    abstrato e formal porque o mundo do sujeito particular se encerra, igualmente,

    num mundo particular limitado, ou como ele o diz, contingente.13 O que o

    indivduo , no sustentado e suportado pelo substancial, [...] mas pela

    subjetividade do carter.14

    Na Teoria do romance, Lukcs concorda com Hegel que os elementosdo romance so abstratos. Hegel diz que a configurao do romance um embate

    entre o sentimento do poeta e a vida prosaica e que, de um lado, os indivduos

    inicialmente vo contra a ordem do mundo da prosa e apreendem o autntico e

    substancial nele ou, por outro lado, dissolvem a prosa do mundo na composio

    potica e em seu lugar colocam uma realidade mais prxima da beleza.15Isso, em

    outros termos, significa que eles fazem uma abstrao potica da realidade

    existente.

    A anlise de Lukcs sobre a abstrao dos elementos do romance se

    constitui com base nessas determinaes hegelianas sobre o romance, bastando

    observarmos, para nos convencermos disso, quais so os elementos abstratos,

    apontados pelo autor da Teoria do romance,como constituintes dessa forma da

    11Cf. Ibid, 196; PhRe, 196.12Esttica, vol. II. p. 312; VuAe, vol. 14, p. 199.13Idibid; Idibid.14Idibid; Idibid. A literatura de Shakespeare emblemtica, para o autor da Esttica, para pensar asubjetividade formal e particularidade contingente da forma de arte romntica. Sobre os caracteresde Shakespeare, Hegel afirma que para os seus personagens [...] no entram em questo areligiosidade e uma ao a partir da reconcil iao religiosa dos homens em si mesmos nem o ticoenquanto tal. Pelo contrrio, diante de ns temos indivduos colocados de modo autnomo apenassobre si mesmos, com fins particulares (besonderen Zwecken) que apenas so os seus, queprovm unicamente de sua individualidade, e os quais eles executam com a conseqnciainabalvel da paixo, sem reflexo acessria e universalidade, apenas para a prpriaautosatisfao. Ibid, p. 313; Ibid, p. 200.15Cf. Esttica, vol. IV, p. 138; VuAe, vol. 15, p. 393.

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    grande pica. Primeiramente, ele aponta a constituio da totalidade no romance

    como abstrata, ou seja, a totalidade fechada do romance s se deixa

    sistematizar abstratamente.16 Em seguida, Lukcs comea a nomear os

    elementos abstratos do romance. Deixemos o prprio autor falar dessas

    abstraes: abstrata a aspirao dos homens imbuda da perfeio utpica, que

    s sente a si mesma e a seus desejos como realidade verdadeira.17 Tanto no

    idealismo abstrato como no romantismoda desiluso (tipos da forma romance

    apresentados por Lukcs) o que permanece em primeiro plano o desejo

    profundo do sujeito, traduzido como o que h de mais verdadeiro.

    Em Dom Quixote, expresso do tipo romanesco caracterizado por

    Lukcs como idealismo abstrato, a aspirao utpica do personagem acaba

    esbarrando na efetividade prosaica, isto , a realidade imaginada est aqum darealidade do mundo, por isso o tratamento humorstico dado por Cervantes s

    aspiraes de Dom Quixote. No romance da desiluso, cujo paradigma a

    Educao sentimental de Flaubert, o desejo profundo de realizao utpica

    encarcera a alma do personagem em si mesmo, tornando-o passivo em face da

    fora da realidade existente. Os tipos so os modelos para pensar o elemento

    abstrato da contraposio, de um lado, entre o querer utpico subjetivo sentido

    como a nica realidade verdadeira e, de outro, o mundo efetivo, pois, afinal, a

    aspirao utpica abstrata no romance porque tanto num como noutro tipo

    permanece afastada da realidade, dela abstrada. Lukcs assim define o papel da

    abstrao para a narrativa pica moderna:

    [...] esse sistema abstrato justamente ofundamento ltimo sobre o qual tudo seconstri, mas na realidade dada econfigurada v-se apenas sua distncia emrelao vida concreta, comoconvencionalidade do mundo objetivo ecomo exagerada interioridade do mundosubjetivo.18

    16TR, p. 70; TdR, p. 60.17Idibid; Idibid.18Idibid; Idibid.

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    Embora Wilhelm Meister possua uma maior concretude que Dom

    Quixote no tocante ao ideal perseguido por seus personagens, bem como uma

    [maior] expanso da alma (traduzida na associao entre os homens, expanso

    experimentada numa ao coletiva no mundo) esta tem que permanecer ainda

    abstrata, porque o mundo burgus, no qual e a partir do qual a alma age, no se

    verga a ideais. Para realizar essa unidade romntica Goethe teve que recorrer

    segundo Lukcs, sob a influncia de Schiller19 a elementos formais da epopia

    na composio do Meister, o que denuncia, ainda uma vez, a abstrao

    configurada pelo e no romance. A aplicao de elementos formais da epopia teve

    que fracassar e denunciar mais uma vez a aspirao utpica subjetiva. No

    Meister o escritor recorre a uma forma no problemtica para tentar resolver a

    dissonncia posta pela problemtica burguesa: a impossibilidade de um ideal dehumanidade no interior da realidade social prosaica moderna.

    Esta uma tentativa de fornecer uma maior substancializao s

    estruturas prosaicas: como nos diz Lukcs, a tentativa de apresentar uma

    adequao mais autntica aos sujeitos do dever-ser do que era dado s esferas

    superadas.20 Assim, o autor de Wilhelm Meister, bem como o prprio heri do

    romance, terminam, no obstante sua condio peculiar de sntese e superao

    das duas outras formas do romance apresentadas por Lukcs, por recarem na

    abstrao da subjetividade romanesca, ao fim e ao cabo, ambos pela mesma

    razo: o recurso subjetivo do escritor aos elementos da epopia pois o ideal de

    comunidade que guia o todo da obra necessariamente teria que dirigir o autor para

    tais elementos formais da epopia ndice do reconhecimento da

    impossibilidade de unidade entre alma e mundo efetivo nas atuais relaes

    burguesas. No obstante a sua diferena com o heri do romance da desiluso

    (pois, afinal, Meister age no mundo), o heri de Goethe termina por reconhecer de

    maneira compreensiva a discrepncia entre o homem e o mundo e, desse modo,

    os anseios subjetivos do homem do romance, que aparecem na adaptao

    19Na carta de Schiller a Goethe de 8 de junho de 1976, o primeiro afirma que o romance, assimcomo est, aproxima-se em muitos aspectos da epopia [...]. Correspondncias. Companheiros deviagem: Goethe e Schiller. Apresentao, seleo, traduo e notas Cludia Cavalcanti. SoPaulo: Nova Alexandria, 1993, p. 77.20TR, p. 148; TdR, p. 126.

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    sociedade, na resignada aceitao de suas formas de vida e [n]o encerrar-se em

    si e guardar-se para si da interioridade [...] apenas realizvel na alma. 21

    * * *

    Na primeira parte da Teoria do romance, na qual Lukcs expe as

    condies tericas de compreenso do romance em sua relao com o gnero

    pico, a influncia da Esttica hegeliana apresenta-se com muita clareza e

    transparncia.22Na segunda parte, conforme o juzo de Lukcs na maturidade, se

    apresentaria, na tipologia do romance, uma introduo do que ele chama de

    epistemologia de direita.23 Com isso ele parece se referir ao uso do recurso

    tpico-ideal cuja inspirao mais direta fornecida por Weber que se poderia

    21Ibid, p. 143; Ibid, 121.22 A primeira parte declaradamente de influncia hegeliana, enquanto a segunda parte seriadeterminada pelo mtodo das cincias do esprito, isto , ao invs de um matiz fundamentalmentedialtica para a compreenso histrico-filosfica de certas obras romanescas, o autor hngaroparte, segundo a leitura de Lukcs no Prefcio de 1962, de conceitos sintticos apriori para dadeduzir nos fenmenos tais formas universais. Cf. Ibid, pp. 9-10; Ibid, p. 7.23 Trataremos da influncia em Lukcs do mtodo tipolgico em sua relao mais direta comWeber. No desconhecemos que esse mtodo se institui no processo de discusso acerca dadiferenciao entre o mtodo das cincias do esprito e o mtodo das cincias da natureza,discusso travada desde a segunda metade do sculo XIX e que se desdobra pelo incio do sculoXX, tendo como principais expoentes Rickert, Dilthey, Simmel, Weber etc. No que diz respeito aomtodo tipolgico utilizado por Lukcs na Teoria do romance, Leo Maar destaca a influncia deDilthey, que entende que o mtodo tipolgico utilizado pela arte possibilita um conhecimento maisapropriado do contedo da vida, da histria, do que a cincia. [...] a arte cont[a] com o tpico,diz-nos Leo Maar, o tpico seria a universalidade do individual, o essencial extrado da realidade,e o problema do artista consistiria precisamente na revelao deste tpico. Leo Maar, Wolfgang. Ocorao e as almas. Introduo leitura da teoria polticaem Lukcs. Dissertao de mestrado.Departamento de Filosofia da USP, 1980, p. 39. O jovem Lukcs utiliza na Teoria do romanceomtodo tipolgico da arte para desenvolver a problemtica das formas do romance em sua ntimaconexo com o desenvolvimento do contedo histrico, pois se trata da crena de Lukcs de que atipologia faz aparecer o essencial [...] da realidade. Isto denota um afastamento de Lukcs daaderncia hegeliana a Wissenschaft como forma absoluta da apreenso da verdade, pois, paraLukcs, a filosofia ndice da ciso entre o homem e o mundo, isto , a expresso separada da

    experincia da fragmentao. Cf. TR, pp. 25-26; TdR, pp. 21-2. A limitao do mtodo tipolgico deextrao do essencial da realidade como forma adequada de conhecimento do gnero romance eda relao social que o funda, bem como as implicaes do uso desse mtodo em sua relaocom a dialtica hegeliana ser mais amplamente discutida adiante. Registramos aqui a nossaconscincia de que essa discusso envolve mais amplamente esse conjunto de autores vinculadoao problema das cincias do esprito. Como no se trata de perscrutar geneticamente asinfluncias desse amplo e extenso debate em torno das cincias do esprito, mas de demarcar aespecificidade do mtodo da Teoria do romance em relao a Hegel, nos concentraremos emexpor as influncias mais diretas de Weber e Simmel, que sero apresentadas em diferentes eespecficos contextos.

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    caracterizar nos seguintes termos: o tipo se apresenta como conceito sinttico que

    determina e enforma toda a compreenso do romance. No que se refere

    tentativa juvenil de compreenso das obras literrias singulares com base na

    tipologia, o Lukcs maduro afirma que esse procedimento metodolgico encarcera

    as obras no interior de um conceito sinttico a priori limitado. desse modo, por

    exemplo, que a Teoria doromanceparte do conceito de idealismo abstrato para

    definir o primeiro tipo da sua tipologia do romance, determinado pela estreiteza da

    alma do heri (Held)24 em relao ao mundo, para desenvolver os caracteres

    principais de DomQuixote, de Cervantes.

    Os tipos de romance caracterizariam, assim, uma formalizao, tpica da

    epistemologia do crculo historicista, que retoma a separao kantiana entre forma

    e contedo. Esta separao, no entendimento do socilogo alemo, o quepermite ao cientista a compreenso do carter apenas aproximativo do conceito

    em relao realidade que ele deve explicar. Em razo disso, os

    desenvolvimentos de contedo especficos demarcam sempre certa desproporo

    24Lukcs usa indistintamente o vocbulo Heldtanto para o heri da epopia homrica como para oheri do romance e do drama. Por sua vez, na Esttica, Hegel emprega o termo Heldpara o heriromntico e Hero (que o termo propriamente grego, uma transliterao que permeneceu nalngua alem) para designar o heri grego. O motivo a unidade imediata entre interior e exteriorque o termo Hero conota, isto , a unidade assumida pelo heri da epopia entre o quererautnomo do indivduo e o destino do todo. Do mesmo modo Hegel emprega Heropara significar oheri histrico universal, pois a indiv idualidade deste, tal como a do heri da epopia, apresenta-seem unidade, mesmo sem o saber, com o fim do esprito universal. Se perscrutarmos o termo Hero,usado por Hegel na Enciclopdia das cincias filosficas e na Filosofia da Histria, constatamosque ele emprega esse vocbulo para designar o heri da histria universal, ou seja, o indivduohistrico universal que encarna a unidade entre querer subjetivo e o destino do esprito universal.Escolho, dentre tantas, uma citao de Hegel que corrobora com o que foi dito, ou seja, que a aodo indivduo histrico universal, mesmo quando visa aparentemente apenas o poder e a riqueza,encontra-se em estreita unidade com o esprito de um povo e qui como o esprito universal: [...]se para os heris (Heroen) histricos s fosse questo de interesses subjetivos e formais, noteriam realizado o que realizaram; e h que reconhecer, tendo em vista a unidade do interior e doexterior, que os grandes homens quiseram o que fizeram, e fizeram o que quiseram. Hegel, F.Enciclopdia das cincias filosficas em compndio. A cincia da lgicav. I. tr. Paulo Meneses

    So Paulo: Loyola, 1995, Adendo 140; Enzyclopdie der philosophieschen Wissenschaften imGrundrisse (abeviatura: Enzy), 140. O termo Heldpor sua vez caracteriza uma interioridade esubjetividade que j se encontram apartadas do todo, ausentes no Herogrego. Hegel utiliza, dessemodo, o vocbulo Held para designar o heri ps-helnico, advindo da experincia crist, bemcomo o heri moderno, pensado como o desdobramento e realizao desta mesma experinciacrist. Embora o emprego desses dois vocbulos siga a lgica exposta acima, na Esttica,algumas poucas vezes, Hegel utiliza o vocbulo Heldpara falar do heri homrico. A causa dissoparece estar na especificidade da elaborao da Filosofia da arte de Hegel, a saber: uma obraelaborada e construda a partir de anotaes muitas vezes esparsas e fragmentrias de aulasde Hegel, bem como de seus prprios alunos, postumamente organizados e compilados.

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    em relao forma, pois jamais aparecem puros na realidade que ela deve

    explicar. O tipo ideal em Weber um construto que permite ao cientista investigar

    os fenmenos da realidade. Quadro ideal sinttico, o tipo ideal se constri a

    partir da acentuao de um aspecto ou de vrios pontos de vista, e mediante o

    encadeamento de grande quantidade de fenmenos isoladamente dados, difusos

    e discretos forma-se um quadro homogneo de pensamento que, desse modo,

    aplicado aos fenmenos. O cientista, ao descer aos fenmenos, encontra em

    determinadas realidades particulares representaes mais prximas ou afastadas

    do tipo ideal construdo, mas esse quadro de pensamento nunca encontrado

    empiricamente na realidade.25Outro importante elemento, que o tipo ideal tem,

    para Weber, a funo de eliminar as contradies, sempre presentes, segundo

    seu ponto de vista, na prpria realidade. Esta eliminao da contradio, no querdizer, para o socilogo, que o procedimento tpico-ideal elimine a contradio real,

    mas apenas na esfera da sua representao, ou seja, do ponto de vista da sua

    exposio formal, cientfica.

    Segundo nossa leitura, se parece inegvel a inspirao weberiana na

    tipologia das formas romanescas, por exemplo, na escolha por Lukcs de um

    nico tipo para apresentar o correspondente momento histrico-filosfico (o

    Quixote para o romance do idealismo abstrato, A Educao sentimental para o

    romantismo da desiluso e o Wilhelm Meistercomo uma tentativa de sntese entre

    estes dois), esse uso possui uma especificidade que consiste em mover-se entre

    esta influncia e a relao com a Esttica de Hegel. De um lado, assim, os

    romances so ainda engessados numa tipologia ideal, que dificulta a

    apresentao das contradies internas. Isso visvel, por exemplo, na ausncia

    de um desenvolvimento mais amplo dos elementos contraditrios de cada tipo,

    como no Quixote, ao qual nos referiremos de modo mais especfico no contexto de

    um debate com Fehr. De outro lado, contudo, a nosso ver, o procedimento tpico-

    ideal em Lukcs no se limita a acentuar uma simples escolha arbitrria dos

    25 Cf. Weber, Max. A objetividade do conhecimento nas Cincias Sociais. IN Sociologia (Org.Gabriel Cohn) So Paulo: Editora tica, 1997 pp. 105-6. Cf. tb., Weber, Max. Economia eSociedadI. Teoria da Organizao Social. Tr. Jos Medina Echavarra Mxico: Fondo de CulturaEconomica, p. 4.

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    tipos pelo pesquisador, mas de fato desenvolve segundo a nossa hiptese em

    estreita conexo com a Esttica de Hegel, conexo que buscamos indicar ao

    anunciar a relao entre o conceito de romance do autor hngaro e a Esttica as

    determinaes fundamentais, expostas no romance, da experincia da

    subjetividade em seu desenvolvimento histrico.

    Isso significa que a Teoria do romance, mesmo quando recorre na sua

    exposio ao acervo conceitual tpico-ideal, expe os tipos romanescos segundo o

    princpio negativo pelo qual a subjetividade apresentada por Hegel, ou seja, a

    partir do princpio da contradio, ainda que capte tal princpio apenas em suas

    linhas mais gerais. Se esta exposio em linhas mais gerais no capaz de

    desenvolver internamente cada uma das contradies, reunindo-as numa

    totalidade, isso no elimina, contudo, que tais contradies apaream por meiodos tipos, embora no seja a contradio o que neles enfatizado.

    Se na primeira parte, na qual Lukcs expe as formas da grande pica

    em sua relao com os gneros poticos e com o solo histrico de sua

    configurao, a unidade categorial entre forma e contedo, que expressa a

    dialtica histrica da Estticahegeliana, apresentada por Lukcs, isso possvel

    porque tambm para ele as concluses de Hegel acerca da liberdade, exposta na

    epopia, so corretas, tanto quanto ao contedo como quanto forma. Isso quer

    dizer que ele acolhe a negatividade da liberdade a subjetividade, a interioridade

    como princpio distintivo entre as duas formas da grande pica. No que se refere

    experincia do romance, que objeto da segunda parte, ao contrrio, a

    concordncia de Lukcs com Hegel apenas parcial. Se, de um lado, ele

    concorda com Hegel que o romance a expresso literria de uma nova relao

    do homem com a liberdade, a partir da emergncia da subjetividade, do contedo

    lrico da modernidade, de outro lado, porm, ele discorda das concluses mais

    gerais do autor da Estticaa respeito da experincia socialmoderna.

    Essas concluses levam Hegel a localizar no na arte, mas na filosofia,

    a capacidade de expor a unidade alcanada no mundo histrico presente. Se

    Lukcs compartilha das concluses de Hegel dos contornos mais gerais da arte e

    da literatura modernas, ainda assim, ele discorda, ao mesmo tempo, que essa

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    esfera tenha sido, como opensa Hegel, ultrapassada positivamente pelo conceito

    (filosofia) na realidade histrico-social presente. A nossa hiptese deque este

    ltimo distanciamento fundamental na oposio de Lukcs ao mundo do

    romance, oposio que parece determinar aquilo que o Lukcs maduro chamar

    de epistemologia de direita porque antidialtica da Teoriadoromance, pois

    ela aponta uma fissura entre forma e contedo, entre subjetividade e experincia

    social moderna. Segundo pensamos, essa ruptura precisa se apresentar na forma

    de exposio da Teoria do romancejustamente porque indica o distanciamento do

    seu autor em relao s concluses reconciliadoras de Hegel com a

    modernidade.26O afastamento do contedo histrico-social que o carter formal

    da tipologia parece querer demarcar em relao realidade que o terico deve

    compreender, teria o papel de apresentar o inacabamento ou a insuficincia dessamesma realidade.

    Em termos gerais, o ponto de vista de Lukcs no Prefciode 1962 o

    de que a epistemologia de direita demarcaria o limitado ponto de vista tico da

    recusa ao mundo moderno apresentada na Teoria do romance. Essa recusa se

    exporia numa epistemologia que separa forma e contedo, estando assim em

    contradio com a dialtica que os pensa ( forma e ao contedo) numa relao

    necessria e contraditria, dialtica, entretanto, que estaria tambm presente na

    Teoria do romance. O problema dessa leitura tardiade Lukcs, leitura seguida por

    uma considervel parte de comentadores da Teoria do romance e que contm

    elementos importantes tambm para nossa pesquisa, que ela no parece

    responder suficientemente ao modo como o jovem autor hngaro coaduna essa

    sua recusa tica do presente com os instrumentos conceituais por ele utilizados,

    isto , ela no responde ao problema de porque a posio tica de juventude

    exige a forma tpico-ideal de exposio contra a dialtica especulativa de Hegel.

    Ela no nos explica suficientemente, deste modo, o papel expositivo da tipologia

    romanesca em sua relao interna com a dialtica, limitando-se a propor que

    26Cf. Tertulian, Nicolas. Georg Lukcs: etapas de seu pensamento esttico. Tr. Renira Lisboa deMoura Lima; reviso tcnica Srgio Lessa. So Paulo: Editora UNESP, 2008, p. 97.

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    haveria uma mescla entre ambas na qual os dois mtodos o hegeliano e o das

    cincias do esprito se encontrariam justapostos.

    Esperamos, por essa via de investigao, demonstrar que a recusa por

    Lukcs de seu presente, recusa que ele parece precisar expor sob a forma

    tipolgica, no se desvincula da dialtica histrica, mas, ao contrrio, a supe,

    enquanto acolhe o princpio da subjetividade como marco histrico-conceitual

    distintivo entre a epopia e o romance ou entre o mundo moderno e a Grcia

    arcaica. O problema conceitualmente relevante parece ser o de explicitar que o

    distanciamento da exposio da Teoria do romance da dialtica especulativa de

    Hegel um desdobramento da dialtica (que se assenta no reconhecimento e na

    afirmao da negatividade do sujeito moderno) e no uma simples mescla

    arbitrria entre dois mtodos. A nossa tarefa, ento, consiste em explicitar como oautor da Teoria do romance que reconhece j se aproximar da dialtica

    hegeliana mediado pela crtica da sntese especulativa27 expe essa recusa

    sntese por meio do recurso tipologia, isto , como a tipologia aparece como

    ndice do distanciamento de Lukcs da noo hegeliana de sntese e no da de

    dialtica histrica.

    * * *

    Retomemos brevemente a relao entre a primeira e a segunda partes

    da obra para tentar melhor explicitar o problema. Se inferirmos da afirmao por

    Lukcs na maturidade de que A teoria do romance uma mescla de tica de

    esquerda e epistemologia de direita, que esta ltima se refere formalizao

    tpico-ideal presente na segunda parte da obra, tal inferncia nos levaria, com

    Lukcs, a apontar a influncia da Esttica de Hegel como circunscrita

    substancialmente primeira parte da obra. Mas se a primeira parte a

    fundamentao para a segunda, a relao categorial entre pica e processo

    histrico, desenvolvida na primeira parte, aparece como determinao que

    estrutura o desenvolvimento particular tambm dos tipos apresentados na

    27Cf. TR, p. 15; TdR, pp. 12-13.

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    segunda parte, embora nesta ltima se apresente a divergncia metodolgica

    crucial de Lukcs em relao a Hegel. A compreenso de seu presente como a

    era da perfeita pecaminosidade (Zeitalter der vollendeten Snndhaftigkeit)28

    oposta celebrao hegeliana do presente moderno como realizao da

    liberdade. Essa oposio apresenta uma ruptura entre a apreenso categorial de

    Lukcs da modernidade e do romance, sendo essa ruptura possvel porque

    compartilha, antes, um mesmo horizonte de compreenso da conexo entre a

    experincia subjetiva apresentada no romance e a experincia social moderna.

    Com efeito, os tipos expostos na segunda parte esto em estreita conexo com o

    desenvolvimento histrico do princpio da subjetividade na modernidade, isto ,

    essa tipologia apresenta graduaes do desenvolvimento da subjetividade que se

    expe na forma do romance, mas que apenas so compreensveis quandoremetidos sua relao com o conjunto da experincia moderna e com as

    transformaes da subjetividade experimentadas historicamente.

    Isso no anula inteiramente, embora re-signifique, a afirmao tardo-

    lukacsiana de que na tipologia da forma romanesca o mtodo utilizado o das

    cincias do esprito, isto , que o mtodo de investigao e exposio dos

    fenmenos do romance feito a partir daqueles conceitos gerais sintticos

    referidos acima. Todavia, quando pensamos a decisiva relao entre as duas

    partes, essa afirmao corrobora a hiptese de que tanto a primeira como a

    segunda parte, no so, respectivamente, resultados puros da dialtica hegeliana

    28 Idibid; Ibid, p. 12. No final da Teoriadoromance, Lukcs caracteriza, retomando Fichte, a suapoca, da sociedade moderna do romance, como a era da pecaminosidade. Para deixar registradoo que seria essa poca da pecaminosodade Fichteana, lano mo de Tertulian para explicar demaneira esquemtica o que o autor da Grundzge des gegenwrtigen Zeitalters queria dizer com apoca da vollendete Sndhaftigkeit. Fichte diferenciava, segundo Tertulian, cinco estados oupocas essenciais da humanidade. Reproduzo, portanto, a explanao didtica de Tertulian. Diz-nos ele que a primeira era [...] a da dominao incondicional do instinto sobre a razo: era o

    estado da inocncia da espcie humana. A segunda poca via a razo prtica se transformar emfora constrangedora; os modos de viver dominantes reclamavam a f cega e a obedinciaincondicional: o estado de pecado iniciante (anhebendeSnde). O terceiro momento, a pocado prprio Fichte, seria a emancipao de toda racionalidade, da indiferena em relao verdade e da rejeio de todo princpio de conduta: o estado da perfeita culpabilidade. Openltimo estado ser o reino da razo cientfica, a verdade reconhecida e amada como o valormais alto: o estado de justia em vias de instaurao (anhebendeRechtfertigung). A quinta poca,enfim, ser a do completo triunfo da razo instituda como forma de vida e como principio deorganizao da existncia: ser o estado de justia e de santidade perfeitas. Tertulian, op. cit., pp.108-9.

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    e das cincias do esprito, mas uma terceira forma ou do mtodo prprio Teoria

    do romance, se assim podemos falar.

    Tanto numa como noutra parte a dialtica histrica de Hegel, que se

    apresenta como chave de leitura de ambas, entrecortada e permeada pelo

    mtodo da forma conceitual sinttica ou por conceitos de inspirao

    transcendental. A elucidao das relaes categoriais entre essas influncias da

    Estticae do mtodo das cincias do esprito na primeira e na segunda parte ,

    assim, necessria compreenso tanto da proximidade quanto do afastamento

    experimentado pelo autor da Teoria do romance com relao Estticade Hegel.

    Pensamos que apenas no quadro deste dilogo com a tematizao hegeliana

    que as diferenas se estabelecem, ou seja, que apenas a partir da identidade

    com Hegel que as diferenas em relao a ele podem ser pensadas.Assim, a hiptese que guia este trabalho, para a leitura da Teoria do

    Romance, a de que, no obstante as vrias influncias experimentadas por seu

    autor, Hegel aparece como o ponto de apoio categorial sobre o qual o jovem

    Lukcs se equilibra.29 Isto parece uma obviedade quando nos reportamos

    prpria declarao de Lukcs no Prefciode 1962 Teoria do romance, na qual

    ele afirma que a primeira parte [da Teoria do romance], a mais genrica,

    definida essencialmente por Hegel, afirmao que reforada logo em seguida

    pela assertiva de que alguns estetas e filsofos alemes complementam e

    concretizam os contornos hegelianos genricos (allgemeine).30 Essaobviedade

    da relao crucial entre A teoria do romancee a Estticade Hegel foi, contudo,

    pouco explorada e desdobrada pelos especialistas que se debruaram sobre essa

    obra do jovem Lukcs. Nesses estudos, Hegel mencionado, confrontado na sua

    relao com A teoria do romance, todavia essa influncia e o paralelismo dos

    conceitos estticos de ambos, bem como a discusso e o desenvolvimento de

    seus pontos divergentes, no foram, at onde sabemos, suficientemente

    investigados. Encontramos trabalhos que mencionam a relao do jovem autor

    29 Sobre o perodo da confeco da Teoria do romance, Tertulian afirma que [...] o sistemafilosfico e esttico hegeliano, exercia, naquele momento, uma influncia muito forte em Lukcs noque se referia totalidade de seu horizonte intelectual. Tertulian, op. cit., p. 111.30TR, pp. 11-2; TdR, p. 9 Grifos meus.

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    hngaro com a Esttica e a filosofia hegeliana em geral. Essas, porm, so

    referncias pontuais que no pretendem examinar mais a fundo e tirar concluses

    acerca dessa relao.

    Essa discusso sobre as contradies internas ao mtodo daTeoria do

    romance em sua relao com a Esttica de Hegel , para nossa pesquisa,

    manifestamente no s um problema de mtodo, mas diz respeito ao prprio

    contedo da experincia moderna em suas conexes com as duas grandes

    formas picas. O problema do mtodo da Teoria do romancee sua relao com a

    dialtica hegeliana e as cincias do esprito se apresenta, assim, como via de

    acesso ao problema de fundo que as questes metodolgicas revelam, a saber: o

    mtodo da Teoria do romance apareceria, segundo nossa hiptese, como

    exposio da crtica da experincia moderna, crtica que, ao se expor numadialtica no sinttica, distancia a Teoria do romance, por um lado, da dialtica

    especulativa de Hegel, enquanto esta se apresenta como confirmao da

    experincia moderna, e por outro, das cincias do esprito, enquanto nestas a

    exigncia de no valorao se articula a um mtodo compreensivo que exime o

    terico da literatura de um juzo acerca de seu objeto.

    A nossa hiptese, dito de modo conciso, a de que o mtodo da Teoria

    do romance apresenta-se como condio da exposio de uma dupla distncia,

    que assim demarca a sua perspectiva prpria. De um lado, ele se distancia tanto

    de uma celebrao apenas positiva da epopia em sua oposio experincia

    moderna, como da celebrao positiva da modernidade, esta ltima apresentada

    por Hegel.31 De outro lado, se distancia tambm, nesse duplo afastamento dos

    mundos da epopia e moderno, da mera indicao de sua diferena especfica

    como diferena no valorativa, o que o distancia de um vis tipolgico. A dialtica

    no sinttica apresentada na Teoria do romance exporia, desse modo, tanto a

    assuno positiva da liberdade subjetiva moderna (pela qual a espontaneidade do

    sentido presente epopia criticada, subjetividade apresentada por Hegel e

    31 No que diz respeito distncia do jovem Lukcs em relao positivao hegeliana dopresente, afirma Tertulian que [...] Lukcs aceitava mal a posio tomada por Hegel de admitir arealidade apoiando-se no princpio: tudo o que real tambm racional, e, sobretudo, a teseclebre da reconciliao com a realidade exposta no Prefciode filosofia do direito. Tertulian, op.cit., p. 111.

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    acolhida por Lukcs), quanto a demarcao do seu limite (pela qual a prpria

    posio de Hegel de assuno da identidade entre liberdade subjetiva e

    modernidade que criticada), delimitando a posio de seu autor em sua

    distncia, ao mesmo tempo, da Estticade Hegel e das cincias do esprito com

    as quais ela dialoga.

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    Primeira Parte

    I. Sociedade civil burguesa, lrica e romance.

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    1. Dialtica histrica, reconciliao e crtica da Modernidade

    Na Teoria do romance, retomando uma determinao conceitual da

    Esttica hegeliana, Lukcs entende a forma romance, sob a perspectiva da

    economia dos gneros poticos, como um desenvolvimento interno da epopia.

    Ele compreende tambm e igualmente com base em Hegel a unidade entre as

    duas grandes formas picas, o romance e a epopia, e o solo histrico no qual tais

    formas so configuradas. Diz-nos Lukcs que epopia e romance, ambas as

    objetivaes da grande pica, no diferem pelas intenes configuradoras, mas

    pelos dados histrico-filosficos (geschichtsphilosophichen)com que se deparam

    para a configurao.32Estas duas determinaes so desdobramentos internos

    de uma mesma unidade: entre forma artstica e contedo histrico-social,determinaes que assim se apropriam do ponto essencial do esforo conceitual

    da Esttica hegeliana e estruturam o conjunto da exposio da Teoria do

    romance, dando inteligibilidade totalidade da obra. Se, de um lado, Lukcs

    concebe a forma artstico-potica a partir dos dados histrico-filosficos com que

    [esta] se depara para a configurao, isto , como unidade entre forma e

    contedo, concepo que o vincula diretamente Esttica hegeliana; por outro

    lado, ele se distancia da identidade apresentada por Hegel entre a liberdade

    plenamente desenvolvida e a poca moderna, identidade cuja totalidade e

    verdade, para Hegel, apenas o discurso filosfico capaz de fornecer. Afirma

    Hegel que a cincia filosfica precisamente o fundamento do racional, [...] a

    apreenso (Erfassen) do presente e do efetivo (wirklich).33O corte fundamental

    com o pensamento hegeliano determinado pela concepo da modernidadepelo

    autor da Teoria do romance, pois, ao invs de conceb-la como cumprimento da

    liberdade do esprito, tal como a pensa Hegel, a compreende como a configurao

    acabada da dissonncia entre eu e mundo, interioridade e exterioridade, vida e

    sentido.

    32TR, p. 55; TdR, p. 47.33Filosofia do direito. Tr. Vitorino, p. 13; PhRe, p. 24. Traduo levemente modificada.

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    Hegel pensa a experincia moderna como aquela na qual a figura tica

    do Estado se apresenta como a realidade efetiva da ideia tica,34 onde a

    liberdade do homem cumpriu o desenvolvimento de todos os seus lados, isto ,

    como uma figurao histrica na qual a liberdade se realiza pela primeira vez

    como particularidade (Besonderheit), na esfera da economia, ao mesmo tempo em

    que se realiza objetivamente, em seu acordo como cidado, no fim universal do

    Estado.35 Essa esfera da sociedade civil burguesa, a mediao pela

    particularidade, segundo pensa Hegel, apresenta uma liberdade ainda formal, pois

    nela o indivduo visa somente os fins particulares. Esta particularidade da

    liberdade, o egosmo do homem na sociedade civil burguesa ultrapassado na

    esfera da liberdade universal do Estado ou, como nos diz Hegel no final da

    Filosofia da Histria, quando o homem alcana a liberdade objetiva, as leis daliberdade real [do Estado, que] exigem a submisso da vontade contingente; pois

    esta sempre formal (formell).36

    Tal imagem da vida moderna, como efetivao de um certo

    acabamento da liberdade do homem, supe que a esfera mais ampla do Estado

    capaz de corrigir o particularismo ou o privatismo da sociedade civil burguesa. Ao

    mesmo tempo, ela afirma a capacidade desse Estado de comportar ou acatar este

    desenvolvimento da particularidade. essa imagem que se encontra no centro datese hegeliana de uma superao da arte pela filosofia, bem como da especfica

    diferena entre a epopia e a pica moderna, todas temticas ponderadas com

    fundamento nessa compreenso do desenvolvimento do esprito que culmina na

    modernidade.

    34 Cf. Filosofia do direito. Tr. Mller, 257; PhRe, 257.35Cf. Ibid, 258; Ibid, 258.36Cf. Hegel, G.W.F. Lecciones sobre la filosofia de la historia universal. Tr. Jos Gaos Madrid:Alianza Editorial, 1989, p. 701; A traduo espanhola, doravante ser referida apenas comoFilosofia da histria. Utilizo a traduo espanhola das Lies sobre filosofia da histria que soacrescidas de notas de alunos feitas a partir da edio de G. Lasson. H certas passagens destaedio, por se tratar de uma traduo baseada numa edio ampliada com anotaes de alunos,que no se encontram na edio das obras completas, baseada na edio de Karl Hegel. Dessemodo, optei por fazer a referncia apenas da traduo espanhola, referncia cotejada, quandopossvel, com o original alemo.

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    Na dcada de 1960 Lukcs elabora da seguinte maneira a sua

    oposio juvenil compreenso hegeliana do presente, essa que se expe na

    assuno hegeliana do Estado moderno como realizao da liberdade. Diz-nos

    Lukcs que por si s evidente que [a] oposio entre A Teoria do romancee

    Hegel, seu guia metodolgico universal, primordialmente de natureza social, no

    esttico-filosfica.37Para entendermos quais so essas divergncias de natureza

    social e o seu rebatimento no nvel da exposio categorial de cada um dos

    autores, preciso, primeiramente, pensarmos o problema da arte na concepo

    hegeliana no sentido de explicitar porque a arte no pode, para Hegel, expor

    verdadeiramente o mundo moderno. Essa proposio sintetiza a divergncia entre

    o jovem Lukcs e Hegel quanto s formas de exposio da modernidade,

    divergncia que demarca tanto a convergncia categorial quanto a ruptura dojovem Lukcs com os problemas herdados da Estticade Hegel.

    1.1 A Estticade Hegel e a modernidade

    A estrutura tridica da sociedade moderna, conforme Hegel, torna-se

    demasiadamente intrincada e mediada para a apreenso e exposio artstica. A

    assertiva hegeliana, na Filosofia do direito, de que a modernidade a poca que

    faz jus ao conceito, explicita a identidade que h entre a mediada sociedade

    moderna e a sua forma verdadeira de exposio, a filosofia. Diz ele que a criao

    da sociedade civil pertence, de resto, ao mundo moderno, que, pela primeira vez,

    faz justia a todas as determinaes da Ideia.38 A arte, que outrora, na

    experincia grega, ainda era capaz de apresentar a verdade, se torna na

    modernidade um problema, pois no est apta a apreender e apresentar a

    totalidade da experincia mais desenvolvida e determinada da liberdade, aquela

    que se apresenta agora atravs do desenvolvimento da particularidade na esfera

    da sociedade civil burguesa. Para Hegel, a impossibilidade da arte de expor a

    37TR, p. 14; TdR, p. 12.38Filosofia do direito. Tr. Mller,Adendo 182; PhRe, Zusatz 182.

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    liberdade moderna determinada pelo carter imediato da arte, isto , pelo fato da

    atividade artstica apresentar a verdade numa unidade sensvel entre o universal e

    o particular. Esse carter imediato da exposio artstica a impossibilita de

    desenvolver adequadamente as diversas contradies que aparecem quando a

    particularidade entra em cena, pois a arte no comporta a exposio das muitas

    mediaes agora necessrias exposio da totalidade. As contradies

    apresentadas pelo desenvolvimento da particularidade, embora desenvolvidas no

    interior de uma totalidade objetiva, a do mundo moderno, apenas se apresentam

    artisticamente sob o ponto de vista do sujeito, do indivduo portador de tais

    contradies, ponto de vista fragmentrio e contraposto totalidade objetiva. Em

    razo disso, a arte se converte, na modernidade, numa forma expositiva que se

    restringe ao mbito da prpria particularidade, isto , ela no pode mais expor atotalidade social, mas apenas o fragmentado mundo das particularidades

    subjetivas.39

    A arte moderna configura uma totalidade, um mundo fechado em si

    mesmo, todavia esse mundo no o mundo efetivo, que agora apenas pode

    aparecer segundo as mediaes que o conceito apresenta. Ela configura, assim,

    apenas uma totalidade artificial, distinta da prpria efetividade. Diz Hegel que

    j que a obra de arte expe na forma daapario [Erscheinung] real, a unidadedeve, para no ameaar o reflexo vivo doefetivo, ser ela mesma apenas o vnculointerior que, aparentemente, sem inteno,mantm unidas as partes e as encerra emuma totalidade orgnica. Esta unidadeplena de alma do orgnico aquela quesozinha capaz de produzir o poticopropriamente dito [a artificialidade] emoposio conformidade a fins prosaica.40

    39 Cf. Enciclopdia das Cincias Filosficas III. Filosofia do Esprito. Tr. Paulo Meneses. SoPaulo: Loyola, 1995, 556 ss; Enzy, vol. 10, 556 ss. Cf. tb., Esttica, vol. II, pp. 309 ss;VuAe, vol. 14, pp. 198 ss.40Ibid, vol. IV, p. 34; Ibid, vol. 15, p. 254.

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    Para entendermos como esse diagnstico da arte na modernidade se

    desdobra numa afirmao da perda do valor expositivo da arte e seu

    deslocamento para a filosofia, preciso entender que a verdade ou o valor de

    exposio da arte, para Hegel, tem a ver com o vnculo que a forma de exposio

    capaz de apresentar com a realidade efetiva.A forma de arte potica em geral

    possui o carter de no rivalidade com o efetivo. Isso se d porque o que

    interior, a ao formativa do poeta, qual Hegel se refere na citao acima, a

    instncia que deve fornecer a unidade imediata entre o particular das aes

    individuais e o contedo universal da liberdade do esprito que a poesia deve

    expor. O vnculo interior, na forma de arte potica, , desse modo, quem fornece

    a unidade entre as partes e o todo da obra. Caso pensemos a partir da dialtica

    das formas artsticas, ou seja, da configurao da arte efetivada no seu respectivosolo histrico, pode-se afirmar que a interioridade que fornece a forma da

    totalidade da obra aparece de maneira distinta nas diversas experincias

    histricas.

    Para Hegel, assim, na experincia artstica trgica, cujo solo histrico

    a polisateniense, a interioridade potica, que mantm em unidade as partes e o

    todo da obra, mais acentuada do que na epopia homrica. Isto se d porque na

    experincia da polis, aquilo que Lukcs ir denominar de sentido imanente vida, j acenava para uma evaso transcendental do sentido que se realiza

    efetivamente no perodo ps-helnico. Dito de outro modo, a unidade entre a

    individualidade e o todo na efetividade histrica, para de novo falar em termos

    hegelianos, plenamente presente na experincia homrica, j estava em vias de

    dissoluo pela introduo da liberdade individual, justamente aquela trazida

    cena, de maneira ainda germinal, na experincia democrtica da polis. O carter

    de no rivalidade da arte potica com a existncia efetiva j aparecia, de certa

    forma, mitigado pela subjetividade formadora do poeta, pois na Grcia ateniense

    j havia uma vida prosaica no interior de um Estado constitudo. Homero pde

    configurar poeticamente a realidade grega, porque a sua subjetividade formadora

    que aparecia a ainda de forma embrionria no rivalizava, mas, antes,

    expunha a totalidade orgnica no interior da qual esta mesma subjetividade estava

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    imersa e da qual ela inseparvel. O mesmo j no pode ser dito da

    individualidade dos trgicos da polis, nos quais a possibilidade de criao deriva

    no da imerso no todo, da imanncia imediata do sentido, mas j supe e requer

    o esforo propriamente autnomo, subjetivo, do prprio poeta. Nesse sentido, a

    subjetividade formadora do artista da polisse diferencia da de Homero, posto que

    o artista no pertence mais a uma forma social manifestamente potica, como o

    poeta da epopia, mas a mentalidade do artista, por pertencer a uma ordem

    estatal, deve se afastar minimamente da vida da prosa presente para apresentar,

    assim, uma unidade artstica imediata entre a totalidade e a ao do heri. Um

    exemplo desse afastamento, como ndice da subjetividade formadora, aparece no

    resgate pelos artistas da polisdo contedo herico configurado por Homero.

    Se,em geral, o carter verdadeiro da arte como um todo e tambm da

    poesia, para Hegel, a exposio da unidade imediata entre particular e universal,

    a exposio do contedo espiritual numa forma imagtica, na modernidade esta

    relao se torna problemtica, pois a subjetividade formadora no se encontra

    mais em unidade imediata com a totalidade. Isto significa que o prprio artista,

    como subjetividade formadora, desenvolve contedos cada vez mais particulares,

    que assim j no carregam em si, imediatamente, o substancial ou o universal no

    sentido da objetividade, da vida tica. Estes contedos particulares, todavia, onimo, o sentimento, tudo aquilo que diz da vida interior subjetiva do poeta,

    somente pode se apresentar universalmente atravs da reflexo, pela qual os

    contedos em si particulares podem aparecer universalmente. A universalidade

    que resulta dessa reflexo do artista, entretanto, para Hegel, nada diz do que

    verdadeiro no sentido da objetividade, da vida tica, mas apenas universaliza os

    contedos da prpria subjetividade que todo sujeito moderno pode, em alguma

    medida, compartilhar.

    por isso que, para Hegel, em tal contexto a arte aparece apenas como

    momento subordinado, como exposio da particularidade, dada a incapacidade

    da subjetividade formadora em apresentar a totalidade tambm do ponto de vista

    da sua objetividade. que quando a subjetividade se torna autnoma em relao

    ao todo, sob essa determinao da autonomia subjetiva, a arte deve se apresentar

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    na forma da unilateralidade, da sua separao em relao totalidade enquanto

    esta efetivamente existente. Se Homero estava de imediato imerso na

    totalidade, o artista moderno, ao contrrio, apenas artificialmente pode criar uma

    totalidade aqui tornada formal, posto que irremediavelmente referida a esse

    seu lado subjetivo j que o ponto de vista do qual ele parte o da sua

    particularidade.

    A consolidao do cristianismo nesse caso, a igreja catlica, porque

    ela aparece como a expresso do cristianismo em que arte ainda tem um lugar

    entendida por Hegel como o decreto da sepultura da arte como exposio

    verdadeira do absoluto. Isso porque a experincia crist j comporta em sua

    constituio o momento da mediao ou a emergncia da subjetividade, esse que

    caracteriza a experincia moderna. No cristianismo a divindade de Deus no mais

    se mostra de modo imediato. A a arte surge como um apndice e no como

    justificada e validada em si mesma. A arte apenas o meio e no a exposio da

    prpria verdade, que agora diretamente referida ao esprito, uma verdade

    religiosa. A religio, diz-nos Hegel falando da religio crist, freqentemente se

    serve da arte para aproximar a verdade religiosa da sensao.41

    Na experincia da polisateniense, ao contrrio, a arte ocupava lugar de

    destaque, ou melhor, era a prpria forma de exposio da verdade. A religio

    grega considerada, por Hegel, como a religio da beleza, porque foi a poesia

    que criou os deuses e os preceitos religiosos para os atenienses. A poesia

    tambm serviu de base para a constituio poltica ateniense, pois a polismais

    desenvolvida recebe da hierarquia olmpica e da incipiente deliberao dos heris

    argivos na assemblia, descritas por Homero, a base precpua da (e para o

    estabelecimento) constituio democrtica.42 Se a religio crist o princpio a

    partir do qual a arte romntica se constitui, na experincia grega, ao contrrio, abeleza potica que fornece o princpio religioso. A transmutao da vida poltica

    41Ibid, vol. I, p. 116; Ibid, vol. 13, p. 140.42Sobre o aspecto primordial que fundamenta a constituio democrtica ateniense, diz-nos Hegelque a constituio mesma, como algo essencial, no pode ser um objeto para a democraciagrega; no pode haver deliberaes nem resolues sobre a constituio, seno que a constituioconsiste precisamente nisto, em que os cidados deliberem e resolvam; isto o nico fixo.Filosofia da histria, p. 457.

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    configurada na epopia homrica, na qual o Estado estava ausente, para uma

    constituio estatal formada, possvel porque a unidade imediata entre indivduo

    e comunidade, exposta por Homero, transforma-se numa outra unidade, tambm

    imediata, na polis, entre cidado e Estado, constituio e cidado, indivduo e

    todo. A experincia da unidade imediata apresentada na totalidade da experincia

    grega, seja na vida religiosa, na poltica ou na vida cotidiana do cidado na gora,

    est em consonncia com o conceito artstico estabelecido por Hegel, da a

    necessria unidade entre experincia histrica grega e conceito de arte.43 nesse

    sentido que Hegel diz: [...] entre os gregos [...] a arte era a forma suprema pela

    qual o povo se representava os deuses e fornecia a si uma conscincia da

    verdade.44

    2. O princpio da particularidade na arte e a sociedade civil

    burguesa

    O carter artstico do mundo grego, a unidade imediata entre cidado e

    Estado ateniense denuncia, para Hegel, o carter pouco desenvolvido dessa

    experincia social. nesse sentido que tambm o modo de exposio associado

    a tal experincia aparece como pouco desenvolvido, pouco determinado. Isto

    ocorre porque o princpio da particularidade (Besonderheit), quer dizer, o princpio

    da liberdade subjetiva em sua diferena com o todo, que se consolidar como a

    determinao da sociedade civil burguesa, estava ausente da experincia grega,

    ou melhor, aparece a, mesmo na sua incipincia, apenas como princpio

    dissolutor da unidade imediata entre as finalidades individuais e a finalidade do

    Estado. Diz Hegel que:

    no interior dessa liberdade mesma [grega]desperta a necessidade de uma liberdade

    43 Cf. Filho, Antonio Vieira. Poesia e Prosa. Arte e filosofia na Esttica de Hegel. Campinas:Pontes Editores, 2008, pp. 68 ss.44Esttica, vol. I, p. 116; VuAe, vol. 13, p. 141.

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    superior do sujeito em si mesmo, quereivindica ser livre no apenas no Estado,enquanto todo substancial, [...] mas em seuprprio interior, na medida em que quergerar para si a partir de si mesmo o bem e ocorreto em seu saber subjetivo e o levar ao

    reconhecimento.45

    Na Filosofia do direito Hegel apresenta o aparecimento histrico da

    sociedade civil burguesa a esfera da mediao na prpria efetividade como

    aquele que coincide com a autonomia formal da subjetividade e demarca o seu

    pertencimento e a sua consolidao como prprios da experincia moderna.

    Trata-se de mostrar que o princpio da particularidade, da mediao significada

    por ela entre o indivduo particular e o cidado do Estado, surge como o momento

    em que irrompe a corrupo dos costumes nos Estados pr-modernos.46 A

    liberdade dos indivduos na esfera da sociedade civil burguesa apresentada por

    Hegel como ainda formal porque o que eles perseguem na satisfao das

    carncias apenas um fim particular. Diz-nos Hegel que esta libertao formal

    (formell), visto que a particularidade (Besonderheit) de fins continua sendo o

    contedo que lhe serve de fundamento.47

    Hegel, na Esttica, explica o que a liberdade formal, configurada pela

    arte romntica, significa, quando acentua, neste momento, que o esprito se retira

    da exterioridade e se centra em si mesmo. A matria romntica do crculo

    religioso, como a primeira forma de exposio da arte romntica, os aspectos

    exteriores da apario de Cristo: vida, morte, os discpulos, ressurreio, etc., so

    ultrapassados e superados pelo retorno do esprito para o interior do homem.

    Afirma Hegel que nesse momento da forma de arte romntica

    [...] o mundo do particular (Welt desBensonderen), do existente em geral, quese torna livre para si e, na medida em queno aparece penetrado pela religio e pelareunio na unidade absoluta, se coloca

    45Ibid, vol. II, p. 242; Ibid, vol. 14, p. 118.46Cf. Filosofia do direito. Tr.Mller, 185; PhRe, 185.47Ibid, 195; Ibid, 195.

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    sobre seus prprios ps e se moveautonomamente em seu prprio mbito.48

    O homem aqui se refere a si e se prende apenas a fins particulares, o

    que significa que, para a arte, que tem a pretenso de apresentar a unidadeimediata entre interior e exterior, esses lados tornam-se formais, na medida que

    o que substancialmente exterior se mostra separado da subjetividade. O que

    tico e substancial preterido pelo fim particular subjetivo, que quando quer

    realizar tal fim entra em coliso com os outros fins particulares. Na Filosofia do

    direitoHegel identifica a luta pela realizao dos fins subjetivos como o sistema da

    eticidade perdida nos seus extremos.49A forma da arte romntica apresenta essa

    luta atravs do que Hegel nomeia como a autonomia formal dos particulares

    individuais, na qual o que conta o mundo particular, o querer e os fins

    individuais. Desta espcie, afirma Hegel, so principalmente os caracteres de

    Shakespeare, nos quais a firmeza frrea e unilateralidade constituem o aspecto

    particularmente admirvel.50

    A imediatidade que Hegel apresenta como prpria exposio artstica,

    est assim, agora, em dissonncia com este aparecimento da particularidade na

    efetividade histrica. A experincia intuitiva e representativa da arte apenas se

    mostra como exposio verdadeiramente absoluta quando seu conceito encontra

    na experincia histrica a unidade das premissas categoriais do prprio conceito

    de arte. A experincia mediada e particularizada moderna no pode mais ser

    verdadeiramente exposta pela poesia, pois esta deve apresentar o particular das

    aes dos personagens naquela unidade imediata com a totalidade. A poesia

    deve, assim, mostrar o universal em imediata ligao com a individualidade do

    heri. Na experincia mediada da sociedade moderna esta relao imediata entre

    a vontade particular e o fim universal, como dito, no mais ocorre e por isso apoesia no pode explicar e expor a verdade, ao menos enquanto esta concebida

    como a verdade do todo efetivamente existente. O que lhe resta somente

    48Esttica, vol. II, p. 309; VuAe, vol. 14, 195.49Cf. Filosofia do direito. Tr. Mller, 184; PhRe, 184.50Esttica, vol. II, p. 313; VuAe, vol. 14, p. 200.

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    mostrar, a partir de um mundo criado, o indivduo da sociedade civil burguesa em

    unidade com um mundo contingente e abstrato, igualmente particularizado, aquele

    formado com base no seu querer subjetivo.

    O modo como Hegel pensa essa caracterstica da poesia moderna fica

    claro quando tomamos um exemplo como Os Bandidos, de Schiller. A imediatez

    da ao individual de um personagem como Karl Moon mostra-se na assuno,

    por este, de direitos, que no coincidem com a norma jurdica do Estado, que

    legitimam a sua ao de bandoleiro para vingar a morte do pai e reconquistar o

    reino surrupiado. No se trata aqui de valorar, como Hegel o faz negativamente, a

    obra de Schiller, mas somente de ilustrar o que dizemos a partir do autor da

    Esttica:a ao individual do heri que no mais heri em razo de portar em

    si mesmo a verdade do todo tico, mas, no caso da poesia moderna, apenas

    enquanto se exila deste mesmo todo est apenas em consonncia com o seu

    prprio mundo contingente e abstrato, fechado e criado pela obra. Essa no expe

    uma unidade imediata entre a ao individual do heri e a norma tica do Estado

    efetivo. No Estado moderno a ao imediata do heri apenas pode se apresentar

    em dissonncia ou no mnimo em exlio em relao constituio legal estatal,

    pois nela no h mais, conforme Hegel, espao para uma vida de bandidos, pois

    a justia do fazer com as prprias mos, a vingana, j no tem mais lugar.51

    por isso que para Hegel, no mundo moderno apenas a filosofia

    capaz de apresentar a verdade, pois ela no expe um mundo autonomamente

    formado, segundo a sua concepo, mas apreende conceitualmente a efetividade,

    isto , a subjetividade, enquanto esta participa verdadeiramente do e em

    consonncia com o todo tico objetivo. Nessa apreenso conceitual a filosofia

    pode se haver com a universalidade e a singularidade por meio da particularidade

    efetiva, reconstituindo as conexes imanentes e necessrias entre estasdeterminaes.52No se trata, assim, como pensa Hegel, tal como acontece na

    51Cf. Ibid, vol. I, pp. 203-4; Ibid, vol. 13, p. 255.52 Na deduo filosfica, a saber, [se] manifesta certamente a necessidade e a realidade doparticular, contudo, demonstra expressamente por meio do superar dialtico do mesmo,novamente em cada particular, que ele encontra apenas em sua unidade concreta primeiro a suaverdade e a sua consistncia. Ibid, vol. IV, p. 35; Ibid, vol. 15, p. 255.

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    poesia, de apresentar imediatamente a legitimidade da ao individual em unidade

    com o universal criado a partir da obra, mas de pensar como cada ao individual

    somente tem legitimidade se mediada por outras aes igualmente individuais,

    bem como mediada pela universalidade, mais desenvolvida e concreta que todas

    essas aes individuais, apresentada no Estado.

    A sociedade civil burguesa hegeliana, que essa exposio conceitual

    da particularidade, de um lado o lugar das necessidades naturais e do arbtrio

    e, assim, da particularidade e da contingncia. Por outro lado, todavia, porque

    essas mesmas carncias devem supor uma relao entre as demais carncias e o

    seu suprimento, ela j porta na prpria esfera da particularidade, segundo Hegel,

    certa universalidade, constituda por meio dessa relao negativa entre os

    particulares. Neste momento da sociedade civil burguesa j se apresenta assim,

    uma centelha de universalidade, ainda que em cores foscas, na necessria

    relao entre os indivduos na produo e satisfao das carncias. A satisfao

    das carncias subjetivas e a realizao dos arbtrios particulares se realiza na

    necessria conexo com os demais arbtrios e com as outras formas particulares

    de satisfao das carncias. Hegel afirma que pela sua relao aos outros, o fim

    particular se d a forma da universalidade e se satisfaz enquanto, ao mesmo

    tempo, satisfaz conjuntamente o bem-prprio de outrem.53

    Essa mediao entre o particular e o universal ainda insuficiente e

    denunciada em sua indeterminao por Hegel, pois uma particularidade

    mediada apenas na esfera das carncias, portanto, do particular. H uma

    mediao superior e mais determinada, na qual a ao individual pode ser

    justificada. A unidade entre o indivduo das paixes da sociedade civil burguesa e

    o cidado do Estado realizada, em sua efetividade, atravs da mediao deste

    ltimo, na qual a ao individual se apresenta legitimamente justificada apenas ena medida em que uma ao que tem esta instituio como fim ltimo. 54Essa

    intrincada mediao, prpria ao mundo moderno, , ainda segundo Hegel, o que,

    53Filosofia do direito. Tr. Mller, 182; PhRe, 182.54Ibid, 258; Ibid, 258.

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    finalmente, no pode ser exposto em sua necessidade racional, pela limitada

    forma de exposio artstica.

    A divergncia crucial entre Lukcs e Hegel, conforme mencionado

    acima, que, para este, a poca moderna alcana sua verdade e totalidade no

    Estado, que suspende o momento de antagonismo da sociedade civil burguesa,

    enquanto para o autor hngaro, ao contrrio, a poca moderna se determina pela

    separao do indivduo em relao s estruturas sociais que, na sociedade

    moderna, se unificam no Estado. A dissonncia entre eu e mundo que demarca

    a solido do homem da lrica ou o sujeito fragmentado alguns dos termos

    utilizados por Lukcs para significar essa determinao do homem moderno

    corresponde ao momento da sociedade civil burguesa hegeliana e , para Lukcs,

    o que determina a verdade da experincia moderna, sendo tal separao o

    fundamento do mundo no qual se produz o romance como forma. Com base

    nessa divergncia acerca do sentido da experincia moderna, se desdobram

    algumas das relaes mais importantes para o nosso problema, pois o modo

    como Hegel e Lukcs articulam, respectivamente, as suas reflexes acerca da

    epopia, da lrica e do romance aponta para a importncia crucial do problema da

    valorao da modernidade.

    3. Os gneros e o lirismo como princpio da modernidade

    Hegel pensa a lrica como a mais determinada e desenvolvida das

    formas de arte potica, porque ela a expresso artstica da consolidao

    moderna do princpio da subjetividade. A lrica, mais do que o drama, segundo a

    concepo de Hegel, necessita, para o seu desenvolvimento, de uma poca na

    qual as relaes sociais sejam mediadas pelo Estado. Para a consolidao da

    lrica necessria uma organizao social que tenha um desenvolvimento

    material e espiritual capaz de permitir ao homem voltar-se primordialmente para o

    seu interior e sentimento, nos quais a forma da particularidade o principio vetor.

    Nesse sentido, nos diz Hegel que

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    se, a saber, exigimos para a poca doflorescimento da epopia propriamente ditaum estado nacional ainda no desenvolvidono todo, ainda no amadurecido para a

    prosa da efetividade, para a lrica, aocontrrio, tais pocas so particularmentepropcias, as quais j produziram umaordem tornada acabada em maior ou menorgrau das relaes da vida, pois s nessesdias o homem singular se reflete em simesmo perante este mundo exterior e seisola para seu interior para uma totalidadeautnoma do sentir e do representar.55

    Segundo Hegel, na poca moderna j no se exige uma arte alicerada

    na objetividade da coisa, ela no tem que fazer a coisa aparecer em seu pleno

    desenvolvimento, como ocorre na epopia, que narra a ao individual do heri

    inserido na totalidade orgnica de um mundo fechado em si mesmo, ou como no

    dram